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CEPAL / Imprensa Oficial Graciliano Ramos - Maceió - Ano I - Nº 3 - Fev. 2009 cultura e vida das alagoas :: áGuA DOCE ::: ISSN 1984-3453

Graciliano Nº3

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Graciliano é uma revista da Cepal/Imprensa Oficial Graciliano Ramos. Nesta edição água doce - Cultura e vida das Alagoas

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cultura e vida das alagoas:: áGuA DOCE :::

ISSN

1984-3

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CEPAL / Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Colaboradores:Maria Heloísa, Jerzuí Tomaz, Enaura Quixabeira, Edilma Acioli, Fernando Fiuza, Sidney Wanderley, Celso Brandão, Adelmo Luz, Fabiana Carnaúba, Naldinho, Wado, Manoel Go-mes, João Farias, Zuleide dos Santos, Silvana Quintella, Sinval Guimarães, Milena Andra-de e Kelmenn Freitas

Marcos KümmerDiretor-presidente CEPAL / Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Luiz Sávio de Almeida (Org.)Direção cultural

GOvernO dO eStAdO de ALAGOAS

teotonio vilela FilhoGovernador de Alagoas

Júlio Sérgio de Maya Pedrosa MoreiraSecretário de Estado do Planejamento

e do Orçamento

ArtigoAs águas de Vidas Secas /48Maria Heloisa Melo de Moraes

O simbolismo universal da água /50Jerzuí Tomaz

Bestiário aquático: a poesia mítica de Solange Chalita /52Enaura Quixabeira Rosa e Silva

Entre águas insulares Moliterno se fez ilha /54Edilma Acioli Bomfim

Trilha sonora /14Lamento de um pescadorNaldinho

Alagou asWado

Os textos assinados são de exclusiva responsabilidade do autor.Os textos deste número estão de acordo com a nova ortografia.Fotos de capa e contracapa: Fernando rizzotto

Fernando rizzotto (Org.)Direção de arte / Projeto gráfico

EnsaioCaracterísticas hidroambientais do Estado de Alagoas /46Fabiana Carnaúba Medeiros

DocumentaVales alagoanos /24Silvana Quintella Cavalcanti CalheirosSinval Autran Mendes Guimarães Junior

MemóriaPiranha é um peixe enxuto; não tem nada /8Manoel Deodoro Gomes

A beleza da lagoa: as garças pegando mororó! /10João Farias dos Santos

A maior felicidade é essa... /12Zuleide dos Santos

ReportagemRio São Francisco: esperança e a memória molhada em suas águas /4Milena Andrade

ISSN 1984-3453

Milena AndradeCoord. editorial da Imprensa Oficial

revisão e atualização ortográfica:Maria Heloísa Melo de Moraes

Produção cultural:Viviani Duarte, Raffaela Gomes e Daniella Pontes

ContoPássaro da noite /16Adelmo Luz

Poesia /18água Sanitáriaágua bentaágua-de-cheiroFernando Fiuza

Rio e meninosCoiságuaLição da águaSidney Wanderley

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O :: :Este é o terceiro número de nossa revista. O

primeiro experimentou o tratamento espe-cífico de um autor; o segundo, de um tema da atividade cultural. O atual deixou a expe-rimentação para encontrar a forma típica da revista, tanto em conteúdo quanto em elabo-ração estética. Os próximos números tende-rão a se aproximarem do atual, que tomou um tema, água, aprofundando o seu tratamento a partir de visões diferentes, desde o físico do recurso, passando pela arte, indo à forma de construção do espaço dos vales.

Continuamos a contar com a colaboração de pessoas que estão presentes na vida aca-dêmica, cultural e jornalística de Alagoas, co-mo Enaura Quixabeira, Jerzuí Tomaz, Edilma Bonfim, Heloísa Moraes, Fernando Fiúza, Sid-ney Wanderley, Adelmo Luz, Celso Brandão, Naldinho, Wado, Milena Andrade e Kelmenn Freitas, Silvana Quintela, Sinval Guimarães Júnior e Fabiana Carnaúba. Introduzimos a fala do povo, desta feita ouvindo os viventes do Porto do Sururu, da Marituba do Peixe, da Lagoa Redonda e da beira do rio em Piaçabu-çu, procurando confirmar o cotidiano de nos-sa gente que se encontra presente nas entre-

linhas dos demais textos. Deste modo falam João Farias dos Santos (Deca), Manoel Gomes e Zuleide dos Santos. Nesta linha dos depoi-mentos foi essencial o trabalho das estagiá-rias Daniella Pontes e Raffaela Gomes e da assistente de produção Viviani Duarte, além das fotografias de Fernando Rizzotto que, ba-sicamente, documentou as viagens de campo realizadas por nossa equipe.

Desejamos destacar as colaborações da-das por Heloísa Moraes que coordenou a área literária, Fabiana Carnaúba que lidou mais de perto com a questão dos recursos hídricos, Milena Andrade que foi em busca do povo do rio São Francisco e Silvana Quintela, que co-ordenou a elaboração de um estudo sobre al-guns vales alagoanos e que constitui a nossa sessão intitulada Documenta.

A CEPAL acredita que com esta edição, Graciliano encontrou o seu caminho de abran-gência sobre temas ligados a Alagoas. É claro que as transformações não param, mas, pelo menos, conseguimos encontrar um rumo. As duas experimentações que lidavam com cir-cunstâncias específicas deram lugar ao en-contro de uma forma mais geral e abrangen-te, condizente com o objetivo do nosso pro-jeto editorial.

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Milena andrade / Repórter

Rio São Francisco. Lugar onde dormem as es-tórias de negros d’água, de sedutoras sereias de longos cabelos, das terríveis e protetoras carrancas, das pequenas e ferozes piranhas. É também o rio das águas profundas e com-pridas que fazem a “integração nacional” e faz parte de um futuro onde pesará a vida, também, de sertanejos. Sua imensidão co-move e assusta; suas lendas inspiram até mesmo os que nunca molharam os pés nas suas águas.

E para os que habitam suas margens o que esse rio representa? Qual o sentido do São Francisco para as lavadeiras, barquei-ros, pescadores e as crianças que passam mais tempo dentro de suas águas do que em terra firme?

Alimento. Sobrevivência. Imaginário. A verdade é que os homens e mulheres deste lugar são uma espécie de continuação das águas. O rio e os que habitam suas margens parecem indissociáveis. Para os que estão às suas margens, o rio é sua vida. Mesmo após suas águas terem se transformado em mercadoria e ficado escassas e mesmo dian-te da nostalgia da abundância de peixes de outros tempos que marca todo ribeirinho, o São Francisco ainda é a fonte que alimenta a existência dessas pessoas.

Na pequena comunidade de Potengy, loca-lizada nas redondezas de Piaçabuçu, é fácil sentir essa onipresença. Da roda de lava-deiras que enxáguam as roupas da família, a primeira coisa que se ouve ao perguntar como é a vida de quem vive às margens do São Francisco é que não há nada melhor nes-te mundo.

E a razão é muito simples: “Aqui só morre de fome quem tem preguiça!”, justifica Jane-te dos Santos, uma lavadeira que não gosta de cantar. “Somos pobres, mas não vivemos na miséria. O rio nos dá tudo o que a gente precisa: caranguejo, peixe, siri, pilombeta... É pegar a rede e vir pescar que a comida e um dinheirinho estão garantidos”, diz.

Sobre a ausência de cantorias enquanto ensaboa a roupa, Janete não é a única a ex-plicar que não “gosta de fazer nada cantan- Rio

do”. Todo o grupo de mulheres que a acompa-nham na atividade é unânime em contrariar a tradição. “A gente prefere botar a conversa em dia e falar da novela”, conta outra lavadei-ra, Maria Luzânia da Silva, que jura que nas-ceu e se criou na beira do rio e que nunca viu ninguém cantar enquanto lava roupa. “Nem minha mãe, nem minha avó”, garante.

É em comunidades pobres como o Poten-gy que se vê, mais claramente, a importân-cia do rio para a população. É com o pouco dinheiro que essas famílias comem, educam e criam seus filhos, que têm nas águas não apenas o banho, mas também a brincadeira. A pesca é um grande adjutório.

Dona Zulmira, que vive há noventa e dois anos na pequena casa de pau-a-pique que não demorará a despencar, define bem essa relação do povo ribeirinho e o São Francisco. “O rio é como se fosse nosso pai e quem quer

sair de perto de um pai? É a nossa riqueza e nossa liberdade”, diz, ressaltando que não troca seu pedaço de chão batido por nenhum lugar do mundo. “Quero morrer e me enterrar aqui, perto do rio, porque a gente não sabe pra onde a alma vai depois que desencarna. Eu quero que ela fique aqui”, revela a ex-plantadora de arroz que tem como quintal o rio São Francisco.

Dos tempos da rizicultura ela fala com saudade. “Antes, todo ano vinha aquela água amarela que enchia os pés de manga. As bei-radas ficavam cheias de peixe, era uma coisa linda. Ficava aquele brejo cheio de pé de ar-roz... Depois a água amarela fugiu e os pei-xes também. Agora a gente vive só de piau e pilombeta”, lamenta dona Zulmira.

Essa nostalgia dos tempos em que o rio São Francisco “não estava secando”, como dizem os ribeirinhos, parece ser hoje o sen-timento mais forte dos que vivem às suas margens.

O pescador João Francisco dos Santos ain-da lembra da maior cheia que viu no Baixo São Francisco. Foi em 1926, quando tinha vi-vido apenas onze dos seus 93 anos. “O negó-cio foi bonito! Todo mundo teve que se mudar pra um lugar mais alto para fugir da cheia, mas, depois, a aparição de peixe foi a maior que eu vi na minha vida”, conta seu João, que diz que se cansou de encher a canoa de peixe em poucas horas de pescaria.

A verdade é que os ho-mens e mulheres deste lugar são uma espécie de continuação das águas. O rio e os que habitam suas margens parecem indissociáveis

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São Francisco:esperança e a memória molhada em suas águas

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Kelmenn Freitas

Janete dos Santos: “Aqui só morre de fome quem tem preguiça”

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M ::: Fotos: Kelmenn Freitas

Pescadora Márcia Feitosa em sua casa à beira do rio, numa das ilhas da região

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“Nasci pescando aqui nesse rio. Era tan-to peixe que, de longe, a gente ouvia a zoada dos bichos estourando em cima da água! Já peguei muito camurupim de noventa quilos. E de anzol!”, lembra o pescador.

Seu João, como todos os pescadores do Baixo São Francisco, só demonstra alegria quando fala do passado, do tempo em que a vazão do rio era regulada pela natureza. “Quando o São Francisco era manobrado por aquele lá de cima tinha cheia e vazão, peixe e arroz.”, diz o pescador.

Essa escassez de peixes no rio é hoje uma fonte permanente de preocupação na vida do ribeirinho. O medo de que o seu único pro-vedor de tudo deixe de lhe trazer o alimento passou a povoar o imaginário deste povo.

Numa roda de pescadores, o assunto é sempre o mesmo – a dificuldade em continuar sobrevivendo da pesca. “Hoje, tem mais ilha do que água e mais pescador do que peixe”, reclama seu Antonio, que viu sua pescaria cair um terço e várias espécies desaparece-rem ao longo de trinta anos de labuta no rio. “O camarão sumiu, o pitu tem muito pouco, surubim e camurim quase não se vê mais. So-brou a dourada, a tubarana...”, conta.

Apesar de tudo isso, o povo ribeirinho ain-da se declara abençoado. “A gente pode ficar ainda mais pobre, pode não ter quem nos aju-de, pode sofrer com o abandono dos que têm poder, mas a riqueza de nossa vida a gente nunca vai perder. O rio São Francisco sem-pre foi o nosso pai, nosso trabalho, nosso ali-mento e isso ninguém tira da gente”, declara o pescador.

Ilhas cercadas de significações e histó-rias

Os barqueiros que fazem o caminho até a foz do rio São Francisco são mestres em con-tar, em destacar o imaginário e suas constru-ções sobre as águas e suas relações. Entre o cais de barcos em Piaçabuçu e o lugar onde o Velho Chico encontra o mar existem várias ilhas de nomes bem curiosos. Ilha da Nêga, da Criminosa, da Fitinha e do Monte são al-gumas delas.

Para cada ilha há uma história que justifica o seu batismo. Talvez a história mais interes-sante seja a da “Criminosa”. Nas proximida-

des não há um único pescador ou barqueiro que não tenha medo até de se aproximar do lugar, que, aparentemente, não tem nada de macabro ou aterrorizante, mas, aos olhos dos ribeirinhos, tem algo de tenebroso até no ar que se respira.

Diz o povo que a Ilha da Criminosa, que fi-ca já bem perto da foz, é o lugar onde vão pa-rar os corpos dos que se afogam no rio. Uma correnteza misteriosa atrai os mortos até as margens da ilha, conta a pescadora Márcia Feitosa. “As poucas vezes que tentei pescar lá por perto acabei voltando. É tudo muito esquisito lá. Parece que tem alguma coisa te vigiando”, conta a pescadora.

O que teria amaldiçoado a ilha foi a his-tória de um casal que morou lá há muitos anos. Segundo os ribeiros, a mulher não se conformava com a bebedeira do marido, que era pescador. De tanto reclamar e não ser ouvida ela se cansou e um dia o assassinou a facadas. O espírito do pescador assombra-ria o lugar até os dias de hoje.

Uma outra história cerca a Ilha da Fitinha. Quem conta é o jovem barqueiro José Alex, que ganha a vida levando gente para conhe-cer a foz do São Francisco. Há muito tempo, morava lá uma bela jovem de cabelos negros que se apaixonou por um pescador. O seu pai, também pescador, não aceitava o romance, pois queria que a filha tivesse um futuro me-lhor, ao lado de um homem rico, da cidade.

