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1 o Moderno Príncipe Notas sobre a política de Maquiavel . O caráter fundamen- tal do Príncipe consiste em que ele nao é um trabalho siste- mático, mas um livro "vivo" em que a .ideología política e a ciencia política fundem-se na forma dramática do "mito". En- tre a utopia e o tratado escolástico, as formas através das quais se configurava a ciencia política até Maquiavel, este deu a sua concepcáo a forma fantástica e artística, pela qual o elemento doutrinal e racional incorpora-se num condottiero, que repre:., o símbQlo da "yon- tade coletivt'. O processo de formacáo de uma determinada vonmde coletiva, para-un; determinaEo_ fim político, é represen- tado nao atrávés de pedantescas de 3

Gramsci, Antonio - o Moderno Principe

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o Moderno Príncipe

Notas sobre a política de Maquiavel . O caráter fundamen­tal do Príncipe consiste em que ele nao é um trabalho siste­mático, mas um livro "vivo" em que a .ideología política e aciencia política fundem-se na forma dramática do "mito". En­tre a utopia e o tratado escolástico, as formas através das quaisse configurava a ciencia política até Maquiavel, este deu a suaconcepcáo a forma fantástica e artística, pela qual o elementodoutrinal e racional incorpora-se num condottiero, que repre:.,~611~ntr.QPQmór.fkamente" o símbQlo da "yon­tade coletivt'. O processo de formacáo de uma determinadavonmde coletiva, para-un; determinaEo_fim político, é represen­tado nao atrávés de disq~lassifica!tóes pedantescas de

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. ~2S. e ~.!~!fu..o.~_Q..e.-.!UJL!QétoQ!:utt;:._a<;~9.)",mas como gua~;~<?~~ar~::í~t!~os~..dl~ve~_~§,.1!ecessi?ades,d~ urna .pessea

--" -S0lwr~ta, tuao -º-Que faz ttabªlhªX_<ª~fanta~~rti~tLG.:;t~q].le!?Jse qller con"el1ce!:[email protected]_as<paimJ~s políticas.'

O Príncipe de Maquiavel poderia ser estudado como urna.;k exemplífícacño histórica do "mito" soreliano, isto é, de urna

ideologia política que se apresenta nao COt:IJ.Q fria utopía, nemcomo raciocínio doutrinário, mas como tima criacáo da fantasiaconcreta que ",atua sobre um povodisperso e pulverizado paradespertar e organizar a sua vontade coletiva. O caráter utó­pico do Príncipe consiste em que ~ríncj.plLn~Q~~:¡dstia na,~lidaQe--his.t6rica, nao se apresentava ao pOYO italia~'características de imediatismo objetivo, mas era urna puraabstracáo doutrinária, o símbolo do chefe, do condottiero ideal;mas os elementos passionais, míticos, contidos em todo o livro,com a<;:ao dramática de grande efeito, juntam-se e tornam-sereais na conclusáo, na' invocacáo de um príncipe "reahIlenteexistente". Em todo o livro, Maquiavel mostra como deve sero Príncipe para levar um povo ,a fundacáo do novo Estado, eo desenvolvimento é conduzido com rigor lógico, com relevocientífico; na conclusáo, o próprio Maquiavel faz-se pOYO, con­funde-se com o pOYO, mas nao com um pavo "genéricamente"entendido, mas com o pOYO que Maquiavel convenceu :com oseu desenvolvimento anterior, do qual de se toma e se senteconsciencia e expressáo, com o qual de sente-se identificado:parece' que todo o trabalho "lógico" nao passa de urna reflexñodo povo, um raciocínio interior que se manifesta na conscienciapopular e acaba num grito apaixonado, imediato. -4... paixao,de raciocínlo_..8J1.b.r.e si mesma, transforma-se em "afeto:".-febre;

.fa~._d~La<;.ao_-:-Els por cíUe o e¡)ífOgo-.-aü7rfncipe nao é----qualquer coisa de extrínseco, de "impingido" de fora, de re­

tórico, mas deve ser explicado como elemento necessario da

1 Verificar entre os escritores políticos anteriores a Maquiavel se exis­tem textos configurados como o Príncipe. Também o final do Principeestá ligado a este caráter "mítico" do livro; depois de ter representado )fo condottiero ideal, Maquiavel, num trecho de grande eficácia artística,invoca o condottiem real que o personifique historicamente: esta Invo­cagao apaixonada reflete-se em todo o livro, conferindo-lhe exatamenteo caráter d):a¡pático....Em.PXQlegomeni de L. Russo, Maquiavel é de­

:nominado:(,artista da políticll~ urna vez aparece, inclusive, aexpres-sao "mito";-'inas naó-precisamente com o sentido acima indicado.

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obra mais ainda como aquele elemento que lanca a sua ver­dadd.ra luz sobre'tbda a obra e faz dela um "manifesto político".

Pode-se estudar como Sorel, a partir da concepcáo daideologia-mito, nao tenha alcancado a com'pr~ensao do. p~rtido

.. político .ficando apenas na concepcáo do sindicato profíssional.Na verdade, para Sorel o "mito" n~o e~contrava a sua expres­

.sáo jnaior no sindicato como orgamzacao de urna vontade co­letiva, mas na acáo prática do s~dicat~ e. de .um~ vonta~e

. coletiva já atuante,. acáo prática"c~J~ maior re~li~~<;ao deve:laser a rgreve geral, isto e, urna atividade pa~slva , l?~r as~

dizer de caráter negativo e preliminar (o cara~er POSItIVO so.edado' pelo acordo alcancado nas vo~ta~es"as~ocladas), um~ a,~I­vidade que nao preve urna fase propna atI~a e construtíva..'Em Sorel portanto chocavam-se duas necessidades: a do mitoe a da crítica do mito, na medida em que "cada plano preesta­belecido é utópico e reacionário". A solucáoera ~bandonada

ao impulso do irracional, do "arbitrário" (no. sentido bergso­ni~no de "impulso vital"),' da "espontaneidade"."

Mas, pode um mito ser ~'nao-construtiyo", p.ode-'se imagi­nar, na ordem de intuicóes de Sorel, que seja ef~tIvamente pro­dutivo um instrumento que deixa a vontade coletIv~ ~a ~ua faseprimitiva e elementar d~ Te~a f?rmaJao, po~ distincáo (~or"cisáo"), embora com violencia, IStO e, destruindo a.s relacóesmorais e jurídicas existentes? M~s e~t~ vo~tadecoletI:va, a~sl!Uformada elementarmente, nao deixará lmedlata~en~e.de .eXIstIr,pulverizando-se numa infinidade de vc:nta~es l~dlV1dua¡s, queem virtude da fase positiva seguem ~Ir~~oes dlye;sas e c,:n­trastantes? Além do que, nao pode existir destruicáo, nega<;~o,

sem '. urna implícita construcáo, añrmacáo, e nao em sentido

1 Nota-se aqui umacontradícáo ~~plícita,?o< ;nod.o com o qual Cr¿ceapresenta o seu problema de Histona e an~;Hls~6na co~. ou~os mo osde ensar de Croce: a sua aversño rpelos partidos políticos e o ~e~od~ de apresentar a questáo da "previsíbílídade" dos fatos, ~ocralsref Conversazioni criÚche, primeira série, págs. 150-152, relen~o ,do

livr~ de LUDOVICO LlMENTANI, La previsión.e, d~i fatti 8?C~ i, un~,Bocea, 1907): se os fatos. sociais sao ímprevísiveis e o. propno con~elto

de prevísáo é um puro .som, o irracional ~~o p~de de~ar de d~m~;:rarle cada organízacáo de homens é anti-histonca, e um preconcerto, r s.oresta resolver um a um, e com critérios imediatos, os pr?blemas. prati­cos colocados pelo desenvolvimento histórico. ( Cf. o artigo, de CROCE,Il partito come giudizio e come pr~gi.udizi?, em Cu!tura e mta morale.).Assim, o oportunismo toma-se a umca linha possível,

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la novamente e fortalece-la, e nao que se deva criar urna von­tade coletiva ex novo, original, e orientá-la para metas con­cretas e racionáis, mas de urna concrecáo e racionalidade aindanao verificadas e criticadas por urna experiencia histórica efe­tiva .e universalmente conhecida.

O caráter "abstrato" da concepcáo soreliana do "mito" \deriva da aversáo (que assume a forma passional de urna re­pulsa ética) pelos jacobinos, que certamente foram urna"encarnacáo categórica" do Príncipe de MaquiaveI. O moder-no Príncipe deve ter urna parte dedicada ao jacobinismo (nosignificado integral que esta nocáo teve históricamente e deveter conceitualmente), para exemplificar como se formou concre­tamente e atuou urna vontade coletiva que, pelo menos poralguns aspectos, foi criacáo ex novo, original. E preciso tam­bém definir a vontade coletiva e a vontade política .em geralno sentido moderno; a vontade como consciencia atuante danecessidade histórica, como protagonista de um ", drama histó­rico real e efetivo.

Urna das primeiras partesdeveria precisamente ser dedica­da a "vontade coletiva", apresentando a questáo deste modo:"Quando é possível dizer que existem as condicóes para quepossa surgir e desenvolver-se urna vontade coletiva nacional­popular?" Portanto, urna análise histórica (económica) da es­trutura social de um determinado país e urna representacáo"dramática" das tentativas feitas através dos séculos para suscitaresta-vontade e as-razóes dos sucessivos fracassos. Por que naohouVé a monarquia absolutista na Itália no tempo de Maquia­~necessário remontar ao Império Romano (questáo dalíngua, dos intelectuais, etc. ) , compreender a funcáo das co­munas medievais, o .significado do catolicismo, etc.; deve-se,enfim, fazer um bosquejo de toda a história italiana, sintéticomas exato.

A razáo dos sucessivos fracassos das tentativas de criarurna vontade coletivanacional-popular deve ser procurada naexistencia de determinados grupos sociais que se' formam a par-

rece, se colocado oxatamente no- clima do Humanismo e do Renasci­mento. No Livro VII da Arte della guerra le-se: "Esta província (aItália) parece ter nascido para ressuscitar as coisas mortas, como sevíu pela poesia, pela pintura e pela escultura", porque entáo nao ne­cessítaria a virtude militar?", etc. Reagrupar as outras cítacñes domesmn~enero para estabelecer o' seu caráter exato.

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"metafísico", 1?as pratícamente, isto é, pofiticamehte, como pro­grama de partido. Neste caso" supóe-se por trás da espontanei­?adeum .puro mecanicismo, por trás da liberdade (arbítrio­ímpulso VItal) ~m. máximo de determinismo, por trás do idea­Iismo um materíalísmo absoluto.

~ lo moderno:p~ín,cipe, o mito-príncipe, nao pode ser urnapessoa real, um individuo concreto; só pode ser um organismoj[,

__~~~ple.~º~..dJ;:~Soo..cie.,dl!d~o qual já tenha se inicia:do a concretIza~ao de urna vontade cóletíva reconhecida e fun­damentada parcialmente na al;ao. Este organismo já é deter-

(m~a~o pelo desenvolvimento histórico, é o_pª-t:tkI.Q-pJl1iti~Q;.. apnmeira ceIula na qual se aglomeram germes de vontade cole­tíva que te?dem a se tornar universais e totais. No mundomodern?, so urna a~ao histórico-política imediata e iminente,cara~tenzada pela necessidade de um procedimento rápido efulminante., ,Pode-se encarnar míticamenté num indivíduo con­creto; a raplde~ s.ó pode tornar-se necessária em virtude de umgrande pengo nnmente, grande perigo que efetivamenté leve aum despertar ,fl;llminante das paixñes e do fanatismo, aniquilan­doo ~ens? cr~tIco, ~ a"corrosividade irónica que podem destruiro carater cansmaüco do condottiero (o que ocorreu na aven­tura de Boulanger) ..Mas uma a~ao imediata de tal genero naopo~e ser, pela sua.própri.a natureza, ampla e de caráter orgánico:sera. quase s~mp~e de tipo restauracáo e reorganizacáo, e naode tipo peculiar a ~~a~ao de novos Estados ede novas estru­turas nacionars e SOClaIS (como no caso do Príncipe de Maquia­vel~ .em .que ,o .aspecto de restauracáo era só um elementoretonco, IStO e, ligado ao conceíto literário da Itália descendentede ~oma~ que devia restaurar a ordem e a potencia de Roma)1.S:ra de tipo "defensivo", e nao criador original, em que se su­p.oe qu~ um~ vontade ~oletiva já existente tenha-se enfraqne­cído, ~Issem~n.ado, sofndo,?m colapso perigoso e ameacadormas nao decisivo e catastrófico que torne necessário concentrá-

é) 1. Além do modelo exemplar dado pelas .grandes monarquias absolu­tiS~~~ dadFranca e, da Espanha, Maquiavel foi levado a sua concepeñopo ítíca a necessidade de um Estado unitário italiano pela evocaeñodo. passado de Roma. Deve-se ressaItar, porém, que nem por isso Ma­qmavel deve ser c0nfun..did~ com a tradíeño literária-ret6rica. Inclusiveporque ,:ste elemento nao e exclusivo e nem ao menos dominante ea ne~essldade de um, grande .Estado nacional .nño é deduzida dele.' Etambem porque o propno apelo a Roma é menos abstrato do que pa-

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'tir da dissolucáo da. burguesía comunal, no caráter particular \l de outros grupos que refletem a funcáo internacional da Itália

como sede da Igreja e depositária do Sagrado Império Romano,etc. Esta funcáo e a posicáo conseqüente determinam umasituacáo interna que pode ser chamada "económico-corporati­va", isto é, políticamente, a pior das formas de sociedade feudal,a forma menos progressista e mais estagnante. Faltou sempre,e nao podia constituir-se, uma forca jacobina eficiente, exata­mente a forca que nas outras nacóes suscitou e organizou avontade coletiva nacional-popular e fundou os Estados moder­nos. Finalmente, existem as condicóes para esta vontade, ouseja, qual é a relacáo atual entre estas condicóes e as Torcasque se opóem a ela? Tradicionalmente, as forcas oponentes fo­ram a aristocracia latifundiária e, em geral, o latifúndio no seuconjunto, com o seu trace característico italiano: uma "bur­guesia rural" especial, heranca de parasitismo legada aos tem­pos modernos pela ruína, como classe, da burguesia comunal(as cem cidades, as cidades do silencio). As condicóes positivasdevem .ser localizadas na existencia de grupos sociais urbanosconvenientemente desenvolvidos no campo da producáo indus­trial, que alcancaram um determinado nível de cultura histórico­política. A formacáo de uma vontade coletiva nacional-popularé impossível se as grandes massas dos camponeses cultivadoresgao irrompem simultaneamente na vida política. Maquiavelpretendia lsto através da reforma da milícia, como os jacobinoso . fizeram na RevoIDgoo Francesa. Deve-se identificar nesta

>e compreensáo um jacobinismo precoce de Maquiavel, o germe(mais ou menos fecundo) da sua concepcáo da revolucáo na­cional. Toda a História, a partir de 1815, mostra o esforco dasclasses tradicionais para impedir a f'ormacáo de uma vontadecoletiva deste genero, para manter o poder "económico-corpo­rativo" num sistema internacional de equilíbriopassivo.

Uma parte importante do moderno Príncipe deverá serdedicada a questáo de uma reforma intelectual e moral, isto é,a questáo religiosa ou de urna concepcáo do mundo. Tambémneste campo encontramos na tradicáo ausencia de jacobinismoe medo do jacobinismo (a última expressáo filosófica de talmedo é a atitude malthusiana de B. Croce em relacáo a reli­giáo) . o moderno Príncipe deve e nao pode deixar de ser opropagandista e o organizador de uma reforma intelectual eL.moral, o que significa criar o terreno para um desenvolviment~

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ulterior da vontade coletiva nacional-popular no sentido dealcancar uma forma superior e total de civilizacáo moderna.

Estes dois pontos fundamentais: formacáo de uma vonta­de coletiva nacional-popular, da qual o moderno Príncipe é ao

" mesmo tempo o .organizador e a expressáo ativa e amante, ereforma intelectual e moral, deveriam constituir a estrutura dotrabalho. Os pontos programáticos concretos devem ser incor­porados na primeira parte, isto é, deveriam, "dramáticamente",

" resultar do discurso, nao ser uma fria e pedante exposicáo deargumentos.

Pode haver reforma cultural, elevacáo civil das camadasmais baixas da sociedade, sem uma precedente reforma econó­mica e uma modificacáo na posieáo social e no mundo econó­mico? Eis por que uma reforma intelectual e moral nao podedeixar de estar ligada a um programa de reforma. económica.E mais, o programa de reforma económica é exatamente o mo­do concreto através do qual se apresenta toda reforma" intelec­tual e moral. O moderno Príncipe, desenvolvendo-se, subvertetodo o sistema de relacóes intelectuais e morais; na medida emqué o seudesenvolvimento significa de fato que cada ato é con­cebido como útil ou. prejudicial, como virtuoso ou criminoso;mas só na medida em que tem como ponto de referencia opróprio moderno Príncipe e serve para acentuar o seu poder, oucontrastá-lo, O Príncipe toma o lugar, nas consciencias, da divín­dade ou do üñpetativo categórico, torna-se a base de um laicis­mo moderno e de rima Iaicízacáo completa de toda a vida e detódas' as 1ela<;oes de -costume .

A ciéncia da política. A inovacáo fundamental. introduzidapela filosofia da praxis na ciencia da política e da História é ademonstracáo de que nao existe urna "natureza humana" abstra­ta, .fíxa e .imutável '(conceito que certamente deriva do pensa­mento religioso e <la transcendencia); mas que a natureza hu­mana é o conjunto das relacóes sociais históricamente determi­nadas, isto é, um fato histórico comprovável, dentro de certoslimites, através dos métodos da filologia e da crítica. Portanto,a ciéncia políticadeve ser concebida no seu conteúdoconcreto(e também na sua formulacño lógica) como um organismo em

~ desenvolvimento .. Todavia, deve-se observar que a forma dadapor Maquiavel a qúestáo da política (isto é, a afirmacáo implí-

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I .BIBLIOTECA DA U. C. M. G. I

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cita nos seus escritos de que a política é urna atividade autono-lma, com seus princípios e leis diversos daqueles da moral e dareligiáo, proposicáo que tem um grande alcance filosófico, poisimplicitamente inova toda a concepcáo do mundo) é ainda hojediscutida e contraditada, nao conseguiu tomar-se "senso co­mum". Qual o significado disto? Apenas que a revolucáo inte­lectual e moral, cujos elementos estáocontidos in nuce no pen­samento de Maquiavel, ainda nao se efetivou, nao se tornouforma pública e manifesta da cultura nacional? Ou será quesó tem um mero significado político atual, serve para indicarapenas a separacáo existente entre govemantes e govemados,para indicar que existem duas culturas: a dos govemantes e ados govemados; e que a classe dirigente, como a 19E~?,tem

urna atitude sua em rela!;ao aos §lmples, ditada" pela necessi­dade de naoafastar-se deles, oe um lado; e, de outro, de man­te-los na COnVIC!;aO aéque Maquiavel nada mais é do que urnaaparicáo diabólica? .

Coloca-se, assim, o problema do significado que Maquiavelteve no seu tempo e dos fins que ele se propunha escrevendoos seus livros, especialmente o Príncipe. A doutrina de Maquia­vel nao era, no seu tempo, uma coisa puramente "livresca", ummonopólio de pensadores isolados, um livro secreto que circulaentre iniciados. O estilo de Maquiavel nao é o de um tratadistasistemático como os tinha a Idade Média e o Humanismo, abso­lutamente; é estilo de homem de acáo, de quem quer impulsio­nar aacáo; é estilo de "marllifesto"de partido. Certamente, ainterpretacáo "moralística" dada por Foscolo é errada; todavia,éverdade que Maquiavel revela alguma coisa, e nao só teorizousobre o real. Mas, qual era o objetivo da revelacáo? Um obje­tivo moralístico ou político? Costuma-se dizer que as normasde Maquiavél para a átividade política "sao aplicadas, mas naosao ditas"; os grandes políticos - diz-se - comecam maldi­zendo Maquiavel, declarando-se antimaquiavélicos, exatamentepara poderem aplicar as suas normas "santamente". Nao teriasido Maquiavel pouco maquiavélico, um daqueles que "conhe- ,;:~jago"e estultamente o ensinam, enquanto o maqmavé-

[

IIsmo vulgar ensina a fazer o contrário? A afirmacáo de Crocede que; sendo 2 maquiavelismo urna ciencia, serve tanto aos~cionários como aos democratas, como a arte da esgrima ser­ve nos nobres e aOs bandoleiros, para defender-se e assassín..ar, '~ue neste s:§!iOo é que se deve entender o juízo de Foscolo,

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é verdadeira abstratamente , O próprio Maquiavel nota que ascoisas que ele escreve sao aplicadas, e foram sempre aplicadas,pelos maiores homens da História. Por isso, nao parece queele queira sugerir' a quem já sabe, nem o seu estilo é aquéle,de urna desinteressada atividade científica; nem se pode pensarque ele tenha chegado as suas teses sobre ciencia política atra-

, vés de especulacóes filosóficas, o que no caso desta particularmatéria seria algo milagroso no seu tempo,' já que, inclusive,hoje ela encontra tanto contraste e oposícño ,

Pode-se, portanto, supor que Maquiavel tem em vista"quem nao sabe", que ele pretende educar políticamente "quemnao sabe". EdUCa!;aO política nao-negativa, dos que odeiamtiranos, como parecia entender Foscolo, mas positiva, de quemdeve reconhecer como necessários determinados meios, mesmose próprios dos tiranos, porquedeseja determinados fins , Ouemnasceu na tradicáo dos homens de govérno, absorvendo todo ocomplexo da educacáo do ambiente familiar, no qual predomí­nam os interesses dinásticos ou patrimoniais, adquire quase queautomaticamente as características do político realista. Quem,portanto, "nao sabe"? A classe revolucionária da época, o"povo" e a "nacáo" italiana, a democracia urbana que· se ex­prime através dos Savonarola e dos Pier Soderini e nao dosCastruccio e dos Valentino. Pode-se deduzir que Maquiavelpretende persuadir estas f&!;as da necessidade. de ter um "chefe"que saiba aquilo que quer e como obté-lo, e de aceitá-lo comentusiasmo, mesmo se as suas acóes possam estar, ou parecerem contradicáo com a ideologia difundida na época» a religiáo ,Esta posicáo política de Maquiavel repete-se na filosofia dapraxis. Repete-se a necessidade de ser "antimaquiavélico", de­senvolvendo urna teoriae urna técnica políticas que possam ser­vir as duas partes em luta, embora creia-se que elas termina­ráo por servir especialmente a parte que "nao sabia", porquenela é que se considera existir a fórca progressista da História.Efetivainente, obtém-se de imediato um resultado: romper aunidade baseada na ideologia tradicional, sem cuja ruptura aforca nova nao poderia adquirir consciencia da própria per­sonalidade independente. O maquiavelismo serviu para me­lhorar a técnica política tradicional dos grupos dirigentes con...servadores, assim como a política da filosofia da praxis; isto

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nao deve mascarar o' seu caráter essencialmente revolucionário,que inclusive hoje é sentido e explica todo o antimaquiavelismo,daquele dos jesuítas áquele pietista de Paquale Villari.

A política como ciencia autónoma. A questáo inicial quedeve ser colocada e resolvida num trabalho sobre Maquiavel éa questáo da política como ciencia autónoma, isto é, do lugarque a ciencia política ocupa, ou deve ocupar, numa concepcáosistemática (coerente e conseqüente) do mundo, numa filosofiada praxis.

O progresso proporcionado por Croce, a 'este propósito, aoséstudos sobre Maquiavel e sobre a ciencia política, consiste pre­cipuamente (como em outros campos da atividade crítica ero­ciana) na dissolucáo de uma série de problemas falsos, incxis­tentes ou mal formulados. Croce baseou-se na sua distincáo dosmomentos do espírito e na afirmacáo de um momento da prá­tica, de um espírito prático, autónomo e independente, emboraligado circularmente a toda a realidade pela dialética dos con­trários. Numa filosofía da praxis, a distincáo certamente naoserá entre os momentos do Espírito absoluto, mas entre os .graus da superestrutura, tratando-se, portanto, de estabelecer aposicáo dialética da atividade política (e da ciencia correspon­dente) como determinado grau superestrutural , Poder-se-ádizer, como primeiro aceno e aproximacáo, que' a atividade po­lítica é efetivamente o primeiro momento ou primeiro grau, omomento em que a superestrutura está ainda na fase imediata .de mera afirmacáo voluntária, indistinta e elementar.

Em que sentido pode-se identificar a política e a Históriae, portante, toda a vida e a política? Como, em vista disso, todoo sistema das superestruturas pode ser concebido como distlncóesda política e,-portanto, justifique a íntroducáo do conceito dedistincáo numa filosofia da praxis? Mas, pode-sefalar de día­létíca' dos contrários? 'como se pode entender o conceito de cír­culo entre os graus da superestrutura? Coneeito de "bloca his­tórico", isto é, unidade entre a natureza e o espírito (estruturae supetestrutura), unidade dos contrários e dos distintos.

Pode-se introduzir o critério de distincáo também na es­trutura? Como se deverá entender a estrutura? Como no siste­ma das relacóes sociais será possível distinguir os elementos"técnica", "trabalho", "classe", etc., entendidos hístorícamente,

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e nao "metafísicamente"? Crítica da posicáo de Croce, para oqual, no final da polémica, a estrutura torna-se um "deus as­coso", um "número" em contraposicáo as "aparéncias" da su­perestrutura. "Aparéncias" em sentido metafórico e positivo."Por que, "historicamente", e como linguagem, falou-se de"aparéncias"?

. É interessante registrar como Croce, partindo desta con­cepcáo geral, extraiu a sua doutrina particular do erro e da

.. origem prática do erro. Para Croce o erro .tem origem numa"paixáo" imediata, de caráter individual ou de grupo; mas oque produzirá a "paixáo" de alcance histórico mais amplo, apaixáo 'como "categoria"? A paixáo-interesse imediato, que é

.origem do "erro", é o momento denominado schmutzig-jüdischem Glosse al Feuerbach: mas como a paixáo-interesse schmutzig­jüdisch determina o erro imediato, assim a paixáo do gruposocial mais vasto determina o "erro" filosófico (intermédio oerro-ideología, que Crece trata em separado). O importantenesta série "egoísmo (erro imediato) -ideologia-filosofia" é otermo .comum "erro", ligado aos diversos graus de paixáo, eque deve ser entendido nao no significado moralístico ou dou­trinário, mas no sentido puramente "histórico" e .dialético "da­quilo que é historicamentecaduco e digno de cair", no sentidoda "nño-definitividade" de cada filosofia, da "morte-vida", "ser­nao-ser", isto é, do termo dialético a superar no desenvolvi­mento.

D termo "aparente", "aparencia", significa exatamente isto,e nada mais que isto, e se justifica contra o dogmatismo: é aafirmacáo da caducidade de todo sistema ideológico, paralela­mente a afirrnacáo de urna validez histórica de todo sistema, eda necessidade dele. ("No terreno ideológico o homem adquireconsciencia das relacóes sociais": dizer isto nao é afirmar anecessidade e a validez das "aparéncias"?)

A concepcáo de Croce ·da política-paixáo excluí os partidos,. já que nao se pode pensar numa "paixáo" organizada e perma­

nente: a paixáo permanente é urna condicáo de orgasmo e deespasmo, que determina incapacidade de execucáo , Exclui ospartidos e exclui todo "plano" de acáo concertado preventiva­mente. Todavia, os partidos existem, e planos de acáo sao ela­borados, aplicados e muitas vezes realizados em medida notá­ve}: há, portanto, um "vício" na concepcáo de Croce. Nem épreciso dizer que; se os partidos existem, istonáo tem grande

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importancia "teórica", já que no momento daacáo o "partido"que atua nao é o mesmo "partido" que existia antes. Em parte,isto pode ser verdadeiro, todavia entre os dois "partidos" ascoincidencias sao tantas que, na realidade, pode-se dizer quese trata do mesmo organismo. .

Mas a concepcáo, para ser válida, deveria aplicar-se tam­bém a "guerra" e, portanto, explicar a existencia dos exércitospermanentes, das academias militares, dos corpos de oficiais.Também o ato da guerra é "paixáo", a mais intensa e febril, é

um momento da vida política, é a continuacáo, sob outras for­mas, de urna determinada política; é necessário, pois, explicarcomo a "paixáo" pode-se tornar "dever" moral, e nao deverde moral política, mas de ética.

Sobre os "planos políticos" ligados aos partidos como for­macóes permanentes, lembrar aquilo que Moltke dizia dos pla­nos militares: quedes nao podem ser elaborados e fixadosprecedentemente em todos os seus detalhes, mas só no seu nú­cleo e rasgo central, porque as particularidades da agao depen­dem, em certa medida, dos movimentos do adversário . A paixáomanifesta-se exatamente nos particulares, mas nao parece queo principio de Moltke seja tal que justifique a concepcáo deCroce. Em qualquer caso, restaría por explicar o genero de"paixáo" do Estado-Maior que elaborou o plano fria <:) "de­sapaixonadamente" .

Se o conceito crociano da paixáo como momento da polí­tica choca-se com a dificuldade de explicar e justificar as for­macóes políticas permanentes, como os partidos e mais aindaos exércitos nacionais e os Estados-Maiores, urna vez que nao

"n se pode conceber urna paixáo organizada permanentemente sem/1 que ela se- torne racionalidade e reflexáo ponderada, isto é, nao

~ . mais paixáo, a solucáo só pode ser encontrada na identidadeentre. política e economia. A pol~!l~2Xao J2~n~~~"nti~ªuizac6es. peliiffi!Íeñfes, na medida em que efetiva­mente se identifica com a ecoñOinia. Mas esta também tem suadistincáo, e por isso pode-se falar separadamente de economiae de política e pode-se falar da "paixáo política" comoumimpulso imediato a agao, que: nasce no terreno "permanente eorgánico" da vida económica, mas supera-o, fazendo entrar emjogo sentimentos e aspiracóes em cuja atmosfera incandescenteo próprio cálculo da vida humana individual obedece a leisdiversas daquelas do proveito individual, etc.

