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Ilhas, Bairros Sociais e Classes Laboriosas na Cidade do Porto
(1956-2006)
Relatório Científico Final
Relatório elaborado no âmbito das actividades do Projecto
PTDC/SDE/69996/2006 “Ilhas, bairros sociais e classes laboriosas: um retrato comparado da
génese e estruturação das intervenções habitacionais do Estado na cidade do Porto e das suas
consequências sociais (1956-2006)”
(financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e
coordenado cientificamente pelo Professor Doutor Virgílio Borges Pereira)
Autoria
Carla Aurélia de Almeida
António Teixeira Fernandes
Eliseu Gonçalves
Idalina Machado
Olivier Masclet
Bruno Monteiro
Virgílio Borges Pereira (Coordenação)
José Madureira Pinto
João Queirós
Maria Tavares
Loïc Wacquant
Capa
Rita Araújo
Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Agosto de 2010
Ilhas, Bairros Sociais e Classes Laboriosas na Cidade do Porto
(1956-2006)
Relatório Científico Final
Índice
Nota de abertura ....................................................................................................................... 5
PARTE I
Ilhas, bairros sociais e classes laboriosas na cidade do Porto (1956-2006): um programa de
pesquisa.....................................................................................................................................10
Virgílio Borges Pereira
A Igreja e a «Questão Social» na cidade do Porto.................................................................. 22
António Teixeira Fernandes
Sobre as relações entre economia, sociedade e Estado na provisão de alojamento: uma
perspectiva comparada........................................................................................................... 36
José Madureira Pinto
Bairro do Amial: apresentação de resultados do Estudo de Caso ......................................... 58
Virgílio Borges Pereira e João Queirós
Bairro do Viso: apresentação de resultados do Estudo de Caso............................................ 76
Carla Aurélia de Almeida e Virgílio Borges Pereira
Les municipalités de gauche face aux descendants des migrants postcoloniaux: présentation
de deux enquêtes ...................................................................................................................... 94
Olivier Masclet
Designing urban seclusion in the 21st century .......................................................................107
Loïc Wacquant
PARTE II
Apresentação ..........................................................................................................................124
Virgílio Borges Pereira
O alojamento operário portuense nas primeiras décadas do século XX: da Casa Familiar ao
Bloco Comunitário ..................................................................................................................126
Eliseu Gonçalves
Casas a Norte: as Habitações Económicas num processo de continuidade ..........................135
Maria Tavares
Pelo direito à cidade. Contributos para o estudo das formas de organização popular do pós-
25 de Abril de 1974: apontamentos sobre a génese do Bairro da Bouça ..............................149
Idalina Machado
As conversões militantes. As condições de possibilidade da militância e as modalidades de
conscrição política entre o operariado industrial portuense (1940-1974) ...........................179
Bruno Monteiro
Sofrimento social num bairro do Porto. Uma aproximação sociológica à experiência vivida
da relegação............................................................................................................................193
João Queirós
ANEXOS
Nota de abertura
O presente Relatório Científico regista um conjunto de resultados da investigação levada a
cabo, desde Setembro de 2007, no Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da
Universidade do Porto no âmbito do projecto de investigação “Ilhas, bairros sociais e classes
laboriosas: um retrato comparado da génese e estruturação das intervenções habitacionais do
Estado na cidade do Porto e das suas consequências sociais (1956-2006)”
(PTDC/SDE/69996/2006).
Na sequência dos Relatórios de Progresso enviados nos últimos dois anos à Fundação para a
Ciência e Tecnologia (FCT), e tal como pode ser comprovado no Relatório de Execução
Material que acompanha este Relatório Científico, no quadro do projecto aqui em causa foi
possível não só desenvolver um vasto trabalho de investigação de natureza sócio-histórica e
sociológica sobre a estruturação do tecido social e urbano da cidade do Porto do último
século, mas também proceder, desde muito cedo na economia do processo de investigação, a
uma compilação de resultados e a uma divulgação dos mesmos nos fóruns científicos mais
diversificados.
O Relatório que agora se submete a apreciação da FCT, articulando-se com os resultados de
um colóquio científico internacional, que reuniu investigadores de universidades
portuguesas, francesas e norte-americanas, realizado, na Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, em 19 e 20 de Julho de 2010, para apresentar e discutir alguns dos
resultados preliminares da investigação desenvolvida, procura constituir-se como uma
ilustração do conjunto diversificado de preocupações que estiveram na origem da pesquisa
que agora se apresenta. Para além disso, procura registar várias das incidências do desenho
da investigação produzida bem como sistematizar resultados substantivos já disponíveis,
dando conta das vertentes comparadas que informam a pesquisa desde a sua génese e dos
diferentes espaços de promoção de formação científica avançada que foram proporcionados
pelo projecto de investigação.
