2. Copyright 1973, 1968, 1966, 1958, 1951, 1949 by Hannah
Arendt Copyright renovado 1979 by Mary McCarthy West Published by
arrangement with Harcourt Brace Jovanovich, Inc. Ttulo original:
The origins of totalitarianism
3. Weder dem Vergangenen anheimfallen noch dem Zuknftigen. Es
kommt darauf ein ganz gegenwrtig zu sein. Karl Jaspers No almejar
nem os que passaram nem os que viro. Importa ser de seu prprio
tempo.
4. I NDICE Prefcio primeira
edio...................................... 11 Parte I
ANTI-SEMITISMO
Prefcio..................................................... 17 1.
O anti-semitismo como uma ofensa ao bom senso .................. 23
2. Os judeus, o Estado-nao e o nascimento do
anti-semitismo......... 31 3. Os judeus e a
sociedade........................................ 76 4. O Caso
Dreyfus .............................................. 111 Parte II
IMPERIALISMO
Prefcio..................................................... 147 1.
A emancipao poltica da burguesia............................. 153
2. O pensamento racial antes do racismo............................
188 3. Raa e burocracia
............................................ 215 4. O imperialismo
continental: os movimentos de unificao ........... 253 5. O declnio
do Estado-nao e o fim dos direitos do homem .......... 300 Parte
III TOTALITARISMO
Prefcio..................................................... 339 1.
Uma sociedade sem classes..................................... 355
2. O movimento totalitrio .......................................
390 3. O totalitarismo no
poder....................................... 439 4. Ideologia e
terror: uma nova forma de governo..................... 512
Bibliografia..................................................
533
5. PREFCIO PRIMEIRA EDIO Duas guerras mundiais em uma gerao,
separadas por uma srie ininterrupta de guerras locais e revolues,
seguidas de nenhum tratado de paz para os vencidos e de nenhuma
trgua para os vencedores, levaram anteviso de uma terceira guerra
mundial entre as duas potncias que ainda restavam. O momento de
expectativa como a calma que sobrevm quando no h mais esperana. J
no ansimos por uma eventual restaurao da antiga ordem do mundo com
todas as suas tradies, nem pela reintegrao das massas, arremessadas
ao caos produzido pela violncia das guerras e revolues e pela
progressiva decadncia do que sobrou. Nas mais diversas condies e
nas circunstncias mais diferentes, contemplamos apenas a evoluo dos
fenmenos entre eles o que resulta no problema de refugiados, gente
destituda de lar em nmero sem precedentes, gente desprovida de
razes em intensidade inaudita. Nunca antes nosso futuro foi mais
imprevisvel, nunca dependemos tanto de foras polticas que podem a
qualquer instante fugir s regras do bom senso e do interesse prprio
foras que pareceriam insanas se fossem medidas pelos padres dos
sculos anteriores. como se a humanidade se houvesse dividido entre
os que acreditam na onipotncia humana (e que julgam ser tudo
possvel a partir da adequada organizao das massas num determinado
sentido), e os que conhecem a falta de qualquer poder como a
principal experincia da vida. A anlise histrica e o pensamento
poltico permitem crer, embora de modo indefinido e genrico, que a
estrutura essencial de toda a civilizao atingiu o ponto de ruptura.
Mesmo quando aparentemente melhor preservada, o que ocorre em
certas partes do mundo, essa estrutura no autoriza antever a futura
evoluo do que resta do sculo XX, nem fornece explicaes adequadas
aos seus horrores. Incomensurvel esperana, entremeada com
indescritvel temor, parece corresponder melhor a esses
acontecimentos que o juzo equilibrado e o discernimento comedido.
Mas os eventos fundamentais do nosso tempo preocupam do mesmo modo
os que acreditam na runa final e os que se entregam ao otimismo
temerrio. 11
6. Este livro foi escrito com mescla do otimismo temerrio e do
desespero temerrio. Afirma que o Progresso e a Runa so duas faces
da mesma medalha; que ambos resultam da superstio, no da f. Foi
escrito com a convico de serem passveis de descoberta os mecanismos
que dissolveram os tradicionais elementos do nosso mundo poltico e
espiritual num amlgama, onde tudo parece ter perdido seu valor
especfico, escapando da nossa compreenso e tornando-se intil para
fins humanos. A passividade de ceder ao processo de desintegrao
converteu-se em tentao irresistvel, no somente porque esse processo
assumiu a espria aparncia de "necessidade histrica", mas tambm
porque os valores em vias de destruio comearam a parecer inertes,
exangues, inexpressivos e irreais. A convico de que tudo o que
acontece no mundo deve ser compreensvel pode levar-nos a
interpretar a histria por meio de lugares-comuns. Compreender no
significa negar nos fatos o chocante^eliminar deleso inaudito, ou,
ao xplicaTtHnTenos, utifeai^se^de~nlgs e generalidades que diminuam
o impacto da realidade e o choque da experincia. Significa, antes
de mais nada, examinar e suportar conscientemente o fardo que o
nosso sculo colocou sobre ns sem negar sua existncia, nem vergar
humildemente ao seu peso. Com-preender^ignifiea, em suma^xncarar a
realidade sem preconceitos e com ateno, e resistir &la qualquer
que seja. ~~-----------~"" Assim, deve ser possvel, por~xemplo,
encarar e compreender o fato, chocante decerto, de que fenmenos to
insignificantes e desprovidos de importncia na poltica mundial como
a questo judaica e o anti-semitismo se transformaram em agente
catalisador, primeiro, do movimento nazista; segundo, de uma guerra
mundial; e, finalmente, da construo dos centros fabris de morte em
massa. Tambm h de ser possvel compreender a grotesca disparidade
entre a causa e o efeito que compunham a essncia do imperialismo,
quando dificuldades econmicas levaram, em poucas dcadas, profunda
transformao das condies polticas no mundo inteiro; a curiosa
contradio entre o "realismo", como era cinicamente enaltecido pelos
movimentos totalitrios, e o visvel desdm desses sistemas por toda a
textura da realidade; ou a irritante incompatibilidade entre o real
poderio do homem moderno (maior do que nunca, to grande que pode
ameaar a prpria existncia do seu universo) e a sua incapacidade de
viver no mundo que o seu poderio criou, e de lhe compreender o
sentido. A tentativa totalitria da conquista global e do domnio
total constituiu a resposta destrutiva encontrada para todos os
impasses. Mas a vitria totalitria pode coincidir com a destruio da
humanidade, pois, onde quer que tenha imperado, minou a essncia do
homem. Assim, de nada serve ignorar as foras destrutivas de nosso
sculo. O problema que a nossa poca interligou de modo to estranho o
bom e o mau que, sem a expanso dos imperialistas levada adiante por
mero amor expanso, o mundo poderia jamais ter-se tornado um s; sem
o mecanismo poltico da burguesia que implantou o poder pelo amor ao
poder, as dimenses da fora humana poderiam nunca ter sido
descobertas; sem a realidade fictcia 12 dos movimentos totalitrios,
nos quais pelo louvor da fora por amor fora as incertezas
essenciais do nosso tempo acabaram sendo desnudadas com clareza sem
par, poderamos ter sido levados runa sem jamais saber o que estava
acontecendo. E, se verdade que, nos estgios finais do
totalitarismo, surge um mal absoluto (absoluto, porque j no pode
ser atribudo a motivos humanamente compreensveis), tambm verdade
que, sem ele, poderamos nunca ter conhecido a natureza realmente
radical do Mal. O anti-semitismo (no apenas o dio aos judeus), o
imperialismo (no apenas a conquista) e o totalitarismo (no apenas a
ditadura) um aps o outro, um mais brutalmente que o outro
demonstraram que a dignidade humana precisa de nova garantia,
somente encontrvel em novos princpios polticos e em uma nova lei na
terra, cuja vigncia desta vez alcance toda a humanidade, mas cujo
poder deve permanecer estritamente limitado, estabelecido e
controlado por entidades territoriais novamente definidas. J no
podemos nos dar ao luxo de extrair aquilo que foi bom no passado e
simplesmente cham-lo de nossa herana, deixar de lado o mau e
simplesmente consider-lo um peso morto, que o tempo, por si mesmo,
relegar ao esquecimento. A corrente subterrnea da histria ocidental
veio luz e usurpou a dignidade de nossa tradio. Essa a realidade em
que vivemos. E por isso que todos os esforos de escapar do horror
do presente, refugiando-se na nostalgia por um passado ainda
eventualmente intacto ou no antecipado oblvio de um futuro melhor,
so vos. Hannah Arendt Vero de 1950 13
7. Parte I ANTI-SEMITISMO Este um sculo extraordinrio, que
comea com a Revoluo e termina com o Caso Dreyfus. Talvez ele venha
a ser conhecido como o sculo da escria. Roger Martin du Gard
8. PREFACIO Entre o anti-semitismo como ideologia leiga do
sculo XIX (que de nome, embora no de contedo, era desconhecida
antes da dcada de 1870) e o anti-semitismo como dio religioso aos
judeus, inspirado no antagonismo de duas crenas em conflito,
obviamente h profunda diferena. Pode-se discutir at que ponto o
primeiro deve ao segundo os seus argumentos e a sua atrao
emocional. A noo de que foram ininterruptamente contnuas as
perseguies, expulses e massacres dos judeus desde o fim do Imprio
Romano at a Idade Mdia, e, depois, sem parar, at o nosso tempo,
freqentemente conjugada com a idia de que o anti-semitismo moderno
nada mais seno uma verso secula-rizada de populares supersties
medievais,1 no menos preconceituosa (embora seja, naturalmente,
menos nociva) que a noo anti-semita de uma secreta sociedade
judaica, que dominou ou procurou dominar o mundo desde a
Antigidade. Historicamente, o hiato entre os fins da Idade Mdia e a
poca moderna, no que se refere questo judaica, ainda mais marcante
do que a (1) O exemplo mais recente dessa idia o livro de Norman
Cohn, Warrantfor genocide. The myth of the Jewish world-conspiracy
and the "Protocols of the Elders ofZion", Nova York, 1966
[publicado no Brasil sob o ttulo A conspirao mundial dos judeus:
mito ou realidade?, Ibrasa, So Paulo, 1969]. O autor nega
implicitamente a existncia da histria judaica. Na sua opinio, os
judeus so "pessoas que (...) viviam disseminadas em toda a Europa,
desde o canal da Mancha at o Volga, tendo muito pouco em comum,
exceto o fato de descenderem de seguidores da religio judaica" (p.
