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Eilen Meiksins Wood DEMOCRACIA CONTRA CAPITALISMO a renovação do materialismo histórico Tradução Paulo Cezar Castanheira BOITEMPO E D I T O R I A L

Ellen Wood Capitalismo Contra Democracia Trabalho e Democracia

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Ellen Wood - Ciência Política

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Page 1: Ellen Wood Capitalismo Contra Democracia Trabalho e Democracia

Eilen Meiks ins Wood

DEMOCRACIA CONTRA CAPITALISMO a r enovação do material ismo histórico

Tradução Paulo Cezar Cas tanhe i ra

BOITEMPO

E D I T O R I A L

Page 2: Ellen Wood Capitalismo Contra Democracia Trabalho e Democracia

Copyright ©Ellen Meiksins Wood, 1995

Copyright desta edição ©Boitempo Editorial, 2003

Título original: Democracy Against Capitalism

Cambridge, Cambridge University Press, 1995

Direitos adquiridos para o Brasil pela Boitempo Editorial

Tradução Paulo Cezar Castanheira

Revisão Sandra Regina de Souza

Maurício Balthazar Leal

índice remissivo Daniela Jinkings

Juliana Zannini

Renata Alcides

Capa Antonio Carlos Kehl sobre tela de C l y f f o r d Still, sem t í tu lo , 1951.

N a t i o n a l Gal le ry o f A r t , W a s h i n g t o n , D C

Diagramação Desenho Soluções Gráficas

Editora Ivana Jinkings

Editora assistente Sandra Brazil

Coordenação de produção Eliane Alves de Oliveira

Fotolitos OESP

Impressão Assahi Gráfica e Editora

ISBN 85-7559-008-1

Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada

ou reproduzida sem a expressa autorização da editora.

Ia edição: março de 2003

Tiragem: 2.000 exemplares

B O I T E M P O EDITORIAL

Jinkings Editores Associados Ltda.

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O TRABALHO E A DEMOCRACIA ANTIGA E MODERNA

Os gregos n ã o i n v e n t a r a m a escravidão, mas , em cer to s en t ido , i n v e n t a r a m o

t r a b a l h o l ivre. E m b o r a a escravidão t e n h a c h e g a d o a níveis sem p r e c e d e n t e s na

Gréc ia clássica, p a r t i c u l a r m e n t e em Atenas , não havia no m u n d o a n t i g o nada de

novo acerca do t r a b a l h o não- l iv re ou da relação en t r e s e n h o r e escravo. M a s o

t r a b a l h a d o r livre, c o m o status de c idadão n u m a c idade es t ra t i f i cada , especi f ica-

m e n t e o cidadão camponês, c o m a l i be rdade ju r íd i ca e po l í t i ca imp l í c i t a e a l ibera-

ção de várias f o r m a s de exp lo ração p o r coação direta dos d o n o s de te r ra ou dos

Es tados , era c e r t a m e n t e u m a f o r m a ç ã o d is t in t iva q u e ind icava u m a relação ún i ca

en t re as classes a p r o p r i a d o r a s e p r o d u t o r a s .

Essa f o r m a ç ã o ún i ca está no cen t ro de g r a n d e p a r t e do q u e carac ter iza a pól is

grega e e s p e c i a l m e n t e a d e m o c r a c i a a ten iense . Raros d e s e n v o l v i m e n t o s po l í t i cos

ou cu l tu ra i s em A t e n a s n ã o f o r a m de a l g u m a f o r m a a f e t ados p o r ela, desde os

con f l i t o s en t r e d e m o c r a t a s e ol igarcas nas t ransações da po l í t i ca d e m o c r á t i c a para

a clássica da f i losofia grega. As t rad ições pol í t icas e cu l tu ra i s da A n t i g u i d a d e clás-

sica q u e c h e g a r a m até nós estão, p o r t a n t o , i m b u í d a s do esp í r i to do c i d a d ã o t r aba -

l h a d o r e da v o n t a d e a n t i d e m o c r á t i c a q u e ele i n sp i rou e q u e i n f o r m o u os tex tos de

g r a n d e f i lósofos . A c o n d i ç ã o do t r a b a l h o no m u n d o oc iden t a l m o d e r n o , t a n t o na

teor ia q u a n t o na p rá t i ca , n ã o p o d e ser i n t e i r a m e n t e expl icada sem q u e se b u s q u e

na h is tór ia da A n t i g u i d a d e g r e c o - r o m a n a a d i spos ição d i s t in t iva de relações en t r e

as classes a p r o p r i a d o r a s e p r o d u t o r a s na c i d a d e - E s t a d o g r e c o - r o m a n a .

Ao m e s m o t e m p o , se a c o n d i ç ã o social e cu l t u r a l do t r a b a l h o no O c i d e n t e

m o d e r n o r e m o n t a à A n t i g u i d a d e clássica, t e m o s m u i t o a a p r e n d e r c o m a r u p t u -

ra rad ica l q u e , sob esse a spec to , separa o c a p i t a l i s m o m o d e r n o da d e m o c r a c i a

a t en i ense . Isso é v e r d a d e n ã o apenas no s e n t i d o óbv io de a e sc rav idão , d e p o i s de

um p a p e l r e n o v a d o e p r o e m i n e n t e na ascensão do c a p i t a l i s m o m o d e r n o , t e r

s ido e l i m i n a d a , mas t a m b é m no s e n t i d o de o t r a b a l h o livre, apesar de se t o r n a r

a f o r m a d o m i n a n t e , t e r p e r d i d o g r a n d e p a r t e do status p o l í t i c o e c u l t u r a l q u e

t i n h a na d e m o c r a c i a grega.

Essa a f i r m a ç ã o c o n t r a r i a não apenas a sabedor ia c o n v e n c i o n a l , mas t a m b é m a

op in i ão e rud i t a . N ã o se t ra ta s o m e n t e de haver algo p r o f u n d a m e n t e a n t i i n t u i t i v o

na p r o p o s i ç ã o de a evo lução das ant igas soc iedades escravagistas a té o cap i t a l i smo

liberal m o d e r n o ter s ido m a r c a d a pe lo dec l ín io do status do t r aba lho . Há t a m b é m

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DEMOCRACIA CONTRA CAPITALISMO

o fato de que o trabalho livre nunca teve a importância histórica geralmente atri-buída à escravidão no mundo antigo. Quando chegam a tocar na questão do trabalho e de seus efeitos culturais, os historiadores da Antiguidade dão prioridade absoluta à escravidão. E consenso geral que a escravidão foi responsável pela estag-nação tecnológica da Grécia e da Roma antigas. A associação de trabalho com escravidão, segundo esse argumento, produziu um desprezo geral pelo trabalho na cultura grega antiga. No curto prazo, a escravidão aumentou a estabilidade da polis democrática ao unir cidadãos ricos e pobres, mas causou no longo prazo o declínio do império romano — seja por sua presença (como obstáculo ao desenvol-vimento das forças produtivas) ou por sua ausência (à medida que o declínio na oferta de escravos impôs pressões terríveis sobre o Estado romano imperial). E assim por diante. Nenhum desses efeitos determinativos é atribuído ao trabalho livre. Nos parágrafos seguintes haverá uma tentativa de retomar o equilíbrio e considerar o que uma percepção diferente do trabalho na Antiguidade pode nos informar sobre seu equivalente no capitalismo moderno.

A D I A L É T I C A D E L I B E R D A D E E E S C R A V I D Ã O

Poucos historiadores teriam hesitado em identificar a escravidão como uma carac-terística essencial da ordem social da Grécia antiga, particularmente de Atenas. Muitos talvez afirmassem que a escravidão é, de uma forma ou de outra, a característica essen-cial e descrevessem a Atenas clássica como uma "economia escravagista", uma "socie-dade escravagista", ou como um exemplo do "modo escravagista de produção". Ainda assim, não há muito consenso quanto ao que significa caracterizar dessa forma a socie-dade ateniense, ou ao que se pretende explicar com tal caracterização.

Essas descrições não seriam tão problemáticas se soubéssemos que o grosso da produção grega foi realizada por escravos e que a divisão entre as classes apropriadoras e produtoras correspondia de forma mais ou menos transparente à divisão entre uma comunidade juridicamente definida de homens livres, especialmente os cida-dãos, e uma classe trabalhadora de escravos submissos. Mas, como hoje em geral se aceita que a produção ao longo da história grega e romana se baseava pelo menos numa proporção igual do trabalho livre e da escravidão, o papel da escravidão como chave da história antiga se torna uma questão mais espinhosa1,

1 Por exemplo, M. L Finley descreve a Grécia e Roma como "sociedades escra vagis tas", não porque a escravidão predominas-se sobre o trabalho livre, mas porque essas sociedades eram caracterizadas por "um sistema institucionalizado de emprego de trabalho escravo em grande escala tanto no campo quanto nas cidades" (Ancient Slavery and Modem Ideology, Londres, 1980, p. 67.) [Ed. bras.: Escravidão antiga e ideologia moderna. Rio de Janeiro, Graal, 1991.] G. E, M. de Ste Croix afirma que "embora não seja tecnicamente correto caracterizar o mundo grego (e romano) como economias escravagistas'" porque "a produção combinada de camponeses e artesãos livres excedeu em muito a dos produtores agrícolas e industriais não-Iivres durante todo o tempo na maioria dos lugares", ainda assim essa designação é apropriada porque a escravidão foi, segundo ele, o modo dominante de extração de excedentes ou de exploração (The Class Struggle in the Ancient Greek World,\ Londres, 1981, p. 133). Perry Anderson, em Passages from Antiqutty to Feudalismy Londres, 1974 [Ed, bras.: Passagens da antigüidade ao feudalismo. São Paulo, Brasiliense, 1987.], prefere manter o conceito marxista, "modo de produção escravagista", mas não por ter o trabalho escravo predominado na produção grega e romana, mas porque ele lança uma sombra ideológica sobre outras formas de produção. Ver também GARLAND, Yvon. Slavery in Ancient Greece,, Ithaca e Londres, 1988; edição revisada e ampliada de Les esclaves en Grèce, 1982, especialmente a conclusão> para uma consideração sobre conceitos como "modo de produção escravagista" como aplicado à Grécia antiga.