Nesse sentido, reúnem-se neste Relatório os seguintes textos:
6
1. Virgílio Borges Pereira – “Ilhas, bairros sociais e classes laboriosas na cidade do Porto
(1956-2006): um programa de pesquisa”;
2. António Teixeira Fernandes – “A Igreja e a «Questão Social» na cidade do Porto”;
3. José Madureira Pinto – “Sobre as relações entre economia, sociedade e Estado na
provisão de alojamento: uma perspectiva comparada”;
4. Virgílio Borges Pereira e João Queirós – “Bairro do Amial: apresentação de resultados
do Estudo de Caso”;
5. Virgílio Borges Pereira e Carla Aurélia de Almeida – “Bairro do Viso: apresentação de
resultados do Estudo de Caso”;
6. Olivier Masclet – “Les municipalités de gauche face aux descendants des migrants
postcoloniaux: présentation de deux enquêtes”;
7. Loïc Wacquant – “Designing urban seclusion in the 21st century”.
8. Eliseu Gonçalves – “O alojamento operário portuense nas primeiras décadas do
século XX: da Casa Familiar ao Bloco Comunitário”;
9. Maria Tavares – “Casas a Norte: as Habitações Económicas num processo de
continuidade”;
10. Idalina Machado – “Pelo direito à cidade. Contributos para o estudo das formas de
organização popular do pós-25 de Abril de 1974: apontamentos sobre a génese do
Bairro da Bouça”;
11. Bruno Monteiro – “As conversões militantes. As condições de possibilidade da
militância e as modalidades de conscrição política entre o operariado industrial
portuense (1940-1974)”;
12. João Queirós – “Sofrimento social num bairro do Porto. Uma aproximação
sociológica à experiência vivida da relegação”.
Dada a natureza da investigação desenvolvida e a estratégia de trabalho implementada (que
implicou morosidade na recolha e tratamento da informação e exaustividade e complexidade
no respectivo manuseamento), os próximos doze meses serão ainda um tempo importante
para a prossecução do tratamento final da informação reunida e, principalmente, para a
divulgação dos respectivos resultados. Tal é, evidentemente, o caso de três das teses de
doutoramento que lhe estão associadas (cf. Relatório de Execução Material), e que estarão
concluídas durante o ano de 2011, e, sobretudo, das diferentes frentes de trabalho de
divulgação que estão já calendarizadas e programadas. Entre estas últimas, é particularmente
importante destacar a colecção, em dez volumes, que se publicará, sob coordenação do
7
responsável pelo projecto, sob o título de “O Estado, a Habitação e a Questão Social na
Cidade do Porto” e que tem a seguinte configuração:
Vol. 1 – Virgílio Borges Pereira e João Queirós
As ‘Casas Económicas’ e a Trajectória Sócio-Histórica de um Bairro do Porto: o caso do
Bairro do Amial (1933-2009).
Vol. 2 – António Teixeira Fernandes, Virgílio Borges Pereira e Ester Gomes da Silva
O Problema da Habitação, a Génese do Plano de Melhoramentos para a Cidade do Porto e a
Trajectória Sócio-Histórica do Primeiro dos seus Bairros Municipais: o caso do Bairro do
Bom Sucesso (1956-2009).
Vol. 3 – Virgílio Borges Pereira, Ricardo Lima e João Queirós
Penúria Habitacional, Lutas Sociais e Ocupações no Porto (pós-)revolucionário (1974-
2009).
Vol. 4 – Virgílio Borges Pereira e Carla Aurélia de Almeida
‘O Bairro Não é Aqui’: contradições políticas e demarcações sócio-simbólicas na génese e
estruturação do bairro do Viso (1979-2009).
Vol. 5 – Virgílio Borges Pereira e equipa de investigadores
Ainda sem título, o presente volume estudará os processos de desqualificação social que
estiveram na génese do Bairro de Aldoar, produzido e gerido pelo município, e as
modalidades da sua actualização no quotidiano contemporâneo do bairro.
Vol. 6 – João Queirós
Ainda sem título, o presente volume reconstituirá a transferência dos moradores da zona da
Ribeira-Barredo para o Bairro do Aleixo, nos anos 1970.
Vol. 7 – Rui Pinto
Ainda sem título, o presente volume estudará a acção penal do Estado na cidade do Porto ao
longo dos últimos 50 anos.
Vol. 8 – Idalina Machado
Ainda sem título, o presente volume apresentará um estudo sobre a génese social do hoje
muito reconhecido Bairro da Bouça, no centro da cidade do Porto, tomando por referência o
processo vivido na zona nos anos 1970.
Vol. 9 – Bruno Monteiro
8
Ainda sem título, o presente volume fará uma síntese sobre a relevância das questões
habitacionais no militantismo operário do Porto dos anos 1960 e 1970.
Vol. 10 – José Madureira Pinto
Ainda sem título, o presente volume estudará a relação entre campo da construção civil e a
intervenção do Estado no domínio da produção da habitação no Grande Porto
contemporâneo.