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Ao lado dos ,néritos de> rnoderno "maquiavensu.o ', deri­vado de Croce. u" .e-se assiualar também os "exageros" e osdesvios a que deu lugar. Criou-se o hábito de considerar muitoMaquiavel como o "político em geral", como o "cientista da

\' yolítica", atual em todos os tempos.A, . E necessário considerar mais Maquiavel como expressáo

\ necessária do seu tempo e estreitamente ligado as' condicóes eas exigencias da sua época, que resultam: 1) das lutas internasda república florentina e da estrutura particular do Estado quenao sabia libertar-se dos resíduos comunais-municipais, isto é,de urna forma estorvante de feudalismo; 2) das lutas entre osEstados italianos por um equilíbrio no ámbito italiano; que eradificultado pela existencia do Papado e dos outros residuosfeudais, municipalistas, da forma estatal urbana e nao territo­rial; 3) das lutas dos Estados italianos mais ou menos solidá­rios por um equilíbrio europeu, ou seja, das contradicóes entreas necessidades de um equilíbrio interno italiano e as exigen­cias dos Estados europeus em luta pela hegemonia.

Atua sobre Maquiavel o exemplo da Franca e da Espanha,que alcancaram urna poderosa unidade estatal territorial; Ma­quiavel faz urna "comparacáo elítica" (para usar a expressáocrociana) e deduz as regras para um Estado forte em geral eitaliano em particular. Maquiavel é inteiramente um homemda sua época; e a sua ciencia política representa a filosofia doseu tempo, que tende a organízacáo das monarquias nacidnaisabsolutistas, a forma política que permite e facilita um desen­volvimento das, forcas produtivas burguesas. Pode-se descobririn nuce em Maquiavel a separacáo dos poderes e o parlamen­tarismo (o regime representativo): a sua ferocidade dirige-secontra os resíduos do mundo feudal, nao contra as classes pro­gressistas. O Príncipe deve acabar com a anarquia feudal; e istoé o que faz Valentino na Romanha, apoiando-se nas classesprodutoras, mercadores e camooneses. Em virtude do carátermilitar-ditatorial do chefe do Estado, como se requer num pe­ríodo de luta para a fundacáo e a consolidacáo de um novopoder, a indicacáo de classe contida na Arte della guerra deveser entendida também para a estrutura do Estado cm geral: seas classes urbanas pretendem terminar com a desordem internae a anarquia externa devem apoiar-se nos camponeses comomassa, constituindo uma forca varmada segura e fiel de tipo

. inteiramente diferente daquelas de ocasiáo . Pode-se dizer que a

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concepcáo essencialmente política é de tal forma dominante emMaquiavel que o leva a cometer erros de caráter militar: elepensa especialmente na infantaria, cujas massas podem ser ar­roladas com urna acáo política e por isso desconhece o signifi­cado da artilharia.

Russo (em Prolegomeni a Machiavelli) observa justamen­te que a Arte della guerra integra o Príncipe, mas nao extraitodas as conclusóes da sua observacáo , Também na Arte dellaguerra Maquiavel deve ser considerado como um político queprecisa ocupar-se da arte militar; ° seu unílateralismo (comoutras "curiosidades", como a teoria da falange, que dáo lugara fáceis chalacas como aquela mais difundida extraída de Ban­dello) depende :do fato de que a questáo técnico-militar naoconstitui o centro do seu interesse e do seu pensamento. Eletrata dela apenas na medida em que é necessária para a suaconstrucáo política.. Mas nao só a Arte della guerra deve serligada ao Príncipe; também Istorie jiorentine, que deve efetiva­mente servir para urna análise das condicóes reais italianas eeuropéias das quais derivam as exigencias imediatas contidasno -Príncipe.

De urna concepcáo de Maquiavel mais aderente aos tem­pos deriva, subordinadamente, urna avaliacáo mais historicistados chamados "antimaquiavélicos", ou, pelo menos,dos mais"ingenuos" entre eles. Na realidade, nao se trata de antima­quiavélicos, mas de políticos que exprimem exigencias da suaépoca ou de condicóes diversas daquelas que influíam sobre

.Maquiavel; a forma polémica é puro acidente literário. O exem­plo típico destes "antimaquiavélicos" parece-me lean Bodin(1530-1596), que foi deputado dos Estados Gerais de Blois,em 1576, e Ievou o Terceiro Estado a recusar os subsídios so-licitados para a guerra civil.' .

Durante as guerras civis na Franca, Bodin é o expoente doterceiro partido, denominado dos "políticos", que defende o

1 Obras de BODIN: Methodus ad facilem historiarum cognitionem( 1566), onde assínala a influencia do clima sobre a forma dos Estados,acena para urna idéia de progresso, etc.; République (1576), ondeexprime as opinioe~ do Terceiro Estado sobre amonarquia absoluta ells.suas relacñes com o po~o; Heptaplomeres (inédito até a época mo­derna), em que examina todas as relígíñes- e justifica-as como expres­sñes diversas das religioes naturais, as únicas razoáveis, e todas igual­mente dignas de respeito e de tolerancia.

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ponto de vista do interesse nacional, de um equilíbrio internodas c1asses, de modo que a hegemonia pertenca ao TerceiroEstado através do monarca. Parece-me evidente que cIassificarBodin entre os "antimaquiavélicos" seja questáo absolutamenteextrínseca e superficial. Bodirr funda a ciencia política naFranca num terreno muito mais avancado e complexo do queaquele oferecido pela Itália a Maquiavel. Para Bodin, nao setrata de fundar o Estado unitário-territorial (nacional), isto é,de retornar á época de Luís XI, mas de equilibrar as forcassociais em luta dentro desse Estado já forte e enraizado; naoé o momento da forca que interessa a Bodin, mas o do consen­so. A monarquia absolutista tende a se desenvolver com Bodin:o Terceiro Estado tem tal consciencia da sua forca e da suadignidade, sabe tao bem que a sorte da monarquia absolutaestá ligada a sua própria sorte e ao seu próprio desenvolvimen­to, que impoe condicáes para o seu conseniimenio, apresentaexigencias, tendea limitar o absolutismo. Na Franca, Maquia­vel já servia a reacáo, pois podia ser utilizado para justificarque se mantivesse o mundo no "berco" (segundo a expressáode Bertrando Spaventa); portanto, era necessário ser "polemi­camente" antimaquiavélico.

Deve-se notar que na Itália estudada por Maquiavel naoexistiam instituicñes representativas já descnvolvidas e signifi­cativas para a vida nacional como as dos Estados Gerais naFranca. Quando, modernamente, se observa. de modo tenden­cioso, que as instituicóes parlamentares na Itália foram impor­tadas do exterior, nao se leva em conta que isto reflete apenasurna condicáode atraso e estagnacáo da história política e socialitaliana de 1 500 a 1 700; condicáo que se devia em grandeparte a predominancia das relacóes internacionais sobre as re­lacóes internas, paralisadas e entorpecidas. O fato de que aestrutura estatal italiana,em virtudeda predominancia estran­geira, tenha permanecido na fase- semifeudal de umobjeto desuzeraineté estrangeira, seria talvez "originalidade" nacionaldestruída pela importacáo das formas parlamentares que, aocontrário dáo urna forma aoprócessoríé l1bertac;ao nacional?']E a passagem ao Estado territorial m@detftd (independente enacional)? No mais, especialmente no Sul e ffá Sieília, existiraminstituicóes representativas, mas com caráter muito mais restritodo que na. Franca, cm virtude do pequeno deserivolvimento doTerceiro Estado nestas regi6es. Isto levava a que os Parlarñen-

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ticas baseiarn-se neste fato primordial, irreduzível (em certascondicóes gerais). As origens deste fato constituem um pro­blema cm si, que deverá ser estudado em si (pelo menos poder­se-á e dever-se-á estudar como atenuar e eliminar o fato, modi­ficando certas condicóes identificáveis como atuantcs neste sen­tido') , mas permanece o fato de que existem dirigentes e dirigi­dos, governantes e governados. Em virtude disto, resta ver apossibílidade de como dirigir do modo mais eficaz (dados cer­_tos fins) , de como preparar da melhor maneira os dirigentes(e nisto precisamente consiste a primeira secáo da" ciencia earte políticas), e como, de outro lado, identificar as linhas demenor resistencia ou racionais para alcancar a obediencia dosdirigidos ou governados. Ao formar-se o dirigente, é funda­mental a premissa: pretende-se que existam sempre governadose governantes, ou pretende-se criar as condicóes em que anecessidade dessa divisáo desaparees? Isto é, parte-se da pre­missa da divisáo perpétua do genero humano, ou ere-se que e1aé apenas um fato histórico, correspondente a certas condicóes?Entretanto, deve-se ver claramente que a divisáo entre gover­nados e governantes, embora, em última análise, refira-se a urnadivisáo de grupos sociais, todavía. existe, em virtude da formacomo as coisas sao, também no seio do mesmo grupo, inclusivesocialmente homogéneo; pode-se dizer, em certo sentido, queesta divisáo é urna criacáo da divisáo do trabalho, é um fatotécnico. Especulam sobre esta coexistencia de motivos todosos que véem em tudo apenas "técnica", necessidade "técnica",etc., para nao propor-se o problema fundamental.

Dado que no mesmo grupo existe a divisáo entre gover­nantes e governados, é necessário fixar alguns princípios inder­rogáveis. Exatamente neste terreno ocorrem os "erres" maisgraves, isto é, manifestam-se as incapacidades mais criminosas,mais difíceis de endireitar. Cré-se que, estabelecido o princípio,do mesmo grupo, a obediencia deva ser automática, deva ocor­rer sem necessidade nao só de urna demonstracáo de "necessi­dade" e racionalidade, mas seja indiscutível (alguns pensam, eisto é o pior, que a obediencia "virá" sem ser solicitada, semque seja indicado o caminho a seguir). Assim, é difícil extirparo cadornismo dos dirigentes, isto é, a conviccáo de que urnacoisa será feita porque o dirigente considera justo e racionalque ela seja feita .Se nao é feita, "a culpa" é lancada sobrequem "deveria fazé-la", etc. Desse modo, torna-se difícil extir-

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11III

tos. fóssem utilizados como instrumentos para manter a anar­quia dos b.ar6es ~ontra as ~~ntativas. inovadoras da monarquia,a qual ?e~Ia apoiar-se nos maltrapilhos", na ausencia de urna~urguesI~. É compreensível que o programa e a tendencia ah~a.r a cidade ao campo pudessem ter apenas urna expressáomilitar, sabendo-se que o jacobinismo francés seria inexplicávelsem o pressuposto da cultura fisiocrática, coma sua demons­tra<;~o da importáncia económica e cultural do agricultor • Asteo.rIas economicas de Maquiavel foram estudadas por Gino~nas .(em A~,:ali d'Econon:ia da Universidade Bocconi), mase preciso verificar se Maquiavel teve teorias económicas. Tra­ta-se de ver se a linguagem essencialmente política de Maquia­vel p~od~ ser traduzida em termos económicos, e a qual sistemaeCO?OmICO pode .s.er reduzida. Ver se Maquiavel,-que viveu nope~lOdo mercantIlis~a~ pohticamente precedeu os tempos e an­tecípou algumas exigencias que posteriormente encontraram suaexpressáo nos fisiocratas.s, Elementos de polí~íca. Deve-se dizer que os primeiros ele­mentos a serem esquecidos foram exatamente os primeiros ele­me?tos, as. c~i~as mais elementares; estas, por outro lado, re­petíndo-se infinitas vezes, transformam-se nos pilares da políticae de qualquer acáo coletiva.

Primeiro .e!emento é a existencia real de governados egovernantes, dirigentes e dirigidos. Toda a ciéncia e arte polí-

1 • Recordar o estudo de ANTONIO PANELLA, Gli antimachiavellici, pu­bhcado no Marzocco de 1927 (ou também em 26?, em . onze artigos},observar como Panella julga Bodin em confronto cO,m Maquiavel ~'co~o .o proplema. do antimaquiavelismo é apresentado em geral, (Ospnmeiros tres artígos foram publícados iem 1926, os outros em 1927.-N.eL)2 R~usseau ~eria sido possÍ,:"e} sem a cultura fisiocrática? Nao me pa­rece Justo, afirmar que os físíocratas tenham representado meros inte­resses agrícolas e que só com a economia c1ássica afírmem-se os inte­resses do cap~t~lismo urbano. (?s fisiocratas representam a rupturacom o mercantilismo e com o regime das corporacñes e constituem urnafase para se chegar a economia clássíca . Mas, exatamente por isso, pa­rece-me que eles representam uma sociedade futura muito mais com­plexa d? qu.e aquela contra a q~al c~mbatem e do que aquela queresulta .lmedl~ta~ente das s~as afirmacóes . A sua línguagem está bas­tante ligada a epoca e expnme a .contradíoño imediata entre cidade eca~po, mas, faz ,prever um "alargamento do capitalismo na direcáo daagricultura. A formula do deixar fazer, deixar passar", isto é da Ií­berdade i~~ustrial ede iniciativa, nao está certamente ligada 'a ínte­resses agranos.

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par o hábito criminoso do desleixo em evitar os sacrifícios inú­teis. Entretanto, o senso comum unostra que a maior partedos desastres coletivos (políticos) ocorrem por nao ter-se pro­curado evitar o sacrifício inútil,ou porque se mostrou naolevar em conta o sacrifício dos outros, jogando-se com as -suasvidas. Todos já ouviram oficiais que estiveram nas trincheirascontar ~omo rea~n:ente os soldados arríscavam a vida quandoera mais necessano. Mas como, ao contrário, se rebelavamquando se sentiam abandonados. Por exemplo: uma companhiae:.a cap~z de jejuar muitos dias quando sabia que os víveresnao podiam chegar por motivo de forca maior; mas amotinava­se ~e nao recebesseapenas uma refeicáo por desleixo, buro­cratísmo, etc.

. ~~te pri~cípio estende-se a todas as acóes que exigemsacn~clOs . EIS por que, antes ~e tudo é sempre necessário,depoís de qualquer reves, exammar as responsabilidades dos~irigent~s" e isto nu~ sentido restrito (por exemplo: uma frentee constituida de murtas secóes, e cada secáo tem os seus diri­gent~s: É possível que os responsáveis por urna derrota sejamos dirigentes de urna secáo, mas trata-se de mais e de menosporém jamáis de exclusáo de responsabilidades para qualquerum).,

Estabelecido o princípio de que existem dirigidos e di;i­gentes, governantes e governados, verifica-se que os "partidos"sao ate agora o modo mais adequado para aperfeicoar os diri­gentes e a capacidade de. dire.c;ao (os partidos podem-se apre­sen~ar ~ob os nomes mais diversos, mesmo sob o nome deantípartido e de "negacáo dos partidos"; na realidade, até oschamados "individualistas" S2[0 homens de partido só que pre­tenderiam ser "chefes de partido" pela graca de Deus ou pelaimbecilidade dos que os seguem).

" " l?esenvolvi~ento .do conceito geral co~tid.o. na expressñoesp~nto ~stat~l . Esta expressao tem um significado bastante

pr~cIso, históricamente determinado. Mas,' surge o problema:existe algo. semelhante ao que se denomina "espírito .estatal"num movimento sério, que nao seja .a expressáo arbitrária deindividualismos mais ou menos justificados? Contudo, o "espíritoestatal" pressup6e a continuidade, tanto no que se refere aopassado, a' tradicáo, como no que se refere ao futuro. Isto é:

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pressup6e cada ato como o momento de um processocomplexo,já iniciado e que continuará. A responsabilidade deste processo,de ser atar deste processo, a solidariedade para com .forcasmaterialmente "ignotas", mas que apesar disso revelam-se ope-

., rantes e ativas e que sao levadas em conta como se fossem"materiais" e presentes corporalmente, é o que se denomina,exatamente, em certos casos, "espírito estatal". É evidente quetal consciencia do "tempo" deve ser concreta, e nao abstrata,

., em certo sentido, nao deve ultrapassar determinados limites.Admitamos que os limites mais estreitos sejam urna geracáoprecedente e urna geracáo futura, o que nao é pouco, pois asgeracóes seráo avaliadas, nao a contar de trinta anos antes etrinta anos depois de hoje, mas orgánicamente, em sentido his­tórico, o que em relacáo ao passado, pelo menos, é fácil decompreender. Sentimo-nos solidários com os homens que hojesao velhíssimos e que para nós representam o "passado" queainda vive entre nós, que deve ser conhecido e examinado, poisé ele um dos elementos do presente e das premissas do futuro;e com as criancas, com as geracóes que estáo nascendo e eres­cendo, pelas quais somos responsáveis. (É outro o "culto" da"tradicáo", que tem um valor tendencioso, implica urna opcáoe um objetivo determinado, baseia-se numa ideologia.) Mas,se se pode afirmar que um "espírito estatal" assim compreen­dido está em tudo, é necessário lutar permanentemente .contradeformacóes ou desvios que nele se manifestam.

O "gesto pelo gesto", a luta pela luta, etc., e especialmenteo individualismo estreito e mesquinho, que nao passa de urnasatisfacáo caprichosa de impulsos momentáneos, etc. (Na rea­lidade, o ponto é sempre aquele do "apoliticismo" italiano, queassume estas várias formas pitorescas e bizarras.) O individua­lismo é apenas apoliticismo animalesco, o sectarismo é "apoli­ticismo". Efetivamente, se se observar bem, o sectarismo é urnaforma de "clientela" pessoal na medida em que está ausente oespírito de partido, elemento fundamental do "espírito estatal".Demonstrar que o espírito de partido é o elemento fundamentaldo espírito estatal é um dos argumentos mais elevados a seremsustentados, e da maior importancia; vice-versa, o "individua­lismo" é um elemento animalesco, "apreciado pelos forasteiros",como os atos dos habitantes de um jardim zoológico.

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o partido político. Afirmou-se que o protagonista do novoPríncipe nao poderia ser, na época moderna, um herói pessoal,mas o partido político. Isto é: sempre e nas diferentes relacóesinternas das diversas nacóes, aquele determinado partido quepretende (e está racional e historicamente destinado a este fim)fundar um .novo tipo de Estado.

É necessário observar como nos regimes totalitários a fun­~ao tradicional do instituto da Coroa é, na realidade, absorvidapor um determinado partido, que é totalitário exatamente por­que assume tal funcáo , Embora cada partido seja aexpressáode um grupo social e de urn só grupo social,ocorre que, emdeterminadas condicóes, determinados partidos representam umgrupo social'na medida em que exercem urna funcáo de equilí­brio e de arbitragem entre os interesses do seu grupo e os outrosgrupos, e na medida em que buscam fazer com que o desenvol­vimento do grupo representado se processe com o consentimen­to e com a ajuda dos grupos aliados, e muitas vézes dos gruposdecididamente inimigos, A fórmula constitucional do rei ou dopresidente da república que "reina mas nao governa" é a fór­mula jurídica que exprime esta funcáo de arbitragem e a preo­cupacáo dos partidos constitucionais de nao "descobrir" a coroaou presidente; as fórmulas sobre a náo-responsabilidade para osatos governamentais do chefe de Estado, mas sobre a respon­sabilidade ministerial, sao a casuística do princípio geral detutela da concepcáo da unidade estatal e do consentimento dosgovernados a acño estatal, qualquer que seja o pessoal imediatodo governo e o seu partido.

No caso do partido totalitário, estas fórmulas perdem oseu significado, levando a minimizacáo do papel das instituicóesque funcionavam segundo as referidas fórmulas; mas a própriafun~ao é incorporada pelo partido, que exaltará o conceitoabstrato de "Estado" e procurará de várias maneiras dar a im­pressáo de que a funcáo de "forca imparcial" continua ativa eeficaz. .

Será necessária a acáo política (no sentido estrito) paraque se possa falar de "partido político"? Observa-se que nomundo .moderno, em muitos países, os partidos orgánicos efundamentais se dividiram, por necessidade de luta ou por qual­quer outra razáo, em fracóes que assumiram o nome de "parti­do" e, inclusive, de partido independente , Por isso, muitas ve­zes o Estado-Maior intelectual do partido orgánico nao pertence

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a nenhuma das fracóes, mas opera como se fosse urna forcadirigente superior aos partidos e as vezes reconhecida c?mo talpelo público ,Esta funcáo pode. ser estudada c~m maior pre­cisáo se se parte do ponto de VIsta de que um Jorn~l (ou ~m

grupo de jornais), uma revista (ou um grupo de revistas), saotambém eles "partidos", "fracóesde partido". ou "funcóes deum determinado partido". Veja-se a funcáo do Times na In­glaterra, a que teve o Corriere delta Sera na Itália, J também,a funcáo da chamada "imprensa de informacáo", supo.stamente"apolítica", e até a funcáo da imprensa esportiva e da I~prensa

técnica. De resto, o fenómeno apresenta aspectos interes­santes nos países onde existe um partido único e total~­

tário de govérno; pois tal partido nao desempenha maisfuncóes simplesmente políticas, mas só técnicas, de yropa~~nda;de polícia, de influencia moral e cultural. .A func;:a~ p01lt~ca eindireta, pois se nao existem outros partidos legais, ~xIstem

sempre outros partidos de fato e tendencias legalmente mcoer­cíveis, contra os quais a polémica e a luta é t~avada como senum jogo de cabra-cega. De qualquer modo, e certo que emtais partidos. as funcñes culturais predominam, dando lugar aurna linguagem política de jargáo: isto é" as quest6e~ pol!tic~s

revestem-se de formas culturais e como tal se tornam insolúveis.Mas um partido tradicional tem um caráter essencial "indi­

reto,": apresenta-se 'explícitamente como puramente "educativo:'(lucus, etc.), moralista, de cultura (sic). É o movimento 11­bertário Inclusive a chamada acáo direta (terrorista) é con­cebida ~omo "propaganda" através do exemplo. A partir. daíé possível ainda reforcar a opiniáo de que o movimento ~ber­tário nao é autónomo, mas vive a margem dos outros partidos,"para educá-los". "P?de-se falar d~ um ::libert~r~sm~" ineren~ea cada partido orgamco. (O que sao o~ Hb~rta~lOs I~telectuaIs

ou cerebrais" se nao um aspecto desse marginalismo em rela­~ao aos grandes partidos .dos "grupos sociais do~in~~tes?). Aprópria "seita dos economistas era um aspecto, histórico destefenómeno.

-Portanto apresentam-se duas formas de "partido" que,como tal, ao que parece, fazem abstracáo da acáo política ime­diata: o partido constituído por urna élite de ~omens de cultura,que tém a funcáo de dirigir d? ponto de vl~ta da. cultura, daideologia geral, um grande movIme~to de ~al:tIdos afins .(na ,rea­lidade, fracóes de um mesmo partido orgamco); e, no penodo

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mais recente, o partido de nao-élite, mas de massas, que comomassas nao tém outra funcáo política que a de urna fidelidadegenérica, de tipo militar, a um centro político visível ou invisí­vel (freqüentemente o centro visível é o mecanismo de coman­do de fórcas q~e nao desejam mostrar-se a plena luz, mas ape­nas operar indiretamente por interposta pessoa e por "inter­posta ideologia"). A massa é simplesmente de "manobra" e é"conquistada" com pregacóes morais, estímulos sentimentaismitos messianico~ ~e expe~:t~t~va de idades fabulosas, nas quai~todas as contradicóes e misenas do presente seráo automática­mente resolvidas e sanadas.

Para se escrever a história de um partido político, é neces­sário enfrentar toda uma séríe de problemas muito menos sim­ples do que pensa, por exemplo, Roberto Michels consideradoum especialista no assunto . O que é a história de' um partido?~erá a mera narracáo da vida interna de uma organízacáo polí­tica? Como nasce, os primeiros grupos que a constituem aspolémicas ideológicas através dasquais se elabora o seu ~ro­grama e a sua concepcáo do mundo e da vida? Tratar-se-ia,neste caso, da história de grupos intelectuais restritos, e algumasvezes da biografia política de umindivíduo. Lago, a moldurado quadro deverá ser mais vasta e compreensiva.

Dever-se-á escrever a história de uma determinada massade ~omens que seguiu os promotores, amparou-os com a suaconfíanca, com a sua lealdade, com a sua disciplina, ou que oscriticou "realisticamente", dispersando-se ou permanecendopassiva diante de algumas iniciativas. Mas será esta massa cons­tuída apenas pelos adeptos do partido? S~rá suficiente acompa­nhar .o~ congressos, as vot:a9Ü~s,.:etc., i~to é, todo o conjuntode atividades e de modos de: existir atraves dos quais urna massade partido manifesta a sua vontade? Evidentemente será neces­sário levar .em conta o grupo social do qual o partido é expressáoe s~tor ~aIs avancado .. L~~o, a história de um partido nao po­dera deixar de ser a história de um determinado grupo social.~as. este gr.?po nao é isolado; tem amigos, afins, adversários,mmngos . So do quadro complexo de todo O, conjunto social eestatal (e freqüentemente com interferencias internacionais) re­sl;lltará a história de um determinado partido. Assim, pode-sédizer que escrever a história de um partido significa exatamenteescrever a história geral de um país, de um ponto de vistamonográfico, destacando um seu aspecto característico. Um

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partido terá maior ou menor significado e peso na medida emque a sua atividade particular pese mais 011 menos na determi­nacáo da história de um país.

Dessa forma, chegamos a conclusáo de que do modo deescrever a história de um partido resulta o c~nceito que se temdaquilo que é e deva 'ser um partido , O. sectário exaltará os

.pequenos fatos internos, que teráo para ele um significado eso­térico, impregnando-o de um entusiasmo místico; o historiador,

- mesmo- dando a cada coisa a importancia que tem no quadrogeral, acentuará sobretudo a eficiencia real do partido, a suaforca determinante, positiva e negativa, a sua contribuicáo paracriar um acontecimento e também para impedir que outrosacontecímentos se verifiquem.

O desejo de saber exatamente quando um partido se Ior­mou, isto é, quando assumiu urna missáo precisa e permanente,dá lugar a muitas discussóes e freqüentemente gera também umaforma de bazófia que nao é menos ridícula e perigosa do que a"bazófia das nacóes", a qual Vico se refere. Na verdade, pode­se dizer que um partido jamais se completa e se forma, no sen­tido de que cada desenvolvimento cria novas missóes e encargose no sentido de que, para determinados partidos, é verdadeiroo paradoxo de que eles só se completam e se formamquandodeixam de existir, isto é, quando a sua existencia se tornouhistóricamente inútil. Assim, como cada partido nao é maisque urna nomenclatura de classe, é evidente que, para o partidoque se propóe anular a divisáo em classes, a sua perfeicáo eacabamento consiste em nao existir mais, porque já nao existemclasses e, portanto, a sua expressáo. Mas, no caso presente, re­ferimo-nos a .um momento particular deste processo de desen­volvimento: ao momento posterior áquele em queum fato podeexistir e pode nao existir, no sentido de que a necessidade dasua existencia ainda nao se tornou "peremptória", mas dependeem "grande parte" da existencia de pessoas de extraordináriopoder volitivo e de extraordinária vontade ,

Em que momento um partido torna-se históricamente "ne­cessário"? No momento em que as condicóes do seu "triunfo",da sua infalível transformacáo em Estado estáo, pelo menos,em vias de forrnacáo e levam a prever normalmente o seu de­senvolvimento ulterior. Mas quando é 'possível dizer, em taiscondicóes, que um partido nao pode ser destruído por meios

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normais? Para responder a isto é necessário desenvolver umraciocínio. Para que um partido exista é obrigatória a confluen­cia de tres elementos fundamentais (tres grupos· de elementos):

. ~. !lm, elemen~o difuso, de homenscomuns, médios, cujapartlClpa5~0 e .ofereclda pela disciplina e pela fidelidade, nao~elo e~pmt? ~r!ad<?r e altamente orgaríízativo , Sem eles o par­t~do nao e,XIstIr!a, e ~e:~ad,~; mas ta.II!bémé verdade que o par­tido tambem nao existiria somente" com eles. Eles constituemum~ forca .na. n;tedida em que existe algo que os centraliza, or­gamza e disciplina; mas na ausencia dessa fórca eles se disper­sanam e anulariam numa poeira impotente. Nao se nega que'cada u~ desses elementos pode-se transformar numa das forcasde coesao; mas falamos deles exatamente no momento em quenao o sao e nao estáo em condicóes de se-lo e se o sao é sónum círculo restríto, poIi:ticamente ineficiente'e inconseqüente.

2... :~ .. elemento de coesáo principal, que centraliza nocampo nacional, que torna eficiente e poderoso um conjunto detorcas que.' abandonadas a si mesmas, representariam zeró oupouco mais; este elementu é dotado deuma forca altamente~oesi~a, ce~tralizadora e disciplinadora e, também, talvez porIStO, inventiva (se se entendle "inventiva"· em certo sentido se­gundo~eterminad~s linhas de .fór~a, determinadas perspectivas,e tambem _determIna.das premissas) . É verdade que, só, esteele~~nto nao forn~ana. o partido, embora servisse para formá-lomais do que o pnmeiro elemento considerado. Fala-se de ca­pitáes sem exército, mas, na realidade, é mais fácil formar um~~érc~to do ~ue capi!aes. Tanto isto é ve!~ade que um exércitoJ~ e~stente e destruido se faltam os capítáes, enquanto a exis­téncia de um grupo de capitáes, unidos, de acórdo entre elescom objetivos comuns, nao demora ªJ.6rmar um exército inclu-sive onde ele nao existe. . , '

3 . Um elemento médio, que articule o primeiro com osegundo elemento, colocando-os em contato nao só "físico"mas moral e intelectual. Na realidade, para cada partido exis~tem "proporcóes definidas" entre estés elementos e o máximod: efici~ncia é alcancado quando tais "prC'por~6es definidas"sao realizadas.

_ Dadas estas consideracñes, pode-se dizer que um partidonao p()~e ser destruído por meios normais quando, existindonece,ssan~~en~e o segundo elemento, cujo nascimento está liga­do a existencia das condicóes materiais objetivas (e, se este

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segundo elemento nao existe, todo raciocinio é vazio) mesmodispersas, os outros dois inevitavelmente devem-se f~i:mar oprimeiro, que obrigatoriamente forma o terceiro como continua­cáo dele e seu meio de expressáo . I

Para que isto ocorra é preciso que se tenha criado a con­.v~c~.ao férrea de que urna determinada solucáo dos problemasvítaís torna-se necessária .. Sem esta conviccáo nao se formaráo segundo elemento, cuja destruicáo é mais fácil em virtude doseu número escasso; mas é necessário que este segundo elemen­to, se destruído, deixe como heranca um fermento a partir doq~al volte a se formar. E este fermento subsistirá melhor, eainda melhor se formará, no primeiro e no terceiro elementosque .s~ homoge~am mais com o segundo. Em virtude disso:a atividade do segundo elemento para constituir este elementoé fundamental. O critério parase julgar este segundo elementodeve ser procurado: 1) naquilo que realmente faz; 2) naquiloque prepara na hipótese da sua destruícáo , É difícil dizer qualentre os dois fatos é o mais importante. Jáque na luta deve-se~empre prever a _der.rota, a preparacáo dos próprios sucessorese um elemento tao Importante quanto tudo o que se faz paravencer.

