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Do valor Nfl SUA EXPOSIÇÃO CARVÃO de ABEL SALAZAR A exposição de obras de de- senho, pintura e gravura do Dr. Abel Salazar, que acaba de ser iniciada no Salão Silv Porto, constitue um aconteci- mento importante na vida in- telectual desta cidade. Não nos seria difícil de- monstrar que se trata duma colecção de extraordinário va- lor. O Dr. Abel Salazar é inega- velmente um homem notável, e a causa do comportamento dum homem notável é assun- to de tão grande importância cultural, que se torna desne- cessário repetir. As civilizações florescem e frutificam ao calor do estudo profundo da conducta do ho- mem em face da natureza e o comportamento artístico c desde tempos remotos a fonte onde melhor se mata a sede de conhecimento. Da obra magnifica dos ar- tistas desentranhamos a his- tória profunda da vida dum momento; seus horizontes desdobram-se para além do mundo lrlante da beleza das formas e dos sons, neles re- side uma grandeza moral muito maior: a contribuição infinitamente grande e infini- tamente pura à luta pela po- sitivação dos valores desco- nhecidos. Na batalha exaustiva do consciente pela posse dos se- gredos que habitam as entra- nhas psíquicas da humanida- de, a obra de arte representa um aliado poderoso, como par- cela mais livre do ser huma- no. Ela é a expressão dos de- sejos da humanidade antes que a submissão ao consciente moral faça de nós senhores ou escravos duma ética que exal- tou em dogma a coerção dos Instintos; antes que nos trans- forme na alegria duma ver- dade consentida ou na tortura duma mentira imposta. A parte maior dessa maté- ria bruta, que o exame cons- ciente aparta e classifica, está contida na obra de arte. Por ela, não só o homem-artlsta entrega a sua verdade ao co- nhecimento dos homens, mas também, como diz André Glde, por ela o artista se pode conhecer a si mesmo. Nela, no seu todo, no apro- veitado e no regeitado pelas leis morais, residem ensina- mentos para leis melhores, porque a obra de arte repre- senta a materialização duma força Intima maior que a consciente; a razão profunda do que se faz e a causa dos variados aspectos duma tor- tura, por impotência de since- ridade. A obra de arte é toda a vida: a alegria e a dôr nos seus múl- tiplos variantes. Posta de parte a idea de uma identidade absoluta, só possível nas matemáticas, sur- ge-nos a obra de arte como um dos mais perfeitos aspec- tos de identidade: a identi- dade do sêr à realização. Uma verdadeira obra de arte é uma emoção que se ma- terializa, quer directamsnte por analogia (no objecto da origem) quer per simbolismo objecto). O que a caracteriza é que a sua incorporação ma- terial faz-se dentro da esfera do ser vital com uma minima intervenção do ser social. Assim o seu grau de pureza é evidente, o que lhe garante uma qualidade excepcional de valor útil como elemento de análises e pesquisas culturais. Seu grande valor moral reside na sua constituição, a qual torna possível a ânsia de toda a cultura: tornar conhecido o maior número de parcelas do todo desconhecido. Além do valor emocional que se representa no facto de uma obra bela gerar no mun- do que a rodeia (por emoção) novas obras belas, a obra de arte contém o gérmen de va- lores cientiíicos pelo facto de apresentar productos para in- vestigação, que se erguem aci- ma da banalidade. «Se um dia eu tivesse de julgar os homens, eu conde- ná-los-ia em face das suas obras de pintura e assim não cometeria erros judiciários». Estas palavras, do pintor M. Vlammlnck, é uma opinião sincera a favor da utilidade moral da arte. Ouvindo Charles Baudoln (Le déplacement afíéctií) afirmar que «uma das funções da arte é de manter a mobili- dade da energia, de evitar a esclerose afectiva», fácil nos será aquilatar o valor da con- tribuição da arte às ciências psicológicas, quer nos fenóme- nos de