Para além dos volumes da referida colecção, está ainda prevista a apresentação de resultados
de investigação em conferências nacionais e internacionais da especialidade. Entre estas,
podem destacar-se as seguintes intervenções já calendarizadas:
Virgílio Borges Pereira – “Un programme de recherche sur le rapport entre la politique de
logement et la production de l’espace social de la ville de Porto (1956-2006)”, Institut
d’Études Politiques de l’Université de Strasbourg, Setembro de 2010;
Virgílio Borges Pereira – “Interrogar a cidade dividida”, Colóquio Científico Internacional no
quadro das Comemorações do Centenário da República, a convite do Presidente da Comissão
para as Comemorações, Dr. Artur Santos Silva, 18 de Novembro de 2010;
Virgílio Borges Pereira – “Urban distinctions: class, space and culture in the city of Porto”,
Invited Speaker da conferência Thirty Years After Distinction, Paris, Sciences Po, 4-6 de
Novembro de 2010;
Virgílio Borges Pereira – “Os bairros sociais da cidade do Porto na segunda metade do século
XX: reconstituição da génese e análise da trajectória social dos habitantes do Bairro do Viso
(1978-2009)”, Painel Casa e Família no Porto Contemporâneo, Guimarães, Universidade do
Minho, I Encontro do CITCEM, a convite do Director do centro de investigação em causa,
Professor Doutor Gaspar Martins Pereira, 26 e 27 de Novembro de 2010;
Virgílio Borges Pereira – “O social e o simbólico na estruturação da vida quotidiana de um
grande bairro de habitação social da cidade do Porto”, 2.ª Conferência Internacional da rede
de investigação Urban Outcasts of the World, Porto, Maio de 2011.
Acrescenta-se a este trabalho de divulgação um outro que terá na apresentação de resultados
de investigação em revistas nacionais e internacionais uma dimensão central. A coordenação
do Projecto tem vindo a ser contactada por revistas da especialidade nacionais e francesas,
que tiveram conhecimento do âmbito e configuração da investigação, para publicação de
resultados da mesma. É, por isso, previsível que, para além do que foi possível realizar
durante a vigência do Projecto, os resultados da investigação venham a ter divulgação
nacional e internacional acrescida nos próximos meses. Especificamente, está prevista a
produção de um artigo, por Virgílio Borges Pereira, a figurar num número especial da revista
Monumentos, sobre a problemática do Plano de Melhoramentos para a Cidade do Porto e
também um dossiê temático sobre a investigação, elaborado por Virgílio Borges Pereira, a
9
publicar, em modalidades ainda em discussão, na Revista Sociologie da École des Hautes
Études en Sciences Sociales de Paris.
As diferentes publicações nacionais e internacionais, que está previsto realizar no âmbito do
Projecto, serão enviadas à FCT, para registo, análise e arquivo, à medida que se forem
concretizando.
Porto, 30 de Agosto de 2010
O Coordenador do Projecto,
Virgílio Borges Pereira
124
PARTE II
Apresentação
Virgílio Borges Pereira∗
O desenvolvimento do presente Projecto de Investigação foi associando a si um conjunto
importante de espaços de discussão científica versando sobre domínios onde a questão
habitacional demonstra possuir relevo para a compreensão da história do Porto do último
século. Na segunda parte deste Relatório apresentam-se alguns trabalhos resultantes dos
diferentes espaços de discussão que o projecto foi alimentando e com que também se foi
enriquecendo. Todos os trabalhos apresentados decorrem de teses de doutoramento em
arquitectura e em sociologia presentemente em curso nas Faculdades de Arquitectura e de
Letras da Universidade do Porto, várias delas com o apoio específico da Fundação para a
Ciência e a Tecnologia do Ministério da Ciência e do Ensino Superior. Como se compreende
também, todas elas versam domínios onde a habitação na cidade do Porto se revela como um
fenómeno agregador de práticas sociais e espaciais de relevo.
O primeiro dos contributos, dando conta de um período crucial da afirmação da questão
social e habitacional da cidade do Porto (o período que medeia do final do século XIX a
meados dos anos 1930), da autoria do arquitecto Eliseu Gonçalves, assinala as opções e os
bloqueios ideológicos, materiais e criativos que, no interior do emergente campo da
arquitectura portuense, se colocam a técnicos e políticos nas suas tentativas de resolução dos
impasses habitacionais a que a cidade tinha chegado.
Prolongando esta linha de trabalho, mas já plenamente no quadro das discussões suscitadas
pelo Estado Novo no domínio da habitação, a arquitecta Maria Tavares devolve à discussão
científica o trabalho desenvolvido pelo Serviço de Habitações Económicas das Caixas de
Previdência do Ministério das Corporações e Previdência Social, durante o Estado Novo.
Tomando por referência a acção do serviço na cidade do Porto, o seu texto analisa o legado da
acção do arquitecto Fernando Távora no âmbito do projecto que concretiza para o bairro de
Habitação Económica de Ramalde e estuda as contradições inerentes à implementação do
trabalho em causa no quadro da acção do Estado corporativo.
∗ Departamento de Sociologia e Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
125
Não obstante as acções de programas como os das Casas Económicas, como os dos Plano de
Melhoramentos para a cidade do Porto, previamente analisados neste Relatório e alvo de
trabalho específico de investigação no presente Projecto (cf. Relatório de Execução Material),
ou ainda como o das Habitações Económicas, o Estado Novo desmorona-se em Abril de 1974
sem que os dados básicos dos problemas habitacionais do Porto e do país estejam resolvidos.