A propósito da "bazófia" do partido, pode-se dizer queela é pior do que a "bazófia das nacóes", á.qual Vico se refere.Por que? Porque urna nacáo nao pode nao existir, e no fatode queela existe é sempre possível, mesmo recorrendo a boavontade e 'solicitando .os textos, achar que a existencia. é plenade destino e de significacáo . Vm partido, ao contrárioc .nñopode existir por forca própria. Jamais devemos ignorar que, naluta entre as nacñes; cad,a urna delas tem interesse em que aoutra se enfraqueca atraves das lutas internas e que. os partidossao exatamente os elementos das lutas internas. Portanto, no quese refere aos partidos é sempre possível perguntar se eles exis­tem por forca própria, como necessidade intrínseca, ou se exis­tem apenas em virtude deiriteresses outros (efetivamente, naspolémicas, este ponto jamais éesquecido; ao contrário, é moti­vo de insistencia, 'especialmente quando a resposta nao é dúbia,o. que significa que é levado em conta e suscita dúvidas).Éclaro que. quem se deixasse torturar poressa dúvida seria umtolo. Politicamente, a. questáo só tem um relevo momentáneo.Na história do chamado princípio de nacionalidade, as ínter­vencóes estrangeiras a favor dos partidos nacionais que pertur-

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bavam a ordem interna dos Estados antagonistas sao numero-. sas, tanto que quando se fala, por exemplo, da política "orien­tal" de Cavour, pergunta-se se se tratava de urna "política",isto é, de urna linha de acáo permanente, ou de um estratage­ma momentáneo para enfraquecer a Austria, tendo em vista1859 e 1866. Assim, nos movimentos mazinianos de 1870(exemplo, o fato Barsanti) ve-se. a intervencáo de Bismarckque, em virtude da guerra com a Franca e do perigode urnaalianca ítalo-francesa, pensava enfraquecer a Itália com con­flitos internos. Também nos acontecimentos de 1914, algunsvéem a intervencáo do Estado-Maior austríaco, preocupado coma guerra que estava para vir. Como' se Ve, os casos sao nu­merosos, e é necessário ter idéias claras a respeito. Admitindo­se que,quando se faz qualquer coisa, sempre se faz o jógo dealguém, o importante é procurar de todos os modos fazer bemo próprio jogo, isto é, vencer completamente. De qualquer for­ma, é necessário desprezar a "bazófia" do partido e substituí-lapor fatos concretos. Ouem substitui os fatos concretos pelabazófia, ou faz a política da bazófia, deve ser indubitavelmentesuspeito de pouca seriedade. Nao é necessário acrescentar que,no que se refere aos partidos, épreciso evitar também a aparen­cia "justificada" de que se esteja fazendo o jogo de alguém,especialmente se. este alguém é um Estado estrangeiro; se de­pois ainda se especular sobre isso, ninguém pode evitá-lo ,

:É difícil afirmar que um partido político (dos grupos do­minantes, e. também de grupos subalternos) nao exerce funcñes'de polícia, isto é, de tutela de urna determinada ordem políticae legal. Se isto fosse demonstrado taxativamente, a questáo de­veria ser colocada em outros termos: sobre os modos e as dire­cóes através dos quais se exerce essafuncáo , O sentido é re­pressivo ou díñisivo, isto é, reacionário ou progressista? Umdeterminado partido exerce a sua funcáo de polícia para con­servar urna orderri externa, extrínseca, cadeia das torcas vivasda História, ou a exerce nura sentido que tende a levar o povoa um novo nível de civilízacáo, da qual a ordem política e legalé urna expressáo programática? Efetívamente, urna lei en­contra quem a infringe: 1) entre os elementos sociais reacio­nários que a lei destronou; 2) entre os elémentos progressistásque a lei comprime; 3) entre os elementos que nao alcancaramo nível de civilízacáo que a lei pode representar. Portanto, afuncáo de polícia de um partido pode ser progressista ou rea-

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cionária: progressista quando tende a manter na órbita da lega­lidade as forcas reacionárias alijadas do poder e a elevar aonível da nova legalidade as massas atrasadas. :É reacionáriaquando tende a comprimir as tor~as vivas da História e a man­ter urna legalidade ultrapassada, anti-histórica, tornada extrín­seca. De resto, o funcionamento de um determinado partido'fornece critérios discriminantes: quando o partido é progressista

. funciona "democraticamente" (no sentido de um centralismodemocrático); quando o partido é reacionário funciona "buro­craticamente" (no sentido de um centralismo burocrático). Nosegundo caso, o partido é puro executor, nao deliberante: entáoé técnicamente um órgáo de polícia, e o seu nome de "partidopolítico" é urna pura metáfora de caráter mitológico.

Industriais e agricultores. Tém os grandes industriais umpartido político permanente próprio? Na minha opiniáo, a res­posta deve ser negativa. Os grandes industriáis utilizam alter­nadamente todos os partidos existentes, mas nao tém u111 par­tido próprio. Por isso eles nao sao absolutamente "agnósticos"ou "apolíticos": o seu interesse é um equilíbrio determinado,que obtémexatamente reforcando com osseus meios, alterna­damente, este ou aquele partido do tabuleiro político (a exce­~ao, entenda-se, do único partido antagonista, cujo reforcamentonao pode ser ajudado nem mesmo por manobra tática). En­tretanto, se é verdade que isto ocorre na vida "normal", noscasos extremos, que afinal sao aque1es que contam (como aguerra na vida nacional), o partido dos industriais é o mesmodos agricultores, os quais, ao contrário, tém um partido perma­nente. Pode-se exemplificar esta nota com a Inglaterra, ondeo Partido Conservador absorveu o Partido Liberal, tradicional­mente considerado como o partido dos industriais.

A sítuacáo inglesa, com as suas grandes Trade Unions,explica este fato. Na Inglaterra nao existe formalmente umpartido adversário dos industriais em grande estilo, é certo; masexístem as organizacóes operárias de massas, e viu-se como elas,nos momentos decisivos, transformaram-se constitucionalmentede baixo para cima, rómpendo o invólucro burocrático (exem­plos, em 1919 e 1926). Além do mais, existem estreitos inte­resses permanentes entre agricultores e industriais (especiaImen-

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te agora que o protecionismo se tornou geral, agrícola e indus­trial); e é inegável que os agricultores sao "politicamente"muito melhor organizados do que os industriais, atraem mais osintelectuais, sao mais "permanentes", nas suas diretrizes, etc. Asorte dos partidos "industriais" tradicíonais, como o "liberal­radical" ingles e o radical francés (que sempre se diferencioumuito do primeiro), é interessante (da mesma forma que o"radical italiano", de boa memória). O que representavam eles?Um conjunto de classes, grandes e pequenas,e nao apenas urnaclasse. Daí surgirem e desaparecerem freqüentemente . Amassa de "manobra" era fome cida pela classe menor, que sem­pre se manteve em condicóes diversas no conjunto, até trans­formar-se completamente. Hoje ela fome ce a massa aos "par­tidos demagógicos", o que se compreende.

Em geral, pode-se dizer que, nesta história dos partidos, acomparacáo entre os vários países é das mais instrutivas e de­cisivas para se localizar a origem das causas de transformacáo.O que vale também para as polémicas entre os partidos dospaíses "tradicionais", onde estáo representados "retalhos" detodo o "catálogo" histórico.

Eis um critério primordial de julgamento tanto para asconcepcóes do mundo, como, e especialmente, para as atitudespráticas: a concepcáo do mundo ou o ato' prático pode serconcebido "isolado","independente" e assumindo toda a res­ponsabilidade da vida coletiva; ou isto é impossível, e a con­cepcáo do mundo ou o ato prático pode ser concebido como"integracáo", aperfeícoamento, contrapeso, etc., de outra con­cepcáo do mundo ou atitude prática. Refletindo-se, percebe-seque' este. critério é decisivo para um julgamento ideal sobre osimpulsos ideais e os impulsos práticos; percebe-se também queseu alcance prático nao é pequeno .

Urna das criacóes mais cornuns é aquela que acredita ser"natural" que tudo o que existe deve existir, nao pode deixarde existir, e que as próprias tentativas ,de reforma, por pior queandem, nao interromperáo a vida; as forcas tradicionais pros­seguíráo atuando, e a vida continuará. É claro que neste modode pensar há algo de justo; e ai se nao fosse assim! Entretanto,a partir de um determinado limite, este modo de pensar torna­se perigoso (certos casos da política do pior) e, de qualquermodo, como se disse, subsiste o critério de julgamento filosó­fico; político e histórico . Na realidade, se se observa a fundo,

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determinados movimentos concebem a si mesmos apenas comomarginais: pressupóem um mogimento principal no qual se in­serem para reformar determinados males, pretensos ou verda­deiros; isto é, sao movimentos puramente reformistas.

Éste princípio tem importancia política porque a verdade'teórica de que cada classe possui apenas um partido é demons-

, trada, nos momentos decisivos, pela uniáo cm bloco de agrupa­mentos diversos que se apresentavam como partidos "indepen­dentes". A multiplicidade existente antes era apenas de caráter"reformista", refería-se a questóes parciais. Em certo sentido,era urna divisáo do trabalho político (útil nos seus limites),mas urna parte pressupunha a outra, tanto que nos momentosdecisivos, .quando as questóes principais foram colocadas emjogo, formou-se a unidade, criou-se o bloco. Daí a conclusáode que, na construcáo do partido, é necessário se basear numcaráter "monolítico", e nao em questóes secundárias: daí.a ne­cessidade de se prestar atencáo a existencia de homogeneidadeentre dirigentes e dirigidos, entre chefes e massa. Se" nos mo­mentos decisivos, os chefes passam ao seu "verdadeiro partido",as massas ficam desamparadas, inertes e sem eficácia. Pode-sedizer que nenhum movimento real adquire consciencia da suatotalidade de um golpe.. mas só por experiencia sucessiva; isto4, quando percebe através dos fatos que nada do 'que Ihe épróprio é natural (no sentido extravagante da palavra), masexiste porque surgem determinadas condicñes cujo desapareci­mento nao permanece sem conseqüéncias , Assim, o movimentose aperfeicoa, perde os elementos de arbitrariedade, de" "sim­biose" e torna-se verdadeiramente independente na medida emque, para obter determinadas conseqüéncias, cria as premissasnecessárias. Mais ainda, empenha todas as suas fórcas nacria­cáo dessas premissas.

Alguns aspectos teóricos e práticos do "economismo":Economismo - movimento teórico pela livre troca - sindica­lismo teórico. Deve-se ver em que medida o sindicalismo teó­rico se originou da teoria da praxis e em que medida derivoudas doutrinaseconómicas da livre troca, do liberalismo. Porissoé necessário ver se o economismo, na sua forma mais acaba­da, nao passa de urna filiacáo direta doliberalisino, tendo m~n­tido, inclusive na sua origem, bem poucas relacóes com a filo-

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sofia da praxis; relacñes de qualquer modo apenas extrínsecase puramente verbais.

A partir deste ponto de vista é que se deve encarar a po­Iémica Einaudi-Croce,> sugerida pelo novo prefácio (1917) aolivro sobre o Materialismo Storico . A exigencia, projetada porEinaudi, de levar em conta a literatura de história económicasuscitada pela economia clássica inglesa, pode ser satisfeita nestesentido: tal literatura, através de uma contaminacáo superfi­cial com a filosofia da praxis, originou o economismo; por isso,quando Einaudi critica (na verdade, de modo impreciso) algu­mas degeneracóes economistas, nao faz mais do que atirar pe~

drasnum pombal , O nexo entre ideologias dalivre troca e sin­dicalismo teórico é especialniente evidente na Itália, onde é co­nhecida a admiraeáo devotada a Pareto por sindicalistas comoLanzillo e C. Entretanto, o significado destas duas tendenciasé bastante diversor o primeiro é próprio de um grupo socialdominante e dirigente; o segundo, de um grupo ainda subal­terno, que nao adquiriu consciencia da sua torca e das' suaspossibilidades e modos de se desenvolver e por isso nao sabesuperar a fase de primitivismo. .

A formulacáo do movimento da livre troca baseia-se numerro teórico do qual nao é difícil identificar a origem prática:a distincáo entre sociedade política e sociedade civil, que dedistincáo métodica se transforma e é apresentada como distin­erao orgánica. Assim, afirma-se que a atividade económica é

própria da sociedade civil e que o Estado nao deve intervir nasua regulamentacáo , Mas, como na realidade fatual sociedadecivil e Estado se identificarn, deve-se considerar que tambémo liberalismo é urna "regulamentacáo" de caráter estatal, fntro­duzida e mantida por caminhos legislativos e coercitivos: é umfato de vontade consciente dos próprios fins, e nao a expressáoespontánea, automática, do fato económico. Portanto .o libe­ralismo é um programa político, destinado a modificar: quandotriunfa, os dirigentes de um Estado e o programa. económico dopróprio Estado; isto é, a modificar a distribuicáo da renda na-

. cional.É diferente o caso do sindicalismo teórico, quando se re­

fere a um grupo subalterno. Através desta teoríaéle é impedidode se tornar dominante, de se desenvolver além da fase econó-

1 Cf. a Riforma Sociale, julho-ag6sto 1918, pág. 415. (N.e.!.)

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rr

mico-corporativa para alcancar a fase de hegemonia ético-polí­ticana sociedade civil e dominante no Estado. No que se refereao liberalismo, há o caso de uma fraerao do grupo dirigente quepretende modificar jnao a estrutura do Estado, mas apenas a

" orientacáo governamental; que pretende reformar a legislacáocomercial e só indiretamente a industrial (pois é ínegável que oprotecionismo, especialmente nos países de mercado pobre e

. restrito, limita a liberdade de iniciativa industrial e favorece osurgimento . de monopólios): trata-se de rotacáo dos partidosdirigentes no govérno, nao de fundacáo e organízacáo de urnanova sociedade civil. A questáo apresenta-se com maior com­plexidade no movimento do sindicalismo teórico; é inegável ql:!enele a independencia e a autonomia do grupo subalterno quediz exprimir sao sacrificadas a hegemonia intelectual do grupodominante, pois o sindicalismo teórico nao passa de um aspectodo liberalismo, justificado com algumas afírmacóes mutiladas,e por isso banalizadas da filosofia da praxis. Por que e como severifica este "sacrifício"? Exc1ui-se a transformacáo do gruposubordinado em dominante, seja porque o problema nem aomenos é formulado (fabianismo, De Man, parte notável dolaborismo), ou porque é apresentado sob formas incoerentes eineficazes (tendencias social-democratas em geral) ou porquedefende-se o salto imediato do regime dos grupos ao regime daperfeita igualdade e da economia sindical.

É pelo menos estraliha a atitude do economismo em re­laerao as expressóes de vontade, de aerao e de iniciativa políticae intelectual, como se estas nao fossem urna emanacño orgánicade necessidades económicas e, mais, a única expressño eñcíenteda economia; assim, é incoerente que a formulacáo concreta daquestáo hegemónica seja interpretada como um fato que SUDor.:.dina o grupo hegemónico. O fato da hegemonia pressupóe índu­bítávelmente que se deve levar em conta os interesses e astendencias dos grupos sobre os quais a hegemonía .§eíá~ifefcida;

que se forme certo equilibrio de compromísso, ist!i e¡ que' ogrupo dirigente faca sacrificios de ordem econórñieo-éorpora­tiva. Mas também é indubitável que os sacrificios e o compro­misso nao se' relacionam com o .essencial, pois .se a hegemoníaé ético-política. também é económica; náo pode deixar de sefundamentar na funerao decisiva que o grupo dirigente exerceno núcleo decisivo da atividade económica...•., ...

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. o economismo apresenta-se sob muitas outras formas alé~do liberalismo e do sindicalismo teórico. Pertencem a ele' todasas formas de abstencionismo eleitoral (exemplo típieo é o abs­tencionismo dos clericais italianos depois de 1870, que foiatenuando-se a partir de 1900, até 1919 e a formacáo do Parti­do Popular. A dístincáo orgánica que os clericais faziam entreItália real e Itália legal era urna reproducáo da distincáoent~e mundo económico e mundo político-legal), que saomuítas desde que se admita o semi-abstencionismo, um quarto,etc. Ao abstencionismo está ligada a fórmula do "quanto pior,melhor" e também a fórmula da chamada "intransigencia" par­lªmenta~ de ,alguma~ . fracóes_ de d~.putados. Nem sempre oecon~mIsmo e ~ontrano a acao P?httca e ao partido. político,considerado porem um mero organismo educador de tipo sindi­cal. Ponto de referencia para o estudo do cconomismo e paracompreender as relacóes entre estrutura e superestruturas é otrecho da Miséria da Filosoiia onde se afirma que urna faseimportante no desenvolvimento de um grupo social é aquela emque os membros de um sindicato nao lutam só pelos seus inte­resses económicos, mas na defesa e pelo desenvolvimento daprópria organizacáo.! Deve-se recordar também a afirmacáo de,Engels de que a economia só em "última análise" é a mola daHistó;ia (nas. d~as cartas sobre a filosofia da praxis, publicadastambem em Italiano), a qua! se ligadiretamente ao trecho doprefácio a Crítica da Economia Política, onde se diz que oshomens adquirem consciencia dos conflitos que se verificam nomundo económico no terreno das ideologias. .

1 Ve: a afírmacño exata; a Miséria da Filosofia é um momento.essencíal da forma<;a~ da filosofia da praxis; pode ser considera­da como o ~~se~volvlmento das Teses eobre Feuerbach, enquanto aS.agrada Famtlt;: e urna fase íntermediáría indistinta e de origem oca­s~onal, como dao a. e.ntender os. trechos dedicados a Proudhon e espe­cialmente ao materíalísmo frances:. O trecho sobre o materialismo fran­c~s é mais ~mcapítulo de hístóría da cultura que urna elaboraeáo teó­rIca,. ?omo e geralmente interpretado; e como história da cultura éadmírável , Recordar a observacáo que a crítica contida na Miséria daFilosofia cO,n?"a Proudh~n e ~ sua ínterpretacáo da dialética hegelianapode ser. v~lida para Cíobertí e para o hegelianismo dos liberais mo­derados italianos em geral.'. O paralelo Proudhon-Gioberti, nao obstanteeles represe~tarem fase histórico-políticas nao .homogéneas, mas exata­mente por ísto, pode ser ínteressante e fecundo.

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Em várias ocasi6es afirmou-se nestas notas' que a filosofiada praxis está muíto mais difuadida do que se pensa. A afir­macáo é exata desde que se entenda como difundido o econo­

"mismo histórico, que é como o Prof. Loria denomina agora assuas concepcóes mais ou menos desconjuntadas, e que, portanto,o ambiente cultural modificou-se completamente desde o tempoem 'que a filosofia da praxis inicioua sua luta; poder-se-ia dizer,com terminologia crociana, que 'a maior heresia surgida no seio

.da "religiáo da liberdade" sofreu, também ela, como a religiáoortodoxa, urna degeneracáo . Difundiu-se como "supersticáo",isto é, entrou em combinacáo com o liberalismo e produziu oeconomismo. Embora a religiáo ortodoxa tenha se estiolado de­finitivamente, é preciso ver se a supersticáo herética nao rnantevesempre um fermento que a fará renascer como religiáo superior,se as escórias de sugersticáo nao seráo facilmente liquidadas.

tiAlguns pontos característicos do economismo histórico: 1)

na busca dos nexos históricos nao se distingue aquilo que é

"relativamente permanente" daquilo que é flutuacáo ocasional;entende-se como fato económico o interesse pessoal ou de umpequeno grupo, num sentido imediato e "sordidamente judaico".Nao se leva em conta as formacóes de classe económica, corotodas as relacóes inerentes a elas, mas assume-se o interesse mes­quinho e usurário, especialtnente quando coincide com formasdelituosas contempladas nos códigos criminais; 2) a doutrinasegundo a qual o desenvolvimento económico é reduzido a su­cessáo de modificacóes técnicas nos instrumentos de trabalho.O Prof. Loria fez urna exposicáo brilhantíssima desta doutrinaaplicada no artigo sobre a influencia social do aeroplano, pu­blicado na Rassegna Contemporánea de 1912; 3) a. doutrinasegundo a qual o desenvolvimento económico e histórico depen­de imediatamente das' mudancas num determinado elementoimportante da producáo, da descoberta de urna nova matéria­prima, de uro novo combustível, etc.,. que trazem consigo aaplicacáo de novos métodos na construcáo e no acionamento dasmáquinas. Últimamente apareceu toda uma literatura sobre opetróleo: pode-se considerar como típico um artigode Antonio

1 Veja-seGRAMscI, Il materialismo storico e la filosofia di B. Crece( ed . brasileira, A Concepdio Dialética da História, trad. de CarlosNelson Coutinho, Ed. Cívílízaeño Brasileira, 1966. N. do' T.)

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Laviosa publicado na Nuova Antologia de 16 de maio de 1929.A descoberta de novos combustíveis e de novas energias mo­trizes, assim como de novas matérias-primas, tem ccrtamentegrande importancia porque pode modificar a posicáo dos Es­tados, mas nao determina o movimento histórico, etc.

Muitas vezes acontece que se combate o economismo his­tórico pensando combater o materialismo histórico. Por exem­plo, é este o caso de um artigo do A venir de Paris, de 10 deoutubro de 1930 (transcrito na Rassegna Settimanale dellaStampa Estera, de 21 de outubro de 1930, págs. 2303-2304),que transcrevemos como típico: "Dizemos há muito tempo, massobretudo depois da guerra, que as questóes de interesse domi­nam os POyOS e fazem o mundo avancar . Foram os marxistasque inventaram esta tese, sob o apelativo um pouco doutrináriode "materialismo histórico". No marxismo puro, os homenstomados' cm conjunto nao obedecem as paixóes, mas as neces­sidades económicas. A política é urna paixáo , A pátria é urnapaixáo . Estas duas idéias exigentes só desempenham na Histó­ria urna funcáo de aparencia, porque na realidade a vida dospOYOS, no curso dos séculos,é explicada através de um jogo

. cambiante e sempre renovado de causas de ordem material.A economia é tudo. Muitos :Eilósofos e economistas "burgueses"retomaram este estribilho. Eles assumem certo ar para explicar­nos através do curso do trigo, do petróleo ou da borracha, agrande política internacional. Esmeram-se em demonstrar-nosque toda a diplomacia é comandada por questóes de tarifasalfandegárias e de preces de custo. Estas explicacóes estáomuito na moda . Tém urna pequena aparencia científica e pro­cedem de urna espécie de ceticismo superior com pretensóes apassar por urna elegancia suprema. A paixáo em política ex­terna? O sentimento em questóes nacionais? Qual o que? Estamercadoria é boa para a gente comum. Os grandes espíritos,os iniciados sabem que tudo é dominado pelo dar e pelo receber.Ora, esta é urna pseudoverdade absoluta. É completamente falsoque os pOYOS só se deixam guiar por consideracóes de interessee é completamente verdadeiro que eles obedecem sobretudo aconsideracées ditadas por um desejo e por urna fé ardente deprestígio. Quem nao compreende isto nao compreende nada."A continuacáo do artigo (intitulado La mania del prestigio)exemplifica com a política alemñ e italiana, que seria de "pres­tígio", e nao ditada por ínteresses materiais. O artigo engloba,

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em poucas linhas, urna grande parte dos elementos mais banaisde polémica contra a filosoffada praxis" mas, na realidade, apolémica é contra o economismo desconjuntado de tipo loriano.Além do mais, o escritor nao é muito entendido na matéria,

. inclusive por outros aspectos: ele nao compreende que as "pai­xóes" podem ser simplesmente umsinónimo dos interesses eco­nómicos e que é difícil sustentar que a atividade política possaser um estado permanente de exasperacáo e de espasmo; exata-

. mente a política francesa é apresentada como de urna "racio­nalidade" sistemática e coerente, isto é, depurada de todos oselementos passionais, etc.

Na sua forma mais difundida de supersticáo economista,a filosofia da praxis perde urna grande parte da sua expansivi­dade cultural na esfera superior do grupo intelectual, tantoquanto adquire entre as massas populares e entre os intelectuaismedianos, que nao pretendem cansar o cérebro, mas pretendemparecer sabidíssimos, etc. Como disse Engels, é cómodo paramuitos acreditar que podem ter a baixo preco e semnenhumesforco, ao alcance da máo, toda a História e todo o saberpolítico e filosófico concentrados em algumas formulazinhas. Aignorancia de que a tese segundo a qual os homens adquiremconsciencia dos conflitos fundamentais no terreno das ideologiasnao é de caráter psicológico ou moralista, mas tem um caráterorgánico gnosiológico, criou a forma mentis de considerar a po­lítica e, portanto, a História, como um contínuo marché dedupes, um jogo de ilusionismos e de prestidigitacáo , A ativi­dade "crítica" reduziu-se a revelar truques, a' suscitar escanda­los, a tratar das miudezas dos homens representativos.

Olvidou-se assim que, sendo ou presumindo ser, tambémo "economismo" umcánone objetivo de interpretacáo (objetivo­científico), a pesquisa no sentido dos interesses imediatos de­veria ser válida para todos os aspectos da História, tanto paraos homens que representam a "tese" como para aqueles querepresentam a "antítese". Ignorou-se ainda outra proposicáodafilosofia da praxis: aquela segundo a qual as "crencas popula­res" ou as crencas do tipo das crencas populares tém a validadedas forcas materiais. Os erros de interpretacáo no sentido daspesquisas dos interesses "sordidamente judaicos" foram algumasvézes grosseiros e cómicos, de modo a reagir negativamente sobreo prestígio da doutrina original. Por isso é necessário combater

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o economismo nao só na teoria da historiografia, mas tambéme especialmente na teoria e na prática políticas. Neste. c~mpo,a luta pode e deve ser conduzida desenvolvendo o conceito dehegemonia, da mesma forma como fo~ condu~~da praticamenteno desenvolvimento da teoria do partldopohtlco. e no d~~en­

volvimento prático da vida de determinados yartldos pOhtlCO~

(a luta contra a teoria da chamada revolucáo pe~anente, aqual se contrapunha o conceito de dit.adura d~m~)Cratlc~-revolu­

cionária, a importancia que teve o apoio dado as ld~ologIas cons­tituintes, etc.). Poder-se-ia realizar urna p~sqUlsa so~re asopinióes emitidas a medida que se d~senvolvla~ determinadosrriovimentos políticos, tomando como tipo o movlmen!o boulan­gista (de 1886 a 1890), o processo Dreyfus, ou e?tao o po~pe

de Estado de 2 de dezembro (urna análise do hvro clássicosobre o 2 dedezembro;' para estudar a importancia relativa dofator económico imediato e o lugar que ocupa o estudo con­creto das "ideologias"). Diante destes acon~ecimentos, ~ ~~o­

nomismo se pergunta: a quem interessa im~dl~t~me~te ~ ml~Ia­tiva em questáo", e responde com um raCIOcmIO tao slmphstaquanto paralogístico.. Favorece de, im~diato a urna determmad~

fracáo do grupo dominante, e, para nao errar, esta escol~a recaisobre aquela fracáo que evidenteI?ente tem .urna func;aAo pro­gressista e de controle sobre o conjunto das Iorcas ~conomlcas.

Pode-se estar seguro de nao errar, porquenecessanamente, ~e

o movimento analisado chegar ao poder; cedo ou tarde a fracáoprogressista do grupo dominante acabará controla~?o o novogoverno e o transformará num instrumento para utilizar o apa­relho estatal em seu bene:Eício.

Trata-se, portanto, de urna infalibilidade m~ito gr~ss~ira

que nao só nao tem significado teórico, mas pO~SUl escassissimoalcance político e eficácia prática ..N? gera!, ,so. produz prega­eñes moralistas e contendas pes~oals mter~mavels. .auando severifica um movimento boulangista, ~ anahse deven~ ser CO?­duzida realistícamente segundo esta linha: 1) conteudo SOCIalda massa que adere ao movimento; 2) que p~pel desempenhavaesta massa no equilíbrio de forcas, que,Val-se transfo:mand~

como o novo movimento demonstra atraves do seu nascimento?

1 O Dezoíto Brumário de Luis Bonaparte, de Marx (edicáo brasileira,Editorial Vitória, 1961 - Marx e Engels, Obras Escolhidas, 1.0 volume.(N. do T.)

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'(

,3) qual O significado político e social das reivindícacóes que osdirigentes apresentam e que logo encontram apoio? a que exi­gencias efetivas correspondem? 4) exame da conformidade dosmeios ao fim proposto; 5) só em última análise, e apresentada

., sob forma política e nao moralista, desenha-se a hipátese dequé tal movimento necessariamente será desnaturado e serviráa outros fins que nao aqueles que as multidóes de seguidores.esperam . Ao contrário, esta hipótese é afirmada preventiva­mente, quando nenhum elemento concreto (que se apresente

, como tal através da evidencia dosenso comum, e nao gracasa urna análise "científica" esotérica) existe ainda para sufraga­la, de modo que ela se manifesta como uma acusacáo moralistade dubiedade e má-fé, ou de falta de sagacidade, de estupidez(para os seguidores). A luta política transforma-se, assim,'numa série de choques pessoais entre os espertalhóes, que guar­dam o diabo na ampola, e os que nao sao levados a sério pelospróprios dirigentes e recusam-se a se convencer em virtude dasua tolice. Além do mais, enquanto estes movimentos naoalqancarem o poder, pode-se sempre pensar que faliráo, e algunsefetivamente faliram (o próprio boulangismo, que faliu comotal e posteriormente foi esmagado pelo movimento dreyfusard;o movimento de George Valois e o movimento do generalGayda); logo, a pesquisa orienta-se no sentido da identificacáodos elementos de forca, mas também dos elementos de fraquezaque eles contém no seu interior: a hipótese "economista" afirmaum elemento imediato de forca, isto é, a disponibilidade de urnadeterminada quota financeíra direta ou indireta (um grandejornal que apóie o movimento, é também de urna contribuicáofinanceira indireta), e basta. Muito pouco. Também neste casoa análise dos diversos graus de relacáo de fotc;as só pode culmi­nar na esfera da hegemonia e das relacñes ético-políticas.

