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7/31/2019 Incertas figuras do real: a construo da personagem no documentrio
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Incertas figuras do real: a construo da personagem no
documentrio1
Rafael Spuldar2Programa de Ps-Graduao em Comunicao da Pontifcia Universidade
Catlica do Rio Grande do Sul
Resumo
A idia do documentrio enquanto representao, e no reproduo doreal, provoca a necessidade de se especular sobre a natureza de certas funesnarrativas. Assim, o presente trabalho tem como objetivo aproximar as noes dedocumentrio e personagem, buscando compreender a construo destas figuras
dentro do gnero cinematogrfico escolhido e encontrar possveis semelhanas e/oudiferenas entre este processo e aquele verificado nos relatos ficcionais.
Palavras-chave
Cinema; documentrio; personagem.
A teoria do documentrio dedica um espao ainda marginal para a
explorao de um elemento fundamental em qualquer narrativa: a personagem.
Importantes tericos do gnero, como Bill Nichols, chegam a sugerir que esta figura
secundria: os documentrios seriam compostos menos por narrativas organizadas
em torno de uma personagem central do que por uma retrica organizada em torno
de um argumento (NICHOLS, 2001, p.28).
Pretendemos aqui tomar as noes de documentrio e de personagem,
buscar uma definio para ambas e aproxim-las, para melhor compreender a
maneira como estas figuras da narrativa, que na maioria das vezes tomam a forma de
seres humanos reais, se constroem dentro deste gnero cinematogrfico to
complexo e fugidio. Nosso objetivo encontrar possveis semelhanas e/ou
diferenas deste processo em relao ao que acontece nos filmes classificados como
ficcionais. Primeiramente, iremos definir cada campo de estudo, realizando uma
1Trabalho apresentado ao NP de Comunicao Audiovisual, do VI Encontro dos Ncleos de Pesquisa da Intercom.2Mestrando no Programa de Ps-Graduao em Comunicao da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande doSul. Autor do artigo Representaes emA Queda! eEu Fui a Secretria de Hitler, apresentado no GT deAudiovisual do VII Seminrio Internacional de Comunicao, promovido pela PUCRS (Porto Alegre, 2005).
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reviso terica a respeito dos temas; posteriormente, faremos a aproximao das
duas noes e verificar a validade de nosso estudo.
Documentrio: uma perspectiva relacional
No mbito dos estudos do documentrio, recorrente a idia de que a
busca da definio deste gnero cinematogrfico passa por uma anlise relacional
com os relatos ficcionais. No haveria, sob este ponto de vista, maneira de se
diferenciar um filme documental de um ficcional apenas pelas caractersticas
intrnsecas e expressas de cada um; seria impossvel identificar, de maneira
consistente, uma narrativa ou um estilo que seja exclusivo dos documentrios e o
mesmo argumento valeria para as fices.
Para Nichols, por exemplo, o registro indicial da realidade (NICHOLS,
2001, p.36) por meio do suporte audiovisual operado da mesma forma pelos
filmes ficcionais e pelos documentrios, o que impede a simples distino atravs da
percepo primria de imagens e sons. O que o pblico pressupe, ao ver um
documentrio, a autenticidade da prova (idem, p.37), a crena de que aquela obra
re-apresenta o mundo cotidiano a partir de uma perspectiva especfica; isto
sustentaria ainda o argumento, proposto pelo autor, de que o documentrio seria uma
representao, e no uma reproduo do real.
A diferena fundamental entre fico e documentrio, segundo Nichols,
reside no status conferido pelo espectador imagem que presencia na tela. No caso
do documentrio, como j foi exposto, o pblico acredita na veracidade daquilo quev, na ligao direta das imagens com seu mundo vivido; nas palavras de Sobchack,
o mundo em que o espao documentrio se estende e para o qual aponta sua
significao indicial percebido como o mundo concreto e intersubjetivo do
observador (SOBCHACK, 2005, p.147).
J na fico, o relato faz com que o espectador imagine os espaos e as
situaes que se apresentam diante de si. Esses filmes do expresso tangvel para
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nossos desejos e sonhos, nossos pesadelos e medos (NICHOLS, 2001, p.1). Embora
seu registro indicial seja igual ao do documentrio, o pblico no v aquelas
imagens como reais, como parte de seu mundo; podemos adotar a verdade do filmede fico como nossa, ou simplesmente rejeit-la (idem, p.1).