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O TRABALHO E A DEMOCRACIA ANTIGA E MODERNA

Atenas, o caso para o qual existe evidência mais substancial, oferece problemas particularmente difíceis. Ela é a polis grega que se ajusta da forma menos ambígua à descrição de uma "sociedade escravagista" e, ao mesmo tempo, a pólis mais de-mocrática, na qual a maioria dos cidadãos tinha de trabalhar para viver. Nesse sentido, o trabalho livre era a espinha dorsal da democracia ateniense. Não se pode nem mesmo dizer que nessa sociedade ainda essencialmente agrária a produção agrícola dependesse em grande parte do trabalho escravo. A extensão do trabalho escravo ainda é questão controversa2, mas não restam muitas dúvidas de que os pequenos proprietários que trabalhavam a própria terra eram o núcleo da produ-ção agrícola. Está fora de questão que nas grandes propriedades havia um estoque permanente, mas não muito grande, de escravos para o trabalho agrícola; mas as propriedades eram geralmente pequenas, e mesmo os proprietários ricos possuíam vários pequenos lotes espalhados, em vez de grandes unidades. Embora pouco se saiba sobre como se trabalhavam essas propriedades menores, oferecê-las a arren-datários ou a meeiros era um expediente mais prático do que empregar escravos. De qualquer forma, não existiam grandes plantações, enormes propriedades man-tidas por grupos de escravos alojados em galpões, como nos latifúndios romanos. Na época da colheita, em geral se empregava trabalho temporário assalariado, disponível durante o ano todo na forma de cidadãos sem propriedade ou peque-nos proprietários cujas terras próprias (ou arrendadas) eram insuficientes para sustentar suas famílias. Muita coisa ainda se desconhece, e provavelmente conti-nuará desconhecida, acerca do campo na Ática na Antiguidade clássica, mas uma coisa parece certa: o fazendeiro-camponês foi sua figura mais característica.

Os escravos eram mais importantes para a economia urbana, embora fossem raras as grandes manufaturas que empregavam muitos escravos. O cidadão arte-são talvez não tenha sido figura tão proeminente quanto o cidadão agricultor, mas certamente não era eclipsado pelos escravos. A escravidão aparecia em pratica-mente todo canto da vida ateniense, desde o trabalho mais humilde até o mais qualificado, dos escravos mineiros de Laureion até os arqueiros cíticos que ser-viam como uma espécie de força policial, de empregados domésticos a negocian-tes (um dos homens mais ricos de Atenas, o banqueiro Pasion, havia sido um desses escravos), professores e o que de mais próximo havia de um funcionário público; das condições mais servis até as relativamente independentes e privilegia-das. Mas havia apenas duas áreas da vida que, sabemos com relativa certeza, eram monopolizadas pelo trabalho escravo — o serviço doméstico e as minas de prata (embora existissem pequenos arrendatários que exploravam as minas por conta própria). As minas tinham, sem dúvida, importância crítica para a economia ateniense; e uma pólis onde homens e mulheres livres, e não escravos, fossem empregados nas casas de seus compatriotas mais ricos teria sido qualquer outra cidade que não a Atenas democrática. Entretanto, a importância básica do traba-

2 Discuto em detalhe essa questão da escravidão agrária em Peasant-Citizen and Slave: The Foundations of Athenian Democracy,

Londres, 1988, capí tu lo 2 e apêndice I. A questão do a r r e n d a m e n t o t a m b é m é estudada no mesmo capítulo, com algumas

considerações sobre a escassez e a ambigü idade das evidências no apêndice II.

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DEMOCRACIA CONTRA CAPITALISMO

lho livre nas bases materiais da sociedade ateniense exige, no mínimo, uma defini-ção em nuances da "sociedade escravagista"3.

Não se pretende aqui minimizar a importância da escravidão na sociedade ateniense. A escravidão era mais generalizada na Grécia - principalmente em Atenas - e em Roma do em qualquer outra civilização do mundo antigo e, de fato, só igualada por um punhado de sociedades ao longo de toda a história4. As estimativas do número de escravos da Atenas clássica têm variado muito entre os intelectuais modernos: por exemplo, no final do século IV a.C., essas estima-tivas variaram entre 20 mil para uma população livre de 124 mil, até 106 mil escravos para uma população livre de 154 mil (112 mil cidadãos e respectivas famílias e 42 mil metecos)5. O número mais aceito atualmente é algo em torno de um máximo dc 60 mil a 80 mil nos períodos de maior população; mas ainda assim trata-se de um número significativo, equivalente a cerca de 20% a 30% da população total. E mesmo que os escravos não dominassem a produção material eles certamente dominavam as grandes empresas, fossem elas agrícolas ou "in-dustriais"6. Nessa escala, a escravidão tinha de ser uma característica definidora da Antiguidade greco-romana, e justifica a designação de "sociedade escravagista". Mas não existe relato da história antiga, especialmente da história da democra-cia de Atenas, que seja, ainda que remotamente, considerado aceitável e não coloque o trabalho livre pelo menos no mesmo nível em termos de capacidade explicativa.

A verdade é que, embora diversas formas de trabalho livre tenham sido uma característica comum em muitos lugares na maioria dos tempos, a condição desfrutada pelo trabalho livre na democracia de Atenas não teve precedentes e, sob muitos aspectos, permaneceu inigualável desde então. O cidadão camponês da Antiguidade clássica - em graus variáveis, uma característica da sociedade grega assim como da romana, mas que nunca se igualou à que havia na demo-cracia ateniense — representa uma forma social única. A clareza da escravidão como categoria de trabalho não-livre, diferente de outras, como a dívida ou servidão, destaca-se nit idamente porque a liberdade do agricultor apagou todo um espectro de dependência que caracterizou a vida produtiva da maioria das

3 Essa de f in ição deveria começar , assim como a def in ição de Sce Croix do que seja u m a "economia escravagista", com a

propos ição de que o cri tério essencial não seja a f o r m a d o m i n a n t e de p rodução , mas a f o r m a principal de extração de

excedentes, o m o d o de exploração que criava a riqueza da classe d o m i n a n t e . Permanecer iam, en t re t an to , as questões relativas

ao grau em que tal r iqueza seria p r o d u z i d a por escravos, e não por arrendatár ios livres.

4 E m b o r a t e n h a hav ido escravos em mui t a s sociedades ao longo da his tór ia , h o u v e apenas c inco casos regis t rados de

"sociedades escravagistas" no sen t ido d e f i n i d o por Finley: Atenas clássica, Itália r o m a n a , as ilhas das índias Oc iden ta i s , o

Brasil e o sul dos Estados Unidos . Ver FINLEY, AncientSlavery, p. 9, e H O P K I N S , Keith. Conquerors andSlaves, Cambr idge ,

1978, p. 9 9 - 1 0 0 .

5 A est imativa mais baixa é a de A. H. M . J o n e s , Atbenian Democracy, O x f o r d , 1957, p. 76-9; a mais alta está no verbete sobre

"Popula t ion (Greek)" do Oxford ClassicalDictionary, baseada, com algumas modif icações , no clássico de A. W. G o m m e , The

Population ofAthens, O x f o r d , 1933.

6 Isso é o que Finley tem em m e n t e q u a n d o descreve a Grécia e R o m a como sociedades escravagistas: não que os escravos

fossem p r e d o m i n a n t e s no c o n j u n t o da economia , mas que eles const i tu íam a força de t rabalho p e r m a n e n t e "em todos os

es tabelecimentos gregos ou r o m a n o s maiores que a u n i d a d e familiar" {AncientSlavery, p. 81).

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O T R A B A L H O E A D E M O C R A C I A A N T I G A E M O D E R N A

soc i edades ao l o n g o da h i s t ó r i a c o n h e c i d a . N ã o é t a n t o o f a to de a ex i s tênc ia da

e sc rav idão ter d e f i n i d o de f o r m a tão n í t i da a l i be rdade do c i d a d ã o , mas, pe lo

c o n t r á r i o , o f a to de o c i d a d ã o t r a b a l h a d o r , t a n t o na t eo r i a q u a n t o na p rá t i ca , ter

d e f i n i d o o ca t ive i ro dos escravos.

A liberação dos agricultores da Ática das fo rmas tradicionais de dependênc ia in-

cent ivou o cresc imento da escravidão ao excluir outras f o rmas de t raba lho não-livre.

Nesse sentido, democracia e escravidão em Atenas estiveram unidas de f o r m a inseparável.

Mas essa dialética da l iberdade e escravidão, que dá lugar central ao t rabalho livre na

p rodução material, sugere algo diferente da proposição simples de que a democrac ia

ateniense tivesse f u n d a m e n t o na escravidão. E se r econhecemos que a l iberdade do

t raba lho livre, assim como a escravidão dos escravos, foi u m a característica essencial,

talvez a mais distintiva, da sociedade ateniense, somos obr igados a considerar as f o rmas

pelas quais essa característica nos a j u d a a explicar mui tas outras características distinti-

vas da vida cultural , social, polít ica e econômica da democracia .

D a r ao c idadão t raba lhador o seu direito é tão i m p o r t a n t e para a avaliação da

escravidão q u a n t o para a avaliação do t rabalho livre. N e n h u m dos dois pode ser intei-

ramente c o m p r e e n d i d o fora do nexo que os une. Tan to na Grécia c o m o em Roma,

sempre houve u m a relação direta entre a extensão da escravidão e a l iberdade do

c a m p e s i n a t o . A A tenas d e m o c r á t i c a t i nha escravos, Espa r t a t i n h a os hi lotas . As

oligárquicas Tessália e Cre ta t i nham o que se poder ia chamar de servos. Fora da Itália

r o m a n a ( t a m b é m neste caso a maioria da população fora da cidade de R o m a a inda era

f o r m a d a de camponeses , m e s m o no apogeu da escravidão), mui tas f o r m a s de arrenda-

m e n t o e meação sempre p r e d o m i n a r a m sobre a escravidão. No N o r t e da Áf r i ca e no

Impér io Or ien ta l , a escravidão na agricultura nunca foi impor t an te . Tan to nos reinos

helenos como no Impér io R o m a n o , a escravidão sempre teve impor t ânc i a m e n o r nes-

sas regiões d o m i n a d a s por a lguma espécie de Es tado m o n á r q u i c o ou t r ibutár io , nos

quais os camponeses não t i nham a condição civil que t i nham na polis.

