Gaspar Frutuoso Saudades Da Terra

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    livro primeirodassaudades da terra

    doutor gaspar frutuoso

    1522-1591

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    Livro Primeiro das Saudades da Terra

    copyright Capt. E. G. da Costa Duarte

    SeaLegacy PublishingA division of E. G. Duarte & Associates

    New Westminster, BC

    Canada V3M 5G7

    www.sealegacy.com

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    Electronic data and word processing: Leticia Isibido

    Cover design: E. G. da Costa Duarte

    National Library of Canada Cataloguing in Publication Data

    Frutuoso, Doutor Gaspar, 2005

    Livro Primeiro das Saudades da Terra / Doutor Gaspar Frutuoso

    ISBN 0-9737324-1-5

    SeaLegacy Publishing

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    O MANUSCRITO ORIGINALDAS

    SAUDADES DA TERRAO manuscrito original das Saudades da Terra um cdice de 571folhas, numeradas no retro e reunidas em cadernos de diferentesmarcas e dimenses, com um formato que no seu conjunto mede0,35m X 0,23m.

    Est dividido em seis livros, cujos ttulos, exceptuando o do Livro

    VI, foram escritos pela mo do autor, como se deduz da Forma edo talho da letra, fcilmente identificvel nos registos paroquiaisda Matriz da Ribeira Grande, onde o Dr. Gaspar Frutuosodesempenhou o cargo de vigrio desde 1565 at Agosto de 1591,ms e ano em que faleceu.

    Por um velho hbito vm os biblifilos chamando autgrafo a estemanuscrito; porm, manda a verdade que se diga que muitos dosrespectivos captulos, embora da sua autoria, no so do punhodo Dr. Frutuoso, e em alguns, nem mesmo aquela lhe pode seratribuda.

    E, pois, um conjunto bastante heterogneo de caligrafias e decadernos com variados tipos de letra e papel de diversas marcas eespessuras, se bem que a escrita de Frutuoso aparea em todos oslivros e chegue a preencher totalmente o livro V.

    A nica nota de uniformidade, que neste cdice se observa, a querespeita numerao dos cadernos e dos flios; embora bastanteesmaecida e, por vezes, quase ilegvel, pelo que foi avivada nalgunsstios, desde a primeira ltima folha toda do mesmo punho ecoeva da confeco da obra, no me repugnando acreditar quefosse esse punho o do autor.

    Neste caso, temos de convir que no passa de acrescentamentos

    ou substituies feitas pelo cronista, ou, quando muito, com a suaconivncia, o que primeira vista poder julgar-se uma fraude ouinterpolao grosseira, cometida por outrem.

    O Livro l, que contm 53 folhas, versa sobre as ilhas Canrias e deCabo Verde, incluindo igualmente captulos em que se relatam o

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    descobrimento das Antilhas e as questes suscitadas pela linha dedemarcao do tratado de Tordesilhas, a empresa de Magalhes,as viagens de Drake e os seus actos de pirataria, e, a propsito

    da origem do Arquiplago dos Aores, se discute a existncia daAtlntida de Plato.

    O Livro II, com 79 folhas, trata das ilhas da Madeira e do PortoSanto, de cuja descoberta, capites donatrios, prelados etc., dnotcias bastante pormenorizadas. Para a sua elaborao, serviu-seFrutuoso, sobretudo, do trabalho que, a seu pedido, fez o cnego daS do Funchal, Jernimo Dias Leite, o qual, indito e de paradeirodesconhecido, s em 1947 foi dado estampa pelo Dr. Joo FrancoMachado, mediante um apgrafo existente na Academia dasCincias de Lisboa.

    O Livro III, bastante mais pequeno conta 38 folhas apenas refere-se ilha de Santa Maria, a primeira dos Aores por ordem da suaenumerao sueste-noroeste, e est redigido nos moldes do anterior,se bem que de dimenses muito mais reduzidas.

    O Livro IV, que respeita ilha de S. Miguel, terra da naturalidadedo cronista e onde residiu uma grande parte da sua vida, , porisso mesmo, o mais volumoso e rico de informaes de variadanatureza, abrangendo o longo perodo que vai desde a colonizaono sculo XV at data do seu falecimento, que, ocorreu a 24 deAgosto de 1591. So 251 folhas, em grande parte da sua prpriamo, com abundante matria genealgico, pelo que se considerafonte de inestimvel apreo para os estudos desta especialidade na

    ilha de S. Miguel.

    O Livro V ou Histria dos Dois Amigos, pequena novela de cavalaria,abrangendo 41 folhas, foi introduzida na obra, possivelmente como fim de amenizar a severidade do assunto histrico que constituio seu fulcro; um documento assaz comprovativo da acentuadatendncia do autor pelas belas-letras.

    Finalmente, o Livro VI, com 106 folhas, condensa as notcias queFrutuoso pde colher sobre as restantes ilhas dos Aores, todasde indiscutvel interesse, mormente a aclamao de D. Antnio,Prior do Crato, em Angra e os trgicos episdios da luta pelaindependncia que se lhe seguiram, a qual, como se sabe, teve nesteArquiplago o seu ltimo reduto.

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    foto do manuscrito original dassaudades da terra

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    LIVRO PRIMEIRODASSAUDADES DA TERRA

    COMPOSTAS PELO DOCTOR GASPAR FRUCTUOSO, EM QUE SE

    TRATA COMO A FAMA VEIO TER COM A VERDADE, QUE ESTAVASOLITRIA EM UMA SERRA DA ILHA DE SO MIGUEL: ONDE LHEA VERDADE CONTA O DESCOBRIMENTO DAS ILHAS CANRIAS, EDO CABO VERDE, E NDIAS DE CASTELA; E D RAZES PROVVEISCONTRA DUAS OPINIES, QUE H DAS ILHAS DOS AORES; E PORFIM PEM ALGUMAS CONJECTURAS DOS PRIMEIROS E ANTIGOS

    DESCOBRIDORES DELAS.

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    CAPTULO PRIMEIRODE UNS QUEIXUMES QUE FAZ A VERDADE, ESTANDO SOLITRIA

    EM UMA SERRA DA ILHA DE S. MIGUEL

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    Engeitada nasci no Mundo, triste, sem ventura, e logo de pequenacomecei ser desestimada por esta tacha. Seis horas, me dizemalguns, e outros uma s, que tive riqueza e alegria, quando meu Pai

    era inocente, rico e ledo. Mas, como por engano de um envejoso,me deitou minha ama fora do bero em que me embalava, ficandoele pobre e triste, fiquei eu tambm com esta herana dele. Quecausa fosse, ento, daquele meu desterro, era eu ainda pequena, noa soube. Mas depois vim a saber uma, que foi a desobedincia dohomem, a qual j eternalmente estava previsa na mente divina, que omnisciente, a quem tudo est presente, sem por isso o obrigar,forar ou necessitar a pecar, se ele no quisera, pois que, pondo-o

    na mo de seu conselho, lhe deu livre arbtrio pra escolher o quequisesse.

    Ouvi que morava meu Pai em altos e sumptuosos paos, senhor demuitas riquezas, pagens e donzelas, sendo de cousas altas e baixasbem servido, sem temor nem sobressalto de perder alguma delas;perdeu-me a mim s e, perdendo-me, perdeu todas.

    De altos montes e de alto lugar ca em baixos vales, de alegriasgrandes vim a dar em dores tristes e de segura vida comecei vermorte incerta; vivendo, pois, pera ver tristezas tais e mgoas

    tantas, no muito que s com minhas saudades de tanto bemperdido acabe ou comece a viver sem acabar, morrendo sempre porque esteja de confino em roda viva a minha morte e em roda mortalesteja voltando sempre mortal vida.

    Depois que desemparados foram os campos verdes, depois deperdidas as claras fontes, ricos rios, deixados os jardins de docesfrutos e fermosos, acabando de perder aquela quieta, segura edescansada vida, sem calmas nem frios, sem ventos nem chuvas, semtrabalhos nem dores, sem nenhuns perigos e infortnios; vestidos depeles peregrinando pelo vale de lgrimas nossos ayos, comearam-setantas envejas e contendas antre os filhos, comearam-se mais quecivis batalhas e mortes cruas; tanto que, contendendo antre si, meperderam quase todos e fiquei, como digo, engeitada, desterrada e

    aborrecida no mundo e sem viver. Mas que fora de mim, se istono fora, pois perdera mil coroas nesta safra bem lavradas! Noh mal, enfim, que pera algum bem no venha. Esta consolao de

    meus trabalhos e perdas s me fica, mas nem com isso tm repousoos meus cuidados, que, como desci doutra terra mui alta a estabaixa, logo fiquei estranhada e estrangeira em terra alheia.

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    No entendo a linguagem das gentes, nem me entendem. Ouotantos vasconos disfraados, vejo disfraces novos vasconados;sendo eu to clara, fico obscura e triste. Nos desertos trajos

    brancos e a boca aberta trago, mas, se, a povoado vou, doutra corme visto; cadeado mourisco que por dentro fecha os beios nelalevo, com silncio dissimulando falas e obras mentirosas, que, se asreprendesse muito mais do que agora sou perseguida fora.

    Quando meu Pai de ouro de altos quilates se Vestia, depois deperder o servio das verdes esmeraldas, fermosos rubis, subidostopzios, claros diamaens, balais, hiacintos, safiras, jagonas,

    ametstes, crislitas, perlas ricas, aljfar e outra pedraria fina,resplandescia e soava no Mundo a fama do meu nome esclarecida.

    Mas, depois que foi roubado dos vasos de ouro acendrado e puro,servindo-se j com branca prata, rica e limpa, veio outra manada depiratas roubadores e ficou com vasos de baixo cobre e metal servido.Foram suas riquezas sonhos sonhados de alegria, que lhe estavaparecendo que tinha mui segura, mas ficou com dobradas penas eagonias tristes, quando, depois de acordado, em vo apertava a mo

    vazia; cuidando o pobrezinho que achava um gro tesouro, quandoesperto olhou, viu e achou ser tudo nada e vento. Nem o metal ecobre ainda pde logr r por muitos anos o cansado velho, porquena partilha do ouro e prata, que roubada lhe era, houve antre ossalteadores sobre isso tanta guerra, que, pra mais crua lha fazer,fundiram dele artilharia to cruel e fera, que lhe foi necessriovestir seus fracos e cansados ombros de pesado e duro ferro.

    Em mancebo, sem armas, andava em toda a parte sem perigo, e emvelho, carregado de ames e malha, quase de todos ofendido, andandoem guerra campal com todos e consigo mesmo, nem ainda vestido deferro se pde bem livrar de seus contrrios. Assi como ia crescendoa malcia dos homens que nascendo iam, assi ia minguando a exce-lncia do metal que dantes possuam. Assi parece que de mal em

    pior vai, at que, por fim, meu Pai acabe o tempo e, j de muitovelho, se torne em terra fria, sem moverse.

    No chorarei eu, ento, sua morte, mas a vida sua choro, que maisdigna de chorar a vida de muitas mortes cheia que uma s morte,

    fim de tantas vidas tristes. Choro tambm a mim e a pouca venturaminha, pois, por mais que me fez Deus fermos criatura antre asgentes, quase de ningum sou vista, nem ouvida, nem querida.