O período imediatamente posterior ao 25 de Abril de 1974 será, também por causa desta
ausência de acção do Estado, um momento crucial na história do alojamento público e da
intervenção estatal no domínio habitacional. A socióloga Idalina Machado traz à discussão,
no texto que assina no presente trabalho, um processo que, na cidade do Porto, é tributário
dos problemas sociais e habitacionais enfrentados pelos habitantes de uma zona de ilhas da
área central da cidade. No período revolucionário, os moradores, mobilizados social e
politicamente, da zona da Bouça encontram forma de transformar o seu bairro em alvo da
acção de uma brigada do SAAL que materializará a construção do, entretanto, celebrado pela
sua arquitectura, Bairro da Bouça, da autoria do arquitecto Álvaro Siza. Reconstituindo o
ambiente social e urbano das ilhas da zona, o trabalho em apreço permite também uma
análise da génese social e urbana do novo bairro.
Como sabido, reproduzia-se, frequentemente de forma agravada, desde há muitas décadas a
insalubridade e o sobrepovoamento no núcleo antigo da cidade. O sociólogo João Queirós,
tomando por referência a situação na zona da Ribeira-Barredo durante o período
compreendido entre o final dos anos 1960 e meados dos anos 1970, analisa os conflitos
sociais que marcam este contexto da cidade e, na sequência do processo revolucionário, os
movimentos sociais que se materializam na transferência de um segmento da população local
para as torres, então, recentemente construídas, do Bairro do Aleixo, na zona ocidental da
cidade. Centrando a sua análise no estudo sociológico da trajectória social de um dos
moradores envolvido no referido processo de transferência, o texto em causa fornece-nos
uma leitura sobre as incidências do sofrimento social na reprodução da vida quotidiana no
bairro em questão.
Este texto é antecedido de um outro, da autoria de Bruno Monteiro, que, centrando a sua
atenção sobre a cultura operária num período compreendido entre o pós-segunda guerra
mundial e meados dos anos 1970, e tomando por referência os resultados da análise de um
relevante conjunto de histórias de vida e das respectivas contrapartidas no mundo laboral e
nos contextos residenciais, estuda os processos de geração do militantismo político operário
na cidade do Porto. Como se verifica ao longo de várias passagens do presente Relatório, na
história recente da cidade e em matéria de intervenção do Estado no domínio da habitação, a
produção de resultados concretos em termos de edificado dependerá, largas vezes, da acção
militante operária e do que resulta das alianças entre esta e outros protagonismos sociais e
institucionais. Justifica-se, assim, plenamente, esta incursão no conhecimento sociológico da
génese da militância política operária na cidade do Porto.
126
O alojamento operário portuense nas primeiras décadas do
século XX: da Casa Familiar ao Bloco Comunitário
Eliseu Gonçalves∗
O texto analisa brevemente uma das polémicas que nas primeiras décadas do século XX
animava a política edificatória do (re)alojamento operário: a utilização da casa unifamiliar
isolada ou agregada promovendo uma ocupação extensiva do território e, por oposição, o
recurso a edifícios de habitação colectiva a instalar na cidade consolidada em parcelas livres
ou a libertar por demolição de construções insalubres. Ambos os casos constituem leituras
sobre a unidade de habitação mínima com claras divergências quanto ao entendimento da
cidade como realidade social e física.
A partir de finais de Oitocentos podemos estabelecer uma linhagem de propostas legislativas
que dão preferência à “moradia isolada” como meio para atingir um objectivo que está para
além da simples garantia de abrigo digno: o controle higiénico e sanitário favorável à
robustez física e moral do indivíduo em proveito de uma ideia de coesão de pátria. Esse
propósito está presente, por exemplo, no projecto-lei de 1901, inspirado na experiência dos
Bairros Operários do Comércio do Porto, submetido à Câmara dos Deputados por Guilherme
Santa-Rita. No texto pode ler-se que, em dois terços do empreendimento, as casas deveriam
ser térreas, separadas de 1,20 metros e cada uma ter um jardim de 6 metros35. No discurso
complementar de apresentação dessa proposta à Câmara dos Deputados, relativamente ao
alojamento operário, lia-se:
“[...] questão primacial, porque encarada sob o aspecto da legal constituição da família, ela nos
mostra, nos ensina como essa constituição e essa manutenção se efectuam segundo as leis da
moral e da higiene; como o seu poder de orientação se reflecte nos destinos do indivíduo como
membro da colectividade, e, por consequência, como acção produtora determinativa de um
∗ Grupo I&D Atlas da Casa – Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo/FCT, Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. 35 Cf. Proposta de Lei transcrita em Matta (1909: 186).
127
aperfeiçoamento constante e de uma maior e melhor distribuição, consumo e circulação da riqueza
de um país”36.
Trinta anos decorridos, mantém-se clara a empatia pela construção habitacional unifamiliar
na política social de habitação do Estado Novo, vertida no Decreto-Lei n.º 23.052, de 1933: a
“casa económica [como] moradia de família com quintal” porque “o nosso feitio repele o
falanstério e tudo aquilo que atenta contra a reserva e o pudor que são inseparáveis na nossa
vida familiar” (INTP, 1943: 176).
Análogas, as duas menções permitem delimitar o período em que se inscrevem os dois casos
de estudo analisados: os Bairros Operários do jornal “O Comércio do Porto” (1899 a 1914) e o
Bloco de Habitação Colectiva da Rua Duque de Saldanha (1938 a 1940), mandado construir
pelo município do Porto.