Se o c resc imento excepcional da escravidão em Atenas resultou da l iberação do

campes ina to ateniense, assim t a m b é m a crise da escravidão no Impér io R o m a n o foi

a c o m p a n h a d a pela dependênc ia crescente dos camponeses . Este ensaio não se p ropõe

a de t e rmina r o que é causa e o que é efei to; mas, de u m a f o r m a ou de outra, a chave

para a t ransição da escravidão para a servidão é tão relacionada com o statusào campo-

nês quan to com a condição dos escravos: ou as classes proprietár ias precisavam depri-

mir a condição dos pobres livres por causa da redução na oferta de escravos, e a escravidão

deixava de ser p rodu t iva como antes; ou o cresc imento do governo m o n á r q u i c o e

imperial em R o m a p roduz iu um declínio gradual do poder pol í t ico e mil i tar dos

cidadãos pobres e impôs a eles u m a carga cada vez mais insuportável , o c o r r e n d o assim

u m a " t ransformação estrutural" da sociedade romana que t o r n o u os camponeses presa

mais fácil da exploração e dessa f o r m a reduziu a d e m a n d a de t rabalho escravo7. N o s

dois casos, a escravidão se reduz à med ida que declina a condição civil do campesinato .

7 Para o primeiro argumento, ver Ste CROIX, Class Struggle, p. 453-503; para o segundo, FINLEY, The Ancient Economy,

Berkeley, 1973, p. 86 e segs. [Ed. port.: A economia antiga. Porto, Afrontamento , 1980.]

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D E M O C R A C I A C O N T R A CAPITALISMO

Q u a n d o , s é c u l o s m a i s t a r d e , a e s c r a v i d ã o v o l t a a t e r u m p a p e l i m p o r t a n t e

na s e c o n o m i a s o c i d e n t a i s , ela s e i n s e r i u n u m c o n t e x t o m u i t o d i f e r e n t e ( c o m

a l g u n s i m p r e s s i o n a n t e s e f e i t o s i d e o l ó g i c o s s o b r e a l i g a ç ã o e n t r e e s c r a v i d ã o e r a -

c i s m o , q u e v o u e x a m i n a r n o c a p í t u l o " C a p i t a l i s m o e e m a n c i p a ç ã o h u m a n a . . . " ) .

A e s c r a v i d ã o a s s o c i a d a à s p l a n t a ç õ e s d o sul d o s E s t a d o s U n i d o s , p o r e x e m p l o ,

n ã o f a z i a p a r t e d e n e n h u m a e c o n o m i a a g r á r i a d o m i n a d a p o r p r o d u t o r e s c a m -

p o n e s e s , m a s s i m d e u m a a g r i c u l t u r a c o m e r c i a l e m g r a n d e esca la i n s e r i d a n u m

s i s t e m a i n t e r n a c i o n a l d e c o m é r c i o e m e x p a n s ã o . A p r i n c i p a l f o r ç a m o t r i z n o

c e n t r o d a e c o n o m i a m u n d i a l c a p i t a l i s t a n ã o f o i o n e x o e n t r e s e n h o r e e s c r a v o ,

n e m do p r o p r i e t á r i o c o m o c a m p o n ê s , e s im do c a p i t a l c o m o t r a b a l h o . O t r a -

b a l h o a s s a l a r i a d o l ivre s e t o r n o u a f o r m a d o m i n a n t e n u m s i s t e m a d e r e l a ç õ e s d e

p r o p r i e d a d e c a d a v e z m a i s p o l a r i z a d o e í i t r e a p r o p r i e d a d e a b s o l u t a e a f a l t a a b -

s o l u t a d e p r o p r i e d a d e ; e n e s s e s i s t e m a p o l a r i z a d o o s e sc r avos t a m b é m d e i x a r a m

d e o c u p a r u m g r a n d e e s p e c t r o d e f u n ç õ e s e c o n ô m i c a s . N ã o h a v i a n a d a s e m e -

l h a n t e a o b a n q u e i r o P a s i o n o u a o f u n c i o n á r i o p ú b l i c o e s c r a v o . O t r a b a l h o es-

c r a v o o c u p a v a a p o s i ç ã o m a i s h u m i l d e e se rv i l na e c o n o m i a de plantation.

GOVERNANTES E PRODUTORES

O s h i s t o r i a d o r e s g e r a l m e n t e c o n c o r d a m q u e a m a i o r i a d o s c i d a d ã o s

a t e n i e n s e s t r a b a l h a v a p a r a v i v e r . A i n d a a s s i m , d e p o i s d e c o l o c a r o c i d a d ã o t r a -

b a l h a d o r a o l a d o d o e s c r a v o n a v i d a p r o d u t i v a d a d e m o c r a c i a , eles n ã o s e i n t e -

r e s s a r a m p e l a s c o n s e q ü ê n c i a s des sa f o r m a ç ã o ú n i c a , des se t r a b a l h a d o r l ivre e

d e s s e status p o l í t i c o s e m p r e c e d e n t e s . O n d e ex i s t e a t e n t a t i v a de e s t a b e l e c e r

l i g a ç õ e s e n t r e a s f u n d a ç õ e s m a t e r i a i s d a s o c i e d a d e a t e n i e n s e e sua p o l í t i c a o u

c u l t u r a (e a t e n d ê n c i a d o m i n a n t e é a i n d a a de s e p a r a r a h i s t ó r i a p o l í t i c a e c u l -

t u r a l g r e g a d e t o d a r a i z soc i a l ) , é a e s c r a v i d ã o q u e f i c a n o c e n t r o d o p a l c o c o m o

o g r a n d e f a t o d e t e r m i n a n t e .

Esse d e s c a s o é r e a l m e n t e e x t r a o r d i n á r i o se c o n s i d e r a m o s a e x c e p c i o n a l i d a d e

da p o s i ç ã o da m ã o - d e - o b r a l iv re e o a l c a n c e de suas c o n s e q ü ê n c i a s . N ã o ser ia

e x a g e r o a f i r m a r , p o r e x e m p l o , q u e a v e r d a d e i r a c a r a c t e r í s t i c a d a p ó l i s c o m o f o r -

ma de o r g a n i z a ç ã o de E s t a d o é e x a t a m e n t e essa, a u n i ã o de t r a b a l h o e c i d a d a n i a

e s p e c í f i c a da cidadania camponesa. A pó l i s p e r t e n c e c e r t a m e n t e ao q u e em gera l

s e d e n o m i n a , a i n d a q u e i m p r e c i s a m e n t e , a " c i d a d e - E s t a d o " d o s g r e g o s e , e m

t e r m o s a m p l o s , d o s r o m a n o s , b e m c o m o d o s f e n í c i o s e e t r u s c o s - ou se ja , o

p e q u e n o E s t a d o a u t ô n o m o f o r m a d o p e l a c i d a d e e o c a m p o q u e a c o n t o r n a . M a s

tal c a t e g o r i a d e v e ser a i n d a m a i s d e c o m p o s t a p a r a i d e n t i f i c a r m o s 0 q u e é m a i s

d i s t i n t i v o d a p ó l i s g r ega .

N a s s o c i e d a d e s p r é - c a p i t a l i s t a s , em q u e os c a m p o n e s e s e r a m a p r i n c i p a l classe

p r o d u t o r a , a a p r o p r i a ç ã o - seja p e l o p r o p r i e t á r i o , seja p o r m e i o do E s t a d o - a s su -

m i a a f o r m a d o q u e s e p o d e r i a c h a m a r d e p r o p r i e d a d e p o l i t i c a m e n t e c o n s t i t u í d a ,

o u seja, a a p r o p r i a ç ã o c o n q u i s t a d a p o r vá r io s m e c a n i s m o s d e d e p e n d ê n c i a p o l í t i c a

e j u r í d i c a , p o r c o a ç ã o d i r e t a - t r a b a l h o i m p o s t o sob a f o r m a de d í v i d a , e s c r a v i d ã o ,

s e r v i d ã o , r e lações t r i b u t á r i a s , i m p o s t o s , co rvé i a e o u t r a s . E o q u e a c o n t e c i a na s

c iv i l i zações a v a n ç a d a s d o m u n d o a n t i g o , na s qua i s a f o r m a t í p i c a d o E s t a d o era

162

Page 9: Ellen Wood Capitalismo Contra Democracia Trabalho e Democracia

O TRABALHO E A D E M O C R A C I A A N T I G A E M O D E R N A

uma variante do Estado "burocrático-redistributivo", ou "tributário", no qual um corpo governante se superpunha às comunidades dominadas de produtores dire-tos cuja mais-valia era apropriada pelo aparelho governante8.

Essas formas já existiam na Grécia antes do advento da polis, nos reinos da Idade do Bronze. Mas na Grécia surgiu uma nova forma de organização que uniu proprietá-rios e camponeses numa unidade cívica e militar. Um padrão semelhante em linhas gerais viria a aparecer em Roma. A própria idéia de comunidade cívica e de cidadania,

como algo diferente de um aparelho estatal ou de uma comunidade de governantes superpostos, era característica da Grécia e de Roma; e indicava uma relação inteira-mente nova entre apropriadores e produtores. Em particular, o cidadão camponês,

um tipo social específico das cidades-Estado gregas e romanas — e ainda assim a nem todos os Estados gregos9 -, representou um rompimento radical com todas as outras civilizações avançadas conhecidas do mundo antigo, inclusive as formas de Estado anteriores a ele na Grécia durante a Idade do Bronze.

A pólis grega quebrou o padrão geral das sociedades estratificadas de divisão entre governantes e produtores, especialmente a oposição entre Estados apropriadores e comunidades camponesas subjugadas. Na comunidade cívica, a participação do produtor - especialmente na democracia ateniense - significava um grau sem paralelos de liberdade dos modos tradicionais de exploração, tanto na forma de obrigação por dívida ou de servidão quanto na de impostos.

