Incertas figuras do real: a construção da personagem no documentário

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    Incertas figuras do real: a construo da personagem no

    documentrio1

    Rafael Spuldar2Programa de Ps-Graduao em Comunicao da Pontifcia Universidade

    Catlica do Rio Grande do Sul

    Resumo

    A idia do documentrio enquanto representao, e no reproduo doreal, provoca a necessidade de se especular sobre a natureza de certas funesnarrativas. Assim, o presente trabalho tem como objetivo aproximar as noes dedocumentrio e personagem, buscando compreender a construo destas figuras

    dentro do gnero cinematogrfico escolhido e encontrar possveis semelhanas e/oudiferenas entre este processo e aquele verificado nos relatos ficcionais.

    Palavras-chave

    Cinema; documentrio; personagem.

    A teoria do documentrio dedica um espao ainda marginal para a

    explorao de um elemento fundamental em qualquer narrativa: a personagem.

    Importantes tericos do gnero, como Bill Nichols, chegam a sugerir que esta figura

    secundria: os documentrios seriam compostos menos por narrativas organizadas

    em torno de uma personagem central do que por uma retrica organizada em torno

    de um argumento (NICHOLS, 2001, p.28).

    Pretendemos aqui tomar as noes de documentrio e de personagem,

    buscar uma definio para ambas e aproxim-las, para melhor compreender a

    maneira como estas figuras da narrativa, que na maioria das vezes tomam a forma de

    seres humanos reais, se constroem dentro deste gnero cinematogrfico to

    complexo e fugidio. Nosso objetivo encontrar possveis semelhanas e/ou

    diferenas deste processo em relao ao que acontece nos filmes classificados como

    ficcionais. Primeiramente, iremos definir cada campo de estudo, realizando uma

    1Trabalho apresentado ao NP de Comunicao Audiovisual, do VI Encontro dos Ncleos de Pesquisa da Intercom.2Mestrando no Programa de Ps-Graduao em Comunicao da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande doSul. Autor do artigo Representaes emA Queda! eEu Fui a Secretria de Hitler, apresentado no GT deAudiovisual do VII Seminrio Internacional de Comunicao, promovido pela PUCRS (Porto Alegre, 2005).

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    reviso terica a respeito dos temas; posteriormente, faremos a aproximao das

    duas noes e verificar a validade de nosso estudo.

    Documentrio: uma perspectiva relacional

    No mbito dos estudos do documentrio, recorrente a idia de que a

    busca da definio deste gnero cinematogrfico passa por uma anlise relacional

    com os relatos ficcionais. No haveria, sob este ponto de vista, maneira de se

    diferenciar um filme documental de um ficcional apenas pelas caractersticas

    intrnsecas e expressas de cada um; seria impossvel identificar, de maneira

    consistente, uma narrativa ou um estilo que seja exclusivo dos documentrios e o

    mesmo argumento valeria para as fices.

    Para Nichols, por exemplo, o registro indicial da realidade (NICHOLS,

    2001, p.36) por meio do suporte audiovisual operado da mesma forma pelos

    filmes ficcionais e pelos documentrios, o que impede a simples distino atravs da

    percepo primria de imagens e sons. O que o pblico pressupe, ao ver um

    documentrio, a autenticidade da prova (idem, p.37), a crena de que aquela obra

    re-apresenta o mundo cotidiano a partir de uma perspectiva especfica; isto

    sustentaria ainda o argumento, proposto pelo autor, de que o documentrio seria uma

    representao, e no uma reproduo do real.

    A diferena fundamental entre fico e documentrio, segundo Nichols,

    reside no status conferido pelo espectador imagem que presencia na tela. No caso

    do documentrio, como j foi exposto, o pblico acredita na veracidade daquilo quev, na ligao direta das imagens com seu mundo vivido; nas palavras de Sobchack,

    o mundo em que o espao documentrio se estende e para o qual aponta sua

    significao indicial percebido como o mundo concreto e intersubjetivo do

    observador (SOBCHACK, 2005, p.147).

    J na fico, o relato faz com que o espectador imagine os espaos e as

    situaes que se apresentam diante de si. Esses filmes do expresso tangvel para

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    nossos desejos e sonhos, nossos pesadelos e medos (NICHOLS, 2001, p.1). Embora

    seu registro indicial seja igual ao do documentrio, o pblico no v aquelas

    imagens como reais, como parte de seu mundo; podemos adotar a verdade do filmede fico como nossa, ou simplesmente rejeit-la (idem, p.1).