15). Os anti-semitas, ao contrrio, podem segundo ele reivindicar
uma ascendncia ininterrupta, no espao e no tempo, desde a Idade
Mdia, quando "os judeus haviam sido considerados agentes de Sat,
adoradores do diabo, demnios com forma humana" (p. 41) e a nica
restrio que o erudito autor de Pursuit ofthe Millenium achou
adequado fazer a tais generalizaes abrangentes foi a de que ele
trata apenas "da espcie mais mortfera de anti- semitismo, da qual
resultam massacres e tentativas de genocdio" (p. 16). O livro tenta
ainda provar, embora de modo bastante forado, que "as massas da
populao alem nunca realmente se fanatizaram contra os judeus", e
que o extermnio destes "foi organizado e levado a cabo pelos
profissionais do SD e da SS", entidades que "de modo algum
representavam a amostra tpica da sociedade alem" (pp. 212 ss). Como
seria bom se esta afirmao se ajustasse aos fatos! O resultado que
se l o livro como se ele tivesse sido escrito quarenta anos atrs
por um membro excessivamente engenhoso do Verein zur Bekmpfung des
Antisemitismus (Liga para o Combate do Anti-semitismo), de infeliz
memria. 17
9. brecha entre a Antigidade romana e a Idade Mdia, ou o abismo
freqentemente considerado o ponto decisivo e o mais importante da
histria judaica que separou os massacres perpetrados pelas
primeiras Cruzadas e os primeiros sculos medievais. Esse hiato
durou quase duzentos anos, do incio do sculo XV at o fim do sculo
XVI, quando as relaes entre judeus e gentios estiveram mais frgeis
do que nunca, quando a "indiferena [judaica] s condies e eventos do
mundo exterior" foi mais profunda do que antes, e o judasmo se
tornou "um sistema fechado de pensamento". Foi por essa poca que os
judeus, sem qualquer interferncia externa, comearam a pensar que "a
diferena entre o povo judeu e as naes era, fundamentalmente, no de
credo, mas de natureza interior", e que a antiga dicotomia entre
judeus e gentios "provinha mais provavelmente de origem tnica do
que de discordncia doutrinria".2 Essa mudana na avaliao do carter
diferente do povo judeu que s surgiu entre os no-judeus muito mais
tarde, na Era do Esclarecimento constituiu certamente a condio sine
qua non do nascimento do anti-semitismo, e de certa importncia
observar que ela ocorreu primeiro no ato da auto-interpretao
judaica, surgido na poca da fragmentao da cristandade europia em
grupos tnicos, os quais depois alcanariam a autonomia poltica,
formando o sistema de Estados-naes. A histria do anti-semitismo,
como a histria do dio aos judeus, parte integrante da longa e
intrincada histria das relaes que prevaleciam entre judeus e
gentios desde o incio da disperso judaica. O interesse por essa
histria, praticamente nulo antes dos meados do sculo XIX, surgiu
coincidindo com a ecloso do anti-semitismo, hostil aos judeus
emancipados e assimilados. Obviamente, esse foi o pior momento para
a pesquisa historiogrfica objetiva.3 Desde ento, tanto os
historigrafos judeus quanto os no-judeus dedicaram-se embora por
motivos opostos nfase dos elementos mutuamente antagnicos,
encontrados nas fontes crists e judaicas. Ambos os lados
sublinhavam as catstrofes, expulses e massacres que pontilharam a
histria dos judeus, do mesmo modo como os conflitos armados e
desarmados, guerras, fome e pesti-lncia que pontilharam a histria
da Europa. Desnecessrio dizer, enquanto os historigrafos judeus,
com sua tendncia polmica e apologtica, detectavam da histria crist
as ocorrncias caracterizadas pelo dio aos judeus, os anti-semitas,
de modo intelectualmente idntico, faziam o mesmo, procurando as (2)
Todas as citaes so de Jacob Katz, Exclusiveness and tolerance,
Jewish-Gentile rela-tions in medieval and modem times, Nova York,
1962 (captulo 12), estudo inteiramente original, de elevado nvel,
que realmente devia ter destrudo "muitas noes caras ao povo judeu
contemporneo", como est escrito na capa, mas que no o fez porque
foi quase completamente ignorado pela imprensa em geral. Katz
pertence jovem gerao de historiadores judeus, muitos dos quais
ensinam na Universidade de Jerusalm e publicam suas obras em
hebraico. Com eles, acabou realmente a verso "lacrimognea" da
histria judaica, contra a qual Saio W. Baron protestou h quase
quarenta anos. (3) interessante notar que o primeiro historiador
judeu moderno, Isaak Markus Jost, que escreveu na Alemanha no sculo
XIX, rejeitava mais acentuadamente os preconceitos comuns da
historiografia secular judaica que seus sucessores. 18 enunciaes
das antigas autoridades judaicas que tivessem dado incio tradio
judaica de antagonismo, muitas vezes violento, contra os cristos e
gentios. "A opinio pblica judaica ficou ento no s perplexa, mas
genuinamente pasmada",4 to bem tinham seus porta-vozes conseguido
convencer a todos inclusive a-si mesmos da veracidade do antifato
que apresentava a segregao dos judeus como resultado exclusivo da
hostilidade dos gentios e do seu completo obscurantismo. Desde
ento, os historiadores judeus passaram a afirmar ter sido o judasmo
sempre superior s outras religies, pelo simples fato de crer na
igualdade e tolerncia humana. Essa teoria perniciosa, aliada
convico de que os judeus sempre constituam objeto passivo e
sofredor das perseguies crists, na verdade prolongava e modernizava
o velho mito de povo escolhido; assim, s podia levar a novas e
freqentemente complicadas prticas de segregao, destinadas a manter
a antiga dicotomia numa daquelas ironias que parecem reservadas aos
que, por quaisquer motivos, buscam enfeitar e manipular os fatos
polticos e os registros histricos. Pois, se os judeus tinham em
comum com os seus vizinhos no-judeus algo que justificasse a sua
recm-proclamada igualdade, era precisamente o passado de mtua
hostilidade determinada religiosamente, passado to rico em realizao
cultural no nvel mais alto quanto abundante em fanatismo e
supersties no nvel das massas ignorantes. Contudo, at os irritantes
esteretipos desse setor da historiografia judaica apiam-se
mais
10. solidamente em fatos histricos que as obsoletas
necessidades polticas e sociais do povo judeu na Europa do sculo
XIX e do comeo do sculo XX. Embora a histria cultural judaica fosse
infinitamente mais diversa do que se supunha naquela poca, e embora
as causas do desastre judeu variassem ao longo das circunstncias
histricas e geogrficas, a verdade que se alteravam mais em funo do
ambiente no-judeu do que das comunidades judaicas. Dois fatos reais
foram decisivos para a formao dos conceitos errneos e fatdicos que
ainda permeiam as verses populares da histria judaica. Em parte
alguma e em tempo algum depois da destruio do Templo de Jerusalm
(no ano 70) os judeus possuram territrio prprio e Estado prprio;
sua existncia fsica sempre dependeu da proteo de autoridades
no-judaicas, embora se lhes concedessem, em vrias regies, alguns
meios de autodefesa, como por exemplo, aos "judeus da Frana e da
Alemanha at comeos do sculo XIII",5 o direito de portar armas. Isso
no significa que os judeus nunca tiveram fora, mas a verdade que,
em qualquer disputa violenta, no importa por que motivos, os judeus
eram no apenas vulnerveis como indefesos. Assim, no admira que,
especialmente no decorrer dos sculos em que era completa a sua
separao do meio no-judeu e que foram anteriores sua ascenso
igualdade poltica , todas as mltiplas exploses da violncia lhes
parecessem meramente normais. Alm disso, as catstrofes eram
entendidas, dentro da tradio judaica, em termos de martirologia, o
que por sua vez tinha base hist- (4) Katz, op. cit., p. 196. (5)
Ibid, p. 6. 19
11. rica tanto nos primeiros sculos de nossa era, quando judeus
e cristos desafiavam o poder do Imprio Romano, quanto nas condies
medievais, quando se oferecia aos judeus o batismo como alternativa
para se livrarem das perseguies, mesmo se a causa da violncia fosse
poltica e econmica, e no religiosa. Essa seqncia de eventos
conduziu iluso que desde ento afeta tanto os historiadores judeus
como os no-judeus, j que ambas as partes do mais nfase ao fato de
"os cristos se desassociarem dos judeus do que do inverso".6 Assim,
escondem o seguinte fenmeno: a separao dos judeus do mundo gentio,
e mais especificamente do ambiente cristo, tem tido maior relevncia
na histria judaica do que o seu oposto, pela razo bvia de que a
prpria sobrevivncia do povo judeu como entidade identificvel
dependia dessa separao, que era voluntria, e no, como se costumava
supor, resultante da hostilidade dos cristos e no-judeus em geral.
S nos sculos XIX e XX, depois da emancipao e em conseqncia da
assimilao dos judeus, o anti-semitismo veio a ter alguma importncia
para a preservao do povo judeu, pois s ento os judeus passaram a
aspirar a serem aceitos pela sociedade no-judaica. Embora os
sentimentos antijudaicos fossem correntes entre as classes educadas
da Europa no sculo XIX, o anti-semitismo como ideologia constitua,
com muito poucas excees, rea de atuao dos malucos e lunticos. At os
duvidosos produtos do judasmo apologtico, que nunca convenceram
ningum seno os que j estavam convencidos, formavam exemplos de
elevada erudio e cultura, se comparados com o que os inimigos dos
judeus tinham a oferecer em matria de pesquisa histrica.7 Quando,
aps o fim da Segunda Guerra Mundial, comecei a organizar o material
para este livro, coletado a partir de documentos e monografias, s
vezes excelentes, que cobriam um perodo de mais de dez anos, no
encontrei uma nica obra sobre o anti-semitismo compatvel com os
padres mais elementares da apreciao histrica. E de l para c a
situao pouco mudou. Isso deplorvel, pois a necessidade do
tratamento fiel e imparcial da histria judaica tornou-se
recentemente maior do que jamais. Os acontecimentos polticos do
sculo XX atiraram o povo judeu no centro do turbilho de eventos; a
questo judaica e o anti-semitismo, fenmenos relativamente sem
importncia em termos de poltica mundial, transformaram-se em agente
catalisador, inicialmente, da ascenso do movimento nazista e do
estabelecimento da estrutura organizacional do Terceiro Reich, no
qual todo cidado tinha de provar que no era judeu ou descendente
dos judeus; e, em seguida, de uma guerra mundial de ferocidade
nunca vista, que culminou, finalmente, com o surgimento do
genocdio, crime at ento desconhecido em meio civilizao ocidental.