Sob esse aspecto, a pólis democrática violou o que um filósofo chinês (numa passagem que, com alguns refinamentos filosóficos, poderia ter sido escrita por Platão) certa vez descreveu como um princípio universalmente reconhecido como direito "em todos os lugares sob o Céu":

P o r q u e s e d e v e r i a p e n s a r q u e aque l e q u e c o n d u z o g o v e r n o d e u m r e i n o t e n h a t a m b é m

t e m p o de l avra r o solo? A v e r d a d e é q u e a lguns p r o b l e m a s são p r ó p r i o s d o s g r a n d e s , e

o u t r o s , d o s p e q u e n o s . M e s m o q u e s e s u p o n h a q u e u m h o m e m p u d e s s e r e u n i r e m s i

t o d a s as h a b i l i d a d e s necessá r i a s a t o d a s as p r o f i s s õ e s , se ele t ivesse de f a z e r s o z i n h o t u d o

o q u e u sa , t o d o s a c a b a r i a m c o m p l e t a m e n t e e x a u s t o s de f ad iga . O d i t a d o é v e r d a d e i r o :

"Alguns t r a b a l h a m c o m a m e n t e , o u t r o s c o m o c o r p o . O s q u e t r a b a l h a m c o m a m e n t e

g o v e r n a m , e n q u a n t o o s q u e t r a b a l h a m c o m o c o r p o são g o v e r n a d o s . O s q u e são g o v e r -

n a d o s p r o d u z e m o a l i m e n t o ; o s q u e g o v e r n a m são a l i m e n t a d o s " . 1 0

Pode-se mesmo afirmar que a pólis (numa definição bem geral para incluir a

cidade-Estado romana11) representou a emergência de uma nova dinâmica social na

forma das relações de classe. Isso não quer dizer que a pólis tenha sido a primeira

? A primeira fórmula d usada por Karl Polanyi - por exemplo, em The Great Transformation; Boston, Beacon Press, 1957, p.

51-2; o m o d o "tributário de produção" é um conceito formulado por Samir Amin em UnequalDevelopment, Hassocks,

1976, p. 13 e segs. [Ed. bras.: O desenvolvimento desigual. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1976.] 9 Por exemplo, os hilotas de Esparta e os servos de Creta e da Tessália representavam a antítese do cidadão camponês.

J M E N C I U S , em Three Way ofThought in Ancient China, Arthur Wailey (ed.), Garden City, s/d, p. 140.

Para um exemplo desse uso geral, ver FINLEY, Politics in the Ancient World, Cambridge, 1983. [Ed. bras.: A política no

mundo antigo. Rio de Janeiro, Zahar, 1985.]

163

Page 10: Ellen Wood Capitalismo Contra Democracia Trabalho e Democracia

DEMOCRACIA CONTRA CAPITALISMO

fo rma de Es t ado em que as relações de p r o d u ç ã o ent re ap ropr i adores e p r o d u t o r e s

t e n h a t i do pape l cen t ra l . A ques tão é , pelo con t rá r io , q u e essas relações a s s u m i r a m

u m a fo rma r ad i ca lmen te nova. A c o m u n i d a d e cívica represen tou u m a relação dire-

ta , d o t a d a de lógica p róp r i a de processo, en t re p ropr ie tá r ios e c a m p o n e s e s c o m o

ind iv íduos e c o m o classes, separada da velha relação en t re governan tes e súdi tos .

A velha relação d i c o t ô m i c a en t re o Es tado a p r o p r i a d o r e os súd i tos c a m p o n e s e s

p r o d u t o r e s foi p r e j u d i c a d a de a lguma f o r m a p o r t o d o o m u n d o g r e c o - r o m a n o , em

todos os lugares o n d e houvesse u m a c o m u n i d a d e cívica u n i n d o p ropr i e t á r ios e c a m -

poneses , ou seja, o n d e os c a m p o n e s e s possu íam o status de c idadãos. Isso era ve rdade

m e s m o onde , tal c o m o em R o m a , a cond ição cívica dos c a m p o n e s e s era relativa-

m e n t e restri ta. Hav ia , en t r e t an to , d i ferenças significativas en t re as cond ições da aris-

tocrá t ica R o m a e da democrá t i ca Atenas . T a n t o em Atenas c o m o em R o m a , o status

pol í t ico e j u r íd i co do c a m p e s i n a t o i m p u n h a restrições aos meios d isponíveis de apro-

pr iação pelos p ropr ie tá r ios e incen t ivou o d e s e n v o l v i m e n t o de al ternativas, p r inc i -

p a l m e n t e a escravidão. M a s na democrac ia a teniense o regime c a m p o n ê s era mais

restr i t ivo do q u e na R o m a aristocrática e m a r c o u de fo rma m u i t o mais decisiva o

c o n j u n t o da vida cul tural , pol í t ica e econômica da democrac i a , c h e g a n d o m e s m o a

a jus ta r o r i t m o e os objet ivos da guerra às exigências do p e q u e n o agr icu l tor e seu

ca lendár io agrícola1 2 . Na verdade , a inda que incent ivasse o c r e sc imen to da escravi-

dão, a d e m o c r a c i a inibia ao m e s m o t e m p o a c o n c e n t r a ç ã o da p r o p r i e d a d e , l imi tan -

do assim as formas em q u e se podia utilizar a escravidão, espec ia lmente na agricul tura .

Em c o m p a r a ç ã o , e m b o r a o regime aris tocrát ico de R o m a fosse restr i to de diver-

sas formas pela c o n d i ç ã o cívica e mil i tar do camponês , a c idade -Es tado r o m a n a era

d o m i n a d a pela lógica do p ropr i e t á r io de terras. A c o n c e n t r a ç ã o da p r o p r i e d a d e que

to rnava possível o uso in tens ivo de escravos na agr icul tura era u m a m a n i f e s t a ç ã o

i m p o r t a n t e dessa d o m i n â n c i a aristocrática. O u t r a mani fes tação foi o d r a m a espeta-

cular da expansão imperial (em que a par t ic ipação indispensável do soldado c a m p o n ê s

o to rnava vulnerável à p e r d a de p rop r i edades em sua p r ó p r i a terra) , u m a operação

de a ç a m b a r c a ç ã o de terras feita n u m a escala desconhec ida no m u n d o a té en tão . Foi

sobre essa f u n d a ç ã o aris tocrát ica que a c idade-Es tado deu lugar ao impér io , e c o m

ele dec l inou a c o n d i ç ã o do c a m p o n ê s c idadão. N e m os l a t i f ú n d i o s escravistas, n e m

um vasto te r r i tó r io imperia l , duas das características de f in ido ra s de R o m a , ser iam

compat íve i s com o regime de p e q u e n o s propr ie tá r ios da A tenas democrá t i ca .

Ass im, em n e n h u m o u t r o lugar o p a d r ã o t íp ico de divisão en t re g o v e r n a n t e s e

p r o d u t o r e s foi q u e b r a d o d e f o r m a tão c o m p l e t a q u a n t o n a d e m o c r a c i a a ten iense .

N e n h u m a expl icação do d e s e n v o l v i m e n t o pol í t i co e cu l tu ra l a t en iense será c o m -

ple ta se não levar em c o n t a essa f o r m a ç ã o dis t int iva. E m b o r a os conf l i tos pol í t icos

ent re d e m o c r a t a s e oligarcas em Atenas n u n c a t e n h a m co inc id ido e x a t a m e n t e c o m

u m a divisão en t re classes apropr iadoras e p rodu to ra s , p e r m a n e c e u u m a t ensão en t re

c idadãos que t i n h a m interesse na restauração do m o n o p ó l i o a r i s toc rá t i co da c o n -

12 Para uma excelente discussão dessa questão, ver O S B O R N E , Robin. Classical Landscape with Figures: The Ancient Greek

City and its Countryside, Londres , 1987, p. 13, 138-9, 144.

164

Page 11: Ellen Wood Capitalismo Contra Democracia Trabalho e Democracia

O TRABALHO E A DEMOCRACIA ANTIGA E MODERNA

dição política e os que resistiam a ela, uma divisão entre cidadãos para quem o Estado deveria servir como meio de apropriação e cidadãos para quem ele deveria servir como proteção contra a exploração. Em outras palavras, permaneceu a opo-sição entre os que tinham e os que não tinham interesse em restaurar a divisão entre governantes e produtores.

Em nenhum lugar essa oposição é tão visível quanto nos clássicos da filosofia grega. Sem meias palavras: a divisão entre governantes e produtores é o princípio fundamental da filosofia de Platão, não apenas de seu pensamento político, mas de sua epistemologia. É a sua obra que dá a medida real da condição do trabalho na democracia ateniense. Entretanto, isso é verdade não no sentido de que o des-prezo evidente de Platão pelo trabalho e pelas capacidades moral e política dos que são tolhidos pela necessidade material de trabalhar para viver represente uma nor-ma cultural. Pelo contrário, os textos de Platão representam um poderoso contra-exemplo, uma negação deliberada da cultura democrática.

Há evidência suficiente em outros clássicos da cultura ateniense para indicar a presença de uma atitude com relação ao trabalho muito diferente da de Platão, uma atitude mais de acordo com as realidades de uma democracia em que camponeses e artesãos gozavam de todos os direitos da cidadania. De fato, o próprio Platão oferece testemunho dessa atitude quando, por exemplo, no diálogo Protágoras, no início do longo discurso em que Protágoras defende a prática ateniense de permitir que sapa-teiros e ferreiros possam fazer julgamentos políticos (320a e segs.), ele põe na boca do sofista uma versão do mito de Prometeu em que as "artes práticas" são o funda-mento da vida civilizada. O herói do Prometeu de Ésquilo, aquele que traz o fogo e as artes, é um benfeitor da humanidade, enquanto na Antígona de Sófocles o Coro canta um hino de louvor às artes humanas e ao trabalho (350 e segs.). E a associação da democracia com a liberdade de trabalho é sugerida por um discurso em As supli-

cantes (429 e segs.), em que se diz que entre as bênçãos de um povo livre está não apenas o fato de que o governo da lei dá igual direito à justiça tanto ao rico quanto ao pobre, ou que qualquer um tem o direito de falar ao público, mas também o fato de que o trabalho do cidadão não se perde, ao contrário do que acontece nos Estados despóticos, nos quais as pessoas trabalham apenas para enriquecer os tiranos com sua faina. Também é sem dúvida significativo que a divindade epônima de Atenas, a deusa Atena, fosse a padroeira das artes e dos ofícios, e que não houvesse em nenhu-ma outra cidade da Grécia templo tão grande devotado a Hefestos, deus da forja, quanto o que foi construído no século V a.C., dominando a ágora ateniense. Mas nenhum desses pedaços de evidência confirma de forma tão eloqüente o status do trabalho livre na democracia quanto a reação de Platão a ele13.