Sem querer romper o namoro, a moça pas-sou a se encontrar às escondidas com o seu amado e sinalizava que o pai não estava na ilha amarrando uma fita colorida num coquei-ro. A história de amor acaba com a fuga do casal para longe do pai tirano.

Essa escassez de peixes no rio é hoje fonte de preocupação. O medo de que o seu único provedor deixe de lhe trazer o ali-mento passou a povoar o imaginário deste povo

dona Zulmira: 92 anos na mesma casa de pau-a-pique

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Seu Manoel, antigo pescador. no detalhe, mordida de piranha

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Piranha é um peixe enxuto; não tem nadaManoel Deodoro Gomes, 79Vale da Marituba / Penedo - Eu nasci e me criei aqui. E todo dia ia pescar. Um dia eu tava pescando... De cuvu, né? Era de lance. Aí eu caí n’água, quando eu caí n’água risquei ela no cuvu. Mas eu num senti dor não, quando eu levantei a perna. Eu tinha quinze anos. Eu havia cortado essa perna, no meio. O pei-xe saltava. A gente batia na canoa, o peixe entrava, a gente cercava, botava o peixe pra dentro da rede. Eu e todo mundo ficava pes-cando e ela foi logo me escolher.

Não pensei em nada e nem senti nada. Na hora não senti a topada. Aí quando eu levantei a perna, tava a dor, menino. Aí botei o fato da chira em cima pra parar o sangue. Ficaram comigo dentro da canoa, pescando, até de tarde, e eu lá, preso, desenganado. Quando eu vim, me deixaram no porto, ali naqueles matos, e vieram se embora; quem me trouxe foram dois camaradas, dois amigos. Um com o peixe, que era tanto que não se podia, trazia a pulso, e o outro comigo nas costas.

Tratava a ferida com remédio do mato, da-quela época. As plantas têm vida; essa anin-ga, a fruta dela mata bicho de mosca. Eu de mordida num tenho só essa não. Essa ia me matando. Essa daqui eu caí dentro d’água e ela me mordeu logo. Eu ouvi ela batendo den-tro do cuvu, quando eu enfiei a mão ela já me mordeu. Ói, tudo isso aqui é mordida de pira-nha. Ói aqui, rapaz, ói aqui outra, ói.

Tinha gente que sabia rezar pra piranha não morder, tinha gente que sabia. Mas tam-bém naquele dia que ele rezava, também pei-xe ele não pegava. Ele não rezava todo dia. Se rezasse todo dia, não pegava mais peixe. Era uma técnica que ele tinha, ó. Dizia eu vou pra o brejo, mas num vou pegar nada, eu vou me preparar. A piranha hoje nem morde eu, nem morde ninguém, lá na pesca. E naquele dia ele num pegava nada, os outros pegava, mas ele num pegava nada. Eram poucos os que rezavam. Quem sabia, aprendeu com os pais e as mães, né. A piranha chega de 4 quilo. Tem gente que adora a piranha. Pi-ranha é um peixe enxuto, num tem nada. É muito bonita.

Quando eu era novo, com idade de 15 a 18, 20, o peixe aqui era demais. Todo dia, a gente num pegava não, mas tinha vez que pegava todo mundo, agora eu num sei nem dizer a quantidade. Era, era... Era demais. Aí depois que fizeram as barragens, acabou. Eu vendia sim, e os negociantes iam vender em Arapi-raca, Penedo. Eu parei; não pesco mais.

O rio mudou muito. Mudou sim. Mudou sim, porque antigamente vinha cheia todo ano, agora não vem mais. Depois das barra-gens. o peixe acabou-se. O peixe entrava aqui porque vinha das enchentes, né?

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a beleza da lagoa:as garças pegando mororó!João Farias dos Santos, 66Porto do Sururu / Santa Luzia do Norte - Isso aqui tudo era uma lagoa só; hoje tá desse jeito! Es-sa parte do mato por aqui, tudo era lagoa. A gente encostava a canoa aqui! Ali na porta da igreja, tinha uma levada: encostava lá! Então, isso aí, com o tempo... Aí surgiu essa taboa, aí com o tempo vai a baquiara e o canutão na taboa e aí vai tapando tudo. Tem essa levada aqui, porque a colônia mandou abrir. Agora, o porto é dali pra lá. Só tem aqui essa levada pra gente passar. Daqueles coqueiros pra lá, tudo é aberto, né? A lagoa é aberta.

A lagoa era muito grande aqui e hoje se torna desse jeito... A natureza aterrou esse pedaço. Oia o mato aí, oia! Essa taboa ai... Aqui no mangue se eu contava era uma, duas, três, quatro, cinco camboas, dali até aqueles coqueiros. Hoje num tem mais nenhuma, que esse mato tomou conta das beiradas, aí ela aterrou dentro do mangue.

É, secou muito a lagoa. E também a la-ma podre... Vem aquela lama podre dentro do rio. Aí dentro da lagoa tá com uns quatro palmos só de lama... Aquela lama podre. Aí não tem como os peixe se criar, mas de quan-do e quando tem. Um homem só enche uma canoa dessa de sururu. Quando tem assim, tá bom de sururu, um homem somente en-che uma canoa dessa de sururu num dia. Eu deixei de tirar e fui viver de pescaria de rede. A gente saía de manhã e só chegava de tar-de. Ali, quando tem sururu, é três horas de relógio e tira quarenta, cinquenta latas. Um barco desse dá trezentas latas de sururu. Tem barco mas não tem sururu. Aí tão tudo cortando cana, até em Sergipe. Quer dizer, que quando não tem sururu, vai cortar cana ou vai tirar areia.

Se não for cana, areia ou pescar, também não tem outra coisa. Quem vive desse jeito, dá pra viver. Sempre tem. Porque hoje o pes-cador não tem leitura pra viver em emprego bom. Se é de ganhar um salário é melhor tá na lagoa, porque já paga seu INSS, não chega nem a 5 reais por mês, o INSS do pescador é barato. A Colônia tá abandonada que quem toma conta aí tá desarrumado.

Eu tô pescando o mororó, é um peixinho que nem agulha, é mesmo que agulhinha, ele é maioriznho. Aí eu pesco o mororó e em casa a mulher trata, bota no sol pra secar. As me-sinhas são para secar. Mororó mesmo. Aqui não dá piaba. Alguma perdida... Aqui já deu piaba de pegar de carga. O rapaz aí trabalha-va com um compadre meu, ele tinha uma re-dinha de arrasto e muitas e muitas vezes ele pegava de carga, aqui e dentro do rio, de pia-ba. No rio, era demais a piaba. Ô peixe bom de vender no mercado! A pitiguirra dá por aqui, agora que ela dá pouca, mas por dentro das camboas, né? Agora lugar das pisirica mer-mo é Pilar e Marechal Deodoro.

Peixe bom é a traíra e se souber tratar, qualquer menino come. O problema da traí-ra é num saber retalhar ela. Se retalhar bem miudinho ela, qualquer pessoa come. É mui-ta espinha... Agora o peixe melhor que eu acho de brejo é o sabararu. Num tem espinha e é um peixe... Acari tem! Aqui tinha muito, aqui. Acari é no rio. De vez em quando eu pe-go na lagoa. Já ontem peguei dois na lagoa. O peixe que dá mais aqui é bagre, mandim.

Agora bagre tem demais na lagoa. O cara pe-gou mais de 170 quilos na semana passada, lá em Bebedouro.

A água tá muito salobra, né? Tá, a água já tá salgada já. Já tem cebola! Sabe o que é cebola, né? Tem é muita! Todo mês que en-tra em diante é queimar que só! Oxe! Quan-do bate no olho... Quando bate no beiço fica dessa grossura! Agora o langanho, o langa-nho não, quando pega bota pra empenar! O niquim num tem aqui não, só tem no canal. Aqui num tem não. Agora da boca do canal pra lá, o cara só trabalha de calção. E aqui-lo se come! Agora tem uma coisa, tem que saber tratar pra não estourar o fel. Que todo o veneno dele tá no fel.

Não vem pra cá o sururu, porque a lagoa tá seca. Não tem como. O sururu produz na lama, aí tá tudo secando, tá uma poluição danada. Eu deixei de tirar o sururu, tá com uma faixa de uns 30 anos. A minha vida é pes-car. Deixei porque a pescaria tava melhor e a pescaria dentro da canoa, fica melhor. Muita gente aqui vai pro sururu: marisqueira, tu-do... Agora não, que tá faltando, mas daqui lá pra janeiro, janeiro tem. Talvez antes de janeiro chegue.

O lugar mais fundo na lagoa é no buraco, lá onde tira sururu, no sururu de capote, de frente ao sururu de capote. Aquilo ali é, o ca-ra chama o banco, né? A parte da lagoa que

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tira o sururu. Lá é fundo. Fundo que faz os dois canal, o que sai da lagoa e o outro que vai lá pra pista. Chama de o buraco da draga. Deca: O canto mais fundo que tem é lá. Pra pegar sururu. O cara sai três horas, quatro horas, duas horas. Leva lanche. Às vezes to-ma café em casa, né? Que eles agora tão mais vendendo na pista, né? Lá eles faz lanche. A pista é lá no Vergel.

O porto mesmo do sururu que era aqui, acabou-se, acabou-se. Aqui, há uns trinta anos atrás, saía uns três carros, três cami-nhão topado de sururu, com 70, 80 saco, cada um, por dia. E hoje se acabou-se. Essas cas-cas... Esse daqui ninguém num sabe quan-tos anos tem, isso aqui é tirado da areia, is-so aqui veio na areia. Isso aqui é tirado na lagoa. Isso aqui era mar... Era, mas tá com muitos anos, né?

O povo tira areia na lagoa, depois daque-les coqueiros ali. Antigamente tirava de pá. Naquele tempo, tirava de pá, de joelho. Ago-ra é de mergulho... Porque é fundo, tem que fazer o buraco que a lama tá muito alta. Aí faz o buraco, dois metros, pra poder che-gar na areia. A lagoa tá se acabando... Aqui,

daqui mais dez anos e ninguém num anda mais aqui. Porque do jeito que tá... O cara dá mais de duzentos merguilhos para encher a canoa. É mais ou menos isso. Num instan-te ele mergulha, porque é por dois metros, três metros. O máximo é dois metros. Eu ti-rei muita na Mundaú, tirei muita aqui tam-bém, mas depois que eu adoeci de papagaio, deixei de tirar.

Aqui é bambu para fazer paredão do açú-de. Ói, tá vendo aí? Se tirar esse mato, ói aí o ra que fica! A água vem todinha praqui de novo. A maré aumenta, ela aumenta; a ma-ré abaixa, ela abaixa. Ele vai fazer um pa-redão. Essa cerca aqui é promode o animal não passar. Vai fazer um paredão, porque aí a lama sai escorrendo pra dentro; eu tiro a lama e a lama volta. Aí eu boto o pau como um paredão, né? Faz a parede e a lama não passa. Agora o bom é se voce botar palha de coqueiro encostado.

Essa lagoa? Isso é uma mãe de família! Se os homem que conhece a lei, olhasse pra lagoa, isso era, isso... Num tem indústria pra render mais dinheiro do que a lagoa. Porque essa lagoa, aqui, Lagoa Manguaba e Lagoa Mundaú, tem pra mais de vinte mil pesso-as - ora, vinte mil pessoas! - que veve da la-goa. É! Num tem indústria que renda mais emprego do que a lagoa, porque se o senhor for naquela beirada, ali o senhor morre de sorrir só de ver a beleza da lagoa, as garças pegando mororó.

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José Farias, o deca. Lembranças de uma lagoa com fartura

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A pesca na Lagoa redonda: estratégia de sobrevivência

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A gente é parente e amigo. Ele é meu fi-lho, ela é minha nora, ele é meu marido, ali é amigo e esse é amigo.

A gente sente na mão que tem peixe no cuvu. Aqui não tem mais de um metro de fundura. Dá um metro por mode a lama. É não areia; é lama. É um peso pra pessoa pu-xar a rede... Pesa muito. Aqui a gente... Se ti-ver muito peixe, a gente dá dois, três lances, pega o peixe e nós vai simbora já. Se num tiver... Hoje tá mais fraco. E num falta gente não, pra ir pescando.

Meu nome é Zuleide dos Santos e tenho 42 anos. Sou natural daqui de Piaçabuçu e desde menina que ando na pescaria. Lem-bro quando andava. Num fui criada não, com meu pai; minha mãe foi separada do meu pai, eu tinha três anos. Meu pai tem cinco meses que faleceu. Eu merma fui criada nos sítios do povo, morando assim, que a gente não tinha casa... A gente morava assim, no sítio dos outros. Depois que eu casei, tive meus filhos e fiquei na casa de minha mãe. Minha mãe comprou uma casinha, a gente ficou lá e depois eu comecei a morar de no-vo. A gente não tem casa mesmo pra se fi-xar, pra viver. Aí, hoje ele tem quatro filhos, vive na casa da minha mãe mais a esposa e os quatro filhos.

A coisa de mais graça e muita felicidade na pescaria, é muito peixe, quando a gente dá um lance que vem muito peixe... Eu fico muito feliz, porque sei que os meus filhos vai comer. Mas eu ria muito, é quando a gente pegava o muçum. É, escapulia; aí os meninos jogavam tudo e saiam correndo.

A coisa mais triste que eu vi foi um dia eu procurar o que dar pros meus filhos e não en-contrar. Eu acho que até hoje eu não esqueço. Num tem como. Chorei e muito. Eu pensei que um dia Jesus ia me dar tudo em dobro, né? Porque a gente passa por tudo na vida... Só que o pai deles, a gente se separou, a mi-nha menina tinha... A mais nova hoje tem 23 anos, tá casada, tem dois filhos e quando a gente se separou ela tinha oito meses e ele tinha um ano e nove meses e...