Introdução
A partir de meados do século XIX, o discurso crítico sobre a arquitectura doméstica, até aí
praticamente centrado nos problemas da casa burguesa, passa a ser gradualmente dominado
pelo tema da habitação corrente, em particular, sobre a “questão social” do alojamento
operário. Em Portugal, até aos anos 30 do século passado, o interesse académico e
profissional dos arquitectos sobre o desenho das casas económicas é quase inexistente,
cabendo a dinamização do debate a outras profissões cada vez mais interessadas nos
problemas da urbe: industriais, engenheiros, cientistas, jornalistas, médicos, higienistas37.
Nessa discussão alargada, a Higiene estabelece a plataforma de consenso entre disciplinas
diversas e confere o grau de legitimidade política para a reforma da cidade e do interior
doméstico.
No contexto particular da habitação operária produzida no período compreendido entre a
última década da Monarquia Constitucional e o Estado Novo, o Higienismo, entendido como
ciência e como moral aplicado ao pensamento e à produção da habitação, permite-nos
identificar uma rede de reformas que vai desde a regulamentação da conformação do espaço
doméstico até ao controlo dos hábitos. Esta dinâmica reformadora é despoletada pela gradual
expressão no espaço público de problemas até aí escamoteados pelo Poder.
O forte desenvolvimento industrial existente no Porto no final de Oitocentos e o associado
crescimento demográfico alimentado por uma população imigrada do campo agravou e
fomentou o alojamento barato e débil baseado numa sobreocupação das casas existentes ou
fomentado no interior dos quarteirões através da construção massiva de filas de pequenas
habitações insalubres e miseráveis. Era uma face da cidade escondida a que os higienistas
36 Arquivo da Assembleia da República: Debates Parlamentares, Monarquia Constitucional, Sessão de 07/03/1901 da Câmara dos Senhores Deputados. 37 Para além de algumas intervenções esporádicas de arquitectos em revistas da época, nomeadamente na A Construcção Moderna, destacam-se: Bermudes (1897); Carvalho (1898).
128
irão dar visibilidade por ser potencial antro de infestações. Será essa a realidade de espaços
esconsos, sombrios e infectos tomada pelo médico portuense Ricardo Jorge (1858-1939).
Em 1885, sob os rumores das vagas epidémicas que assolariam o país, Ricardo Jorge escreve
o livro Hygiene Social Aplicada à Nação Portuguesa38 onde promove a nova ciência
higiénica contra o atraso sanitário das urbes, nomeadamente nos seu aspectos de organização
administrativa, de modernização das infra-estruturas e do controlo de hábitos sociais.
Convidado depois a trabalhar para a Câmara Municipal do Porto, implementa um conjunto
de estudos analíticos para suportar a execução de algumas medidas preventivas.
No seguimento do trabalho efectuado sobre o surto de peste bubónica de 1899, Ricardo Jorge
fica responsável pelos serviços centrais de saúde dinamizando um conjunto de medidas
normativas e legais do qual destacamos em 1901 o Regulamento Geral de Saúde e em 1903 o
Regulamento sobre a Construção de Prédios Urbanos e o Regulamento de Salubridade das
Edificações Urbanas39, documentos que estarão na origem do actual Regulamento Geral das
Edificações Urbanas, cuja redacção original data de 195140.
Com Ricardo Jorge e os seus pares, esta reforma sanitária que decorre entre 1899-1901
consagra o conceito de Estado Higienista41.
Inicia-se assim o século com a estabilização de um conjunto de instrumentos operativos
capazes de manter o controlo sanitário do existente e agendar acções de melhoramento infra-
estrutural da cidade. Pelo contrário, as medidas públicas de incentivo à promoção privada de
habitação barata para as classes desfavorecidas haviam fracassado continuando, contra todas
as medidas administrativas proibitivas, a prosperar o alojamento em “ilhas” ou no “vão de
escada” dos prédios da zona medieval.
Prenúncio dos fundamentos liberais em que assentava a estrutura socioeconómica nacional,
pelo menos até à implantação da República, era a inexistente participação do Estado na
promoção directa da habitação de baixos custos dedicada às “classes laboriosas”. Os
exemplos construídos chegam-nos essencialmente por via da iniciativa privada por três
ordens de razão: filantrópica, associados à lógica produtiva da fábrica e por interesse
imobiliário explorando a grande procura de casas baratas por parte do operariado. Com os
governos republicanos acresce-se a esses casos os de iniciativa total ou parcialmente pública,
como é o caso do programa de Bairros Sociais e o das Colónias Operárias lançados a partir de
1918.
Apesar do número de bairros construídos ter sido irrelevante na resolução do alojamento
operário, algumas das operações realizadas (ou projectadas) constituem momentos
experimentais que estão na origem de uma narrativa que irá atravessar todo o século XX,
38 Cf. Jorge (1885). 39 Diário do Governo, n.º 53, 09/03/1903, pp. 790-792. Este regulamento será divulgado com texto comentado na secção “Legislação das Construcções” da revista A Construcção Moderna a partir do n.º 9 (Anno VII), de 10 de Outubro de 1906. 40 Diário do Governo, 07/08/1951: Decreto-Lei n.º 38.382. 41 Sobre o desenvolvimento das politicas higienistas e a implementação de um Estado Higienista em Portugal ver Graça (S/d).