transferência dc Rlbot e Freud, quer nas caracterolo- gias como a de Krebchmer. Se os valores da crítica ob- jectiva da arte apenas quali- tativos são já preciosos, o que não diremos se num futuro próximo pudéssemos chegar ao resultado quantitativo da identidade entre o artista e a sua obra? Seria um passo de gigante para o conhecimento do ho- mem. Entretanto a observação do paralelismo artista e stia obra de arte é hoje um dos mais perfeitos aspectos do liame qualitativo entre a causa e o efeito. Porque a arte não é, como na estética metafísica de Pla- tão, «o reflexo do supra-terre- no ou a representação do In- finito no Finito». A arte é o mais breve vladucto para o desconhecido, o qual a ciência vem tornando cada vez mais conhecido. A obra de arte não é apenas um aspecto fisioló- gico do meio, mas sim o as- pecto profundamente psicoló- gico da sociedade; auxiliar precioso das ciências, a arte deve ser encarada abertamen- te como função utilíssima. Assim se verifica o extraor- dinário vaiòr desta exposição, porque nesses trabalhos, pro- ductos livres da sensibilidade de Abel Salazar, terão de es- tar, cor força, aspectos da causa do notável comporta- mente do eminente artista. E se inúmeras razões dos que o conhecem nào bastas- sem, ai estariam esses trezen- tos e tantos trabalhos a afir- mar que Abel Salazar é, sobre- tudo e antes de tudo, um ar- tista criador. Todo o seu com- portamento como indivíduo social, homem pintor, homem de ciências ou de filosofia, te- remos de basear, para o com- preendermos, numa poderosa emotividade realizadora. E que realizador! Na mobi- lidade desse olhar perfurante, na dinâmica expressiva desse auto-retrato que figura no ca- tálogo da exposição sob o tl' 126, exprime-se a razão inte- rior dessa obra extraordiná- ria. A identidade acima referida é aqui evidente. Tal homem não poderia exercer sob a ordem directa do sistema nervoso outra té- cnica que não fosse aquela. A sua obra é acima de tudo duma tal grandeza humana, que constitue caso único em toda a nossa arte. Sem ter a riqueza plástica de Delacroix, êle tem a fugo- sldade do seu lirismo; sem as lamentações sociais de Dau- mler, êle possui o vlgôr re- lampejante do desenho e a profunda humanidade desse artista francês. Ele pertence a essa espécie de seres que com Goya, Géri- cault, Delacroix. Rodin, Rude, Barye, Beethoven e tantos mais, afirmou no mundo o do- mínio dogmático das forças interiores de Miguel Angelo. O tempo, ao rodar, confir- mará a levantada dignidade dessa obra Imensamente hu- mana, colocando no lugar de- vido o único dos artistas por- tugueses que, por função tem- peramental, encontrou a febre dos seus nervos ao serviço da iluminação clara da grandeza dos humildes. Nas suas tábuas frenéticas abre-se a escuridão das nossas ruas, corredores trágicos, are- na onde se forja a epopeia rude dos heróicos lutadores das mãos calosas. Como Callot, Le Natn, Dau- mLer, Meunier e Millet, Abel Salazar contempla-os com co- ragem, sem risos nem lágri- mas; a sua contemplação é vigorosa e profunda. Essas fortes mulheres agin- do na escuridão da humilda- do £ nascente artístico de Abel Salazar DE PINTURA, DESENHO E GRAVURA por JOÃO ALBERTO de, entregando à luz seus músculos vlctorlosos da carga monumental dos seus destinos, resumem ali, nas suas Unhas épicas, a epopeia das vidos de trabalho. Mulheres que moirejam sob as Intempéries, na luta furiosa pela conservação duma espé- cie que o destino engeitou, en- contram-se simbolicamente dignificadas na humaníssima obra de Abel Salazar. Como os grandes artistas, êle nâo copia as proporções ordinárias; as trabalhadoras poderosas dos seus desenhos são como os so- berbos brutos da Kermesse de Rubens, o resumo exaltado do carácter essencial que lhes é próprio. Abel Salazar admira-as e a sua admiração sublima-se nessa espiritualização magní- fica que se chama «A barre- la»; esplêndido