Fernanda Bruno Ok

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/26/2019 Fernanda Bruno Ok

    1/24

    Revista

    FAMECOSmdia, cultura e tecnologia

    Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, setembro/dezembro 2012

    Cincias da ComunicaoRastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-redeDigital traces from the perspective of actor-network theory

    FERNANDABRUNOProfessora do Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ.

    RESUMOUm volume expressivo de rastros de nossas aes gerado,monitorado e tratado cotidianamente na internet constituindoimensos arquivos sobre nossos modos de vida. Estes rastrosdigitais vm sendo apropriados por diversos campos:vigilncia, publicidade, entretenimento, servios, etc. Elestambm vm sendo valiosa fonte de pesquisa nas cinciashumanas e sociais. O valor desses rastros est atrelado aoconhecimento que possibilitam e h, neste domnio, umasrie de embates. Este artigo confronta dois modelos deconhecimento, os quais tm implicaes diferenciadas parauma poltica dos rastros digitais. O primeiro, vigente nosaparatos comerciais e policiais, concebe o rastro como evidnciaatrelada ao indivduo e/ou a padres comportamentais. Osegundo, objeto maior de nosso interesse e inspirado na teoriaator-rede, entende os rastros como inscries de aes quepermitem descrever a formao de coletivos sociotcnicos.P-: Rastros digitais; Teoria ator-rede; Conhecimento.

    ABSTRACTA signicant amount of traces of our actions are generated,monitored and treated daily on the Internet, creatinghuge archives of our way of life. These digital traces have

    been appropriated by many dierent elds: surveillance,advertising, entertainment, services etc. Yet they also have beena valuable source of research in human and social sciences.The value of these traces is related to the knowledge theyprovide, which is the focus of a series of disputes. This articleconfronts two models of knowledge in this area, which havedierent implications for a policy of the digital traces. The rstmodel, that is present in commercial and police apparatus,conceives the trace as an evidence linked to individuals and/or behavioral paerns. The second one, which is the mainobject of our interest and inspired by the actor-network theory,understands the traces as inscriptions of actions that allow usto describe the formation of sociotechnical collectives.K:Digital Traces; Actor-network theory; Knowledge.

  • 7/26/2019 Fernanda Bruno Ok

    2/24

    Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 682

    F. Bruno Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Cincias da Comunicao

    A personalidade deve ser procurada onde o esforo pessoal menosintenso.

    Giovanni Morelli

    Em meados dos anos 1980, um episdio at ento menor da literatura em cinciashumanas e sociais, ganha relativa notoriedade no meio acadmico com ohistoriador Carlo Ginzburg (1989). O episdio se passa entre 1874 e 1876, quando umasrie de artigos sobre pintura italiana foi publicada numa revista alem, assinados porum desconhecido estudioso russo Ivan Lermolie. Os artigos propunham um novo

    mtodo para atribuio de autoria de quadros, e suscitaram na ocasio fortes debates ereaes entre os historiadores da arte. Anos mais tarde, o italiano Giovanni Morelli serevela o verdadeiro autor destes artigos que, sob o heternimo russo, elaboravam o queveio a ser conhecido na histria da arte como o mtodo morelliano. O mtodo visavadiferenciar, no campo da pintura, originais e cpias, de modo a identicar a verdadeira

    autoria do quadro. A sua singularidade consistia em uma estratgia atencional einterpretativa distinta daquela, ento, corrente. Era preciso, dizia Morelli, abandonar

    o foco nos traos mais manifestos e centrais do quadro, aqueles que supostamenteconteriam a assinatura do pintor: o sorriso nos quadros de Leonardo da Vinci, ouos olhos voltados para o cu nos quadros de Perugino, entre outros.

    A ateno do examinador deve, ao contrrio, voltar-se para detalhes menores enegligenciveis, nos quais a inuncia da escola do pintor menos marcada. Assim,

    a forma dos dedos e unhas, dos lobos de orelhas e outros detalhes sem glria, seriampistas muito mais valiosas quanto autenticidade de um quadro do que os traoscannicos da escola ou do pintor. Morelli cataloga, desta forma, as orelhas prprias

  • 7/26/2019 Fernanda Bruno Ok

    3/24

    Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 683

    F. Bruno Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Cincias da Comunicao

    a Boticelli e Signorelli, por exemplo; traos presentes nos originais, mas ausentes nascpias.

    Embora seu mtodo tenha tido sucesso na atribuio de quadros nos principais

    museus da Europa, foi bastante criticado at cair em descrdito. O interesse pelomtodo foi renovado muito mais tarde, notadamente a partir de Wind (1972), que viunele um exemplo da atitude moderna frente obra de arte, mais atenta aos pormenoresque ao conjunto. De acordo com este autor:

    Os livros de Morelli tm um aspecto bastante inslito se comparados

    aos de outros historiadores da arte. Eles esto salpicados de ilustraes

    de dedos e orelhas, cuidadosos registros das mincias caractersticas quetraem a presena de um determinado artista, como um criminoso trado

    pelas suas impresses digitais. Qualquer museu de arte estudado por

    Morelli adquire imediatamente o aspecto de um museu criminal []

    (Wind, 1972 apud Ginzburg, 1989, p. 145)

    Mas o mtodo morelliano interessa a Ginzburg no tanto pelo seu papel na histria

    da arte, mas porque ele seria uma das matrizes de um paradigma que, segundo esteautor, comea a se estabelecer nas cincias humanas nas dcadas de 1870-80, baseadona ideia de que rastros por vezes innitesimais permitem apreender uma realidade

    mais profunda. Trata-se do paradigma indicirio, que teria, alm de Morelli, outrosrepresentantes ilustres como Freud e o Sherlock Holmes, de Conan Doyle. Da mesmaforma que Morelli busca detalhes relativamente marginais do quadro, Holmes buscaem cinzas de cigarro, pegadas na lama e outros indcios pouco perceptveis s pistas daautoria do crime. Freud, por sua vez, prope como um dos eixos de sua hermenutica,

  • 7/26/2019 Fernanda Bruno Ok

    4/24

    Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 684

    F. Bruno Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Cincias da Comunicao

    a ideia de que o inconsciente se revela, sobretudo, nos resduos, nos elementosmarginais. Chega a citar o mtodo morelliano, armando como este similar tcnica

    da psicanlise (Freud, 1914).