Um elemento que deve ser acrescentado como exemplifi­cacáo das teorias chamadas de intransigencia é aquele referentea rígida aversáo de princípio aoschamados compromissos, quetém como manífestacáo subordinada aquela que pode ser inti­tulada .o "medo' dos perigos". É evidente que a aversáo deprincípío aos compromissos está estreitamente vinculada ao eco­nomismo. Quanto a concepcáo sobre a qual sé baseia estaaversáo, ela reside indubitavelmente na conviccáo férrea de queexistem leis objetivas para o desenvolvimento histórico, com omesmo caráter das leis naturais, acrescentada da persuasáo de

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um finalismo fatalista semelhante ao fatalismo religioso. Jáque ascondicóes favoráveis fatalmente surgiráo e determinado,de modo um tanto misterioso, acontecimentos revigorantes, naosó se revelará inútil, mas danosa, qualquer iniciativa voluntariatendente a predispor estas situacóes segundo um plano. Aolado destas conviccóes fatalistas manifesta-se a tendencia a con­fiar "em seguida", cegamente e sem qualquer critério, na vir­tude reguladora das armas, o que nao deixa de ter certa lógicae coeréncia, pois acredita-se que a intervencáo da vontade éútil para a destruicáo, nao para a reconstrucáo (já em processono exato momento da destruicác) . A destruicáo é concebidamecanicamente, nao como destruicáo-reconstrucáo ,

Nestas maneiras de pensar nao se leva em conta o fator"tempo" e, em última análise, a própria "economía" no sentidode nao se compreender que os movimentos ideológicos de mas­sa estáo sempre atrasados em relacáo aos fenómenos económi­cos de massa e de que, portanto, em determinados momentos;o impulso automático devido ao fator económico é afrouxado,travado ou até destruído momentaneamente por elementos ideo­lógicos tradicionais; e que por isso deve haver luta conscientee determinada a fim de que se "compreenda" as exigénciasdaposicáo económica de massa que pode estar em contradicáo comas diretivas dos chefes tradicionais. Uma iniciativa política apro­priada é sempre necessária para libertar o impulso económicodos entraves da política tradicional, para modificar a direcáopolítica de determinadas forcas que devem ser absorvidas paracriar um bloco histórico económico-político novo, homogéneo,sem contradicóes internas. Já que duas torcas "semelhantes" sópodemfundir-se num organismo novo através de uma série decompromissos ou pela forca das armas, unindo-se num planode. alianca, ou subordinando uma a outra pela coercáo, a ques­tao é saber se existe esta forca e se é "proveitoso" empregá-la,Se á uniáo de duas Jorcas é necessária para derrotar uma ter­ceira, o recurso as armas e ácoercáo (desde que haja disponi­bilidade) é uma pura hipótese de método, e a única possibili­dade concreta é o compromisso, já que a Iorca pode ser em­pregada contra os inimigos, nao contra uma parte de si mesmosque se quer assimilar rapidamente e do qual se requer o entu­siasmo e a "boa vontade".

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Previsño e perspectiva. Outro ponto a ser fixado e desen­volvidoé o da "dupla perspectiva" na acáo política e na vidaestatal. Vários sao os graus através dos .quais pode-se apresen­tar a dupla perspectiva, dos mais elementares aos mais com­olexos , Mas eles podem-se reduzir teóricamente a dois graus

-fundamentais, correspondentes a natureza dúplice do Centauromaquiavélico, ferina e humana: da torca e do consentimento, daautoridade e da hegemonia, da violencia e da civilidade, domomento individual e do momento universal (da "Igreja" e do"Estado"), da agitacáo e da propaganda, da tática e da estra­tégia, etc. Alguns reduziram a teoria da "dupla perspectiva" auma coisa mesquinha e banal, a nada mais que duasformas de"imediatismo" a se sucederem .mecanicarnente no tempo commaior ou menor "proximidade". Ao contrário, pode ocorrerque quanto mais a primeira '''perspectiva'' é "imediatíssima"elementaríssima, tanto mais a segunda deve ser "distante" (na~no tempo, mas como relacáo dialética), complexa, elevada.Assim como na vida humana, em que quanto mais um individuoé obrigado a defender a própria existencia física imediata tanto. . - ,mais se coloca ao lado e defende o ponto de vista de todos oscomplexos e mais elevados valores da civilizacáo e da humani­dade.

É verdade que prever significa apenas ver bem o presentee o passado como movimento: ver bem, isto é, identificar comexatidáo os elementos fundamentais e permanentes do. processo.Mas él absurdo pensar numa previsáo puramente "objetiva".Ouemprevé, na realidade tem um "programa" que quer vertriunfar, e a previsáo é exatamente umelemento de tal triunfo.Isto nao significa que a previsáo deve ser sempre arbitrária egratuita ou puramente tendenciosa. .Ao contrário, pode-se dizerque só na medida em que o aspecto objetivo da previsáo estáligado a um programa, esse aspecto adquire objetividade: 1)porque só a paixáo aguca o intelecto e colabora para a intuicáomais clara; 2) porque sendo a realidade o resultado de umaaplica~ao ~a ,:ontade hUD;1an.a asociedade das coisas (do maqui­nísta a maquma), prescindir de todo elemento voluntário, oucalcular apenas a intervencáo de vontades outras como ele­mento objetivo do jogo geral mutila a própria realidade. SÓquem deseja fortemente identificaos elementos necessários arealiza~ao da sua vontade.

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Assim constitui uni erro de fatuidade grosseira e de su­perficialidade considerar que urna determinada .concepga? domundo e da vida guarda em si mesma urna supenor cap,a~ldad,ede previsáo . É claro que urna concepcáo do mundo estáimplí­cita em qualquer previsáo; portanto,o fato de que ela se~a urnadesconexáo de atos arbitrários do pensamento ou urna ngorosae coerente visáo nao é sem importáncia. Mas, por isso mesmo,ela só adquire essa lmportáncia no cérebro vivo de quem faza previsáo, vivifica~do-a com ~ !ma v?ntade for~~. Isto. podeser percebido atraves das ]~~ev~so~s fe~~as pelo.s , desapaíxona­dos": elas estáo plenas de ociosidade", de mmucias SUtlS, deelegancias conjeturais. Só a existencia no "previsor" de ?mprograma a ser realizado faz com que ele atenha-se ao essencial,aos elementos que, sendo "organizáveis", suscetí~eis de seremdirigidos ou desviados, sao os únic?s que, na realidade, po~e:nser previstos. Geralmente se acredita que ca~a ato de 1?revlsaopressupóe a determin~5a~ de leis ~e regulandade do tl~o d~sleis que regulam as ciencias naturals,: ~as como esta~ lels. naoexistem no sentido absoluto ou mecamco que se supoe, nao selevam em conta as vontades outras e nao se "preve" a sua aplica­gao. Logo, edifica-se sobre urna hipótese arbitrária, e nao sobrea realidade.

O "excessivo" (e portanto superficial e mecánico) realismopolítico leva muitas vezes a afirmacáo de que o homem deEstado só deve atuar no ámbito da "realidade fatual", nao seinteressar com o "ode.ver ser", mas apenas com o "ser". Istosignificaria que asrperspectivas de um estadista nao podem iralém do tamanho do seu nariz. Este erro levou Paolo Trevesa considerar Guicciardini, e nao. Maquiavel, o "verdadeiro po-lítico" . .

'Mais do que entre "diplomata" e "político", é necessánodistinguir entre cientista da política e político prático. O dipl~­mata nao pode deixar de se mover só na realidade fatu?l; ~01Sa sua atividade específica nao éa de. criar novos eq';l1h?~lOS,más a de conservar dentro de determinados quadros jurídicosum equilibrio existente. Assim, também o cienti.sta.deve mo­ver-se apenas na realidade fatual como mero cientísta . M~sMaquiavel nao é um mero cientista; ele éum homem de partí­cípacáo, de paíxóes poderosas, um político p~ático, que pr,.e­tende criar novas relacóesde torca e que por ISS0 mesmo naopode deixar de se ocupar com o "dever ser", que nao deve

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ser .entendido emsentido moralista. Assim, a questáo nao deveser colocada nestes termos, é mais complexa: trata-se de con­siderar se' o "dever ser" é um ato arbitrário ou necessário, évontade concreta, ouveleidade, desejo, sonho. O político emaqao é um criador, um suscitador; mas nao cria do nada, nemse' move no vazio túrbido dos seus desejos e sonhos. Baseia-se

'na realidade fatual. Mas, O' que é esta realidade fatual? É·talvez algo de estático e imóvel, ou nao é antes urna relacáo detorcas em continuo movimento e mudanca de equilibrio? Apli­car a vontade a criaqao de uro novo equilibrio das for~s real­mente existentes e atuantes, baseando-se numa determinadaforqa que se' considera progressista, fortalecendo-a para levá-laao '. triunfo, é sempre mover-se no terreno da realidade fatual,mas para dominá-la e superé-la (ou contribuir para isso).Portanto, o "dever ser" é concrecáo; mais ainda, é a única in­terpretacáo realista e historicista da realidade, é história em aqaoe filosofía em aqao, é unicamente política.

A oposícáo Savonarola-Maquiavel nao' é a oposicáo entreser e dever ser (todo o parágrafo de Russo sobre éste pontoé puro beletrismo), mas entre dois "dever ser": o abstrato eobscuro de Savonarola e o realista de Maquiavel, realismo, mes-·mo nao tendo se tornadorealidade imediata, pois nao se podepretender que um indivíduoou um livro modifiquem a reali­dade; eles só a ínterpretam e indicam a linha possível da acño.O limite e a estreiteza de Maquiavel consistem apenas no fatode ter sido ele uma "pessoa privada", um escritor,e nao ochefe de um Estado ou de' um exército, que também é apenasurna pessoa, mas tendo a sua disposícáo as torcas de.um Esta­do ou de um exército, e nao semente exércitos de palavras.Nem por isso se pode dizer que Maquiavel tenha sido um"profeta desarmado": seria um gracejo multo barato. Maquia­vel jamáis diz que pensa ou se propñe ele mesmo a mudar arealidade; o que faz é mostrar concretamente como deveriamatuar as fórcas históricas para se tornarem eficientes.

Análises das situafoes. Relacoes de [orca, Oestudo,s'obre·como sedeve analisar as "situacóes", isto é, de como se devem

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estabelecer os diversos graus de relacáo de forcas, pode-se pres­tar a uma exposicáo elementar sobre ciencia e arte políticas,entendidas como um conjunto de cánones práticos de pesquisae de observacñes particulares úteis para despertar o interessepela realidade fatual e suscitar intuicóespolíticas mais rigorosase vigorosas. Ao mesmo tempo, é preciso expor o que se deveentender em política por estratégia e tática, por "plano" estra­tégico, por propaganda e agitacáo, por organizacáo, ou cienciada organízacáo e da administracáo em política.

Os elementos de observacáo empírica que comumente saoapresentados desordenadamente nos tratados de ciencia política(pode-se tomar como exemplar a obra de G. Mosca, Elementidi scienza politice) deveriam, na medida em que nao sao ques­tñes abstratas ou apanhadas ao acaso, situar-se nos vários grausda relacáo de forcas, a comecar pela relacáo das torcas interna­cionais (em que se localizariam as notas escritas sobre o queé uma grande potencia, sobre os agrupamentos de Estados emsistemas hegemónicos e, por conseguinte, sobre o conceito deindependencia e soberania no que se refere as pequenas e mé­dias poténcias-), passando em seguida as relacóes sociais obje­tivas, ao grau de desenvolvimento das forcas produtivas, as re­lacóes de forca política e de partido (sistemas hegemónicosdentro do Estado) e as relacñes políticas imediatas (ou seja,potencialmente militares) .

As relacóes internacionais precedem ou seguem (Iogica­mente) as relacóes sociais fundamentáis? Seguem, é indubitável.Toda inovacáo orgánica na estrutura modifica organicamente asrelacóes absolutas e relativas no campo internacional, atravésdas suas expressóes técnico-militares. Inclusive a posicáo geo­gráfica de um Estado nao precede, mas segue (lógicamente) asinovacóes estruturais, mesmo reagindo sobre elas numa certamedida (exatamente na me:didaem que as superestruturas rea­gem sobre a estrutura, a política sobre a economia, etc.). Alémdo mais, as relacñes internacionais reagem positiva e ativamentesobre as relacñes políticas (de hegemonia dos partidcs) . Quan­to mais a vida económica iimediata de uma nacáo se subordinaas relacóes internacionais, mais um partido determinado repre­senta esta situacáo e explora-a para i.mpedir o predomínio dospartidos adversários (veja-se o famoso discurso de Nitti sobre

1 Ver págs. 138, 162 e seguintes.

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rr

a revolucáo italiana tecnicamente Impossívell) . A partir destasérie de fatos, pode-se chegar a conclusáo de que, freqüente­mente, o chamado "partido estrangeiro" nao é propriamenteaquele que vulgarmente é apontado como tal, mas exatamenteo' partido nacionalista, que, na realidade, mais do que repre­sentar as forcas vitais do seu país, representa a sua subordina­c;:ao e a servídáo económica as nacñes ou a um grupo de nacñeshegemónicas.1

É o problema das relacóes entre estrutura e superestruturaque. deve ser situado com exatidáo e resolvido para assim sechegar a uma justa análise das forcas que atuam na históriade um determinado período e .a definicáo da relacáo entre elas.É necessário movimentar-se no ámbito de dois princípios: 1)o de que nenhuma sociedade assume encargos para cuja solu­~aoainda nao existam as condícóes necessárias e suficientes, ouque pelo menos nao estejam em vias de aparecer e se desenvol­ver; 2) o de que nenhuma sociedade se dissolve e pode sersubstituída antes de desenvolver e completar todas as formasde vida implícitas nas suas relacóes." Da reflexáo sobre estesdois cánones pode-se chegar ao desenvolvimento de toda umasérie de outros princípios de metodologia histórica. Todavíadeve-se distinguir no estudo de uma estrutura os movimento~orgánicos (relativamente, permanentes) dos elementos que po­deni ser denominados "de conjuntura" (que se apresentam comoocasionais, imediatos, quase acidentais). Também os fenóme­nos de conjuntura dependem, é claro, de movimentos orgánicos,mas seu significado nao tem um amplo alcance histórico: elesdáo lugar a uma crítica política miúda, do día-a-día, que investe

1. U~a referencia a este elemento internacional "repressivo" das ener­glas mternas 20de ser encontrada nos' artígos publicados por G. VOLPEno C:orriere della Sera de 22 e.23 de margo de 1932.2 "Urna formaeáo social nao perece antes de se terem desenvolvidotodas as foreas produtivas em relaeño as quais ela ainda é suficientee novas e mais altas relacñes de. producáo nao tenham tomado o seulugar, antes de as condícées materíaís de existencia destas últimas naoterem .sido incubadas no próprío seio da .velha sociedade. Por isto, ahumamdade assume se~pre aqueles encargos que ela pode resolver;se se observ~ com mais agudeza, chegar-se-á sempre a conclusáo vdeque o p~óp~o ~ncargo só surge onde ~s condigoes materiais para asua solueño la exístem, ou pelo menos estao em processo de surgimento".(MARX, Introdur;áo a Crítica da Economía Política.)

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os pequenos grupos dirigentes e as personalidades imediata­mente responsáveis pelo poder. Os fenómenos orgánicos dáomargem a crítica histórico-social, que investe os grandes agru­pamentos, acima das pessoas imediatamente responsáveis e aci­ma do pessoal dirigente. A importáncia dessa grande diferen­ciacáo surge quando se estuda um período histórico. Verifica­se uma crise que, as vezes, prolonga-se por dezenas de anos.Esta duracáo excepcional quer dizer que se revelaram (amadu­receram) contradicóes insanáveis na estrutura e que as Iorcaspolíticas que atuam positivamente para conservar e defender aprópria estrutura esforcam-se para saná-las dentro de certoslimites e superá-las. Estes esíorcosIncessantes e perseverantes(pois nenhuma forma social jamais confessará que foi supera­da) formam o terreno "ocasional" sobre o qual se organizamasforcas antagonistas, que tendem a demonstrar (demonstracáoque, em última análise, só se realiza e é "verdadeira" quandose torna nova realidade, quando as torcas antagonistas triunf.am;mas imediatamente desenvoJlve-se uma série de polémicas ideo­lógicas, religiosas, filosóficas, políticas, jurídicas, etc., cuja con­crecáo pode ser avaliada pela medida em que conseguem con­vencer e deslocam o preexistente dispositivo de' forcas sociais)que já existem as condicóes necessárias e suficientes para quedeterminados encargos possam e, por conseguinte, devam serresolvidos históricamente, Ce devem, porque qualquer vacila­c;:ao em cumprir o dever histórico aumenta a desordem necessá­ria e prepara catástrofes mais graves).

Nas análises histórico-políticas, freqüentemente incorre-seno erro de nao saber encontrar a justa relacáo entre o que éorgánico e o que é ocasional. Assim, ou se apresentam comoimediatamente atuantes causas que, ao contrário, atuam media­tamente, ou se afirma que as causas imediatas sao as únicascausas eficientes. Num caso, manifesta-se o exagero de "eco­nomismo" ou de doutrinarismo pedantesco; no outro, o excessode "ideologismo". Num caso, superestimam-se as causas mecá­nicas; no outro, exalta-se' o elemento voluntarista e individual.A distincáo entre "movimentos" e fatos orgánicos e movimentose fatos de "conjuntura" ou ocasionais deve ser aplicada a todosos tipos de situacáo: nao só áquelas em que se verifica umprocesso regressivo ou de crise aguda, mas áquelas em que severifica um desenvolvimento progressista ou de prosperidade e

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aquelas em que se verifica uma estagnacáo das forcasproduti­vas. O nexo dialético entre as duas ordens de movimento e,portanto, de pesquisa, dificilmente pode ser estabelecido exa­tamente; e, seo erro é grave no que se refere a historiografia,mais graveainda se torna na arte política, quando se trata nao

.de reconstruir a história passada, mas de construir a história.presente e futura.' Os próprios desejos e paix6es deteriorantese imediatos constituem a causa' do "erro na medida em quesubstituem a análiseobjetiva e imparcial. E isto se verifica naocomo "meio" consciente para estimular a acáo, mas como auto­engano , Também neste caso a cobra morde o charlatáo: o de­magogo .é a primeira vítima da sua demagogia.

Estes critériós metodológicos podem adquirir visível e di­daticamente todo o seu significado quando aplicados ao examede fatos históricos concretos. O que se poderla fazer com utili­dade em relacáo ¡lOS acontecimentos que se verificaram naFranca de 1"789 a 1870. Parece-me que para- maior clareza 'daexposicáo. seja necessário abranger todo este período. Efetiva­mente, SÓ em 1870-1871, com a tentativa da Comuna, esgotam­se históricamente todos os germes nascidos em 1789. Nao sóa nova classe que luta pelo poder derrota os representantes davelha sociédade que nao quer confessar-se definitivamente su­perada, mas derrota também os grupos novíssimos que acredi­tam já ultrapassada a nova estrutura surgida da transformacáoiniciada em. 1789. Assim, ela demonstra a sua vitalidade tantoero relacáo ao velho como em relacáoao novíssimo. Além do

1 O fato de nao se ter considerado o momento imediato das "relacóesde forca" está ligado a residuos da concepcáo liberal vulgar, da qualo sindicalismo é urna manifestacáo que acreditava ser mais avancadaquando, na realidade, representava um passo atrás. Efetivamente, aconcepcáo liberal vulgar, dando importancia a relacáo das forcas polí­ticas: organizadas nas diversas formas de partido (leitores de jornais,eleícóes parlamentares e locais, organízacées de massa dos partidos edos sindicatos num sentido estrito), era mais avancada do que o sin­d~ca~smo, 9-ue da,:a importancia primo!dia~ a relacáo fundam~ntal eco­nómico-social, \3 so a ela. A concep9ao liberal vulgar. tambem levavaem conta implicitamente esta relacáo (como transparece através demuítos sínaís ), mas Insistía prioritariamente sobre a relacáo das fóreaspolíticas, que era urna expressáo da outra e, na realidade, englobava-a.Estes residuos da concepcáo liberal vulgar podem ser encontrados emtoda urna série de trabalhos que se dizem ligados a filosofia da praxise deram lugar a formas infantis de otimismo e a asneiras.

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mais, em virtude dos acontecimentos de J870-1871, perde efí­cácia o conjunto de princípios de estratégia e tática política nas­cidos praticamente em 1789 e desenvolvidos ideologicamenteeni torno de 1848 (aqueles que se sintetizam na fórmula da"revolucáo permanente"," Seria interessante estudar os elemen­tos desta fórmula que se manifestaram na estratégía maziniana- por exemplo,a insurreicáo de 1853 em Miláo - e se istoocorreu conscientemente) .. Um elemento que demonstra a jus­teza deste ponto de vista é o fato de que os historiadores demodo nenhum concordam (e é impossível que concordem) aofixar os limites daquela série de acontecimentos que constitui aRevolucáo Francesa. Para alguns (Salvemini, por exemplo), aRevolucáo se completa em Valmy: a Franca criou o novoEstado e soube organizar a forca político-militar que o sustentae defende a sua soberania territorial. Para outros, a Revolucáocontinua até Termidor; mais ainda, eles falam de muitas revo­lucóes (o 10 de agosto seria uma revolucáo em si, etc.)." Amaneira de interpretar Termidor e a obra de Napoleáo apre­senta as mais agudas contradicóes: trata-se de revolucáo oude contra-revolucáo? Para outros, a Revolucáo continua até1830, 1848, 1870 e inclusive até a guerra mundial de' 1914.Em todas estas maneiras de ver há uma parte de verdade.Realmente, as contradicóes internas da estrutura francesa, quese desenvolvem depois de 1789, só encontram uma relativa com­posicáo com a Terceira República. E a Franca goza sessentaanos de vida política equilibrada depois de oitenta anos de trans­formacóes em ondas cada vez maiores: 1789, 1794,1799,1804,1815, 1830, 1848, 1870. É exatamente o estudo dessas "ondas"de diferentes oscilacóes que permite reconstruir as relacóes en­tre estrutura esuperstruturas, de um lado, e, de outro, as relacóesentre o curso do movimento orgánico e o curso do movimentode conjuntura da estrutura. Assim, pode-se dizer que a medi­c;ao .dialética entre os dois princípios metodológicos enunciadosno início desta nota localiza-se na fórmula político-histórica darevolucáo permanente.

1 Gramsci usa o termo revolucáo permanente para indicar a interpre­taºao errada de Trotski (urna transformacáo política levada a cabo porurna minoria sem o apoio das grandes massas) a fórmula de Karl Marx.Por isso o autor a coloca entre aspas. (N. el.)2 Cf. La Révolution franfaise de A. MATIDEZ, na colecño A. Colino

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Um aspecto do mesmo problema é a chamada questáo dasrelacñes de fórca , Le-se com íreqüéncía nas narracóes histó­ricas a expressáo: "relacóes de torcas favoráveis, desfavoráveisa esta ou aquela tendencia." Assim, abstratamente, esta formu­la9ao. nao explica nada ou quase nada, pois o que se faz é.repetír o fato que se deve explicar, apresentando-o uma vez

. co~o fato e outra como lei abstrata e como explicacáo . Por­tanto, o erro teórico consiste em apresentar um elemento depesquisa e de interpretacáo como "causa histórica".

Na "relacáo de torca" énecessário distinguir diversos mo­mentos ou graus, que no fundamental sao estes:

1) Uma relacáo de íórcas sociais estreitamente ligada aestrutura, objetiva, independente da vontade dos homens, quepode ser medida com os sistemas das ciencias exatas ou físicas.A base do grau de desenvolvimento das Iorcas materiais deproducáo estruturam-se os agrupamentos sociais, cada um dosquais representa uma funcáo e ocupa uma posicáo determinadana producáo , Esta relacáo é a que é, uma realidade rebelde:ninguém pode modificar o número das fazendas e dos seusagregados, o número das cidades com as suas populacóes de­terminadas, etc. Este dispositivo fundamental permite verificarse na sociedade existem as condicóes necessárias e suficientespara a sua transformacáo; permite control..; o grau de realismoe de viabilidade das diversas ideologías que ela gerou duranteo seu curso.

2) ; O momento seguinte é a relacáo das forcas políticas:a avaliacáo do grau de homogeneidade, de autoconscíéncia ede organízacáo alcancado pelos vários grupos socíais . Por suavez, este momento pode ser analisado e diferenciado em váriosgraus, que correspondem aos diversos momentos da conscienciapolíticacoletiva, da forma como se manifestaram na Históriaaté agora. O primeiro e mais elementar é o económico-corpo­rativo: um comerciante sente que deve-se: solídásío com outrocomerciante, etc., mas o comerciante náosesente ainda sofidá­rio com o fabricante. Assim, seme-se a unidadehomogénea dogrupo profissional e o dever de organizá-la, mas nao ainda aunidade do grupo social mais amplo , Um segundé momento éaquele em que se adquire a consciencia da solidariédade de in­teresses entre todos os membros do grupo social, mas ainda nocampo meramente económico. Neste momento já se coloca aquestáo do Estado, mas apenas visando a alcancar uma igual-

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dade político-jurídica com os grupos dominantes: reivindica-seo direito de participar da Iegislacáo e da administracáo e, talvez,de modificá-las, reformá-las, mas nos quadros fundamentais jáexistentes. Um terceiro momento é aquele em que se adquirea consciencia de que os próprios interesses corporativos, no seudesenvolvimento atual e futuro, superam o círculo corporativo,de grupo meramente económico, e podem e devem tornar-se osinteresses de outros grupos subordinados. Esta é a fase maisabertamente política, que assinala a passagem nítida da estru­tura para a esfera das superestruturas complexas; é a fase emque as ideologias germinadas anteriormente se transformam em"partido", entram em choque e lutam até que urna delas, ouoelo menos urna combinacáo delas, tende a prevalecer, a seimpor, a: se irradiar em toda a área social, determinando, alémda unicidade dos fins económicos e políticos, também a uni­dade intelectual e moral. Coloca todas as questóes em torno dasquais se acende a luta nao num plano .corporativo, mas numplano "universal", criando, assim, a hegemonia de um gruposocial fundamental sobre urna série de grupos subordinados. OEstado é concebido como organismo próprio de um grupo, des­tinado a criar as condicóes favoráveis a expansáo máxima des­se grupo. Mas este desenvolvimento e esta expansáo sao con­cebidos e apresentados como a forca motriz de urna expansáouniversal, de um desenvolvimento de todas as energias "nacio­aais". O grupo dominante coordena-se concretamente com osinteresses gerais dos grupos subordinados, e a vida estatal é

concebida como urna continua formacáo e superacáo de equili­orios instáveis (no ámbito da lei) entre os interesses do grupofundamental e os interesses dos grupos subordinados; equilibriosemque os interesses do grupo dominante prevalecem até umdeterminado ponto, exc1uindo o interesse económico-corpora-tivo estreito. .

Na história real estes momentos se confundem reciproca­mente, por assim dizer horizontal e verticalmente, segundo asatividades económicas sociais (horizontaísj e segundo; os terri­tórios (verticais) , combinando-se e dividindo-se alternadamen­te. Cada urna destaácombinacóes pode ser representada porurna expressáo orgánica própria, económica e política. Tam­bém é necessário levar em conta que, com estas relacées inter­nas de um Estado-Nacáo, entrelacam-se as relacóes internacio­nais, criando novascombínacóes originais e historicamente con-

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l

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cretas. Urna ideologia nascida num país desenvolvido difunde­se em países menos desenvolvidos, incindindo no jogo local dascombinacóes.!

Esta relacáo entre torcas internacionais e Jorcas nacionaisainda é complicada pela existencia, no interior de cada Estado,de diversas secóes territoriais com estruturas diferentes e dife­rentes relacóes de forca em todos os graus (a Vandéia era alia­da das forcas reacionárias internacionais e representava-as noseio da unidade territorial francesa; Liáo, na Revolucáo Fran­cesa, representava um nó particular de relacóes, etc.) .

3) O terceiro momento é o da relacáo das forcas militares,imediatamente decisiva em determinados instantes. (O desen­volvimento histórico oscila continuamente entre o primeiro e oterceiro momento, com a mediacáo do segundo). Mas essemomento nao é algo indistinto e que possa ser identificado ime­diatamente de forma esquemática. Também nele podem-sedistinguir dois graus: o militar, num sentido .estrito outécnico-militar, e o grau que pode ser denominado de político-

. militar. No curso da História estes dois graus se apresen­taram com uma grande variedade de combínacóes. Um exem­plo típico; que pode servir como demonstracáo-limite, é o dareíacáo de opressáo militar de um Estado sobre uma nacáo queprocura alcancar a sua independencia estatal. A relacáo naoé puramente militar, mas político-militar. Efetivamente, tal tipode opressáo seria inexplicável se nao existisse o estado de de­sagregacáo social do POyO oprimido e a passividade da suamaioria. Portanto, a independencia nao poderá ser alcancadaapenas com fórcas puramente militares, mas com íórcas milita­res ep6lítico-militares. Se a nacáo oprimida, para iniciar aJuta da independencia, tivesse de esperar a permissáo do Esta-

1 A relígíáo, por exemplo, sempre foi urna fontedessas combinacñesideológico-políticas nacionais e intemacionais; e, com a relígíáo, as. ou­tras formacñes intemacionais: a maeonaría, o Rotary Clube, os judeus,a diplomacia de carreira, que sugerem expedientes políticos de origemhistórica diferente e levam-nas a triunfar em determinados países, fun­cionando como partido político internacional que atua em cada nacáocom todas as suas fórcas intemacionais concentradas. Urna religiáo, amaconaría, os judeus, Rotary, etc., podem ser incluídos na categoríasocial dos "íntelectuaís", cuja funeáo, em escala internacional, é a demediar os extremos, "socializar" as ínovaeóes técnicas que permitem ofuncionamentode' toda atividade de dírecáo, de excogitar compromissose saídas entre solucóes extremas.

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do dominante para organizar o seu exército no sentidoestritoe técnico da palavra, deveria aguardar bastante .tempo (podeocorrer que a reivindicacáo seja concedida pela nacáo dominan­te, mas isto significa que urna grande parte da luta já foi tra­vada e vencida no terreno político-militar). Logo,a nacáooprimida oporá inicialmente a torca militar hegemónica urnafórca que é apenas "político-militar"; isto é, oporá urna formade acáo política com a virtude de determinar reflexos de cará­ter militar no sentido de que: 1) seja capaz de desagregar inti­mamente a eficiencia bélica da nacáo dominante; 2) obrigue áforca militar dominante a diluir-se e dispersar-se num grandeterritório, anulando grande parte da sua eficiencia bélica. NoRisorgimento italiano pode-se notar a ausencia de~astrosa. deurna direcáo político-militar, especialmente no Partido da A~¡¡o

(por incapacidade congénita), mas tambémno partido piemon­tes-moderado, tanto antes como depois de 1848. Isto ocorreunao por incapacidade, mas por "malthusianismo económico­político", porque nao se pretendeu nem ao menos acenar coma possibilidade de urna reforma agrária e porque .náo se queriaa convocacáo.de urna assembléia nacional constituinte. Só sequeria que a monarquía piemontesa, sem condicóes ou limitacóesde origem popular, se estendesse a toda a Itália com a simplessancáo de plebiscitos regionais.