Creio ser bvio que isso exige no apenas lamentao e denncia, (6)
Ibid.,p.7. (7) A nica exceo o historiador nazista e anti-semita
Walter Frank, chefe do Reichs-institut fr Geschichte des Neuen
Deutschlands [Instituto Estatal para a Histria da Nova Alemanha] e
editor de nove volumes de Forschungen zur Judenfrage [Pesquisas
sobre a questo judaica] publicados entre 1937 e 1944. As
contribuies de Frank ainda podem ser consultadas com proveito. 20
mas tambm compreenso. Este livro uma tentativa de compreender os
fatos que, primeira vista, pareciam apenas ultrajantes. Repito:
compreender no significa negar o ultrajante, subtrair o inaudito do
que tem precedentes, ou explicar fenmenos por meio de analogias e
generalidades tais que se deixa de sentir o impacto da realidade e
o choque da experincia. Significa antes examinar e suportar
conscientemente o fardo que os acontecimentos colocaram sobre ns
sem negar sua existncia nem vergar humildemente a seu peso, como se
tudo o que de fato aconteceu no pudesse ter acontecido de outra
forma. Compreender significa, em suma, encarar a realidade,
espontnea e atentamente, e resistir a ela qualquer que seja, venha
a ser ou possa ter sido. Para essa compreenso indispensvel embora
no seja suficiente uma certa familiaridade com a histria judaica na
Europa do sculo XIX e a conseqente evoluo do anti-semitismo. Os
captulos que seguem tratam apenas daqueles elementos da histria do
sculo XIX que realmente importam para o estudo das origens do
totalitarismo. Ainda est por ser escrita a histria analtica do
anti-semitismo, o que foge ao escopo deste volume. Enquanto existir
essa lacuna, justifica-se a publicao dos captulos seguintes como
contribuio para o estudo mais completo, embora tenham sido
originalmente concebidos to-s como parte integrante da pr-histria
do totalitarismo. Alm disso, no apenas a histria do anti- semitismo
tem sido elaborada por no-judeus mentecaptos e por judeus
apologticos, sendo em geral evitada por historiadores de reputao:
mutatis mutandis, com quase todos os elementos que se
cristalizariam no fenmeno totalitrio ocorreu o mesmo. Ambos os
fenmenos o anti-semitismo e o totalitarismo mal haviam sido notados
pelos homens cultos, porque pertenciam corrente subterrnea da
histria europia, onde, longe da luz do pblico e da ateno dos homens
esclarecidos, puderam adquirir virulncia inteiramente inesperada.
Quando a derradeira catstrofe cristalizante a Segunda Guerra
Mundial trouxe tona essas correntes subterrneas, surgiu a tendncia
de confundir o totalitarismo com os seus elementos e com as suas
origens, como se cada exploso de anti-semitismo ou racismo pudesse
ser a priori identificada com o "totalitarismo". Essa atitude to
enganadora na busca da verdade histrica como perniciosa para a
12. anlise poltica. A poltica totalitria longe de ser
simplesmente anti-semita, ou racista, ou imperialista, ou comunista
usa e abusa de seus prprios elementos ideolgicos, at que se dilua
quase que completamente com a sua base, inicialmente elaborada
partindo da realidade e dos fatos realidade da luta de classes, por
exemplo, ou dos conflitos de interesse entre os judeus e os seus
vizinhos, que fornecia aos idelogos a fora dos valores
propagandsticos. Constituiria certamente grave erro subestimar o
papel que o racismo puro tem desempenhado e ainda desempenha no
governo dos estados do sul dos Estados Unidos, mas seria uma iluso
ainda mais grave chegar concluso retrospectiva de que amplas reas
desse pas eram submetidas ao regime totalitrio h mais de um sculo.
A nica conseqncia direta e no-adulterada dos movimentos
anti-semitas do sculo XIX no foi o nazismo 21
13. mas, ao contrrio, o sionismo, que, pelo menos em sua forma
ideolgica ocidental, assumiu o aspecto de consciente
contra-ideologia, de "resposta ao" anti-semitismo. Isso no
significa que a autoconscincia grupai dos judeus resultasse do
anti-sem.itismo; at mesmo o conhecimento superficial da histria
judaica, cuja preocupao central, desde o exlio babilnico, sempre
foi a sobrevivncia do povo a despeito da disperso, seria suficiente
para destruir esse mito sobre o assunto, mito que se tornou at
elegante, a ponto de vir a ser repetido nos crculos intelectuais,
depois da interpretao existencialista de Sartre, segundo a qual o
judeu era algum que os outros consideravam e definiam como tal. O
que melhor exemplifica tanto a diferena como a relao entre o
anti-semitismo pr-totalitrio e o totalitrio talvez a histria dos
"Protocolos dos sbios do Sio". O emprego dessa falsificao pelos
nazistas, que a usaram como livro-texto, certamente no pertence
histria do anti-semitismo, mas s a histria do anti-semitismo pode
explicar porque era vivel o uso da mentira para os fins de
propaganda antijudaica. Mas essa histria no explica por que se
transformou em fenmeno poltico a alegao, obviamente totalitria, do
suposto domnio global a ser exercido com mtodos esotricos pelos
membros de uma sociedade secreta. A atrao poltica decorrente do uso
dos "Protocolos" importante, na medida em que suas origens esto no
imperialismo em geral, como foi elaborado em verso europia
continental, altamente explosiva, a partir dos movimentos
nacionalmente, ou melhor, etnicamente unificadores, principalmente
pangermnicos e pan-eslavos. Este livro, portanto, limitado no tempo
e no espao, tanto quanto no assunto. Suas anlises cuidam da histria
judaica na Europa central e ocidental desde o tempo ps-medieval dos
judeus-da-corte at o Caso Dreyfus, naquilo em que ele foi, de um
lado, relevante para o nascimento do anti-semitismo e, do outro,
influenciado por ele. Trata dos movimentos anti-semitas que ainda
se baseavam de modo bastante slido nas realidades factuais das
relaes entre judeus e gentios, isto , no papel desempenhado pelos
judeus no desenvolvimento do Estado-nao e no seu papel dentro da
sociedade no-judaica. O surgimento dos primeiros partidos
anti-semitas nas dcadas de 1870 e 1880 marca o instante em que foi
superado o elemento factual (e limitado) do conflito de interesses
e ultrapassada a experincia convivencial, abrindo- se assim o
caminho que levou "soluo final" genocida. Da por diante, na era do
imperialismo, j no possvel isolar a questo judaica ou a ideologia
anti-semita de questes que, na verdade, quase nada tm a ver com as
realidades da moderna histria judaica. Isso no ocorre apenas e
basicamente porque essas questes sejam to importantes nos negcios
mundiais, mas porque o prprio anti-semitismo agora utilizado para
fins que transcendem a problemtica aparente, e os quais, embora sua
implantao faa dos judeus as principais vtimas, deixam para trs
todas questes de interesse judaico e antijudaico. Hannah Arendt
Julho de 1967 22 1 O ANTI-SEMITISMO COMO UMA OFENSA AO BOM SENSO
Muitos ainda julgam que a ideologia nazista girou em torno do
anti-semitismo por acaso, e que desse acaso nasceu a poltica que
inflexivelmente visou a perseguir e, finalmente, exterminar os
judeus. O horror do mundo diante do resultado derradeiro, e, mais
ainda, diante do seu efeito, constitudo pelos sobreviventes sem lar
e sem razes, deu "questo judaica" a proeminncia que ela passou a
ocupar na vida poltica diria. O que os nazistas apresentaram como
sua principal descoberta o papel dos judeus na poltica mundial e o
que propagavam como principal alvo a perseguio dos judeus no mundo
inteiro foi considerado pela opinio pblica mero pretexto,
interessante truque demaggico para conquistar as massas. bem
compreensvel que no se tenha levado a srio o que os prprios
nazistas diziam. Provavelmente no existe aspecto da histria
contempornea mais irritante e mais mistificador do que o fato de,
entre tantas questes polticas vitais, ter cabido ao problema
judaico, aparentemente insignificante e sem importncia, a duvidosa
honra de pr em movimento toda uma mquina infernal. Tais
discrepncias entre a causa e o efeito constituem ultraje ao bom
senso a tal ponto que as tentativas de explanar o anti- semitismo
parecem forjadas com o fito de salvar o equilbrio mental dos que
mantm o senso de proporo e a esperana de conservar o juzo. Uma
dessas apressadas explicaes identifica o anti-semitismo com
desenfreado nacionalismo e suas exploses de xenofobia. Mas, na
verdade, o anti-semitismo moderno crescia enquanto declinava o
nacionalismo tradicional, tendo atingido seu clmax no momento em
que o sistema europeu de Estados- naes, com seu precrio equilbrio
de poder, entrara em colapso. Os nazistas no eram meros
nacionalistas. Sua propaganda nacionalista era dirigida aos
simpatizantes e no aos membros convictos do partido. Ao contrrio,
este jamais se permitiu perder de vista o alvo poltico
supranacional. O "nacionalismo" nazista assemelhava-se propaganda
nacionalista da Unio Sovitica, que tambm usada apenas como repasto
aos preconceitos das massas. Os nazistas sentiam genuno desprezo,
jamais abolido, pela estreiteza do nacionalismo e pelo
provincianismo do Estado-
14. nao. Repetiram muitas 23
15. vezes que seu movimento, de mbito internacional (como,
alis, o movimento bolchevista), era mais importante para eles do
que o Estado, o qual necessariamente estaria limitado a um
territrio especfico. E no s o perodo nazista mas os cinqenta anos
anteriores da histria anti-semita do prova contrria identificao do
anti-semitismo com o nacionalismo. Os primeiros partidos
anti-semitas das ltimas dcadas do sculo XIX foram os primeiros a
coligar- se em nvel internacional. Desde o incio, convocavam
congressos internacionais, e preocupavam-se com a coordenao de
atividades em escala internacional ou, pelo menos, intereuropia.
Tendncias gerais, como o declnio do Estado-nao coincidente com o
crescimento do anti- semitismo, no podem ser explicadas por uma
nica razo ou causa. Na maioria desses casos, o historiador depara
com situao histrica complexa, na qual tem a liberdade (e isto quer
dizer perplexidade) de isolar um determinado fator como
correspondente ao "esprito da poca". Existem, porm, algumas regras
gerais que so teis. A principal delas a definio, por Tocqueville
(em L'Ancien Regime et Ia Rvolution, livro II, captulo 1), dos
motivos do violento dio das massas francesas contra a aristocracia
no incio da Revoluo dio que levou Burke a observar que a Revoluo se
preocupava mais com "a condio de um cavalheiro" do que com a
instituio de rei. Segundo Tocqueville, o povo francs passou a odiar
os aristocratas no momento em que perderam o poder, porque essa
rpida perda de poder no foi acompanhada de qualquer reduo de suas
fortunas. Enquanto os nobres dispunham de vastos poderes, eram no
apenas tolerados mas respeitados. Ao perderem seus privilgios, e
entre eles o privilgio de explorar e oprimir, o povo descobriu que
eles eram parasitas, sem qualquer funo real na conduo do pas. Em
outras palavras, nem a opresso nem a explorao em si chegam a
constituir a causa de ressentimento: mas a riqueza sem funo palpvel
muito mais intolervel, porque ningum pode compreender e
conseqentemente aceitar por que ela deve ser tolerada. O
anti-semitismo alcanou o seu clmax quando os judeus haviam, de modo
anlogo, perdido as funes pblicas e a influncia, e quando nada lhes
restava seno sua riqueza. Quando Hitler subiu ao poder, os bancos
alemes, onde por mais de cem anos os judeus ocupavam posies- chave,
j estavam qua-sejudenrein desjudazados , e os judeus na Alemanha,
aps longo e contnuo crescimento em posio social e em nmero,
declinavam to rapidamente que os estatsticos prediziam o seu
desaparecimento em poucas dcadas. verdade que as estatsticas no
indicam necessariamente processos histricos reais: mas digno de
nota que, para um estatstico, a perseguio e o extermnio dos judeus
pelos nazistas pudessem parecer uma insensata acelerao de um
processo que provavelmente ocorreria de qualquer modo, em termos da
extino do judasmo alemo. O mesmo verdadeiro em quase todos os pases
da Europa ocidental. O Caso Dreyfus no ocorreu no Segundo Imprio,
quando os judeus da Frana estavam no auge de sua prosperidade e
influncia, mas na Terceira Repblica, quando eles j haviam quase
desaparecido das posies importantes (embora 24 no do cenrio
poltico). O anti-semitismo austraco tornou-se violento no sob o
reinado de Metternich e Francisco Jos, mas na Repblica austraca aps
1918, quando era perfeitamente bvio que quase nenhum outro grupo
havia sofrido tanta perda de influncia e prestgio em conseqncia do
desmembramento da monarquia dos Habsburgos, quanto os judeus. A
perseguio de grupos impotentes, ou em processo de perder o poder,
pode no constituir um espetculo agradvel, mas no decorre apenas da
mesquinhez humana. O que faz com que os homens obedeam ou tolerem o
poder e, por outro lado, odeiem aqueles que dispem da riqueza sem o
poder a idia de que o poder tem uma determinada funo e certa
utilidade geral. At mesmo a explorao e a opresso podem levar a
sociedade ao trabalho e ao estabelecimento de algum tipo de ordem.