1 3 Isso t a m b é m é v e r d a d e em r e l a ç ã o a A r i s t ó t e l e s , c u j a pol i s ideal , de sc r i t a na Politica, n e g a c i d a d a n i a às p e s s o a s e n g a j a d a s no

t r a b a l h o de o f e r e c e r os bens e s e rv i ços bás icos da pól is . Essas pessoas são " c o n d i ç õ e s " e n ã o "pa r t e s " da pol i s , d i f e r e n t e s dos

escravos a p e n a s p e l o f a t o de d e s e m p e n h a r e m suas h u m i l d e s t a r e f a s para a c o m u n i d a d e e n ã o pa ra i n d i v í d u o s (1 2 7 7 a - 1 2 7 8 a ) .

Ao d i s c u t i r as a t i t u d e s dos g r egos em r e l ação ao t r a b a l h o em Peasant-citizen andSlave, p . 1 3 7 - 6 2 , a r g u m e n t o , e n t r e o u t r a s

coisas, q u e se h o u v e s s e b a r r e i r a s i d e o l ó g i c a s ao d e s e n v o l v i m e n t o t e c n o l ó g i c o elas n ã o s e r i a m tão r e l a c i o n a d a s ao d e s p r e z o

p e l o t r a b a l h o d e r i v a d o de sua a s s o c i a ç ã o c o m a e s c r a v i d ã o q u a n t o à i n d e p e n d ê n c i a dos p e q u e n o s p r o d u t o r e s e à a u s ê n c i a de

pressões para a u m e n t a r a p r o d u t i v i d a d e do t r a b a l h o .

165

Page 12: Ellen Wood Capitalismo Contra Democracia Trabalho e Democracia

DEMOCRACIA CONTRA CAPITALISMO

GOVERNANTES E PRODUTORES: PLATÃO VERSUS PROTÁGORAS

Em seu d i á l o g o Protágoras, P l a t ã o d e f i n e a o r i e n t a ç ã o de g r a n d e p a r t e de sua

o b r a f i l o só f i ca p o s t e r i o r . A q u i ele l e v a n t o u q u e s t õ e s re la t ivas à v i r t u d e , ao c o n h e -

c i m e n t o e à a r t e da p o l í t i c a q u e i r i am p r e o c u p á - l o em suas o b r a s da m a t u r i d a d e ,

p r i n c i p a l m e n t e na República-, e o c o n t e x t o em q u e essas q u e s t õ e s f o r a m l e v a n t a d a s

n o s d i z m u i t o s o b r e a i m p o r t â n c i a d o t r a b a l h o n o d i s c u r s o p o l í t i c o d a d e m o c r a -

cia. N e s s e d i á l o g o , ta lvez pe la ú l t i m a vez em sua o b r a , P l a t ã o d e u a t e n ç ã o , no

m í n i m o , razoáve l à o p o s i ç ã o , a p r e s e n t a n d o o so f i s t a P r o t á g o r a s sob u m a luz ma i s

ou m e n o s s i m p á t i c a à m e d i d a q u e este c o n s t r ó i a d e f e s a da d e m o c r a c i a , a ú n i c a

a r g u m e n t a ç ã o s i s t e m á t i c a em f avo r da d e m o c r a c i a a s o b r e v i v e r da A n t i g u i d a d e .

P l a t ã o iria pas sa r o res to de sua ca r re i r a r e f u t a n d o i m p l i c i t a m e n t e os a r g u m e n t o s

de P r o t á g o r a s .

Protágoras se r e l a c i o n a à n a t u r e z a da v i r t u d e e à p o s s i b i l i d a d e de ela ser e n s i n a -

da. A q u e s t ã o é l e v a n t a d a n u m c o n t e x t o e x p l i c i t a m e n t e p o l í t i c o , n o m o m e n t o e m

q u e Sóc ra t e s d e f i n e o s t e r m o s d o d e b a t e :

Agora, que estamos reunidos em Assembléia, se o Estado se vê diante de um proje to de

const rução, observo que os arquitetos são convocados e consul tados sobre a es t ru tura

proposta , e q u a n d o se trata de u m a questão relativa à const rução de navios, são os

projetistas de navios, e é assim com tudo que a Assembléia considere objeto de apren-

dizado e ensino. Se alguém oferece conselho, alguém que não seja considerado conhe-

cedor, por mais belo ou rico ou bem-nasc ido ele seja, não impor ta : os m e m b r o s o

rejei tam ru idosamente e com desprezo, até que ele ou seja obr igado a se calar e desistir,

ou seja expulso e ret irado pela polícia por ordens do magis t rado presidente. É assim

que eles se c o m p o r t a m com relação a temas que consideram técnicos. Mas, q u a n d o se

t rata de debater algo relativo ao governo do país, o h o m e m que se levanta para dar

conselhos pode ser um construtor , ou mesmo um ferreiro ou sapateiro, mercador ou

armador , rico ou pobre , nascido ou não de boa família. N i n g u é m o acusa, c o m o sucede

aos que menc ione i há pouco, que esse h o m e m não tem qualificações técnicas, incapaz

de indicar quem o ens inou, e a inda assim tenta dar conselho. A razão deve ser que eles

não cons ideram que este seja um assunto que possa ser ens inado . ' 4

Em sua r e s p o s t a a Sóc ra t e s , P r o t á g o r a s d e m o n s t r a q u e "seus c o m p a t r i o t a s a g e m

s a b i a m e n t e ao ace i t a r o c o n s e l h o de um f e r r e i r o ou de um s a p a t e i r o em q u e s t õ e s

po l í t i cas" 1 5 . E a s s im as q u e s t õ e s e p i s t e m o l ó g i c a s e ét icas f u n d a m e n t a i s q u e fo r -

m a m a base da f i l o so f i a grega , na r e a l i d a d e de t o d a a t r a d i ç ã o f i l o só f i ca o c i d e n t a l ,

são s i t u a d a s n u m c o n t e x t o e x p l i c i t a m e n t e p o l í t i c o , r e l a c i o n a d o à p r á t i c a d e m o -

c rá t i ca de p e r m i t i r a s a p a t e i r o s ou f e r r e i ros fazer j u l g a m e n t o s p o l í t i c o s .

A a r g u m e n t a ç ã o de P r o t á g o r a s c o n t i n u a , p r i m e i r o p o r u m a a legor ia d e s t i n a d a a

d e m o n s t r a r q u e a s o c i e d a d e po l í t i ca , sem a qua l h o m e n s n ã o se b e n e f i c i a m das ar tes

e o f íc ios q u e c o m p õ e m o ú n i c o p r e s e n t e dos deuses , n ã o sobrev ive a m e n o s que a

1 4 Pro tágoras , 3 1 9 b - d .

1 5 Idem, i b idem, 3 2 4 d .

1 6 6

Page 13: Ellen Wood Capitalismo Contra Democracia Trabalho e Democracia

O TRABALHO E A DEMOCRACIA ANTIGA E MODERNA

virtude cívica que prepara as pessoas para a cidadania seja uma qualidade universal. Passa então a mostrar que virtude pode ser uma qualidade universal sem ser inata, uma qualidade que pode ser ensinada. Todo aquele que vive numa comunidade civilizada, especialmente a pólis, é exposto desde o nascimento ao processo de apren-dizagem que promove a virtude cívica, em casa, na escola, por admoestação e puni-ção e, acima de tudo, por meio dos costumes e das leis da cidade, sua nomoi. A virtude cívica, tal como a língua mãe, é a um só tempo aprendida e universal. O sofista que, assim como o próprio Protágoras, afirma ensinar a virtude pode aperfei-çoar esse progresso contínuo e universal, e o homem possui as qualidades da boa cidadania sem o benefício da instrução do sofista.

A ênfase de Protágoras na universalidade da virtude é evidentemente crítica para sua defesa da democracia. Mas igualmente importante é sua concepção do processo pelo qual se transmite o conhecimento moral e político. A virtude é ensi-nada, mas o modelo de aprendizagem não é tanto a erudição quanto o aprendizado.

Aprendizado, nas chamadas sociedades tradicionais, é mais que um meio de apren-der habilidades técnicas. "É também", para citar um notável historiador inglês do século XVIII, "o mecanismo de transmissão intergeracional", o meio pelo qual as pessoas se iniciam nas habilidades de adultos ou em artes práticas particulares, e são, ao mesmo tempo, introduzidas "na experiência social e na sabedoria comum da comunidade"16 . Não há forma melhor de caracterizar o processo de aprendiza-gem descrito por Protágoras, o mecanismo pelo qual a comunidade de cidadãos passa adiante a sabedoria coletiva, suas práticas, seus valores e suas expectativas fundados nos costumes.

O princípio invocado por Sócrates contra Protágoras - neste estágio de forma ainda tentativa e pouco sistemática - é que a virtude é conhecimento. Esse prin-cípio viria a se tornar a base do ataque de Platão à democracia, especialmente em O político e A República. Nas mãos de Platão, ele representa a substituição do aprendizado moral e político de Protágoras por uma concepção mais exaltada da virtude como conhecimento filosófico, não a assimilação convencional dos cos-tumes e valores da comunidade, mas um acesso privilegiado a verdades mais altas, universais e absolutas.

Ainda assim, Platão também constrói sua definição de virtude política e justi-ça sobre a analogia com as artes práticas. Também ele se baseia na experiência comum da Atenas democrática, apelando para a experiência familiar do cidadão trabalhador ao invocar a ética do artesão, techriê. Mas, desta vez, a ênfase não recai na universalidade ou na transmissão orgânica do conhecimento convencional de uma geração para a seguinte, mas sobre a especialização, competência e exclusivi-dade. Assim como os melhores sapatos são feitos por um sapateiro especialista, também a arte da política deveria ser praticada apenas por quem nela se especiali-za. Não deve haver sapateiros e ferreiros na Assembléia. A essência da justiça no Estado é o princípio de que o sapateiro deve se ater à sua fôrma.