    Em todos estes casos, est em jogo, segundo Ginzburg, a constituio de um saber eum mtodo interpretativo que toma o rastro, o resduo, o negligencivel, como ndicee via mestra para realidades complexas ou profundas. Este paradigma indicirio queemergiu silenciosamente no mbito das cincias humanas no sculo XIX (Wind,1972 apud Ginzburg, 1989, p. 143) teria, ainda conforme o autor, razes muito maisantigas. O patrimnio cognitivo de interpretao dos rastros teria sido legado pornossos antepassados caadores que, por milnios aprenderam a reconstituir as formase deslocamentos das presas invisveis a partir de seus rastros selvagens.

    Mas, no que este saber to antigo quanto moderno nos interessa? Curiosamente,o que renova o interesse por um saber dos rastros uma paisagem recente e distantedessas duas heranas: aquela das pegadas que deixamos nas redes de comunicaodistribuda, especialmente na internet, onde toda ao deixa um rastro potencialmenterecupervel, constituindo um vasto, dinmico e polifnico arquivo de nossas aes,escolhas, interesses, hbitos, opinies, etc. Esses numerosos rastros digitais tm feito,como se sabe, a fortuna das empresas de rastreamento e minerao de dados para ns

    comerciais e publicitrios1

    .Dispositivos de vigilncia tm igualmente visto nestes rastros uma valiosa base dedados para o controle (Bruno, 2006; 2008).

    Entretanto, alm e mesmo na contramo deste comrcio e desta polcia dos rastrosdigitais, h a uma ocasio para se recolocar o problema da produo de um saberdos rastros. Este texto nasce desta ocasio e explora o problema a partir das pistasencaminhadas pela teoria ator-rede (TAR), especialmente pelo trabalho de BrunoLatour (2007). A quantidade e a qualidade dos rastros digitais, hoje presentes na

  • 7/26/2019 Fernanda Bruno Ok

    5/24

    Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 685

    F. Bruno Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Cincias da Comunicao

    internet oferecem s cincias sociais, segundo este autor, a possibilidade de renovartanto suas metodologias quanto suas abordagens terico-conceituais. Tais cincias

    jamais estiveram diante de uma riqueza to grande de dados: rastros subjetivos,comportamentais, lingusticos, nanceiros, bem como interaes, associaes e conitos

    de diversas escalas tornam-se signicativamente mais fceis de serem descritos e

    retraados. Ao mesmo tempo, a natureza desses rastros traz novas inquietaes. Detoda forma, talvez no seja exagero dizer que experimentamos algo prximo ao queGinzburg vislumbrou no sculo XIX: o rastro (agora digital) como via privilegiada deconhecimento nas cincias humanas e sociais. Contudo, no lugar de reconhecermos aum paradigma, destacamos o quanto a produo de conhecimento dos rastros digitais um terreno de embates.

    O que se tornam os rastros digitais quando vistos sob a perspectiva da teoria ator-rede? A pergunta j indica a polifonia em jogo. Como apontamos, eles podem falara lngua do comrcio, da publicidade ou da vigilncia. Mas tambm podem falara lngua da composio de coletivos sociotcnicos, nos termos da TAR. A questo,assim, a de como fazer falar os rastros digitais segundo esta ltima perspectiva. Eisa disputa colocada.

    A ao humana e seus rastrosToda ao humana, bem o sabemos, pode deixar atrs de si rastros de diferentesqualidades. O estatuto desses rastros difcil de denir em termos pretensamente

    universais, uma vez que o rastro uma espcie de quase-objeto (Serres, 1991) e situa-se num limiar entre presena e ausncia; visvel e invisvel; durao e transitoriedade;memria e esquecimento; voluntrio e involuntrio; identidade e anonimato, etc.Uma lista bastante incompleta de aspectos importantes incluiria os seguintes postu-lados:

  • 7/26/2019 Fernanda Bruno Ok

    6/24

    Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 686

    F. Bruno Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Cincias da Comunicao

    a) Rastros so mais ou menos visveis. A visibilidade dos rastros no uniforme,mas mltipla, e implica tcnicas distintas de visualizao, as quais, por suavez, interferem no modo de existncia do rastro. Um trao a lpis e uma im-presso digital numa folha de papel, por exemplo, so rastros de visibilidadesdistintas.

    b) Rastros so mais ou menos durveis, persistentes. Oscilam desde a transitoriedadedas pegadas na areia, ou a durao instvel das pedrinhas com que O PequenoPolegarmarca seu caminho de volta para casa, at persistncia das inscriespicturais nas grutas Chauvet-Pont dArc, que guardam esse gesto h 32 mil anos.Espessuras temporais variveis, portanto.

    c) Rastros so mais ou menos recuperveis. Prestam-se memria e ao arquivo de

    modos distintos. Um telefonema, uma carta, um e-mail, um smstm graus derastreabilidade diferenciados.

    d) Rastros so mais ou menos voluntrios ou conscientes. Posso, por exemplo,inscrever deliberadamente a minha ao num objeto ou texto que produzo. Ou,posso deixar sem me dar conta, rastros de minha presena em lugares, coisas,corpos.

    e) Rastros so mais ou menos atrelados identidade daqueles que os produzem.