Fui levando a vida assim: trabalhando pe-las cozinhas, deixava meus filhos à toa... Ho-je, graças a Deus, meu filho já tem 26 anos, já tem a casa dele também. E sempre eu digo a ele: trabalhe, lute pra que um dia os filho dele não passar o que ele passou. E a tris-teza que eu tenho mais é de ver meus qua-tro netos sem ter uma casa pra ele botar os filhos. Tem o chão, mas até agora não tem condições de alevantar a casinha dele. Aí eu me sinto como se aquilo fosse tá repetindo tudo o que aconteceu comigo. É a coisa que me deixa mais triste.

Essas duas coisas: que meus filhos pe-quenos passarem fome e hoje eu ver os meus quatro netos, pode-se dizer, que sem ter onde ficar. Porque a casa dos outros não é que nem se ele fosse pra casa dele. Ele tem o chão! Já levantou uma parede, mas não tem con-dições de levantar o resto porque ele desem-pregado, não tem trabalho... Trabalha com diária e as diárias recebe por quinzena! Tra-balha na diária e a diária ainda recebe por quinzena, aí não tem como ele levantar a casa dele, aí é isso que me deixa mais triste. Mas no dia que eu ver ele com as paredes levan-tadas, a casinha dele cobertinha, pra mim a maior felicidade do mundo é essa.

Zuleide dos Santos, 42Lagoa Redonda / Piaçabuçu - A gente somente pes-ca assim, no verão mesmo; quando tá tudo cheio, a gente pesca de anzol, de vara. A gen-te mora ali, no sítio; aí vai trabalhar tomando conta de sítio; aí, a gente dia de domingo vai pescar. Pra ajudar, né? A gente ganha muito pouco, mas é melhor do que nada.

Meu marido é... roda palha de coqueiro, faz cerca, munduru [?] Munduru é... Os pés do coqueiro... Juntar a terra nos pés de co-queiro. A gente cava ao redor, né? E faz alta e fica naquele alto.

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Quando a luz da lua Deita sobre o rioVeleiro vai pescar Saudade há de deixarPescador cantou na madrugada Viu sujeira passar chorouDe volta à casaSe trouxe peixe bom não sei

NaldinhoCANTOR E COMPOSITOR

lamento de um pescador

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Os rios são as veias da TerraA Terra é um rei de sangue azul

Alagou asTerras do meu coração

MolhouEncheu de lágrimas

Arte periférica, velho samba, Salvador Lira, Vergel,Prado, Ouricuri

Que arte chegue ao centro que se mostre no grande circoLevanto esta bandeira, a bandeira dos bairros distantes, eu

levo este estandarte

WadoCANTOR E COMPOSITOR

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I

Nos idos dos anos sessenta, havia no bairro da Cambona um flâneur conhecido por Bitu-ca. Um negro que apesar da robustez, um par de braços rijos e as mãos calejadas no emba-te diário com as faxinas, a natureza dotou de um temperamento brando e maneiras delica-das. De estatura mediana, meio atarracada, sua fisionomia a princípio não lhe anunciava a alma, mas quando falava, a voz era mansa e os gestos defensivos, anunciando-lhe a ín-dole passiva e o espírito desarmado. Oriun-do da cidade de Marechal Deodoro, nasceu às margens da lagoa, num casebre de barro coberto de palhas, viveiro modesto que ficava infestado de moscas, atraídas pelo cheiro do pescado. Com a perda precoce do pai - único provedor da casa - a mãe cuidou de doar parte da prole, antes que a fome chegasse. Desfez-se dos picuás e partiu para o norte com o que sobrou da família, onde diziam haver terras à espera do cultivo e ocupação remunerada na floresta. Nunca se soube o desfecho des-sa história. Fato é que de lá jamais mandou notícias. Restou a Bituca ir morar na capi-tal, na casa de uma família abastada. Mas devido aos maus tratos de que fora vítima, deliberou fugir levando consigo somente a roupa do couro. Dormiu sob pontes, passou fome até que um dia, na feira do rato, onde costumava fazer biscates, caiu nas graças do Seu Binha, antigo barbeiro da Cambona, que não tinha filhos e resolveu lhe dar guari-da. Com a morte do velho, que tinha a saúde comprometida, desativou o negócio por nun-ca ter aprendido a profissão.

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Bituca adquiriu o hábito de fazer longas ca-minhadas. Raríssimas as noites que não saía. Sempre agasalhado e de braço com o inse-parável guarda-chuva, ouvindo modinhas no radinho de pilhas, passava na maciota en-quanto as pessoas haviam ido reparar no si-lêncio dos aposentos a fadiga do dia. Andava lonjuras, desvendando territórios obscuros à cata de aventuras notívagas. À noite os bair-ros aquietavam-se, as ruas ficavam ermas e numa calmaria de cemitério. Contemplava a cidade e seus vícios mundanos, deixando-se seduzir pelas tentações de arriscados en-contros libertinos. Garantida uma conquis-ta, refugiava-se nos caminhos próximos das águas. Sentia-se irresistivelmente atraído por elas. Sua afeição pelo cenário aquático datava da infância. Incontáveis as vezes que se banhou na madrugada, após o namoro, na água salobra da lagoa, no Trapiche da Barra, no Vergel do Lago ou nas cacimbas que bei-ravam a linha férrea, a caminho de Bebedou-ro. Em uma de suas costumeiras andanças, deparou-se com um desocupado. Rapaz de olhar fugidio e os cabelos da cor de fogo, que logo lhe caiu no agrado. Aproximou-se ofe-recendo cigarros, granjeando simpatia, for-mulando o convite para tomarem umas pin-gas. Estimulados pela aguardente, saíram em busca da intimidade de um terreno bal-dio. Atravessaram o mercado da Levada, que àquela hora era frequentado por toda espécie de gente. Proprietários de frege-moscas que gastavam o apurado do dia com prostitutas. Miseráveis anônimos, ociosos e descalços, comendo migalhas da feira, enquanto os in-corrigíveis trapaceiros tinham como ofício furar pacotes. A fedentina nunca abandonou o lugar, e o lixo amontoado era disputado pe-los cães famintos.

III

Sob o olhar do céu que estava pontilhado de estrelas, margearam a linha férrea e abriga-ram-se no mangue, de onde se ouvia o inces-sante marulho das águas. Bituca caiu num desfalecimento frouxo, recostado na raiz de uma árvore, mergulhando numa atmosfe-ra sonolenta. Sentia-se estafado após uma noite de buscas e bebedeiras. O rapaz, im-buído de inconfessáveis intenções, valeu-se daquele descuidado instante do consorte pa-ra golpeá-lo à traição, repetidas vezes, com uma arma branca. O corpo ficou abandonado e insepulto, subtraído dos seus pertences, até ser denunciado pelos urubus. Nunca se apontou a autoria do delito. Quiçá, um suspei-to, o “Galego da Levada”, delinquente contu-maz nesse tipo de crime, a quem se atribuía a reputação de ser implacável com as vítimas. Ninguém reclamou o cadáver. Sequer houve missa. Bituca só não serviu de cobaia nas au-las de anatomia, porque já era carniça.

adelmo luzeSCriTOr

Pássaro da noite

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Pássaro da noite

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A amiga da criada e inimiga da patroa - que a compra só para pano de chão, e a criada quebra a lei botando-a em tudo que for branco. Mas sendo água, salpica, e seu salpico quando bate em cor constela a cor de branco.

Ela poupa as mãos, é pariceira da preguiça, uma filha do progresso, barata e popular.

Alveja o encardido e mancha o colorido. É uma fada construtivista: o que toca vira branco.

Branqueia, cega e mata, se bebida: torna tudo branco-osso. Criança baixa em hospital ou necrotério depois de bebê-la; homem sem charme é chamado de balde de água-sanitária por mulheres salpiquentes.

Tira as marcas de amor e sangue dos lençóis: sem ela, não há crime perfeito.

O sêmen tem um sema em comum com a água sanitária: o cheiro - prosaico rendez-vous da vida com a morte.

A água sanitária é inimiga da cor, inimiga da vida - é um clássico.

Fernando FiuzaPOETA

Água sanitária

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Celso BrandãoFOTóGRAFO

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Celso BrandãoFOTóGRAFO

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Ela dorme fria na entrada das igrejas e é acordada pelos dedos dos fiéis, que ali colhem proteção e depositam germes. Mas Deus é maior – malgré Augusto de Los

Ângeles – e esses bichos mínimos não contaminam como deveriam.

Mesmo sendo água em poça, ela não é mais nociva que dinheiro, maçaneta, cigarro caído ou copo sobejado.

Convém, no entanto, não passá-la nos lábios, basta na testa, nos peitos e no órgão avariado. Deixe a boca à

palavra muda prece.

Quando o padre a chove do altar, ela ganha frescor na viagem do hissope à cabeça dos fiéis. Água-de-bica

sagrada em terreiro de Oxum. Água beata, mas quando o Aurélio a serve com hífen: água-benta, ela destila, estrila,

vira cana: endiabra.

Fernando FiuzaPOETA

Água benta

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A macia amolece amolega amoleca amaluca, é de brejo, não se guarda em louça, não é loção.

Água-de-colônia é cítrica, tem um travo que a de-cheiro não tem. Água-de-cheiro é água mole, daquela que fura a couraça do vaqueiro e as paredes do nefelibata. (O vaqueiro nefelibata perdeu quase todas as rezes, salvou apenas os bezerros do gavião).

Água-de-cheiro das índias negras cafuzas mulatas mamelucas curibocas matutas todas terceiro-mundo e amadas pelos inteiros do mundo inteiro. Brancas usam perfume - é preciso -, orientais, nem isso, e as nossas, água-de-cheiro-de- xibiu em chibata.

Água-de-cheiro é aguatoa, não é tônica, é aguaboa, se usada com traquejo atenuado.

É hora de lavar as mãos - ela sai com água, não gruda, não entrega, não entranha, eleva-se, mesmo de ralo abaixo.

Fernando FiuzaPOETA

Água-de-cheiro

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Celso BrandãoFOTóGRAFO

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Três meninos mergulham no rioo rio mergulha na tarde

a tarde mergulha no tempo

que envelhece os meninosque engole o sonho e os que sonham

que altera o curso do rio

para que três outros meninosem outra tarde, outro rio,

renasçam em outros mergulhos.

Sidney WanderleyPOETA

Celso BrandãoFOTóGRAFO

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rio e meninos

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Celso BrandãoFOTóGRAFO

Quartinha moringa bilhacantil pote jarra cântaro:quanta coisa a te conter,ó água,ousando o que o mar não ousa.

Sidney WanderleyPOETA

coiságua

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Evaporar-se,condensar-se,precipitar-se:

não só a água, o amor também,

só que em ordemum tanto diversa:

precipitar-se,condensar-se,

evaporar-se.

Sidney WanderleyPOETA

Celso BrandãoFOTóGRAFO

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lição da água

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entardecer na lagoa do roteiro, próximo à praia do Gunga

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A construção do espaço é uma tarefa diuturna e, basicamente, um vale é a sua própria construção, no que se implica a noção de sua história e, nela, a forma como foi construida a sociedade, a política e a economia que lidam com suas águas. O estudo realizado pelos professores Silvana Quintella Cavalcanti Calheiros e Sinval Autran Mendes Guimarães Júnior traça o perfil de alguns de nossos princi-pais vales, montando uma informação sistemática que nos permite ter uma idéia de como se encontra organizada a resultante históri-ca dessas águas. É uma contribuição que poderá subsidiar o ensino e, ao mesmo tempo, divulgar elementos-chave sobre nosso Estado. Alagoas é de tal forma marcado pelas águas, que seu próprio nome ressalta a importância das lagoas para nossa identidade. As águas levaram Gilberto Freyre à criação de uma imagem, propondo o ala-goano como anfíbio, o que foi, posteriormente, glosado por Dirceu Lindoso. Os vales restantes serão objeto de um outro número de Graciliano, que pretende, desta forma, tentar esgotar as virtudes das águas na construção das Alagoas.

vales alagoanos

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VALES ALAGOANOS .

Profa. Dra. Silvana Quintella Cavalcanti CalheirosProf. Esp. Sinval Autran Mendes Guimarães Junior

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Os vales alagoanos são formados por cur-sos d’água que se organizam espacialmente numa rede de drenagem que nasce na sua maior parte no Planalto da Borborema, em terras pernambucanas, e seguem para o oce-ano Atlântico e o rio São Francisco. Eviden-temente, não poderemos nos deter em todos os vales, mas ressaltar os que consideramos mais importantes do ponto de vista da área e da organização da produção.

Tendo em vista os dois tipos de desagua-douros os rios que compõem a rede hidrográ-fica são classificados como: rios da Vertente Sanfranciscana ou Ocidental, são temporá-rios ou torrenciais, isto é, escoam apenas por um curto período do ano, logo após as fortes chuvas de inverno e deságuam no São Francisco (LIMA, 1965; UFAL, 1994). Os rios da Vertente Atlântica ou Oriental são perenes em virtude das constantes correntes de umi-dade oriunda do Atlântico, que se acumulam na frente da escarpa do Patamar Cristalino, que compõe parte das Encostas Orientais do Planalto da Borborema (LIMA, 1965; UFAL, 1994). A figura seguinte corresponde à loca-lização dos Vales adiante descritos.