S a riqueza sem o poder ou o distanciamento altivo do grupo que,
embora poderoso, no exerce atividade poltica so considerados
parasitas e revoltantes, porque nessas condies desaparecem os
ltimos laos que mantm ligaes entre os homens. A riqueza que no
explora deixa de gerar at mesmo a relao existente entre o
explorador e o explorado; o alheamento sem poltica indica a falta
do menor interesse do opressor pelo oprimido.
16. Contudo, o declnio dos judeus na Europa ocidental e central
forma apenas o pano de fundo para os eventos subseqentes, e explica
to pouco esses eventos como o fato de a aristocracia ter perdido o
poder explicaria a Revoluo Francesa. Conhecer essas regras gerais
importante, para que seja possvel refutar as insinuaes do aparente
bom senso, segundo as quais o dio violento ou a sbita rebelio so
necessariamente decorrentes do exerccio de forte poder e de abusos
cometidos pelos que constituem o alvo do dio, e que,
conseqentemente, o dio organizado contra os judeus s pode ter
surgido como reao contra sua importncia e o seu poderio. Mais sria
parece outra argumentao: os judeus, por serem um grupo inteiramente
impotente, ao serem envolvidos nos conflitos gerais e insolveis da
poca, podiam facilmente ser acusados de responsabilidade por esses
conflitos e apresentados como autores ocultos do mal. O melhor
exemplo e a melhor refutao dessa explicao, que to grata ao corao de
muitos liberais, est numa anedota contada aps a Primeira Grande
Guerra. Um anti-semita alegava que os judeus haviam causado a
guerra. A resposta foi: "Sim, os judeus e os ciclistas". "Por que
os ciclistas?", pergunta um. "E por que os judeus?", pergunta
outro. A teoria que apresenta os judeus como eterno bode expiatrio
no significa que o bode expiatrio poderia tambm ser qualquer outro
grupo? Essa teoria defende a total inocncia da vtima. Ela insinua
no apenas que nenhum mal foi cometido mas, tambm, que nada foi
feito pela vtima que a relacionasse com o assunto em questo.
Contudo, quem tenta explicar por que um determinado bode expiatrio
se adapta to bem a tal papel abandona nesse momento a teoria e
envolve-se na pesquisa histrica. E ento o chamado bode expiatrio
deixa de ser a vtima inocente a quem o mundo culpa por todos os
seus pecados e atravs do qual deseja escapar ao castigo; torna-se
um grupo 25
17. entre outros grupos, todos igualmente envolvidos nos
problemas do mundo. O fato de ter sido ou estar sendo vtima da
injustia e da crueldade no elimina a sua co-responsabilidade. At h
pouco, a falta de lgica aparente na formulao da teoria do bode
expiatrio bastava para descart-la como escapista. Mas o surgimento
do terror como importante arma dos governos aumentou-lhe a
credibilidade. A diferena fundamental entre as ditaduras modernas e
as tiranias do passado est no uso do terror no como meio de
extermnio e amedrontamento dos oponentes, mas como instrumento
corriqueiro para governar as massas perfeitamente obedientes. O
terror, como o conhecemos hoje, ataca sem provocao preliminar, e
suas vtimas so inocentes at mesmo do ponto de vista do perseguidor.
Esse foi o caso da Alemanha nazista, quando a campanha de terror
foi dirigida contra os judeus, isto , contra pessoas cujas
caractersticas comuns eram aleatrias e independentes da conduta
individual especfica. Na Rssia sovitica a situao mais confusa, j
que o sistema bolchevista, ao contrrio do nazista, nunca admitiu em
teoria o uso de terror contra pessoas inocentes: tal afirmao,
embora possa parecer hipcrita em vista de certas prticas, faz muita
diferena. Por outro lado, a prtica russa mais "avanada" do que a
nazista em um particular: a arbitrariedade do terror no determinada
por diferenas raciais, e a aplicao do terror segundo a procedncia
scio-econmica (de classe) do indivduo foi abandonada h tempos, de
sorte que qualquer pessoa na Rssia pode subitamente tornar-se vtima
do terror policial. No estamos interessados aqui na ltima
conseqncia do exerccio do domnio pelo terror, que leva situao na
qual jamais ningum, nem mesmo o executor, est livre do medo; em
nosso contexto, tratamos apenas da arbitrariedade com que as vtimas
podem ser escolhidas, e para isso decisivo que sejam objetivamente
inocentes, que sejam selecionadas sem que se atente para o que
possam ou no ter feito. primeira vista, isso pode parecer confirmao
tardia da velha teoria do bode expiatrio, e verdade que a vtima do
terror moderno exibe todas as caractersticas do bode expiatrio: no
sentido objetivo absolutamente inocente, porque nada fez ou deixou
de fazer que tenha alguma ligao com o seu destino. H, portanto, uma
tentao de voltar explicao que automaticamente tira toda a
responsabilidade da vtima: ela parece corresponder realidade em que
nada nos impressiona mais do que a completa inocncia do indivduo
tragado pela mquina do terror, e a sua completa incapacidade de
mudar o destino pessoal. O terror, contudo, assume a simples forma
do governo s no ltimo estgio do seu desenvolvimento. O
estabelecimento de um regime totalitrio requer a apresentao do
terror como instrumento necessrio para a realizao de uma ideologia
especfica, e essa ideologia deve obter a adeso de muitos, at mesmo
da maioria, antes que o terror possa ser estabelecido. O que
interessa ao historiador que os judeus, antes de se tornarem as
principais vtimas do terror moderno, constituam o centro de
interesse da ideologia nazista. Ora, uma ideo- 26 logia que tem de
persuadir e mobilizar as massas no pode escolher sua vtima
arbitrariamente. Em outras palavras, se o nmero de pessoas que
acreditam na veracidade de uma fraude to evidente como os
"Protocolos dos sbios do Sio" bastante elevado para dar a essa
fraude o foro do dogma de todo um movimento poltico, a tarefa do
historiador j no consiste em descobrir a fraude, pois o fato de
tantos acreditarem nela mais importante do que a circunstancia
(historicamente secundria) de se tratar de uma fraude. A explicao
tipo bode expiatrio escamoteia, portanto, a seriedade do
anti-semitismo e da importncia das razes pelas quais os judeus
foram atirados ao centro dos acontecimentos. Igualmente disseminada
a doutrina do "eterno anti-semitismo", na qual o dio aos judeus
apresentado como reao normal e natural, e que se manifesta com
maior ou menor virulncia segundo o desenrolar da histria. Assim, as
exploses do anti-semitismo parecem no requerer explicao especial,
como conseqncias "naturais" de um problema eterno. perfeitamente
natural que os anti-semitas profissionais adotassem essa doutrina:
o melhor libi possvel para todos os horrores. Se verdade que a
humanidade tem insistido em assassinar judeus durante mais de 2 mil
anos, ento a matana de judeus uma ocupao normal e at mesmo humana,
e o dio aos judeus fica justificado, sem necessitar de argumentos.
O aspecto mais surpreendente dessa premissa o fato de haver sido
adotada por muitos
18. historiadores imparciais e at por um elevado nmero de
judeus. Essa estranha coincidncia torna a teoria perigosa e
desconcertante. Em ambos os casos, seu escapismo evidente: como os
anti-semitas desejam fugir responsabilidade dos seus feitos, tambm
os judeus, atacados e na defensiva, ainda mais naturalmente
recusam, sob qualquer circunstncia, discutir a sua parcela de
responsabilidade. Contudo, as tendncias escapistas dos apologistas
oficiais baseiam-se em motivos mais importantes e menos racionais.
O aparecimento e o crescimento do anti-semitismo moderno foram
concomitantes e interligados assimilao judaica, e ao processo de
secularizao e fenecimento dos antigos valores religiosos e
espirituais do judasmo. Vastas parcelas do povo judeu foram, ao
mesmo tempo, ameaadas externamente de extino fsica e, internamente,
de dissoluo. Nessas condies, os judeus que se preocupavam com a
sobrevivncia do seu povo descobriram, num curioso e desesperado
erro de interpretao, a idia consoladora de que o anti-semitismo,
afinal de contas, podia ser um excelente meio de manter o povo
unido, de sorte que na existncia de anti- semitismo "eterno"
estaria a eterna garantia da existncia judaica. Essa atitude
decerto supersticiosa, relacionada com a f em sua "eleio" por Deus
e com a esperana messinica, era fortalecida pelo real fato de ter
sido a hostilidade crist, para os judeus, autntico fator que,
durante muitos sculos, desempenhava o papel do poderoso agente
preservador, espiritual e poltico. Os judeus confundem o moderno
anti-semitismo com o antigo dio religioso antijudaico. Esse erro
compreensvel: na sua assimilao, processada margem do cristianismo,
os judeus desconheciam-lhe o aspecto religioso e cultural.
Enfrentando o cristianismo em declnio, os judeus podiam imaginar,
em toda a inocncia, que o anti-semitismo correspondia a uma espcie
de 27
19. retrocesso, medieval e anacrnica "Idade das Trevas". A
ignorncia ou a incompreenso do seu prprio passado foi, em parte,
responsvel pela fatal subestimao dos perigos reais e sem
precedentes que estavam por vir. Mas preciso lembrar tambm que a
inabilidade de anlise poltica resultava da prpria natureza da
histria judaica, histria de um povo sem governo, sem pas e sem
idioma. A histria judaica oferece extraordinrio espetculo de um
povo, nico nesse particular, que comeou sua existncia histrica a
partir de um conceito bem definido da histria e com a resoluo quase
consciente de realizar na terra um plano bem delimitado, e que
depois, sem desistir dessa idia, evitou qualquer ao poltica durante
2 mil anos. Em conseqncia, a histria poltica do povo judeu
tornou-se mais dependente de fatores imprevistos e acidentais do
que a histria de outras naes, de sorte que os judeus assumiam
diversos papis na sua atuao histrica, tropeando em todos e no
aceitando responsabilidade precpua por nenhum deles. Aps a
catstrofe final, isto , aps a aniquilao quase completa dos judeus
da Europa, a tese do anti- semitismo eterno tornou-se mais perigosa
do que nunca, pois ela poderia levar at absolvio os mais tenebrosos
criminosos entre os anti-semitas. Longe de garantir a sobrevivncia
do povo judeu, o anti- semitismo ameaou-o claramente de extermnio.