    Como bem nos mostrou Morelli, onde supostamente o rastro explicita a autoria,pode vigorar o falso ou o heternimo. J onde rastros annimos cairiam naindiferena, pode residir o ndice certeiro da identidade.

    f) Rastros envolvem necessariamente uma inscrio material mais ou menosrecupervel por outrem. Neste sentido, remetem ao coletivo.

    Estes postulados intimamente atrelados uns aos outros mostram o carterfragmentrio, ambguo e polissmico dos rastros de uma forma geral. Os rastrosdigitais tm, por sua vez, algumas especicidades.

  • 7/26/2019 Fernanda Bruno Ok

    7/24

    Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 687

    F. Bruno Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Cincias da Comunicao

    Rastros digitaisUm rastro digital o vestgio de uma ao efetuada por um indivduo qual-quer no ciberespao2. H, certamente, rastros no ciberespao que no derivam

    de aes realizadas por indivduos, mas de processos automatizados. Estamosconsiderando neste texto apenas rastros que envolvem direta ou indiretamente aao humana, ainda que esta seja associada a inmeros agentes maqunicos e nohumanos.

    As particularidades dos rastros digitais no devem ser entendidas comocaractersticas exclusivas. Muitas delas so partilhadas por outros tipos de rastros,mas encontram na inscrio digital, especialmente na internet, sua intensicao. Uma

    srie de algumas particularidades conteria:

    a) No se pode no deixar rastro. Comunicar deixar rastroAinda que o rastro seja uma virtualidade de toda ao, ele nem sempre se atualiza. Nainternet, diferentemente, o rastro acompanha necessariamente toda ao, salvo quemedidas para evit-lo sejam tomadas. O que se torna potencial a sua recuperao.Deste modo, alm ou aqum das informaes pessoais que divulgamos voluntariamentena rede (posts, dados de perl, conversaes no Twier ou no Facebook) toda ao

    navegao, busca, simples cliques em links, downloads, produo ou reproduo deum contedo deixa um rastro, um vestgio mais ou menos explcito, suscetvel deser capturado e recuperado.

    O ato comunicacional ganha uma peculiaridade na internet. No apenas aces-samos, trocamos, produzimos contedos e informaes diversas, mas deixamosum rastro dessa comunicao. Comunicar deixar rastro. A mxima da pragmticano podemos no comunicar pode ser reescrita: no podemos no deixarrastros.

  • 7/26/2019 Fernanda Bruno Ok

    8/24

    Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 688

    F. Bruno Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Cincias da Comunicao

    b) Arquivo por padroHistoricamente, a produo da inscrio, do registro implicava, na maioria das vezes,um gesto adicional, que se somava ao ato comunicacional. Quando o rastro passa a serconsubstancial ao, como na internet, temos uma mquina avessa ao esquecimento, aum s tempo comunicacional e mnemnica. Um check-inno Foursquare3, por exemplo, a ao de comunicar a presena num local e, ao mesmo tempo, a inscrio de seurastro. Se historicamente entende-se o esquecimento como o efeito mais natural e oregistro como gesto suplementar, vivemos na rede o inverso: para que o esquecimentose produza, preciso uma ao deliberada. O arquivo, por sua vez, est asseguradopor padro.

    c) Rastros digitais so persistentes e facilmente recuperveisNem todo rastro rastrevel. Naturalmente, este princpio aplica-se tambm internet,mas os rastros digitais so relativamente mais persistentes e facilmente recuperveis.Isto se deve, em parte, diminuio relativa do intervalo entre a ao, a inscrio dorastro e sua recuperao. H, mesmo, a possibilidade de monitorar e capturar o rastroem tempo real, de modo a possibilitar vias diferenciadas de recuperao. O GoogleInsights, por exemplo, permite que recuperemos os rastros de busca de termos em

    perodos especcos, visualizando a sua frequncia numa linha do tempo.

    d) A topologia e a visibilidade dos rastros digitais so multiformesNossas pegadas digitais tm uma topologia complexa, constituindo uma cascatade inscries. Num estrato mais supercial e visvel, h a comunicao declarativa

    e sua respectiva inscrio: o que publicamos ou um aplicativo que utilizamos, etc.Concomitantemente, h informaes que emanam desse primeiro estrato e geramrastros de segunda, terceira, quarta ordens. Vestgios que se inscrevem em nosso

  • 7/26/2019 Fernanda Bruno Ok

    9/24

    Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 689

    F. Bruno Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Cincias da Comunicao

    navegador e nos sites que visitamos (cookies;beacons), contendo o registro de nossanavegao, so exemplos dessas outras camadas de rastros, menos visveis. Marcasquase invisveis derivam de aes ou comunicaes que muitas vezes nem sopercebidas como tais. Quando uso um aplicativo no Facebook, por exemplo, possoquerer apenas me divertir e no necessariamente criar um rastro que indica uminteresse que venha alimentar os bancos de dados publicitrios. Neste contexto, somosemissores no apenas no sentido declarativo; emanamos pacotes de informaoem cascata que alimentam bancos de dados de visibilidade varivel. Da deriva umaextrema ambiguidade quanto aos aspectos voluntrios e involuntrios do rastrodigital. Quanto mais se deseja inscrever presenas na rede, mais rastros involuntriosso deixados.