Outra questáo ligada as precedentes é a de se ver se ascrises históricas fundamentais sao determinadas imediatamentepelas crises económicas. A resposta a questáo está implícita­mente contida nos parágrafos anteriores, onde as questñes tra­tadasconstituem outro modo de apresentar o problema ao qualnos referimos agora. Todaviaé sempre necessário, por motivosdidáticos devidos ao público particular, examinar cada modosob O' qual se apresenta uma mesma questáo, como se fosseum problema independente e novo . Inicialmente, pode-sé excluirque, 'de per si, as crises económicas imediatas produzam acon­tecimentos fundamentais; apenas podem criar um terreno. favo­rável a difusáo de determiliadas maneiras de pensar, de formu­lar e resolver as questóes que envolvem todo o curso ulteriorda vida estatal. De resto, todas as afirmacóes referentes a perío­dos de crise ou de prosperidade podem dar margem a juízosunilaterais. No seu compendio de História da Revolucáo Fran­cesa, Mathiez, opondo-se ahistória vulgar tradicional, que aprio­rísticamente "acha" urna c:rise para coincidr .com as grandes

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rupturas do equilíbrio social, afirma que, por volta de 1789, asituacáo económica era mais do que boa, pelo que nao se podedizer que a catástrofe do Estado absoluto tenha sido motivadapor urna crise de empobrecimento. Deve-se observar que o

. Estado estava as voltas com urna crise financeira mortal e deviaoptar sobre qual das tres ordens sociais privilegiadas deveriam

, recair QS sacrificios e o peso destinados a reordenar as financasestatais e reais. Além do mais, se a posicáo económica da bur­guesia era próspera, certamente nao era boa a situacáo das clas­ses populares das cidades e do campo, especialmente estas, ator­mentadas pela miséria endémica. De qualquer modo, a rupturado eguilíbrio entre as torcas nao se verificou em virtude decausas mecánicas imediatas de empobrecimento do grupo socialinteressado em romper o equilíbrio, e que de fato rompeu; masverificou-se no quadro de conflitos acima do mundo económicoimediato, ligados ao "prestígio" de classe (interesses económicosfuturos), a urna exasperacáo do sentimento de independencia,de autonomía e de poder. A questáo particular do mal-estaroudo bem-estar económico como causa de novas realidades his­tóricas é um aspecto parcial da questáo das relacóes de forcanos seus vários graus. Podem-se verificar navidades, tanto por­que urna situacáo de bem-estar é ameacada pelo egoísmo mes­quinho de um grupo adversário, como porque o mal-estar setornou intolerável e nao se percebe na velha sociedade nenhumaIorca que seja capaz de minará-lo' e de restabelecer a normali­dade através de medidas legais. Portanto, pode-se dizer quetodos estes elementos sao. a manifestacáo concreta das flutua­~5es de conjuntura do conjunto das relacóes sociais de forca,sobre cujo terreno verifica-se a passagem destas relacñes pararelacóes políticas de torca, culminando na relacáo militar de­cisiva.'

Interrompendo-se .este processo de desenvolvimento de ummomento para outro, e éle é essencialmente um processo quetem como atores os homens e a vontade e a capacidade noshomens, a situacáo mantém-se inerte, podendo dar Jugar a con­clusóes contraditórias: a velha sociedade resiste e assegura umperíodo .de "alivio", exterminando fisicamente a élite adversá­ria e aterrorizando as massas de reserva; ou entáo verifica-se adestruicáofecíproca das forcas em luta com a instauracáo dapaz dos cemitérios, talvez sob a vigilancia de um sentinela es­trangeiro.

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Mas a observacáo mais importante a ser feita a propósitode qualquer análise concreta das relacóes de forca, é esta: taisanálises nao se encerram cm si mesmas (a menos que nao seescreva um capítulo da história do passado), mas sóadquiremum significado se servem para justificar urna atividade prática,urna iniciativa de vontade , Elas indicam quais 'sao os pontosdébeis de resistencia onde a forca da vontade pode ser aplicadamais frutIferamente,sugerem as operacóes táticas imediatas,indicam a melhor maneira. de empreender urna campanha deagitacáo política, a linguagem que será melhor compreendidapelas multid6es, etc. O elemento decisivo de cada situacáo é atorca permanente organizada e antecipadamente predisposta,que se pode fazer avancar quando se manifestar urna- situacáofavorável (e só é favoráve1 na medida em que esta torca existae esteja carregada de ardor combativo). Por isso, a tarefa essen­cial consiste em cuidar sistemática e pacientemente da forma­<;ao, do desenvolvimento, da unidade compacta e consciente desi mesma, desta fórca , Comprova-se isto na história militar eno cuidado com que, sempre, os exércitos mostraram-se predis­postos a iniciar urna guerra em qualquer momento. Os grandesEstados eram grandes Estados exatamente porque sempre esta­vam preparados para se inserir eficazmente nas conjunturas in­ternacionais favoráveis, e o eram porque havia a possibilidadeconcreta de inserirem-se eficazmente nelas.

Observacties sobre alguns aspectos da estrutura dos par­tidos políticos nos períodos de crise orgánica. Num determi­nado momento da sua vida histórica, os grupos sociais se afas­tain dos seus partidos tradicionais, isto é, os partidos tradi­cionais com urna determinada forma de organízacáo, com de­terminados homens que os constituem, representam e dirigem,nao sao mais reconhecídos como expressáo própria da suac1asse mi fra<;ao de c1asse. Quando se verificam estas crises,a situacáo imediata torna-se delicada e perigosa, pois abre-se ocampo as solucóes de forca, a atividade de poderes ocultos, re­presentados' pelos homens providenciáis ou carismáticos.

Como se formam estas situacóes de contraste entre "re­presentados e representantes", que do terreno dos partidos (or­ganizacóes de partido num sentido estríto, campo eleitoral-

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parlamentar, organizacáo [omalística)' refletem-se em todo oorganismo estatal, reforcando a posicáo relativa do poder daburocracia (civil e militar), da alta financa, da Igreja e emgeral de todos os organismos relativamente independentes das

- flutuacóes da opiniáo pública? O processo é diferente em cadapaís, embora o conteúdo seja o mesmo. E o conteúdo é acrise de hegemonia da c1asse dirigente, que ocorre ou porque a

'c1a'sse dirigente faliu em determinado grande empreendimento. político pelo qual .pediu ou impós pela forca o consentimento

das grandes massas (como a guerra), ou porque amplas mas­sas (especialmente de camponeses e de pequenos burgueses in­telectuaisj passaram de repente da passividade política a cer­ta atividade e apresentaram reivindicacóes que, no seu com­plexo desorganizado, constituem urna revolucáo. Fala-se de "cri­se de autoridade", mas, na realidade, o que se verifica é acrise de hegemonia, ou crise do Estado no seu conjunto.

,A crise cria situacóes imediatas perigosas, pois as diver­sas camadas da populacáo nao possuem a mesma capacidadede orientar-se rapidamente e de se reorganizar com o mesmoritmo. A. c1asse dirigente tradicional, que tem um numerosopessoal preparado, muda homens e programas e retoma ocontrole que lhe fugia, com urna rapidez maior do que a quese verifica entre as classes subalternas. Talvez faca sacrifícios,exponha-s~ a um futuro sombrio com promessas demagógicas,mas mantem o poder, reforca-o momentaneamente e serve-sedele para esmagar o adversário e desbaratar os seus dirigentes,que nao podem ser muitos e adequadamente preparados. Aunificacáo das tropas de muitos partidos sob a bandeira de umpartido único, que representa melhor e encarna as necessidadesde toda a c1asse, é um fenómeno orgánico e normal, mesmo seo seu ritmo for muito rápido e fulminante em relacáo aos tem­pos tranqüilos: representa a fusáo de todo um grupo social soburna só direcáo; considerada a única capaz de resolver um pro­blema existencial dominante e afastar um perigo mortal. Quan­do a crise náoencontra esta solucáo orgánica, mas a solucáodo ,~hefe ca.rismático, isto significa que existe um equilíbrioestático (cujos fatores podem ser despropositados, mas nosquaisprevalece a imaturidade das Jorcas progressistas); signi­fica que nenhum grupo, nem o conservador nem o progressis-

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ta, dispóe da torca para vencer e que também o grupo conser­vador tem necessidade de um patráo",

Esta ordem de fenómenos está ligada a urna das ques­toes mais importantes, concernentes ao partido político; istoé, a capacidade de reacáo do partido contra o espírito consue­tudinário, contra as tendencias mumificadoras e anacronísticas.Os partidos nascem e se constítuem em organízacñes para di­rigir asituacáo em momentos historicamente vitais para as suasclasses; mas nem sempre eles sabem adaptar-se as novas tare­fas e as novas épocas, nem sempre sabem desenvolver-se deacorde com o desenvolvimento do conjunto das relacóes detorca (portanto, a posicáo relativa das classes que represen­tam) no país a que pertencem ou no campo internacional. Aoanalisar-se o desenvolvimento dos partidos é necessário dis­tinguir: o grupo social, a massa partidária, a burocracia e oEstado-Maior do partido. A burocracia é a torca consuetudi­nária e conservadora mais perigosa; se ela chega a constituirum corpo solidário, voltado para si e independente da massa,o partido acaba se tornando anacrónico, e nos momentos decrise aguda é esvaziado do seu conteúdo social e permanececomo que solto no ar. Veja-se o que está ocorrendo com urnasérie de partidos alemáes, em virtude da expansáo do hitleris­mo. Os. partidos franceses constituem um terreno rico para taisinvestigacfies: estáo todos mumificados e sao anacrónicos; naopassam de documentos históricos-políticos das diversas fases dahistória passada francesa, da qual repetem a terminologia en­velhecida; a sua crise pode-se tornar mais catastrófica do quea dos partidos alemáes.

Aoexaminar-se esta ordem de acontecimentos, é comumdeixar de colocar no seu devido lugar o elemento burocrático,civil e militar; e também nao se leva em conta que em taisanálises nao devem entrar apenas os elementos militares e bu­rocráticos existentes, masas camadas sociais· entre ' as quais,nos diferentes complexos estatais, a burocracia é tradicional­mente recrutada. Um movimento político pode ser de caráterabertamente militar, mesmo se o exército como tal nao parti­cipa abertamente dele; um governo pode ser de caráter militar,mesmo se o exército nao participa dele. Em determinadas si­tuacóespode-se dar a conveniencia de nao "descobrir" o exér-

1 Cf. o Dezoito Brumário de Luis' Bonaparte.

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cito, de nao fazé-lo sair da constitucionalidade de nao levara política aos quartéis, como se diz, para manter a homoge­nei~ade entre ofi~ia~s e soldados num terreno de aparente neu­trah.dade, e supenondade sobre as íaccóes; porém, é o exérci­to, ISt~ e, ~ Estado-M~ior e a oficialidade, quem determina anova ,Sl~Ua¡;aO e a domina: Por outro lado, nao é verdade que

. o exército, ~egundo ?s Constituicóes, jamais deve fazer políti­ca; o exército devena exatamente defender a Constituicáo, aforma legal do .Estado. e .a~ instituicóes conexas; por isso, achamada n~utr~hda~e significa apenas apoio a parte retrógra­da. Em taI~ sltua¡;oe.s, tor?a-se necessário colocar a questáod~s~~ manelf~ para impedir que se reproduza no exército a~hvIsao do paI~,. e que desapareca, através da desagregacándoinstrumento militar, o poder determinante do Estado-Maior, Naverdade, todos éstes elementos de observacáo nao sao abso­lutos; o seu peso é muito diferente nos diversos momentos his-tóricos e nos vários países. .

A primeira índagacáo que se deve fazer é esta: existe numde.terminado país urna camada social ampla para a qual a cal"~elfa burocrática, civil e militar, constitui um elemento muitoI~porta~te de vida económica e afirmacáo política (participa­cao efetiva no poder, mesmo indiretamente, pela "chantagem")?Na Europa, n:oderna es.ta camada pode ser localizada na pe­quena e .média burguesía rural, que é mais ou menos nume­rosa nos diversos países de acordo com o desenvolvimento dasforcas industriais, d~ um lado, e da reforma agrária, de outro'É claro que a carreira burocrática (civil e militar) nao é ummonopólio desta .camada social: todaviá, ela lhe é particular­mente apta em virtude da funcáo social que esta camada rea­liza e das tendencias psicológicas que a .funcáo determina ouf~vorece. Estes dois. elementos dáo ao conjunto do grupo sa­cial certa homogeneidade e enerzia para dirigir e portantoe ;» b . ,. , ._ - .,

um valor político e urna funcáo muitas vezes decisiva no ám-b~to do organismo social. Os elementos deste grupo estáo ha­bituados a comandar diretamente núcleos de homens mesmoexíguos, e a comandar "políticamente", nao "economicamente";na sua arte de comando nao existe a disposicáo de ordenaras "coisas", de "ordenar homens e coisas" num todo orgánico,como ocorre na producáo industrial, pois este grupo nao temfuncñes económicas no sentido moderno da palavra. Ele tem

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uma renda porque jundicamente é proprietário de uma partedo solo nacional, e a sua funcáo consiste em impedir "politi­camente" o camponés cultivador de melhorar a sua existencia,pois qualquer melhoria da posicáo relativa do camponés seriacatastrófica para a sua posicáo social. A miséria crónica e otrabalho prolongado do camponés, com o conseqüente embru­tecimento, representam para ele uma necessidade primordial.Por isso emprega a máxima energia na resistencia e no contra­ataque a mínima tentativa de organizacáo autónoma do tra­balho camponés e a qualquer movimento cultural camponésque ultrapasse os limites da religiáo oficial. Os limites destegrupo social e as razóes da sua fraqueza íntima situam-se nasua dispersáo territorial e na "nño-homogeneidade" mtimamen­te ligada a esta dispersáo. Isto também explica outras caracte­rísticas: a volubilidade, a multiplicidade dos sistemas ideoló­gicos a que aderem, o próprio exotismo das ideologias algumasvezes encampadas. A vontade está decididamente orientada pa­ra um fim, mas é vagarosa e freqüentemente necessita de umlongo processo para centralizar-se orgánica e politicamente. Oprocesso se acelera quando a "vontade" específica desse grupocoincide com a vontade e os interesses imediatos da classe alta;nao só o processo se acelera, como manifesta-se repentinamen­te a "forca militar" dessa camada, que algumas vézes, depoisde se organizar, dita leis a classe alta, se nao pelo conteúdo,pelo menos no que se refere a "forma" da solucáo. Observa-seneste caso o funcionamento das mesmas leis que se configu­raram nas relacóes cidade-c:ampo no tocante as classes subal­ternas: a forca da cidade automaticamente se transforma emforca do campo. Mas, em virtude de que no campo os confli­tos logo assumem uma forma aguda e "pessoal", dada a ausen­cia de margens económicas e a normalmente mais pesada pres­sao de cima para baixo, assim, no campo, os contra-ataquesdevem ser mais rápidos e decisivos. Este grupo compreende eve que a origem das suas preocupacóes está nas cidades, nafórca das cidades, e por isso entende de "dever" ditar a solucáoas classes altas urbanas, a fim de que o foco seja apagado,mesmo se ísto nao fór da conveniéncia imediata das classes al­tas urbanas, seja porque muito dispendioso, ou porque perigosoa longo prazo (estas classes véem ciclos mais amplos de desen­volvimento nos quais é possível manobrar.e nao apenas o in­teresse "físico" imediato). A funcáo dirigente desta camada

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deve ser entendida neste sentido, e nao em sentido absoluto; oque nao é pouco1. Deve-se notar como este caráter "militar"do grupo social em questáo, que era tradicionalmente um re­flexo espontáneo de determinadas condicóes de existencia, éagora conscientemente educado e predisposto organicamente.Enquadram-se neste movimento consciente os esforcos siste­máticos para criar e manter permanentemente diversas. asso­ciacóes de militares reformados e de ex-combatentes dos várioscorpos e armas, ligadas aos Estados-Maiores e capazes de se­rem mobilizadas quando necessário. Isto evitaria a necessidadede mobilizar o exército regular, que manteria, assim, o seucaráter de reserva em estado de alerta, reforcada e imune adecomposicáo política 'destas forcas "privadas" que nao pode­riam deixar de influir sobre o seu "moral", sustentando-o e

. fortalecendo-o. Pode-se dizer que ocorre um movimento dotipo "cossaco", nao em formacóes escalonadas dentro dos li­mites da nacionalidade, como se verificava com os cossacosczaristas mas dentro dos "limites" de grupo social. Portanto,em toda uma série de países, a influencia do elemento militarna vida estatal nao significa apenas influencia e peso do ele­mento técnico militar, mas influencia e peso da camada socialfundamental de origem do elemento técnico-militar (especial­mente os oficiais subalternos). Esta série de observacñes é

indispensável para a análise do aspecto mais íntimo daqueladeterminada forma política que se convencionou chamar decesarismo ou bonapartismo; para distingui-la de outras formasem que o elemento técnico-militar como :tal predomina sobformas talvez ainda mais destacadas e exclusivas.

A Espanha e a Grécia oferecem dois exemplos típicos,com aspectos semelhantes e diversos. Na Espanha é preciso le­varem conta algumas particularidades: tamanho do territórioe baixa densidade da populacáo rural. Nao existe, entre o lati­fundiário nobre e o camponés, urna numerosa burguesia rural;1 Pode-se ver um reflexo deste grupo na atividade ideológica dos in­telectuais conservadores de direita. O livro de GAETANO MOSCA, Teo­rica dei governi e governo parlamentare (segunda edicño de 1925, pri­meira edícáo de 1883) é exemplar a este respeito; já em 1883 Moscase aterrorizava com um possível contato entre cídade e campo. Mosca,pela sua posícáo defensiva (de contra-ataque), compreendia melhor em1883 a técnica da política das classes subalternas do que a compreen­deram, mesmo alguns decéníos depois, os representantes destas forcassubalternas, inclusive urbanas.

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portanto, era escassa a importancia da oficialidade subalternacomo forca em si (ao contrário, tinha certa importancia deantagonista a oficialidade das armas especializadas, artilharia eengenharia, de origem burguesa urbana, que se opunha aosgenerais e procurava ter urna política própria). Assim, os go­vernos militares sao governos de "grandes" generais. Passivi­dade das massas camponesas como populacáo e 'lomo tropa.Se no exército verifica-se desagregacáo política, é em sentidovertical, nao horizontal, fruto da competicáo entre as cama­rilhas dirigentes: a tropa se:. divide para seguir os chefes emluta entre si. O governo militar é um paréntese entre dois go­vernosconstitucionais; o elemento militar é a reserva perma­nente da ordem e do conservadorismo, é urna torca políticaque atua "publicamente" quando a "legalidade" está em peri­go. O mesmo ocorre na Grécia, com a diferenca de que o ter­ritório grego se espalha num sistema de ilhas e de que urnaparte da populacáo mais enérgica e ativa está sempre no mar,o que torna mais fácil a intriga e a conspiracáo militar. Ocamponés grego é passivocomo o espanhol; mas, no quadroda populacáo total, quando, por ser marinheiro, o grego maisenérgico e. ativo está quase sempre longe do seu centro de vidapolítica, a passividade geral deve ser analisada diversamente,e a solucáo do problema nao pode ser a mesma (o fuzilamen­to dos membros de um governo derrubado, há alguns anos,provávelmente deve ser explicado como urna explosáo de có­lera desteelemento enérgico e ativo, que-pretendeu dar urnasangrenta licáo). O que se deve observar especialmente é que,na Grécia e na Espanha, a experiencia do governo militar naocriou urna ideología política e social permanente e formalmenteorgánica, como sucede nos países potencialmente bonapartis­tas, para usar a expressáo. Mas as condicóes históricas geraisdos dois tipos sao as mesrnas: equilíbrio dos grupos urbanosem luta, o que impede o jogo da democracia "normal", o par­lamentarismo; a influencia do campo neste equilíbrio, entre;tanto,é diferente. Nos países como a Espanha, o campo, com­pletamente passivo, permite aos generais da nobreza latifun­diária servirem-se políticamente do exército para restabelecero equilíbrio em perigo, isto é, o triunfo dos grupos altos, Emoutros países o campo nao é passivo, mas o seu movimentonao está políticamente coordenado com o urbano: o exércitodeve permanecer neutro, pois épossível que de outro modo ele

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se desagregue horizontalmente (permanecerá neutro até certoponto, entenda-se). Em lugar dele, entra em acño a c1asse mi­litar burocrática, que, utilizando meios militares, sufoca o mo­vimento no campo (de irnediato o mais perigoso). Nesta luta,o "movimento no campo registra certa unificacáo política e

'ideológica, encontra aliados nas c1asses médias urbanas (médias.no sentido italiano) reforcadas pelos estudantes de origem ru­ral que vivem nas cidades, impóe os seus métodos políticos asc1asses altas, as quais devem fazer muitas concess6es e permi­tir urna determinada legislacáo favoráve1. Enfim, consegue, atéum determinado ponto, permear o Estado de acordo com osseus interesses e substituir uma parte dos quadros dirigentes;continuando a se manter armado no desarmamento geral, de­senha apossibilidade de uma guerra civil entre os seus adep­tos armados e o exército regular, no caso de a c1asse alta mos­trar muita disposicáo de resistencia. Estas observacóes nao de­vem ser concebidas corno esquemas rígidos, mas apenas comocritérios práticos de interpretacáo histórica e política: Nas aná­lises concretas de fatos reais, as formas históricas sao caracte­rísticas e quase"únicas". César representa urna combinacáode circunstancias reais bastante diversa da combinacáo repre­sentada por Napoleáo l, da mesma forma que Primo de Rivera,Zivkovich, etc.

Na análise do terceiro grau ou momento do sistema dasrelacóes de forca existentes numa determinada situacáo, pode­se recorrer proveitosamente ao conceito que na ciencia militaré conhecido por "conjuntura estratégica", ou seja, mais preci­samente, ao grau de preparacáo estratégica do teatro da luta,doqual um dos elementos principais é fornecido pelas condi­cóes qualitativas do pessoal dirigente das forcas ativas que po­dem ser chamadas de primeira linha (inc1uídas nestas as fórcasde assalto). O grau de preparacáo estratégica pode dar a vitó­ria a forcas "aparentemente" (isto é, quantitativamente) in­feriores .as do adversário. Pode-se dizer que a preparacáo es­tratégica tende a reduzir a zercos chamados "fatores impon­deráveis", as reacóes ínstántaneas de surpresa, num determi­nado momento, adotadas .. por torcas tradicionalmente inertese passivas. Devem ser computados entre os elementos da pre­paracáo de urna conjuntura estratégica favorável aqueles con­siderados nas observacóes sobre a existencia e a organizacño

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de urna camada militar ao lado do organismo técnico do exér­cito nacional'.

Outros elementos podem ser elaborados a partir deste tre­cho do discurso pronunciado no Senado, em 19 de maio de1932, pelo Ministro da Guerra, General Gazzera (d. Corrie­re della Sera de 20 de maio): "O regime disciplinar do nossoexército constitui hoje, gracas ao fascismo, uma diretiva paratoda a nacáo. Outros exércitos tiveram e ainda tém uma dis­ciplina formal e rígida. Nós temos sempre presente o princí­pio de que o exército é feito para a guerra e que para eladeve-se preparar; portanto, a disciplina de paz deve ser a mes­ma disciplina do tempo de guerra, que no. tempo de paz deveencontrar o seu fundamento espiritual. A nossa disciplina ba­seia-se no espírito de coesáo entre chefes e gregários, coesáo queé fruto espontáneo do sistema seguido. Este sistema resistiumagnificarnente, durante uma longa e duríssima guerra, até avitória; é mérito do regime fascista ter levado a todo o povoitaliano uma tradicáo disciplinar tao insigne. Da disciplina decada um depende o éxito da concepcáo estratégica e das ope­racóes táticas. A guerra ensinou muitas coisas, inclusive quehá uma separacáo profunda entre a preparacáo de paz e arealidade da guerra. É claro que, qualquer que seja a prepa­racáo, as operacóes iniciais da campanha colocam os belige­rantes diante de problemas novos que dáo Tugar a surpresasde uma parte e de outra. Por isso, nao se deve chegar a con­clusáo de que nao é útil formular uma concepcáo a priori eque nenhum ensinamento pode ser extraído da guerra passada.Pode-se extrair dela uma doutrina de guerra, que deve ser

1 A propósito da "camada militar", é interessante o que escreve T,TITTONI, em Ricordi personali di política interna, Nuooa Antologia,1-16 de abril de 1929, Confessa Tittoni ter meditado sobre o fato deque, para reuriir a forea pública necessária a enfrentar os tumultos eclo­didos numa localidade, era necessárío desguarnecer outras regi6es. Du­rante a Semana Vermelha de [unho de 1914, foi necessário desguarnecerRavenna para reprimir os motíns de Ancona . Em seguida, privado daforea pública, o prefeito de Ravenna teve de se trancar na prefeitura,abandonando a cidade aos revoltosos, "Muítas vezes perguntei a mimmesmo o que poderia fazer o governo se um movimento de revolta ti­vesse eclodido simultaneamente 'ern toda a península", Tittoni propós aogoverno a críacáo dos "voluntáríos da ordem", ex-combatentes dirigidospor oficiais reformados, O projeto de Tittoni parece que obteve algumaconsideracño, mas nao teve seqüéncía.

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recebida com disciplina intelectual e como meio para promo­ver formas de juízo nao discordantes e uniformidade de lin­guagem, de modo a permitir a todos que compreendam e sefacam compreender. Se, as vezes, a unidade doutrinária amea-

,cou 'degenerar em esquematismo, a reacáo foi imediata, im­primindo a tática, inclusive através dos progressos da técnica,urna rápida renovacáo, Portanto, esta regulamentacáo nao éestática, nao é tradicional, como alguns créem. A tradicáo éconsiderada apenas como forca, e os regulamentos estáo sem­pre em curso de revisáo, nao por desejo de mudanca, maspara pode-los adequar a realidade". (Um exemplo de "prepa­racáo daconjuntura estratégica" pode ser encontrado nas Me­márias de Churchill, no trecho em que fala da batalha da Ju­tlándia.)

o cesarismo. César, Napoleáo 1, Napoleáo III, Cromwell,e outros. Compilar um catálogo dos eventos históricos queculminaram numa grande personalidade "heróica".

Pode-se afirmar que o cesarismo exprime urna situacáoem que as forcas em luta se equilibram de modo catastrófico,isto é, equilibram-se de tal forma que a continuacáo da luta sópode levar a destruicáo recíproca. Quando a forca progres­sista A luta contra a forca reacionária B, nao só pode ocorrerque A venca B ou B venca A, mas também pode suceder quenem A nem B vencam, porém se aniquilem mutuamente, eurna terceira forca, C, intervenha de fora submetendo o queresta de A e de B,. Na Itália, depois da morte do Magnífico,sucedeu exatamente isto.

Mas o cesarismo, se exprime sempre a solucáo "arbitral",confiada a uma grande personalidade, de urna situacáo histó­rico-política caracterizada por um equilíbrio de forcas de pers­pectiva catastrófica, nao tem sempre o mesmo significado hís­tórico. Pode haver um cesarismo progressista e um cesarismoreacionário; mas em última análise, o significado exato de cadaforma de cesarismo só pode ser reconstruído pela história con­creta, e nao por um esquema sociológico. O cesarismo é pro­gressista quando a sua intervencáo ajuda a forca progressistaa triunfar, mesmo com certos compromissos e medidas quelimitam a vitória; é reacionário quando a sua íntervencáo aju-

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da a torca reacionária a triunfar, também neste caso com de..terminados compromissos e Iimitacóes que tém um valor, umalcance. e um significado diversos, opostos aos do caso prece­dente. César e Napoleáo I sao exemplos de cesarismo progres­sista. Napoleáo III e Bismarck de cesarismo reacionário.

Trata-se de ver se na dialética "revolucáo-restauracño" éo elemento revolucáo ou o elemento restauracáo que prevalece,já que é cerio que no movimento histórico jamais se volta atrás,e nao existem restauracóes in tato. De resto, o cesarismo é urnafórmula polémico-ideológica, e nao um cánone de interpre­tacáo histórica. É possível haver urna solucáo cesarista mesmosem um César, sem urna personalidade "heróica" e represen­tativa. Também o sistema parlamentar criou um mecanismopara tais solucóes de compromisso. Os governos "trabalhistas"de MacDonald eram, num determinado grau, solucóes dessanatureza; o grau de cesarismo elevou-se quando foi formado ogoverno com MacDonald na presidencia e urna maioria con­servadora. Da mesma forma na Itália, em outubro de 1922,até o afastamento dos "populares", e depois, gradualmente, até3 de janeiro de 1925, e ainda até 8 de novembro de 1926,verificou-se um movimento histórico-político em que diversasgradacóes de cesarismo se sucederam até urna forma mais purae permanente, embora também esta nao imóvel e estática. Ca­da governó de coalizáo é um grau inicial de cesarismo, quepode ou- nao se desenvolver até graus mais significativos (aocontrário, a opiniáo vulgar é a de que os governos de coalízáoconstituem o mais "sólido baluarte" contra o cesarismo). Nomundo moderno, com as suas grandes coalizóes de carátereconómico-sindical e político partidário, o mecanismo do fe­nómeno cesarista é muito diferente do que foi até Napoleáo111. No período que culminou com Napoleáo 111, as torcasmilitares regulares ou de fileira constituíam um elemento de­cisivo para o advento do cesarismo, que' se verificava atravésde golpes de Estado precisos, de acóes militares, etc. No mun­do moderno, as torcas sindicais e políticasvcom os meios fi­nanceiros incalculáveis de que podem dispor pequenos gruposde cidadáos, complicam o problema. Os funcionários dos par­tidos e dos sindicatos económicos podem ser corrompidos ouaterrorizados, sem que haja necessidade de acóes militares emgrande estilo, tipo César ou 18 Brumário. Reproduz-se neste

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\

campo a mesma situacáo examinada a propósito da fórmulajacobino-revolucionária da chamada "revolucáo permanente'",A técnica política moderna mudou completamente depois de1848, depois da expansáo do parlamentarismo, do regime as-

" soeiativo isindical e partidário, da formacáo de amplas buro­.cracias estatais e "privadas" (político-privadas, partidárias ú

, sindicais) e das transformacóes que se verificaram na políticanum sentido mais largo, istoé, nao só do servíco estatal des­tinado a repressáo da delinqüéncia, mas do conjunto das forocas organizadas pelo Estado e pelos particulares para tutelaro domínio político e económico das c1asses dirigentes. Nestesentido, inteiros partidos "políticos" e outras organizacóes eco­nómicas ou de outro genero devem ser considerados organis­mos de polícia política, e de caráter investigativo e preventivo.O esquema genérico das torcas A e B em luta com urna pers­pectiva catastrófica, isto é, com a perspectiva de que nem Anem B vencam na luta para constituir (ou reconstituir) umequilíbrio orgánico, da qual nasce (pode nascer) o cesarismo,é precisamente urna hipótese genérica, um esquema socioló­gico (conveniente para a arte política). A hipótese pode-setornar sempre mais concreta, pode ser levada a um grau sem­pre maior de aproximacáo da realidade histórica concreta, oque pode ser obtido determinando alguns elementos funda­mentais.