conflito de luz e sombra onde a mulher que trabalha tem o diáfano as- pecto branco duma visão an- gelical. ao fogo do amor, dum grande amor humano, se mu- daria em visão de pureza lu- minosa, a natureza rude duma escrava, e em branca irradia- ção de luz argêntea o objecto dum trabalho duro. «Enchendo sacos», «Traba- lho», «Mulheres na doca»; sob estes títulos tão simples re- soam cânticos intempestivos de sentimentos revoltos. Nesses fundos betuminosos, nesses fundos ardentes, em castanhos-vermelhos, contrai- se uma inteira multidão de trabalho e dever; poucos des- cansam. E quando o sol as banha, a sua luz não é alegre e quente, mas apenas estra- nha e alucinada. Luz que é uma toada pessoal do artista que a pintou. Nos poucos trabalhos em que a obra vai além do es- quisso, o nervosismo exprl- me-se num expressionismo pointllista frenético e alvoro- çado; ora álgldo nos seus gri- ses azuis, ora quente de orien- tallsmo sensual de cenas como «A Ribeira ao sol». A pintura de Abel Salazar é exemplo marcado da arte subjectiva. Dessa arte que des- ponta com a primasia indivi- dualista dos objectos nos do claro-escuro, que se afirma no despotismo óptico de Velas- quez, e depois de revigorada pelo individualismo triunfante do século XIX, soíta um hino glorioso no radiante impres- sionismo e isola-nos no exagero do expressionismo de Ka- dinski. Pintura subjectiva, triunfo absoluto da tendência expres- siva sobre a tendência formal do artista. Arte de desiquilibrio em que a potência irrefreável do con- teúdo emocional rompe a frá- gil barreira dos preconceitos clássicos. Triunfo de Goya sobre o rafaelista Mengs; impotência de Ingres contra Delacroix. Aberração dum Ideal sonha- do, esta exuberante tendência expressiva gera obras eterna- mente perceptíveis na sua for- ma expontânea. Bem sei que, em arte, o Ideal seria, como prefere Meumann, um equilíbrio e harmonia per- feito entre a tendência ex- pressiva natural e a tendência formal artística. Porém, as possibilidades deste equilíbrio dependem do temperamento do artista e como os tempera- mentos por sua vez são resul- tados da reacção da consti- tuição orgânica do individuo com a do melo que o contem, nada nos leva a esperar, em tempos tão revoltos, aspectos duma grande arte equilibrada. Resta-nos pois esperar a ru- ptura desse equilíbrio dese- jado. E' ainda Meumann quem nos aponta duas formas dege- neradas desse impossível. «As aberrações desse ideal podem consistir ou em que predomine a forma e então temos uma arie fria, ama- nelrada, ou em que predomine a expressão e então temos uma arte exuberante, revolu- cionária, subjectlvlsta.» Abel Salazar entregando a sua obra aparentemente ina- cabada preenche cabalmente o desejo natural de todo o ar- tista: a expressão da sua emo- ção primária com a força per- durável duma obra objectiva. A Objectividade em expres- são é uma necessidade natural mas constitue apenas uma qualidade da expressão emo- cional. O pintor que sacrifica a expressão emocional, em fa- vor da objectividade extrín- seca do meio, deixa de ser ar- tista para ser um artífice. • Em Abel Salazar o máximo da objectividade possível é aquela pintura subjectiva. Poder-se-ia acusar a obra de Abel Salazar de não ser acabada? Não; o acabamento duma obra depende do tem- peramento do artista. O qua- dro está acabado quando o ar- tista terminou tudo o que que- ria dizer. O melhor da obra de Abel Salazar resume-se nos seus grandes esqulssos, porque o trabalho patente nos primei- ros traços ultrapassa em po- tência e expressão a obra que nos poderia prometer. O esquisso contem em si uma potência afectiva e su- gestiva que o quadro nunca alcança; èle é a parte mais séria da pintura, como disse Poussln, «aquela que se não faz a assobiar». Pelo esquisso é que a obra pictural de Abel Salazar é de valor extraordinário, porque além do seu valor estético