    O rastro em disputa: polcia, comrcio, conhecimento e polticaAinda que seja possvel identicar atributos prprios aos rastros digitais, o seu estatuto

    permanece em disputa e no pode, de fato, ser denido de antemo. Tal disputa

    atravessada por inmeros interesses, saberes, prticas e, um dos focos de embateconsiste no tipo de conhecimento que se pretende extrair desses rastros. Este tambm o nosso foco de interesse. Colocaremos em contraste duas perspectivas. Cada uma

    delas faz falar os rastros de modos distintos, implicando diferentes concepes darede onde eles se produzem. A primeira concebe o rastro como ndice, prova ouevidncia, compreendendo a rede como aparato de captura. Tratarei brevemente destaperspectiva, voltada para procedimentos de vigilncia e controle de indivduos egrupos (Bruno, 2006; 2008). A segunda perspectiva, objeto maior de nossa ateno,

    baseada na TAR, concebe os rastros como inscries de aes, sendo a rede aquilo quefaz proliferar mediadores. Se na primeira o conhecimento dos rastros opera segundocritrios de identicao, prova e previso, colocando o acento sobre o indivduo; na

  • 7/26/2019 Fernanda Bruno Ok

    10/24

    Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 690

    F. Bruno Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Cincias da Comunicao

    segunda o conhecimento dos rastros opera segundo critrios de descrio e mediao,colocando o acento sobre o coletivo.

    a) A polcia e o comrcio dos rastros digitais: rede como capturaComo se sabe, o monitoramento dos rastros pessoais vem se tornando uma rotinados servios, sites, redes sociais e plataformas de produo e compartilhamentode contedo na internet. Imensas bases de dados de nossos modos de vida socotidianamente elaboradas de forma distribuda segundo mltiplos propsitos:comrcio, entretenimento, marketing, publicidade direcionada, consultoria poltica,recrutamento de pessoal, desenvolvimento de produtos e servios, inspeo policiale estatal, etc.

    O valor desses rastros consiste no conhecimento que eles supostamente possibilitam.Apesar dos mltiplos usos, h elementos comuns quanto ao modelo de conhecimentoem jogo nesses casos. Em primeiro lugar, os rastros so interrogados prioritariamenteem seu carter indicial. Toda a ambiguidade e polissemia so deixadas de ladoem nome de uma inspeo que faz falar o rastro como evidncia de um ato oucaracterstica de um indivduo. Leis como a Hadopi4, por exemplo, buscam rastrosque atestem que o internauta fez downloadsde arquivos, violando direitos autorais.

    Instncias policiais, por sua vez, buscam indcios de crimes em rastros deixados narede. Boa parte do rastreamento efetuado por instncias de segurana e/ou jurdicasquer atrelar o rastro ao indivduo, fazendo-o falar como ndice que leva identicao

    daquele que o gerou.Fora do plano policial e securitrio, h ainda outro modo de fazer falar o rastro

    digital como evidncia. o caso do comrcio, do marketing e da publicidadedirecionada. O rastreamento dos vestgios de navegaes, comunicaes e consumona internet constituiria, segundo esta perspectiva, uma via privilegiada de acesso aos

  • 7/26/2019 Fernanda Bruno Ok

    11/24

    Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 691

    F. Bruno Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Cincias da Comunicao

    mais autnticos desejos e traos de personalidade dos indivduos. A suposio deautenticidade contida nestes rastros est atrelada ideia de que, uma vez emanandodo prprio uxo das aes cotidianas, eles seriam vestgios colhidos in natura, e,por isso, mais conveis, uma vez que o ltro da conscincia estaria mais relaxado.

    Servios e algoritmos dedicam-se ao monitoramento e tratamento desses rastros embusca do conhecimento do que se designa, nesse setor, por on-line body languagedosusurios da rede.

    Parte deste conhecimento alinha-se s pesquisas recentes sobre big data, comaplicaes em vrios domnios. Como o prprio termo indica, estamos diante de umanova grandeza informacional que envolve tanto o aumento na capacidade de coleta,estocagem e tratamento, quanto a emergncia de um tipo de saber proveniente dessas

    imensas quantidades de dados, as quais revelariam regras inscritas nas correlaessutis entre eles (Anderson, 2008).

    A pretenso de objetividade tambm est atrelada ao carter automatizado dotratamento desses rastros que no seriam submetidos interpretao humana, mas aprocedimentos algortmicos. Estes, por sua vez, revelam padres de comportamento,personalidade, sociabilidade, desejo que no so pr-denidos (top down), mas queemergem o prprio cruzamento dos dados (boom-up). Categorias que expressariam

    um grau de objetividade mais agudo que quaisquer outras teorias, observaes ouinterpretaes permitiriam.O saber em jogo pretende, ainda, ser proativo. As imensas quantidades de

    rastros heterogneos constituem, segundo esta perspectiva, gigantescos arquivoscom capacidade de projetar padres de comportamento e, consequentemente,intervir sobre o curso das aes dos indivduos, ofertando escolhas e caminhos queincitem ou evitem, conforme o caso, o que se projetou. A evidncia supostamenterevelada no rastro digital no tem, neste caso, a pretenso de ser uma prova ex post

  • 7/26/2019 Fernanda Bruno Ok

    12/24

    Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 692

    F. Bruno Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Cincias da Comunicao

    facto, mas um vetor que permitiria agir antes do fato, ou antes da ao, de modo aorient-la.