Assim, falando de A e de B só se disseque elas sao umarorca genericamente progressístae urna fC.<f<;agenericamentereacíonana. Pqge-:,s~ precisar' de .que tipoae forcas progres­sistas e reacióriárlas se 'trata e, desse modo, alcancar maioresaproximacóes, Nos casos de César e Napoleáo pode-se dizerque A e B, mesmo sendo distintas e contrastantes, nño eramtorcas tais que nao pudessem "absolutamente" chegarva urnafusáo e assimilacáo recíproca depois de um processo molecular;o que de fatoocorreu, pelo menos em certa rnedida (todavíasuficiente para os objetivos histórico-políticos da cessacáo daluta orgánica fundamental e, portanto, para a superacáo dafase catastrófica). Este é um elemento de maior aproximacáo,Outro elemento é o seguinte: a fase catastrófica pode emergirem virtude de urna deficiencia política "momentánea" da for<;adominante tradicional, .e nao agora em virtude de urna -defi-

1 Ver nota na pág. 42. (N. do T.)

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ciencia orgánica necessariamente msuperável, Foi o que se ve­rificou no caso de Napoleáo 111. A forca dominante na Fran­cade 1815 a 1848 dividira-se políticamente (sediciosamente)em .quatro fracóes: a legitimista, a orleanista, a bonapartistae a jacobino-republicana. As lutas internas entre' as faccóeseram de tal ordem que tornavam possível o avance da forcaantagonista B (progressista) de forma "precoce"; mas a for­ma social existente ainda nao exaurira as suas possibilidadesde desenvolvimento, como al História em seguida provou abun­dantemente. Napoleáo 111 representou (a sua maneira, de acor­do com a estatura do homem, que era grande) estas possibili­dades latentes e imanentes: o seu .cesarismo, assim, tem umcolorido particular. O cesarismo de César e de Napoleáo 1foi, por assim dizer, de caráter quantitativo-qualitativo, repre­sentou a fase histórica de passagem de um tipo de Estadopara outro, urna passagem em que as inovacóes foram tantase de tal ordem que representaram urna transformacáo com­pleta. O cesarismo de Napoleáo III foi só e limitadamentequantítatívo.vnño se verificou a passagem de um tipo de Estadopara outro, mas só "evolucáo" do mesmo tipo, segundo urnalinha ininterrupta.

No mundo moderno, os fenómenos de cesarismo sao in-oteiramente diversos, tanto daqueles do tipo progressista César­Napoleáo l, como também daqueles- do tipo Napoleáo JII,embora se aproximem deste- último. No mundo moderno, oequilíbrio com perspectivas catastróficas náo se verifíea entreforcas queyem últimaanálise, poderiam fundir-seg uaíñcar-se,mesmo depois de um "proeesso fatigáiilee' sañgreñto, mas en.tre forcas cujo contraste é insanável historicamente, e que seaprofunda com o advento de formas de cesarismo. Todavia,o cesarismo no mundo moderno ainda encontra urna margem,maior ou menor, de acórdo com os países e o seu peso rela­tivo na estrutura mundial, [á que urna forma social "sempre"tem possibilidades marginais de desenvolvimento ulterior e desistematízacáo organizativa. Ela pode contar especialmente coma fraqueza relativa da forca progressista antagonista, devidaa suanatureza e ao seu modo de vida particular, fraqueza quedeve ser mantida: por isso afirmou-se que o cesarismo moder­no mais do que militar é policial.

Seria um erro de método (um aspecto do mecanicismosociológico) considerar que" nos fenómenos de cesarismo, tan-

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to progressistas como reacionanos ou de caráter intermediá-:rio ~pisódico, qualquer novo fenómeno histórico derive do equi­lfbrio entre as forcas "fundamentais"; também é necessárioexaminar as relacóes supervenientes entre os grupos principais

" (de genero diferente, social-económico e técnico-económico)~as classes fundamentaís e as forcas auxiliares guiadas ou sub­metidas a influencia hegemónica. Desse modo nao se compre­

'enderia o golpe de Estado de 2 de dezembro sem se estudar a_funcáo dos grupos militares e dos camponeses franceses.

Urn episódio histórico muito importante desse ponto devista é o chama~o movimento provocado pelo caso Dreyfusna Franca; tambem ele deve ser considerado nesta série deobservacñes, nao porque tenha levado ao "cesarismo", masexatamente pelo contrário: porque impediu a ocorréncia deum cesari~mo de car~ter nítidamente reacionário, que estavae~ gestacáo, O movnnento Dreyfus é característico, porquesao ele~entos do mesmo bloca social dominante que frustramo cesansmo da sua parte mais reacionária, apoiando-se· naonos camponeses, no campo, mas nos elementos subordinadosda cidade, guiados pelo reformismo socialista (e também naparte mais avancada das massas camponesas). Encontramosoutros mo_vimentos histórico-políticos modernos do tipo Drey­fus que nao sao, certamente, revolucóes, mas também nao sao~tei~amente reacionários, tendo em vista que rompem crista­lizacóes sufocantes no campo dominante e inserem na vida' doEstado e nas atividades sociais um pessoal diferente e maisnumeroso do que o precedente. Inclusive estes movimentos po­dem ter um conteúdo relativamente "progressista" na medidaem que assinalam a existencia, na velha sociedade, de forcasatuantes latentes nao desfrutadas pelos velhos dirigentes; mes­~o send~ "torcas marginais", nao sao absolutamente progres­sístas, pois nao podem "marcar época". Tornam-se historica­mente eficientes em virtude da debilidade construtiva do anta­gonista! na~de urna .for<;a própria .interior, fato que as liga aurna sítuacáo determmada de equilíbrio das forcas em lutaambas inc~p~zes dé exprimir urna vontade construtiva peculiarno seu propno campo.

Lutap~lítica e guerra militar. Na guerra militar, alean­cado o objetivo estratégico ---'- destruicáo do exército inimigo

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e ocupacáo do seu território - chega-se a paz ..Alé~ do mais,deve-se observar que, para que a guerra termine, e ~astante·

que o objetivo estratégico seja .alca~l$~do apenas potenclal}Il~n­te: ésuficientenao haver mais dúvidas de que um exércitonao pode mais lutar e de que o exército vitorioso "pode"ocupar o território inimigo. A luta política é muitíssimo maiscomplexa: em certo sentido pode ser c?mparada as guer~as

coloniais ou as velhasguerras de conquísta, quando o exer­cito vitorioso ocupa ou se prop6e ocupar permanentemente to­do ou urna parte do território conquistado. Entáo, o .exércitovencido é desarmado e dissolvido, mas a luta continua noterreno político e da "preparacáo" militar.

Assim a luta política da India contra os ingleses (e, emcerta medida a luta da Alemanha contra a Franca ou da Hun­gria contra ~ Pequena Entente) conhece tres forn~as d~ guer­ra: de movimento, de posicáo e subterránea, A reslstencl~ pas­siva de Gandhi é uma guerra de posicáo, que em determinadosmomentos se transforma em guerra de movimento e, em outros,em guerra subterránea: o boicote é guerra d: posicáo, ~s. gre­ves sao guerras de movimento, a preparacao clandestm~ dearmas ee1ementos combativos de assalto é guerra subterranea.Há urna forma de arditismo; mas ela é empregada com muitaponderacáo. Se os ingleses estivessem convencidos da prepa­racáo de um grande movimento insurrecional destina~o a es­magar a sua atual superioridade estratégica (que cons~ste, e~

certo sentido na sua possibilidade de manobrar atraves de Ii-, . "nhasinternas e de concentrar as suas forcas no ponto espo-radicamente" mais perigoso) com um levante em ~~ssa ­isto é, obrigando-os a dispersar forcas n~~ teatro belic? .t~r­

nado simu1taneamente geral --. a eles convma provocar a uncia­tiva prematura das forcas indianas para identifi~~-la~.e des­truir o movimento geraI. Da mesma forma convma a Francaque a direita nacionalista alemá se envo~vess~ nu~. gol~e deEstado aventureiro que levasse a orgaruzal$ao. ~ruhtar de~al

presumida a se manifestar prematura?Jente, pe!'mltmd? uma m­tervencáo tempestiva do ponto de VIsta frances. Assím, nestasformas de luta mistas, de caráter militar fundamental e de ca­ráter político preponderante (mas cada luta política tem sempreum substrato militar), o emprego dos grupos de assalto exigeurna formulacáo tática original, paracuja concepcáo a expe­riencia da guerra só pode dar um estímulo, nao um modelo.

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Tratamento a parte deve ser dado a questáo dos comitagi bal­cánicos, que estño ligados a condicóes particulares do ambientefísico-geográfico regional, a formacáo das classes rurais e tam­bém a eficiencia real dos governos. O mesmo se deve fazer em

. relacáo aos grupos irlandeses, cuja forma de guerra e de oroganizacáo se vinculava a estrutura social irlandesa. Os comi­tagi, os irlandeses e as outras formas de guerra de guerrilhasdevem ser separadas da questáo do arditismo, embora parecam

. ter pontos de contato com ele. Estas formas de luta sao pró­prias de minorias débeis, mas exasperadas, contra maioriashem organizadas; enquanto que o arditismo moderno pres­supóe urna grande reserva, imobilizada por várias razóes, maspotencialmente eficiente, que o sustenta e alimenta com con­tribuicóes individuais.

A relacáo existente em 1917-18 entre as- formacñes deassa1to e o exército no seu complexo pode levar e já levou osdirigentes políticos a erróneas formulacóes de planos de luta.Esquece-se: 1) que os grupos de assa1to (arditi) sao simplesformacóes táticas e pressup6em um exército pouco eficiente,mas nao completamente inerte: pois se a disciplina e o espíri­to militar relaxaram até ao ponto de aconselhar uma nova dis­posicáo tática, em certa medida nao deixaram de existir, poisa novadisposicáo tática corresponde exatamente a disciplina eao espírito militar; de outro modo, seria a derrota total e a,fuga; 2 ) que -náo é necessário considerar o arditismo comoum sinal da combatividade geral da massa militar, mas vice­versa, como um sinal da sua passividade e da sua relativa des­moralizacáo, Isto deve ser compreendido através do critériogeral de que as comparacóes entre a arte militar e a política de­vem ser sempre estabelecidas cum grano salis, isto é, apenascomo estímulos ao pensamento e como termos simplificativosad absurdum. Efetivamente, na militancia política nao existea sancáo penal implacável para quem erra ou nao obedecepontualmente, falta o julgamentomarcial, além de que o dis­positivo político nao se compara nem de longe ao dispositivomilitar.

Na luta política, além das guerras de movimento, décerco ou de posicáo, existem outras formas. O verdadeiro ardi­tismo, o arditismo moderno, é próprío da guerra de posicáo,como se viu em 1914-18. Também a guerra de movimento e

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3. guerra de cerco dos períodos anteriores tinham os seus ardi­ti, em certo sentido; a cavaIaria ligeira e pesada, os bersaglieri,etc., as armas ligeiras em geral desempenhavam em parte umafuncáo de grupos de assalto. Na arte de organizar as patru­lhas maniíestava-se o embriáo do arditismo moderno. Embriáoque surgía com mais vigor na guerra de cerco do que naguerra de movimento: servico de patrulhas mais amplo e es­pecialmente arte de organizar sortidas imprevistas e imprevis­tosassaltos com elementos escolhidos.

Outro elemento a se levar em conta é o seguinte: na lutapolítica nao é necessário imitar os métodos de luta das classesdominantes, sem cair em emboscadas fáceis. Nas .lutas atuaismuitas vezes verifica-se este fenómeno: urna organízacáo es­tatal debilitada é como um exército enfraquecido; entram ernacáo os grupos de assalto, isto é, as organízacóes armadas pri­vadas, que tém duas missóes: usar a ilegalidade, enquanto oEstado parece permanecer na legalidade, como meio para reor­ganizar o próprio Estado. Acreditar que se possa opor a ati­vidade privada ilegal outra atividade semelhante, isto é, com­bater o arditismo com o arditismo, é urna tolice; significa acre­ditar que o Estado permaneca eternamente inerte, o que ja­mais ocorre, além das outras condicóes díversas. O caráter dec1asse leva a urna diferenca fundamental: urna c1asse que devetrabalhar diariamente num horário determinado nao pode terorganizacóes de· assalto permanentes e especializadas, comourna c1asse que desfruta de amplas poss~bilidades financeirase nao está ligada, por tod.os os seus membros, a um trabalhofixo. Em qualquer hora do dia ·e da noite estas organizacóes,tornadas profissionais, podem vibrar golpes decisivos e atacarde imprevisto. Portanto,a tática dos grupos de assalto nao po­de ter, para determinadasclasses, a mesma importancia que.para outras; para determinadas classes é necessária, porqueprópria, a guerra de movimento e de manobra, que, no casoda luta política, pode-se combinar com um útil e talvez índis­pensável uso da tática dos grupos de assalto. Mas fixar-se nomodelo militar é tolice: a política deve, também neste caso,ser superior a parte militar, e só a política cria a possibilidadeda manobra e do movimento.

De tudo o que se dísse, resulta que no fenómeno do ardi­tismo militar é necessário distinguir entre funcáo técnica e

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f?n<;ao p.olític~-militar: como funcáo de arma especial, o ardi­tismo fOI aplicado por todos os exércitos na zuerra mundial:como :nn:<;ao po~~co-militar verificou-se nos ópaíses política-

_mente _n~o-ho~ogeneos e enfraquecidos, cuja expressáo eraum, exército nacional pouco combativo e um Estado-Maior bu­rocratizado e fossilizado na carreíra.

• A pr~pósito das comparacóes entre os conceitos de guer­ra de. movlIDe~to e de guerra de posicáo na arte militar e os

.conceitos relativos na arte política, deve-se recordar o opús­culo de Rosal, traduzido para o italiano em 1919 por e Ales-sandri (traduzido do francés). .

, No op.ú~culo teoriza-se um poueo apressadamente e tam­be~ superficialmente sobre as experiencias históricas de 1905:efetivamente, Rosa desprezou os elementos "voluntários" e or­ga~izativos, muito mais difundidos e eficientes naqueles .acon­teclm~nto~, do que. el~ pudesse crer, em virtude de certo pre­conceíto economIs!a e espontaneísta , Todavia, este opús­cul? (~ 0.u~ros. ensaios do mesmo autor) é um dos documentosmais ~IgmficatIv~~ da. teorizacáo da guerra de movimento apli­cada .~ arte.política. O elemento económico imediato (crises,etc.), e considerado como a. ~rti~aria de campo que na guer­ra abre a ?recha na defesa mmnga, brecha suficiente para quea~ .tropas irrompam e obtenham um sucesso definitivo (estra­t~glCO), ou 'p~lo menos um sucesso importante no sentido dah~a estratégica. Naturalmente, na ciencia histórica a eficá­CIa. do el~ento económico imediato era considerada muito~aIS comple~a .do que a da artilharia pesada na guerra de mo­vimento, pois este elemento era concebido como tendo umduplo. efeito: 1) abrir a brecha na defesa inimiga, depois deter desbaratado e levado as suas fileiras a perder a fé em si,nas suas forcas e no seu futuro; 2) organizar rapidamente assuas tropas, criar o.s quadr~s, ou, pelo menos, colocar os qua­dros eXIstente~ (criados ate entáo pelo processo histórico ge­ral) com ral~lldez .no posto que lhes cabia no enquadramentod~s !ropa~ .dIsse~nadas; 3) criar imediatamente a concentra­cao ideológica da identidade do fimo a ser alcancado , Era urnaforma de fér~eo determinism~economista, com a agravantede que os efeitos eram concebidos como rapidíssimos no tem-

1 ,ROSA DE· LUXEMBURGO, Lo sciopero generale - il partito e i· sind~­cati, S. E. "Avantí!", Mil1ío, 1919. (N. e l.)

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po e no espaco; por isso constituía um verdadeiro misticismohistórico, a expectativa de uma espécie de fulguracáo milagrosa,

A observacáo do General Krasnov (no seu romance) 1

de que a Entente (que nao queria urna vitória da Rússia im­perial, para que nao se resolvesse definitivamente a favor doczarismo a questáo oriental) ímpós ao Estado-Maior russo aguerra de trincheira (absurda, em virtude da extensáo dafren­te _ do Báltico ao Mar Negro e com grandes zonas pantano­sas e boscosas), enquanto que a única possível era a guerrade movimento, é urna tolice. Na realidade, o exército russo ten­tou a guerra de movimento e de penetracño, especialmente nosetor austríaco (mas também na Prússia Oriental) e alean­cou éxitos brilhantes, embora eíémeros. A verdade é que naose pode escolher a forma de guerra que se quer, a menos quese tenha urna superioridade esmagadora sobre o inimigo, e ésabido quantas perdas custou a obstinacáo dos Estados'-Maio­res em nao quererem reconhecer que a guerra de posicáo era"imposta" pela relacáo geral das forcas em choque. Efetiva­mente, a guerra de posicáo nao é determinada apenas pela lutade trincheira, mas por todo o dispositivo organizativo e indus­trial que suporta o exército combatente; e é imposta especial­mente pelo tiro rápido dos canhóes, das metralhadoras, dosmosquetóes, pela concentracáo das armas num determinadoponto, além de que pela abundancia do fomecimento, que per­mite a substituicáo rápida do material perdido depois de urnapenetracáo e de um recuo. Outro elemento é a grande massade homens que participam do dispositivo, de valor muito de­sigual e que só podem operar como massa. Ve-se como nafrente oriental urna coisa era irromper no setor alemáo, e ou­tra no setor austríaco, e como num setor austríaco reforcadopor tropas escolhidas alemás e comandado por alemáes a tá­tica do irrompimento acabava em desastre. Verificou-se a mes­ma coisa na guerra polonesa de 1920, quando o avance queparecia irresistível foi detiido as portas de Varsóvia pelo Ge­neral Weygand na linha c:omandada por oficiais franceses. Ospróprios técnicos militares que se ñxaram definitivamente naguerra de posícño, como antes se fixavam na guerra de ma­nobra, de modo algum sustentam que o tipo precedente deva

1 PIOTR KRASNOV, Vareaquila imperiale olla bandiera rossa, FlorencaSalani, 1928. (N. e!.)

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I~

r

ser riscado da ciencia' mas

~~~~~C!i~:!e~a:e~r~d;;:~~~::~~~E~" de manobra, guerra e cerco em relacáo a guerra

, P()líti~, ~~~:~:~~~~~ q~eeV~~sereI:;~fi~~~ ~~taa;: e ~a cienciados, onde a "sociedade civil" t forr s mais avanca-, rans ormou-se numa est tmuíto complexa e resistente a ,,' _" ru uraelemento econamico imediato s, irrupcoes _ catastróficas doperestruturas da sociedade civffr~~es, depressóes, etc.) : as su­cheiras na guerra moderna D ao comfo o SIstema de trin-, a mesma orma que o '

~~:'t;~~~si~m~U~~~.á~ d~ :g~~o,p~e:;a'J:~~ia e, so o atingira na sua superfície externa . . '

~o ~taqu~ os as~~ltantes defrontavam-se co~ .~:~ :I:t~r::e~t~ens~a al~da eficiente, assim ocorre na política durante :s

gran es cr~ses econormcas; nem as tropas atacantes .tude da ~rtse, organizam-se rápidamente no tempo e ~oe::p::ro•nem muito menos adquire ' . . ... ,mente, os atacados nao se~~:o~~t~~~, :=s~~Jn~eclproca-

~~:~~:=:~=i!fie;I.;::;~}E:E~;'apa~e~~r~~ao acel~rado, da marcha progressísta definitiva!aocadornismo político,o com o que esperavam os estrategistas do

O último fato desta natureza na hi té . , . .acontecimentos de 1917 El . 1 s ona política foram oscisiva na história da a~te ;sd~ss~~ a~am utp.a reviravolta de­necessário estudar com "profundid~~n~la p~lítt:.as, Portanto, é

da sociedade civil que . d e quals. sao os elementosn .' _ correspon em aos SIstemas de defesaa guerra. de posicao, Digo com "profundidade" intenci 1

mente, pOlS eles foram tud d . nciona -

~~~~~:~P~~i~~:fo~d~~~:iiac~;i:~~:1:f:at~~~t~~~d~oP~~:~:~~suasá dA'lS o e com a per-

flica~~s \i:l~st~~~:~n~:~~~~~a; ::ofb~~~~í~~;efs~~<:iS de ex-;J~:d~i~e, de resto, também nao se destroem ao ~::ei.°~~:

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Deve-se examinar se a famosa teoria de Bronstein sóbrea permanencia1 do movimento nao é reflexo político da teoriada guerra manobrada (recordar a observa~ao do general. ~oscossacos Krasnov), em última análise o reflexo das condicéesgerais e'conómicas-culturais-sodais de um país em que os~qua­dros da vida nacional sao embrionários e relaxados e nao sepodem tomar "trincheira ou fortaleza". Neste c~so. poder:se-~~dizer que Bronstein, que aparece como um ocidentalista",era, ao contrário, um cosmopolita, isto é, superficialmente na­cional .e superficialmente ocidentalista ou europeu. llich,2 aocontrário, era profundamente nacional e profundamente euro-peu,

Bronstein recorda nas suas memórias terem-lhe dito quea sua teoría se revelara boa quinze anos. .. depois, e respon­de ao epigrama com outro epigrama. Na realidade, a sua t~o­ria como tal nao era boa nem quinze anos antes, nem quin­ze' anos dep~is: como' sucedeicqm os obstinados, dos quaisfala Guicciardini, ele adivinhou em grosso, teve razáo na pre­visáo prática mais geral; da mesma for~a 9ue se preve 9.ueuma menina de quatro anos se tomara mae, e quando IStOocorre, vinteanos depois, se diz "adivinhei",. esquecendo 1'0­rém que quando a menina tinha quatro anos se tentara estu­prá-la, certo de que se tomarla máe, Parece-roe que llich com­preendeu que se verificara urna modíñcacño da guerra mano­brada, aplicada vitoriosamente no Oriente em 1917,3 para aguerra de posicáo, que era a única possível.no Oci~ente, onde,como observa Krasnov, num espaco estreito podiam acumu­lar quantidades indiscriminadas de municáo, .onde .os q~adr~ssociais eram de' per si' ainda capazes de se tomarem trínchei­ras municiadíssimas. Parece-me que esta seja a fórmula da"frente' única", que corresponde a concepeño de uma únicafrente da Entente sob o comando único de Foch.

So que llich. nao teve tempo de ap!ofundar a ~uafórm~a;mesmo levando em conta que ele podía aprofunda-la teonca­mente apenas, desde que a missáo fundamental er~a nacional,exigia um reconhecimento do terreno e uma fixa~ao dos ele­mentos de trincheira e de fortaleza representados pelos ele-

1 A teoría da "revolucáo permanente" de Trotski. ( N. e l. )1 Lénín , (N. e I.)2 Na Rússia .. (N. e I.)

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mentos de sociedade civil, etc. No Oriente, o Estado era tudo,a sociedade civil era primordial e gelatinosa; no Ocidente, ha­via entre o Estado e a socidade civil uma justa relacáo e emqualquer abalo do Estado imediatamente descobria-se urna po­derosa estrutura da sociedade civil. O Estado era apenas urna

.. trincheira avancada, por trás da qual se situava uma robusta.cadeía de fortalezas e casamatas; em medida diversa de Estado

,para Estado, é claro, mas exatamente isto exigia um acuradoreconheciménto do caráter nacional.

A teoria de Bronstein pode ser comparada a teoria decertos sindicalistas franceses sobre a greve geral e a' teoría deRosa no. opúsculo traduzido por Alessandri: os opúsculos deRosa e a teoria de Bronstein, além do mais, influenciaram ossindicalistas franceses, como se depreende de determinados ar­tip?s de Rosm,er sobre a Alemanha em Vie Ouvriére (primeirasene em fascículos). Eles,em parte, tambéni dependem dateoria da espontaneidade. .

o conceito de revoluciio passiva. O conceito de "revo­Iucño passiva" deduz-se rigorosamente dos dois princípios fun­damentais de ciencia política: 1) nenhuma formacáo social de­saparece enquanto as forcas produtivas que nela se desenvol­veram encontrarem lugar para um ulterior movimento progres­sista; 2) a sociedade nao assume compromissos para cuja so­lucño ainda nao tenham surgido as condicóes necessárias, etc.Assim, devem ser reportados a descricño dos tres momentosfundamentais que podem distinguir urna "situacáo'tou um equí­líbrio de torcas com o máximo de valorizacáo do segundo mo­mento ou equilibrio das torcas políticas e, especialmente, doterceiro momento ou equilíbrio político-militar.

Observa-se que Pisacane, nos seus Saggi, preocupa-se. comeste terceiro momento: ele compreende, diferentemente de Maz­zini, toda a importancia da presenca na Itália de um aguer­rido exército austríaco, sempre pronto a intervir em qualquerponto da península, e que, além do mais, tem atrás de si todaa potencia militar do império dos Absburgo, uma matriz sem­pre pronta a formar novosexércitos de. reforce. Outro ele­mento histórico a ser citado é o desenvolvimento do cristia­nismo no seio do Império Romano, assim como o fenómenoatual do gandhismo na .India e a teoria da nao-resistencia ao

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mal, de Tolstoi, que tanto se aproximam da primeira fase docristianismo (antes do édito de Miláo). O gandhismo e o tols­teísmo sao teorizacóes ingénuas e com tintura religiosa da"revolucáo passiva". Também devem ser citados .alguñs moví­mentos chamados "liquidacionistas" e as reacóes que susci­taram, em relacáo com os tempos e as formas de determinadassituacñes (especialmente do terceiro momento). O ponto departida para o estudo é o trabalho de Vineenzo Cuoco; masé evidente que a expressáo de Cuoco a respeito da revolucáonapolitana de 1799 nao passa de uma alusáo, pois o conceitoestá completamente modificado e enriquecido.

O coneeito de "revolucáo passiva", atribuído por Vín­cenzo Cuoco ao primeiro período do Risorgimento italiano,pode ser relacionado com o conceito de "guerra de posicáo",em confronto com a guerra manobrada? Isto é, estes conceitossurgiram depois da Revolucáo Francesa, e o binomio Prou­dhon-Gioberti pode ser justificado com o pánico criado peloterror de 1793, como o sorelianísmo com o pánico que seseguiu aos massacres de Paris em 1871? Existe uma identida­de absoluta entre guerra de posicáo e revolucáo passiva? Exis­te.pelo menos, ou pode ser concebido todo um período bis­tóríco em que os dois conceitos devem-se identificar até que aguerra de posicáo se transforme em guerra manobrada?

É necessário formular. um juízo "dinámico" sobre as "res­tauracóes", que constituiriam uma "astúcia da providencia" emsentido vichiano. Um problema existe: na luta Cavour-Mazzi­ni, em que Cavour é o expoente da revolucáo passiva-guerra deposicáo e Mazzini da iniciativa popular-guerra manobrada, naoseráo ambos indispensáveis na mesma medida? Todavia, é ne­cessário levar em conta que, enquanto Cavour tínhaconsciéncíada sua missao (pelo menos em certa medida), enquanto com­preendia a missáo de Mazzini, este parece que nao tinha cons­ciencia da sua e da missáo de Cavour; se, ao contrário, Mazzíriitivesse adquirido esta consciéncia, isto é, se fosse um políticorealista, e nao um apóstolo iluminado (se nao tivesse sido Mazzi­ni) o equilíbrio resultante da confluencia das duas atividades se­ria diferente, mais favorável ao mazzinianísmo: o Estado italianoter-se-ia constituído sobre bases menos atrasadas e mais mo-.demas. E já que em cada acontecimento histórico verificam-sequase sempre siutacñes semelhantes, deve-se ver se nao é pos­sível extrair daí alguns princípios gerais -de ciencia e de arte

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polí.ticas. Pode-se aplicar ao conceito de revolucáo passiva (do­cumentando-se no Risorgimento italiano) o critério interpre­tativo das modificacóes moleculares que, na realidade, modi­ficam progressivamente a composicáo precedente das torcas e,portanto, transformam-se em matriz de novas modificacóes,

.Assim, no Risorgimemo italiano viu-se como a passagem ao-cavourismo (depois de 1848) de novos elementos do Partidode Acáo modificou progressivamente a composicáo das íorcasmoderadas, liquidando o neoguelfismo, de um lado, e, de outro,empobrecendo o movimento mazziniano (a este processo per­tencem também as oscilacóes de Garibaldi, etc.). Logo, este ele­mento é a fase originária daquele fenómeno que se chamou maistarde "transformismo", cuja importancia, parece, nao foi atéagora dimensionada devidamente como forma de desenvolvi­mento hitórico.

Insistir no aprofundamento do conceito de que, enquantoCavour tinha consciencia da sua missáo e consciencia crítica damissáo de Mazzini, este, em virtude de nao ter quase ou ne­nhuma consciencia da missáo de Cavour, estava, na realidade,pouco consciente da sua própria missáo. Daí derivaram as suasvacilacóes (em Miláo, no período posterior as Cinco Iornadase em outras ocasióes) e as suas iniciativas fora de tempo, quepor isso configuravam-se apenas como elementos úteis a polí­tica piemontesa. Eis um exemplo teórico sobre como devia sercompreendida a dialética apresentada em a Miséria da Filosoiia:que cada membro da oposicáo deve procurar ser integralmenteele mesmo e lancar na luta todas as suas "reservas" políticas emorais, e que só assim se consegue uma superacáo real, n~d~disso era compreendido nem por Proudhon, nem por Mazzini,Dir-se-á que nem Gioberti e nem os teóricos da revolucáo pas­siva ou "revolucáo-restauracáo"! compreenderam o fenómeno,mas a questáo neste caso se modifica: neles, a "incompreensáo"teórica era a expressáo prática das necessidades da "tese" dedesenvolver-se integralmente, até o ponto de conseguir incor­porar urna parte da própria antítese, para nao se deixar "su­perar". Isto é, na oposicáo dialética só a tese desenvolve, na

1 Consultar a literatura política sobre 1848, de autoria de estudiososda filosofía da praxis. Mas nao me parece que se possa esperar muitoneste sentido. Os acontecimentos italianos, por exemplo, só foram exa­minados sob o ángulo dos livros de Bolton King, etc.