Em virtude da escassez de dados e infor-mações sobre os vales alagoanos, o trabalho foi fundamentado em estudos desenvolvidos

por Ivan Fernandes Lima, publicados nos anos de 1965 (Geografia de Alagoas) e 1992 (Ocu-pação Espacial do Estado de Alagoas). Foram utilizados ainda, estudos realizados por Ala-goas (1979, 1992 e 1994), Andrade (1997) e a Enciclopédia Municípios de Alagoas (2007). Somados a isso, foram realizadas consultas a mapas elaborados por Brasil (1972 e 1983), Alagoas (1979, 1986, 1993, 2006), Brasil; Ala-goas (1984) e Atlas Escolar Alagoas: espaço geo-histórico e cultural (2007).

As expressões bacia hidrográfica e va-le, usadas no trabalho possuem o mesmo significado. Esta consideração é reforçada conforme a definição proposta por Guerra, quando explica que: “É comum o emprego da expressão ‘bacia hidrográfica’ como sinôni-mo de vale, como exemplo podemos citar: bacia do São Francisco ou vale São Francisco; bacia do Amazonas ou vale do Amazonas, etc.” (1993, p. 28). No intuito de esclarecer as expressões bacia hidrográfica e vale, segue as definições do mesmo autor:

BACIA HIDROGRÁFICA – conjunto de terras drenadas por um rio principal e seus afluentes. Nas depressões longitudinais se verifica a concentração das águas das chuvas, isto é, do lençol de escoamento superficial, dando o lençol concentrado – os rios. A noção de bacia hidrográfica obriga naturalmente a existência de cabeceiras ou nascentes, di-visores d’ água, cursos d´ água principais, afluentes, subafluentes, etc. (p. 48).

VALE – corredor ou depressão de forma lon-gitudinal (em relação ao relevo contíguo) que pode ter, por vezes, vários quilômetros de extensão. Os vales são formas topográficas constituídas por talvegues e duas vertentes como dois sistemas se declives convergen-tes. O vale é expresso pela relação entre as vertentes e os leitos (leito menor, leito maior e terraços). (p. 427)

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vale do Marituba:vegetação característica

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Maceió

Moxotó

Talhada

Capiá

Grande

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Boacica

Perucaba

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Vales da vertente sanfranciscana

Paraíba do Meio

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Coruripe

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Santo Antônio

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Vales da vertente atlântica

Compilado e adaptado por Esdras de Lima Andrade e Sinval Autran Mendes Guimarães Júnior em nov. 2008, a partir do Mapa 20 - Bacias Hidrográficas - ATLAS ESCOLAR ALAGOAS: espaço geo-histórico e cultura.

Adequado ao projeto gráfico da Graciliano por Fernando Rizzotto.

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Mapa dos Vales Alagoanos

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1.0 VALES DA VERtENtE SANFRANCISCANA

Entre os rios que compõem os Vales da Ver-tente Sanfranciscana, aqui caracterizados, encontram-se: o Capiá, o Ipanema e o Traipu.

Estes rios foram importantes na formação e ocupação do sertão alagoano e da parte central do sertão pernambucano, já que a

fixação dos primeiros núcleos de povoamen-to, em parte, se deu ao longo destes vales (LIMA, 1992).

A farinhada é assim

Fernando Rizzotto

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1.1 VALE DO CAPIá

Este vale abrange a porção Oeste do sertão alagoano. A bacia hidrográfica que contém este vale no estado de Alagoas drena apro-ximadamente 2220 km², o que corresponde a 8% do seu território.

O vale principal do Capiá não apresen-ta nenhuma cidade, por outro lado, vários povoados estão presentes, sendo os mais importantes: Capiá da Igrejinha, Piau, e o histórico povoado de Entremontes, a mais antiga localidade às margens do São Fran-cisco, depois de Penedo. Estes dois povoados estão posicionados na margem direita do rio Capiá, ambos localizados no município de Piranhas. Nos vales secundários ou subva-les estão localizadas as cidades de Canapí, na margem direita do rio homônimo, maior afluente do Capiá; Inhapi, Ouro Branco e Mata Grande, posicionada na cabeceira do riacho Cumbe. Estas cidades, segundo a contagem da população pelo IBGE em 2007 somavam 23.292 habitantes, com a cidade de Ouro Branco abrigando a maior população deste vale com 6.634 habitantes.

O Capiá nasce em terras pernambuca-nas, nas proximidades da cidade de Itaíba, percorrendo pouco mais de 100 km, sendo 88 quilômetros em terras alagoanas. Da porção sul (baixo curso), nas imediações do São Francisco até a confluência com o riacho Canapí (médio curso), o rio Capiá drena a parte mais seca do Estado. A sua confluência com o São Francisco se dá junto ao povoado de Entremontes (município de Piranhas), po-sicionada na sua margem direita, divisa com o município de Pão de Açúcar. O alto curso do rio Capiá drena uma pequena parte de terras do estado de Pernambuco, sendo que o restante do médio e a totalidade do baixo drenam terras alagoanas.

O Vale do Capiá apresentava alguns tre-chos de caatinga exuberantes, atualmente descaracterizados. Os muitos trechos úmi-dos proporcionados pelas aluviões facilita-ram a implantação de lavouras e o desenvol-vimento de vegetais de grande porte, como: Baraúna, Angico e Aroeira, fato este que propiciou, ao longo de décadas, a intensa extração de madeiras.

Apesar da sua proximidade com o rio São Francisco, o Vale do Capiá não possui áreas irrigadas e permanece marcado por um conjunto de culturas tradicionais como o feijão, o milho e a mandioca. A pecuária bovina é a representação mais marcante, contando ainda com a crescente participação de ovinos e caprinos. Uma nova perspectiva socioeconômica voltada para a agricultura está aberta no Vale do Capiá e dos demais vales do sertão e agreste alagoano, com a implantação e operação do Canal do Sertão prevista para 2010.

Área drenada:Aprx. 2.220Km²

O que corresponde em seu território a:8%

Cidades:Canapí, Inhapi, Ouro Branco e Mata Grande

Povoados em destaque:Entremontes, Capiá da Igrejinha, Piau

Nº de habitantes:23.292 (IBGE, 2007)

Principais atividades econômicas:Pecuária bovina, extração de madeiras, plantio de feijão, milho e mandioca

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1.2 VALE DO IPANEMA

Este vale abrange as porções Centro-Norte e Leste do sertão alagoano. A bacia hidro-gráfica que contém este vale no estado de Alagoas drena aproximadamente 1830 km², o que corresponde aproximadamente a 6,6% do seu território.

No vale principal do Ipanema estão local-izadas duas cidades importantes do estado de Alagoas: Santana do Ipanema, no seu trecho norte, e Batalha, mais ao sul. Nos vales secundários, estão localizadas as ci-dades de Poço das Trincheiras, Maravilha, Olivença e Dois Riachos. Estas cidades, se-gundo a contagem da população pelo IBGE em 2007, somavam 50.762 habitantes, com as cidades de Santana do Ipanema (25.465 hab.) e Batalha (11.347) compreendendo os maiores contingentes.

O rio Ipanema tem suas cabeceiras posi-cionadas na serra do Ororobá, ao norte da cidade pernambucana de Pesqueira e sua extensão aproximada é de 220 km, sendo 94 km em terras alagoanas. Este rio alcança o estado de Alagoas, na confluência do riacho Tapera, onde ocupa um pequeno trecho de fronteira até Guandu, povoado de Poço das Trincheiras. Ao banhar a cidade de Santana do Ipanema, o rio homônimo forma um bo-queirão, orientando-se por fraturas e falha-

mentos ao longo do seu leito. O rio Ipanema conflui no rio São Francisco, a 1,5 km sudeste do povoado Barra do Ipanema, município de Belo Monte.

A abrangência do rio Ipanema em terras alagoanas se dá a partir do alto para o médio curso. Neste setor, as condições de aridez são minimizadas pela presença do Maciço de Santana do Ipanema e pela calha do rio São Francisco, que lhe propicia maior umidade, o que condicionou a existência de solos mais argilosos e profundos, bastantes utilizados para o plantio da palma forrageira.

No médio vale predomina a pecuária ex-tensiva, em especial o rebanho bovino para corte e as imensas plantações de palma for-rageira, feijão e milho. A indústria se caracte-riza por casas de farinhas e pequenas fábri-cas de queijo, e ainda artesanato de couro.

O Baixo Vale do Ipanema é marcado por uma seqüência de rochas recentes represen-tadas pelas aluviões, bem visível na conflu-ência com o São Francisco. Esta parte final do vale abrange a região da Bacia Leiteira do Estado, assim denominada pela concentra-ção de fazendas de criação de gado voltadas para produção e industrialização do leite, so-bretudo nos municípios sob influência direta da cidade de Batalha, centrados na especia-lização da pecuária de leite, responsáveis pelo abastecimento de leite produzido em Alagoas. É importante salientar que também compõem a denominada Bacia Leiteira par-te dos municípios sob influência direta das cidades de Santana do Ipanema e Palmeira dos Índios. A agricultura tradicional sertane-ja está representada pelos cultivos do feijão, milho e mandioca; é outra atividade bastante praticada nesta parte do vale.

Área drenada:Aprx. 1.830Km²O que corresponde em seu território a:6,6%

Cidades:Santana do Ipanema, Batalha, Poço das Trin-cheiras, Maravilha, Olivença e Dois Riachos

Nº de habitantes:50.762 (IBGE, 2007)

Principais atividades econômicas:Pecuária bovina para corte e produção de leite, plantação de palma forrageira, feijão, milho e mandioca

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Pecuaria é uma das vocações econômicas do vale

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O pescador: grande protagonista das histórias do rio

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1.3 VALE DO tRAIPu

Este vale abrange o Extremo-Leste do ser-tão alagoano e Oeste do agreste alagoano. A bacia hidrográfica que contém este vale no estado de Alagoas drena aproximada-mente 2660 km², o que corresponde a 9,5% do seu território, representando assim a maior bacia hidrográfica contida no estado de Alagoas.

O rio Traipu nasce no extremo ocidental da serra do Gigante, a noroeste da cidade per-nambucana de Bom Conselho. Sua extensão é de aproximadamente 112 km. O rio Traipu deságua junto à cidade homônima, receben-do a invasão do rio São Francisco, formando alagados, hoje bastantes descaracterizados face à diminuição da vazão deste rio, com a construção das centrais elétricas ao longo do seu curso.

Em território alagoano, o rio Traipu é cortado pela BR-316, junto à fazenda São Francisco, próximo ao acesso a cidade de Minador do Negrão, a oeste da Serra do Gra-vatá, prolongando-se pela da Serra da Bre-cha. No seu trecho inicial, este rio marca o limite do agreste e sertão alagoanos. Vários quilômetros abaixo deste trecho, o rio Traipu penetra em plena caatinga, nas proximidades do povoado de Lagoa Grande (município de Traipu). Fato este que não nega em parte a autenticidade deste rio como eminentemente sertanejo.

Por se encontrar em parte do agreste alagoano, o Vale do Traipu apresenta certa quantidade de umidade, o que favorece a existência de acúmulo de águas nas suas aluviões, o que explica, desta forma, a con-solidação das suas margens pela pecuária e o cultivo da palma forrageira, que podem ser observadas nas várias fazendas distribuídas ao longo do seu vale.

A única cidade localizada no vale princi-pal, mais precisamente na confluência com o rio São Francisco, é a cidade que leva o seu nome. As demais cidades: Minador do Negrão, Cacimbinhas, Estrela de Alagoas Major Isidoro, Craíbas, Jaramataia e Girau do Ponciano estão localizadas nos vales se-cundários. O conjunto destas cidades, se-gundo a contagem da população pelo IBGE em 2007, somava 49.162 habitantes, sendo os maiores contingentes: Girau do Ponciano (10.511), Major Isidoro (9.349), Traipu (7.863) e Craíbas (7.075). O Vale do Traipu possui semelhança econômica com o Médio e Baixo Vale do Ipanema (cf 1.2 Vale do Ipanema), já que este abrange grande parte da Bacia Leiteira do Estado de Alagoas.

Área drenada:Aprx. 2.660Km²

O que corresponde em seu território a:9,5%

Cidades:Traipu, Minador do Negrão, Cacimbinhas, Es-trela de Alagoas, Major Isidoro, Craíbas, Jara-mataia e Girau do Ponciano

Nº de habitantes:49.162 (IBGE, 2007)

Principais atividades econômicas:Pecuária bovina para produção de leite e plan-tação de palma forrageira

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2 VALES DA VERtENtE AtLâNtICA

Entre os rios que compõem os Vales da Vertente Atlântica, aqui destacados, encon-tram-se: o Coruripe, o São Miguel, o Para-íba do Meio e o Mundaú. Estes rios foram

importantes na ocupação e formação do território alagoano, face às suas condições de navegabilidade de pequeno e médio ca-lado, que facilitou o escoamento do açúcar,

principal produto de exportação do Estado, o que permitiu surgirem ainda vários núcleos de povoamento ao longo dos principais vales (LIMA, 1992).

vale do Coruripe: sua feição litorânea

Fernando Rizzotto

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2.1 VALE DO CORuRIPE

o que corresponde 6,5% do seu território. No vale principal deste rio estão localiza-das as cidades de Coruripe e Limoeiro de Anadia, enquanto nos vales secundários, as cidades de Teotônio Vilela, Coité do Nóia, Taquarana, Igací, Belém e Palmeira dos Ín-dios. Estas cidades, segundo a contagem da população pelo IBGE em 2007, somavam 143.429 habitantes. Deste total, Palmeira dos Índios (50.052 hab.), Coruripe (42.680 hab.) e Teotônio Vilela (32.988), representavam os maiores contingentes populacionais.