" T H O M P S O N , E. P. Customs in Common, Londres , 1991, p. 7.

167

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DEMOCRACIA CONTRA CAPITALISMO

Tanto Protágoras quanto Platão colocam os valores culturais da techne, as artes práticas do cidadão trabalhador, no centro de sua respectiva argumentação política, embora o façam com objetivos antitéticos. Grande parte do que se segue na tradição da filosofia ocidental procede desse ponto de partida. Não é apenas a filosofia política ocidental que deve suas origens a esse conflito em torno do papel político de sapateiros e ferreiros. Para Platão, a divisão entre os que governam e os que trabalham com o corpo, entre os que governam e são alimentados e os que produzem o alimento e são governados não é somente o princípio básico da política. A divisão de trabalho entre governantes e produtores, que é a essência da justiça na República, é também a essência da teoria do conhecimento de Platão. A oposição radical e hierárquica entre os mundos sensível e inteligível, e entre as respectivas formas de cognição - uma oposição que foi identificada como a característica mais distintiva do pensamento grego e que definiu as bases da filosofia ocidental desde então17 - foi criada por Platão com base numa analogia com a divisão social de trabalho que exclui da política o produtor.

O E C L I P S E D O T R A B A L H O L I V R E

Tão grande é o desequilíbrio entre a importância histórica do trabalho livre na Grécia Antiga e o descaso que a historiografia moderna lhe dedica que é necessário dizer algo acerca de como ocorreu esse desequilíbrio, sobre como o cidadão trabalha-dor, apesar de toda a sua característica distintiva histórica, perdeu-se na sombra da escravidão18. Mais uma vez, não se trata de os historiadores não terem reconhecido o fato de ser o corpo de cidadãos de Atenas composto em grande parte de cidadãos que trabalhavam para viver. Pelo contrário, trata-se de que esse reconhecimento não foi acompanhado de um esforço simultâneo para explorar a significação histórica desse fato notável. Como fator determinante do movimento da história, o trabalho livre no mundo antigo foi eclipsado pela escravidão, e não somente pela razão notável de terem nossos melhores instintos se chocado como os horrores daquela terrível instituição.

O eclipse do cidadão trabalhador na Atenas democrática tem menos a ver com as realidades da democracia ateniense do que com a política da Europa moderna. Antes da segunda metade do século XVIII, e principalmente antes das revoluções americana e francesa, não teria sido incomum uma caracterização da antiga demo-cracia ateniense como uma comunidade "mecânica" em que a aristocracia era su-bordinada a uma multidão "utilitária" de cidadãos trabalhadores - em comparação, por exemplo, com Esparta, onde o conjunto dos cidadãos era formado por uma espécie de nobreza, "dos que vivem com fartura de suas próprias rendas, sem se engajar no trabalho de sua própria terra nem em qualquer outro trabalho para se manter"1 9 . Caracterizações semelhantes fizeram parte de uma longa tradição

1 7 Jacques Gerne t elabora essa questão em "Social His to ry and the Evolu t ion of Ideas in Ch ina and Greece f rom the Sixth

to the Second C e n t u r y BC". In: Myth and Society in Ancient Greece de Jean Pierre Vernant, Sussex. 1980. [Ed. bras.: Mito e

sociedade na Grécia antiga. Rio de Janeiro, José O lympio , 1999.]

18 Esta seção se baseia em meu livro, Peasant-Citizen and Slave, cap. I.

19 H A R R I N G T O N , James. "The C o m m o n w e a l t h of Oceana" . In: The Political Works of'James Harrington,]. G. A. Pocock,

ed., Cambr idge , 1977, p. 259-60 . H a r r i n g t o n t oma empres tada a def in ição de nobreza de Maquiavel .

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O T R A B A L H O E A D E M O C R A C I A A N T I G A E M O D E R N A

que se estende no passado até a própria Grécia antiga e a identificação de demo-cracia com a dominação por um demos "utilitarista". Nesses relatos da democra-cia, o cidadão trabalhador ainda está vivo e forte.

Mas pelo final do século XVIII ocorreu uma alteração significativa. A multidão mecânica começou a ceder terreno à "ralé ociosa" mantida pelo trabalho de escravos. A explicação dessa mudança não é terem os historiadores de repente descoberto a extensão da escravidão na democracia de Atenas. Escritores precedentes dela já ti-nham ciência. Montesquieu, por exemplo, chegou mesmo a superestimar em muito o número de escravos em Atenas; e como autor de um influente ataque contra a escravidão ele não se teria inclinado a encontrar justificativas para as manifestações gregas. Mesmo assim, ele insistiu que a essência da democracia ateniense - ao con-trário da de Esparta, cujos cidadãos eram "obrigados ao ócio" — era que seus cida-dãos trabalhavam para viver20. Nem mesmo a aparência de ralé ociosa pode ser explicada por uma nova preocupação com os males da escravidão, gerada por uma consciência democrática ampliada na Idade das Revoluções. Pelo contrário, a ralé ociosa nasceu sobretudo das mentes dos antidemocratas reacionários.

Os principais culpados foram, no primeiro caso, os historiadores britânicos que escreveram as primeiras histórias políticas e narrativas modernas sobre a Grécia Antiga com o objetivo explícito de advertir os seus contemporâneos contra os perigos da democracia. O mais importante entre eles foi William Mitford, mem-bro do Tóri, proprietário de terras e opositor da reforma parlamentar, que escre-veu uma influente história da Grécia publicada em vários volumes entre 1784 e 1810. Quando, no período em que estava escrevendo sua obra, estourou a Revo-lução Francesa, ele interrompeu a narrativa para explicar por que os ingleses ha-viam sido poupados daquele mal; e sua explicação se relacionava com as formas pelas quais os ingleses eram diferentes da França moderna e da antiga Atenas. A Inglaterra gozava de harmonia sem paralelos entre os "vários níveis de cidadania", ao passo que a Grécia (e a França) carecia de mecanismo semelhante de harmonização. Em particular,

por toda a Grécia, os nobres e os ricos, atendidos por escravos não apenas como empre-gados domésticos, mas como agricultores e artesãos, tinham poucas ligações com a multidão dos mais pobres, e apenas para governá-los nos Estados oligárquicos, e nos democráticos para temê-los, adulá-los, importuná-los e, ou enganá-los, ou por eles serem comandados. Nenhum interesse comum unia as duas descrições de homem (...)21

O resultado foi uma multidão licenciosa e turbulenta, "cidadãos sem propriedade, sem indústria e talvez sem objetos de indústria", uma multidão ociosa, mantida pela escravidão e por pagamentos públicos, sempre pronta a pilhar a riqueza dos ricos22.

2 0 S E C O N D A T , Charles de. Baron de Montesquieu, The Spirit oftheLaws, Nova York, 1949, p. 46. [Ed. bras.: O espirito das

leis. Brasília, Ed. UnB, 1982.]

21 M I T F O R D , Will iam. The History ofGreece, volV,Londres, 1814, p. 34-5.

""Idem, ibidem, p. 16.

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D E M O C R A C I A C O N T R A CAPITALISMO

Mas, se Mitford representa um exemplo particularmente extremo de retórica antidemocrática, a mesma multidão ociosa aparece em obras muito mais sóbrias e eruditas ao longo do século seguinte. Na influente história econômica de August Bõckh, a escravidão e os pagamentos públicos mais uma vez são fontes de corrupção da democracia, acostumando a multidão à "indolência" e dando a ela o lazer de participar da política, "ao passo que nos países em que a escravidão não existia, os cidadãos, obrigados a trabalhar para garantir a própria sobrevivência, não tinham tanta disponibilidade para se empregar nos negócios do governo". O resultado foi que "Mesmo na mais nobre das raças da Grécia, entre as quais os atenienses devem ser relacionados, a depravação e a corrupção moral predominavam entre todo o povo"23. E mesmo Fustel de Coulanges atribuiria a turbulência da Grécia antiga à ausência de princípios econômicos que teriam compelido ricos e pobres a viver juntos em bons termos, como teriam feito "se, por exemplo, um tivesse necessida-de do outro — se os ricos não pudessem ter enriquecido sem convocar o trabalho dos pobres, e se os pobres pudessem ter encontrado meios de vender o próprio trabalho para os ricos"24. Na realidade, "o cidadão encontrava poucos empregos, tinha pouco a fazer; a falta de ocupação logo o tornava indolente. Como via ape-nas escravos a trabalhar, ele desprezava o trabalho". E assim por diante.

Nenhum desses escritores desconhecia que os cidadãos atenienses trabalhavam como agricultores ou artesãos. A questão não era tanto o fato de eles não trabalha-rem, mas o de eles não trabalharem o suficiente e, acima de tudo, o fato de não servirem. Sua independência e o lazer de que desfrutavam para poder participar da política foram a causa da condenação da democracia grega. Para Mitford e Bõckh, a participação da multidão era um mal em si mesma. Para o mais liberal Fustel, o mal era que, na ausência das formas tradicionais de controle político, se fazia necessária uma espécie de disciplina econômica tornada possível pela sociedade moderna pela necessidade material que força os trabalhadores sem propriedade a vender sua força de trabalho por um salário. Em outras palavras, faltavam o Esta-do e a economia burgueses modernos. Mas, em todos esses exemplos, a indepen-dência do cidadão trabalhador foi consistentemente traduzida como indolência da ralé ociosa, e com ela veio a predominância da escravidão.

Os efeitos dessa revisão histórica foram enormes, estendendo-se para muito além das motivações antidemocráticas originais de historiadores como Mitford. A ralé ociosa cobriu desde a descrição da democracia de Hegel, na qual a condição básica da política democrática era serem os cidadãos liberados da necessidade do trabalho e "que aquele que entre nós é executado por cidadãos livres - o trabalho da vida diária — deveria ser executado por escravos"25, até a inversão marxista da ralé ociosa no "modo escravista de produção".

2 3 B O E C K H [Bõckh], August. The Public Economy ofAthens, 1842, p. 611-14.

24 F U S T E L de C O U L A N G E S , N u m a Denis. The Ancient City, Garden City, s.d, p. 337. [Ed. bras.: Cidade antiga. São

Paulo, Hemus, 1975.]