Contudo, essa explicao do anti-semitismo, tal como a teoria do bode
expiatrio e por motivos semelhantes , sobreviveu ao confronto com a
realidade, pois ela acentua a absoluta inocncia das vtimas do
terror moderno, o que aparentemente confirmado pelos fatos. Em
comparao com a teoria do bode expiatrio, ela tem at a vantagem de
responder incmoda questo "Por que os judeus e no outros?" de
maneira simplria: eterna hostilidade. deveras notvel que as
doutrinas que ao menos tentam explicar o significado poltico do
movimento anti-semita neguem qualquer responsabilidade especfica da
parte dos judeus e se recusem a discutir o assunto nestes termos.
Ao implicitamente recusarem abordar o significado da conduta
humana, assemelham-se s modernas prticas e formas dos governos que,
por meio do terror arbitrrio, liquidam a prpria possibilidade de ao
humana. De certa forma, nos campos de extermnio nazistas os judeus
eram assassinados de acordo com a explicao oferecida por essas
doutrinas razo do dio: independentemente do que haviam feito ou
deixado de fazer, independentemente de vcio ou virtude pessoais.
Alm disso, os prprios assassinos, apenas seguindo ordens e
orgulhosos de sua desapaixonada eficincia, assemelhavam-se
sinistramente aos instrumentos "inocentes" de um ciclo inumano e
impessoal de eventos, exatamente como os considerava a doutrina do
eterno anti-semitismo. Esses denominadores comuns entre a teoria e
a prtica no indicam, por si ss, a verdade histrica, embora espelhem
o carter oportunista das opinies popularmente propaladas, revelando
e explicando por que elas so to facilmente aceitveis pela multido.
O historiador se interessa por elas enquanto so parte da histria de
que tratam, e na medida em que se interpem no caminho de sua busca
verdade. Mas, sendo contemporneo dos eventos, o historiador to
sujeito ao poder persuasrio dessas opinies como qualquer outra
pessoa. 28 Para o historiador dos tempos modernos especialmente
importante ter cuidado com as opinies geralmente aceitas, que dizem
explicar tendncias histricas, porque durante o ltimo sculo foram
elaboradas numerosas ideologias que pretendem ser as "chaves da
histria", embora no passem de desesperados esforos de fugir
responsabilidade. Plato, em sua luta contra os sofistas, descobriu
que a "arte universal de encantar o esprito com argumentos" (Fedro,
261) nada tinha a ver com a verdade, mas s visava conquista de
opinies, que so mutveis por sua pr-, pria natureza e vlidas somente
"na hora do acordo e enquanto dure o acordo" (Teeteto, 172b).
Descobriu tambm que a verdade ocupa uma posio muito instvel no
mundo, pois as opinies isto , "o que pode pensar a multido", como
escreveu decorrem antes da persuaso do que da verdade (Fedro, 260).
A diferena mais marcante entre os sofistas antigos e os modernos
simples: os antigos se satisfaziam com a vitria passageira do
argumento s custas da verdade, enquanto os modernos querem uma
vitria mais duradoura, mesmo que s custas da realidade. Em outras
palavras, aqueles destruam a dignidade do pensamento humano,
enquanto estes destroem a dignidade da ao humana. O filsofo
preocupava-se com os manipuladores da lgica, enquanto o historiador
v obstculos nos modernos manipuladores dos fatos, que destroem a
prpria histria e sua inteligibilidade, colocada em perigo sempre
que os fatos deixam de ser considerados parte integrante do mundo
passado e presente, para serem indevidamente usados a fim de
demonstrar esta ou aquela opinio. certo que seria difcil encontrar
o caminho no labirinto dos fatos desarticulados, se fossem
abandonadas as opinies e rejeitada a tradio. Contudo, essas
perplexidades da historiografia so conseqncias nfimas se forem
consideradas as profundas transformaes do nosso tempo e o seu
efeito sobre as estruturas histricas do mundo ocidental. Dessas
transformaes resultou o desnudamento dos componentes, antes
ocultos, de nossa histria. Isso no significa que o que desabou na
crise (talvez a mais profunda na histria do Ocidente desde a queda
do Imprio Romano) foi mera fachada que encobria esses componentes,
embora no passassem de fachada muitas coisas que, h apenas algumas
dcadas, eram
20. consideradas essenciais. A simultaneidade entre o declnio
do Estado-nao europeu e o crescimento de movimentos anti-semitas, a
coincidncia entre a queda de uma Europa organizada em naes e o
extermnio dos judeus, preparado pela vitria do anti-semitismo sobre
todos os outros ismos que competiam na luta pela persuaso e
conquista da opinio pblica, tm de ser interpretadas como srio
elemento no estudo da origem do anti- semitismo. O anti-semitismo
moderno deve ser encarado dentro da estrutura geral do
desenvolvimento do Estado-nao, enquanto, ao mesmo tempo, sua origem
deve ser encontrada em certos aspectos da histria judaica e nas
funes especificamente judaicas, isto , desempenhadas pelos judeus
no decorrer dos ltimos sculos. Se no estgio final da desintegrao os
slogans anti-semitas constituam o meio mais eficaz de inspirar
grandes massas para lev-las expanso imperialista e destruio das
velhas formas de governo, ento a histria da relao entre os judeus e
o Estado 29
21. deve conter indicaes elementares para entender a
hostilidade entre certas camadas da sociedade e os judeus.
Trataremos disso no captulo seguinte. Se, alm disso, a contnua
expanso da ral moderna isto , dos d-classs provenientes de todas as
camadas produziu lderes que, sem se preocuparem com o fato de serem
ou no os judeus suficientemente importantes para se tornarem o foco
de uma ideologia poltica, repetidamente viram neles a "chave da
histria" e a causa central de todos os males, ento a histria das
relaes entre os judeus e a sociedade deve conter indicaes
elementares para explicar a hostilidade entre a ral e os judeus.
Trataremos da relao entre os judeus e a sociedade no terceiro
captulo. O quarto captulo ocupa-se do Caso Dreyfus, que foi uma
espcie de ensaio geral para o espetculo do nosso prprio tempo.
Analisamos o caso em todos os detalhes, dada a peculiar
oportunidade que oferece de, num breve momento histrico, revelar as
potencialidades do anti- semitismo, at ento ocultas, como
importante arma poltica dentro da estrutura poltica do sculo XIX, e
isto apesar da sua relativa sanidade. Os trs captulos seguintes
analisam, porm, apenas os elementos preparatrios, que chegaram ao
estgio da completa realizao quando a decadncia do Estado-nao e o
surgimento do imperialismo se destacaram concomitante-mente no
cenrio poltico. 30 2 OS JUDEUS, O ESTADO-NAO E O NASCIMENTO DO
ANTI-SEMITISMO 1. OS EQUVOCOS DA EMANCIPAO E O BANQUEIRO ESTA TAL
JUDEU No pice do seu desenvolvimento no sculo XIX, o Estado-nao
concedeu aos habitantes judeus a igualdade de direitos. Esconde
contradies profundas e fatais a evidente incoerncia do fato de que
os judeus receberam a cidadania dos governos que, no decorrer dos
sculos, haviam feito da nacionalidade um pr-requisito da cidadania,
e da homogeneidade de populao a principal caracterstica da
estrutura poltica. As leis e ditos que outorgavam aos judeus o
direito emancipao seguiam na Europa, lenta e hesitantemente, a lei
francesa de 1792. Esses decretos foram precedidos e acompanhados
pela atitude ambgua da parte do Estado-nao em relao aos seus
habitantes judeus. Do colapso da ordem feudal surgiu o conceito
revolucionrio de igualdade, segundo o qual no se podia mais tolerar
uma "nao dentro de outra nao". Por conseguinte, as restries e os
privilgios dos judeus tinham de ser abolidos juntamente com todos
os outros direitos especiais. Contudo, essa expanso da igualdade
dependia em grande parte do crescimento da fora de uma mquina
estatal independente que, sob forma de despotismo esclarecido ou de
governo constitucional, superior s classes e aos partidos, pudesse,
em esplndido isolamento, funcionar, governar e representar os
interesses da nao como um todo. Assim, quando a partir do fim do
sculo XVII a expanso econmica estatal aumenta a necessidade de
crditos e o alargamento da esfera de influncia econmica do Estado,
era natural que se recorresse ao auxlio dos judeus, velhos e
experimentados empres-tadores de dinheiro, com ligaes com a nobreza
europia, qual deviam muitas vezes proteo local e cujas finanas
costumavam administrar, enquanto nenhum outro grupo entre as
populaes da Europa estava disposto a conceder crdito ao Estado, ou
a participar ativamente da evoluo dos negcios estatais. Era do
interesse dos Estados conceder aos judeus certos privilgios em
troca e trat-los como grupo parte. De modo algum o Estado poderia
consentir que os judeus fossem assimilados pelo resto da populao, a
qual lhe 31
22. recusava crdito, negando-se a participar dos negcios do
Estado e a foment-los. Portanto, a emancipao dos judeus, como lhes
foi concedida pelo sistema de Estados nacionais na Europa durante o
sculo XIX, tinha dupla origem e o significado ambguo. Por um lado,
ela decorria da estrutura poltica e jurdica de um sistema renovado,
que s podia funcionar nas condies de igualdade poltica e legal, a
ponto de os governos, para seu prprio bem, precisarem aplainar as
desigualdades da velha ordem do modo mais completo e mais rpido
possvel. Por outro lado, a emancipao resultava claramente da
gradual extenso de privilgios originalmente concedidos a apenas
alguns indivduos e, depois, a pequenas camadas de judeus ricos e
que passaram a ser outorgados a todos os judeus da Europa central e
ocidental, para que atendessem s crescentes exigncias dos negcios
estatais, a que os limitados grupsculos de judeus ricos no
conseguiam mais fazer face sozinhos.1 Assim, a emancipao
significava, ao mesmo tempo, igualdade e privilgios: a destruio da
antiga autonomia comunitria judaica e a consciente preservao dos
judeus como grupo separado na sociedade; a abolio de restries e
direitos especiais e a extenso desses direitos a um grupo cada vez
maior de indivduos. A igualdade de condio para todos os cidados
constituiu a premissa do novo corpo poltico e, embora essa
igualdade houvesse sido realmente posta em prtica pelo menos no
tocante privao das antigas classes governantes do privilgio de
governar e das classes oprimidas do direito de serem protegidas , o
processo coincidia com o nascimento de uma sociedade de classes, as
quais novamente separavam os cidados, econmica e socialmente, de
modo to eficaz quanto o antigo regime. A igualdade de condio, como
entendida pelos jacobinos da Revoluo Francesa, s se tornou
realidade na Amrica do Norte; no continente europeu, foi substituda
por uma simples igualdade perante a lei. A contradio fundamental
entre o corpo poltico baseado na igualdade perante a lei e a
sociedade baseada na desigualdade do sistema de classes impediu o
desenvolvimento de sistemas eficazes e o nascimento de uma nova
hierarquia poltica. A intransponvel desigualdade da condio social