ela constitue uma preciosa con- tribuição ao conhecimento do homem. O argumento de que os seus quadros não são acabados não se prova. Há obras acabadas, como o Balzac de Rodin. que poucos julgariam acabadas. Pode-se, de facto, objectar que Abel Salazar sendo um bom artista nâo é todavia grande pintor. Uma obra de arte, nem sem- pre é uma boa pintura, e eu prefiro algumas das pinturas pretas de Goya às enfáticas produções da escola neo-gre- ga. Mas falando, para classifi- cação, na palavra pintor, sur- ge-nos a necessidade de nos entendermos quanto ao signi- ficado deste vocábulo. O adjectivo pintor é um pre- dicativo de sujeito relativo a um ofício, o qual parece estar condicionado a um fim per- feitamente demarcado. Para se dizer que o Individuo A é pintor, é absolutamente indis- pensável que esse Individuo faça pintura. Então, surge-nos a necessidade de nos esclare- cermos sobre a palavra piri- tura. Ora pintura designa um modo de comportamento do Individuo, cujo fim é a repre- sentação de um objecto ou vários objectos visíveis e invi- síveis com as proporções e co- res convenientes. Portanto pintura é uma arte de imitação. Como imi- tação representa acção de imitar, temos que, cm face da representação e do objecto imitado, podemos verificar fa- cilmente, por comparação, o valor da imitação. Porém, isto somente no que se refere ã Imitação dos objectos visíveis (pintura cbjectlva). Quanto ao que diz respeito à imitação dos objectos Invisíveis (pin- tura subjectiva) flca-nos ve- dada toda e qualquer critica objectiva por falta do ele- mento de comparação. (Por Isto a critica de arte envere- dou pelo campo psicológico, baseando-se no parentesco ar- tista-obra de arte, conseguin- do, desta forma, maiores ho- rizontes e preenchendo melhor seus fins utilitários). Classificando Abel Salazar como grande pintor subjectl- vlsta, difícil me parece uma contestação positiva a este juízo. A critica da pintura, através da análise à técnica, pare- ce-me incoerente quando se trata dum pintor subjectivis- ta, entendendo por pintor subjectlvlsta aquele que ante- põe a sua expressão emocio- nal à necessidade natural da expressão objectiva. Quando atrás me referi à técnica da pintura, quis refe- rlr-me ao conjunto dos seus processos que são productos de investigações sobre a ma- téria, de forma a torná-la apta, o mais possível, para o cabal preenchimenteo do fim imitativo. Mas como avaliar o valor da técnica? Apenas através da comparação entre o seu resul- tado prático (obra) e o objecto imitado (modelo). Na pintura subjectlvlsta é melhor técnica aquela que o pintor entendeu preencher plenamente o seu desejo de expressão, porque só êle conhece o aspecto da sua emoção originária. Na pintura de Abel Salazar não me parece encontrar, de facto, sinais de que o seu au- tor possua grande capacidade técnica (falo da pintura, não do desenho), mas a natureza especial da sua pintura ne- ga-me o direito de o afirmar. Não é difícil constatar na- quela obra exposta deficiên- cias escusadas e necessidades mal supridas; mas a sua obra é de tal maneira cheia de cambiantes que nào sei se essa pintura representa Inca- pacidade técnica, tudo me le- vando a deduzir ser isso um resultado do seu tempera- mento. Mormente no desenho, a presença de ótimos trabalhos tiram-nos todo o direito de falarmos em Incapacidade té- cnica. O que é indiscutível é o pouco cuidado na condicção de perdurabilidade da sua obra pictural, pois isto está bem evidente, quer no abuso de veladuras e esjregaços quer mesmo no emprego imoderado de betumes, vernizes e secan- tes. Creio até que o seu defeito como pintor é esse desleixo com processos e finalidades.. Mas não será esse desleixo uma das notas mais vibrantes do seu valor artístico, a ex- pressão mais sincera do seu temperamento irreverente? Seja como fõr, Abel Salazar é um grande artista. sol nascente onze