25 H E G E L , G. F. W. The Philosophhy ofHistory, Trad. J. Sibree, Nova York, 1912, p. 336. [Ed. bras.: Filosofia da história.

Brasília, Ed. UnB, 1995.]

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O T R A B A L H O E A D E M O C R A C I A A N T I G A E M O D E R N A

Entretanto, há aqui um paradoxo, porque o interesse intelectual pela escravidão

era muito menor em proporção que o peso ideológico atribuído a ela26. Os antide-

mocratas que levaram os escravos à sua posição proeminente pelo uso do tema da

ralé ociosa tinham interesse muito menor em explorar o próprio tema da escravidão

do que em desacreditar a multidão democrática. Do outro lado, os liberais que

invocaram o exemplo da Grécia antiga em defesa da reforma política moderna esta-

vam ainda menos ansiosos em se deter no embaraço representado pela escravidão,

enquanto, dada a sua ambivalência em relação à democracia, à extensão de direitos

políticos à classe trabalhadora (por comparação com o aperfeiçoamento das institui-

ções representativas e das liberdades civis), também não tinham tanto interesse em

enfatizar o papel da multidão trabalhadora na democracia ateniense.

O resultado foi uma curiosa imprecisão em relação à economia política de

Atenas, talvez ainda mais acentuada entre os liberais que entre os conservadores.

George Grote, reformador político e autor de uma celebrada história da Grécia

antiga, menciona apenas de passagem o trabalho dependente, e mesmo assim so-

bre os servos da Tessália e de Creta, em lugar dos escravos de Atenas; ao passo que

seu amigo, J. S. Mill, inclinava-se menos a focalizar as características democráticas

da democracia ateniense do que a elogiar seus valores liberais, a individualidade e

a variedade da vida ateniense - em contraste com os espartanos não-liberais, a

quem, na resenha da história de Grote que escreveu para a Edinburgh Review, ele

descreveu como "os tóris e conservadores hereditários da Grécia". Nenhum desses

exemplos ajudou a esclarecer a posição da escravidão ou do trabalho livre na An-

tiguidade clássica.

O T R A B A L H O E O " E S P Í R I T O DO C A P I T A L I S M O "

Não surpreende que a transição da multidão mecânica para a ralé ociosa tenha

ocorrido no século XVIII (e especialmente na Inglaterra, apesar dos encómios de

Mitford à constituição inglesa). Segundo Thompson:

O século XVIII testemunhou uma mudança qualitativa nas relações de trabalho. Uma

proporção substancial da força de trabalho ficou realmente mais livre da disciplina do

trabalho diário, mais livre para escolher entre empregadores e entre trabalho e lazer, me-

nos presa a uma posição de dependência em todo o seu modo de vida do que havia sido

antes ou do que viria a ser nas primeiras décadas da disciplina da fábrica e do relógio.

Trabalhando geralmente em suas próprias casas, possuindo ou alugando suas próprias

ferramentas, trabalhando para pequenos empregadores, muitas vezes em horas irregu-

lares em mais de um emprego, eles conseguiram fugir dos controles sociais da casa

senhorial e ainda não estavam sujeitos à disciplina do trabalho na fábrica.

O trabalho livre trouxe consigo um enf raquec imen to dos velhos meios de discipli-

na social.27

26 Para um esboço histórico dos fundamentos históricos do conhecimento da escravidão na Antiguidade, ver FINLEY, Ancient

Slavery, p. 11-66, e G A R L A N D , Slavery, p. 1-14. Ver também CANFORA, Luciano. Ideologicdel Classicismo, 1980, p. 11-9.

27 T H O M P S O N . Customs, p. 38-42.

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DEMOCRACIA CONTRA CAPITALISMO

A l i n g u a g e m c o m q u e esses d e s e n v o l v i m e n t o s f o r a m s a u d a d o s pela classe do -

m i n a n t e inglesa é a p r ó p r i a l i n g u a g e m da ralé ociosa . Os t r a b a l h a d o r e s p o b r e s da

Ing l a t e r r a , d e s p r e z a n d o a "g rande lei da s u b o r d i n a ç ã o " e a t r a d i c i o n a l de f e r ênc i a

do servo para c o m o s e n h o r , a l t e rnavam-se en t re "o c l a m o r e o m o t i m " , " a m a d u -

r e c e n d o pa ra t o d a espécie de m a u s a tos , seja a In su r re i ção p ú b l i c a , ou o saque

p r i v a d o " , e, " i n so l en t e s , p regu içosos , ociosos e devassos ( . . . ) eles t r a b a l h a m apenas

dois ou t rês dias da semana" 2 8 .

O m i t o da ralé ociosa a t en iense é , p o r t a n t o , u m a que ixa an t iga de s e n h o r

c o n t r a servo, mas acresc ida da u rgênc i a de u m a nova o r d e m social na qua l o

t r a b a l h o assa lar iado e sem p r o p r i e d a d e se t o r n a v a , pela p r i m e i r a vez na h i s tó r i a , o

m o d o d o m i n a n t e d e t r aba lho . N o m e s m o processo d e d e s e n v o l v i m e n t o capi ta l is-

ta , o c o n c e i t o de t r a b a l h o passava t a m b é m p o r ou t ras t r a n s f o r m a ç õ e s . F r e q ü e n t e -

m e n t e , se diz q u e o m u n d o m o d e r n o t e s t e m u n h o u a elevação do t r a b a l h o a um

status cu l tu ra l sem p r e c e d e n t e s q u e deve m u i t o à "ética p r o t e s t a n t e " , e à idéia

calvinis ta do " C h a m a m e n t o " . E, c o m ou sem a "Ética P r o t e s t a n t e " de M a x W e b e r ,

a associação do "espír i to do cap i t a l i smo" c o m a g lor i f icação do t r a b a l h o t o r n o u - s e

p a r t e do saber c o n v e n c i o n a l .

A i n d a assim, e n q u a n t o o capi ta l ismo, c o m os impera t ivos do lucro e da p r o d u -

t iv idade do t r aba lho , t rouxe consigo discipl inas de t r aba lho mais rigorosas, a glorif i -

cação do t r aba lho d u r o foi u m a faca de dois gumes . A ideologia do t r aba lho teve um

s ign i f icado a m b í g u o para os t raba lhadores , p o r jus t i f icar sua suje ição às discipl inas

capitalistas pe lo m e n o s na m e s m a m e d i d a em que elevou o status cu l tu ra l destas.

Mas talvez o p o n t o mais i m p o r t a n t e relativo à t r a n s f o r m a ç ã o do status cu l tura l do

t r aba lho q u e a c o m p a n h o u a ascensão do capi ta l i smo seja a c o n f u s ã o en t re t r aba lho

e produtividade, que obse rvamos na discussão de Weber . Essa t r a n s f o r m a ç ã o , c o m o

v imos , já é percept íve l na obra de J o h n Locke e sua concepção de " m e l h o r a m e n t o " .

As v i r tudes do t r a b a l h o de ixam de pe r t ence r i n e q u i v o c a m e n t e aos p róp r io s t raba-

lhadores . Passam a ser, ac ima de t udo , a t r ibutos do capitalista, e n ã o p o r q u e este

t raba lhe , mas p o r q u e util iza ativa e p r o d u t i v a m e n t e sua p r o p r i e d a d e , ao con t rá r io

da ap ropr i ação passiva do rent is ta t radic ional . A "glorificação" do t r a b a l h o no "espí-

r i to do cap i ta l i smo" t e m m e n o s a ver com o status a scenden te do t r a b a l h a d o r do que

c o m o d e s l o c a m e n t o pelo capital da p r o p r i e d a d e a r r endada .

A c o n c e p ç ã o de " t r a b a l h o " c o m o " m e l h o r a m e n t o " e p r o d u t i v i d a d e , q u a l i -

d a d e s q u e p e r t e n c e m m e n o s aos t r a b a l h a d o r e s q u e a o c a p i t a l i s t a q u e a s ac io -

na , es tá no c e n t r o da " i d e o l o g i a b u r g u e s a " e se r e p r o d u z c o n s t a n t e m e n t e na

l i n g u a g e m d a e c o n o m i a m o d e r n a , n a q u a l o s " p r o d u t o r e s " n ã o são o s t r a b a -

l h a d o r e s , m a s o s cap i t a l i s t a s . Ela d e n u n c i a u m a o r d e m e c o n ô m i c a em q u e a

p r o d u ç ã o se s u b o r d i n a a i m p e r a t i v o s de m e r c a d o e em q u e o m e c a n i s m o m o -

t o r é a c o m p e t i ç ã o e a m a x i m i z a ç ã o do l u c r o , n ã o as c o a ç õ e s " e x t r a - e c o n ô m i -

cas" d a p r o p r i e d a d e p o l i t i c a m e n t e c o n s t i t u í d a , m a s o s i m p e r a t i v o s p u r a m e n t e

" e c o n ô m i c o s " d o m e r c a d o q u e e x i g e m p r o d u t i v i d a d e c r e s c e n t e d o t r a b a l h o .

"8 D E F O E , Daniel . The Great Law of Subordination Consider'd'; or; the Insolence and Unsujferable Behavior of Servants in

England enquir'd into (1724), ci tado em T h o m p s o n , Customs, p. 37.

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O T R A B A L H O E A D E M O C R A C I A A N T I G A E M O D E R N A

As re lações sociais de p r o p r i e d a d e q u e a c i o n a m esse m e c a n i s m o c o l o c a r a m o

t r a b a l h o n u m a p o s i ç ã o h i s t ó r i c a ú n i c a . S u b m e t i d o a i m p e r a t i v o s e c o n ô m i c o s q u e

n ã o d e p e n d e m d i r e t a m e n t e d o s t a t u s j u r í d i c o o u p o l í t i c o , o t r a b a l h a d o r assa la r ia -

d o s e m p r o p r i e d a d e s ó p o d e d e s f r u t a r n o c a p i t a l i s m o d a l i b e r d a d e e d a i g u a l d a d e

j u r í d i c a s , e a t é m e s m o d e t o d o s o s d i r e i t o s p o l í t i c o s d e u m s i s t e m a d e s u f r á g i o

u n i v e r s a l , d e s d e q u e n ã o re t i re do cap i t a l o seu p o d e r de a p r o p r i a ç ã o . É a q u i q u e

e n c o n t r a m o s a m a i o r d i f e r e n ç a e n t r e a c o n d i ç ã o do t r a b a l h o na a n t i g a d e m o c r a -

cia a t e n i e n s e e no c a p i t a l i s m o m o d e r n o .