outor- (1) Para o historiador moderno, os direitos e liberdades
concedidos aos judeus-da-corte durante os sculos XVII e XVIII podem
parecer precursores da igualdade: esses judeus podiam viver onde
quisessem, tinham permisso de viajar livremente dentro do reino do
seu soberano, podiam portar armas e contavam com a proteo especial
das autoridades locais. Na verdade, esses judeus-da- corte,
caracteristicamente chamados, na Prssia, Generalprivilegierte
Juden, gozavam no apenas de melhores condies de vida que seus
correligionrios ainda sujeitos a restries quase medievais, mas
viviam at melhor que seus vizinhos no-judeus. Seu padro de vida era
muito mais alto que o da classe mdia da poca, e seus privilgios, na
maioria dos casos, superavam os que eram concedidos aos outros
mercadores. Essa situao no deixou de ser percebida por seus
contemporneos. Christian Wilhelm Dohm, eminente advogado da
emancipao judaica na Prssia do sculo XVIII, queixou-se da prtica,
em vigor desde o tempo de Frederico Guilherme I, de conceder aos
judeus ricos "toda sorte de favores e apoio", muitas vezes "s
custas e ao descaso de cidados diligentes e legais [isto ,
no-judeus]". Em Denkwrdigkeiten meinerZeite [Feitos memorveis do
meu tempo], Lemgo, 1814-9, IV, p. 487. 32 gada ao indivduo e quase
garantida por nascimento coexistia paradoxalmente com a igualdade
poltica. Somente pases politicamente atrasados, como a Alemanha
imperial, haviam conservado alguns vestgios feudais. L, os membros
da aristocracia, que, pouco a pouco, adquiriam a conscincia de
serem uma classe, dispunham de condio poltica privilegiada e,
assim, podiam conservar, como grupo, certa relao especial com o
Estado. Mas tratava-se apenas de vestgios do passado. O sistema de
classes completamente desenvolvido e maduro define a condio do
indivduo por sua associao com uma determinada classe dentro do
relacionamento dela com as outras, e no por sua posio pessoal no
Estado. Os judeus constituam a nica exceo a essa regra geral. No
formavam uma classe nem pertenciam a qualquer das classes nos pases
em que viviam. Como grupo, no eram nem trabalhadores nem gente da
classe mdia, nem latifundirios, nem camponeses. Sua riqueza parecia
fazer deles membros da classe mdia, mas no participavam do seu
desenvolvimento capitalista; mal eram representados nas empresas
industriais; e, se, na ltima fase de sua histria europia, chegavam
a conduzir importantes empresas, dirigiam pessoal burocrtico ou
intelectual e no o operariado. Em outras palavras, embora seu
status fosse definido pelo fato de serem judeus, no o era por suas
relaes com as outras classes. A proteo especial que recebiam do
Estado (quer sob antiga forma de privilgios, quer sob forma de leis
especiais de emancipao, de que nenhum outro grupo necessitava e
que, muitas vezes, precisava de reforo legal ulterior, por causa da
hostilidade da sociedade) e os servios especiais que prestavam
a
23. governos impediam, ao mesmo tempo, que submergissem no
sistema de classes, e que se estabelecessem como classe.2 Assim,
mesmo que ingressassem na sociedade, formavam um grupo bem definido
que preservava a sua identidade mesmo dentro de uma das classes com
as quais se relacionavam, fosse esta aristocracia ou burguesia. No
h dvida de que o interesse do Estado-nao no sentido de conservar os
judeus como grupo especial, e evitar que fossem assimilados pela
sociedade de classes, coincidia com o interesse dos judeus no
sentido de sobreviverem como grupo. Tambm mais do que provvel que,
sem essa coincidncia, as tentativas dos governos teriam sido vs: as
fortes tendncias de igualar todos os cidados, por parte do Estado,
e de incorporar cada indivduo numa classe, por parte da sociedade,
implicavam claramente a completa assimilao dos judeus e s podiam
ser frustradas por uma combinao de dois elementos: interveno do
governo e cooperao voluntria. Afinal, a poltica oficial em relao
aos judeus no era sempre to consistente e inflexvel como poderamos
pensar, se apenas considerssemos os resultados finais.3 real- (2)
Jacob Lestschinsky, numa discusso anterior do problema judaico,
salientou que os judeus no pertenciam a nenhuma classe social, e
falou de uma Klasseneinschiebsel [interposio de classe] (em
Weltwirtschafts-Archiv, 1939, vol. 30, p. 123 ss), mas viu apenas
as desvantagens dessa situao na Europa oriental, no suas grandes
vantagens nos pases da Europa ocidental e central. (3) Por exemplo,
na Prssia de Frederico II, aps a Guerra dos Sete Anos, fez-se um
esforo para incorporar os judeus numa espcie de sistema mercantil.
O antigo Juden-reglement de 1750 foi 33
24. mente surpreendente ver com que uniformidade os judeus
desprezaram as oportunidades de se engajar em empresas e negcios
capitalistas normais.4 Mas, sem os interesses e as prticas dos
governos, os judeus mal poderiam ter conservado sua identidade
grupai. Em contraste cem todos os outros grupos, os judeus eram
definidos pelo sistema poltico, e a sua posio era determinada por
ele. Como, porm, esse sistema poltico carecia de base assentada em
realidade social, eles se situavam, socialmente falando, no vcuo.
Sua desigualdade social era bem diferente da desigualdade
decorrente do sistema de classes; novamente, ela resul-tava da
relao com o Estado, de modo que, na sociedade, o prprio fato de o
indivduo ter nascido judeu significava que ou era superprivilegiado
por receber proteo especial do governo ou subprivilegiado, privado
de certos direitos e oportunidades, negados aos judeus para impedir
a sua assimilao. O esquema da ascenso e queda do sistema de
Estados-naes europeus com relao ao povo judeu segue, grosso modo,
os seguintes estgios: 1. Nos sculos XVII e XVIII, o lento
desenvolvimento dos Estados-naes processava-se sob a tutela dos
monarcas absolutos. Em toda parte, judeus emergiam individualmente
do profundo anonimato marginalizador para as posies s vezes
atraentes e quase sempre influentes de judeus-da-corte, que
financiavam os negcios do Estado e administravam as transaes
financeiras dos seus soberanos. Essas modificaes afetavam de
maneira insignificante os ju- substitudo por um sistema de licenas
regulares concedidas apenas queles habitantes que investiam parte
considervel de sua fortuna nas novas empresas manufatureiras. Mas
ali, como em toda parte, essas tentativas governamentais falharam
completamente. (4) Felix Priebatsch, no ensaio "Die Judenpolitik
des frstlichen Absolutismus im 17 und 18 Jahrhundert" [Poltica
judaica do absolutismo principesco nos sculos XVII e XVIII],
publicado em Forschungen und Versuche zur Geschichte des
Mittelalters und der Neuzeit [Pesquisas e estudos da histria
medieval e moderna] (1915), cita um exemplo tpico do incio do sculo
XVIII: "Quando a fbrica de espelhos em Neuhaus, na Baixa ustria,
que era subsidiada pela administrao, deixou de produzir, o judeu
Wertheimer deu ao imperador dinheiro para compr-la. Quando lhe
pediram que assumisse a direo da fbrica, ele recusou, afirmando que
seu tempo estava todo tomado por suas transaes financeiras". Ver
tambm Max Khler, "Beitrage zur neueren jdischen
Wirtschaftsgeschichte. Die Juden in Halberstadt und Umgebung"
[Contribuies para a nova histria econmica judaica. Os judeus em
Halberstadt e Umgebung],em Studien zur Geschichte der Wirtschaft
und Geistkultur [Estudos para a histria da economia e da cultura],
1927, vol. 3. Essa tradio, que evitou que os judeus ricos tivessem
posies de real poder no capitalismo, corroborada pelo fato de que,
em 1911, os Rothschild de Paris venderam sua parte nos campos
petrolferos de Baku ao grupo Royal Shell, aps haverem sido os
maiores magnatas de petrleo do mundo depois de Rockefeller. O
incidente narrado em Richard Lewinsohn, Wie sie gross und reich
wurden [Como se tornaram poderosos e ricos], Berlim, 1927. Pode ser
tomada como regra geral a afirmao de Andr E. Sayou no ensaio "Les
Juifs", publicado na Revue Economique Internationale, maro de 1932,
como parte da polmica com Werner Sombart, o qual identificava os
judeus com o desenvolvimento capitalista: "Os Rothschild e outros
israelitas que estavam quase exclusivamente engajados no lanamento
de emprstimos estatais e no movimento internacional de capital, no
procuraram absolutamente [...] criar grandes indstrias" (p. 531).
34 deus em geral e as massas que continuavam a viver dentro dos
padres correspondentes antiga ordem feudal. 2. Aps a Revoluo
Francesa, que alterou bruscamente as condies polticas de todo o
continente europeu, surgiram Estados-naes no sentido moderno, cujas
transaes comerciais exigiam muito mais capital e crdito de que
jamais dispuseram os judeus-da-corte. Somente poderia satisfazer s
novas e maiores necessidades governamentais a fortuna combinada dos
grupos judeus mais ricos da Europa ocidental e central, confiada
por eles a banqueiros judeus que, por conseguinte, como banqueiros,
precisavam de coletividades judaicas organizadas como fontes da
captao do dinheiro, e as apoiavam nesse sentido. Nesse perodo,
portanto, comeou a concesso de privilgios at ento s necessrios,
individualmente, aos judeus-da-corte camada rica que havia
conseguido estabelecer-se, no decorrer do sculo XVIII, nos centros
urbanos e financeiros mais importantes. Por fim, foi concedida aos
judeus a emancipao em todos os Estados-naes, exceto naqueles pases
em que os judeus, devido ao seu elevado nmero e ao atraso social
geral (como na Rssia), no conseguiram organizar-se como grupo
especial, parte, de funo econmica especificamente destinada a
apoiar financeiramente o governo. 3. Essa ntima relao entre judeus
e governos era facilitada pela indiferena geral da burguesia no
tocante poltica em geral e s finanas do Estado em particular. Esse
perodo terminou com o surgimento do imperialismo, no fim do sculo
XIX, quando os negcios capitalistas em expanso j no podiam ser
realizados sem a interveno e o apoio poltico ativo do Estado'. O
imperialismo, por outro lado, minou as prprias bases do Estado-nao
e introduziu no conjunto de naes europias o esprito comercial de
concorrncia competitiva. Os judeus perderam
25. ento sua posio exclusiva nos negcios do Estado para homens
de negcios de mentalidade imperialista, e a sua importncia como
grupo declinou, embora alguns judeus conservassem individualmente
sua influncia como consultores financeiros e como mediadores
inte-reuropeus. Esses judeus, contudo, em contraste com os
banqueiros estatais, no precisavam do apoio e solidariedade das
comunidades judaicas, como os judeus-da-corte dos sculos XVII e
XVIII. Assim, isolavam-se delas. Alis, as comunidades judaicas j no
eram financeiramente organizadas e, embora alguns judeus em altas
posies ainda representassem aos olhos do mundo gentio o povo judeu
como um todo, havia pouca ou nenhuma realidade material nesse fato.