O rio Coruripe nasce na serra da Man-dioca, conhecida também por Bonifácio, na base da escarpa ocidental das Encostas Orientais do Planalto da Borborema. Este rio atravessa uma parte do agreste alagoano, onde forma o açude de Igací, a Nordeste da cidade homônima. Próximo ao povoado de Alto dos Garrotes, nos limites do embasa-mento cristalino, o rio Coruripe é cortado pela rodovia federal BR-316, para adiante abrir nos tabuleiros seu amplo vale. Após banhar a cidade de Limoeiro de Anadia, onde é cortado pela rodovia estadual AL-220, pa-ra adiante se aprofundar ainda mais no seu vale, demandar em direção ao Atlântico. Nas proximidades das Usinas Reunidas Seresta, o rio Coruripe é cortado pela rodovia federal BR-101. Mais a jusante, o rio Coruripe drena terras da Usina Coruripe S. A. para logo em seguida banhar a cidade homônima; daí em diante, em direção ao mar, alarga-se numa várzea rasa e facilmente inundável. A cana-de-açúcar ocupa grande parte do baixo vale do Coruripe, e também a pecuária e uma regular policultura, representada por milho, feijão e mandioca.

O rio Coruripe já foi plenamente nave-gável até a cidade de Coruripe, nos tempos dos engenhos de açúcar, mas devido ao uso intenso das terras do vale para tal fim, ace-lerou o assoreamento do próprio talvegue, diminuindo assim a sua profundidade, o que o tornou não mais navegável.

O Alto Vale Coruripe apresenta relevo de topografia fortemente ondulado. A economia e a sociedade desta parte do vale apresen-

tam-se hierarquizadas, tendo a cidade de Palmeira dos Índios, seu principal centro urbano, exercendo liderança política e co-mercial sobre a maioria das localidades. A pecuária bovina leiteira e de corte compre-ende o setor mais forte da sua economia. A maior produção comercial de leite está nas grandes fazendas, em face de melhor qualidade dos rebanhos, enquanto a agri-cultura de subsistência está distribuída em milhares de pequenas propriedades de ca-racterísticas familiares. A industrialização do leite se caracteriza também pela hierar-quia, já que a maior parte da produção é destinada ao laticínio, maior de Alagoas, localizado na sede regional (Palmeira dos Índios), enquanto a menor é destinada às fabriquetas de queijo e manteiga, bem como às unidades médias, que produzem iogurte ou leite pasteurizado. As cidades da parte final do Alto Vale do Coruripe, Coité do Nóia, Taquarana e Limoeiro de Anadia estão sob influência direta da cidade de Arapiraca.

O Médio Vale do Coruripe está inserido nos Tabuleiros Costeiros, formados por rochas sedimentares de idade terciária da Bacia Sedimentar Alagoas, o que favorece a existência de recursos hídricos subsuper-ficiais.

O Baixo Vale compreende parte dos Ta-buleiros Costeiros e da Planície Costeira, formada por Sedimentos Quaternários de Praia e Aluvião. A presença de solo fértil e água abundante permitiram o desenvol-vimento de economia especializada, na área agrícola, com a produção do setor industrial sucro-alcooleiro, representado pela monocultura da cana-de-açúcar, com grande ocorrência na várzea e no tabuleiro. Na passagem do Médio para o Baixo Vale do Coruripe, a paisagem monótona dos ca-naviais e das pastagens é quebrada com a presença do litoral, onde se observa a exis-tência dos sítios urbanos de Coruripe e do Pontal de Coruripe, cobertos pela presença marcante dos coqueirais, além de mangue-zais e recifais na área sob influência do seu estuário.

Área drenada:Aprx. 1.780Km²

O que corresponde em seu território a:6,5%

Cidades:Coruripe, Limoeiro do Anadia, Teotônio Vilela, Coité do Nóia, Taquarana, Igací, Belém e Pal-meira dos Índios

Nº de habitantes:143.429 (IBGE, 2007)

Principais atividades econômicas:Cultura da Cana-de-açúcar, pecuária bovina de corte e procução de leite, plantação de milho, feijão e mandioca

Este vale abrange as porções Norte do agres-te alagoano, Extremo Sudoeste da mata ala-goana e Sul do litoral da mata alagoana. A bacia hidrográfica do Coruripe é a maior bacia contida integralmente em terras Ala-goanas, drena aproximadamente 1780 km²,

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2.2 VALE DO SãO MIGuEL

O Vale do São Miguel abrange a porção Oeste da mata alagoana e Sul do litoral da mata alagoana. A bacia hidrográfica em que se en-contra este vale no estado de Alagoas drena aproximadamente 950 km², o que representa 3,4% da superfície do seu território.

O rio São Miguel apresenta-se raso e entu-lhado das aluviões. As nascentes do rio São Miguel estão posicionadas nas Encostas Orientais do Planalto da Borborema, mais precisamente na serra Tanque D’Arca, onde fluem os rios: Mata Verde, Cachoeira e Boca da Mata, os quais se unem nas proximida-des de Maribondo, onde é conhecido como Jamoatá, e se estende até as proximidades da cidade de Anadia; a partir daí recebe o seu nome original. Ao banhar a cidade de São Miguel dos Campos, o rio começa a so-frer as influências da dinâmica das marés, formando antes meandros, para logo em se-guida desaguar na laguna do Roteiro, onde existe uma comunidade de pescadores que usufrui da sua grande riqueza de camarões e peixes. Na margem esquerda desta laguna

está posicionada a cidade homônima. Esta laguna abrange 8,00 km² (quarta maior do Estado), apresentando sua desembocadura quase obstruída por um cordão de recifes areníticos alongados e paralelos ao litoral, juntamente com depósitos arenosos de croas e praias. Nesta parte surgem depósitos are-nosos das coroas e ilhas aluviônicas, como a do Agenor. Próximo à desembocadura, pela margem esquerda, quando da maré baixa, a laguna do Roteiro recebe as águas do rio Niquim, que banha a cidade de Barra de São Miguel.

Do ponto de vista fisiográfico e humano, o Vale do São Miguel apresenta caracterís-ticas semelhantes ao Médio e Baixo Vale do Coruripe (cf 1.1 Vale do Coruripe), recebendo forte influência face às suas atividades rela-cionadas ao setor sucroalcooleiro. No vale principal deste rio estão localizadas as ci-dades de São Miguel dos Campos, Anadia e Tanque D´Arca, enquanto nos vales se-cundários estão posicionadas as cidades de Marimbondo e Boca da Mata. Às margens da laguna do Roteiro estão localizadas as cidades de Roteiro e Barra de São Miguel. A contagem da população em 2007 pelo IBGE, para estas cidades, exceto aquelas loca-lizadas às margens da laguna supracitada, somavam 84.240 habitantes, com São Miguel dos Campos (46.708 hab.) e Boca da Mata (16.495) compreendendo as cidades de maior contingente deste vale.

O município de São Miguel dos Campos, posicionados no início do Baixo Vale, é o mais importante, já que nele se encontram instaladas as usinas Caeté e Roçadinho e a fábrica CIMPOR – Cimentos do Brasil Ltda. Uma atividade que marcou história no Vale do São Miguel diz respeito ao cultivo de arroz, que ocorria nos famosos Campos de Arro-zal de Inhaúns, atual município de Anadia. Merece menção ainda a usina Triunfo S.A., localizada nas proximidades da cidade de Boca da Mata.

Área drenada:Aprx. 950Km²

O que corresponde em seu território a:3,4%

CidadesSão Miguel, Anadia, Tanque D´Arca, Marim-bondo e Boca da Mata. No estuário-lagunar: Roteiro e Barra de São Miguel

Nº de habitantes:84.240 (IBGE, 2007)

Principais atividades econômicas:Presença de usinas de cana-de-açúcar e uma fábrica de cimento. O cultivo de arroz também marcou história nos famosos campos de arrozal de Inhaúns, atual município de Anadia.

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Cana-de-açúcar: variedade predominante no vale

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2.3 VALE DO PARAíBA DO MEIO

No vale principal deste rio estão loca-lizadas as cidades de Atalaia, Capela, Ca-jueiro, Viçosa, Paulo Jacinto e Quebrangulo, enquanto nos vales secundários ou subvales estão localizadas as cidades de Chã Pre-ta, Mar Vermelho e Pindoba. Às margens da laguna Manguaba estão localizadas as cidades de Pilar e Marechal Deodoro. Se-gundo a contagem da população pelo IBGE em 2007, as cidades localizadas no vale do Paraíba do Meio, - exceto aquelas situadas no sistema estuarino-lagunar: Marechal Deodoro (37.578 hab.) e Pilar (30.077 hab.) -, totalizavam 91.023 habitantes, sendo Ata-laia (24.794 hab.) Viçosa (18.907 hab), e Ca-jueiro (16.024 hab.) os maiores contingentes populacionais.

O rio Paraíba do Meio nasce em Pernambu-co, no extremo oriental da serra do Gigante, ao norte de Bom Conselho, e se estende por 150 quilômetros, banhando toda a porção Centro-Oriental do estado de Alagoas no sentido NO-SE, quando lança suas águas na laguna Manguaba, a sudoeste da cidade do Pilar.

O Alto Vale do Paraíba drena parte do Pla-nalto da Borborema (Encostas Orientais). Este planalto apresenta formas convexas, bastante movimentadas, profundamente en-cravadas entre margens erodidas, exibindo rebentões, colinas e serras. Na bacia onde se encontra inserida esta parte do vale, es-tão localizados os dois pontos mais altos do estado: Guaribas (882 m) e Cavaleiro (849 m), localizados respectivamente nos municípios de Quebrangulo e Chã Preta.

Quando começa a deixar as Encostas Orientais do Planalto da Borborema, após banhar a cidade de Viçosa, o rio Paraíba do Meio se encrava num cânion, que se estende até a serra dos Dois Irmãos, e logo em seguida alcança a “depressão periférica”, na divisa dos municípios de Viçosa e Cajueiro. Próximo à Usina Capricho, na transição para a superfí-cie dos tabuleiros, o rio apresenta um grande número de riachos e algumas cachoeiras, co-mo: Dois Irmãos, Cachoeira Grande ou Baixa Funda, Serraria e Poço Redondo.

No fundo do Vale do Paraíba ocorrem al-gumas planícies aluviais, que se estendem ainda para alguns vales secundários. No trecho dos tabuleiros as planícies são mais amplas, o que permite o desenvolvimento da policultura e da cana-de-açúcar nas áre-as mais propícias. A pecuária, em forma de latifúndio, que começou a se desenvolver mais intensamente nas décadas de 1960 e 1970, encontra-se atualmente consolidada. A economia dos municípios é marcada pela presença da pecuária bovina de corte e pelas plantações de cana-de-açúcar.

O Médio Vale do Paraíba é marcado por apresentar elevada umidade, densa vegeta-ção e espessa cobertura de solo, que fazem dessa parte do vale uma das mais ricas em recursos hídricos subsuperficiais do estado de Alagoas. A monocultura canavieira con-tinua sendo a mais importante por conta da presença de algumas usinas, como a Capri-cho e a Uruba, bem como pela proximidade de outros municípios que possuem destilarias de álcool, localizados principalmente no Vale do Mundaú.

O Baixo Vale compreende a Planície Costei-ra, onde se situa a laguna Manguaba ou do Sul, que banha Marechal Deodoro e Pilar, e que compreende a maior do estado de Alagoas, com 31 km². A ligação entre essas localidades é realizada usando as vias naturais dos ca-nais como: Dentro, Velho e Novo, este último aberto pelos colonizadores para encurtar a distância de Alagoa do Sul (Marechal Deodo-ro). Estes canais cercam várias ilhas, como: Frades, Boi, Grande e a maior de todas, a de Santa Rita, posicionada na interface entre as lagunas Manguaba e Mundaú, já que elas se unem na parte das “barras”. No passado, antes da implantação da rodovia estadual AL-101 Sul, a laguna Manguaba servia de via de comunicação por meio de lanchas e canoas, atualmente usada para passeios tu-rísticos, concentrados nas áreas dos canais interlagunares. Apesar das inúmeras agres-sões sofridas ao longo de décadas, a laguna Manguaba ainda possui grande riqueza em peixes e alguns crustáceos e moluscos.

Área drenada:Aprx. 2.530Km²

O que corresponde em seu território a:9%

Cidades:Atalaia, Capela, Cajueiro, Viçosa, Paulo Jacinto,Quebrangulo, Chã Preta, Mar Vermelho, Pin-doba. No estuário-lagunar: Pilar e Marechal Deodoro

Nº de habitantes:91.023 (IBGE, 2007)

Principais atividades econômicas:Cultura da cana-de-açúcar e pecuária bovina de corte

O Vale do Paraíba do Meio abrange as por-ções Centro e Noroeste da mata alagoana e a porção Centro do litoral da mata alagoana. A bacia hidrográfica onde se encontra este vale é a segunda maior contida no estado de Alagoas, drenando aproximadamente 2530 km², o que corresponde a quase 9% do seu território.

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2.4 VALE DO MuNDAú

O Vale do Mundaú abrange as porções Cen-tro e Centro-Norte da mata alagoana e a poção Centro do litoral da mata alagoana. A bacia hidrográfica onde se encontra este vale no estado de Alagoas drena aproxi-madamente 2081 km², o que representa pouco mais de 7,5% da sua superfície, sendo a quarta maior bacia interiorana de Alagoas.