Do valor artístico de Abel Salazar - uevora.pt · de Abel Salazar, terão de es tar, cor força, aspectos da causa do notável comporta-mente do eminente artista. E s e inúmeras

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Page 1: Do valor artístico de Abel Salazar - uevora.pt · de Abel Salazar, terão de es tar, cor força, aspectos da causa do notável comporta-mente do eminente artista. E s e inúmeras

Do v a l o r Nfl SUA EXPOSIÇÃO

CARVÃO de ABEL SALAZAR

A exposição de obras de de­senho, pintura e gravura do Dr. Abel Salazar , que acaba de ser iniciada no Sa lão S i l v Porto, const i tue um acontec i ­mento importante na vida in­telectual desta cidade.

Não nos seria difícil de­monstrar que se t r a t a duma colecção de extraordinário va­lor.

O Dr. Abel Sa lazar é inega­velmente um homem notável, e a causa do comportamento dum homem notável é assun­to de tão grande importância cultural, que se torna desne­cessário repetir.

As civilizações florescem e frutificam ao calor do estudo profundo da conducta do ho­mem em face da natureza e o comportamento ar t í s t ico c desde tempos remotos a fonte onde melhor se m a t a a sede de conhecimento.

Da obra magnif ica dos a r ­t istas desentranhamos a his­tória profunda da vida dum momento; s e u s horizontes desdobram-se para além do mundo lr lante da beleza das formas e dos sons, neles r e ­side uma grandeza moral muito maior: a contribuição inf ini tamente grande e infini­tamente pura à luta pela po-sit ivação dos valores desco­nhecidos.

Na ba ta lha exaustiva do consciente pela posse dos se ­gredos que habi tam as en t ra ­nhas psíquicas da humanida­de, a obra de a r t e representa um aliado poderoso, como par­

cela mais livre do ser huma­no. E la é a expressão dos de­sejos da humanidade antes

que a submissão ao consciente moral faça de nós senhores ou escravos duma ética que exal ­tou em dogma a coerção dos Instintos; an tes que nos t rans­forme na alegria duma ver­dade consentida ou na tortura duma ment i ra imposta.

A parte maior dessa maté ­ria bruta, que o exame cons­ciente apar ta e classifica, es tá contida na obra de arte . Por ela, não só o homem-ar t l s ta entrega a sua verdade ao c o ­nhecimento dos homens, mas também, como diz André Glde, só por ela o ar t is ta se pode conhecer a si mesmo.

Nela, no seu todo, no apro­veitado e no regeitado pelas leis morais , residem ensina­mentos para leis melhores, porque a obra de ar te repre­senta a material ização duma força Int ima maior que a consciente; a razão profunda do que se faz e a causa dos variados aspectos duma tor­tura, por impotência de since­ridade.

A obra de ar te é toda a vida: a alegria e a dôr nos seus múl­tiplos variantes.

Posta de parte a idea de uma identidade absoluta, só possível nas matemát icas , sur­ge-nos a obra de ar te como um dos mais perfeitos aspec­tos de identidade: a identi­dade do sêr à realização.

U m a verdadeira obra de ar te é uma emoção que se ma­terializa, quer di rectamsnte por analogia (no objecto da origem) quer per simbolismo ob jec to ) . O que a caracteriza é que a sua incorporação ma­

terial faz-se dentro da esfera do ser vital com uma minima intervenção do ser social.

Assim o seu grau de pureza é evidente, o que lhe garante uma qualidade excepcional de valor útil como elemento de análises e pesquisas culturais. Seu grande valor moral reside na sua consti tuição, a qual torna possível a ânsia de toda a cultura: tornar conhecido o maior número de parcelas do todo desconhecido.

Além do valor emocional que se representa no facto de uma obra bela gerar no mun­do que a rodeia (por emoção) novas obras belas, a obra de arte contém o gérmen de va­lores c ient i í icos pelo facto de apresentar productos para in­vestigação, que se erguem ac i ­m a da banalidade.

«Se um dia eu tivesse de ju lgar os homens, eu conde­ná- los- ia em face das suas obras de pintura e assim não cometer ia erros judiciários». Estas palavras, do pintor M. Vlammlnck, é uma opinião s incera a favor da utilidade moral da ar te .

Ouvindo Charles Baudoln ( L e déplacement a f í éc t i í ) a f i rmar que «uma das funções da ar te é de man te r a mobili­dade da energia, de evi tar a esclerose afectiva», fácil nos será aquilatar o valor da con­tr ibuição da ar te às ciências psicológicas, quer nos fenóme­nos de transferência dc Rlbot e Freud, quer nas carac terolo-gias como a de Krebchmer.