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    Revolta desta sorte, que digo, a casa de meu Pai, quieta e leda,pra maior mgoa minha nunca conheci me que me criasse, sendoassim mal criada de mes alheias e estranhas amas, como quem

    no tinha em mim parte pra me bem criar e amar; e, como cousadoutro diferente sangue, casta e vida, ca em tanto avorrecimentos mulheres com meus queixosos choros at que tambm, por suaparte, dos homens vim ser avorrecida.

    J no havia pessoa que com direitos olhos me olhasse; nenhumme via, nem ouvia, que no me perseguisse e, se algum me tinhaafeio, no ma mostrava; quase de todos desestimada, de muitos

    nem vista nem querida, vivi eu alguns anos antre as gentes, ondevi tantas cousas de tristezas to crescidas, que me faziam sentirmenos as muito maiores que eu passava; e, vendo assi as alheiascompassar as minhas, aprendi tambm a ser sempre sem ventura,que, se alguma agora me viesse, j me no faria leda. Desejava euacabar, por ver se acabariam comigo minhas mgoas, mas no lhevendo cabo, me vinham elas mais a pares.

    Por a morte fugir tanto de mim, me veio j em algum temposuspeita que poderia ela ser fim de meus desgostos, e que por issofugiria, por me privar de um gosto to crescido e desejado. Masdepois que por longos anos me vejo morta cada hora, sem algumameus choros s esgotarem, nem faltarem, vim a cair na conta queuma s morte, que de mim fugia, no era poderosa pra matartantas que cada dia viva me enterravam, que sempre ouvi dizer queos muitos faziam perder aos poucos esforo e valentia; e, pois, eupadecia tantas mortes, mal poderia uma s, que desejava, matar amultido das muitas que eu sofria.Outro erro, como este, me lembra ouvir, sendo minina, que a roda daFortuna, costumada nunca estar em um ser, lugar e ponto, sempreandava; cria-o eu, porque era ainda moa de pouca experincia e

    tenra idade; mas do Tempp, meu Pai, tenho aprendido ser tudoabuso e fingimento daqueles que tiveram ou tm poucos cuidados,pois os primeiros que eu tive, de tantos anos a esta parte, nunca

    mais me deixaram a mim, nem a si mudaram; e, se por ventura temalguma mudana a sua roda, no me digam que pra bens, poiseu a no sinto seno pra mores males, que dos bens pra eles, oudeles pra outros peores, bem me vejo eu andar voltando nela; do

    mal pra algum bem na casa da Verdade avorrecida no me tirarningum da fantesia; a no tem; e se, porventura, por esta via a

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    fortuna dalgum instrumento usa, poder dizer ser quadrado, queassente e afirme, e no redondo, que rode, pois meus males nuncaforam pra bens, mas sempre fizeram firme e imbil assento no que

    sempre foram e dantes eram, donde vejo eu que s herdei grande efirme estado. Porque os prncipes, herdeiros de imprios e reinos egrandes senhorios, no os herdam mais que como emprestados, poisos tornam a deixar pra outros que neles lhe so logo sucessores,

    mas meus acrescentados males e trabalhos esto to firmes, semfazer de mim mudana pra outra parte, que eles com tanta nsiase podem chamar estado. E bem sei eu que depois de minha morte,se me vier, ningum os sustentar em tanta perpetuidade de firmeza

    e gr ndeza, como eu fao. Assi que em mim so os desgostos,como modronhos que nunca saem da rvore, uns maduros, outrosverdes, uns cados, outros nascidos. Parece que j esta doenahereditria e justa, ou injusta herana de meus primeiros avoengos

    mal logr dos, que, em mim, sem avante passar, h de fazer seufim, termo e remate. E j com isto me contentaria, se prestoacabasse eu, ou acabassem eles, mas parece que levam o seu passeioto vagaroso, como se afirma levar o nono Cu, a que chamamCristalino, o qual dizem dar sua volta natural em quarenta e novemil anos. Poder ter tudo, e ter este Cu, perodo de acabar seucurso em determinado tempo, mas as mgoas e saudades, que emmim vejo, no tm outro mais limitado fim que no ter termo. Seeu alguma consolao tenho, no a ter; e, se alguma vida vivo, no viver antre as gentes.

    J em outro tempo vivi antre os homens mui honrada, mas, agora,sem honra e sem vida, sou pra todos quase morta, mais porqueeles assi o quiseram que porque eu lho merea, nem me lembra quenunca lho merecesse; antes o desejo que eu tenho de viver em suacompanhia, e o que eles houveram de ter da minha, nunca lho eudesmereci, nem nunca mo eles mereceram.

    Agora quero antes morar antre estas sombrias e frondosas rvorese repousar sobre estas verdes e frescas ervas e encostar-me aestes duros e lisos penedos, das contnuas correntes to lavados,

    que viver onde a vida me era morte de cada dia e cada hora; que,quem tem razo, mortes suas pode chamar s sem razes alheias.E por as gentes se governarem j por opinio e pompa, deixandoa Verdade aparte, quis eu fugir dantre elas e vir-me morar nestesolitrio ermo, onde no h seno cousas governadas na obedinciado Criador que as criou todas. Aqui espero passar alguns dias com

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    menos mortes, que no tratarei neste lugar, ao menos com quem masd contnuas; e as que comigo trouxe dos povoados cuidarei que,pelo descostume, se me iro gastando e consumindo; e, assi, poderei

    ter confiana nalgum tempo de algum descanso neste ermo, o que nopovoado jamais pude esperar, por mais que o desejasse, pois nuncal esperei bem, seno como a m paga tarde, mal e nunca.

    Mas, coitada de mim, que estou falando e no vejo que at nestelugar no estou segura, que, pois no h cousa que por tempo seno descubra, como, se souber que eu aqui estou e moro, me ho defazer os homens guerra a ferro e fogo.

    Nos breves dias que aqui estever, sem que de mim se saiba parte,quero escrever o que nesta terra passei e vi, antes que pra outra

    mude o meu desterro. Sabero, ao menos, as gentes a quemperseguem, querendo, ou acertando, depois algum triste ler o queeu aqui deixar escrito, que eu no hei de escrever seno tristezas,

    pois no mundo j no h contentamentos, e os que h, ou houve,so e foram breves e mui pequenos, por grandesque eles paream eparecessem, depois que se vem a descobrir a mistura e liga do malencoberto que consigo trazem e com que aguados foram. E ainda quecompridas e perfeitas fossem as alegrias, como logo foram salteadascom ciladas de tristezas, ainda que mui pequenas quantas vimos,vem cada um experimen-tar em si, ou em seu vizinho, que nuncanesta vida triste os grandesbens se igualam com pequenos males,porque, enfim, mais magoa uma pequena mgoa do que deleita umgosto gr nde. E se por algum caso, neste mundo me dessem algumbem e gosto de tristeza isento e forro, ainda esse no escaparia doseu desgosto, quando se acabasse e conhecesse, pois todos confessamter o bem este mal, que nunca se conhece, seno depois que se nopode cobrar e j perdido. Pra os contentes se v o prazer, ea mim tristeza me contente, que ela o manjar deste mundo e osprazeres no so dele, e, se os h, ou tm algumas das tachas queditas tenho, ou so de todo contrafeitos, e com feitos de enforcadopois se acabam. Nem cuide ningum que foram neste choroso valedados os olhos pra ver prazeres, que no h nele; seu ofcio no

    seno chorar mgoas tristes, porque pra rir j no h alegrias;houve-as elas na Terra (como dizem) s por espao de seis horas,ou de uma s, antes que o Criador dela a maldissesse, mas tudose depois tornou trabalho e tristeza obscura, quando com espada defogo deitaram os homens do lugar alegre a este triste, onde, comoem priso e desterro, foram todos postos.

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    Suspendidos e destemperados esto os instrumentos da alegria.Sem eles, quem cantar cantar alegre em terra alheia? Se no forinsensvel, que preso engorda e folga, e, sem lhe lembrar soltura,

    pela doce ptria e casa no suspira?Com mostras de prazeres enramados, engana o mundo a muitos;com heras em seus vos e podres troncos abraadas e empinadasapascenta os olhos ss, mas faminto fica o gosto, e, se ele algumfruto gosta, verde e azedo e desgostoso, donde nasce o tristepranto meu e as vs querelas. Pra ver mgoas, ou chor-las, nosforam os olhos dados, pois j todos os contentamentos se acabaram;

    mas porque se acham alguns to duros que nunca choram, supriunisto a Natureza, como prvida e sbia mestra, criando em seulugar rvores que plos tais chorassem, como vemos claramenteumas chorar resina e goma, e outras blsamo, e licores outras; atas ervinhas do campo no esto sem sua parte de choro, quando aspisam, e, sem serem pisadas, lhe veremos seus olhos de lgrimasarrasados, se as formos ver antes que o Sol as veja.

    Em umas ilhas do mar Oceano setentrional, em cima da Alemanha,nasce o fino electro, que as gentes daquela regio chamam glesso,pela qual causa os que andavam com Germnico Csar por aquelaspartes, a uma ilha daquelas, onde mais abundantemente se criava,puseram nome Glessria, havendo-se chamado primeiro Austrria. o electro (que os latinos chamam succino e os vulgares mbarou ambre) uma goma estilada de certas rvores, mui semelhantes apinhos, e, por isso, esfregado antre as mos cheira como pinho e,caindo na terra, se congela e endurece, e, dali arrebatado com acrescente fria das ondas do mar, que, ensorbebecidas como vento,entram em os vizinhos matos, levado com a volta da mar costada terra firme de Alemanha, como de Ado e Eva, com o vento esoberba enchente de seu pecado, foi levado o choro de Eva, da costade Ado formada, costa de toda a Terra e vale de lgrimas sobretodos os desterrados filhos de Eva, de cuja costa procederam, e,com tal naufrgio, deram costa.

    A este electro chamaram os rabes mdicos charabe, e os espanhismbar amarelo, por diferena do mbar gris cheiroso, porque todoo riso humano tem cor amarela de morte e cheira a choro. Acha-senatural em algumas veias da terra e faz-se tambm por arte, como ochoro nos natural, ainda que alguns algumas vezes artificiosamentechoram. E nascido como electro ou goma, de que se fazem contas,

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    a que chamam alambres, que se trazem ao pescoo, em que trazemosdependuradas diante do peito as tristezas, rezando os humanos porelas como por lgrimas daquelas rvores, que, esfregadas, atraem

    a si as palhas, apegando-se e grudando-se em choro (sendo bemconsiderada e rumiada) toda a vaidade humana, pois caindo, comoelectro, em terra ou no p que o vento leva, pela morte, em quetudo nesta triste vida fenece, se endurece e esquece, e fica pesada efria terra na obscura sepultura de terra. E, se alguns por desastresou naufrgios se sepultam nas guas, nelas vo enfim parar (comorios no mar salgado), donde traziam sua origem os choros, prantose lgrimas que em toda a vida choraram.