Carroll compartilha com Nichols e Sobchack a noo de que o espectador
a pea-chave para se chegar diferenciao entre filmes ficcionais e documentrios;
no entanto, ele amplia e aprofunda a diferena entre crena e imaginao, e elabora
uma nova definio para o filme documentrio.
Considerando que esta delimitao possvel ao considerar determinadaspropriedades relacionais e no-manifestas dos filmes, o autor utiliza o modelo
terico de inteno-resposta de Paul Grice para estabelecer sua noo de cinema de
assero pressuposta. Esta nova denominao proposta por Carroll para o
documentrio se origina naquilo que ele considera um jogo da assero (p.72)
existente entre o autor cinematogrfico e o pblico espectador.
Este jogo ocorre da seguinte forma: o cineasta apresenta seu filme ao
espectador com uma inteno primordial de que o espectador acredite no contedodaquilo que est na tela (inteno assertiva do autor). O pblico, ento, adota uma
postura assertiva, ou seja, acredita no contedo do filme, a partir do momento em
que reconhece no autor sua inteno assertiva.
O motivo desta assero ser pressuposta, segundo Carroll, se d pela
possibilidade do filme mentir, ou seja, do cineasta dissimular a realidade de seu
texto flmico. No entanto, esta dissimulao menos importante do que o jogo da
assero: enquanto o pblico reconhecer a inteno assertiva do autor e adotar uma
postura assertiva, ou seja, acreditarno contedo do filme, tudo se mantm intacto.
No entanto, cabe ao cineasta o nus de manter a credibilidade daquilo que apresenta
na tela:
Para que sua inteno assertiva seja no-defectiva, o realizador compromete-se com averdade ou plausibilidade do contedo proposicional do filme e responsabiliza-se pelospadres de evidncia e argumentao exigidos para fundamentar a verdade ou plausibilidadedo contedo proposicional que apresenta (CARROLL, 2005, p.89).
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Utilizando a obra do diretor Joo Moreira Salles como ilustrao, diramos
que o terceiro episdio da srie Futebol considerado um filme de assero
pressuposta pelo fato do espectador crer nos depoimentos de socialites, taxistas eeconomistas sobre o jogador Paulo Csar Caju enquanto representaes reais. Esta
compreenso ocorre a partir de uma leitura da inteno de Moreira Salles de que ela
ocorra, mesmo que estas entrevistas fossem, por exemplo , falas interpretadas por
atores.
O mesmo jogo de assero ocorre em relao ao filme de fico; a
diferena, segundo Carroll, que a inteno do cineasta passa a ser no-assertivaou
ficcional. Isto significa que o pblico reconhece no autor a inteno de que no se
acredite na realidade dos fatos apresentados no filme, adotando assim uma postura
ficcional, ou seja, o espectador passa a imaginar o contedo do texto flmico sob
uma perspectiva supositiva e no-assertiva, como que dizendo: eu tomo isto como
verdade dentro do propsito de seu argumento.
A idia do cinema de assero pressuposta seria, para Carroll, um segmento
dentro do amplo espectro dos filmes no-ficcionais. Esta classificao se estende a
diversas obras que so freqentemente separadas do gnero documentrio. Assim,
programas de TV exibidos em canais como History Channel ou National
Geographic que apresentem, por exemplo, reconstituies histricas passam a ser
enquadrados como documentais, mesmo que seus autores no tenham a inteno de
que estas cenas sejam tomadas pelo pblico como traosdo mundo real.
Para este tipo especfico de filme documentrio, Carroll elabora a noo de
cinema de trao pressuposto, no qual o cineasta tem como inteno assertiva fazer
com que a imagem seja tomada pelo pblico como um trao retirado diretamente de
sua prpria realidade vivida.
O trao pressuposto porque, assim como no cinema de assero
pressuposta, o realizador pode estar mentindo (ele, por exemplo, filma uma rvore
no Jardim Botnico e apresenta como sendo no Amazonas o pblico adota uma
postura assertiva e aceita isto como verdade). Esta vertente remete imagem que a
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maioria das pessoas tem do cinema documentrio de fato, classificado geralmente
como actualit(CARROLL, 2005, p.92).