Se os valores da crí t ica ob­jec t iva d a a r t e apenas quali­tativos são j á preciosos, o que não diremos se num futuro próximo pudéssemos chegar ao resultado quantitativo da identidade entre o ar t is ta e a sua obra?

Se r i a um passo de gigante para o conhecimento do ho­mem.

En t re tan to a observação do paralelismo artista e stia obra de arte é hoje um dos mais perfeitos aspectos do liame qualitativo entre a causa e o efeito.

Porque a ar te não é, como na estética metaf ís ica de P la­tão, «o reflexo do supra- terre-no ou a representação do In ­finito no Finito». A a r t e é o mais breve vladucto para o desconhecido, o qual a ciência vem tornando cada vez mais conhecido. A obra de ar te não é apenas um aspecto fisioló­gico do meio, m a s sim o a s ­pecto profundamente psicoló­gico da sociedade; auxil iar precioso das ciências, a a r te deve ser encarada aber tamen­te como função utilíssima.

Assim se verifica o extraor­dinário vaiòr desta exposição, porque nesses trabalhos, pro­ductos livres da sensibilidade de Abel Salazar , terão de es­t a r , co r força, aspectos da causa do notável comporta-mente do eminente ar t is ta .

E se inúmeras razões dos que o conhecem nào bas tas­sem, a i es tar iam esses trezen­tos e tantos trabalhos a af i r ­m a r que Abel Sa lazar é, sobre­tudo e antes de tudo, um a r ­tista criador. Todo o seu com­por tamento como indivíduo social, homem pintor, homem de ciências ou de filosofia, t e ­remos de basear, para o com­preendermos, numa poderosa emotividade realizadora.

E que realizador! Na mobi­lidade desse olhar perfurante, na dinâmica expressiva desse auto-re t ra to que figura no c a ­tálogo da exposição sob o tl' 126, exprime-se a razão inte­rior dessa obra extraordiná­r ia .

A identidade ac ima referida é aqui evidente.

T a l homem não poderia exercer sob a ordem directa do sistema nervoso outra t é ­cnica que não fosse aquela.

A sua obra é ac ima de tudo duma tal grandeza humana, que consti tue caso único em toda a nossa ar te .

Sem ter a riqueza plástica de Delacroix, êle tem a fugo-sldade do seu lirismo; sem as lamentações sociais de Dau-mler, êle possui o vlgôr r e ­lampejante do desenho e a profunda humanidade desse ar t is ta francês.

Ele pertence a essa espécie de seres que com Goya, Gér i -cault , Delacroix. Rodin, Rude, Barye, Beethoven e tantos mais, afirmou no mundo o do­mínio dogmático das forças interiores de Miguel Angelo.

O tempo, ao rodar, confir­mará a levantada dignidade dessa obra Imensamente hu­mana, colocando no lugar de­vido o único dos ar t is tas por­tugueses que, por função tem­peramental , encontrou a febre dos seus nervos ao serviço da i luminação c l a ra d a grandeza dos humildes.

Nas suas tábuas frenéticas abre-se a escuridão das nossas ruas, corredores trágicos, are­n a onde se forja a epopeia rude dos heróicos lutadores das mãos calosas.

Como Callot, Le Natn, Dau-mLer, Meunier e Millet, Abel Sa lazar contempla-os com co ­ragem, sem risos nem lágri­mas; a sua contemplação é vigorosa e profunda.

Essas fortes mulheres agin­do na escuridão da humilda­

do £ nascente

a r t í s t i c o de A b e l S a l a z a r DE PINTURA, DESENHO E GRAVURA

por J O Ã O A L B E R T O de, entregando à luz seus músculos vlctorlosos da ca rga monumental dos seus destinos, resumem ali, nas suas Unhas épicas, a epopeia das vidos de t rabalho.