129
protagonizada pela habitação de custos controlados, com episódios marcantes na leitura da
cidade.
No Porto, o processo conturbado da passagem da “Ilha Proletária”42 para o “bloco”43 é
sintomático das dinâmicas sociais e urbanas provocadas pela necessidade de implementar
bairros operários para (re)alojamento das “classes trabalhadoras”.
Os Bairros Operários do Comércio do Porto
Uma das primeiras realizações no Porto de Bairros Operários foi da responsabilidade do
jornal O Comércio do Porto. Para se compreender a singularidade dos projectos dos bairros
de O Comércio do Porto, é necessário ter presente as precárias condições do alojamento do
operariado portuense, o processo atrás referenciado de controle sanitário consolidado por
Ricardo Jorge e a presença mobilizadora do economista e director do jornal, Bento Carqueja
(1860-1935)44.
A decisão de promover alojamento para as classes pobres foi estimulada directamente pela
epidemia de 1899, que dizimou parte da população residente no velho burgo. Para o
financiamento dessa causa, Bento Carqueja reunirá o apoio directo de beneméritos oriundos
dos mais diversos sectores da sociedade.
A implementação e a rapidez do processo é notável. A primeira pedra do bairro inaugural, no
Monte Pedral, da autoria do arquitecto portuense José Marques da Silva, é colocada a 12 de
Novembro do mesmo ano, o que demonstra, em nosso entender, a existência minimamente
concertada de posições e um planeamento mínimo de acção.
O documento assinado pelos proprietários de O Comércio do Porto, que estabelece a
construção das primeiras casas, refere que os bairros seriam “dotados com as máximas
condições higiénicas e organizadas em harmonia com os melhores modelos destas fundações
no que forem adaptáveis no nosso país”45. Em notícia de 1905 sobre os próprios bairros, o
jornal publicava: “Em todos esses tipos [de casas] houve a preocupação de criar habitações
acomodadas ao nosso clima e ao nosso meio social, sem se perderem de vista os requisitos a
que, segundo as opiniões expressas por higienistas, por sociólogos e por arquitectos, em
42 Termo utilizado por Alexandre Alves Costa para distinguir a simples forma urbana do seu sentido mais profundo enquanto valor matricial da forma e dos hábitos sociais: “Quando se chama ilha proletária às ilhas, estamos a conferir-lhes um novo sentido e uma nova dignidade. O singular dá-lhe globalidade: é o conjunto de todas as ilhas, é a cidade a construir ou a reconstruir. Proletária porque a nova cidade será operária, antes de cidade sem classes” (Costa, 2002: 12). 43 Referimo-nos à experiência precoce do projecto de 1938 do Bloco de Habitação Colectiva construído na Rua Duque de Saldanha, promovido pela Câmara Municipal. Será este o tipo edificatório implementado cerca de 20 anos depois, no contexto do Plano de Melhoramentos da Cidade do Porto. 44 Parte da razão filantrópica da acção pode ser encontrada na produção teórica de Bento Carqueja, nomeadamente naquela dedicada à “Questão Social”. Vd., por exemplo, Carqueja (1900; 1916). 45 Arquivo Histórico Municipal do Porto (AHMP), Livro de Documentos Relativos a Termos e Escrituras, 1899, fl. 344. Referido em Cordeiro (1999: 114).
130
livros e congressos, devem satisfazer as casas baratas, para realizarem completamente o fim
útil e humanitário a que se propõe”46.
Os responsáveis directos pelos projectos das várias soluções arquitectónicas foram os
arquitectos José Marques da Silva e Tomás Pereira Lopes, o mestre de obras Manuel
Fortunato de Oliveira Motta e o engenheiro de minas Joaquim Gaudêncio Rodrigues
Pacheco47. As propostas que apresentam, apesar da sua discrepância quanto ao grau de
complexidade formal e funcional, perseguem um tipo de casa-jardim tal como circulava em
As Habitações Operárias – livro de 1878 publicado em Paris por Émile Muller e Émile
Cacheaux48 que retrata as soluções europeias e americanas das mais importantes
experiências no âmbito do alojamento operário. O livro, que provavelmente era conhecido
pelos que frequentaram a academia parisiense, foi também difundido em Portugal em
circuitos de interesses distintos49. Estamos perante um manual de prática projectual
abrangente, que realça quer as características técnicas de construção, quer as novas
oportunidades de fazer a moderna cidade, inspirada no programa de Ebenezer Howard
(1850-1928). À luz do modelo ideal da cidade-jardim, conforme intenção dos autores, o livro
devia constituir-se um instrumento pedagógico e técnico para a expansão do “movimento das
cidades operárias”.
Através de Muller e Cacheaux ou de qualquer outro forma de contágio cultural, verifica-se
que as soluções preconizadas para os bairros do Comércio do Porto tem uma matriz cuja
substância coincide em tudo com uma inventiva tipo-morfológica baseada numa unidade
mínima elaborada e repetida por simetria (simples ou dupla) que permitiu criar uma
imagem, diríamos palaciana, de escala urbana grandiosa de cariz rural. Se exceptuarmos o
Bairro de Lordelo do Ouro, é introduzida na cidade uma nova gama tipológica de habitação
corrente inserida numa estrutura urbana regular contrária ao carácter orgânico da cidade
medieval. Essa oposição é verificada a vários níveis: são soluções extensivas de baixa
densidade em território periférico esquecido do interesse imobiliário; baseiam-se numa
arquitectura romântica que introduz no urbano industrial o elemento pastoral.