    De lgrimas de uma erva fazem tambm muitos contas. E haverantre ns contas deste nome no parece sem mistrio e causa grnde, pois no temos com outras maior conta, nem antre os mortaisneste vale por outras mais se reza. Tudo, enfim, antre ns lgrimasso, ou suas companheiras. E, se alguns, nalgum tempo, cuidaramque riam em seus prazeres, certo que depois vieram a entender ecrer que foi chorado quanto riram. E isto me faz, a mim, desejarde escrever chorando quanto vejo, porque, quantos risos vi, vitornados choros.Nisto me satisfaz muito o filsofo Herclito, que, cada vez quesaa de sua casa, pelas ruas e lugares pblicos, sem cessar iachorando e derramando lgrimas, dizendo que fazia isto movido decompaixo de quanto via, porque toda esta vida lhe parecia misriaestranha e tudo quanto os homens passam cousa pra muito haverd e sentimento dela, assi plos males e trabalhos que sofrem, comoplos males e pecados que fazem. E dizia que chorava as maldadese misrias humanas, vendo que todos os mortais, que habitam sobrea face da Terra, vo desviados, e muito longe, da justia e daverdade, servindo quase todos a avareza e vanglria com loucura etorpeza to perdida, que, por escusar a pena e dor que de conhecere ver isto sentia, no queria estar onde visse hamens, contentando-se com ter o necessrio estreitamente, vivendo o mais do temposolitrio, comendo ervas e naturais e singelos e no contrafeitos

    mantimentos. Quando era moo dizia que nenhuma cousa sabiae, sendo homem de antiga idade, se louvava que j sabia tudo,afirmando que de ningum aprendera, seno que s a soidade econtemplao lhe fora mestra. Era tal a imaginao deste filsofo,que abastava faz-lo andar sempre chorando, como a de Demcrito,em contrrio, o fazia andar alegre e rindo. E ainda que a Sneca

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    e a Juvenal e a outros este Demcrito mais contente, o Herclito,a mim, me quadra, por me ser em tudo mais conforme. Pois tambmo Filsofo Supremo, que ensinou a filosofia crist e fonte dela,

    nunca neste mundo o viram rir, mas, com grandesentimento, choroualgumas vezes; e, pois, ao autor da verdade, nunca ningum o viurir, mas chorar o viram, no muito, se eu seguindo a tam bome certo mestre, me incline mais a chorar na vida toda. Chorando,entramos neste mundo triste, e, com tristezas e no com alegrias,

    vivemos nele, e no h ningum que dele, sem seu choro prprio oudoutrem, por ele se aparte.

    So os homens nesta vida como flores que, graciosas e enfeitadascom cores diversas, se alevantam e vm logo murchas e secas cairquebrantadas em terra seca, e, em breve tempo, no tm ser, nemnome, nem fruto, nem lugar onde o achar cuidavam e pretendiam. Evimos muitos maus alevantados, como os empinados cedros do monteLbano, e, tornando, logo, a atentar por eles, j no eram nem se

    viam, porque perece a figura deste mundo, e o dia, que um falece,se acaba tudo o que o mundo tem pra ele e, naquele dia, se pe fimderradeiro a toda concupiscncia e desejo da condio humana.

    E por no conhecermos neste corpo grosseiro a brevidade destascousas da Terra, cuja figura perece o dia que a vida neste mundo seacaba, no sabemos, nem acabamos de entender, que esta vida breveat que, de improviso, sua brevidade antre as mos fenece, pelo queno ser bem tachar-me querer eu escrever, saudosa, cousas tristes,pois que, por fim, no h no mundo seno esperanas vs dalgumbem desejado ou saudades certas dalgum prazer perdido. E nenhumadestas se pode bem contar sem tristeza gr nde, principalmente asdestas duas ilhas, de quem mais particularmente contar pretendo,pois esto to cheias de esperanas e desejos que esperam, semchegarem, e atormentados de agonias mortais com as saudades quetm dos bens que j tiveram, sem tornarem.

    Bem sei que nenguem pode chorar bem o que muito sente, nem bempoder sentir de todo o que no chora nem magoa, e, por isso, no

    quisera eu chorar isto que escrever desejo, porque, com contar menosdo que sinto, faro grandesenrrazo a meu mal minhas palavras, e osque lerem meu choro me tero por menos triste, porque no poderosentir tanto o que no choraram nem passaram. Contento-me comter corao pra sentir os males alheios e os meus prprios, aindaque me falte a lngua pra saber contar tanto nmero deles, pois at

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    das montanhas, onde ando, pra ver-vos; antretanto, irmos meusto desejados, viverei sem vs e morrerei comigo. Se ainda tendesvida, Deus vos faa melhor afortunados do que at aqui fostes,

    que eu no tenho outra ventura mais ditosa que andar de monte emmonte, de vale em vale antre serras e antre gados desconhecida,homiziada, abscondida, avorrecida e sem prazer; parece que, quandoeu nasci, j isto pra mim nascera.

    Se no foram as muitas cousas tristes que eu com estes meuschorosos olhos vi no mundo, muito tempo h que desejara menos vida.Mas vi, antre meus pesares, tantos outros de outras muitas donas

    e donzelas tristes e to desastrados casos de muitos e esforadoscavaleiros, aventureiros sem ventura, que no estranho tanto osmeus em vendo tantos, e no me pesa de viver, pois s pra tristezasvivo e vou vivendo.

    Esses dias, que da vida me ficam, que no sei quantos podero ser,ainda que cuido que no podem j ser muitos, quero gast-los emescrever minhas saudades e mguas neste pequeno livro e deix-lo

    nesta obscura cova, onde aqui perto moro, pra os que nele e nestasfaias virem algumas cousas por mim escritas possam conhecer queo fez e escreveu Dederva, que j, em algum tempo, morou na covaobscura e triste, onde o deixa. E por que as tristezas me noacabem de todo, se s me acharem, porei muitos e muitas diante,em que elas a todo seu poder se entregaram quase todas. Indo,ao menos, muitos por esta triste estrada com suas mgoas, aindaque as alheias me no faam sentir as minhas menos, por-me-o,sequer, corao pra as melhor sofrer, que eu no desejo a vida praalegrias, pois bem sei que ningum d o que no tem, e que as nopode dar o mundo a outrem, pois pra si lhe faltam. E, se desejoviver, pra ser mais triste, e, j agora, os contentamentos meseriam mores mgoas, ainda que, se pra isto me aproveitas-sem,os no enjeitaria.

    Ameaam-nos, cada momento, tantas mortes, enquanto temos toperto e to duvidosa a certa que esperamos, que no sei se melhor

    passar uma s morrendo, se viver e temer vivendo tantas; e noduvido eu que escolho mal em querer a vida com temor de muitas,que melhor era escolher uma s pra no temer mais outra; mas,porque nunca se me levedou bem cousa que eu muito desejasse nestavida e me vem muitas vezes o mal que eu no queria, a no querodesejar por que me venha e ainda temo que me no vir ela, sabendo

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    que, por isto, a no desejo. Ora venha ou no, venha quando ecomo quiser, que, j agora, as minhas longas mgoas no podem sermaiores.

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    CAPTULO SEGUNDODE UM SONHO QUE SONHOU A VERDADE

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    Nesta solitria serra, onde, por acerto ou desastre, me trouxeum dia o meu cuidado (a qual eu escolhi por couto de meu longohomezio, pela soidade que nela achei conforme que comigo vinha),

    vivo eu de poucos dias a esta parte, porque, logo, quando fugidos povoados, no foi este o primeiro lugar pera onde vim, queurn grandee espesso bosque, que, aqui, corn ela est apegado, foia primeira pousada onde me agasalhei os primeiros anos de minhafugida triste. Ali vivia eu acompanhada de minhas dores e dasmuitas rvores, que nele havia, e no quero dizer que estva tambmcercada de minhas soidades ss, porque tambm o bosque tinha assuas.

    Avorrecida eu, assi, das gentes e de mim mesma, costumava muitasvezes correr gr parte do deleitoso bosque, que era bem lugar degosto, mas no pera mim, que, de longos tempos, o tinha ja perdido.E com eu saber de mim que nenhuma alegre cousa me podia fazercontente e leda pera enganar este meu importune pensamento, faziapor no estar ociosa antre aquele mato espesso e andava os maisdos dias, que o Cu pera isso aparelhava, ora de penedo em penedo,ora de sombra em sombra, pera que, vendo a pintura alegre daquelasverdes e espessas rvores, pudesse mudar a negra cor da tristeza,que em mim havia, que era uma cruel enfermidade que naqueletempo me no deixava e ainda agora me no deixa.

    E acertou, assi, que urn dm, estando mais agastada de mim quenunca, indo corn maior desassossego a buscar o costumado remdio(se remdio se pode chamar o que o mal no cura), corri todo obosque sem achar cousa que nele me contentasse, havendo-me ele jdado por vezes algum alvio. E parece que me dizia o corao queme fosse a serra, onde poderia achar o lugar que eu buscava. Nistoacabei de crer quo perto da morte as minhas dores me traziam,pois j desejava, como em agonia dela, mudar camas.

    E, assi, corn esta doena (como no tinha muitas alfaias quemudar, seno s este pobre vestido, que sobre mim trazia), sem porcontradio, entrei muito dentro por esta grande serra, onde agora

    ando, por dar mais lugar a meus pensamentos tristes, pela condio,que j deles tinha conhecida, que se no queriam seno ss, semcompanhia; por isso me meti pelas soidades desta serra, que somuitas, ainda que muitos passes achava to travados de ramos ede arvoredos, que no podia passar adiante, seno por rodeios muicompridos.

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    Assi andei, por grande espao, cansando o corpo por ver se podiaalgum pouco descansar o esprito. E, depois de haver dado a meuspensamentos bem de comer de muitas cousas passadas, que eram

    tudo lembranas cheias de alegria pera maior pena, passando de umasombra em outra sombra, fui ter a uma, onde (no sei se acordada,se dormindo) me vi antre uns lemos, que artificiosamente pareciamprantados, pela boa ordem com que estavam postos, e, a seus ps,ao longo de uma grande ribeira, estavam muitos limoeiros, que, cornseus sobejos espinhos, quase tolhiam o passeio por antre eles.

    Ali havia tambm muitas ervas de aromticos e confortveis

    cheiros, tanto que, com eles, podia o estmago humano por longoespao escusar qualquer necessrio mantimento. E pareceu-melugar conveniente s a meu pesar e cuidado. Assentei-me, ento,sobre aquelas cheirosas ervas e debaixo daquela desejada sombra, emeus olhos comecaram dar f da grande ordem que os lemos tinhame das ruas que mostravam. Pareceu-me que nos troncos tinhamabertas umas mossas maneira de janelas, por que no faltasse

    nada pera as ruas que antre si faziam e, correndo com os olhos um eum, vi que em todos, ou nos mais deles, es-tavam cortadas aquelasmossas, que amarelas ao longe pareciam. Deu-me o coraco umavolta grande, cuidando o que poderia ser aquilo, que em um ermo,que parecia nunca ser trilhado de p humano, no podia haver cousaque, como aquela, parecesse de arte humana.

    Depois que assosseguei, lancei os olhos ao p de um lemo, de queeu mais perto estava; e, atentando bem pelas mossas que tinha,ento senti tal sobressalto, que perdi a fala e quase ceguei de todo,porque acabei de ver que aquelas cortaduras do casco dos lemos,que dantes me pareceram janelas ou frestas das ruas que eles faziam,eram letras cortadas na casca deles, que, como vi as do primeiro,logo pude conhecer as dos outros ser do mesmo jeito e sorte.