    Carroll compartilha com Nichols e Sobchack a noo de que o espectador

    a pea-chave para se chegar diferenciao entre filmes ficcionais e documentrios;

    no entanto, ele amplia e aprofunda a diferena entre crena e imaginao, e elabora

    uma nova definio para o filme documentrio.

    Considerando que esta delimitao possvel ao considerar determinadaspropriedades relacionais e no-manifestas dos filmes, o autor utiliza o modelo

    terico de inteno-resposta de Paul Grice para estabelecer sua noo de cinema de

    assero pressuposta. Esta nova denominao proposta por Carroll para o

    documentrio se origina naquilo que ele considera um jogo da assero (p.72)

    existente entre o autor cinematogrfico e o pblico espectador.

    Este jogo ocorre da seguinte forma: o cineasta apresenta seu filme ao

    espectador com uma inteno primordial de que o espectador acredite no contedodaquilo que est na tela (inteno assertiva do autor). O pblico, ento, adota uma

    postura assertiva, ou seja, acredita no contedo do filme, a partir do momento em

    que reconhece no autor sua inteno assertiva.

    O motivo desta assero ser pressuposta, segundo Carroll, se d pela

    possibilidade do filme mentir, ou seja, do cineasta dissimular a realidade de seu

    texto flmico. No entanto, esta dissimulao menos importante do que o jogo da

    assero: enquanto o pblico reconhecer a inteno assertiva do autor e adotar uma

    postura assertiva, ou seja, acreditarno contedo do filme, tudo se mantm intacto.

    No entanto, cabe ao cineasta o nus de manter a credibilidade daquilo que apresenta

    na tela:

    Para que sua inteno assertiva seja no-defectiva, o realizador compromete-se com averdade ou plausibilidade do contedo proposicional do filme e responsabiliza-se pelospadres de evidncia e argumentao exigidos para fundamentar a verdade ou plausibilidadedo contedo proposicional que apresenta (CARROLL, 2005, p.89).

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    Utilizando a obra do diretor Joo Moreira Salles como ilustrao, diramos

    que o terceiro episdio da srie Futebol considerado um filme de assero

    pressuposta pelo fato do espectador crer nos depoimentos de socialites, taxistas eeconomistas sobre o jogador Paulo Csar Caju enquanto representaes reais. Esta

    compreenso ocorre a partir de uma leitura da inteno de Moreira Salles de que ela

    ocorra, mesmo que estas entrevistas fossem, por exemplo , falas interpretadas por

    atores.

    O mesmo jogo de assero ocorre em relao ao filme de fico; a

    diferena, segundo Carroll, que a inteno do cineasta passa a ser no-assertivaou

    ficcional. Isto significa que o pblico reconhece no autor a inteno de que no se

    acredite na realidade dos fatos apresentados no filme, adotando assim uma postura

    ficcional, ou seja, o espectador passa a imaginar o contedo do texto flmico sob

    uma perspectiva supositiva e no-assertiva, como que dizendo: eu tomo isto como

    verdade dentro do propsito de seu argumento.

    A idia do cinema de assero pressuposta seria, para Carroll, um segmento

    dentro do amplo espectro dos filmes no-ficcionais. Esta classificao se estende a

    diversas obras que so freqentemente separadas do gnero documentrio. Assim,

    programas de TV exibidos em canais como History Channel ou National

    Geographic que apresentem, por exemplo, reconstituies histricas passam a ser

    enquadrados como documentais, mesmo que seus autores no tenham a inteno de

    que estas cenas sejam tomadas pelo pblico como traosdo mundo real.

    Para este tipo especfico de filme documentrio, Carroll elabora a noo de

    cinema de trao pressuposto, no qual o cineasta tem como inteno assertiva fazer

    com que a imagem seja tomada pelo pblico como um trao retirado diretamente de

    sua prpria realidade vivida.

    O trao pressuposto porque, assim como no cinema de assero

    pressuposta, o realizador pode estar mentindo (ele, por exemplo, filma uma rvore

    no Jardim Botnico e apresenta como sendo no Amazonas o pblico adota uma

    postura assertiva e aceita isto como verdade). Esta vertente remete imagem que a

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    maioria das pessoas tem do cinema documentrio de fato, classificado geralmente

    como actualit(CARROLL, 2005, p.92).