O custo a pagar por estas localizações de interface entre o urbano e o rural resumia-se a um
alheamento ao curso das grandes obras públicas de infra-estruturação (transportes,
abastecimento de água, electricidade e saneamento) e embelezamento da cidade e, enfim, de
todo o espectáculo mediático montado à sua volta.
Quando Bento Carqueja propõe construir alojamento para o operariado é clara uma
estratégia de intervenção social e politica assente nos seguintes propósitos: fomentar uma
arquitectura disciplinadora que premeia os mais competentes e morigerados e que cria
hábitos de ordem e de higiene; uma arquitectura moderna que integra os princípios
46 O Comércio do Porto, 29 de Novembro de 1905. 47 Joaquim Gaudêncio Rodrigues Pacheco era Engenheiro-chefe da 3.ª repartição da Câmara Municipal do Porto (1909). Posteriormente, será o responsável pelas obras da Colónia Viterbo Campos, na Arrábida. 48 Émile Muller era engenheiro, professor na Escola Especial de Arquitectura de Paris e “Architecte des Cités Ouvrières de Mulhouse & Autres”. Émile Cacheaux era engenheiro e “Propriétaire d’Habitations Ouvriéres”. 49 Um dos exemplares encontra-se nos acervos institucionais incorporados no fundo do Instituto de Saúde Dr. Ricardo Jorge. O livro é citado pelo engenheiro e deputado Augusto Fuschini na apresentação da proposta de lei de 1884 sobre alojamento operário.
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modernos de salubridade e acomodação; uma arquitectura barata disciplinada pelo habitar
mínimo e, finalmente, uma arquitectura experimental com modelos diversificados e abertos
que, como refere Manuel Fortunato de Oliveira Motta em notícia do Comércio do Porto,
devia incluir a tipologia da habitação colectiva:
“Provado como está, que são estas [as habitações colectivas] as construções que mais económicas
se tornam, para desejar seria que se fizesse, a pretexto de experiências, uma construção neste
género”50.
O Bloco de Habitação Colectiva Duque de Saldanha
O bloco camarário de habitação económica colectiva da Rua Duque de Saldanha constitui um
caso único de consumação, em plena execução do Programa das Casas Económicas, de uma
solução contrária ao pensamento autoritário vigente, aparentemente subversiva. É
esclarecedor o testemunho de Alfredo Magalhães, Presidente da Comissão Administrativa da
Câmara do Porto até 1936, antecedendo Augusto Mendes Correia51, que autorizará a
construção na Rua Duque de Saldanha. Diz Alfredo Magalhães em 1937:
“No tocante a obras municipais muito reclamadas por processos tão cómodos como
deliquescentes, em regra não subordinados a qualquer plano lógico e oportuno, elas resultam não
raro antagónicas com a própria orientação do Estado Novo. Está neste caso o caravanseralho
diabolicamente imaginado para habitação das classes trabalhadoras [que a Câmara] a procurar
terreno mais desafogado, foi encontrá-lo junto dum cemitério, consoante as reclamações do
urbanismo fino e da eugenia científica ‘dernier cri’”52.
Face ao cavalgante problema da insalubridade e “promiscuidade social” nas ilhas e à
derrapagem orçamental resultante da construção de alojamento operário através do
programa republicano dos Bairros Sociais e das Colónias Operárias baseados na casa
unifamiliar, rapidamente se verifica que o modelo a seguir deve privilegiar a rentabilização
máxima dos recursos disponíveis e construído nas imediações das comunidades a realojar.
Este sentido prático de acção definirá, pelo menos no Porto dos anos 1930, o tipo de solução
a desenvolver.
50 Manuel Fortunato de Oliveira Motta, Memória descritiva e justificativa do Bairro de Lordelo do Ouro, publicada no jornal O Comércio do Porto, 24 de Março de 1901. 51 Devemos referir que António Augusto Mendes Correia, ainda estudante, é citado em acta de reunião camarária de 1911 no âmbito de cedência de elementos para o estudo de Bairros Operários. Mendes Correia, presidente da Câmara entre 1936-42, especializa-se em Antropologia, produzindo uma vasta obra literária sobre a questão da Raça Portuguesa, introduzindo de forma clara o programa eugénico no debate político e intelectual. Em “Lusitânia Pré-Romana”, publicada em Peres (1928: 6), refere: “Longe de mim concluir que a raça está inteiramente perdida [...]. Eu confio nos agentes automáticos de depuração natural e na sobrevivência de gerações fortes. Mas é preciso não esperar que a natureza, cruelmente ceife as existências de pobres criaturas que nasceram fracas, doentes ou predispostas à doença. De resto, sobrevivem, mercê da terapêutica e da higiene, muitos indivíduos que atravessam a vida contagiando os sãos, desfalcando terrivelmente a saúde, a tranquilidade, a economia e a moralidade públicas. Governar [...] é também seleccionar”. 52 Magalhães (1937: XIV-XV).