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realidade, todas as suas possibilidades de luta, até atrair parasi os chamados representantes da antítese: exatamente nessaformulacáo consiste a revolucáo passiva ou revolucáo-restau­racáo. Neste ponto deve-se considerar a questáo da passagemda luta política de "guerra manobrada" para "guerra de po­sicáo", o que na Europa ocorreu depois de 1848, e que' naofoi compreendido por Mazzini e pelos mazzinianos como ofoi por outros. A mesma passagem verificou-sedepois de 1871,etc. Homens como Mazzini tinham dificuldades de compre­ender, entáo, a questáo, dado que as guerras militares nao ha­viam fornecido o modelo; ao contrário, as doutrinas militaresdesenvolviam-se no sentido da guerra de movimento. É precí­so ver se Pisacane, teórico militar do mazzinianismo, refere-sea questáo,

Pisacane deve ser estudado porque foi o único que ten­tou dar ao Partido de Acáo um conteúdo nao só formal, massubstancial: de antítese superadora das posicóes tradicionais.Nao se pode dizer que para obter estes resultados hitóricosfosse necessária a insurreicáo popular armada, como acredi­tava Mazzini obsessivamente, isto é, nao realísticamente, mascomo missionário religioso. A intervencáo popular, que nao foipossível na forma concentrada e simultanea da insurreícáo, naose verificou nem mesmo na forma "difusa" e capilar da pres­sao indireta, o que era possível e talvez fosse a premissa in­dispensável para a primeira forma. A forma concentrada ousimultanea tornara-se impossívelem virtude da técnica militarda época, mas só em parte. Isto é, a impossibilidade existiuna medida em que a forma. concentrada e simultanea nao foiprecedida de urna preparacáo política e ideológica de longofólego, organicamente predisposta a despertar as paix6es po­pulares e tornar possível a concentracáo e a eclosáo simul­tanea do movimento.

Depois de 1848, só os moderados fizeram a crítica dosmétodos que precederam ao fracasso.. Efetivamente, todo omovimento moderado se renovou, o neoguelfismo foi liquida­do, homens novos ascenderam aos principais cargos de direcáo,No mazzinianismo, ao contrário, nenhuma autocrítíca, ou en­tao autocrítíca liquidacionista no sentido de que muitos ele­mentos abandonaram Mazzini e organizaram a ala esquerdado partido piemontés; única tentativa "ortodoxa", interna, fo­ram os ensaios de Pisacane, que, entretanto, jamais se torna-

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ram a plataforma de urna nova política organica, nao obstanteo próprio Mazzini ter reconhecido que Pisacane formulara urna"concepcáo estratégica" da revolucáo nacional italiana.

A relacáo "revolucáo passiva-guerra de posicáo" no Ri­sorgimento italiano também pode ser estudada sob outros as­

,pectos. Dois sao importantíssimos: o que pode denominar-se.do "pessoal" e o da "reuniáo revolucionária". O do "pessoal"pode ser comparado com o que se verificou na guerra mundial,na relacáo entre oficiais de carreira e oficiais da reserva, deum lado, e entre soldados das fileiras e voluntários-arditi, deoutro. Os oficiais de carreira corresponderam, no Risorgimento,aos partidos políticos regulares, organizados, tradicionais, etc.,que no momento da acáo (1848) revelaram-se inaptos ou qua­se, e foram, em 1848-49, suplantados pela onda popular maz­ziniano-democrática, onda caótica, desordenada" "extemporá­nea" por assim dizer, mas que, todavia, liderada por chefesimprovisados ou quase (de qualquer modo nao. pertencentes aformacóes constituídas como era o partido moderado) obtevesucessos indubitavelmente maiores do que os obtidos pelos mo­deradós: a República romana e Veneza revelaram urna torcade resisténcia notável. No .período posterior a 1848, a relacáoentreas duas f'orcas, aregular e a "carismática", organizou-seem torno de Cavour e de Garibaldi, e deu o máximo resultado,embota posteriormente fossé aprovertada por Cavour.

Este aspecto está ligado ao outro, da "reuniño". Deve-seobservar que a dificuldade técnica contra a qual sempresechocavam as iniciativas mazzinianas foi exatañíénte aque1a da"reuniáo revolucionária". Seria interessante, .apartir diste pon­to de vista, estudar a tentativa de invasáo da Savóia efetua­da pelo General Ramorino, pelos irmáos Ba:ñ~éra, por Pisa­cane, etc., comparando-a com as situacóes que se ofereceramaMazzini em 1848, emMilño, e em 1849, em Roma, e queele nao teve capacidade de organizar. Essas tentativas de al­guns poucos nao podiam deixar de ser esmagadas no nas­cedouro, pois seria maravilhoso que as forcas reacionárias, queestavam concentradas e podiam operar livremente (isto é, naoencontravant nenhuma oposicáo em amplos movimentos da po­pulacáo), nao pudessem esmagar as iniciativas do tipo Ramo­rino, Pisacane, Bandiera, mesmo que e1as tivessem sido pre­paradas melhor do que o foram na realidade. No segundo pe­ríodo (1859-1860), a "reuniáo revolucionária", como aquela

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dos Mil de Garibaldi, tornou-se possível gracas ao fato deque: primeiro, Garibaldi apoiava-se nas torcas estatais pie­montesas, e, depois, que a frota inglesa protegeu de fato odesembarque em Marsala, a tomada de Palermo e esterilizoua frota bourbónica, Em Miláo, depois das Cinco Jornadas e naRoma republicana, Mazzini teria podido constituir pracas dearmas para reunióes organizadas; mas nao se propós fazé-lo,daí o seu conflito com Garibaldi em Roma e a sua inutilizacáoem Miláo, diante de Cattaneo e do grupo democrático milanés,

De qualquer forma, o curso do processo do Risorgimenio,se trouxe a luz a importancia enorme do movimento "dema­gógico" de massa, com chefes surgidos ao acaso, improvisados,etc., na realidade foi absorvidopelas torcas organizadas tra­dicionais, pelos partidos formados ao longo do tempo, comelaboracáo racional dos chefes, etc. Em todos os acontecimen­tos políticos do mesmo tipo o resultadosempre foi igual (as­sim em 1830, na Franca, a predominancia dos orleanistas so­bre as forcas populares radicais democráticas, e assim, no fun­do, na Revolucáo Francesa de 1789, em que Napoleáo repre­senta, em última análise, o triunfo das Iorcas burguesas orga­nizadas contra as forcas pequeno-burguesass-jaeobinas). Damesma forma na guerra mundial.vopredommio dos velhos ofi­ciais de carreira sobre os oficiais da reserva, etc. Em qualquercaso, a auséncia.santre as forcas radicais-popularesde urnaconsciencia da missáo da outra parte, impediu-as de ter plenaconsciencia da sua própria missáo e, portanto, de pesar noequilíhrj9Ji,nal das torcas em relacáo ao seu efetivo poder deintervencáo e; finalmente, de determinar um resultado maisaván9ádo,inun1 sentido de maior progresso e mais moderno.,,:':3 SemflJ:.e..,a propósito do conceito de "revolucáo passiva"ou de "revolucáo-restauracáo" no Risorgimento italiano, é ne­cessário colocar com exatidáo o problema que, em algumastendencias historiográficas, é denominado das relacóes entrecondicóes objetivas e condicñes subjetivas do evento histórico.Parece'que as condicñes subjetivas existem sempre que exis­tirem condi¡;?es objetivas, isto na medida em que se trata desimples distincáo de caráter didático: logo, a discussáo podeversar sobre o grau e a intensidade das forcas subjetivas, so­bre a relacáo dialética entre as forcas subjetivas contrastantes.

É preciso evitar que a questáo seja colocada em termos"intelectualísticos", e nao histórico-políticos. É pacífico que a

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"clareza" intelectual dos termos da luta deve ser indispensável.Mas esta clareza é um valor político quando se torna paixáogeneralizada e constitui a premissa de urna vontade forte. Nosúltimos tempos, em muitas publicacóes sobre o Risorgimento,

""revelou-se" que existiam personalidades que viam claro, etc.(veja-se a valorizacáo de Ornato feita por Piero Gobetti); mas.est~s "revela¡;~es" destroem-se por si mesmas, exatamente porserem revelacóes; elas demonstram que se tratava de elucubra-

,c;6es individuais, que hoje representam urna forma do "sensoa posteriori". Efetivamente, jamais se fundiram com a reali­dade fatual, jamais se tornaram consciencia popular-nacionalgeral e atuante. Qual dos dois, o Partido de A¡;ao ou o PartidoModerado, representou as "forcas subjetivas" efetivas do Ri­sorgimento? É claro ,que o Partido Moderado, e exatanienteporque teve consciencia inclusive da missáo do Partido deAcáo. Em virtude dessa consciencia, a sua "subjetividade" erade urna qualidade superior e mais decisiva. Na expressáo de Vi­tório Emanuel JI: "O Partido de Acño nós o ternos no bolso",há mais sentido histórico-político do que em toda a obra deMazzini.

Sobre a burocracia. 1) O fato de que no desenvolvimentohistórico das formas políticas e económicas viesse se formandoo tipo de funcionário "de carreira", tecnicamente preparadopara o trabalho burocrático (civil e militar), tem um . signi­ficado primordial na ciencia política e na história das formasestatais. Tratou-se de urna necessidade ou de urna degeneracáo,em relacáo ao autogoverno(selfgovernment), como preten­dem os livre-cambistas "puros"? É verdade que cada forma so­cial e estatal teve um seu problema dos funcionários, um mo­do seu de apresentá-lo .e resolvé-lo, um sistema particular deselecáo, um tipo próprio de funcionário a educar. Reveste-sede capital importancia reconstruir o desenvolvimento de todosestes elementos. O problema dos funcionários coincide, emparte, com o problema dos intelectuais. Mas, se é verdade quecada nova forma social teve necessidade de um novo tipo defuncionário, também é verdade que os noves grupos .dirigentesjamais puderam prescindir, pelo menos durante certo tempo,da tradicáo e dos interesses constituidos, isto é, das forma­cóes de funcionários já existentes e pré-constituídas quando do

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seu advento (especialmente nas esferas eclesiástica e militar).A unidade do trabalho manual e intelectual e urna ligacáo maisestreita entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo (pelaqual os funcionários e1eitos, além de controlar, Se interessampelos negócios de Estado) podem ser motivos inspiradores tan­to para urna orientacáo nova na solucáo do problema dos in­telectuais, como para o problema dos funcionários.

2) Vinculada a questáo da burocracia e da sua organi­zacáo "ótima", está a discussáo sobre os chamados "centra­lismo orgánico" e "centralismo democrático" (que, além domais, nao tem nada que ver com a democracia abstrata, tantoque a Revolucáo francesa e a Terceira República desenvol­veram formas de centralismo orgánico nao conhecidas nem pe­la monarquia absoluta e nem por Napoleáo 1). Devem serprocuradas e examinadas as relacóes económicas e políticasreais que encontram a sua forma de organizacáo, a sua arti­culacáo e a sua funcionalidade nas diversas manifestacóes decentralismo orgánico .e democrático em todos os campos: navida estatal (unitarismo, federacáo, uniáo de Estados federados,federacáo de Estados ou Estado federal, etc.); na vida interes­tatal (alíancas, formas várias de "eonstelacáo" política inter­nacional); na vida das associacóes políticas e culturais (ma­conaria, Rotary Clube, Igreja católica); sindicais, económicas(cartéis, trustes); num mesmo país, em diversos países, etc.

Polémicas surgiram no passado (antes de 1914) a pro­pósito do predomínio alemáo na vida da alta cultura e de algu­mas forcas políticas internacionais: era, de fato, real este pre­domínio, ou ·em que consistía ele? Pode-se dizer: a) nenhumvínculo orgánico e disciplinar estabelecia essa supremacia, que,portanto, era um mero fenómeno de influencia cultural abs­trata e de prestígio bastante instável; b) esta influéncia culturalnao atingia em nada a atividade fatual, que, vice-versa, eradesagregada, localista, sem orientacáo de conjunto. Nao se po­de falar, por isso, de nenhum centralismo, nem orgánico nemdemocrático e nem de outro genero ou misto. A influenciaera sentida de imediato por escassos grupos intelectuais semligacáo com as massas populares; e exatamente esta ausenciade ligacáo caracterizava a situacáo, Todavia, tal estado de coi­sas é digno de exame porque facilita explicar o processo quelevou a formular as teorias do centralismo orgánico, que Io-

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ram precisamente urna crítica unilateral e de intelectuais adesordem e a dispersáo de torcas.

Entretanto, é preciso distinguir nas teorias do centralis­mo orgánico entre aqueIas que ocultam um programa preciso

. de .predomínio real de urna parte sobre o todo (seja a parteconstituida por urna camada como a dos intelectuais, seja a.parte constituída por um grupo territorial "privilegiado) e aque­las que representam urna pura posicáo unilateral de sectários e

. fanáticos, e que mesmo podendo esconder uin programa depredomínio (em geral de urna individualidade, como a do Pa­pa infalível que levou o catolicismo a se transformar numaespécie de culto do pontífice), imediatamente nao parece ocul­tar tal programa como fato político consciente. O nome rnaisexato seria o de centralismo burocrático. A "organicidade"· sópode ser do centralismo democrático, que é um centralismoem movimento, isto é, uma contínua adequacáo da organi­zacáo ao movimento real, um modo de temperar os impulsosda base com o comando da cúpula, um inserimento contínuodos elementos que brotam do mais fundo da massa na cornijasólida do aparelho de direcáo que assegura a continuidade ea acumulacáo regular das experiencias. Ele é "orgánico" por­que leva em conta o movimento, que é o modo orgánico de re­velar-se da realidade histórica, e nao se enrijece mecánicamen­te na burocracia e, ao mesmo tempo, leva em conta o que é

estável e permanente, ou que, pelo menos, move-se numa di­recáo fácil de prever," etc. Este elemento de estabilidade noEstado encarna-se no desenvolvimento orgánico do núcleo cen­tral do grupo dirigente, da mesma forma que sucede em escalamais restrita na vida dos partidos. A predominancia do centra­lismo burocrático no Estado indica que o grupo dirigente estásaturado, transformando-se num corri1ho estreito que tende aperpetuar os seus mesquinhos privilégios controlando, ou in­clusive sufocando, o surgimento de íórcas contrastantes, mes­mo se estas forcas se confundem com os ínteresses dominan­tes fundamentais (por exemplo, nos sistemas ngídamente pro­tecionistas ém luta com o liberalismo económico) . Nos parti­dos que representam grupos socialmente subalternos, o ele­mento de estabilidade é necessário para assegurar a hegemo­nia nao a grupos privilegiados, mas aos elementos progressistas,orgánicamente progressistas em relacáo a outras forcas afins ealiadas, mas conciliadoras e oscilantes. .

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De qualquer modo, deve-se destacar que as manífestacñesdeformantes de centralismo burocrático ocorreram em virtudede deficiencia de iniciativa e de responsabilidade na base, istoé; do primitivismo político das fórcas periféricas, inclusivequando elas sao da mesmanatureza do grupo territorial hege­mónico (fenómeno do piemontesisma nos primeiros decenios daunidade italiana). A existencia de tais situacóes nos organismosinternacionais (Sociedade das Nac;oes ) pode ser prejudicial eperigosa. .

O centralismo democrático oferece uma fórmula elástica,que se presta a muitas encarnacóes; ela vive enquanto é inter­pretada e adaptada continuamente as necessidades. Ela consistena pesquisa crítica de tudo que é igual na aparente disformidade,e diferente e inclusive oposto na aparente uniformidade paraorganizar e ligar estreitamente tudo o que é semelhante, masde modo que a organizacáo e a conexáo parecam urna necessi­dade prática e "indutiva", experimental, e nao o resultado deumprocesso racionalista, dedutivo, abstrato, isto é, próprio dosintelectuais puros (ou puros asnos). Este trabalho contínuo paraselecionar o elemento "internacional" e "unitário" na realidadenacional e local é, na realidade, a a~ao política concreta, aúnica atividade criadora de progresso histórico. Éste trabalhorequer urna unidade orgánica entre teoria e prática, entre ca­madas .intelectuais e massas populares, entre governantes e go­vernados. As fórmulas de unídade e federacáo perdem grandeparte do seu significado deste ponto de vista, enquanto conser­varo o seu veneno na concepcáo burocrática, pela qual a uni­dade deixa de existir e se transforma como que num pantanode águas estagnadas, superficialmente calmo e "mudo", e a fe­deracáo num "saco de batatas", isto é, na justaposicáo mecánicade "unidades" individuais sem nexo entre elas.

o teorema das proporcáes definidas. Este teorema podeser empregado com utilidade para tornar mais claros e de umesquematismo mais evidente muitos raciocínios relacionados coma ciencia da organízacño (o estudo do aparelho administrativo,da composicáo demográfica, etc.) e também com a políticageral (na análise das situacóes, das relacóes de forcas, no pro­blema dos intelectuais, etc. ). Deve-se recordar sempre, é claro,que o recurso ao teorema das proporcóes definidas tem um

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valor esquemático e metafórico, isto é, nao pode ser aplicadomecánicamente, porque nos agregados humanos o elemento qua­litativo. (ou de capacidade técnica e intelectual de cada um dosseus componentes) tem uma fun~ao predominante, enquanto

. nao pode ser medido matematicamente. Por isso, pode-se dizer, que cada aglomerado humano tem um princípio 6timo particular

de proporc;oes definidas.Especialmente a ciencia da organízacáo pode recorrer com

utilidade a este teorema, e isto manifesta-se com clareza noexército. Mas cada forma de sociedade tem um tipo de exér­cito, e. cada tipo de exército tem um princípio de proporcñesdefinidas particular, que, de resto, também muda de acotdocomas diversas armas ou especialidades. Há urna determinada rela­~ao .entre homens de tropa; graduados, suboficiais, ofieiais su­balternos, oficiais superiores, Estados-Maiores, Estado-MaíorGeral, etc. Há urna relacáo entre as várias armas e especialidades,etc. Cada modiñcacáonuma parte determina a necessidade deum equilíbrio com o todo, etc.

Politicamente, o teorema pode ser aplicado nos partidos,nos sindicatos, nas fábricas, para se ver como cada grupo socialtero urna lei de proporcóes definidas própria, que varia de acor­do com o nível de cultura, de independencia mental, de espíritode iniciativa e de senso de responsabilidade e de disciplina dosseus membros mais atrasados e periféricos.

A lei das proporcñes é sintetizada da seguinte forma porPantaleone, em Principi di economia pura: " ... Os corposse combinam quimicamente .. apenas em proporcóes definidas, ecada quantidade de umelemento, que supere a quantidade exi­gida para urna combinacáo com outros elementos presentes eroquantidades definidas, fica livre; se a quantidade de urn elemen­to é deficiente em relacáo a quantidade de outros elementospresentes, a combinacáo só se verifica na medida em que é

suficiente a quantidade do elemento que está presente em quan­tidade menor do que os outros'',! Seria possível servir-se metafo­ricamente desta lei para compreender como um "movimento"ou tendencia de opinióes se toma partido, isto é, fórca políticaeficiente, do ponto de vista do exercício do poder governamental:exatamente na medida em que possui (elaborou no seu interior)

1 MAFFEO PANTALEONE, Principí di economía pura, Míláo, 1931, parág.5, pág. 112. (N. e!.)

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dirigentes de vários graus e na medida em que esses dirigentesadquiriram determinadas capacidades.

O "automatismo" histórico de determinadas premissas (aexistencia de determinadas condicóes objetivas) é potenciadopolíticamente pelos partidos e pelos homens capazes: a suaausencia ou deficiencia (quantitativa e qualitativa) torna estérilo próprio "automatismo" (que, portanto, nao é automatismo).As premissas existem abstratamente, mas as conseqüéncías naose verificam porque falta o fator humano. Por. isso pode-sedizer que os partidos tém a missáo de criar dirigentes capazes,sao a funcáo de massa que: seleciona, desenvolve, multiplica osdirigentes necessários para que um grupo social definido (queé uma quantidade "fixa", na medida em que se pode estabelecerquantos sao os componentes de cada grupo social) se articulee, de caos tumultuado, transforme-se em exército político orge­nicamente predisposto ..Quando em eleicóes sucessivas do mes­mo grau ou de grau diferente (por exemplo, na Alemanha antesde Hitler: eleicóes para II presidencia da República, para oReichstag, para as dietas dos Llinder, para os conselhos comu­nais, e assim até os comités de fazenda) um partido oscila nasua massa de sufrágios de máximos a mínimos que parecemestranhos e arbitrários, pode-se deduzir que os seus quadrossao deficientes em quantidade e qualidade, ou em quantidade enao em qualidade (relativamente), ou em qualidade e nao emquantidade. Um partido que obtém muitos votos nas eleicóeslocais e menos naquelas de maior importancia política, certa­mente édeficiente qualitativamente na sua direcáo central:possui muitos subalternos OU, pelo menos, em número suficien­te, mas nao possui uro Estado-Maior adequado ao país e a suaposicáo no mundo, etc.

Sociologia e ciencia política. A fortuna da sociologia rela­ciona-se com a decadencia do conceito de ciencia política ede. arte política que se verificou no século XIX (com mais exa­tidáo na segunda metade, com o éxito das doutrinas evolucio­nistas e positivistas ). Tudo o que há de importante na socio­logia nao passa de ciencia política. "Política" torna-se sinónimode política parlamentar ou de corrilhos pessoais. Convencimen­to <le que com as constituicñes e os parlamentos tivesse comeca-

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do uma época de "evolucáo" "natural", que a sociedade tivesseencont:ado os seu~ fundamentos definitivos, porque racionais,e~~. ~IS que a. sociedade pode ser estudada pelos métodos dascIencIa~. pa~urals. Empobrecimento do conceito de Estado, emconsequencia .de tal ~isao. Se ciencia política significa ciencia

. do, Estado, e Estado. e todo o complexo de atividades práticas e. t~oncascom as quais a classe dirigente justifica e mantém nao

so o seu domínio, mas cónsegue obter o consentimento ativodos, gov~rna~os, é evidente que todas as questóes essenciais dasoclOlo~a nao pass~m de qnestóes da. ciencia política, 'Se háum resíduo, .~sse so pode ser de falsos problemas, isto é, deproblemas 0~lOS0S, Portanto, a questáo que se impunha ao au­tor ,de Saggio popolare,l

A

e~a a ~e, determinarem que relacóespodia ser colocada a, cIe~cIa I?olítIca com a filosofia da praxis;se entr~ as duas existe identidade (coisa nao sustentável, ousl;lstentavel apenas'Ado, pont~, deyista do mais grosseiro positi­v~s~o), ou se, ~ CIenCIa política e o conjunto de princípios em­pmcos ou práticos que s~ deduz~m de urna concepcáo maisvas,ta ?O,mun?.? <?u filosofía propríamente dita, ou se esta filo­sofia e s~Aa ~lencl3;. ~os conceitos ou categorias gerais que nas­cem da CIenCIa política, etc.

Se é, v~r?ade que o hornem só pode ser concebido comoho~em hIstónca~ente determinado, isto é, que se desenvol~eue v~ve em det,enrunadas condicées, num determinado complexos?cml,ou conjunto de relacóes sociais, pode-se conceber a so­ciologia apenas como e~tudo destas condicóes e das leis queregulam o seu des,e~v.oIYImento? J~ que nao se pode prescindird~ vontade e da iniciativa dos proprios homens, este conceitoso pode ser. falso, Saber o que é a própria "ciencia", eis umproblema que deve ser colocado. Nao é a ciencia em si mes­ma, "atividade política" e pensamento político, n~ medida emque ;ransforma ,o~, h~~e~,s, ,torna~~s diferentes do que eramantes, Se tU?~ e política, e preCISO, para nao cair num fra­seado, ~autologIco e enfadonho, distinguir com conceitos novosa política que corresponde aquela ciencia que tradicionalmentese ~hama "fil?~of~a", ~~ política, ciencia política nUID sentidoes;nt~, ~e a cle.ncla e descoberta" de realidade ignorada antes,nao e esta reahdade, em certo sentido, 'concebida- como trans­cendente? Nao se pode pensar que ainda existe algo de "igno-

1 Bukhanin. (N. e I.)

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to" e, portanto, de transcendente? Além do mais, o conceito deciencia como "criacáo" nao tem o mesmo significado de "polí­tica"? Tudoconsiste em ver se se trata de criacáo "arbitrária"ou racional, isto é, "útil"aos. homens para ampliar o seu con­ceito da vida, para tornar superior (desenvolver) a própria vída.!

O número e a qualidade nos regimes representativos. Urndos lugares-comuns mais banais- que se repetem contra o síste­ma eleitoral de Iormacáo dos órgños estatais é o de que "neleo número é lei suprema" e que as "opínñes de um imbecil qual­quer que saiba escrever (e inclusive de um analfabeto, em de­terminadospaíses) vale, para efeito de determinar o curso po­lítico do Estado, tanto quanto as opinióes de quem dedica anacáo as suas melhores íorcas", etc," Mas a verdade é que, demodo nenhum, o número constitui a "lei suprema", nem o pesoda opiniño de cada eleitor é exatamente igual. Os números,mesmo nestecaso, sñoum simples valor instrumental, que dáourna medida e urna relacáo, e nada mais. E depois, o que é

que Se mede? Mede-se exatamente a eficácia e a capacidade deexpansáo e de persuasáo das opinióes de alguns, das minoríasativas, das élites, das vanguardas, etc. Isto é, a sua racionali­dade ou historicidade ou funcionalidade concreta. O que naoquer dizer que o peso das opinióes de cada um seja "exatamen­te" igual. As idéias e as opinióes nao "nascem" espontáneamenteno cerébro de cada indíviduo: tiveram um centro de formacáo,de irradiacáo, de. difusáo, de persuasáo, um grupo de homensou inclusive urna individuaIidade que as elaborou e apresentousoba forma política de atualidade. A numeracáo dos "votos"é a manifestacáo final de um longo processo em que a maiorinfluencia pertence exatamente áqueles que "dedicam ao Estadoe a nacáo as suas melhores forcas" (quando sao tais). Se éstepretenso grupo de grandes, apesar das fórcas materiais extra­ordinárias que possui, nao obtém o consentimento da maioria,deve ser julgado ou inepto ou nao-representante dos interesses

1 A propósito 00 Saggio Popolare e do seu apéndice, Teoria e pratica,veja-se na "Nuova Antología" de 16 de marco de 1933 a resenha filo­sófica de ARMANDO CARLINI, da qual resulta que a equaeáo: "Teoría:prática = matemática pura: matemática aplicada" foi enunciada por umingles (parece-me que Whitaker).2 As formulacñes sao muitas, algumas inclusive mais felizes do que acitada, que é de MARIO DE SILVA, na Critic.a Fascista de 15 de agostode 1932, mas o conteúdo é sempre igual.

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"nacionais" que náopodem deixar de prevalecer quando se tra­ta de induzir a vontade nacional num sentido mais do que nou­tro. "Desgracadamente", o indivíduo é 'levado a confundir o seu"particular" com o interesse nacional, e, portanto, achar "hor­rível", etc., que a decísáo.caiba a "lei do número"; na verdade,

, é melhor se tornar élite por decreto. Logo, nao se trata de quem"tem muito" intelectualmente sentir-se reduzido ao nível do últi­mo analfabeto, mas de quem presume ter muito e pretendearrebatar ao homem "qualquer", inclusive aquela fracño infini­tesimal de poder que ele possuí para decidir sóbre o curso davida estatal.

Da crítica (de origem oligárquica, e nao de élite) ao regimeparlamentarista (é estranho que ele nao seja criticado pelo fatode que a racionalidade historicista do consentimentonuméricoé sistematicamente falsificada pela influencia da riqueza), estasafírmacóes banais se estenderam a qualquer sistema represen­tativo, mesmo nao parlamentarista e nao forjado segundo oscánones da democracia formal. O que as torna .. menos exatas ..Nestes outros regimes o consentimento nao tem no momentodo voto urna fase final, ao contrário.! Supóe-se o consentimentopermanentemente ativo, até o ponto em que aqueles que con­sentem poderiam ser considerados como "funcionários" do Es­tado e as eleícóes um modo de recrutamento voluntário de fun­cionários estatais de um determinado tipo, que em certo sentidopoderia assemelhar-se (em diversos planos) ao seligovemment.Baseando-se as eleícóes nao em programas genéricos e vagos,mas em programas de trabalho concreto imediato, quem con­sente empenha-se em fazer algo mais do que o cidadáo legalcomum para realizá-Ios, isto é; em ser urna vanguarda de tra­balho ativo e responsável. O elemento "voluntariedade" nainiciativa nao poderia ser estimulado de outro modo pelas maisamplas multidóes, e quando. estas nao sao formadas de cidadáosamorfos, mas de elementos produtivos qualificados, pode-secompreender a importancia que pode ter a manifestacño xíovoto,s .

1 Alusáo ao sistema soviético do contróle permanente dos eleitores sbbreos eleitos. ( N. eL)2 Estas observacñes poderiam ser desenvolvidas mais ampla e orgánica­mente, destacando também outras dífereneas entre os diversos tipos deeleícño, de acórdo com as modíficacñes nas relacñes geraís sociais e po­líticas: relacáo entre funcionárioseletivos e funoíonáríos de carreira, etc.