    Atravs de suas formulaes, Carroll evita explicitar limites temticos ou

    narrativos ao documentrio; j Nichols, ao afirmar, por exemplo, que os

    documentrios se caracterizam mais por retricas sobre argumentos e menos sobre

    narrativas sobre personagens, como citamos no incio do texto, nos parece restringir

    excessivamente as possibilidades narrativas deste gnero.

    A personagem e os traos do mundo real

    A ligao com o mundo real um tpico marcante nas teorias referentes

    figura da personagem, em sua maioria realizados dentro do campo da literatura.

    Poderamos dizer que esta preocupao vem desde Aristteles, que j definia a

    personagem (ou agente) como uma representao de seres humanos verdadeiros,

    uma entidade composta pelo poeta a partir de uma seleo de informaes dadas a

    respeito de pessoas reais (2000, p.309).

    Na mesma linha seguem Ducrot e Todorov, ao afirmarem que as

    personagens representam pessoas, mas segundo modalidades prprias da fico e

    nunca fora dos limites do suporte lingstico (1982). A surge outro ponto em

    comum com Aristteles, para quem a natureza e unidade da personagem s so

    obtidas a partir dos recursos da criao artstica.

    Antonio Candido, em sua anlise da personagem do romance, comenta a

    viso fragmentria do homem em relao aos outros seres. Para ele, o homem

    elabora o conhecimento de seus semelhantes de maneira insatisfatria, incompleta

    (...) imanente nossa prpria experincia (1970, p.58), nunca abrangendo a

    integridade do ser. O conhecimento humano dos seres se d primeiro no domnio

    finito, isto , do corpo, do material, do fsico, da aparncia que se d de forma

    mais ou menos integral e depois do domnio infinito, este inatingvel de maneira

    completa.

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    Esta abordagem, quando transposta ao romance, retomada, mas de outra

    forma: esta fragmentao, segundo Candido, dirigida racionalmente pelo autor. A

    limitao do meio faz necessria uma simplificao, mas pela combinao dealguns elementos essenciais e repetidos gestos, falas que refletem traos da

    personagem que se forma a identificao com o leitor. Esta lgica organizacional

    de elementos d origem, nas palavras do autor, a uma iluso do ilimitado (1970,

    p.59).

    Aqui j se faz presente uma abordagem que remete ao sculo XVIII,

    quando o ideal burgus e o advento do indivduo moderno geraram o que foi

    definido por Brait como viso psicologizante (1985, p.38) da personagem. Ela

    deixa de ser o heri da cano de gesta da Idade Mdia, ou o modelo a ser imitado

    (na concepo do latino Horcio), para se tornar uma criatura antropomrfica, cuja

    medida o homem comum.

    Na definio de Candido, a mudana do romance no sculo XVIII a

    passagem do enredo complicado com personagem simples para o enredo simples

    com personagem complicado. O exemplo mximo deste modelo, para o autor, viria

    a ser Ulysses, de James Joyce, na primeira metade do sculo XX. Na mesma linha,

    E.M. Forster criou a noo de personagem plana (simples, bidimensional, melhor

    representada pelo tipo e pela caricatura comuns no melodrama e na comdia) e

    redonda ou esfrica (complexa, multifacetada, tridimensional, possuidora de vrios

    traos). Para Forster, a personagem deve dar a impresso de um ser vivo (1974).

    A idia de trao, citada anteriormente aqui, fundamental no pensamento

    de Seymour Chatman sobre a personagem, em seu estudo sobre estruturas narrativas.

    Para ele, o trao seria uma qualidade pessoal relativamente estvel ou permanente

    (1978, p.126), no podendo ser tomada como hbito, mas sim como um sistema de

    hbitos interdependentes (1978, p.122) e no excludentes. Extrada da psicologia,

    esta noo coloca novamente em evidncia a conexo entre a personagem e o mundo

    real em que vivemos.

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    Chatman afirma que os traos, para fins narrativos, podem ser considerados

    adjetivos retirados do vernculo de determinada poca para rotular uma qualidade da

    personagem, fazendo assim uma conexo entre o pblico e a narrativa (identificaoesta, como j vimos, apontada tambm por Candido). Atravs de seu conhecimento

    do cdigo de traos do mundo real (1978, p.125), o leitor ou espectador reconhece

    e distingue uma personagem das outras, mesmo que estes rtulos no estejam

    explcitos no texto.