No vale principal deste rio estão localiza-das as cidades de Rio Largo, Murici, Bran-quinha e União dos Palmares. Nos vales secundários estão localizadas as cidades de Messias, Santana do Mundaú, São José da Laje e Ibateguara. Às margens da laguna Mundaú estão localizadas as cidades de Sa-tuba, Santa Luzia do Norte, Coqueiro Seco e Maceió. Estas cidades, segundo a contagem da população pelo IBGE em 2007, totaliza-vam 168.611 habitantes, sendo as mais rep-resentativas: Rio Largo (53.542 hab.), União dos Palmares (44.513 hab.) e Murici (20.839 hab.). No sistema estuarino-lagunar, estima-se que residam mais de 326.000 habitantes, com Maceió (parte ocidental e meridional), abrigando mais de 303.000 habitantes.

O rio Mundaú nasce em terras pernam-bucanas, na Serra do Gigante, próximo à fazenda Araçá, município de Caetés, a noro-este da cidade de Garanhuns. Parte de seu curso é perfeitamente temporário, sofrendo as influências da semi-aridez, que alcan-ça certos níveis do Planalto da Borborema. Após percorrer cerca de 200 km, alcança sua embocadura na laguna Mundaú, no municí-pio de Satuba.

O Vale do Mundaú tem sua importância marcada não só pela ferrovia que unia os estados de Alagoas e Pernambuco, mas tam-bém pelas várias usinas que aí se encontra-vam até a década passada, como: a Lajinha, a Campo Verde, a São Simeão, a Bititinga, às margens de um de seus afluentes, o Por-to Velho. Atualmente só restam, como mais importantes, a Usina Serra Grande, a Santa Clotilde e a Central Leão Utinga.

O vale do Mundaú apresenta, do ponto de vista fisiográfico e humano, características semelhantes ao Vale do Paraíba (cf 2.3 Vale do Paraíba do Meio).

O Alto Vale do Mundaú está encravado nas Encostas Orientais do Planalto da Borbore-ma, que se abre na forma de uma ferradura, em que os rios e os tributários desta parte do vale erodiram profundamente, evidencian-do assim a intensidade do seu trabalho. A partir da proximidade da cidade de Santana do Mundaú (antiga Mundaú-Mirim), na sua parte ocidental, já em território alagoano, o vale apresenta-se bastante amplo; o mesmo ocorre na parte oriental, pelo vale do Canho-to, chegando ao povoado de Rocha Cavalcan-te (antiga Barra do Canhoto), no município de União dos Palmares. Nesta parte do vale, as presenças de algumas cachoeiras revelam os desníveis pelo qual o rio passa, sendo a mais importante, a da Escada, posicionada na divisa com o estado de Pernambuco, pró-ximo à cidade pernambucana de Correntes, que recebia até pouco tempo os benefícios da energia elétrica, proporcionada pela pe-quena central elétrica ali instalada. No se-tor industrial, merece menção a Usina Serra Grande, posicionada na margem direita do rio Canhoto e a Destilaria Serrana, localizada na cabeceira do riacho Cana Brava.

Área drenada:Aprx. 2.081Km²

O que corresponde em seu território a:7,5%

Cidades:Rio Largo, Murici, Branquinha, União dos Pal-mares, Messias, Santana do Mundaú, São Joséda Laje, Ibateguara. No estuário-lagunar: Sa-tuba, Santa Luzia do Norte, Coqueiro Seco e Maceió

Nº de habitantes:168.611 (IBGE, 2007)

Principais atividades econômicas:Pecuária bovina, cultura da cana-de-açúcar com a presença de várias usinas, uma fábrica de tecido e outra de bebidas

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O Médio Vale se estende da cidade de União de Palmares até as proximidades do povoado de Utinga. Antigos engenhos e fazendas foram implantados, aproveitando as planuras aluviais desta parte do vale, e também fazendo uso das encostas mais onduladas para a criação de gado, prin-cipalmente o bovino. Nesta parte do vale encontrava-se a Companhia Alagoana de Fiação e Tecidos, surgida com a união das Companhias Progresso e Cachoeira Alago-ana, que por muito tempo utilizou a ener-gia fornecida pela pequena central elétrica instalada na cachoeira Gustavo Paiva. A única indústria de destaque nesta parte do vale é a fábrica da Schincariol, localizada no município de Murici.

O Baixo Vale, a exemplo do Vale do Paraí-ba (cf 2.3 Vale do Paraíba), está inserido nos Tabuleiros Costeiros e na Planície Costeira. Esta parte do vale tem início logo após o povoado de Utinga e se estende até a foz com a laguna Mundaú. Esta parte do vale é marcada pela grande várzea inundável do rio Mundaú e pela laguna homônima, que chega ao mar pelos canais da Assembleia - Pontal da Barra.

A laguna Mundaú é a segunda maior do estado de Alagoas, com 23 km², compre-endendo a mais importante do estado de Alagoas, já que banha a capital Maceió. As águas desta laguna são sempre salobras e nela é encontrado o célebre marisco suru-ru. Mesmo com as diversas agressões ao longo das últimas décadas, vários molus-cos e crustáceos ainda podem ser encon-trados como: a taioba, a unha-de-velho, o maçunim e a ostra. Os peixes são variados: carapebas, camurins, bagres e tainhas. A laguna, ainda hoje, serve como via de co-municação entre as cidades que banha, usando-se embarcações de pequeno porte, como canoas e lanchas.

As cidades que compõem esta parte do vale possuem forte relação com a capital Maceió, na qual mantêm certa continuida-de espacial, principalmente Messias, Rio Largo, Satuba, Santa Luzia do Norte e Co-queiro Seco.

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Silvana Quintella Cavalcanti Calheiros Sinval Autran Mendes Guimarães Júnior

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É Bacharel em Geografia (1994) e Especialista em Geografia: análise ambiental pela Universi-dade Federal de Alagoas (2003), onde é Profes-sor Auxiliar do Instituto de Geografia, Desenvol-vimento e Meio Ambiente da UFAL há mais de doze anos. Nesta mesma instituição, vice-coor-denador do Laboratório de Geoprocessamento Aplicado – LGA. Lecionou ainda, nos Cursos de Licenciatura em Geografia do Departamento de Geo-História - CISE-CESMAC-FEJAL, de 1996 a 2000; e no Programa Especial para Gradua-ção de Professores - PGP da UNEAL, em 2005 e 2006. Na área de pesquisa, atua no uso da tecnologia de geoprocessamento para análise ambiental por meio dos Sistemas Geográficos de Informação, auxiliados pela Cartografia Di-gital e o Sensoriamento Remoto. Nesta linha de pesquisa participou de vários projetos, entre os quais: Análise Ambiental de Municípios por Geoprocessamento (CNPQ-CAPES-PROPEP-UFAL); Macrozoneamento Costeiro do Estado de Alagoas (UFAL–IMA/GERCO-AL);, Gerencia-mento Integrado para Transferência e Destino Final dos Resíduos Sólidos de Maceió (GERS-RAD/UFAL–PMM/SLUM); Gerenciamento Inte-grado das Atividades Desenvolvidas em Terra na Bacia do São Francisco (ANA-GEF-PNUMA/OEA); Zoneamento Ecológico-Econômico da Zo-na Costeira do Estado de Alagoas - ZEEC-AL (LABMAR-IGDEMA), Plano de Manejo e Gestão da Área de Proteção Ambiental de Santa Rita e Reserva Ecológica do Saco da Pedra – CHESF-IMA-AL-IPPA, na qual integra o Comitê Gestor. Na área de extensão, tem trabalhado na Capa-citação de Técnicos Municipais em Geoproces-samento do Programa PROEXT/UFAL-MECCI-DADES em Alagoas.

QueM é

Formada em Geografia pela Universidade Fe-deral de Alagoas (1977), Mestre em Geografia pela UNESP, Rio Claro (1996), Doutora em Ge-ografia pela UFRJ (2000). Membro do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Professora Associada 2 e Diretora do Instituto de Geogra-fia, Desenvolvimento e Meio Ambiente da UFAL desde 2006, onde ministra aulas nos Cursos de Bacharelado e Licenciatura em Geografia. Foi coordenadora de Curso de Graduação em Geo-grafia. Coordenou a pós-graduação especializa-ção em Geografia: análise ambiental-IGDEMA. Professora do Mestrado de Desenvolvimento e Meio Ambiente – UFAL. Coordenadora do Labo-ratório de Geoprocessamento Aplicado – LGA. Na área de pesquisa, atua no uso da tecnologia de geoprocessamento para análise do espaço ge-ográfico por meio dos Sistemas Geográficos de Informação, auxiliados pela Cartografia Digital e o Sensoriamento Remoto. Participou de vários projetos, entre os quais: Análise Ambiental de Municípios por Geoprocessamento (CNPQ-CA-PES-PROPEP-UFAL); Macrozoneamento Cos-teiro do Estado de Alagoas (UFAL–IMA/GER-CO-AL); Gerenciamento Integrado para Trans-ferência e Destino Final dos Resíduos Sólidos de Maceió (GERSRAD/UFAL–PMM/SLUM); Ge-renciamento Integrado das Atividades Desen-volvidas em Terra na Bacia do São Francisco (ANA-GEF-PNUMA/OEA); Zoneamento Ecoló-gico-Econômico da Zona Costeira do Estado de Alagoas (LABMAR-IGDEMA), entre outros. Pa-ralelo a isso, é Coordenadora do Grupo de Estu-dos de Resíduos Sólidos e Recuperação de Áreas Degradadas – GERSRAD/UFAL. É Coordenadora do Projeto de Capacitação dos técnicos dos mu-nicípios alagoanos em Geoprocessamento.

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BIBLIOGRAFIA

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ALAGOAS, Governo do Estado de Alagoas, SEPLAN, Secretaria de Planejamento, CDCT, Coordenação de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, NMRH, Núcleo de Meteorologia e Recursos Hídricos. hidroclimal. (Org. Centeno, J. A., Kishi, R. T.) Edição Especial. Maceió: 1992, 39p.

ALAGOAS, Governo do Estado de Alagoas, SEPLAN, Secretaria de Planejamento, CDCT, Coordenação de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, NMRH, Núcleo de Meteorologia e Recursos Hídricos. Os Recursos hídricos do Estado de Alagoas (Org. Centeno, J. A., Kishi, R. T.) Maceió: Sergasa S. A., 1994. 41p.

ANDRADE, M. C de. usinas e destilarias das alagoas: uma contribuição ao estudo da produção do espaço. Maceió: EDUFAL, 1997. 134 p.

ATLAS ESCOLAR ALAGOAS: espaço geo-histórico e cultural/ [José Santino de Assis, coordenador]. João Pessoa, PB: Editora Grafset, 2007. 2 mapas, color., 12 cm x 17 cm. Bacias hidrográficas e Rede de Drenagem, escala 1: 2.000.0000.

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ENCICLOPÉDIA MUNICÍPIOS DE ALAGOAS. História, Economia e Geografia. [Leonardo Simões, coordenador geral] Maceió: Organi-zação Arnon de Mello/Instituto Arnon de Mello, 2006. 4200 p.

Estado de Alagoas, Mapa de Bacias Hidrográficas - 1979. 1 mapa, p&b, 69x90cm. Escala 1:400.000. ALAGOAS, Governo do Estado de Alagoas.

Estado de Alagoas, Mapa Político - 1993. 1 mapa, color, 69x90cm. Escala 1:400.000. ALAGOAS, Governo do Estado de Alagoas.

Estado de Alagoas, Mapa Rodoviário - 2000. 1 mapa, color, 49x73cm. Escala 1:500.000. BRASIL, República Federativa do Brasil; ALAGO-AS, Governo do Estado de Alagoas.

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CEPAL / Imprensa Oficial Graciliano Ramos :: Graciliano :: 45

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O Estado de Alagoas, não por acaso conhe-cido como o Paraíso das Águas, possui um imenso potencial hidrológico, com suas 53 bacias hidrográficas distribuídas em 16 regi-ões que cortam o Estado. 07 regiões hidrográ-ficas são vertentes do rio São Francisco e 09 são vertentes do Atlântico, tendo como o mais conhecido de todos eles o rio São Francis-co. Além dos rios que cortam o Estado, Ala-goas possui o Complexo Estuarino-Lagunar Mundaú-Manguaba, um dos mais importan-tes do país, que é formado por um sistema de corpos aquáticos naturais constituídos por duas lagoas, Mundaú e Manguaba, localiza-das no Litoral Médio do Estado de Alagoas, próximas à capital Maceió. A Lagoa Mundaú possui 27 km2 e representa o baixo curso da Bacia Hidrográfica do rio Mundaú, que tem seu alto curso na região do Agreste do Estado de Pernambuco, e percorre 30 municípios do Estado de Alagoas, com 08 municípios em re-giões ribeirinhas. Já a Lagoa Manguaba pos-sui 42 km2 constituindo a região estuarina dos rios Paraíba do Meio e Sumaúma. Ambos

FaBiana CarnaÚBa MedeirOS, Mestre

características hidroambientais do estado de alagoas::

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percorrem 26 municípios do Estado, com 14 municípios em regiões ribeirinhas. As Ba-cias dos rios Paraíba e Mundaú, as maiores do Estado, são bacias Federais, denomina-ção dada às bacias cujos rios banham mais de uma unidade da federação. Neste caso, as bacias têm suas nascentes na região Agreste do Estado de Pernambuco. São vertentes do Atlântico, onde as bacias que drenam para o oceano são na maioria rios perenes. Os rios que drenam para o rio São Francisco, com exceção da bacia hidrográfica do rio Piauí, são temporários.

O Estado de Alagoas possui sua estação chuvosa concentrada entre os meses de abril a julho, e esse regime de chuvas é responsá-vel pela chamada quadra chuvosa da região, contribuindo para o aumento da vazão dos rios, quando cheias assolam o Estado em al-guns anos considerados atípicos, ou algum evento de grande escala tipo El Nino ou La Nina influencia no clima do Estado. O evento de cheias considerado mais grave dos últi-mos anos foi registrado nos dias 31 de julho e 01 de agosto de 2000, quando foram obser-vados índices de precipitação próximos a 300 mm, principalmente na região Norte do Es-tado, destruindo pontes, causando mortes e deixando inúmeros desabrigados, tanto no estado de Alagoas quanto em Pernambuco.