4. Como grupo, o povo judeu do Ocidente europeu desintegrou-se
juntamente com o Estado- nao nas dcadas que precederam a deflagrao
da Primeira Guerra Mundial. O rpido declnio da Europa aps a guerra
j os encontrou destitudos do antigo poder, atomizados num rebanho
de indivduos mais ou menos ricos. Mas, na era imperialista, a
riqueza dos judeus havia se tornado insignificante; para a Europa,
desprovida de equilbrio de poder entre as naes que a compunham, e
carente de noes de solidariedade intereuro-pia, o elemento judeu,
intereuropeu e no nacional, tornou-se objeto de dio, devido sua
riqueza intil, e de desprezo, devido sua falta de poder. 35
26. Os primeiros governos a necessitarem de renda regular e de
finanas seguras foram as monarquias absolutistas, sob as quais o
Estado-nao viria a nascer. Antes, prncipes e reis feudais tambm
necessitavam de dinheiro, e at mesmo de crdito, mas apenas para
fins especficos e operaes temporrias; mesmo no sculo XVI, quando os
Fugger puseram seu prprio crdito disposio do Estado, ainda no
cogitavam de estabelecer crdito estatal especial. Inicialmente, os
monarcas absolutos cuidavam de suas necessidades financeiras em
parte pelo velho mtodo de guerra e pilhagem, e em parte pelo
sistema de monoplio de impostos, o que solapava o poder, pois
arruinava as fortunas da nobreza, sem aplacar a hostilidade da
populao. Durante muito tempo, as monarquias absolutistas procuraram
na sociedade um grupo do qual pudessem depender com a mesma
segurana que a nobreza dava monarquia feudal. Na Frana, desde o
sculo XV desenvolvia-se incessante luta entre as corporaes e a
monarquia, esta querendo integrar aquelas no sistema do Estado. A
mais interessante dessas experincias foi, sem dvida, o surgimento
do mercantilismo e as tentativas do Estado absolu-tista para impor
o monoplio absoluto ao comrcio e indstria nacionais. O conseqente
desastre do Estado absolutista e a sua bancarrota provocada pela
resistncia da burguesia em ascenso so suficientemente conhecidos.5
Antes dos ditos de emancipao, cada casa principesca, cada monarca
da Europa, j possua seu judeu-da-corte para administrar as finanas.
Durante os sculos XVII e XVIII, esses judeus- da-corte eram sempre
indivduos isolados, que mantinham, decerto, conexes intereuropias e
dispunham de fontes de crdito intereuropias mas no constituam
entidade financeira internacional.6 Os judeus individualmente e as
primeiras ricas pequenas comunidades (5) Contudo, dificilmente pode
ser superestimada a influncia das experincias mercanti-listas em
acontecimentos futuros. A Frana foi o nico pas onde o sistema
mercantilista foi seriamente experimentado e resultou no precoce
florescimento de manufaturas que deviam sua existncia interveno do
Estado e o pas jamais se recuperou disso. Na era da livre
iniciativa, sua burguesia evitava investimentos no garantidos em
indstria, enquanto que sua burocracia, tambm produto do sistema
mercantilista, sobreviveu ao colapso. Embora a burocracia tenha
perdido todas as suas funes produtivas, , ainda hoje, caracterstica
do pas, dificultando mais que a burguesia a sua recuperao. (6) Esse
havia sido o caso na Inglaterra desde o banqueiro marrano da rainha
Elizabeth e os financistas judeus dos exrcitos de Cromwell, at que
um dos doze corretores judeus admitidos na Bolsa de Londres foi
apontado como agenciador de um quarto de todos os emprstimos
governamentais de seu tempo (ver Saio W. Baron, A social and
religious history of the Jews, 1937, vol. II: Jews and capitalism);
na ustria, onde em 44 anos (1695-1739) os judeus creditaram ao
governo mais de 35 milhes de florins, e onde a morte de Samuel
Oppenheimer em 1703 resultou numa grave crise financeira tanto para
o Estado como para o imperador; na Baviera, onde em 1808 quase 80%
de todos os emprstimos governamentais eram endossados e negociados
por judeus [ver M. Grunwald, Samuel Oppenheimer und sein Kreis (S.
O. e seu crculo), 1913]; na Frana, onde as condies mercantis eram
especialmente favorveis aos judeus, a ponto de Colbert j ter
louvado sua grande utilidade para o Estado (Baron, op. cit., loc.
cit.), e onde, em meados do sculo XVIII, o judeu alemo Liefman
Calmer recebeu um baronato de um rei agradecido, que apreciava
servio e lealdade a "Nosso Estado e Nossa pessoa" (Robert Anchel,
no ensaio "Un baron juif franais au 36 judaicas dispunham ento de
poder to elevado que se permitiam abordar com maior franqueza no s
as discusses sobre seus privilgios mas tambm sobre o direito de
obt-los, enquanto as autoridades se referiam de maneira muito
cuidadosa importncia dos servios que os judeus prestavam ao
Estado.7 No h sombra de dvida quanto conexo entre os servios
prestados e privilgios concedidos. Na Frana, na Baviera, na ustria
e na Prssia os judeus privilegiados recebiam ttulos de nobreza, de
modo que ultrapassavam o status de meros homens ricos. Sobrepujadas
as dificuldades enfrentadas pelos Rothschild em conseguir o ttulo
de nobreza (aprovado pelo governo austraco em 1817), findava
cabalmente uma poca. Em fins do sculo XVIII j era evidente nos
vrios pases que nenhuma das camadas ou classes estava desejosa ou
tinha capacidade de tornar-se classe governante, isto , de
identificar-se com o governo como a nobreza o havia feito no
decorrer dos sculos.8 O fato de a monarquia no ter conseguido
encontrar uma classe que substitusse a aristocracia dentro da
sociedade levou ao rpido desenvolvimento do Estado-nao e presuno de
que esse sistema estivesse acima de todas as classes, completamente
independente da sociedade com sua pluralidade de interesses
particulares que a perfaziam enfim, o verdadeiro e nico
representante da nao como um todo. Esse sistema resultou, por outro
lado, no aprofundamento da brecha entre o Estado e a sociedade, na
qual repousava a estrutura poltica da nao. Sem essa brecha, no
seria necessrio nem possvel incluir os judeus na histria europia em
termos de igualdade. Quando falharam todas as tentativas de
aliar-se a uma das classes principais da sociedade, restou ao
Estado impor-se como poderosa empresa comercial. O crescimento dos
negcios
27. estatais foi causado pelo conflito entre o Estado e as
foras financeiramente poderosas da burguesia, que preferiu
dedicar-se ao investimento privado, evitando a interveno do Estado
e recusando-se a participar de maneira ativa no que lhe parecia ser
empresa "improdutiva". Foram assim os judeus a nica parte da
populao disposta a financiar os primrdios do Estado e a ligar seu
destino ao desenvolvimento estatal. Com 18me sicle, Liefman
Calmet", publicado em Souvenir et Science, (1930, pp. 52-5); e
tambm na Prssia, onde os Mnzjuden (judeus cunhadores de moedas) de
Frederico II tinham ttulos de nobreza e onde, no fim do sculo
XVIII, quatrocentas famlias judias constituam um dos grupos mais
ricos de Berlim. [Uma das melhores descries de Berlim e do papel
dos judeus em sua sociedade no limiar do sculo XVIII pode ser
encontrada em Wilhelm Dilthey, Das Leben Schleier-machers [A vida
de S.], 1870, pp. 182 ss.]. (7) No comeo do sculo XVIII, os judeus
austracos conseguiram banir o Entdecktes Ju-dentum [O judasmo
desnudo], de Eisemenger, de r703, e, no fim desse sculo, O mercador
de Veneza de Shakespeare s podia ser representado em Berlim com um
pequeno prlogo em que se pediam desculpas ao pblico judeu. (8) A
nica e irrelevante exceo constituda pelos coletores de impostos,
chamados fer-miers-gnraux, da Frana, que alugavam do Estado o
direito de cobrar impostos, garantindo uma quantia fixa ao governo.