Atravs de suas formulaes, Carroll evita explicitar limites temticos ou
narrativos ao documentrio; j Nichols, ao afirmar, por exemplo, que os
documentrios se caracterizam mais por retricas sobre argumentos e menos sobre
narrativas sobre personagens, como citamos no incio do texto, nos parece restringir
excessivamente as possibilidades narrativas deste gnero.
A personagem e os traos do mundo real
A ligao com o mundo real um tpico marcante nas teorias referentes
figura da personagem, em sua maioria realizados dentro do campo da literatura.
Poderamos dizer que esta preocupao vem desde Aristteles, que j definia a
personagem (ou agente) como uma representao de seres humanos verdadeiros,
uma entidade composta pelo poeta a partir de uma seleo de informaes dadas a
respeito de pessoas reais (2000, p.309).
Na mesma linha seguem Ducrot e Todorov, ao afirmarem que as
personagens representam pessoas, mas segundo modalidades prprias da fico e
nunca fora dos limites do suporte lingstico (1982). A surge outro ponto em
comum com Aristteles, para quem a natureza e unidade da personagem s so
obtidas a partir dos recursos da criao artstica.
Antonio Candido, em sua anlise da personagem do romance, comenta a
viso fragmentria do homem em relao aos outros seres. Para ele, o homem
elabora o conhecimento de seus semelhantes de maneira insatisfatria, incompleta
(...) imanente nossa prpria experincia (1970, p.58), nunca abrangendo a
integridade do ser. O conhecimento humano dos seres se d primeiro no domnio
finito, isto , do corpo, do material, do fsico, da aparncia que se d de forma
mais ou menos integral e depois do domnio infinito, este inatingvel de maneira
completa.
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Esta abordagem, quando transposta ao romance, retomada, mas de outra
forma: esta fragmentao, segundo Candido, dirigida racionalmente pelo autor. A
limitao do meio faz necessria uma simplificao, mas pela combinao dealguns elementos essenciais e repetidos gestos, falas que refletem traos da
personagem que se forma a identificao com o leitor. Esta lgica organizacional
de elementos d origem, nas palavras do autor, a uma iluso do ilimitado (1970,
p.59).
Aqui j se faz presente uma abordagem que remete ao sculo XVIII,
quando o ideal burgus e o advento do indivduo moderno geraram o que foi
definido por Brait como viso psicologizante (1985, p.38) da personagem. Ela
deixa de ser o heri da cano de gesta da Idade Mdia, ou o modelo a ser imitado
(na concepo do latino Horcio), para se tornar uma criatura antropomrfica, cuja
medida o homem comum.
Na definio de Candido, a mudana do romance no sculo XVIII a
passagem do enredo complicado com personagem simples para o enredo simples
com personagem complicado. O exemplo mximo deste modelo, para o autor, viria
a ser Ulysses, de James Joyce, na primeira metade do sculo XX. Na mesma linha,
E.M. Forster criou a noo de personagem plana (simples, bidimensional, melhor
representada pelo tipo e pela caricatura comuns no melodrama e na comdia) e
redonda ou esfrica (complexa, multifacetada, tridimensional, possuidora de vrios
traos). Para Forster, a personagem deve dar a impresso de um ser vivo (1974).
A idia de trao, citada anteriormente aqui, fundamental no pensamento
de Seymour Chatman sobre a personagem, em seu estudo sobre estruturas narrativas.
Para ele, o trao seria uma qualidade pessoal relativamente estvel ou permanente
(1978, p.126), no podendo ser tomada como hbito, mas sim como um sistema de
hbitos interdependentes (1978, p.122) e no excludentes. Extrada da psicologia,
esta noo coloca novamente em evidncia a conexo entre a personagem e o mundo
real em que vivemos.
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Chatman afirma que os traos, para fins narrativos, podem ser considerados
adjetivos retirados do vernculo de determinada poca para rotular uma qualidade da
personagem, fazendo assim uma conexo entre o pblico e a narrativa (identificaoesta, como j vimos, apontada tambm por Candido). Atravs de seu conhecimento
do cdigo de traos do mundo real (1978, p.125), o leitor ou espectador reconhece
e distingue uma personagem das outras, mesmo que estes rtulos no estejam
explcitos no texto.