Rios como o Ipanema, Mundaú e Paraíba são considerados críticos, devido aos seus muni-cípios ribeirinhos, que contribuem para de-sastres naturais em anos com muita chuva.

Apesar de o Estado de Alagoas ter uma área pequena, com território de 27.767,6 km2, apresenta diversidade em seu clima. Para efeitos de monitoramento das chuvas, o estado está subdividido em 06 regiões am-bientais, onde cada uma possui caracterís-ticas climáticas próprias. Litoral: compre-ende a parte da faixa costeira-litorânea, e apresenta a região do Estado com maiores índices pluviométricos anuais, com médias de 1.570mm; zona-da-mata: possui em sua área um relevo bastante movimentado dos níveis cristalinos que antecedem a Borbore-ma. Apresenta também altos índices de pre-cipitação anual, com média de 1.370,0mm, se comparada às demais regiões do Estado; Bai-xo São Francisco: apresenta várzeas inundá-veis do rio São Francisco, tendo como médias anuais precipitação de 1.270,0mm. Agreste: é chamada região de transição, tendo carac-terísticas de clima úmido e seco. Seus ín-dices de precipitação anual ficam próximos a 950,0mm; Sertão: região inserida no cha-mado polígono das secas, apresenta médias anuais de 917,0mm; Sertão do São Francis-co: região do Estado que apresenta os me-nores índices anuais de chuva, com médias de 560,0mm.

É um laboratório para pesquisas hidrome-teorológicas por suas variáveis climatológi-cas e peculiaridades.

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características hidroambientais do estado de alagoas

QueM é

Fabiana Carnaúba Medeiros é graduada em Agronomia pelo Centro de Ciências Agrárias - CECA, e mestre em meteorologia pelo Instituto de Ciências Atmosféricas - ICAT, ambos per-tencentes à Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Faz parte da equipe técnica do Centro Estadual de Meteorologia de Alagoas, denomi-nado Diretoria de Meteorologia da Secretaria de Estado do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos - SEMARH há 09 anos, de onde atu-almente é diretora. Faz parte também da Facul-dade Raimundo Marinho, onde é professora do curso de Administração, e a partir do próximo ano lecionará também no curso de Engenha-ria Ambiental.

Fabiana Carnaúba Medeiros

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Litoral

Zona da Mata

Média história anual de precipitação por região em milímetros (mm)

1.5701.370

950 917

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1.270

Agreste

Sertão

Sertão do São Francisco

Baixo São Francisco

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Em sua condição de elemento fundamental à existência humana, atualmente a água tem sido motivo de sérios debates científicos, que vão de questões regionais a interesses uni-versais, passando sua preservação a ter uma conotação política, gerando discussões que, algumas vezes, chegam a aventar situações catastróficas.

Ao lado de tudo que se escreve e se di-vulga sobre essa atual preocupação da hu-manidade, sabe-se que a temática da água, por sua simbologia universal, sempre esteve presente na arte literária de todas as épocas. Embora não ignore nem contradiga a litera-tura científica sobre o tema, a literatura-arte, especialmente a poesia, ao falar da água, ge-ralmente enfatiza seus aspectos simbólicos e mitológicos, o que proporciona ao poeta e ao leitor a incursão numa linguagem metafó-rica geralmente centrada num universo lexi-cal em que ressaltam palavras relacionadas direta ou indiretamente à água.

Que não se entenda essa proposta da lite-ratura como alienação diante de problemas tão sérios. A literatura apenas cumpre o seu papel: discutir os problemas da humanida-de de forma indireta, por meio de seus po-emas, de suas narrativas, de suas persona-gens e das ações e atitudes delas; por meio da provocação estética centrada na palavra poética.

Marcada geograficamente pela presença da água, em forma de rios, do oceano que margeia toda a sua extensão a leste, e de duas lagunas (conhecidas e nomeadas erro-neamente como lagoas) – que lhe renderam seu nome –, Alagoas tem nesse elemento da natureza uma inegável motivação para a sua arte, e não apenas para a literatura. A água faz parte do imaginário coletivo alagoano.

Maria HelOiSa MelO de MOraeS, dra.

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As águas e Vidas SecasA partir dessa evidência, buscamos exem-

plificar tal relação entre a água, seu simbo-lismo e a arte literária por meio de estudos críticos sobre autores(as) alagoanos(as) nos quais se identifica tal proposição. Evidente-mente, reiteramos, é apenas uma pequena amostra da presença do elemento água como motivação para a criação literária alagoana, já que são inúmeras as ocorrências dessa te-mática na literatura desta terra que recebe a alcunha de “Paraíso as águas”.

O artigo de Jerzuí Tomaz apresenta ques-tões teóricas sobre o simbolismo da água, num diálogo com a psicanálise. Os artigos de Edilma Acioli Bomfim e Enaura Quixabeira analisam a presença desse elemento mítico em dois poetas alagoanos: Carlos Moliterno e Solange Chalita, respectivamente. Em am-bos os estudos fica evidente a força do sim-bolismo aquático na poesia alagoana, clara-mente perceptível nos poetas escolhidos.

Algo, porém, emerge dessa proposta de se tematizar a presença da água na literatu-ra alagoana, algo que é, de alguma maneira, paradoxal. Referimo-nos a uma obra-prima da literatura alagoana, que no ano de 2008 completou 70 anos de sua publicação – e, diga-se de passagem, sem as devidas come-morações em Alagoas. Trata-se do romance VIDAS SECAS, do mestre Graciliano Ramos. Paradoxal porque, no “Paraíso da águas”, VI-DAS SECAS representa o oposto dessa ima-gem. É a narrativa cuja personagem principal é a realidade da seca no nordeste e os seus efeitos sobre o ser humano. Com a publica-ção de VIDAS SECAS, o sofrimento do povo do sertão nordestino tornou-se conhecido no

resto do Brasil – que até o ano de sua publi-cação, 1938, não tinha uma idéia exata do que representava a seca nessa parte do país – e no mundo inteiro.

É desse paradoxo que estamos falando. É de Alagoas, terra das águas, que parte o li-belo de um escritor que, através de sua arte, mostra ao mundo a degradação física e mo-ral, o sofrimento do homem maltratado pela falta de água. Há exatos 70 anos, a questão da água, ou melhor, da sua falta, já se mos-trava em toda a sua complexidade na obra de Graciliano. Coube à literatura levantar es-sa bandeira numa obra de ficção que, dessa forma, cumpre o seu papel já anteriormente citado: apontar questões relevantes no con-texto sócio-histórico de seu tempo, e que, pelo poder da palavra artística, universali-za-se e transcende esse tempo. A resolução de tais questões, no entanto, escapa ao âm-bito literário.

Em VIDAS SECAS a falta de água tinha causas essencialmente climáticas, não ha-via a colaboração do homem para essa si-tuação. Esperamos que, no futuro, a poesia ou a prosa de ficção não precisem mais fa-lar dos sofrimentos da humanidade em ra-zão da falta desse elemento condicionante da sua sobrevivência, em qualquer parte do nosso planeta, e não apenas no sertão nor-destino. Esperamos ainda que essa carên-cia, caso venha a acontecer, não seja causa-da pelo homem, autor e personagem de sua própria história.

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As águas e Vidas Secas

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Trabalho por Aldemir Martins. Adaptação por Fernando Rizzotto

Maria Heloisa Melo de Moraes

QueM é

Nascida em Palmeira dos Índios (AL), aos 5 anos foi morar em Santana do Ipanema. Em Maceió continuou seus estudos até chegar à UFAL, onde fez o curso de Letras.

Foi professora estadual até 1991, quando ingressa, por concurso, no quadro de docen-tes da Universidade Federal de Alagoas. Em 1993 conclui o Mestrado em Literatura Brasi-leira na UFAL, com dissertação sobre o humor na literatura infanto-juvenil. Em 2000 conclui o Doutorado em Literatura Brasileira, também na UFAL, com a tese Cor, som e sentido a me-táfora na poesia de Djavan, posteriormente pu-blicada pela Editora HDV – Curitiba (2001). Publicou ainda o livro Poesia Alagoana hoje: ensaios (org.), pela EDUFAL, em 2007, além de artigos em diversos periódicos. Suas princi-pais áreas de pesquisa são a literatura infanto-juvenil brasileira e os estudos teóricos sobre a poesia, com prioridade para os estudos sobre a poesia alagoana.

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Jerzuí tomaz

QueM é

Jerzuí Tomaz é graduada em psicologia, psi-canalista do Centro de Estudos Freudianos do Recife e professora adjunta da UFAL. Possui doutorado em Letras e Lingüística e integra o quadro de professores do Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística-UFAL. Seus interesses de pesquisa abrangem as interfaces entre psicanálise e literatura, psicanálise e ar-te, psicanálise e educação e psicanálise e saú-de pública.

O simbolismo universal da água

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O simbolismo universal da águaFalar sobre a água remete a símbolos uni-versais que enredam o sujeito desde os pri-mórdios de sua trajetória existencial. Sabe-se que este elemento é fonte de vida – afinal, nos originamos na água –, veículo de purifi-cação e núcleo de regenerescência/renasci-mento em inúmeras culturas.

De acordo com Chevalier e Gheerbrant, na tradição judaico-cristã a água simboliza a origem da criação, uma vez que o espírito de Deus, no Gênesis, paira sobre as águas. Reveste-se, assim, de um traço de fertilida-de, pureza, sabedoria, graça e virtude.

Se no Antigo Testamento ela é vista como sinal de bênção, o Novo Testamento virá ce-lebrar a magnificência da água, imprimindo um sentido de eternidade. Denota-se que a água viva, a água da vida apresenta-se co-

Jerzuí TOMaz, dra.

mo um signo cosmogônico, já que cura, pu-rifica, rejuvenesce (a imersão na água pode assumir uma função regeneradora). E é fa-to que a noção de águas primordiais, de mar das origens, encontra-se em quase todas as civilizações.

O psicanalista Sigmund Freud chama atenção para o fato de que o símbolo pode adquirir sentidos ambíguos e muitas vezes contraditórios. Assim, a água inscreve-se em planos simbólicos irremediavelmente opos-tos – fonte de vida/morte, meio de criação/destruição –, o que sinaliza para uma diver-sidade de dimensões e matizes desta rica simbologia.

A dualidade simbólica da água ilustra-se, por exemplo, por meio da demarcação da água descendente, provinda do céu, da chuva e portadora de um caráter agressivo, uma vez que penetra a terra; e a água nascen-te, advinda das entranhas do planeta, origem das fontes e insígnia lunar. Tem-se a água es-téril e a água fecundante; a água das super-fícies que se relaciona com a navegação, a mobilidade e o exílio e a água das profunde-zas, submarina, núcleo das pulsões secretas e desconhecidas, o que aponta para o con-ceito de inconsciente, o capítulo censurado da história de cada um de nós.

O elemento primordial em destaque exi-be, deste modo, feições marcadamente femi-ninas e masculinas. A água doce, lacustre, plasma da terra, representa uma “valoriza-ção feminina, sensual e maternal”. Os rios e o fluir de suas águas – metáfora de nascimen-to, transformação e renascimento – simboli-zam, por sua vez, a existência do ser humano e a dinâmica incessante da vida.

A água espumante dos oceanos e dos ma-res, por seu turno, oferece uma clara imagem da vida e da morte. Suas correntes mortais ou vivificadoras junto ao fluxo ininterrupto das marés possuem a capacidade de dar ou subtrair a vida, demarcando uma situação de ambivalência, com registros de incerteza, dúvida, indecisão, Bem ou Mal.

Por fim, o simbolismo da água oferece uma relação particular com a Mulher, represen-tação maior do princípio feminino. A persis-tência da água sensível, matriz e mãe, no imaginário social induz a pensar na necessi-dade humana de acolhimento, de aconchego, situando-se como contraponto a um mundo onde imperam a técnica e a aridez (ausência de água!) dos laços afetivos.

A este respeito, a sabedoria popular nos dá uma grande lição na existência do hábi-to de receber o andarilho que se desloca na aridez do Nordeste brasileiro com um copo de água, como para sinalizar que a grande Mãe que acolhe e sustenta a vida o recebe com a benção da água fresca, capaz de suge-rir a paz do repouso e a ordem de uma exis-tência renovada.

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Bestiário aquático: a poesia mítica de Solange ChalitaA escritora Solange Chalita, após um interregno de algumas déca-das, publicou recentemente dois novos livros de poesia – O anjo encarnado e Canto mínimo. É o canto da poetisa e da mulher ma-dura em pleno esplendor de sua feminilidade e de sua poética. Nes-te texto, mergulharemos no universo poemático de Canto mínimo, do qual destacamos o poema “Bestiário Aquático”, composto por seis estrofes, intentando fazer uma leitura da estrutura simbólica e imagética em que predominam as imagens de água.

Quem deflagra as ações principais – une as ondas sonoras às on-das do mar e domina as águas salgadas – é a figura emblemática do divino Orfeu, filho de Apolo e da musa Calíope. Guerreiro da Trácia, mais conhecido pelo poder de sua música que pelos feitos herói-cos, sintetiza na palavra canto, simbolicamente, música e poesia.