    Assim, o autor define a personagem como sendo um paradigma de traos,

    considerando que estes podem emergir mais cedo ou mais tarde na narrativa, e esto

    sujeitos a desaparecer e serem substitudos por outros. Como adjetivos, os traos

    funcionam como uma espcie de agregao vertical interseccionando a cadeia de

    eventos que inclui a trama (1978, p. 127).

    Para Chatman, os eventos (predicados) tm posies estritas e bem

    definidas na narrativa: A ocorre aps B, que tem C como conseqncia etc. J os

    traos (adjetivos) no esto sujeitos a esta delimitao, e podem prevalecer ao longo

    de toda a obra, e inclusive alm dela, na memria do pblico. Desta forma, as

    personagens redondas de E.M. Forster, segundo ele, desafiam a linha de eventos em

    uma narrativa, sendo construtos abertos para observaes subseqentes:

    Nossa leitura no limitada ao perodo efetivo de contato imediato com o texto. Apersonagem pode nos perseguir por dias e anos enquanto tentamos contabilizar asdiscrepncias ou lacunas relativas s mudanas e ao crescente discernimento sobre nsmesmos e nossos semelhantes. As grandes personagens redondas parecem objetosvirtualmente inexaurveis para a contemplao. Ns podemos at lembrar delas comopresenas com quem (ou nas quais) ns vivemos (...) (CHATMAN, 1978, p.133).

    Podemos j verificar uma tendncia nos estudos da personagem: buscar sua

    dissociao dos demais elementos narrativos, como a trama. Este ponto de vista se

    dissocia daquele recorrente desde Aristteles, no qual a personagem existe como

    funo da trama, nunca um elemento em separado. Para o grego, a ao era

    prioritria, verdadeiro objeto da imitao (mimese); os agentes (pratton) apenas a

    interpretam. Esta abordagem funcionalista da personagem(1978, p.111) ecoou nos

    trabalhos de formalistas russos como Propp e Tomaschevsky.

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    Chatman, por sua vez, defende uma teoria aberta da personagem , na qual

    esta seja tratada como uma entidade autnoma, e no como um mero elemento

    funcional da trama. Esta teoria deve argir que a personagem reconstruda pelopblico a partir de evidncias anunciadas ou implcitas em uma construo original e

    comunicada pelo discurso (CHATMAN, 1978, p. 119).

    Esta separao, por vezes, no se d somente entre personagem e trama,

    mas tambm, de forma radical, entre personagem e autor. Dcio de Almeida Prado,

    por exemplo, define a personagem do teatro como um paradoxo: enquanto a pea

    seria um prolongamento do dramaturgo, a personagem ganha existncia e relevncia

    artstica no momento da montagem, quando est liberta de tutelas. Prado chega a

    citar uma luta surda entre autor e personagem:

    O dramaturgo no est longe de se assemelhar ao Deus concebido por Newton: o seu papelse extinguiria para todos os efeitos no momento da criao (...). Mas poucos autores secontentam com semelhante excluso: o prprio impulso que os levou a escrever a pea, leva-os tambm a expor e a defender seus pontos de vista (PRADO, 1970, p.101).

    Como pudemos notar, os estudos da personagem se concentram no campo

    das narrativas de fico. Antonio Candido, no entanto, parece abrir espao para uma

    postura direcionada aos relatos no-ficcionais, quando afirma que no se podeaproveitar integralmente um ser vivo, real, como uma personagem de romance.

    Assim, o autor vai interpretar(ou representar) o mistrio desta pessoa viva, ao invs

    de respond- la.

    No que se refere ao estudo da representao dos objetos reais no

    documentrio, podemos retomar a idia de Sobchack, que v um lao existencial

    (2005, p. 147) entre o espectador e o espao documentrio. Para a autora, o pblico

    reconhece este espao como contguo ao seu, e no um mundo parte. Ele tambm

    v, na tela de cinema ou de TV, sujeitos estabelecendo relaes sociais concretas

    neste espao tico. Ou seja, no se trataria de personagens no sentido comum, ligado

    s narrativas ficcionais, e sim de pessoas de carne e osso.

    No entanto, ao lembrar da noo de viso fragmentria pelo homem,

    formulada por Antonio Candido, questionamos: sendo o filme documentrio uma

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    narrativa elaborada por um sujeito, e considerando a impossibilidade humana de

    compreender e apreender o domnio infinito e a integralidade dos seres sua volta,

    no se aplicaria a figura da personagem tambm aos documentrios?