    H, claramente, a construo de um modelo de saber cujo argumento de legitimaoreside nas supostas objetividade e autenticidade prprias coleta desses rastros emtempo real, in natura, e ao tratamento automatizado. Argumento frgil e questionveltanto do ponto de vista cognitivo, quanto poltico, pois, supe que tais procedimentosdispensam mediaes (e suas consequentes tradues), atribuindo ao rastro umestatuto de evidncia.

    b) O rastro digital segundo as pistas da teoria ator-rede: cognio e polticaNa contracorrente da linguagem policial e comercial, outros modos de fazer falar os

    rastros digitais so, entretanto, possveis. Esta imensa e dinmica mina de dadosdeve ser, tambm, uma ocasio para se experimentar estratgias cognitivas e polticasdiferenciadas. Exploramos, nesta direo, pistas encaminhadas pela teoria ator-rede.

    La mdiation numrique stale comme un immense papier-carboneorant aux sciences sociales plus de donnes quelles nen ont jamaisrves. Grce la traabilit numrique, les chercheurs ne sont plus

    obligs de choisir entre la prcision et lampleur de leurs observations:

    il est dsormais possible de suivre une multitude dinteractions et,

    simultanment, de distinguer la contribution spcifque que chacune

    apporte la construction des phnomnes collectifs. Nes dans une poque

    de pnurie, les sciences sociales entrent dans un ge dabondance.

    (Latour e Venturini, 2010, pp. 5-6).

  • 7/26/2019 Fernanda Bruno Ok

    13/24

    Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 693

    F. Bruno Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Cincias da Comunicao

    Os autores apontam, no trecho acima, ao menos duas grandes oportunidadespara as cincias humanas e sociais. A primeira concerne a um ganho quantitativo.Estas cincias contam hoje com uma rica e indita fonte de dados, outrora de difcilacesso. Mas no se trata apenas de um maior volume de dados disponveis, mas dapossibilidade de renovar a leitura mesma dos processos sociais.

    Por que a rastreabilidade digital e o conhecimento que dela deriva interessamespecialmente TAR? A resposta implica um breve parntese sobre alguns conceitose princpios desta abordagem. Em primeiro lugar, preciso entender o estatuto dorastro a partir da noo de ao e seu papel na redenio do social, proposta por

    Latour. Esta redenio implica abrir mo do modelo explicativo vigente em grande

    parte da sociologia: aquele que postula a sociedade ou o social como um domnio

    ou substncia especial da realidade, capaz de explicar porque processos e seres semantm juntos. Decorre dessa concepo essencialista ou substancialista, a ideia deque a sociedade ou qualquer outra grande estrutura o poder, o mercado, o capital,o contexto, o simblico o que explica uma srie de processos ditos sociais.Latour provoca esta tradio armando: o social no existe! O que isto quer dizer?

    Sumariamente, signica que o social no o que explica, mas o que merece ser

    explicado. A provocao endereada a boa parte da sociologia, que teria se poupado

    do trabalho fundamental de explicar como se constri o social, transformando-onuma espcie de grande estrutura que tudo explica. Na esteira da TAR, Latourconvida a inverter os termos e retomar o trabalho de explicar como se tece osocial.

    precisamente para aqueles que desejam efetuar este trabalho que a rastreabilidadedigital pode ser interessante. Pois, em linhas muito gerais, tal trabalho consisteem retraar as aes que mltiplos e heterogneos atores efetuam, descrevendo asassociaes e redes que se formam na composio de um coletivo qualquer. O social

  • 7/26/2019 Fernanda Bruno Ok

    14/24

    Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 694

    F. Bruno Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Cincias da Comunicao

    aquilo que emerge dessas aes, associaes e redes, e no algo que paira sobreou sob elas. O trabalho de descrio do social , assim, um trabalho de formiga,

    brinca Latour, referindo-se ao signicante formado pelo acrnimo da TAR na lngua

    inglesa (Actor Network Theory, ou ANT, tambm formiga em ingls). Implica assimuma perspectiva rasteira, voltada para lugares concretos, ou oligptica, termoproposto em contraste com a perspectiva panptica, que deseja tudo ver (Latour,2007).

    Esta descrio deve levar em conta uma srie de princpios da TAR, retomaremosapenas os diretamente atrelados nossa argumentao.

    a) Nenhum critrio substancialista dene de antemo o que um ator;

    b) A ao nunca individual, e sim coletiva e distribuda;

    c) Quando h ao, h rastro;d) O trabalho de descrio das redes implica seguir os rastros das aes, sendo a

    um s tempo cognitivo e poltico.O primeiro princpio remete heterogeneidade dos modos de existncia que

    compem o social. Como se sabe, a TAR reivindica um social de composio hbrida,entendido como coletivo sociotcnico de entidades humanas e no humanas. Taisentidades no so, por algum atributo especial, atores (actantes). Um actante no se

    define por sua natureza (humana ou no humana; animada ou inanimada), mas pelomodo como age. V-se que o actante se diferencia do sentido sociolgico clssico deator social, privilgio do domnio humano5.

    Agir, segundo a TAR, produzir uma diferena, um desvio, um deslocamentoqualquer no curso dos acontecimentos e das associaes. Mediao e traduo sotermos que buscam denir esta ao que transformao, traio. Os dois termos

    implicam deslocamentos de objetivos, interesses, dispositivos, entidades, tempos,lugares. Implicam desvios de percurso, criao de elos at ento inexistentes e, que de

  • 7/26/2019 Fernanda Bruno Ok

    15/24

    Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 695

    F. Bruno Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Cincias da Comunicao

    algum modo, transformam os elementos imbricados. Qualquer entidade que produzauma diferena no curso de uma situao deve ter o estatuto de actante, participandoassim da composio de um coletivo.