Mulheres que moirejam sob as Intempéries, na luta furiosa pela conservação duma espé­cie que o destino engeitou, en -cont ram-se s imbolicamente dignificadas na humaníss ima obra de Abel Salazar . Como os grandes ar t is tas , êle nâo copia as proporções ordinárias; as t rabalhadoras poderosas dos seus desenhos são como os so ­berbos brutos da Kermesse de Rubens, o resumo exal tado do ca rác te r essencial que lhes é próprio.

Abel Salazar admira-as e a s u a admiração sublima-se nessa espiritualização magní ­f ica que se c h a m a «A barre-la» ; esplêndido confli to de luz e sombra onde a mulher que trabalha tem o diáfano a s ­pecto branco duma visão an­gelical.

S ó ao fogo do amor, dum grande amor humano, se mu­daria em visão de pureza lu­minosa, a natureza rude duma escrava, e em branca i r radia­ção de luz argêntea o objecto dum trabalho duro.

«Enchendo sacos», «Traba ­lho», «Mulheres na doca»; sob estes títulos tão simples r e -soam cânticos intempestivos de sentimentos revoltos.

Nesses fundos betuminosos, nesses fundos ardentes, em castanhos-vermelhos, con t ra i -se uma inteira multidão de trabalho e dever; poucos des­cansam. E quando o sol as banha , a sua luz não é alegre e quente, m a s apenas es t ra ­nha e alucinada. Luz que é uma toada pessoal do ar t is ta que a pintou.

Nos poucos trabalhos em que a obra vai além do es­quisso, o nervosismo exprl-me-se num expressionismo point l l is ta frenético e alvoro­çado; ora álgldo nos seus gri­ses azuis, ora quente de or ien-tallsmo sensual de cenas como «A Ribeira ao sol».

A pintura de Abel Salazar é exemplo marcado da arte subjectiva. Dessa arte que des­ponta com a primasia indivi­dualista dos objectos nos do claro-escuro, que se a f i rma no despotismo óptico de Velas­quez, e depois de revigorada pelo individualismo tr iunfante do século X I X , soíta um hino glorioso no radiante impres­sionismo e isola-nos no exagero do expressionismo de K a -dinski.

P in tu ra subject iva, triunfo

absoluto da tendência expres­siva sobre a tendência formal do ar t is ta .

Arte de desiquilibrio em que a potência irrefreável do con­teúdo emocional rompe a f rá ­gil barreira dos preconceitos clássicos.

Triunfo de Goya sobre o rafaelista Mengs; impotência de Ingres cont ra Delacroix.

Aberração dum Ideal sonha­do, esta exuberante tendência expressiva gera obras e te rna­mente perceptíveis na sua for­m a expontânea.

Bem sei que, em ar te , o Ideal seria, como prefere Meumann, um equilíbrio e harmonia per­fei to entre a tendência e x ­pressiva na tu ra l e a tendência formal a r t í s t ica . Porém, a s possibilidades deste equilíbrio dependem do temperamento do ar t is ta e como os tempera­mentos por sua vez são resul­tados da reacção da const i ­tuição orgânica do individuo com a do melo que o contem, nada nos leva a esperar, em tempos tão revoltos, aspectos duma grande ar te equilibrada.

Res ta-nos pois esperar a ru­ptura desse equilíbrio dese­jado .

E ' a inda Meumann quem nos aponta duas formas dege­neradas desse impossível.

«As aberrações desse ideal podem consistir ou em que predomine a forma e então temos uma a r i e fr ia , a m a -nelrada, ou em que predomine a expressão e e n t ã o temos uma arte exuberante, revolu­cionária, subjectlvlsta.»

Abel Salazar entregando a sua obra aparentemente i na ­cabada preenche cabalmente o desejo natura l de todo o ar­t is ta: a expressão da sua emo­ção pr imária com a força per­durável duma obra objectiva.

A Objectividade em expres­são é uma necessidade natural mas constitue apenas uma qualidade da expressão emo­cional . O pintor que sacrif ica a expressão emocional, em fa ­vor da objectividade extr ín­seca do meio, deixa de ser a r ­tista para ser um art íf ice. •

Em Abel Sa lazar o máximo da objectividade possível é aquela pintura subjectiva.