    Naquele instante, no posso eu negar que no tive temor de poderhaver ali algum encantamento grande. Mas o lugar era em si toalegre e bem assombrado, que me no deixou levar este medo mais

    avante, porque logo me assegurei que isto que eu cuidara no podiaser, no por ver eu tantas razes pera isso, mas porque o consentiuassi, naquela hora, o meu juizo.

    Vendo eu, como vi, que eram letras, desejei e procurei saber o quediziam; e quis minha ventura, ou minha tristeza (a que aquele bem

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    estava, parece, ali guardado), que fossem as letras romanas, peraque eu no deixasse de as poder ler, como, pela ventura, as nolera, se outras foram.

    Comecei, ento, a ler no primeiro lemo, que era comeo de rua, mo esquerda, e vi, logo nas primeiras regras, que se podiambem ler, ainda que eram letras de muito tempo escritas; antes quenada entendesse, li primeiro muitas regras at o p do lemo. Ecomeando ler no outro, que junto daquele estava, pareceram-meas razes de ambos atadas, o que me fez confiar que alguma cousaviria entender adiante, como, de feito, foi assi, porque, chegando

    ao terceiro lemo, comecei de ir entendendo e sentindo muito doque lia, at que, por fim, cai na conta de tudo, depois que tudotive lido.

    E a passos que ia entendendo, iam meus olhos chorando a pinturaque me representava meus pesares, porque tudo aquilo eram mgoasque aqui, nesta ilha, e em outras terras se passaram em outro tempopassado, escritas em prosa e versos naqueles altos lemos, que, porserem cantares tristes e lamentaces chorosas, acordei, por me sercousa to conforme, notar tudo o que alcanar pude pera minhacompanhia. Arreceando que, mudando o lugar, me no lembrassem,tresladei, ento, na memria alguns versos e cousas que aqui. antreesta histria, neste papel escrevo, ficando-me por notar muitascousas que no mais alto dos lemos estavam escritas, apartadas emoutra ordem, que a minha curta vista no compreendia, as quais eubem ler no alcanava; e antes quis que me ficasse este pouco queficar sem nada.

    Tudo eram elegias e choros de cavaleiros, que nesta terra em outrotempo andaram, muitos dos quais eu alcancei ver vivos com estesmeus olhos tristes.

    Adiante contarei quem eram todos, pois um deles principal destaminha histria dos lemos, que eu contar quero.

    Depois de notado dos lemos tudo o que alcanar pude e que arneu propsito mais quadrava, renovou-se-me tanto o choro coma lembrana do tempo quando aquilo naqueles lemos se escrevera,que, de desfeita em lgrimas ou de transportada em pensamentos,ou dantes dormia, ou ento adormeci ali, no sei quando, nemcomo, nem senti que dormira seno depois de acordada, porque,

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    acordando, no vi lemo nenhum dos que dantes vira, seno faias ecedros e outras rvores de menos conta que eles; e os lemos comque eu dantes a tevera j ali os no contava. Algum espao estive,

    assi, confusa sem que me entendesse, mas depois vim a entender esuspeitar ser ou sonho ou encantamento o que dantes vira; porqueno havia lemos nesta terra, o que eu de princpio no atentei,que se bem advertira nisso, logo crera o que era. Adiante contareieu a razo disto tudo, como o contei a uma donzela que neste ermocomigo veio ter um dia.

    Agora no direi mais seno que o que dantes vi julguei por sonho,

    por serem cousas de verdade; que, mal pecado, j ela no anda nomundo seno sonhada.

    Por isto, que nesta serra achei ou sonhei que achara, e por outrascousas muitas que nela vi (como contarei a seu tempo), vive aminha tristeza aqui to contente nesta minha soidade, que maisme contento j do mal que tenho que do bem que tive, sendo o bempassado cousa que muitas horas me apresenta grande contentamentono pesar que ainda hoje me d sua lembrana. Porque o bem seno pode chamar bem, se no se comunica, se fezeram, pera os queo tevessem, as cidades e povoados; mas pera os tristes guardou(parece) a Natureza os lugares ss, como este, porque adivinhava,ou sabia, que do mais contentamento a quem o tem, como domaior mgoa a quem a teve; por isso digo que ningum haja de mimd, enquanto eu estiver s nesta morada, porque nela tem a minhatristeza lugar de se estender por antre estas rvores e comunicarcom elas sem estorvo algum nem ernbarao, o que antre as gentesno podera ser com os negcios delas, a que o Mundo, por nochamar embaraos. cobriu corn a capa de to honesto norne.

    Aqui me ando sem eles de sombra ern sombra, de penedo em penedo,sem me empedirem as praas cheias de murmuradores e lisonjeiros,eu e o meu pesar diante, com milhes de tristezas aps mim, que melevam pera onde vo e vo pera onde eu quero, que a conformidadeque elas comigo e eu com elas tenho, e a vizinhana das rvores deste

    lugar, que nos no empede nosso querer conforme, nos faz viver comassossego em nosso mal neste deserto, porque, nos povoados, nemquem tem bem, nem quern tem mal, vive com repouso.

    Aqui ando vendo novas cousas e novas soidades, que, cada dia, pelotempo se me descobrem; ora antre as rvores, ora antre as ribeiras,

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    que por antre elas correm, ando suspendendo o meu cuidado. Etudo isto abastava pera muito o enganar, se ele to desenganadono fora.

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    CAPTULO TERCEIROCOMO VIU A VERDADE FIGURADA SUA TRISTEZA

    EM UMA RIBEIRA

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    Muito poucos dias se passaram depois daquele em que vi as letrasnos sonhados lemos, quando eu logo vim pera esta serra, em queno tornasse a ver nela cousas novas, ainda que o no eram elas

    na tristeza que me representavam, que esta sempre foi pera mimvelha.

    E foi assi que um dia destes passados me alevantei mais cedoque os passados dantes, mas a estrela de alva vinha alevantada dohorizonte um bom espao, preparando o claro caminho a seu amadoesposo, e ouvi tantos cantares e assovios de passarinhos, e antreeles, de quando em quando, uns brados de muitos melros, que me

    fezeram uma saudade tamanha, quanta nunca me lembra ter porcousa que visse nem ouvisse. Porque uns cantavam de perto e outrosdavam aqueles brados de longe to saudosos, que me alevantaramos pensamentos a meus prantos, que costumam vir de muito longepera os prantear de mais perto. J o dia dantes eu comeara adormir corn os cantares que eles fizeram, quando se recolhiam peraseus ninhos, e nunca noite me deu o meu cuidado tanto lugar perao repouso como aquela.

    Vendo eu a manh, aps ela, to festejada daqueles alegres cantospera os alegres, que em mim se tornavam todos tristes, pus-mea cuidar muito queda quo grande era o meu mal, pois me nodeixava ouvir aquelas alegrias daqueles passarinhos, seno peramas converter em meus pesares. E, lembrando-me muitas cousasdoutro tempo e muitos contentamentos feitos mgoas, me transporteitoda nisto e no acordei, seno quando o Sol me levou os olhos aosmontes, que ele, j sado, alumiava.

    Pareceu-me aquele dia to diferente dos outros na sua alegresombra, que o Ceu mostrava, que desejei buscar tambm melhorlugar onde o passasse; e, passo a passo, me dei tanto a andar poresta serra, que vim ter a esta grande ribeira, que nunca dantes vira,onde ouvi o tom das suas aguas baixo e rouco, mais conforme amim que o cantar das avezinhas. Pus-me antre uns lisos e lavadospenedos, que a beira da gua dela estavam a ouvir e olhar o tom

    e correr dela, que parecia que me estava dizendo tudo quanto eucuidava.

    Espelho me foram aquelas guas com seu correr continuo, trazendo-as aquela ribeira de novo sempre novas, sem cessarem, porque, comoumas guas chamam outras guas e uma ribeira outras ribeiras,

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    vejo que tambm as minhas mgoas chamam outras e sempre corremnovas, sem nunca cessar seu continuado curso de perturbar o meudescanso, se algum posso ter, e encadeando as gentes e travando

    antre si, com as antigas costumadas, perptuos fuzis de outrasnovas correntes de frescas mentiras, no to frequentado correr delasvejo eu, claramente, que assi correu sempre, como elas e como asguas, e corre e correr o mentiroso mundo, e o meu grave malcomigo.

    Estive assi at que meus descuidados descuidos me deixaramalevantar os olhos pera uma grande e alta rocha, que perto da outra

    parte da ribeira defronte estava, e vi, por antre umas murtas e unsps de feitos, vir feitas umas grossas gotas de gua que, lgrimasme pareceram, de duas em duas e de trs em trs vinham cair emuma grande alagoa, que, pera a banda de baixo, a grande ribeiraali fazia, sobre que a alta rocha quase dependarada estava; e,caindo no grande remanso, como a gua estava queda e sossegada,cada gota daquelas fazia uma grande roda e muitas rodas de ondaspequenas, que vinham acabar onde eu sobre o penedo me encostava,

    Ali no puderam meus olhos (vendo cousa que tambm os figurava)deixar de fazer outro tanto de sua parte, e, soltas trs e trs, mecomearam correr as lgrimas pelas faces, apressurando-se porenviar suas rodas pela gua do remanso, em que caiam a receber asoutras que visitar as vinham da outra banda, e no meio da gua seabraavam to passo e brandamente, como amigas muito conhecidasde longo tempo absentes e de novo juntas.

    Vi-me ali toda figurada naquela pequena fonte que, caindo naquelagrande alagoa do remanso, fazia to grandes rodas, porque assi asfao eu, quando as minhas lgrimas pelo rosto me caem nos peitos,onde o meu coraco tem feito um grande remanso delas, com que mefaz dez mil rodas de pensamentos tristes, que no vo acabar senoonde estender-se mais no podem.

    Tornando a levantar os olhos pera aquela fonte, que assi chorava

    daquele alto, deixou-se cair juntamente um grosso tronco de umarvore, que, seco, sem ramos estava, e uma pedra pequena de juntodele, tudo em um mesmo tempo e ponto; e primeiro chegou o grandetronco gua que a pequena pedra, porque era mais pesado, mas apedra, chegando, foi-se ao fundo e o tronco ficou nadando.

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    Tambm estive cuidando nisto, vendo que sem causa se no fazia,dando-me a entender minha tristeza que, como aquela pequena pedrase deteve mais tempo em chegar gua, mas, depois de chegada,

    logo se foi ao fundo, assi, quando eu mais me detenho em algumtriste pensamento, ainda que com mais detena, venho a chegar aalguma profunda tristeza, onde me alago toda, como a pedra.

    E, como desceu o tronco do ar mais azinha, por ser mais pesado quea pequena pedra, e nadou, chegando gua, assi eu das alegrias,quando as vejo, porque minhas grandes mgoas so mais pesadas,antre elas deso mais ligeira pera as lgrimas e, depois que nelas

    me acho, polas ver tanto amigas minhas e conformes companheiras,nado nelas, como aquele tronco, que, com a humidade da gua secriou, na gua nadava. E, j agora, com elas sustento melhor a

    vida do que sustentaria com alegrias, se me viessem algum dia. Masjamais me viro bater a porta, que pera elas sempre a tive cerradae bem fechada, assi como pera as tristezas nunca a deixei, nemdeixarei, de ter aberta e rasa.