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A proposicáo de que "a sociedade nao coloca diante de slproblemas para cuja solucáo ainda nao -existam as premissasmateriais".É o problema da formacáo de uma vontade cole­tiva que dependeimediatamente desta proposicáo , Analisarcríticamente o significado da proposicáo, implica indagar comose formam as vontades coletivas permanentes, e como tais von­tades se propóemobjetivos imediatos e mediatos concretos, istoé, urna linha de a<;ao coletiva , Trata-se de processos de desen­volvimento mais oumenos longos, e raramente de explosóes"sintéticas" imprevistas. Também as "explosóes" sintéticas severificam, mas, observando de perto, ve-se que nestes casostrata-se de destruir mais do que reconstruir, de remover obstá­culos mecánicos externos. ao desenvolvimento original e espon­táneo: as Vésperas sicilianas podem ser consideradas um exem­plo típico dessas explosóes ,

Seria possível estudar concretamente a formacáo de uromovimento histórico coletivo, analisando-o emtbdas as suasfases moleculares, o que habitualmente nao se faz porque tor-­naría pesado qualquer trabalho: em vez. disso, utilizarn-se ascorrentes de opiniáo já constituidas em torno de um grupo {lU

de urna personalidade dominante. É o problema que moderna­mente se expressa em termos de partido ou de coalizáo departidosafins: como se inicia á organizacáo de um 'partido,como se desenvolve a sua for<;aorganizada e influencia social,etc. Trata-se de um processo molecular, miudíssimo, de aná­lise extrema, capilar, cuja documentacáo é constituída por umaquantidadeincrível de livros, opúsculos, artigos de revistas e dejornais, de conversacñes e debates verbais que se repetem infi­nitas vézes e que no seu conjunto gigantesco representam estetrabalho do qual nasce uma vontade coletiva com um determi­nado grau de homogeneidade, grau que é necessário e suficientepara determinar urna acáo coordenada e simultanea no tempoe no espaco geográfico em que o fato histórico se verifica.

Importancia das utopias e das ideologias confusas e racio­nalistas na fase inicial dos processos históricos de formacáo dasvontades coletivas: as utopias, o racionalismo abstrato, tém amesma importancia das velhas concepcóes do mundohistórica­mente .elaboradas por acumulacáo de experiencias sucessivas.O que importa é a crítica a qual este complexo ideológico ésubmetido pelos primeiros representantes da nova fase. histó­rica. Através desta crítica obtém-se um processo de distincáo

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e de modificacáo no peso relativo que os elementos das velhasideologias possuíam: tudo o que era secundário e subordinado,ou inclusive incidental, é considerado principal, torna-se o nú­cleo de um novo complexo ideológico e doutrinário , A velhavontade coletiva desagrega-se nos seus elementos contraditó-

, ríos, já que os elementos subordinados contidos nestes elementos.se desenvolvem socialmente, etc.

. Depois da formacáo do regime dos partidos, fase históricaligada a estandardizacáo de grandes massas da populacáo (co­municacóes, jornais, grandes cidades, etc.), os processos mo­leculares se manifestam com mais rapidez do que no passado,etc.

Questáo do "homem coletivo" ou do "conformismo social".Missáo educativa' e formativa do Estado, cujo fim é semprecriar novos e mais elevados tipos de civilízacáo, adequar a "ci­viliza<;~o" e a moralidade das mais amplas massas populares asnecessidades do desenvolvimento continuado do aparelho eco­nómico de producáo, portanto elaborar também físicamentetipos novos de humanidade. Mas, como cada indívíduoconse­guirá incorporar-se no homem coletivo e como se verificará apressáo educativa sobre cada um com o seu consentimento ecolabora<;ao,' transformando em "liberdade" a necessidade e acoer~ao? .Questao do "direito", cujo conceito deverá ser amplia­do, incluindo nele aquelas atividades que hoje sao compreendí­das na fórmula "indiferente jurídico" e que sao de domínio dasociedade civil que atua sem "sancóes" e sem "obrigacóes" ta­xativas, mas que nem por isso exerce uma pressáo coletiva eobtém resultados objetivos de elaboracáo nos costumes, nosmodos de pensar e de atuar, na moralidade, etc.

. Conceito político da chamada "revolucáo permanente",surgido antes de 1848, como expressáo científicamente elabora­da das experiencias jacobinas de 1789 em Termidor. A fórmulaé própria de um período histórico em que nao existiam aindaos grandes partidos políticos de massa e os grandes sindicatoseconómicos, e a sociedade ainda estava, por' assim dizer, noestado de fluidez sob muitos aspectos: maior atrasado campoe monopólio quase completo da eficiencia político-estatal empoucas cida.des ou numa só (Paris para a Franca); aparelhoestatal relativamente pouco desenvolvido e maior autonomia da

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sociedade civil em relacáo it atividade estatal; determinado siste­ma das for~as militares e .do armamento nacional; maior auto­nomia das economias nacionais no quadro das relacóes econó­micas do mercado mundial, etc. No período posterior a 1870,em virtude da expansáo colonial européia, todos éstes elementosse modiñcam, as relacñes de organízacáo internas e interna­cionais do Estado tornam-se maiscomplexas e macícas, e afórmula jacobíno-revolucionária da v'revolucáo permanente" éelaborada e superada na cíéncía política pela fórmula de "hege­monia civil". Verifica-se na arte política aquilo que ocórre naarte militar: a guerra de movimento transforma-se cada vezmais em guerra de posicáo, podendo-se dizer que um Estadovence urna guerra quando a prepara minuciosa e técnicamenteno tempo de paz. Na estrutura de massa das democracias mo­dernas, tanto as organizacóes estatais como o complexo de as­sociacóes na vida. civil constítuem para a arte política o mesmoque as "trincheiras" e as fortificacñes permanentes da frentena guerra de posicáo: elas fazem com que seja apenas "parcial"o elemento do movimento que antes constituía "toda" a guerra,etc.

A questáo relaciona-se com o Estado moderno, nao comos países atrasados e as colónias, onde ainda vigoram formasque nos outros já foram superadas e se tornaram anacrónicas.Também a questáo do valor das ideologías (como se depreendeda polémíca Malagodi-Croc:e)1 - com as observacóes de Crecesobre o "mito" soreliano, que podem ser contrapostas a "pai­xáo" - deve ser estudada num tratado de ciencia política.

Fase economtca corporativa do Estado. Guicciardini as­sinala um passo atrás na ciencia política diante de Maquiavel.O maior "pessimismo" de Guicciardini só tem um significado.Guicciardini retoma a um pensamento político puramente ita­liano, enquanto Maquiavel alcancara um pensamento europeu.Nao secompreende Maquiavel se nao se leva em canta queele supera a experiencia italiana na experiencia européia (ínter­nacional, naquela época): a sua "vontade" seria utópica semaexperiencia européia .Em virtude disso, a mesma concepcáo da

1 Ver Crece, Conversazione critiche, série IV, Bari, 1'932, págs. 143-146.(N. e l.)

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"natureza humana" nos dois é diferente. Na "natureza humana"de Maquiavel está incluído o "homem europeu", e este homem,na Franca e na Espanha, superou fatualmente a fase feudal de­sagregada na monarquia absoluta: logo, nao é a "natureza hu­mana" que seopóe ao surgimento, na Itália, de uma monarquiaabsoluta unitária, mas condicóes transitórias que a vontade pode

. superar. Maquiavel é "pessimista" (ou melhor, "realista")quando considera. os homens e as direcóes de sua atividade;Guicciardini nao é pessimista, mas cético e estreito. Paolo Tre­ves- comete muitos erros ao analisar Guicciardini e Maquiavel;nao distingue bem "política" de "diplomacia", mas exatamentenesta náo-dístíncáo reside a causa das suas apreciacóes erradas.Efetivamente, na politica o elemento volitivo tem urna impor­tancia muito maior do que na diplomacia. A diplomacia san­ciona e tende a conservar as situacóes criadas pelo choque daspolíticas estatais; é criadora apenas por metáfora ou por con­vencáo filosófica (toda a atividade humana é criadora). Asrelacñes internacionais estabelecem um equilibrio de fórcas sobreo qual cada elemento estatal pode influir muito débilmente:Florenca podia influir reforcando a si mesma, porexemplo, maseste reforcamento, mesmoque tivesse me1horado a suaposicñono equilíbrio italiano e europeu, nao poderia ser visto comodecisivo para subverter o conjunto do próprio equilíbrio. Porisso o diplomata, por causa do hábito profissional, é levado aoceticismo e a estreiteza conservadora.

Nas relacóes internas de um Estado, a situacño é incom­paravelmenté mais favorável. a iniciativa central, a urna vontadede comando, da forma como a compreendia Maquiavel. Aopiniáo de De Sanctis sobre Guicciardini é muito mais realistado que Treves julga. Daí a pergunta: por que De Sanctis estavamelhor preparado do que Treves para dar esta opiniáo históricae cieniíficamente mais exata? De Sanctis participou de um mo­mento criador da história política italiana, de um momento emque á eficiencia da vontade política, empenhada em suscitarfórcasnovas e originais e nao só em estribar-se naquelas tra­dicionais, concebidas como impossíveis de se desenvolverem ereorganizarem (ceticismo político guicciardiniano), mostrara

1 Cf. Il realismo político di Erancesco Guicciardini, in Nuooa RivistaStorica, novembro-dezembro de 1930.

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toda a sua potencialidade náo só na arte de fundar um Estadoa partir de urna acáo interna, mas também de dominar as rela­~oes internacionais, reformulando os métodos profissionais ecostumeiros da diplomacia (com Cavour). A. atmosfera cul­tural era propícia a urna concepcáo mais compreensivamenterealista da ciencia e da arte políticas. Mas, mesmo sem estaatmósfera, teria sido impossível a De Sanctis compreender Ma­quiavel? A atmosfera do momento histórico enriquece os en­saios de De Sanctis de um pathos sentimental que torna maissimpático e apaixonante o assunto, milis artistícamente expreso,siva e cativante a exposicáo científica, mas o conteúdo 'lógicoda Ciencia política poderia ser formulado inclusive nos períodosde pior reacáo , Nao é talvez a reacáo, também ela, um atoconstrutivo de vontade? E nao é ato volrintário a conservacáo?Por que entño seria "utópica" a vontade de Maquiavel, porque revolucionária e nao utópica a vontade de quem pretendeconservar o existente e impedir o surgimento e a organizacáode fórcas novas que perturbariam e subverteriam o equilíbriotradicional? A ciencia política abstrai o elemento "vontade" enao leva em conta o fim ao qual urna vontade determinada éaplicada. O atributo de "utópico" nao é próprio da vontadepolítica em geral, mas dasvontades particulares que nao sabemligar o meio ao fim e, portanto, nao sao 'nem mesmo vontade,mas veleidades, sonhos, desejos, etc. o

O cetícísmo de Guiccilardini (nao pessimismo da inteligen­cia, que pode ser unido a umotimismo da .vontade nos polí­ticos realistas ativos) tem diversas origens: 1) o hábito diplo­mático, isto é, de urna atívidade subalterna subordinada, exe­cutivo-burocrática, que deve aceitar' urna vontade estranha(aquela política do próprio governo ou príncipe) as conviccóesparticulares do diplomata (que pode, é verdade, sentir aquelavontade como sua, na medida em que corresponde as suas con­viccóes, mas também pode nao sentí-la. O fato de a diploma­cia ter-se tornado necessariamente urna profissáo especializada.levou a esta conseqüéncía: pode afastar o diplomata da política,dos governos mutáveis, etc:.), portanto, ceticismo, e, na elabo­racño científica,preconceitos extracientíficos; 2) as conviccóesde Guicciardini,que era conservador, no quadro geral da polí­tica italiana, e por isto teoriza sobre as suas opinióes, a suaposicñopolítica, etc.

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o Os escritos de Guicciardini sao mais uro sinal dos temposdo que ciénciapolítica, e éste éo juízo de De Sanctis; sinal dostempos, e nao ensaio de história da ciencia política éo trabalhode Paolo Treves.

Hegemonía (sociedade civil) e divisiio dos poderes. Adivisáo dos poderes, toda a discussáo havida para a sua eíeti­vacáo e o dogmatismo jurídico derivado do seu advento, cons­tituem o resultado da luta entre a sociedade civil e a sociedadepolítica de um determinado período histórico, com certo equi­líbrio instável entre as c1asses, determinado pelo fato de quealgumas categorias de intelectuais (a servíco direto do Estado,especialmente burocracia civil e militar) ainda estáo muito liga­das as velhas c1asses dominantes. Verifica-se, assim, no interiorda sociedade, aquilo que Croce define como o "conflito perpé­tuo entre Igreja e Estado", no qual a Igreja é tomada comorepresentante da sociedade civil no seu conjunto (enquanto, narealidade, nao passa de um elemento gradualmente menos im­portante) e o Estado como autor de todas as tentativas destina­das a cristalizar permanentemente tím determinado estágio dedesenvolvimento, urna determinada situacáo , Neste sentido aprópria Igreja pode-se tornar Estado, e o conflito pode mani­festar-se entre sociedade civil laica e laicizante e Estado-Igreja(quando a Igreja se tornou urna parte integrante do Estado, dasociedade política monopolizada por um determinado grupo pri­vilegiado que se agrega a Igreja para melhor defender o seumonopólio com o apoio daquela zona da "sociedade civil" queela representa).

Importancia essencial da divisáo dos poderes para o libe­ralismo político e económico. Toda a ideologia liberal, com assuas forcas e as suas fraquezas, pode ser enfeixada no princípioda divisáo dos poderes, o que revela a fonte da debilidade doliberalismo: a. burocracia, a cristalízacáo do pessoal dirigente,que exerce o poder coercitivo e que, num determinado ponto,s.e transforma emcasta. Daí a reivindicacáo popular da elegibi­lidade par~ todos os cargos, reivindicacáo que é, simultanea­mente, o liberalismo extremo e a sua dissolucáo (princípio daC:0~stituinte permanente, etc.; nas repúblicas, a eleícáo tempo­rana do chefe do Estado dá urna satisfacáo ilusória a esta rei­vindicacáo popular elementar).

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Unidade do Estado na distincáo dos poderes: o Parlamen­to mais ligado a sociedade civil, o Poder Judiciário entre gover­no e Parlamento, representa a continuidade da lei escrita (in­clusive contra o governo) . Naturalmente os tres poderes saotambém órgáo da hegemonia política, mas em diversa medida:1) Parlamento; 2) magistratura; 3) governo . Deve-se notarcomo impressiona mal ao público as íncorrecóes da administra­cáo da justica: o aparelho hegemónico é mais sensível nestesetor, ao qual podem-se reduzir também os arbítrios da políciae da adrninistracáo pública. .

Concepciio do direito . Urna concepcáo do direito essencial­mente renovadora nao pode ser encontrada, integralmente, emnenhuma doutrina preexistente (nem mesmo na doutrina dachamada escola positiva, e particularmente na doutrina de Ferri).Se cada Estado tende a criar e a manter certo tipo de civiliza­gao e de cidadáo (e, portanto, de convivencia e de relacóesindividuais), tende a fazer desaparecer certos costumes e há­bitos e a difundir outros, o direito será o instrumento paraeste fim (ao lado da escola e de outras instituicées e atividades)e deve ser elaborado de modo que esteja conforme ao fim e sejaeficaz ao máximo e criador de resultados positivos.

A concepcñodo direitodeverá ser libertada de todo resí­duo de transcendencia e de absoluto; embora a mim parecaque nao se pode partir _do ponto de vista de que o Estado nao"pune" (reduzindo-se este termo ao seu significado humano),mas luta apenas contra a "periculosidade" social. Na realidade,o Estado deve ser concebido como "educador", desde que ten­de a criar um novo tipo ou nivel de civilizacáo , Em virtude dofato de que se atua essencialmente sobre as forcas económicas,reorganiza-se e desenvolve-se o aparelho de producáo económica,inova-se a estrutura, nao se deve concluir que os elementos desuperestrutura devam ser abandonados a si mesmos, ao seudesenvolvimento espontáneo, a urna germinacáo casual e espo­rádica. O Estado, inclusive nestecampo, é um instrumento de ­"racionalizacáo", de aceleracáo e de taylorizacáo, atua segundoum plano, pressiona, incita, solicita e "pune", pois, criadas ascondicóes em que um determinado modo de vida é "possível",a "acáo ou omissáo criminosa" devem receber urna sancáo pu-

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nitiva, de alcance moral, e nao apenas um JUlZO de periculosi­dade genérica. O direito é o aspecto repressivo e negativo detoda a atividade positiva de civilizacáo desenvolvida pelo Estado.Deveriam ser incorporadas na concepcáo do direito inclusiveas atividades "premiadoras" de indivíduos, de grupos, etc.;premia-se a atividade louvável e meritória como se pune a ati­vidade criminosa (e pune-se de modo original, permitindo aintervencáo da "opiniáo pública" como sancionadora).

Política e direito constitucional. A Nuova Aniologla, de16 de dezembro de 1929, publica urna resenha de um certoM. .Azzalini, La política, scienza ed arte di Stato, que pode serinteressante como apresentacáo dos elementos em que se de­bate o esquematismo científico.

Azzalini comeca afirmando que foi glória "fulgidíssima" deMaquiavel "ter ele circunscrito ao Estado o ámbito da política".Nao é fácil compreender o que o Sr. Azzalini quis dizer. Eletranscreve o seguinte período do cap. III do Príncipe: "Dizen­do-me o cardeal de Roano que os italianos nao entendiam daguerra, respondi que os franceses nao entendiam do Estado",e sobre esta única citacáo baseia a afirni(l~¡'íf) de que, "portanto",para Maquiavel, "a política devia ser entendida como ciencia,e como ciencia de Estado, e que foi sua glória, etc. (o termo"ciencia de Estado" para "política" teria sido adotado, no seucorreto significado moderno, antes de Maquiavel, só por Marsi­lio da Padova). Azzaliní é bastante leviano e superficial. Aanedota do Cardeal de Roano, isolada no texto, nao significanada. No contexto, assume um significado que nao se -prestaa deducóes científicas: trata-se, evidentemente, de urna frasede espírito, de urna réplica imediata. O Cardeal de Roanoafirmara que os italianos nao entendem de guerra; replicando,Maquiavel responde que os franceses nao entendem do Estado,de outro modo nao teriam permitido ao Papa ampliar o seupoder na Itália, o que era contra os interesses do Estado fran­ces. Maquiavel, de modo algum, pensava que os franceses naoentendessem do Estado, inclusive ele adinirava o modo peloqual a monarquia (Luís XI) realizara a unidade estatal daFranca e fazia das acñes da Franca, no- terreno do Estado, umexemplo para a Itália. Naquele seu diálogo com o Cardeal de

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Roano, ele fez "política" prática, e nao "ciencia política"; pois,segundo ele, se o reforcarnento do Papa era prcjudicial a polí­tica francesa, era mais prejudicial ainda cm relacáo a políticainterna italiana.

O curioso é que, partindo de tao infeliz citacáo, Azzaliniafirme que "mesmo enunciando-se que aquel a ciencia estuda oEstado, dá-se uma definicáo (!?) inteiramente imprecisa (!)porque nao se indica com que critério se deve observar o obje­to da pesquisa. E a imprecisáo é absoluta, dado que todas asciencias jurídicas em geral, e o direito público em particular,referem-se indiretamente e diretamente áquele elemento".

O que quer dizer tudo isto, em relacáo aMaquiavel? Nadade nada: confusáo mental. Maquiavel escreveu livros de "acáopolítica imediata", nao escreveu uma utopia em que um Estadojá constituido, com todas as suas funcóes e os seus elementosconstitutivos, íosse almejado. No seu trabalho, na sua críticado presente, ele exprimiu conceitosgerais, que, portanto, seapresentam sob forma aforística, e nao sistemática, e exprimir;uma concepcáo do mundo original que também poderia ser de­finida como "filosofia da praxis" ou "neo-humanismo" na me­dida em que nao reconhece elementos transcendentes ou ima­nentes (em sentido metafísico), mas baseia-se inteiramente naacáo concreta do homem que, pelas suas necessidades históricas,atua e transforma a realidade. Nao é verdade, como pareceacreditar Azzalini, que Maquiavel nao tenha levado em contao "direito constitucional". Em toda a obra de Maquiavel en­contram-se esparsos princípios gerais de direito constitucional,e ele afirma, com bastante clareza, a necessidade de que noEstado domine a lei, prineípios fixos segundo os quais os cida­daos virtuosos possam atuar seguros de que nao cairáo sob osgolpes do arbítrio. Mas, justamente, Maquiavel reconduz tudoa política, isto é, a arte de governar os homens, de procurar oseu consentimento permanente, de fundar, portanto, os "gran­des Estados" (deve-se recordar que Maquiave1 sentia que Esta­do nao era a Comuna ou a República e a Possessáo Comunal,porque lhes faltava, além de um vasto território, uma popula­<;ao capaz de ser a base de uma forca militar que permitisseuma política internacional autónoma: ele sentia que na Itália,com o Papado, perdurava urna situacáo de nao-Estado e queela perdurada 'enquanto a religiáo nao se tornasse "política" doEstado e deixasse de ser política do Papa para impedir a for-

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macáo de Estados fortes na Itália, intervindo na vida internados povos por ele nao dominados temporalmente, em defesa deinteresses que nao eram os dos Estados e que por isso era mperturbadores e desagregadores) .

Pode-se encontrar em Maquiavel a confirrnacáo de tudo oque notei em outras partes: que a burguesia italiana medievalnao soube sair da fase corporativa para ingressar na fase polí­tica por nao ter sabido libertar-se completamente da concepcáomedieval cosmopolita representada pelo Papa, o clero e, inclu­sive, os inteIectuais leigos(humanistas), isto é, nao soube criarum Estado. autónomo, permanecendo na moldura medieval,feudal e cosmopolita.

Azzalini acentua que "basta" apenas a definicáo de Ulpia­no e, melhor ainda, os seus exemplos, publicados no Digesto,para ressaltar a identidade extrínseca (e entao?)do objeto dasduas ciencias. "/lIS publicum ad statutum rei (publicae) roma­nae spectat. ~ Publicum ius, in sacris, in sacerdotibus, in ma­gistratibus consistit:" "Verifica-se, portanto, uma identidade deobjeto no direito público e na ciencia política, mas nao substan­cial, porque os. critérios com os quais urna e outra ciencia rela­cionam a mesma matéria sao .inteiramente diversos. Efetiva­mente, diversas sao as esferas da ordem jurídica e da ordempolítica. Na realidade, enquanto a primeira observa o organis­mo público, de um ponto de vista estático, como o produtonatural de urna determinada evolucáo histórica, asegunda obser­va o mesmo organismo, de um ponto de vista dinámico, comoum .produto que pode ser avaliado nas suas qualidades e nosseus defeitos e que, conseqüentemente, deve ser modificado deacordo com as novas exigencias e as ulteriores evólucóes", Logo,pode-se-ia dizer que "a ordem jurídica é ontológica e analítica,pois estudae analisa os diversos institutos públicos no. seu serreal", enquanto a "ordem política é deontológica e crítica, por­que estuda os vários institutos nao como sao, mas como deve­riam ser, isto é, com critérios de avaliacáo e julgamentos deoportunidades que nao sao nem podem ser jurídicos".

E tal sabicháo pensa que é um admirador de Maquiavel,um seu discípulo e, o que é mais, um aperfeicoador!

"Daí se deduz que aidentidade formalacima descrita opóe­se uma substancial diversidade tao profunda e notável de modoa nao permitir, talvez, a opiniáo express a de um dos maiores

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publicistas contemporáneos, que considerava difícil, se nao im­possível, criar urna ciencia política completamente diferente dodireito constitucional. Parece-nos que' este raciocínio só é ver­dadeiro se a análise do aspecto jurídico e do aspecto político sedetém neste ponto; nao o será se for além, especificando aqué­le campo ulterior que é de competencia exclusiva da cienciapolítica. Esta, efetivamente, nao se limita a estudar a organi­zacáo do Estado com um. critério deontológico e crítico, e porisso diferente daquele usado para o mesmo objeto pelo direitopúblico, mas amplia a sua esfera a um campo que lhe é próprio,definindo as leis que regularn o surgimento, a consolidacáo e odeclínio dos Estados. Nem é válido afirmar que este é umestudo da História (entendida no seu significado geral (!), por­que mesmo admitindo que a pesquisa das causas, dos efeitos,dos vínculos mútuos de independencia das leis naturais que go­vernam o ser e o existir dos Estados seja ínvestigacño histórica,permanecerá sempre no ámbito exclusivamente político, portan­to nem histórico nem jurídico, a pesquisa dos meios idóneoscapazes de presidir, na prática, a orientacáo geral política. Afuncáo que Maquiavel se propunha realizar e sintetizava dizen­do: Provarei como estes principados podem ser governados emantidos (Principe, cap. 11), é de tal ordem pela sua impor­tancia intrínseca e como argumento, que nao só legitima a au­tonomia da política, mas permite, pelo menos sob o aspectoanteriormente delineado, uma distincáo inclusive formal entre apolítica e o direito público."

Eis o que Azzalini entiende por autonomia da política!Mas - afirma o autor - além de urna ciencia, existe urna

arte política. "Existem homens que apreendem ou apreende­ram da intuicáo pessoal a visáo das necessidades e dos interessesdo país governado, que na sua obra de governo aplicaram. nomundo externo a visáo, a intuicáo pessoal. Nao queremos dízercom isto, é claro, que a atividade intuitiva, e por isso artística,é a única e predominante no estadista; queremos apenas dizerque nele, ao lado das atividlades práticas, económicas e morais,deve subsistir também aquela atividade teórica acima indicada,tanto sob o aspecto subjetivo da intuicáo como sob o aspectoobjetivo (!) da expressáo, e que, na ausencia desses requisitos,nao pode existir o governante e muito menos (!) o estadista,cujo fastigio se caracteriza exatamente por aquela faculdadeinata (?). Logo, também no campo político, além do cientista,

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no qual predomina a atividade teórica cognoscitiva, existe oartista, no qual predomina a atividade teórica intuitiva. Isto naoexaure inteiramente a esfera de a~ao da arte política que, alémde ser observada através do estadista que, na prática das fun­96es do govérno, exterioriza a representacáo interna do intuito,pode ser avaliada através do escritor, que realiza no mundoexterno (!) a verdade intuída nao praticando atos de poder,mas criando obras e escritos que traduzem o intuito do autor.É o caso do indiano Kamandaki (século III D. c. ), de Petrar­ca no Trattatello pei Carraresi, de Botero na Ragion di Statoe, sob certos aspectos, de Maquiavel e de Mazzini." Azzalininao sabe orientar-se J?em na filosofia, nem na ciencia da polí­tica. Mas procurei utilizar-me de todas estas notas. para tentardesernbaracar o novelo e ver se chego a conceitos claros porminha canta. Deve-se esclarecer, por exemplo, o que pode sig­nificar "intuicáo" na política e a expressáo "arte" política, etc.Recordar, ao mesmo tempo. alguns pontos de Bergson: "Ainteligencia só nos oferece urna traducáo da vida (a realidadeem movimento) em termos da inércia. Ela gira em torno detuda, apanhando de fora o maior número possível de visóes doobjeto que aproxima de si, em vez de penetrar nele . Mas é aintuicáo que nos levará ao interior da vida: pretendo dizer oinstinto que se tornou desinteressado." "O nosso olho percebeos traeos do ser vivo, mas aproximados um do outro, nao or­ganizados entre si. A intencáo da vida, o movimento simplesque corre através das linhas, que liga urna a outra e dá-lhes umsignificado, escapa a ele, e é esta intencáo que o artista tendea apanhar, colocando-seno interior do objeto com urna espéciede simpatia, superando através de um esforco de intuicáo abarreira que o espaco coloca entre ele e o modelo. Mas, naverdade, a intuicáo estética só abrange o individual." "A inteli­gencia é caracterizada por urna incompreensáo natural da vida,já que ela representa claramente apenas o descontínuo e a imo­bilidade."l

Portanto, separacáo da intuicáo política da intuicáo esté­tica ou lírica, ou artística: só por metáfora fala-se de arte po­lítica. A intuicáo política nao se exprime no artista, mas no"chefe", e por "intuicáo" deve-se entender nao o "conhecimentodos individuais", mas a rapidez em ligar fatos aparentemente

1 BERGSON, Í/évolution créatrice, Paris, 1907, passim; (N. e. I.)

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osMichels ePolíticos

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RobertoPartidos

LE PARTI politique ~ escreve MicheIs ~ ne saurait étreetymologiquement et logiquement qu'une partie de I'ensemble descitoyens, organisée sur- le terrain de la politiqueo Le parti n'estdone qu'une fraction, pars 'pro toto'''.1 Segundo Max Weber 2'

ele s: origina de ~uas espécies de causas: seria especialmente.u~aassociacao espontanea de propaganda e de agitacño, que tendeao ~o~~r para permitir, assim, aos seus adeptos ativos (militantes)possíbílídades morai~ e ma!eriais .para alcancar metas objetivasou vantagens .pessoais ou, aínda, as duas coísas juntas. Aorien-

dI R. MICHELS, Les partis politiquee et la contrainte sociale Mercure2 e Fr?nce, 1.0 de maio de 1928, págs. 513-535. '

Wtrtschaft und Gesellschaft. Grundriss der SozialOkonomik III 2 aed., Tubingen, 1925, págs. 167, 169.· , , .

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estranhos entre si e em conceber os meios adequados ao fimpara situar os ínteresses em jogo, suscitar as paix6es dos ho­mens e orientá-los para urna determinada acáo , A "expressáo"do "chefe" é a "acáo" (em sentido positivo ou negativo, desen­cadear urna acáo, ou impedir que se verifique urna determinadaacáo; conveniente ou inconveniente ao fim que se quer alean­car}. Além do mais, em política o "chefe" pode ser um indi­víduo, mas também um corpo político mais ou menos nume­roso: .neste último caso a unidade de intencóes será sintetizadanum indivíduo ou num pequeno grupo interno; e no pequenogrupo num indivíduo que pode mudar, permanecendo o grupo

, ¡mido e coerente no prosseguimento da sua obra.h Para se traduzir em linguagem política moderna a nocáo

de "príncipe", da forma como ela se apresenta no livro deMaquiavel, seria necessário fazer urna série de distincóes: "Prín­cipe" poderia ser 'um .chefe .de Estado, um chefe de governo,mas também um líder político que pretende conquistar um Es­tado ou fundar um novo tipo de Estado; neste sentido, em Iin­guagem moderna, a traducáo de "Príncipe" poderia ser "parti­do político". Na realidade de todos os Estados, o "chefe doEstado;', isto é, o elemento equilibrador dos diversos interessesem luta contra o interesse predominante, mas nao exclusivo numsentido absoluto, é exatamente o "partido político"; ele, porém,ao contrário do que se verifica no direito constitucional tradi­cional, nem reina nem governa juridicamente: tem "o poderde fato", exerce a funcáo hegemónica e, portanto, equi­libradora de interesses diversos, na "sociedade civil"; mas detal modo esta se entrelaca de fato com a sociedade política, quetodos os cidadáos sentem que de" reina e governa. Sobre estarealidade, que se movimenta continuamente, nao se pode criarum direitoconstitucional do tipo tradicional, mas só umsistemade princípios que afirma cOmO objetivo do Estado o seu própriofim, o seu desaparecimento, a reabsorcáo da sociedade políticapela sociedade civil.