    Documentrio e personagem: uma aproximao

    Retomemos Candido, quanto ele se refere construo da personagem: o

    autor possui uma viso fragmentria do real; ele ento capta vrios fragmentos de

    seu mundo vivido, das pessoas e situaes que conhece, e os organiza dentro da

    narrativa, configurando uma iluso do ilimitado e um senso de unidade, dando

    origem assim personagem. Chatman diria que o autor parte de traos encontrados e

    verificveis no mundo real extratextual para gerar a personagem, ou seu paradigma

    de traos.

    No caso do documentrio, ocorre o mesmo. A diferena que o

    documentarista possui um contato mais direto com as pessoas que estaro presentes

    em seu relato flmico. Atravs da captao de vasto material bruto audiovisual

    recurso corrente neste gnero , o diretor passa a dispor de um registro indicial que

    difere dos instrumentos de criao do romancista (que recorre memria ou ao seu

    imaginrio ), mas idntico ao do ficcionista cinematogrfico; no entanto, este utiliza

    seus instrumentos para criar mundos e pessoas imaginrios, atravs de uma postura

    no-assertiva.

    O material bruto do documentrio de maneira alguma um registro total ou

    completo daquilo que o documentarista retrata; a viso fragmentria inevitvel. Ao trabalho do diretor se mostra idntico ao do ficcionista: ele toma o material bruto e

    o edita, seleciona trechos e falas, aes e situaes vividas e d origem a um filme,

    que nada mais do que a organizao de fragmentos do real atravs da narrativa;

    ento, a pessoa real, que j foi observada e registrada de maneira incompleta, se

    transfigura em uma iluso de ilimitado, em uma unidade.

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    O documentrio nos parece ser um exemplo radical das idias de Chatman e

    Almeida Prado, quando se referem personagem de fico como uma entidade viva,

    independente do autor e da trama. Afinal, embora tenha a prerrogativa de selecionar,editar e construir uma narrativa a partir de traos de seus entrevistados/assuntos, o

    documentarista no possui, salvo alguns casos especficos, o poder de decidir o que

    as pessoas registradas devam fazer ou falar. O trabalho de organizao do

    documentarista se d, assim, a partir de fatos dados e registrados pela cmera. Da

    mesma forma, romancistas e ficcionistas freqentemente relatam a dificuldade em

    domar suas personagens, ou de como falas e aes parecem brotar no texto de

    maneira quase que independente de sua vontade de autor. Existe vida napersonagem, seja ela ficcional ou documental.

    A figura da personagem no se constri em nosso mundo vivido, ou dentro

    da cabea de um autor, mas sim no corpo de um texto a representao de um ser

    humano. Seja este indivduo ficcional ou existente na vida real, esta representao se

    configura de maneira idntica dentro da narrativa, ou seja, a partir da apreenso de

    caractersticas observveis nos sujeitos e de sua conseqente organizao por parte

    do autor.

    Podemos dizer ento que a nica particularidade perceptvel na personagem

    de documentrio remete ao jogo de assero de Carroll: ela depende no s da

    inteno do artista em fazer o pblico acreditar nesta pessoa que apresenta (ou

    representa), mas tambm na postura do pblico de, em acreditando na existncia

    deste ser, reconhecer a inteno assertiva do cineasta.

    Assim, ao ver Entreatos (2004), mesmo que todos percebam Lula e reconheam

    sua fisionomia, sua voz, seus traos, o que vemos a representao de um indivduo que

    no podemos atingir ou conhecer por completo. O documentarista, por sua viso

    fragmentria, tem acesso a pedaos, a trechos de Lula que so registrados pela cmera e

    organizados dentro da narrativa, compondo uma personagem. Nem mesmo a notoriedade

    e todo o conhecimento pblico sobre a vida e a trajetria de Lula evita que ele, em

    Entreatos, seja uma personagem um paradigma de traos no mais real do que uma

    figura de fico.

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    Esta argumentao a respeito da personagem do documentrio vem a

    reforar um ponto de vista disseminado nos estudos deste gnero e j levantado aqui

    anteriormente: o documentrio no deve ser visto como reproduo da realidade,mas sim como uma representao. Ou seja, dos seres humanos que vemos na tela e

    que reconhecemos como contguos ao nosso mundo de verdade, nos so oferecidos

    apenas traos; desses indivduos, exploramos vestgios que se organizam em uma

    narrativa e se cristalizam nas personagens, figuras estas to semelhantes a ns, to

    incertas e to reais.

    Referncias bibliogrficas

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