    Com a queda daquela rvore sem ramos a pequenina fonte esteve umpouco sem deitar gota alguma, mas logo tornou a correr gua delaem fio com muito maior presteza e mais profia; parece que o cair darvore ou da pedra Ihe fezeram caminho pera que mais corresse.

    Tambm aquilo vi eu em mim, nem mais nem menos, que, assi comoquela fonte fez cessar o estrondo da rvore, quando caiu por ela,e depois correr em fio, tambm o estrondo e arruido das alegrias,quando as vejo, me fazem estar um pouco sem chorar, calada;mas, aquele tempo que no choro, estou cobrando foras e abrindocaminhos pera chorar depois dobrado. E, se dantes choro gota egota, depois de ver alegrias soltam-se-me as lgrimas, como derepresa em fio, e no sabem ento tornar-se-me a esgotar nem ummomento.

    Se andssemos sobreaviso em tudo quanto vemos, tudo parece quenos representaria as tristezas e mgoas que em ns passamos; mas

    andamos em nosso favor, alegres entendimentos dando a nossascousas, no havendo cousa bem vista c da Terra que tristes echorosos os no encubra e tenha.

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    CAPTULO QUARTOCOMO A VERDADE VIU VIR VOANDO A FAMA, E, VENDO-A

    A FAMA, SE DESCEU ONDE ELA ESTAVA, E DAPRTICA QUE AMBAS TIVERAM

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    que eu a no conhecia, dizendo-me ela ao abraar estas palavras: Sejais bem achada, Senhora, quem quer que vs sejais, porque,achando-vos em tal lugar, no pode deixar de me dar contentamento

    vossa vista. E vs bem chegada, Ihe respondi eu, com avoz rouca, que quase se no ouvia. 0 que ela, vendo-me, tornoua dizer:E certo, Senhora, que vos ps algum espanto o meu vir

    voando pelo ar, ou o grifo que me trazia, ou ambas estas coisas. Qualquer dessas (Ihe disse eu, cobrando j mais foras) bastava,como sobejaram ambas, pera me enrouquecer de medo, mas por issobasta vossa boa sombra pera mo tirar do vosso voar ousado, e sobejavossa fermosura pera me dar seguro de vosso grifo.Palavras

    so essas (me tornou ela) pera muito me obrigardes, se j o vossobom parecer o no tevera feito.Tomando-me, ento, as mos, se inclinou pera se assentar eassentamo-nos ambas sobre aqueles seixos, que, ao longo da gua,estavam, dizendo-me:Assentemo-nos aqui, Senhora, se vosapraz, e dir-me-eis algumas coisas que perguntar-vos quero, sequiserdes. Mas primeiro me dizei porque estais to triste, que ovosso rosto me d a entender que no deveis de ter o coraco muiledo. Nem muito, nem pouco (Ihe respondi, como por antredentes), e ela, prosseguindo em suas razes, dizia:Que, se vs,Senhora, alguma mgoa tendes e sois triste, no cuideis que, poreu vir vestida nestes alegres vestidos, vos no ajudarei a sentiro vosso mal, se o tendes assi interior, como mostrais de for a.A isto Ihe respondi eu: No tenho, Senhora, o meu mal topequeno, que se possa ver e enxergar com to pequenas mostras,nem contar com minhas curtas palavras, que tm muitas faltas edescontos. Mas as vossas, com a vossa presena, me obrigam tanto,que vos no saberia negar j cousa alguma, por mais dificultosae trabalhosa que ela fosse. As minhas tristezas todas mal vo-lasposso eu contar, porque no posso viver tantos dias pera contartantas, mas o que agora mas renovou me faz estar chorosa, aindaque poucas so as horas que eu assi no esteja. A estas palavrasno pude eu refrear as lgrimas, as quais vendo ela, parece que decompaixo das minhas no pde ter as suas.

    E, vendo que tardava eu em Ihe dar de mim conta, me disse,j chorando:0ra dizei, Senhora, quem sois e o vosso mal togrande, que, pois j as vossas lgrimas me vo charnando as minhas,tambm o meu sentido vos ajudara a sentir o vosso sentirnento; e,pois, eu me assentei, no tenho tanta pressa que no folgue muito de

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    CAPTULO QUINTOEM QUE A VERDADE DIZ FAMA QUEM

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    CAPTULO SEXTOCOMO A FAMA CONHECEU A VERDADE E LHE DISSE

    TAMBM QUEM ELA ERA

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    interior substncia soem deitar exteriormente alguns bons cheirose licores, assi eu sou, como acidente que das virtudes do varo

    perfeito se deriva e procede, porque como o cheiro se sente ao longe

    da cousa donde sai, assi eu mui longe me posso estender e dilatara remotssimos lugares, como agora vim de remotas terras a estasilhas por saber as coisas delas. Sou um estado de ilesa dignidadecom leis e com costumes aprovado. Anuncio muitas vezes a somadas coisas, no a ordem.

    Fao viver os meus vassalos depois da morte, e, como cada umdeles tem necessidade da conscincia pra si e da fama pra seu

    prximo, s vezes cruel o que, confiado em sua conscincia, medespreza, porque sou uma boa estimao que o povo tem de algumapessoa, que nunca costumo nascer seno de algum bem verdadeiro ouaparente, o qual bem de duas maneiras, ou temporal ou espiritual.Quando meu nascimento dos que tm bens temporais, tambm soutemporal, e dos que os tm espirituais, fico espiritual. Tem umfama de rico por ter fazenda, boa casa, criados bem tratados, semter necessidade de ningum, sem ver cousa que lhe contente queno compre. Outro tem fama de valente, fere a um, mata a outro,faz fugir a quatro; andou em Itlia, devulgou-se a fama de suavalentia como a dos gigantes antigos, de que se escreve no Gnesis,que eram no princpio vares poderosos e famosos.

    Tudo isto bem exterior e temporal, que o que o tem pode ter empouco, sem lhe dar nada ao rico que o tenham por rico ou pobre eao valente em conta de covardo e fermosa que seja julgada porfeia, porque as coisas de que nasce esta fama se podem licitamentedesprezar, como so as foras, fazenda e fermosura.Mas h a outros bens espirituais, como so misericrdia, humildade,pacincia, caridade e outros desta sorte, dizendo de um que homempiedoso, humilde, paciente, caritativo; esta fama bem espiritual,porque a causa donde nasce so bens espirituais, donde resulta sertambm espiritual o efeito, que a fama, o qual bem no s dapessoa que o tem, seno da repblica toda. E no abasta pra que

    um seja afamado de esmoler que faa todas as obras de misericrdiae d muitas esmolas, porque ainda fica em liberdade do povo estimarestas obras, que o tal faz por boas. Exemplo disto temos queCristo, Nosso Deus, fazia boas obras, mas infamavam-no osfariseus com malcia e enveja de cegos entendimentos e depravadasvontades, di-zendo que eram ms, pelo que duas cousas se requerem

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    boa fama da pessoa: a primeira, fazer boas obras; a segunda, queo povo as estime em bem.

    E, assi, esta fama aproveita a ambos, a quem as faz e ao povo queas v e ouve, e faz e causa dois bens, ou dois efeitos.

    O primeiro freio pra no pecar, porque muitas vezes deixam oshomens de pecar por no perder a fama e bom nome, que tm, devirtuosos, e, por isso, amoesta S. Crisstomo aos superiores quese hajam com os sbditos como se ho os pais com os filhos, quandoos acham em algum delito, do qual secretamente os amoestam e

    castigam, porque, se uma vez o filho, ou sbdito, se v desonrado,far e cometer dali por diante quantas maldades houver. Cristo,Nosso Redentor, quando ressuscitou a filha do Arquisinagogo,que figura do pecado, secretamente o fez, no com brados, nemchamou gente que entrasse a v-lo, mas mandou lanar fora todaque no estevesse em casa. Santo Augostinho diz que, ao tempoque um emenda a algum e lhe quere dar castigo, no o faa empresena de outros, principalmente que ainda o no sabem, por queno perca a fama. Daqui vem que onde os efeitos so espirituaise a causa donde nascem espiritual, a fama no se pode satisfazercom dinheiro. Se se d uma cutilada na cabea, cura-se, mas umacutilada na fama no tem cura, e muitas destas feridas trago eu,Senhora, abertas e incurveis, que cubro com minhas penas.

    O segundo bem que faz a fama, e em que aproveita repblica, que excita a outros pra que sejam bons, porque os exemplosos constrangem e obrigam. Por isso os romanos punham esttuasaos passados pra que excitassem aos presentes, porque, segundodiz Salamo a boa fama engrossa e engorda os ossos, que soas virtudes, como declara So Jernimo; e, como diz Ovdio dePonto, a virtude louvada aora e esperta o desejo do ouvinte. Dondevenho a concluir o que acima dizia, que, pois a boa conscincia necessria, pra quem a tem, e a boa fama pra o prximo, praeste, ao menos, e pra a repblica cruel quem a prpria famaespiritual despreza, pois lhe era esporas pra ir correndo glria.

    E no lhe aproveitara dizer, como alguns dizem, que se lhe nod nada de perder a fama, j que sua conscincia est segura, pois dano da repblica perd-la. E ainda que a rica conscincia adespreza, a repblica necessitada a estima. Donde vem que o quediz mal de algum no somente faz mal a ele, mas repblica,de que o murmurado membro, e o que murmura de uma pessoa

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    ainda que no fazem algum pecado, com a familiaridade suspeitosaque tm, todos o suspeitam deles; por onde a fama dos tais, quedeve ser clara, se torna obscura no corao das gentes, e tornadas

    denegridas suas faces, no conhecida sua virtude em pblico, nemnas praas, como nos Trenos diz Jeremias, onde a fama se chamaface ou rosto, porque, como pelo rosto conhecido cada um, assi seconhece tambm pela fama com que divulgado.

    E, pois, pela fama so conhecidos os homens, os bons pela boafama, e os maus pela m se conhecem, pelo que tenho o rostofermoso diante, onde a ocasio tem gadelhuda sua fronte, e a cara

    feia detrs, onde ela tem o toutio calvo; e, por isso, com algumarazo ficam os sem pecado escalvados, esbulhados e infamados,pois, sabendo ser castos, no sabem ser cautos, os quais publicoao Mundo com outra trombeta, que nas costas dependurada trago,que no soa seno faltas e infmias. Mas, mostrando o rosto, souduquesa e coroa de muitas gentes, todas de altos pensamentos ede hericos feitos e obras grandes, cujos louvores apregoa estatrombeta dourada que diante do peito me vedes.

    E crede, Senhora, (como j tereis sabido) que nenhum destes meusvassalos vos desestima, como as outras gentes de pouca estima fazem;antes nas mininas dos seus olhos vos do o vosso lugar e assento,

    porque, sem vos honrar muito, no podem fazer grandezas. Se elesviveram juntos em uma terra s, pedira-vos que freis morar nela,pra serdes de todos juntamente bem servida e venerada; mas vivemderramados por toda a redondeza do Universo: uns, confessandoa f diante dos cruis tiranos e esmaltando suas alvas esfolas comseu roxo sangue, outros, com a pureza da vida, lavrando prasi laurolas resplandescentes; uns, fazendo nos ermos solitria esanta vida, outros, como claros espelhos de todos nos povoados,esmerando-se em virtudes; uns, em guerras servindo o belicosoMarte, outros, em cincias em servio de Minerva, nascendo emdiversos lugares, onde uns dos outros apartados andam, sem por istovos poder ser boa nem valer com eles.