    Esta composio deve ser descrita segundo a noo de rede, ou seja, como umencadeamento de aes onde cada participante tratado, em todos os aspectos,como mediador (Latour, 2007). Um mediador algo que age transformando;diferentemente do simples intermedirio, que transporta sem alterar. Um simplesquebra-molas, diz Latour (1994), opera uma transformao decisiva ao nos fazer agircomo seres morais (diminuindo prudentemente a velocidade), ainda que estejamosapenas interessados em preservar a suspenso dos nossos carros. As cadeias deaes e associaes que constituem as redes no so, assim, meros veculos por onde

    h transporte de informao, sentido, objeto sem transformao. Ao contrrio,as redes so aquilo mesmo que emerge do trabalho de mediao e traduo deatores heterogneos. Em sua composio, h uma srie de disputas, negociaes,controvrsias que redenem continuamente os atores, suas aes, associaes, bem

    como, a prpria rede. Assim, as redes no existem como um objeto que estaria aantes de haver ao, ou que subsiste aps cessarem as aes. Topologicamente, a redese dene por suas conexes, seus pontos de convergncia e bifurcao. Ela uma

    lgica de superfcies, denida por seus agenciamentos internos e no por seus limitesexternos (Moraes, 2000). Da a importncia de no se confundir a noo de redeproposta pela TAR com qualquer representao ou objeto tcnico especco. Uma rede,

    lembra Latour, menos a coisa descrita, do que um modo de descrio. E esta descrio menos a de uma coisa estabilizada, do que a de um coletivo em seu movimento deformao.

    O segundo princpio que arma a natureza coletiva e distribuda da ao

    permite compreender melhor o carter da rede. A ao jamais individual ou local.

  • 7/26/2019 Fernanda Bruno Ok

    16/24

    Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 696

    F. Bruno Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Cincias da Comunicao

    Nunca agimos ss, quando agimos, outros passam ao e, se agimos, porque fomosacionados por outros. Da o termo contnuo ator-rede. A ao sempre distribuda, emrede, e no h nenhum princpio essencialista capaz de estabelecer, de antemo, queatores sero mobilizados para a construo de uma rede.

    Neste ponto, Latour (2007) retoma uma das intuies fundadoras das cinciashumanas e sociais na Modernidade: a de que no somos senhores de nossa prpriaao, seja porque nunca agimos ss (outros agem em ns), seja porque nuncasomos plenamente conscientes de nossas aes, seja ainda porque nossas aes nosultrapassam e produzem efeitos inesperados, que nos escapam. Sabemos o quantoa psicanlise, a antropologia, a sociologia, a lingustica retiraram do sujeito e daconscincia o centro da ao, multiplicando os agentes. Contudo, segundo Latour,

    a potencialidade desta intuio rapidamente sufocada pela invocao de forascomo o social, o inconsciente, a estrutura, o simblico que sobredeterminariam osujeito e suas aes. Retomar esta intuio em sua radicalidade supor que a ao sempre distribuda e subdeterminada, de modo que devemos manter sempre umamargem de incerteza em relao origem de qualquer ao. Quando agimos, devemosperguntar: quem mais age ao mesmo tempo que ns? Quantas entidades invocamos?Como no fazemos jamais o que queremos?

    Estas so tambm as questes que se colocam quando se trata de explicar como asredes e coletivos sociotcnicos se constituem. Explicao, anal, que dene a tarefa daTAR: seguir as coisas atravs das redes em que elas se transportam, descrev-las emseus enredos (Latour, 2004, p. 397). Mas como seguir as coisas? Pelos seus rastros.Chegamos ao terceiro e ao quarto princpios. Quando h ao, h rastro. Quando seage, quando se produz uma diferena, produz-se um rastro que pode ser recuperado,ainda que estes rastros sejam intermitentes (Latour, 2007). Uma das tarefas de descriode como as redes e coletivos sociotcnicos se constituem, consiste em retraar os rastros

  • 7/26/2019 Fernanda Bruno Ok

    17/24

    Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 697

    F. Bruno Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Cincias da Comunicao

    das aes, tradues, associaes inscritos em documentos, arquivos, notas e registrosde toda ordem.

    Eis porque a rastreabilidade digital pode ser interessante, se explorada segundo aperspectiva da TAR. A rastreabilidade das aes de inmeros atores nas redes digitaisde comunicao torna extremamente mais simples a tarefa de se retraar a tessituramesma dos coletivos sociotcnicos. Os rastros digitais, fruto de aes, interaes edeclaraes de toda sorte, alm de vastos e diversicados, podem ter sua trajetria

    retraada de forma relativamente simples, se comparada aos meios tradicionaisde recuperao de associaes constitutivas de fenmenos sociais. Instrumentosconvencionalmente custosos e lentos (questionrios, enquetes, clculos estatsticos)do lugar a ferramentas mais geis e simples (sistemas automatizados de coleta,

    registro e visualizao), oferecendo s cincias sociais no apenas uma riqueza dedados, mas a possibilidade de observar e descrever os processos sociais segundo umaperspectiva que dispense as grandes parties com as quais a sociologia classicamentetrabalhou: micro e macro social, interaes locais e estruturas globais, individual ecoletivo, subjetivo e social. Uma das apostas da teoria ator-rede seguir a linha demontagem dos coletivos sociotcnicos dispensando essas grandes parties tem seuflego renovado pelas redes digitais de comunicao. Boa parte da sociologia sups

    que suas parties eram incontornveis, de modo que era sempre preciso escolherobservar, seja o pequeno mundo local das interaes face a face dos indivduos esuas subjetividades, seja o grande aparato das estruturas, das dimenses coletivas esociais.