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Raul Tamagnini Barbosa, na conferência proferida em 1932 na Liga de Profilaxia Social do
Porto, adverte: “tudo indica, para nos encaminharmos, gradualmente, para uma época de
verdadeira fraternidade entre os homens, já visionada por esse sonhador inesquecível que se
chamou Charles Fourier”. O “falanstério” surgirá, mas por razões mais prosaicas:
simplesmente porque era necessário construir 15.000 casas para dar abrigo às 60.000
pessoas que habitavam em condições socialmente inconcebíveis. É esse o teor do relatório
apresentado por Azeredo Antas em 193453, tornando seu cúmplice o engenheiro Almeida
Garrett; ou os arquitectos Joaquim Madureira e Amoroso Lopes Filho ao referirem “que não
há soluções rígidas para estes problemas, antes têm de variar conforme as circunstâncias. Há
que atender à maneira de viver das populações; à facilidade de aquisição de terrenos; ao meio
mais expedito de criar alojamento; e para esta cidade a fórmula adoptada [Blocos]
corresponde absolutamente às suas reais e primeiras necessidades”54.
Momentaneamente, a Câmara do Porto e a Delegação Geral dos Edifícios e Monumentos
Nacionais (DGEMN) empenham-se no desenho de bairros de habitação colectiva a implantar
preferencialmente sobre os escombros das primeiras demolições de algumas ilhas previstas.
O mais notável é o projecto para a zona de S. Vítor promovido pela DGEMN e concebido
pelos arquitectos Joaquim Madureira e Amoroso Lopes. Encaixada no casario oitocentista,
propõe uma arquitectura marcadamente modernista, de influência francesa, com soluções
tipológicas inovadoras, demonstrando um trabalho atento na inserção dos quatro blocos na
estrutura do quarteirão existente, com o intuito claro de garantir, simultaneamente,
continuidade urbana e imagem de cidade nova.
O Bloco de Saldanha resulta destas circunstâncias. Constrói-se. É isso que o vai marcar: pela
arquitectura exótica que expressa na uniformidade morfológica da cidade e como elemento
inquietante no equilíbrio institucional entre o município e Lisboa.
No decurso dos anos de construção sucedem-se um conjunto de imprevistos e indecisões55
que atestam sobre o conflito de interesses que marcava a política social da habitação. O jogo
de forças entre município e governo regia-se por valores de diferente natureza. Para o
Regime, tratava-se da manutenção da solidez ideológica, confirmada que estava a
institucionalização da casa unifamiliar isolada enquanto suporte da família: a entidade
reveladora do carácter individualista do povo português. Por seu lado, a administração
municipal empenhava-se em fechar uma obra em curso decorrente de um processo
experimental sustentado pelo real, de renovação da cidade consolidada, mas negado pela
imposição superior de um modelo justificado por uma ideológica fundada nos valores do
ruralismo.
53 Cf. Antas e Monterroso (1934: 30). 54 Excerto da “Descrição e Justificação” anexa ao Projecto do Aglomerado de Moradias Económicas na Rua de S. Victor, na Cidade do Porto. Arquitectos: J. Madureira; Amoroso Lopes Filho; Engenheiro: C. Pereira da Cruz (sem data). 55 Referimo-nos: às comissões técnicas de acompanhamento nomeadas no intuito de produzirem relatórios confrontando as vantagens e defeitos do modelo proposto pelo Estado – casas unifamiliares – e do modelo do bloco de galeria; à proposta de viagem de estudo pelo responsável da obra a Gand (Bélgica) para a mesma análise comparativa; aos pareceres requeridos à Liga de Profilaxia Social; às dúvidas sobre a construção do segundo Bloco fronteiro à rua, suas alterações programáticas e volumétricas e consequentes paragens de obra; às manobras jurídicas para o enquadramento legal no Programa das Casas Económicas, etc.
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Os dois edifícios de galeria que formam o denominado Bloco de Habitação Económica da Rua
Duque de Saldanha introduzem na cidade tradicional uma arquitectura branca, moderna e
internacional, contrária à linha oficial do regime que tenta um léxico de formas inspirado nos
elementos característicos de uma arquitectura portuguesa que o próprio regime institui,
muito inspirado na produção teórica de Raul Lino. Negam, igualmente, o aclamado
individualismo do homem português, que rejeita todas as formas de associativismo para
evitar os comportamentos desviantes que as grandes colectividades promovem; contrariam a
propriedade privada, base para a estabilidade dos valores da família, garante de um
património estável.
Conforme refere o arquitecto Manuel Mendes (2001: 249), o Bloco de Saldanha é o sinal da
“monumentalização do colectivo” realçada no impacto produzido numa estrutura urbana
dominada pela forte divisão parcelar do solo.
Nota final
Entre o início da construção dos Bairros Operários do jornal O Comércio do Porto e a fase de
utilização do Bloco de Habitação Colectiva da Rua Duque de Saldanha decorrem 40 anos:
morre a Monarquia, afirma-se a República, transita-se para o regime autoritário e
corporativista do Estado Novo. Apesar deste cenário conturbado de lutas de poder e
alterações políticas e económicas, no contexto das decisões sobre a forma de resolução do
alojamento operário urbano, assiste-se a uma afirmação sucessivamente renovada da casa
unifamiliar como valor moral e social estável.
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