Ganhavam da monarquia absoluta elevadas fortunas, e dela dependiam
diretamente, mas eram numericamente por demais insignificantes como
grupo, e por demais efmeros como fenmeno, para exercerem influncia
econmica de per si. 37
28. o seu crdito e suas ligaes internacionais, estavam em
excelente posio para ajudar o Estado- nao a afirmar-se entre os
maiores empregadores e empresas da poca.9 Acentuados privilgios e
mudanas decisivas na condio da vida dos judeus constituam o preo
pela prestao de tais servios e, ao mesmo tempo, a recompensa por
grandes riscos. Quando os Mnzjuden judeus financistas __de
Frederico da Prssia ou os judeus-da-corte do imperador austraco
receberam, sob forma de "privilgios gerais" e "patentes", o mesmo
status que, meio sculo mais tarde, todos os judeus da Prssia
receberiam com o nome de emancipao e igualdade de direitos; quando,
no fim do sculo XVIII, no pice de sua fortuna, os judeus de Berlim
conseguiram impedir o influxo dos judeus das provncias orientais
ex- polonesas do imprio germnico, porque no desejavam dividir a sua
"igualdade" com os correligionrios mais pobres e menos cultos, os
quais no reconheciam como iguais; quando, ao tempo da Assemblia
Nacional Francesa, os judeus de Bordeaux e de Avignon protestaram
violentamente contra a concesso de igualdade, por parte do governo
francs, aos judeus das provncias orientais Alscia principalmente ,
ficou claro que os judeus no pensavam em termos de direitos iguais,
mas, sim, de privilgios e liberdades especiais. E realmente no nos
surpreende que os judeus privilegiados, intimamente ligados aos
negcios de governos e bem conscientes da natureza e condio de seu
status, relutassem em aceitar a outorga para todos os judeus dessa
liberdade, que eles conseguiram em troca por seus servios, e a
qual, portanto, vista sob esse aspecto, no podia, segundo eles,
tornar-se um direito a ser compartilhado por todos.10 S no fim do
sculo XIX o imperialismo em evoluo levou as classes proprietrias
mudana da opinio inicial sobre a suposta improdutividade dos
negcios estatais. A expanso imperialista, juntamente com o
gradativo aperfeioamento dos instrumentos de violncia monopolizados
de modo absoluto pelo Estado, tornou interessantes os negcios
comerciais com o Estado como parceiro. Isso significou,
naturalmente, que os judeus, gradual mas automaticamente, perderam
sua posio exclusiva e singular. (9) As necessidades que estreitavam
os laos entre os governos estatais e os judeus podem ser avaliadas
pela ambivalncia entre as idias antijudaicas e a prtica poltica do
governo que as professava. Assim, Bismarck, em sua juventude, fez
alguns discursos anti-semitas, mas veio a tornar-se, como chanceler
do Reich, amigo ntimo de Bleichroeder e fiel protetor dos judeus
contra o movimento anti-semita de Stoecker em Berlim. Guilherme II,
embora, como prncipe da Coroa e membro da antijudaica nobreza
prussiana, tenha simpatizado com os movimentos anti- semitas da
dcada de 80, mudou suas convices e abandonou seus protegidos
anti-semitas da noite para o dia, quando subiu ao trono. (10) J no
sculo XVIII, onde quer que grupos de judeus se tornassem
suficientemente ricos para serem teis ao Estado, gozavam de
privilgios coletivos e separavam-se, como grupo, de seus irmos
menos ricos e menos teis, ainda que fosse no mesmo pas. Como os
Schutzjuden (judeus protegidos) da Prssia, os judeus de Bordeaux e
de Bayonne na Frana gozavam de igualdade muito antes da Revoluo
Francesa, e foram at convidados a apresentar suas queixas e
proposies, juntamente com os outros grupos, na Convocation des
Etats Gnraux de 1787. 38 Mas a boa sorte dos judeus e a sua sada da
obscuridade para a importncia poltica teriam sido mais breves, se
eles se houvessem restringido a meras funes comerciais dentro do
Estado- nao em crescimento. Em meados do sculo XIX, alguns Estados
adquiriram suficiente crdito para dispensar o financiamento e a
garantia dos judeus para seus emprstimos." Ademais, a crescente
conscincia por parte dos cidados de que seus destinos particulares
se tornavam cada vez mais dependentes dos destinos do pas fez com
que eles se dispusessem a conceder ao governo mais crdito
necessrio. A prpria igualdade era simbolizada pelo fato de qualquer
um poder comprar papis do governo aes, aplices, bnus etc. , j
considerados a mais segura modalidade de investir capital, na
medida em que o Estado, totalmente soberano para travar guerras e
dispor da vida dos sditos, tornou-se a nica entidade que podia
realmente proteger as propriedades dos cidados. A partir de meados
do sculo XIX, os judeus mantiveram posio de destaque porque ainda
desempenhavam papel importante, intimamente ligado participao nos
destinos do Estado. Sem territrio e sem governo prprios, os judeus
constituam elemento intereuropeu; e o Estado-nao necessariamente
conservava-lhes essa condio, porque dela dependiam os servios
financeiros prestados por judeus. Mas, mesmo aps o desaparecimento
da sua utilidade econmica, a condio intereuropia dos judeus
continuava sendo de suma importncia para o Estado, principalmente
em tempo de conflitos e guerras entre as naes.
29. Enquanto a necessidade dos servios dos judeus aos
Estados-naes surgira de modo lento e lgico, evoluindo a partir do
contexto geral da histria da Europa, a ascenso dos judeus posio de
destaque poltico e econmico foi sbita e inesperada, tanto para eles
prprios como para os seus vizinhos. No fim da Idade Mdia, o
emprestador de dinheiro judeu perdeu a sua antiga importncia, e j
no comeo do sculo XVI os judeus comearam a ser expulsos de cidades
e centros comerciais para lugarejos e vilas do interior, trocando
assim a uniforme proteo das autoridades centrais por uma posio
insegura, concedida desigualmente por pequenos nobres locais.12 O
momento crtico surgiu no sculo XVII quando, durante a Guerra dos
Trinta Anos, esses judeus, insignificantes e dispersos
emprestadores de dinheiro, podiam garantir, com o auxlio de judeus
mercadores, provises para os exrcitos mercenrios dos chefes
guerreiros situados em terras ocupadas e estranhas. Como essas
guerras eram semifeudais e mais ou menos particulares dos prncipes,
sem envolver (11) Jean Capefigue (/fojre des grandes
oprationsfinancires, vol. III: Emprunts bourses etc, 1855) pretende
que, durante a Monarquia de Julho, s os judeus, e especialmente a
casa dos Rothschild, invalidaram a solidificao do crdito
e&tatal baseado no Banco da Frana. Diz ele que os
acontecimentos de 1848 tornaram suprfluas as atividades dos
Rothschild. Raphael Strauss ("The Jews in the economic evolution of
Central Europe", em Jewish Social Studies, III, 1, 1941) observa
tambm que, depois de 1830, "o crdito pblico j se tornava risco
menor, de modo que bancos cristos comearam a entrar no negcio cada
vez mais". Contra essas interpretaes h o fato de que prevaleciam
excelentes relaes entre os Rothschild e Napoleo III, embora no
possa haver dvida quanto tendncia geral da poca. (12) Ver
Priebatsch, op. cit. 39
30. quaisquer interesses de outras classes, o que os judeus
ganhavam em status era muito limitado e quase imperceptvel. Mas o
nmero de judeus-da-corte aumentava, porque cada casa feudal
precisava do seu financista particular. Esses judeus-da-corte eram
servos de um grupo social apenas: serviam to-s a pequenos senhores
feudais, que, como membros da nobreza, no aspiravam a representar
qualquer autoridade centralizada. As propriedades que
administravam, o dinheiro que emprestavam e as provises que
compravam constituam problemas particulares do senhor, de modo que
essas atividades no podiam envolver os judeus em questes polticas.
Portanto, odiados ou favorecidos, os judeus tampouco podiam
transformar-se em questo poltica de alguma importncia. Quando,
contudo, mudou o status do senhor feudal, quando ele se tornou
prncipe ou rei, alterou-se tambm a funo do judeu-da-corte. Os
judeus, como elementos estranhos, desinteressados pelas mudanas,
mal percebiam a gradativa melhora de sua posio. No que lhes tocava,
continuavam a administrar negcios privados, e sua lealdade
continuava a ser questo pessoal, que nada tinha a ver com
consideraes polticas. A lealdade significava honestidade: no
obrigava a tomar partido nos conflitos ou a permanecer fiel por
motivos polticos. Comprar provises, vestir e alimentar um exrcito,
emprestar dinheiro para o recrutamento de mercenrios refletia
apenas o interesse pelo bem-estar de um scio comercial, fosse ele
quem fosse. O tipo de relao entre os judeus e a aristocracia
impediu que o grupo judeu se ligasse a outra camada da sociedade.
Depois que desapareceu, no comeo do sculo XIX, nunca foi
substitudo. Como seu vestgio, entre os judeus permaneceu a inclinao
por ttulos aristocrticos (especialmente na ustria e na Frana) e, no
tocante aos no-judeus, uma espcie de anti-semitismo liberal, que
colocava judeus e nobreza no mesmo nvel, por alegar que ambos se
aliavam financeiramente contra a burguesia em ascenso. Esses
argumentos, correntes na Prssia e na Frana, eram plausveis antes da
emancipao geral dos judeus, pois os privilgios dos judeus-da-corte
realmente se assemelhavam aos direitos e s liberdades da nobreza;
os judeus demonstravam o mesmo medo da aristocracia de perder os
seus privilgios, e usavam os mesmos argumentos contra a igualdade
de todos. A plausibilidade tornou-se ainda maior quando, no sculo
XVIII, maioria dos judeus privilegiados foram outorgados ttulos
menores de nobreza e, no comeo do sculo XIX, quando os judeus
ricos, tendo perdido seus laos com as comunidades judaicas,
buscaram status social seguindo o modelo da aristocracia. Mas tudo
isso era inconseqente, primeiro, porque j era bvio que a nobreza
estava em declnio, enquanto os judeus, ao contrrio, subiam
continuamente em sua posio social; e, segundo, porque a prpria
aristocracia, especialmente na Prssia, veio a ser a primeira classe
a esboar uma ideologia baseada no anti-semitismo. Os judeus eram
fornecedores em tempo de guerra, mas, embora servos do rei, jamais
participavam dos conflitos; nem se esperava que o fizessem. Quando
os conflitos cresceram e se tornaram guerras nacionais, eles conti-
40 nuaram mantendo a caracterstica de grupo internacional, cuja
importncia e utilidade decorriam precisamente do fato de nunca se
terem ligado a qualquer causa nacional. No sendo mais banqueiros
estatais nem fornecedores em tempo de guerra (a ltima guerra
financiada por um judeu foi a guerra austro-prussiana de 1866,
quando Bleichroeder ajudou Bismarck, depois que o parlamento da
Prssia negou a este ltimo os crditos necessrios), os judeus
tornaram-se consultores financeiros e assistentes em tratados de
paz e, de modo menos organizado e mais indefinido, mensageiros e
intermedirios na transmisso de notcias. Os ltimos tratados de paz
elaborados sem assistncia judaica foram os do Congresso de Viena,
entre a Frana e as demais potncias da Europa. O papel de
Bleichroeder nas negociaes de paz entre a Alemanha e a Frana em
1871 foi mais significativo do que seu auxlio na guerra, e ele
prestou servios ainda mais importantes no fim da dcada de 1870,
quando, atravs1 de suas ligaes com os Rothschild, proporcionou a
Bismarck um meio de comunicao indireta com Benjamin Disraeli.13 Os
tratados de paz aps a Primeira Guerra Mundial foram os ltimos nos
quais os judeus desempenharam papel proeminente como consultores. O
ltimo judeu que deveu sua ascenso no cenrio nacional sua conexo
judaica internacional foi Walter Rathenau, ministro
31. do Exterior da Repblica de Weimar. Como disse um de seus
colegas aps o seu assassinato por nacionalistas anti-semitas,
Rathenau pagou com a vida o fato de ter transferido aos ministros
da nova repblica, completamente desconhecidos no mbito
internacional, seu prestgio no mundo internacional das finanas e o
apoio dos judeus em todo o mundo.14 bvio que os governos
anti-semitas no usassem os judeus para os negcios de guerra e paz.
Mas a eliminao dos judeus do cenrio internacional tinha um
significado mais amplo e mais profundo do que o anti-semitismo
propriamente dito. Os judeus eram valiosos na guerra na medida em
que, usados como elemento no-nacional, asseguravam as
possibilidades de paz; isto , enquanto o objetivo dos beligerantes
nas guerras de competio era a paz de acomodao e o restabelecimento
do modus vivendi. Mas, quando as guerras tornaram-se ideolgicas,
visando a completa aniquilao do inimigo, os judeus deixaram de ser
teis. J isso levaria destruio de sua existncia coletiva, embora
seja necessrio frisar que seu desaparecimento do cenrio poltico, e
at mesmo a extino da vida grupai especfica, no conduzia
necessariamente ao extermnio fsico dos judeus. Contudo, verdadeiro
apenas parcialmente o argumento de que os judeus alemes se teriam
tornado nazistas, se isso lhes (13) De acordo com um incidente,
fielmente relata