    Da lngua dos sbios e curiosos falando e muito mais da sua penaescrevendo, como de meus fiis caixeiros, me sirvo, passando porletra minhas riquezas de umas terras a outras, espalhando-as eassoalhando-as por diversas partes do Mundo todo, onde tenho meucomrcio. Meu ofcio andar de terra em terra, de porto em portoe de lugar em lugar, e s vezes de praa em praa, de rua em rua,

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    de canto em canto, de porta em porta e de casa em casa. E assi,voando, vou celebrando seu nome de gerao em gerao t fim doMundo, onde a memria de todalas cousas por fim acaba. Outras

    vezes, rodeando o Universo, ora por mar em navios, ora a p porterra, ou em andadores dromedrios, ou cavalos mui ligeiros, emuitas vezes pela posta ou com correios, ora plos ares com estasminhas asas voando, ora em aquele meu grifo, que tenho ensinado aofreio e fao subir quanto quero com a cobia que ele tem (enganadocuidando que so carne) destas bandeiras de cendal encarnado, quetrago ao redor desta trombeta, com que ando apregoando no Mundoos servios que meus vassalos me oferecem, estendendo estas asas de

    tantas cores, em que cada um deles traz uma pena com que o seunome e a sua fama voa, e so as penas to diversas, porque foramdiferentes e diversos seus servios.

    Das pretas vereis aqui mais penas e maiores, porque so maisos tristes, a que as suas mgoas grandes deram grande fama.Os alegres, embebidos em seus contentamentos, esqueceram-se maisdo tempo, que foge rdea solta, gastando-o s em cousas queacabaram com eles juntamente. E vs, Senhora, me deveis mais doque cuidais, ou podeis cuidar agora, porque, debaixo de cada penadestas (sobre que est uma orelha com que ouo), trago um olho comque vejo aquele que ma oferece e me est servindo, e, com todos eles(ainda que s pra ver os trago), vos ajudei a chorar nesta hora ovosso desterro saudoso, que, to tristemente, me contastes. Estasfitas azuis, com que enastro os meus cabelos, so os arreceies queos grandes tm de morrer sem fama, o que depois, por fim, lhe ficana cabea por coroa.

    Em outro tempo me lembra ter novas de vossos irmos, quedegradados andam; mas, estes anos, em que tenho de novo corrido oMundo todo, nunca deles ouvi fazer meno que lembrar-me possa;eu me tevera por muito maior senhora e mui ditosa, se agora delesvos pudera contar e dera novas certas, que, por dar algum alvio avossa desconsolao tamanha, ficara eu maior e mais alegre em meuestado. Mas as que deles em outro tempo soube vos contarei logo,

    brevemente, pois vos no alcancei achar nem ver mais cedo e poistambm as no tendes doutrem ainda ouvidas.

    Aqui comecei eu de chorar de contentamento de tais novas, mesturadocom a tristeza, com que havia de ficar, vendo-me sem eles. Ela,ento, com os seus fermosos olhos arrasados de gua, por ter aos

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    CAPTULO STIMODAS NOVAS QUE DEU A FAMA VERDADE DE SEUS IRMOS

    O TEMOR DE DEUS E A VERGONHA DO MUNDO

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    as vossas figuras, que nele esculpidas levo com a grande saudadeque de vosso apartamento me leva. Nhevorga (magoada, parece, oudo sentimento daquelas palavras, ou daquela to triste despedida

    de seus amigos), como, arrebatadamente, com clera, disse: notenho, senhores companheiros, sinal nenhum que vos possa dar pradepois me conhecerdes; s este sinal vos dou, que, se uma vez meperderdes, nunca mais me vereis. E ass se apartou logo deles,sendo no sinal a derradeira e no apartar a primeira.

    Esta histria de vossa irm me contou aquele romeiro, que,Senhora, vos digo; e disse mais que ouvira em muitas terras,

    por onde depois andara, que o Fogo, Vento e gua se achavamsempre nos lugares onde disseram e ele o experimentara algumasvezes em algumas rochas e serras altas, que em logos caminhos foraatravessando, e em alguns fundos vales, por onde j caminhara. Masque de Nhevorga nunca mais se soubera dela parte nem mandado.No vos quisera, Senhora, dar estas novas por no serem alegres,como eu quisera, mas onde as alegres faltam as tristes vos poderodar prazer no vosso descontentamento, que tambm o pesar duvidosodescansa quando vem saber a certeza do seu pouco descanso.

    Isto dizia ela por me ver desfazer com choro. E sem me deixardizer palavra, por me tirar (parece ser) dele, me foi assi dizendomais adiante.

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    Cheguei agora a estas ilhas por saber a fama que delas corre,pois j tenho sabida a maior parte de todas as outras partes. Equis minha boa ventura que, vindo pelo ar no grifo, vos visse aqui

    estar nesta ribeira. Abaixei logo por saber de vs algumas novas,e achei-as mais e melhores que quantas achar podia, com vos acharno mundo viva. Porque muitas cidades e povoaes corri por vosver, sem o poder alcanar, e no corria os desertos, porque vs praeles no nascestes, ainda que as condies das gentes os fez pravos nascer contra direito.

    E, pois aqui vos achei, determino no passar adiante, porque de

    vs posso saber melhor a certeza das cousas e das gentes destasterras, ao menos destas duas ilhas que aqui vejo. No vos enfadeis,Senhora, de me dizer quanto aqui pra contar vistes, porque meescusareis o trabalho que, passando eu a outras partes, se meordena, e ordenareis cousa com que passemos to bom e alegre dia.E, primeiro que tudo, vos peo que me deis a entender essas letrasque trazeis escritas no peito e no vestido, que, pois as vs trazeis,no devem ser sem causa grande.

    No as trago (lhe disse eu) pra mim, seno pra quem de mim asquiser ouvir pra seu aviso; trago-as no peito por que sejam espelhodaqueles que pra mim olharem; mas as gentes j me no olham spor isto, que ningum quer j ser desenganado de seu erro.

    Ento, lhe li as letras que, por esta ordem, estavam em um tringuloque tem trs cantos e assi diziam: - No creias quanto ouves; nodigas quanto sabes; no desejes quanto vs.

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    Estoutras letras do brial, que eu nele lavrei depois que estou nestedesterro, dizem: Eu sou Dederva, que estou aqui escondida,porque meu irmo Torme se perdeu e minha irm Nhevorga j

    perdida.O vestido trago branco por ser mais simple e verdadeira corantre as cores, que no havia eu de andar buscando cousa quebem parecesse, seno pano com que me cobrisse; assi como nobusco manjares compostos e forjados, seno singelos, com que mesustente.

    O Mundo todo no vai desta maneira, seno a velas despregadas;em outra volta e rodeio, aps o apetite e vontade, vai buscando seuporto.

    Ningum quer o que deve querer, e cada um quer o que quer.

    J no quero eu seno tristezas, porque elas tambm a mimme querem, em me virem tanto a pares; e em mim s vejo maisverdadeiro o que comummente dizem, que se vai, por fim, o bempra o bem e o mal pra quem o tem.Porque vs s, Senhora, (me disse ela) sois pra querer, vosno quer ningum. Pode ser que desse vosso claro espelho lhevem nascer esta cegueira, que, mal pecado, j o Mundo as cousasclaras o cegam e as cegas lhe do claridade, porque amaram maisos homens as trevas obscuras e feias que a luz fermosa e clara.E os que deviam ser mais favorecidos, esses tm menos favor dasgentes e vemos mais abatidos e enjeitados. Quantos, ora, merecemmuito (como vs mereceis, Senhora), que moram em casas pobres,e outros, de nenhum merecimento, que vivem em altos paos edourados, favorecidos e privados de grandes senhores! So assi asvezes das cousas distribudas por sorte e trocadas como em feirade cega lagarta, e a pobre balana de ferrugem se cobre, sem comela pesarem, por faltar o fiel, de muitos dias perdido, guia de todoo peso.

    Lembra-me agora uma reposta que o Emperador Sigismundo deua um seu criado, que disto se aqueixava, porque, havendo-o servidomuitos anos sem receber dele mercs, como outros de menos ounenhum servio recebiam, aconteceu que, passando por uma ribeira,viu ourinar o cavalo nela, e aqueixou-se que era o cavalo naquilo

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    como seu senhor era, o que ouvindo Sigismundo, lhe perguntou porqueo dizia. Respondeu ele que como o cavalo ourinava na ribeira,onde j havia tanta gua e to sobeja, assi Csar fazia mercs a

    quem tinha dos bens do Mundo, que tinha menos necessidade deles.Entendeu Sigismundo que o criado o mordia do pouco galardoque lhe havia dado plos muitos servios que lhe tinha feito, erespondeu-lhe dizen-do:Nunca me a mim me faltou vontade detu me ficares devendo, mas as mercs dos prncipes no so dos queas merecem, seno daqueles que por acerto as alcanam. O quelhe provou depois ser assi, mandando aparelhar duas bocetas de umamesma feio e igualdade; uma encheu de ouro, e outra de chumbo,

    e, chamando o creado, lhe mandou que escolhesse uma delas, qualquisesse; abaixou-se o malditoso servo e, sopesando ora uma, oraoutra, duvidando qual escolheria, veio, finalmente, escolher a quetinha o chumbo. Ento se viu que a desaventura do criado era praculpar, e no a vontade de Csar.

    Mas, posto que o Emperador no tinha vontade danada, todaviadigo eu que tinha esquecimento insofrvel e descuido culpvel,porque, ainda que um seja monarca do Mundo, to obrigado ,como qualquer pequeno do povo, a dar a cada um o que se lhe deve,o do pobre ao pobre, o de Deus a Deus, e o de Csar a Csar. Eno fazendo isto, sendo vigilantssima sobrerrolda dos que mandagovernar seu povo, ainda que tenha boa vontade de dar o seu aseu dono e fazer em tudo o que deve, nunca a pouca dita do bomservidor, rico ou pobre, o poder escusar de culpa diante de Deus,que maior Senhor que ele.

    Se na pouca dita de seu criado, coube escolher a boceta dechumbo, na justia de Csar devera caber dar-lhe a de ouro, se aele merecia. De Deus vem o sucesso prspero das cousas e tambmo adverso, pois no h mal de pena na cidade que o mesmo Deusno faa, ou por castigar a uns, ou por avisar a outros, e o coraodos reis em sua mo se encerra. So secretos juzos seus que anosso juzo no pertencem.