Assim, o autor define a personagem como sendo um paradigma de traos,
considerando que estes podem emergir mais cedo ou mais tarde na narrativa, e esto
sujeitos a desaparecer e serem substitudos por outros. Como adjetivos, os traos
funcionam como uma espcie de agregao vertical interseccionando a cadeia de
eventos que inclui a trama (1978, p. 127).
Para Chatman, os eventos (predicados) tm posies estritas e bem
definidas na narrativa: A ocorre aps B, que tem C como conseqncia etc. J os
traos (adjetivos) no esto sujeitos a esta delimitao, e podem prevalecer ao longo
de toda a obra, e inclusive alm dela, na memria do pblico. Desta forma, as
personagens redondas de E.M. Forster, segundo ele, desafiam a linha de eventos em
uma narrativa, sendo construtos abertos para observaes subseqentes:
Nossa leitura no limitada ao perodo efetivo de contato imediato com o texto. Apersonagem pode nos perseguir por dias e anos enquanto tentamos contabilizar asdiscrepncias ou lacunas relativas s mudanas e ao crescente discernimento sobre nsmesmos e nossos semelhantes. As grandes personagens redondas parecem objetosvirtualmente inexaurveis para a contemplao. Ns podemos at lembrar delas comopresenas com quem (ou nas quais) ns vivemos (...) (CHATMAN, 1978, p.133).
Podemos j verificar uma tendncia nos estudos da personagem: buscar sua
dissociao dos demais elementos narrativos, como a trama. Este ponto de vista se
dissocia daquele recorrente desde Aristteles, no qual a personagem existe como
funo da trama, nunca um elemento em separado. Para o grego, a ao era
prioritria, verdadeiro objeto da imitao (mimese); os agentes (pratton) apenas a
interpretam. Esta abordagem funcionalista da personagem(1978, p.111) ecoou nos
trabalhos de formalistas russos como Propp e Tomaschevsky.
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Chatman, por sua vez, defende uma teoria aberta da personagem , na qual
esta seja tratada como uma entidade autnoma, e no como um mero elemento
funcional da trama. Esta teoria deve argir que a personagem reconstruda pelopblico a partir de evidncias anunciadas ou implcitas em uma construo original e
comunicada pelo discurso (CHATMAN, 1978, p. 119).
Esta separao, por vezes, no se d somente entre personagem e trama,
mas tambm, de forma radical, entre personagem e autor. Dcio de Almeida Prado,
por exemplo, define a personagem do teatro como um paradoxo: enquanto a pea
seria um prolongamento do dramaturgo, a personagem ganha existncia e relevncia
artstica no momento da montagem, quando est liberta de tutelas. Prado chega a
citar uma luta surda entre autor e personagem:
O dramaturgo no est longe de se assemelhar ao Deus concebido por Newton: o seu papelse extinguiria para todos os efeitos no momento da criao (...). Mas poucos autores secontentam com semelhante excluso: o prprio impulso que os levou a escrever a pea, leva-os tambm a expor e a defender seus pontos de vista (PRADO, 1970, p.101).
Como pudemos notar, os estudos da personagem se concentram no campo
das narrativas de fico. Antonio Candido, no entanto, parece abrir espao para uma
postura direcionada aos relatos no-ficcionais, quando afirma que no se podeaproveitar integralmente um ser vivo, real, como uma personagem de romance.
Assim, o autor vai interpretar(ou representar) o mistrio desta pessoa viva, ao invs
de respond- la.
No que se refere ao estudo da representao dos objetos reais no
documentrio, podemos retomar a idia de Sobchack, que v um lao existencial
(2005, p. 147) entre o espectador e o espao documentrio. Para a autora, o pblico
reconhece este espao como contguo ao seu, e no um mundo parte. Ele tambm
v, na tela de cinema ou de TV, sujeitos estabelecendo relaes sociais concretas
neste espao tico. Ou seja, no se trataria de personagens no sentido comum, ligado
s narrativas ficcionais, e sim de pessoas de carne e osso.
No entanto, ao lembrar da noo de viso fragmentria pelo homem,
formulada por Antonio Candido, questionamos: sendo o filme documentrio uma
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narrativa elaborada por um sujeito, e considerando a impossibilidade humana de
compreender e apreender o domnio infinito e a integralidade dos seres sua volta,
no se aplicaria a figura da personagem tambm aos documentrios?