TRABALHO E DEMOCRACIA - o ANTIGO E O MODERNO

Na d e m o c r a c i a cap i t a l i s t a m o d e r n a , a d e s i g u a l d a d e e a e x p l o r a ç ã o s o c i o e c o n ó -

m i c a s c o e x i s t e m c o m a l i b e r d a d e e a i g u a l d a d e cívicas. Os p r o d u t o r e s p r i m á r i o s

n ã o são j u r i d i c a m e n t e d e p e n d e n t e s n e m d e s t i t u í d o s d e d i r e i t o s p o l í t i c o s . N a a n t i -

ga d e m o c r a c i a , a i d e n t i d a d e cívica t a m b é m era d i s soc iada do status s o c i o e c o n ó m i c o ,

e ne la a i g u a l d a d e p o l í t i c a t a m b é m coexis t i a c o m a d e s i g u a l d a d e de classe. M a s

p e r m a n e c e a d i f e r e n ç a f u n d a m e n t a l . N a s o c i e d a d e cap i t a l i s t a , o s p r o d u t o r e s p r i -

m á r i o s são s u j e i t o s a p res sões e c o n ô m i c a s i n d e p e n d e n t e s de sua c o n d i ç ã o po l í t i c a .

O p o d e r do cap i t a l i s t a de se a p r o p r i a r da ma i s -va l i a d o s t r a b a l h a d o r e s n ã o d e p e n -

de de p r iv i l ég io j u r í d i c o n e m de c o n d i ç ã o cívica, m a s do f a t o de o s t r a b a l h a d o r e s

n ã o p o s s u í r e m p r o p r i e d a d e , o q u e os o b r i g a a t r o c a r sua fo r ça de t r a b a l h o p o r um

sa lá r io p a r a t e r acesso aos m e i o s de t r a b a l h o e de s u b s i s t ê n c i a . Os t r a b a l h a d o r e s

e s t ão s u j e i t o s t a n t o ao p o d e r do cap i t a l q u a n t o aos i m p e r a t i v o s da c o m p e t i ç ã o e

da m a x i m i z a ç ã o dos luc ros . A s e p a r a ç ã o da c o n d i ç ã o c ívica da s i t u a ç ã o de classe

na s s o c i e d a d e s cap i t a l i s t a s t e m , a s s im, do i s l a d o s : de u m , o d i r e i t o de c i d a d a n i a

n ã o é d e t e r m i n a d o p o r p o s i ç ã o s o c i o e c o n ó m i c a — e , n e s t e s e n t i d o , o c a p i t a l i s m o

coex i s t e c o m a d e m o c r a c i a f o r m a l de o u t r o , a i g u a l d a d e cívica n ã o a f e t a d i r e t a -

m e n t e a d e s i g u a l d a d e de classe, e a d e m o c r a c i a f o r m a l d e i x a f u n d a m e n t a l m e n t e

i n t a c t a a e x p l o r a ç ã o de classe.

E m c o m p a r a ç ã o , n a d e m o c r a c i a a n t i g a hav ia u m a classe d e p r o d u t o r e s p r i m á -

rios j u r i d i c a m e n t e livres e p o l i t i c a m e n t e p r iv i l eg iados , e q u e e r a m , ao m e s m o t e m p o ,

l ivres da n e c e s s i d a d e de e n t r a r no m e r c a d o p a r a g a r a n t i r o acesso às c o n d i ç õ e s de

t r a b a l h o e de s u b s i s t ê n c i a . Sua l i b e r d a d e civil n ã o era , c o m o a do t r a b a l h a d o r

a s sa l a r i ado m o d e r n o , n e u t r a l i z a d a pe las p ressões e c o n ô m i c a s d o c a p i t a l i s m o . C o m o

n o c a p i t a l i s m o , o d i r e i t o d e c i d a d a n i a n ã o era d e t e r m i n a d o p e l a c o n d i ç ã o soc ioe -

c o n ó m i c a , m a s , ao c o n t r á r i o do c a p i t a l i s m o , a s re lações e n t r e classes e r a m d i r e t a e

p r o f u n d a m e n t e a f e t a d a s pe la c o n d i ç ã o civil. O e x e m p l o m a i s ó b v i o é a d i v i s ã o

e n t r e c i d a d ã o s e e sc ravos . M a s a c i d a d a n i a d e t e r m i n a v a d i r e t a m e n t e t a m b é m de

o u t r a s f o r m a s a s r e lações e c o n ô m i c a s .

A c i d a d a n i a d e m o c r á t i c a e m A t e n a s s ign i f i cava q u e o s p e q u e n o s p r o d u t o r e s

e s t a v a m livres de ex to r sõe s e x t r a - e c o n ô m i c a s à s qua i s o s p r o d u t o r e s d i r e t o s na s

s o c i e d a d e s p r é - c a p i t a l i s t a s s e m p r e f o r a m s u b m e t i d o s . P o r e x e m p l o , e s t a v a m livres

das p i l h a g e n s , m e n c i o n a d a s p o r H e s í o d o , d o s s e n h o r e s " d e v o r a d o r e s d e p r e s e n -

tes", q u e u s a v a m p o d e r e s j u r i s d i c i o n a i s p a r a s a q u e a r o c a m p e s i n a t o ; ou da c o a ç ã o

d i r e t a d a classe d o m i n a n t e e s p a r t a n a , q u e e x p l o r a v a o s h i l o t a s p o r m e i o d o e q u i -

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D E M O C R A C I A C O N T R A CAPITALISMO

valente a uma ocupação militar; ou das obrigações feudais dos camponeses medie-vais, sujeitos aos poderes jurisdicionais dos senhores; ou dos impostos do absolu-tismo europeu, em que a função pública era instrumento primário de apropriação privada; e assim por diante. Enquanto os produtores diretos continuassem livres de imperativos puramente "econômicos", a propriedade politicamente constituída con-tinuaria a ser um recurso lucrativo, como instrumento de apropriação privada ou, alternativamente, como proteção contra a exploração; e, nesse contexto, a condição civil do cidadão ateniense era um bem valioso que tinha implicações econômicas diretas. A igualdade política não somente coexistia com a desigualdade socioeco-nómica, mas também a modificava substancialmente, e a democracia era mais substantiva que "formal".

Na antiga Atenas, a cidadania tinha profundas conseqüências para campone-ses e artesãos; e, evidentemente, uma mudança da condição jurídica dos escravos — ou das mulheres - teria transformado inteiramente a sociedade. No feudalismo, seria impossível distribuir privilégio jurídico e direitos políticos sem transformar as relações sociais de propriedade existentes. Somente no capitalismo se tornou possível deixar fundamentalmente intactas as relações de propriedade entre capi-tal e trabalho enquanto se permitia a democratização dos direitos políticos e civis.

Mas nunca foi óbvio que o capitalismo poderia sobreviver à democracia, pelo menos nesse sentido "formal". A medida que o crescimento das relações de pro-priedade capitalistas começou a separar propriedade de privilégio, principalmente onde o trabalho livre ainda não estava sujeito às novas disciplinas do capitalismo industrial e à falta absoluta de propriedade, as classes dominantes da Europa pas-saram a se preocupar muito com os perigos oferecidos pela multidão trabalhado-ra. Durante muito tempo, parecia que a única solução seria a preservação de algum tipo de divisão entre governantes e produtores, entre uma elite proprietária politi-camente privilegiada e uma multidão trabalhadora destituída de direitos. Desne-cessário dizer, os direitos políticos também não foram distribuídos generosamente quando por fim se garantiu às classes trabalhadoras o acesso a eles, depois de longas lutas populares que enfrentaram fortes resistências.

Nesse meio tempo, a antiga idéia grega fora derrotada por uma concepção completamente nova de democracia. O momento crítico dessa redefinição, que teve o efeito (e a intenção) de diluir o significado de democracia, foi a fundação dos Estados Unidos, de que vou tratar no próximo capítulo. Ainda assim, por mais que as classes dominantes da Europa e dos Estados Unidos tivessem temido a extensão dos direitos políticos para a multidão trabalhadora, no final, os direitos políticos na sociedade capitalista já não tinham a importância que tinha a cidadania na antiga democracia. A conquista da democracia formal e do sufrágio universal certamente representou um enorme avanço histórico, mas no final o capitalismo ofereceu uma nova solução para o velho problema de governantes e produtores. Já não era mais necessário corporificar a divisão entre privilégio e trabalho numa divisão política entre os governantes apropriadores e os súditos trabalhadores, uma vez que a democracia poderia ser confinada a uma esfera "política" formalmente separada, enquanto a "economia" seguia regras próprias. Se já não era possível

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O T R A B A L H O E A D E M O C R A C I A A N T I G A E M O D E R N A

res t r ing i r o t a m a n h o do c o r p o de c idadãos , o a lcance da c i d a d a n i a p o d i a e n t ã o ser

f o r t e m e n t e l i m i t a d o , m e s m o sem a i m p o s i ç ã o de l imi tes c o n s t i t u c i o n a i s .

O c o n t r a s t e e n t r e a c o n d i ç ã o do t r a b a l h o na a n t i g a d e m o c r a c i a e no c a p i -

t a l i s m o m o d e r n o c o n v i d a a a l g u m a s p e r g u n t a s d e g r a n d e i m p o r t â n c i a : n u m

s i s t e m a e m q u e o p o d e r p u r a m e n t e " e c o n ô m i c o " s u b s t i t u i u o p r i v i l é g i o p o l í t i -

co, q u a l o s i g n i f i c a d o de c i d a d a n i a ? O q u e seria n e c e s s á r i o p a r a se r e c u p e r a r ,

n u m c o n t e x t o m u i t o d i f e r e n t e , a i m p o r t â n c i a d a c i d a d a n i a n a a n t i g a d e m o -

crac ia e o status do c i d a d ã o t r a b a l h a d o r ?

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