    Estas esferas nunca existiram, de fato, como estratos diferenciados da realidade.O que as distancia a extrema diculdade de se acompanhar as aes locais e as

    conexes que constituem os coletivos, tornando a passagem de uma escala a outraextremamente difcil de rastrear e retraar. A conexo ator-rede se faz em toda parte,

  • 7/26/2019 Fernanda Bruno Ok

    18/24

    Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 698

    F. Bruno Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Cincias da Comunicao

    mas quando se trata de descrev-las e retra-las, os esforos so considerveis. Oque as redes digitais favorecem precisamente esta rastreabilidade, de modo que sepode, ao mesmo tempo, seguir uma srie de aes e associaes locais e ver como cadauma delas participa da construo de coletivos. A passagem de uma escala a outra se

    torna facilitada: possvel manter simultaneamente o foco (local) e a amplitude daobservao, como num movimento de zoom.

    Tomemos o exemplo abaixo, uma imagem de uma srie de infogrcos interativos

    sobre a disseminao de rumores no Twier na ocasio dos protestos de agosto de

    2011 em Londres (Fig. 1). Esta imagem se dedica especicamente ao rumor de que os

    protestos tinham chegado ao zoolgico de Londres, ocasionando a soltura de animaispela cidade. Navegando pelo infogrco, visualizamos tanto os agregados globais

    resultantes das associaes entre os tutesconrmando (verde), contestando (vermelho),questionando (amarelo) ou comentando (cinza) os rumores quanto s aes maislocais, como os tutesespeccos mais disseminados no seio de cada agregado (clicandonas molculas dentro de cada clula, possvel visualizar os tutesparticulares,reproduzidos na parte de baixo do canto esquerdo e abaixo da imagem dos agregados).Ainda possvel acompanhar a trajetria do rumor em uma linha do tempo (parte decima da imagem), desde seu surgimento at a sua extino. O exemplo ilustra bemcomo a rastreabilidade digital permite retraar a formao de um fenmeno coletivo,navegando numa paisagem de dados que no supe dois nveis o elementar e osistmico; o micro e o macro; o individual e o estrutural mas um nico nvel to planoquanto possvel, por onde se transita, sem sair da superfcie, do ator sua rede evice-versa. A ideia, cara TAR, de que quanto mais se deseja localizar um ator, maisse tem que estender a sua rede (Law, 1999), torna-se uma experincia relativamentecomum neste exemplo e em outros tantos similares na internet e nas bases de dadosdigitais.

  • 7/26/2019 Fernanda Bruno Ok

    19/24

    Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 699

    F. Bruno Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Cincias da Comunicao

    Figura 1 http://visual.ly/riot-rumors

    A partir desta perspectiva, podemos explorar os rastros digitais no maiscomo evidncias atreladas identicao de indivduos ou previso de padres

    comportamentais, tal como querem a polcia e o comrcio. Outro modelo de

  • 7/26/2019 Fernanda Bruno Ok

    20/24

    Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 700

    F. Bruno Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Cincias da Comunicao

    conhecimento est proposto: os rastros digitais podem falar agora infra-linguagemda fabricao de coletivos, redes, mundos, permitindo compreender e descrever estafabricao em seu movimento. Concebidos como inscries de aes, os rastros quedeixamos na internet so interrogados quanto aos efeitos que produzem na formao

    de coletivos. As redes onde eles se inscrevem no so entendidas como a teia que oscaptura, mas a trama que emerge das aes que lhes deram origem e que as modicam

    em retorno. Descrever essas tramas produzir um conhecimento sobre um fenmenosocial qualquer e, ao mesmo tempo, reinventar um espao poltico.

    Para brincar um pouco com a sonoridade das palavras em jogo, passamos de umapolcia para uma poltica dos rastros digitais. Eis o ltimo ponto a tratar. Por que esteconhecimento tambm uma poltica dos rastros digitais? Em termos breves, porque

    descrever e retraar os rastros das aes que constituem as redes e coletivos tambmum meio de continuar a sua composio, ampliando tanto a margem de entidadesheterogneas que dela podem participar, quanto margem de ao que ela podedistribuir. Pois, uma rede o que faz proliferar os mediadores (Latour, 2007) e, assimcomo o social, jamais est plenamente acabada.

    Quando entendemos a tarefa da poltica como a composio progressiva deum mundo comum (Latour, 2007); quando entendemos que a composio de ummundo comum o trabalho mesmo de tessitura das redes de modo a ampliar osmodos de existncia que dela participam, distribuindo a ao e fazendo proliferar osmediadores; quando entendemos ainda que as redes no esto jamais acabadas, sendoelas menos a coisa descrita do que o processo de descrio, retraar os rastros digitaisque as compem uma tarefa simultaneamente cognitiva e poltica. O social, diriaLatour, se constitui precisamente nesses movimentos intermitentes, a que fazemossociedade, mundos. Antes de ser uma substncia estvel, o social isto que s se tornavisvel quando novas associaes so fabricadas.