Documentrio e personagem: uma aproximao
Retomemos Candido, quanto ele se refere construo da personagem: o
autor possui uma viso fragmentria do real; ele ento capta vrios fragmentos de
seu mundo vivido, das pessoas e situaes que conhece, e os organiza dentro da
narrativa, configurando uma iluso do ilimitado e um senso de unidade, dando
origem assim personagem. Chatman diria que o autor parte de traos encontrados e
verificveis no mundo real extratextual para gerar a personagem, ou seu paradigma
de traos.
No caso do documentrio, ocorre o mesmo. A diferena que o
documentarista possui um contato mais direto com as pessoas que estaro presentes
em seu relato flmico. Atravs da captao de vasto material bruto audiovisual
recurso corrente neste gnero , o diretor passa a dispor de um registro indicial que
difere dos instrumentos de criao do romancista (que recorre memria ou ao seu
imaginrio ), mas idntico ao do ficcionista cinematogrfico; no entanto, este utiliza
seus instrumentos para criar mundos e pessoas imaginrios, atravs de uma postura
no-assertiva.
O material bruto do documentrio de maneira alguma um registro total ou
completo daquilo que o documentarista retrata; a viso fragmentria inevitvel. Ao trabalho do diretor se mostra idntico ao do ficcionista: ele toma o material bruto e
o edita, seleciona trechos e falas, aes e situaes vividas e d origem a um filme,
que nada mais do que a organizao de fragmentos do real atravs da narrativa;
ento, a pessoa real, que j foi observada e registrada de maneira incompleta, se
transfigura em uma iluso de ilimitado, em uma unidade.
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O documentrio nos parece ser um exemplo radical das idias de Chatman e
Almeida Prado, quando se referem personagem de fico como uma entidade viva,
independente do autor e da trama. Afinal, embora tenha a prerrogativa de selecionar,editar e construir uma narrativa a partir de traos de seus entrevistados/assuntos, o
documentarista no possui, salvo alguns casos especficos, o poder de decidir o que
as pessoas registradas devam fazer ou falar. O trabalho de organizao do
documentarista se d, assim, a partir de fatos dados e registrados pela cmera. Da
mesma forma, romancistas e ficcionistas freqentemente relatam a dificuldade em
domar suas personagens, ou de como falas e aes parecem brotar no texto de
maneira quase que independente de sua vontade de autor. Existe vida napersonagem, seja ela ficcional ou documental.
A figura da personagem no se constri em nosso mundo vivido, ou dentro
da cabea de um autor, mas sim no corpo de um texto a representao de um ser
humano. Seja este indivduo ficcional ou existente na vida real, esta representao se
configura de maneira idntica dentro da narrativa, ou seja, a partir da apreenso de
caractersticas observveis nos sujeitos e de sua conseqente organizao por parte
do autor.
Podemos dizer ento que a nica particularidade perceptvel na personagem
de documentrio remete ao jogo de assero de Carroll: ela depende no s da
inteno do artista em fazer o pblico acreditar nesta pessoa que apresenta (ou
representa), mas tambm na postura do pblico de, em acreditando na existncia
deste ser, reconhecer a inteno assertiva do cineasta.
Assim, ao ver Entreatos (2004), mesmo que todos percebam Lula e reconheam
sua fisionomia, sua voz, seus traos, o que vemos a representao de um indivduo que
no podemos atingir ou conhecer por completo. O documentarista, por sua viso
fragmentria, tem acesso a pedaos, a trechos de Lula que so registrados pela cmera e
organizados dentro da narrativa, compondo uma personagem. Nem mesmo a notoriedade
e todo o conhecimento pblico sobre a vida e a trajetria de Lula evita que ele, em
Entreatos, seja uma personagem um paradigma de traos no mais real do que uma
figura de fico.
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Esta argumentao a respeito da personagem do documentrio vem a
reforar um ponto de vista disseminado nos estudos deste gnero e j levantado aqui
anteriormente: o documentrio no deve ser visto como reproduo da realidade,mas sim como uma representao. Ou seja, dos seres humanos que vemos na tela e
que reconhecemos como contguos ao nosso mundo de verdade, nos so oferecidos
apenas traos; desses indivduos, exploramos vestgios que se organizam em uma
narrativa e se cristalizam nas personagens, figuras estas to semelhantes a ns, to
incertas e to reais.
Referncias bibliogrficas
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BRAIT, Beth.A Personagem. So Paulo:tica, 1985.
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