A água – elemento vital que neste século XXI ameaça tornar-se o objeto da sobrevivência humana (e, em conseqüência, da cobiça do homem), porque destinada cada vez mais à escassez –, sempre ocupou lugar de destaque no imaginário dos artistas, sejam poetas, pintores, escultores ou músicos. Para Becker (1999), como massa indiferenciada, simboliza a plenitude de todas as possibilidades ou o início primordial de todo ser, a prima materia. Na literatura podemos encontrar, no devaneio poético, imagens das águas sal-gadas, doces, cristalinas, turvas, amenas ou abissais, fonte de vi-da ou elemento de morte.

Tomemos, como exemplo, a primeira estrofe:

OrfeuCom sua melodiosaCítara uniu as ondas sonorasÀs ondas do marE dominou as águas salgadas e sua faunaComo um franciscano (p.38)

As ondas devem ser vistas em estreita relação com a água, mas água em movimento, podendo assumir um caráter ameaçador de forças indomáveis, sobretudo quando associada ao sal, outro ele-mento vital de preservação e de neutralização de forças maléficas. Assim, é mister que sejam dominadas (elas e todos os seres que

nelas habitam) pelo poder da música/poesia vindo da cítara, sím-bolo cósmico, de integração entre o céu (ar que propaga o som) e a terra (elemento sólido do qual fomos feitos) para que pudessem ouvir o canto mavioso. O mito assegura que essa dominação rea-liza-se pela sedução, pois os animais, as plantas e até mesmo os minerais rendem-se ao fascínio de Orfeu como mais tarde capitu-laram diante do discurso amoroso de Francisco de Assis.

Solange Chalita transfigura essa informação nesta segunda es-trofe:

Baleias golfinhos peixes-boisDe todos os oceanosAté os linguados enterrados na areiaOuviram-lheA beleza do canto (p.38).

Essa seqüência de animais remete ao infra-humano instintivo, segundo Jung, citado por Cirlot, (1984, p.83), pois “o animal repre-senta a psique humana bem como o lado psíquico inconsciente”.

As duas estrofes seguintes harmonizam elementos díspares co-mo cavalos-marinhos e anêmonas, esta última com duplo simbo-lismo. Na Antigüidade, símbolo da doença e da morte, anuncia a efemeridade dos seres; na linguagem simbólica cristã, a anêmona significa o sangue derramado dos inocentes, prenunciando a mor-te de Orfeu. Os elementos morfológico-lingüísticos utilizados para representar essa harmonização foram os verbos dançar e afinar, ambos semanticamente ligados ao ritmo e à música, que conseguem neutralizar os efeitos tóxicos das caravelas, animais marinhos que segregam substâncias que queimam como fogo.

Em cortejo cavalos-marinhosDançaramCercados de anêmonas

Os ventos afinaram a escuta das caravelas azuisNeutralizando as células urticantesNos mares tropicais (p.38)

enaura QuixaBeira rOSa e Silva, dra.

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Bestiário aquático: a poesia mítica de Solange Chalita enaura Quixabeira rosa e Silva

QueM é

Nascida em Maceió, filha de Possidônio e Áurea Quixabeira. Conclui o Mestrado em Literatura Brasileira na Universidade Federal de Alagoas, defendendo a dissertação em 1994, ano em que ascende, por concurso público, ao corpo docente da UFAL. Em 1995, publica A alego-ria da ruína: uma análise de Crônica da casa assassinada, agraciado com o Prêmio Tércio Wanderley, concedido pela Academia Alagoana de Letras. Doutora-se, com a tese “A condição humana na obra de Lúcio Cardoso: entre Eros e Tânatos, a alegoria barroca brasileira”, diante de banca composta paritariamente de doutores brasileiros e franceses, em 1999.

É membro da Academia Alagoana de Le-tras, da Academia Maceioense de Letras, da Academia de Letras e Artes do Nordeste, da SOBRAMES e do Grupo Literário Alagoano. Em 2001, no Centro Cultural da Academia Brasi-leira de Letras, recebeu o Diploma do Méri-to Cultural da União Brasileira de Escritores. Possui as comendas Graciliano Ramos, Nise da Silveira, o grau Mérito Ouro Ministro Silvé-rio Fernandes de Araújo Jorge, a Láurea Arnon de Mello e a medalha do Mérito Cultural Leda Collor de Mello.

Livros publicados: Prazer mortal: lições de literatura brasileira (1997). La condition hu-maine dans l’oeuvre de Lucio Cardoso: entre Eros et Thanatos, l’allégorie baroque brésilien-ne. France (2001). Sonata de outono para cor-das doloridas e Lúcio Cardoso: paixão e morte na literatura brasileira. (2004). Angústia: 70 anos depois. (2006). Em co-autoria. Hora e vez de José Geraldo W. Marques: a travessia mágico-poética. (2000). Dicionário Mulheres de Alagoas – ontem e hoje. (2007).

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Um elemento ambíguo e dissonante surge na quinta estrofe: a ima-gem das medusas (as famosas águas-vivas que habitam nossos ma-res), cujos corpos são formados em 95 a 99% de água, imunes ao canto poético. A ambigüidade remete à Medusa, personificação mitológica da morte e da imperfeição, e a dissonância configura-se na rejeição à descoberta do segredo da representação – via maior da poesia/arte.

Só as medusas essasSurdas ao encantamentoContinuaram ejetando espinhosParalisantesNa busca da luz solar (p.39)

A última estrofe retorna a Orfeu destroçado pela fúria das Bacan-tes, reduzido a uma cabeça carregada pelas águas do rio Ebro. Seu instrumento musical salva-se com ele e garante a eternidade da arte poética no espaço visível dos mortais.

A cabeça do deus despedaçadoSalvou-se na correnteza do rioSeu canto propagou-se além do tempoNo invisível espaço dos imortais (p.39)

Podemos afirmar com Octavio Paz que o poema não é apenas mais uma forma literária, mas o lugar da imortalidade onde a poesia e o homem se encontram. Canto mínimo ratifica exemplarmente tal en-contro.

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Várias obras artísticas produzidas por alagoanos, em diferentes épo-cas, estão marcadas pelo elemento mítico, primordial da água. O pró-prio nome com que a terra foi batizada – ALAGOAS -, em uma referên-cia às grandes lagoas aqui existentes, já faz com que essa referência por si só justifique o poético cognome de “Paraíso das águas”.

Entre as várias produções artísticas de alagoanos que se servi-ram desse elemento tão caro aos nossos olhos, olfato, tato e paladar a construção lírica do livro A Ilha, do poeta alagoano Carlos Moliter-no, é uma grande metáfora que reitera a presença do imaginário in-sular, fruto dessa herança geográfica que marcou a terra e o homem das Alagoas.

Diante do poema de Moliterno cabe uma pergunta: o que é mesmo uma ilha? Denotativamente temos uma única resposta: é uma porção de terra cercada de água por todos os lados. Porém, a sua simbolo-gia e significado milenares ultrapassam o sentido primeiro e encami-nham o sujeito lírico para outras conotações. Um desses significados é o que coloca a água como elemento universal, princípio feminino, fonte do ser e gerador da vida. Em sua Ilha, Moliterno, liricamente, remete sua criação à imagem daquela descrita no texto bíblico, em especial ao capítulo que trata da origem do universo. Na Gênese da criação a terra é descrita como “vã e vazia” e as trevas cobrindo “a face do abismo”; essa terra estéril não era habitada e o espírito de Deus “pairava sobre as águas”.

Assim, tal qual o Criador, Moliterno também se faz demiurgo, crian-do com palavras a Ilha metafórica que se faz verbo e habita entre nós: “Invento a ilha numa tarde clara,/ Numa tarde de sol, de luz, de sal”.

Partindo desse imaginário poético, o eu-lírico (re)constrói, ritu-alisticamente, o itinerário da busca existencial humana. Chegar à ilha, para o náufrago, é retornar ao útero materno, buscando o acon-chego da terra mãe; é o éden recuperado, coberto de relvas, rosas e frutos maduros. É, enfim, o mergulhar no líquido amniótico da água em que foi gerado.

Velejo pelo mar e chego à Ilha,no meu barco de sonho e de desejo,carrego na face o céu distante,o céu que trago em símbolos nos olhos.

edilMa aCiOli BOMFiM, dra.

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::: Entre águas insulares Moliterno se fez ilha

Ao pisar o seu chão de relva e rosas,onde frutos maduros se opulentam,sob as mornas auroras insulares,sinto um mundo que é meu, nas minhas mãos.

Podemos até representar essa imagem mítica da Ilha como um vasto oceano – símbolo do inconsciente – no qual emerge a pequena ilha: o consciente. Assim se justifica o fato de que, em-bora sendo o livro constituído de 59 sonetos, ele possui um só grande título A Ilha, ficando todos os poemas apenas marcados numericamente. Nessa escolha poética está metaforizada toda a proposta da obra: mergulho no inconsciente numa tentativa de projetar suas imagens ocultas. A busca da identidade, ou seja, o processo de diferenciação psicológica que tem como finalidade o desenvolvimento da personalidade individual se dá no momen-to em que essas forças antagônicas, inconsciente e ego, terra e água se unem em uma só totalidade, rompendo as dicotomias que impedem a realização do homem como um todo. Isso fez com que o eu-poético buscasse essa ilha de “sonho e desejo” e acreditasse que aqui “seu rosto não se afoga(ria)”.

Como jornada para um processo de construção individual, a criação lírica da ilha moliterniana se faz em três momentos: primeiro, sua gênesis, onde o sopro do poeta/criador constrói o seu universo imaginário: “invento a ilha azul no mapa do meu rosto”.

A construção e a chegada à Ilha são marcadas pelo encanto do homem que vê nesse encontro a possibilidade de construir a sua alteridade. A Ilha é a imagem do cosmo completa e per-feita, pois que representa um valor sacral concentrado. A no-ção se aproxima, sob esse aspecto, dos símbolos de templo e santuário, lugar do sagrado, da paz, do encontro com a divin-dade. É a terra prometida, tal qual a terra do povo hebreu es-perada por anos:

Me alimento do sal que brota dos seus vales,dos frutos que do solo insular vão nascendo,como as flores também, maduros e seivosos.

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edilma Acioli Bomfim

QueM é

Edilma Acioli de Melo Bomfim é natural de Mu-rici-AL, onde nasceu em 13 de maio de 1952. É Doutora em Letras pela Universidade Federal de Alagoas onde durante muitos anos lecionou a disciplina Literatura Alagoana. Preocupada com a escassez de fortuna crítica sobre a obra de alagoanos/as, centra seus estudos e publica-ções em livros, capítulos de livros, revistas e jor-nais nessas obras, procurando suprir, de alguma maneira, a grande lacuna da crítica literária em Alagoas. Publicou entre outros: A escritura do desejo: estudo sobre a prosa-poética de Arrie-te Vilela; Razão mutilada: ficção e loucura em Breno Accioly; A poesia em Alagoas e O conto em Alagoas, em co- autoria com Carlito Lima; Dicionário Mulheres de Alagoas: ontem e hoje, em co-autoria com Enaura Quixabeira; “A poe-sia em Alagoas: um percurso lírico e histórico”. In: Poesia alagoana hoje, coletânea organizada por Maria Heloisa Melo de Moraes.

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O segundo momento se dá com o confronto entre o náufrago e a força mítica da água que compõe a ilha. Essa luta do indivíduo consigo e com as circunstâncias adversas ao seu processo de individuação constitui o caráter épico desse poema. Esse momento é marcado pelo receio do ego em enfrentar elementos desconhecidos que cobram do sujeito um reco-nhecimento e uma aceitação que a sua consciência ainda não identifica como elemento da sua própria psique. A água antes pródiga e saciado-ra de sua necessidades é agora a Mãe-Urubórica, dominadora, que não permite a ruptura do filho, indo ao encontro de sua identidade. A luta se configura e o herói descreve sua imaginada ilha em outro tom:

Quando à ilha cheguei, há dois mil anos,Tendo um céu desabado no meu rosto,e um navio partido entre os meus dedos,a flor vermelha abria as suas pétalas.

A flor morreu. Rochedos desabaram.E eu, náufrago que sou, de alma aturdida,carrego as suas cinzas nos meus olhos.

Jung afirma que não é fácil a jornada da individuação. Projetar, con-frontar e introjetar os elementos vários que compõem o universo in-consciente da nossa psique é uma tarefa muito árdua. O eu-lírico pro-jetou nessa ilha imaginária todos os desejos, sonhos e possibilidades e a dificuldade está em moldar todos esses elementos numa totalidade. Daí tantos confrontos a serem enfrentados, como as tempestades do mar bravio, peixes devoradores, a solidão na ilha e o sol causticante. Por isso, agora, “a Ilha é um fogo que me queima o rosto/ e relva incen-deia nos caminhos”.

Finalmente, após todo esse enfrentamento, o terceiro e último mo-mento são a fase do apaziguamento, quando, vencidas as forças anta-gônicas e diluída a luta entre o inconsciente e o consciente numa união de opostos complementares, ilha e náufrago se confundem em um de-sejo mútuo de serem ao mesmo tempo terra e água, sol e lua, flora e fauna, peixe e homem, como nos afirma o eu-poético no último soneto do livro:

Os peixes no meu corpo permanecem,E as escamas me cobrem sobre as águasE em escamas de peixe me converto.

Assim, podemos perceber que o eu-lírico encontra na água a possi-bilidade de se ver como o autóctone identificado com a água milenar, herança arquetípica latente, fruto do espaço físico-geográfico – Alagoas –, terra de águas, das lagoas, dos rios, do mar e da(s) ilha(s), elementos da identidade cultural, simbólica e psíquica de Moliterno. Graças a esse imaginário arquetípico presente na cultura caeté a Ilha/água mo-literniana se fez verbo e habita ontem, hoje e sempre na criação artís-tica desse poeta que se imortalizou pelo mergulho profundo nas águas da terra que lhe serviu e serve de berço eterno.

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