  • 7/26/2019 Fernanda Bruno Ok

    21/24

    Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 701

    F. Bruno Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Cincias da Comunicao

    Tomemos um exemplo atual dessa emergncia do social e da possibilidadede retra-la segundo uma abordagem cognitivo-poltica via TAR: na ocasio dosacampamentos dos indignados nas praas da Espanha em 2011, uma srie dedispositivos foram criados para fomentar e organizar a participao nas reivindicaes,

    propostas e assembleias presenciais realizadas nas praas. Murais temticos ondepropostas polticas poderiam ser coladas; ardsias com a pauta das assembleias ereunies do dia; mapas da praa indicando os locais das atividades; caixinhas paradoaes em dinheiro; peties redigidas colaborativamente; varais com listas deendereos para contato e divulgao, entre outras tticas de ocupao e potencializaoda praa como espao pblico e poltico. Atravessando todas essas tticas, uma sriede outros dispositivos produzidos na internet propagava e traduzia as diversas aes

    das praas, ao mesmo tempo em que criavam novos rastros e associaes tecendo asconexes deste movimento nas ruas e nas redes digitais. O exemplo do Tweetometro(Fig. 2) especialmente interessante. O dispositivo foi criado para organizar e visualizarcom mais detalhes as votaes das propostas encaminhadas nas praas e no movimentode um modo geral. Ao fazer isso, possibilita ao mesmo tempo compreender (se nosdedicarmos a seguir e descrever com pacincia os rastros que ele atualiza) as diferentesfalas, aes e tradues em curso, e continuar o trabalho de composio da rede, isto, de distribuio das aes e de proliferao dos mediadores. Pois o Tweetometro, aotraduzir as aes e declaraes das praas empostse hashtagsno Twier, segundo umformato em que podem ser votados e visualizados comparativamente, possibilita umamudana de escala, tanto no mbito cognitivo, permitindo ver, descrever, organizar,comparar, rastrear algo que antes se encontrava difuso, quanto no mbito poltico,pois atua como um mediador que amplia o potencial de ao, deciso, negociaopara alm do aqui e agora das praas e retornando sobre elas. Alm disso, cria umacamada de inscrio de rastros digitais mais duradoura e recupervel, potencializando

  • 7/26/2019 Fernanda Bruno Ok

    22/24

    Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 702

    F. Bruno Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Cincias da Comunicao

    as possibilidades de pesquisa, reapropriao, difuso, discusso, contestao das aesque lhes deram origem.

    Figura 2 www.platoniq.net/yeswecamp/

  • 7/26/2019 Fernanda Bruno Ok

    23/24

    Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 703

    F. Bruno Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Cincias da Comunicao

    No mbito acadmico, um dos esforos nesta direo so as cartograas de

    controvrsias que utilizam massivamente dados disponveis na internet para mapearas disputas e toda a agonstica implicada na construo de fenmenos sociais 6. Paraser breve e concluir, ressaltando apenas um dos muitos aspectos em jogo, a ideia

    central utilizar a rastreabilidade digital tanto para descrever e tornar visvel ascontrovrsias que animam uma srie de fenmenos coletivos, quanto para ampliara participao pblica e poltica nestas controvrsias que, uma vez cartografadas, setornam sensorialmente, cognitivamente e politicamente mais prximas, ampliando amargem de participao de atores diversos.

    Est em jogo, nestes exemplos, uma expressiva distribuio da ao, pois trata-se sempre de fazer agir; e de agir politicamente, no tanto no sentido de atuar

    segundo uma causa poltica, mas no sentido de reverberar o poder de agir, traduzire transformar. Pois, agir, segundo a perspectiva que estamos desenhando aqui, precisamente fazer outros passarem ao. Voltamos questo que abre este texto:o que se tornam os rastros digitais quando vistos sob a perspectiva da teoria ator-rede? Que os rastros digitais que todos ns produzimos constituam mundos tocomuns quanto heterogneos e tenham outros destinos daqueles que lhes reservamas tecnologias de controle, eis a aposta que se lana aqui para a pesquisa e a polticaem cibercultura. l

    REFERNCIASANDERSON, Chris. The end of theory: the data deluge makes the scientic method obsolete. Wired Magazine,23 June 2008.

    BRUNO, Fernanda. Dispositivos de vigilncia no ciberespao: duplos digitais e identidades simuladas. RevistaFronteira, VIII, 2006.

    ______. Monitoramento, classicao e controle nos dispositivos de vigilncia digital. Revista FAMECOS, 36,2008.

  • 7/26/2019 Fernanda Bruno Ok

    24/24

    Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 704

    F. Bruno Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Cincias da Comunicao

    FREUD, Sigmund. O Moiss de Michelngelo. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1970. v. XII.

    GINZBURG, Carlo.Mitos, emblemas, sinais. So Paulo: Companhia das Letras, 1989.

    LATOUR, Bruno. Changer de socit, refaire la sociologie. Paris: La Dcouverte, 2007.

    ______. On Technical Mediation: Philosophy, Sociology and Genealogy). Common Knowledge, v. 3, n. 2,

    pp. 29-64, 1994.______. Por uma antropologia do centro (entrevista).Mana, v. 10, n. 2, 2004.

    LAW, John; HASSARD, John.(Ed.).Actor Network and Aer. Oxford: Blackwell, 1999.

    MORAES, Marcia. O conceito de rede na losoa mestia. Revista Informare, v. 6, n. 1, 2000.

    SERRES, Michel. O contrato natural. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.

    VENTURINI, Tommaso; LATOUR, Bruno. Le tissu social: traces numriques et mthodes quali-quantitatives, 2010.Disponvel em: .

    NOTAS1 Em pesquisa realizada em 2010 identicamos a presena de 362 rastreadores de dados de usurios (cookies,ash cookies e web beacons) em 5 sites da internet brasileira (Terra; UOL, Yahoo; Globo.com; YouTube) e de 295rastreadores em 2 redes sociais (Orkut e Facebook). Cerca de 68% desses rastreadores atuam no campo domarketing on-line. Cf. Bruno, F. et al. Social impacts of the use and regulation of personal data in Latin America.IDRC, no prelo.

    2 Neste texto, restringimos nossa anlise ao domnio da internet.3 .4 .5 O termo actante, emprestado da semitica, utilizado por Latour para destacar esta diferena de

    perspectiva. Neste texto, empregaremos os termos ator e actante de modo equivalente.6 Cf. .