    Se vs, Senhora, andais sopeada e carregada com o grave pesoda mentira em que, atada, como cortia em pedra, fostes lanadae abscondida no alto e profundo pego das inquietas e salgadasondas de lnguas mentirosas, ou, pouco e pouco, se ir rompendoe cortando esse lao e atadura, ou, com o medo de alguma grandetormenta ou temor de algum perigo ou castigo, se desatar de todo

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    recompensam com outra grande e mais que liberal virtude, pois porum, que devem, pagando cento, so os melhores pagadores que hno Mundo todo. E, pra pagar to liberalmente, entesouram as

    verdades e no as falam, porque dizem que as tm alguns guardadaspra irem acompanhados delas quando deste mundo partirem. Ecom este tesouro abscondido e junto se fazem alguns fidalgos, aquem seus pais deram os brases detrs das brasas nas longas noitesdalgum chuivoso inverno, e outros mais altivos e empinados sefazem reis, mas a nenhuns vejo reinos de que o sejam. E, ainda queo inundo todo se perde por trs M M M, antre alguns o vejo poristo mais perdido, porque tudo muito gastar e pouco ter, muito

    falar e pouco saber, muito presumir e pouco valer.J, em outro tempo, valiam alguns tanto quanto tinham; agoraj no valem pelo que tm, seno pelo que presumem, e no deixamde ser prncipes na presuno os que so nus e probres na fazenda.A qual presuno lhe ficou em lugar das riquezas, que dantes eles

    tinham e teveram seus avs e esto agora em estrangeiros; pelo quedizem que disse o Infante D. Hanrique, descobridor desta ilha edas outras, que os primeiros povoadores delas roariam e os filhoscomeriam, os netos venderiam, e os bisnetos fugiriam; porque trscousas os deitaram a perder: vaidade, demandas e fianas, com umcontrapeso de deitar em rendas, cuidado que alguns, ou com cobiaou sem conselho, quiseram tomar sobre seus ombros, com que vierama dar no cho com toda a carga junta do seu e alheio, ficando-lhesomente a opinio por riqueza, com que cada um dos que a governamquer acabar o que comea e poucos do fim obra comeada poroutro, causa de serem perdidos negcios de muita importncia, e,em seu lugar, sucederam grandes inconvenientes; e, quando algunsse soldaram, foi custa de El-Rei ou da Repblica, ou de ambosjuntamente, pelo que tudo aqui so aliceces e ali cessam. Comose no fosse mais glorioso dar bom fim a um honrado negcio queprincipi-lo, pois sabemos que o fim, e no o principio, o queaprova ou reprova todalas coisas.

    certo que j agora nesta ilha (pois os homens tm por melhor

    coisa a mais nova) seria maior novidade acabar algum o comeadopor outrem, que principi-lo por si mes-mo, pois quem quer dprincpios sem cabos e ningum d fim e cabo ao comeado. E,por alguns quererem em seu tempo comear e acabar as cousas quecomeam, lhe ficam elas to mal feitas e com tantas faltas, que lhevm a faltar a eles a fama e louvor que em faz-las pretenderam.

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    Assi que sendo os homens bons, ricos e poderosos nesta terra,vieram muitos a enfadar-se e enfastiar-se tanto das grandes rendase riquezas que quietamente possuam, que, de muito bons que pra

    outros foram, ficaram maus pra si; e, com lanarem em rendas ecom fianas que sobre si tomaram, sem nunca quererem deixar deentrar no atoleiro em que viram perdidos e afogados seus vizinhos,foram to fiis vassalos a seu Rei e ao senhor da terra, como vostenho dito, que, de enfadados e enfastiados das abundantes e ricasfazendas que tinham, as deixaram e entregaram de sua livre vontade Coroa, ou ao senhor da terra, ou a estrangeiros.

    E esta uma das cousas de que eu mais saudade tenho e quemais choro nesta terra aque outras muitas; porque, se se perderampor desastre, caso fortuito ou naufrgio, cuidara que vinha isso damo de Deus ordenado; mas vejo-os vendo e querendo aceitar tolivremente sua perda, que claramente se v vir da mo dos homens,ainda que tambm isto Deus o permite pra seu castigo.

    E assi, tendo eu d de quem de si o no tem, choro o que elesriem e sinto o que eles choram. Sendo mancebos, se correm de termalcia e vaidade, e, velhos, se presam disso, tendo-o por prudnciae grande honra. Assi que o tempo da velhice como os dias da feirafranca, que tm liberdade de se vender neles, sem direito, aquiloque nos outros depois e dantes se defende. Vieram, enfim, a ser oshomens moos na velhice e velhos na mocidade nestes nossos tempostristes.

    Dizia um estrangeiro que esta ilha era terra das igualdadas, porver presumir tanto a uns como outros.Eu digo que no seno terra das desigualdades e sem igual,porque mais brasona aqui de fidalguia o rico vilo que o fidalgonobre, e mais presuno tem de saber o tosco nscio que o discretosbio. Os que nunca vestiram arns, nem malha, dizem que so fortescavaleiros, e os que no aprenderam letras se prezam de letradosextremados, e isto com tanto despejo e ousadia, com meneios e com

    to pouco pejo o afirmam e sustentam com palavras, que, at aquem os est conhecendo, pe em dvida se ser assi o que dizem,quanto mais aos que vm de fora e a quem os no conhece.

    Com ameaas sustentam sua fidalguia postia. Com brados eporfias vs querem acreditar por firme cincia sua v ignorncia,

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    sendo nisto como as ms mulheres, que, quanto mais perdidas so,tanto com maior soltura e mais desavergonhadamente, at no seurosto, desonram as boas, honradas e virtuosas com palavras feias,

    dignas de quem as diz, mas no de quem as ouve. E, s vezes, comtestimunhos falsos e com aleives, presumindo igualar-se com elasna bondade, honra e virtude, em que ainda se apregoam por maiorese de avantagem, o que mais certo sinal de sua maldade e poucavergonha (com que todo mundo seu), como o de sua baixeza,nos baixos, presumir de se empinar com os altos, e, nos nscios eignorantes, de sua maior ignorncia e cegueira querer-se igualarcom os sbios.

    E, se quisessem ver bem suas mos e obras, elas lhe mostrariam,como claro espelho, que no so iguais (como dizem) todolosdedos.

    E to certa esta verdade que no convm despender muitoalmazm de razes na prova dela, nem necessrio sobre estaquesto porfiar nem contender o fidalgo com o vilo, dizendo-lhe eprovando-lhe que mais nobre que ele, nem o virtuoso com o mau,nem o sbio com o rstico, pra lhe fazer evidente que tem maisvirtude ou cincia, pois isto demonstrao e passa j em causaou cousa julgada em que pez a baixos e nscios, por mais que elesapelem da sentena, de que se lhe no deve nem pode receber apelaonem agravo, nem passar estromento; antes, de nenhuma qualidadedeviam ser ouvidos antre discretos e honrados. E se no fssemoscristos ou prximos, ou no fosse proibido, em comeando a falaros tais to soltamente, logo era bem que pagassem os prprios e ascustas de seu atrevimento, pra lhe dar livramento com o castigo.Porque assi como o servo no se emenda com razes, seno comaoites, assi do vil e rstico atrevido (que de sua natureza servo)diz o provrbio castelhano que el nescio por la pena es cuerdo.

    S o fidalgo aqui vilo antre vilos, e s o sbio nesta terranscio antre nscios, sem poder achar a gua que dizem que emoutro tempo choveu pra emprasto e mezinha disto. No aqui

    (segundo se diz) to bom Pedro como seu amo, mas muitas vezesmelhor sem conto. E bem se parece nos vestidos, em que o nobree poderoso, contentando-se com o honesto, se refrea, e o baixo epobre rdea solta corre, como desenfreada besta. E assi se ficame ficaro nesta terra estas enfirmidades sem remdio.

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    Ora se choram todos o enfermo que, sem ter cura, vai morrendo,como no chorarei, Senhora, estas perigosas doenas to cegas eincurveis? Estas so as gerais condies quase antre as gentes

    todas do Universo, que em outras terras se podem melhor sofrer quenestas, em que no h lugar pra onde subir; pra descer si, e estesempre o houve, porque, como a justia da terra seja como o vinhodela, que no tem fora alguma, onde no h prmio pra bons nemcastigo pra maus tudo so descidas.

    J esta terra no terra, mas desterro; e, quando era desterrode alguns, era verdadeiramente terra. Mas, agora, foi-se fazendo

    to estril dos bens que tinha e dos mantimentos que dantes, comgrande abundncia, dava, e envelheceu to azinha, que quem selembra dos bens, que nela houve, e tem experincia das misrias, quenela agora v, no pode deixar de chorar com saudade daquele bomtempo passado e consumido, vendo que vo os pecados das gentesenchendo e suprindo o lugar dos fruitos que a terra nega. E o quedigo desta (pois correm a igual passo), entendo tambm destoutrasilhas, suas vizinhas, que em tudo vizinham bem com ela.

    Crede-me, Senhora, que por nenhuma outra cousa tanto vivotriste e trago as letras do meu nome assi mudadas, seno porquevejo o bom tempo tam mudado.

    Algumas cousas contarei destas ilhas, como testimunha de vista,e outras, que no vi, direi, como as pude saber doutrem, que no

    me faltou diligncia pra inquirir e examinar a verdade delas comassaz trabalho e custo, ainda que em algumas no pude bem descobrira certeza que eu quisera. Recebereis, Senhora, esta vontade ehistria, sabida pelo melhor modo que alcanar pude, mas no comoa vosso saber se deve. E aceitai por obra o meu desejo, porque,desta maneira, o trabalho de a contar se me tornar descanso.

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    CAPTULO NONOEM QUE A VERDADE, RESPONDENDO A UMA DE DUAS PERGUNTAS

    QUE LHE FEZ A FAMA, TRATA EM GERAL DO DESCOBRIMENTODAS CANRIAS E DALGUMAS COISAS DELAS

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    E, querendo eu comear a contar o que destas ilhas sabia, medisse ela:

    Vejo, Senhora, estas ilhas dos Aores estarem neste grande marOceano e nele mesmo estar a ilha da Madeira e Porto Santo eoutras que so de El-Rei de Portugal, to perto das Canrias,que so de Ei-Rei de Castela, e, logo, as ilhas do Cabo Verde,povoadas de portugueses, e no entendo esta mistura, como neste marhouve dois senhores diversos. Tambm me faz duvidosa a terra dasAntilhas, como, passando por este mar da navegao de Portugal,as mandaram descobrir e povoar e possuem, pacificamente, os Reis

    de Castela. E, pois, em vs se acha o desengano de muitas dvidas,merc receberei desenganardes-me nesta.

    O corao (lhe disse eu) desenganado o tenho pra todos, e muitomais pra vs, Senhora, que to obrigada me tendes. E o desengano,que quereis saber de mim nisso que me perguntais, sou contente deo dar da maneira que o soube de diversos cronistas e autores e demeu antigo pai, que o contava.

    Verdade que os Reis de Portugal teveram alguns anos a conquistado mar do Ocidente, at que em tempo de El-Rei D. Joo, osegundo do nome, houve nisso alguma mudana, que depois contarei,como tambm deixo pra contar adiante o descobrimento destas duas

    primeiras ilhas dos Aores e das sete mais abaixo que desejais saber.Mas, por agora, quanto dvida delas e das outras que dizeis,sabei, Senhora, que os legistas e canonistas tm uma regra que diz:primo occupanti conceditur locus, que quer dizer: o primeiro,que ocupa e possue algum lugar, fica pelo mesmo caso senhor dele.Isto se usava, antigamente, nos descobrimentos das terras, antes deserem dadas as conquistas delas. O que primeiro descobria algumaficava senhor dela, se queria e podia sustentar sua posse. At quepelo Santo Padre (como senhor que supremo e logo-tenente deDeus na Terra, do espiritual e temporal do Universo) foi istodeterminado e limitado antre os Reis de Portugal e Castela, comoclaramente vereis nisto que irei dizendo.

    Quatrocentos e quarenta anos antes da vinda do Salvador doMundo a ele, um Hanom, capito cartaginense, partiu de Andaluziacom sua armada contra a costa dfrica e Guin, e dizem queeste foi o primeiro que neste caminho e jornada descobriu as ilhasBem Afortunadas, que agora chamamos Canrias, e, alm delas,

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    Outros querem dizer que Mossem Joo Betancor se fosse aFrana refazer de novo pra esta conquista e deixara ali umsobrinho, que se chamava Mossem Menante, e, como nunca mais de

    l viera, o parente, que no podia sustentar a guerra, vendera asCanrias ao Infante D. Henrique por certa cousa que lhe derana ilha da Madeira, como direi adiante. E porque, de doze ilhasque elas so, ainda ficavam por conquistar estas, Gram Canria,Palma, Graciosa, Inferno, Alegrana, Santa Clara, Roque e ados Lobos.

    No ano de mil e quatrocentos e vinte e quatro mandou o mesmo

    Infante fazer uma armada pra conquista destas ilhas Canrias.Ia por capito-mor dela D. Fernando de Castro, e como asgentes delas eram belicosas, defenderam bem suas casas, e vendoD. Fernando o grande gasto que fazia, se tornou. E depois oInfante largou estas ilhas coroa de Castela pelas ajudas que aBetancort dera.

    Mas os castelhanos contam isto doutra maneira: que nem El-Reide Portugal, nem o Infante D. Henrique, as quise-ram largarat chegarem a direito diante do Papa Eugnio quarto, veneziano,o qual, vendo isto, deu a conquista daquelas ilhas por sentena aEl-Rei D. Joo de Castela no ano de mil e quatrocentos e trintae um, por onde cessou esta contenda das Canrias antre os Reisde Portugal e Castela.

    Mas, como ia contando e segundo outros dizem, morto ou ido aFrana, sem mais tornar, o rei Joo Betencor, sucedeu no reinodas Canrias seu parente, chamado Mossem Menante ou Menaute.E provendo o Papa Martinho por bispo destas ilhas a um religiosochamado Frei Mendo, comearam os insulanos a receber a santaf. Mas, vendendo El-Rei Menante por escravos a muitos que asanta f haviam recebido, se aqueixou o bispo a El-Rei D. Joo,

    pedindo-lhe que deitasse este prncipe daquela terra. Por estacausa havendo algumas diferenas, mandou l El-Rei a um PeroBarba de Campos, vizinho de Sevilha, com trs naus armadas,

    e, por fim, El-Rei Menante, por concerto e licena da RainhaD. Caterina, vendeu as ilhas ao mesmo Pero Barba. E PeroBarba fez o mesmo a um fidalgo de Sevilha, chamado FernoPeres, em cujos descendentes e de outros vizinhos de Sevilha seconservaram at os tempos dos Reis Catlicos, D. Fernandoquinto e D. Isabel. Porque, reinando eles em Castela no ano de

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    mil e quatrocentos e setenta e oito, mandaram uma boa armadacom Pedro de Vera, fidalgo natural de Xarez, pra conquistaras Canrias. E surgindo em Gram Canria, foram notveis as

    cousas que castelhanos fizeram em as conquistas delas, que duraramtrs anos.

    E no ano de mil e quatrocentos e oitenta e trs, ainda que osReis Catlicos, D. Fernando o quinto e D. Isabel, sua mulher,tinham comeada a guerra de Granada e esperavam a de Navarra,acometeram outra contra estas ilhas do oceano Atlntico, GramCanria, Tenarife e da Palma, que, de sete principais e

    descobertas que elas so, restavam de conquistar estas trs, (porqueas outras estavam em poder de vizinhos de Sevilha desde os temposde El-Rei D. Joo segundo, como atrs tenho dito), mandandocom uma boa armada Afonso de Muxica e Pedro de Vera, capitaisdestros assi no mar como na terra, os quais deram de sbito sobre aGram Canria, em a qual achando dois reis brbaros que pugnavamsobre o domnio, favoreceram a um, com cujo favor veio em brevetempo ao domnio dos Reis de Castela toda a ilha.

    Desta maneira contam esta histria os cronistas castelhanos.Mas o doctssimo Joo de Barros, no livro primeiro da primeiraDcada de sua sia, no captulo doze, diz: que depois de tornardas Canrias D. Fernando de Castro, pra favorecer os canriosque l ficavam convertidos f, mandou o Infante alguma gente,e por capito dela Anto Gonalves, seu guardaroupa. E passadosalguns anos, desistiu o Infante delas por se antremeter nisso El-Rei de Castela, dando razes como lhe pertenciam, porque, seMaciot vendera a fazenda e terras que tinha aproveitado, no podiavender o senhorio e jurdio, que era da coroa de Castela. Depois,em tempo de El-Rei D. Henrique, o quarto do nome em Castela,quando casou com a Rainha D. Joana, filha de El-Rei D.Duarte de Portugal, D. Martinho de Atade, conde de Atouguia,que a levou a Castela, houve de El-Rei D. Henrique estas ilhasde Canria per doao que lhe delas fez. E ele as vendeu depois

    ao marqus D. Pedro de Meneses, o primeiro deste nome. E omarqus as vendeu ao Infante D. Fernando, irmo de El-ReiD. Afonso e sobrinho do Infante D. Henrique. E mandou logotomar posse delas por um Diogo da Silva, que depois foi conde dePortalegre. Em meio do qual tempo veio a Portugal um cavaleirocastelhano, por nome Ferno Peraza, pedindo restituio delas,

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    um quarto e vinte e cinco lguas da ilha Canria. E da Gomeiraao Ferro h seis lguas e est a ilha do Ferro em vinte e setegraus e dois teros e da ilha de Canria trinta lguas. De Canria

    Palma so trinta lguas e est a Palma em vinte e oito graus emeio. E (como disse) correm-se estas ilhas principais umas com asoutras quase leste-oeste, e so estas ilhas de Canria doze (comodisse), contando a do Inferno, como diz Joo de Barros, aindaque no vi carta nenhuma de marear em que a achasse. Mas seteso as descobertas e mais principais.

    Esto em vinte e oito graus da parte do norte. Tem o o maior

    dia treze horas e a maior noite outras tantas. Distam de Espanhaduzentas lguas e da costa de frica dezassete, ainda que deForteventura ao Cabo Bojador, que est na Berbria, h trezelguas, e este o mais perto caminho das Canrias at costa deterra de mouros.

    A Gram Canria a principal. Os naturais dela se chamamcanrios, por haver nela grandes ces, e desta tomaram o nomegeral de canrios os habitadores das outras, ainda que tenhamtambm seus particulares nomes. Esta Gram Canria redonda ea melhor de todas e bem povoada, e por isso tem o nome de grande,no por ser maior em quantidade. Tem muito gado, colhe-se nelamuito po e vinho e mel; h nela muitos engenhos de acar, edesta e dalgumas das outras se carrega muita quantidade dele pradiversas partes.

    Tenarife outra ilha destas, maior de todas. Est bem povoada ed muito po e vinho. Os naturais dela se chamam Ganches, porserem muito enrochadores. Tem uma serra que alguns chamam opico de Teide e outros de Tereira, do Duque de Maqueda, porparticular merc de Sua Majestade, que dizem ser uma das cousasmais altas que navegantes sabem e vem claramente sessenta lguasantes de chegar a ela, e de um terreiro, que faz como praa nocume dela, quando o mar est em calma, se vem todas as outrasilhas, e parece cada uma delas um bairro pequeno com estar algumas

    distantes mais de cinquenta lguas e ter outras tantas de circuito, aqual verde no p e sempre nevada no meio at o S. Joo, e daliat ao fim de Agosto podem subir a ela; est com neve, havendonela muita o restante ano, com no nevar jamais em todas aquelasilhas circunstantes. rasa e fumosa, a tempos, no alto, pelo muitoenxofre que nela se acha, de que levam a Espanha grande cpia.

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    A Palma pequena; h nela muito gado, do qual se fazem muitose bons queijos. Os naturais dela se chamam palmeiros por ter a ilhamuitas palmas.

    A Gomeira boa ilha; tem grande abundncia de gado e po evinho e acar e muita urzela; estes se chamam Gomeiros, como ailha Gomeira, de um rei chamado Gomeiro ou Gomauro.

    Forteventura, que mais comprida, e Lanarote so duas ilhasalgum tanto despovoadas, mas tm muito gado cabrum; esto muijuntas uma da outra, como um quarto de lgua. E contam que uma

    mulher islenha nadou este espao, de Forteventura a Lanarote,por livrar um seu filho da morte, a que ia condenado por justia,levando proviso e perdo do governador que, ento, estava emForteventura, sem esperar por barco. Os moradores dela se chamamMaforeiros, no sei por que razo.

    O Ferro tem um lugar de poucos vizinhos, que se chamam Ferrenhos,porque h nela pedras que parecem ferro, e a costa fragosa damesma maneira, que parece escria de ferro, e as rvores sosperas e ferrenhas; dizem que j al-guns biscanhos, que vieramem ajuda de sua conquista, acharam e fundiram ferro nela. ilhapequena e toda fragosa, Estes no tem gua de rio, nem fonte, nempoos, mas uma rvore grande perto do lugar, em um alto, sobre aqual se assenta uma nvoa pela manh, maneira de nuve branca,mui clara, e ali estila continuamente gua pelas folhas, como rocio,a qral cai em um tanque, e dela bebem os homens e os animais, e boa gua; tm, alm disto, algumas cisternas em que recolhem guapra as bestas e pra seu servio; os gados se mantm com ramos eerva verde. Esta rvore nunca envelhece, nem cresce, mas sempreest em um ser, com suas folhes verdes. Dizem que se quer parecercom o almstico, que d aimcega, como h muitos na ilha de Te-narife, mas no o ; o almstico tem o parecer e rijeza e cortar dopau branco, que h nesta ilha de So Miguel, e ainda mais forte erijo; e dizem que tem as folhas quase como maneira de trs folhasde silva midas, que todas trs e, s vezes, cinco juntas parecem

    uma s folha farpada.Quando foram depois conquistadas estas Canrias (como tenhodito) plos espanhis em tempo do Catlico D. Fernando, Rei deCastela, no ano de mil e quatrocentos e oitenta e trs, teve Prode Vera, cavaleiro, natural de Xarez, guerra mui rija com estes

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    canrios, que eram de muito esforo, os quais ainda no tinhamarmas; usavam de varas, que aguavam com pedras mui agudas (aspedras se chamam tubonas), e so pretas maneira de azeviche,

    com as quais, como com dardos, passavam as adargas e escudose, tambm atiravam pedras com muito grande fora, porque eramtodos mui valentes e desenvoltos; mas, por fim, foram vencidos ereduzidos a su