Poder-se- ia acusar a obra de Abel Sa lazar de não ser acabada? Não; o acabamento duma obra depende do tem­peramento do ar t is ta . O qua­dro está acabado quando o a r ­t ista terminou tudo o que que­r ia dizer.

O melhor da obra de Abel Sa lazar resume-se nos seus grandes esqulssos, porque o t rabalho patente nos primei­ros traços ultrapassa em po­

tência e expressão a obra que nos poderia prometer.

O esquisso contem em si uma potência afectiva e su ­gestiva que o quadro nunca a l cança ; èle é a parte mais sér ia da pintura, como disse Poussln, «aquela que se não faz a assobiar».

Pelo esquisso é que a obra pictural de Abel Salazar é de valor extraordinário, porque além do seu valor estético e la const i tue uma preciosa con­tribuição ao conhecimento do homem.

O argumento de que os seus quadros não são acabados não se prova.

Há obras acabadas, como o Balzac de Rodin. que poucos julgariam acabadas.

Pode-se, de facto, ob jec ta r que Abel Sa lazar sendo um bom ar t is ta nâo é todavia grande pintor.

Uma obra de ar te , nem sem­pre é uma boa p in tura , e eu prefiro algumas das pinturas pretas de Goya às enfá t i cas produções da escola neo-gre-ga.

Mas falando, para classifi­cação, na palavra pintor, sur-ge-nos a necessidade de nos entendermos quanto ao signi­ficado deste vocábulo.

O adjectivo pintor é um pre­dicativo de sujeito relativo a um ofício, o qual parece es tar condicionado a um fim per­fei tamente demarcado. Pa ra se dizer que o Individuo A é pintor, é absolutamente indis­pensável que esse Individuo faça pintura. Então, surge-nos a necessidade de nos esclare­cermos sobre a palavra piri-tura.

Ora pintura designa um modo de comportamento do Individuo, cujo fim é a repre­sentação de um objecto ou vários objectos visíveis e invi­síveis com as proporções e co ­res convenientes.

Por tanto pintura é uma arte de imitação. Como imi­tação representa acção de imitar , temos que, cm face da representação e do objecto imitado, podemos verificar fa­cilmente, por comparação, o valor da imitação. Porém, isto somente no que s e refere ã Imitação dos objectos visíveis (pintura c b j e c t l v a ) . Quanto ao que diz respeito à imi tação dos objectos Invisíveis (pin­tura subject iva) flca-nos ve­dada toda e qualquer cr i t ica object iva por fal ta do ele­mento de comparação. (Por Isto a cr i t ica de arte envere­dou pelo campo psicológico, baseando-se no parentesco ar-tista-obra de arte, conseguin­do, desta forma, maiores ho­

rizontes e preenchendo melhor seus fins ut i l i tár ios) .

Classificando Abel Salazar como grande pintor subject l­vlsta, difícil me parece uma contes tação positiva a este juízo.

A cri t ica da pintura, através da análise à técnica, pare-c e - m e incoerente quando se t r a t a dum pintor subjectivis-ta, entendendo por pintor subjectlvlsta aquele que an t e ­põe a sua expressão emocio­nal à necessidade natural da expressão objectiva.

Quando a t rás m e referi à técnica da pintura, quis refe-r l r -me ao conjunto dos seus processos que são productos de investigações sobre a m a ­téria, de forma a torná-la apta , o mais possível, para o cabal preenchimenteo do fim imitativo.

Mas como avaliar o valor da técnica? Apenas através da comparação entre o seu resul­tado prático (obra) e o objecto imitado (modelo). Na pintura subjectlvlsta é melhor técnica aquela que o pintor entendeu preencher plenamente o seu desejo de expressão, porque só êle conhece o aspecto da sua emoção originária.

Na pintura de Abel Salazar não me parece encontrar , de facto, sinais de que o seu au­tor possua grande capacidade técnica (falo da pintura, não do desenho), mas a natureza especial da sua pintura ne -ga-me o direito de o afirmar.

Não é difícil constatar n a ­quela obra exposta deficiên­cias escusadas e necessidades mal supridas; mas a sua obra é de tal manei ra che ia de cambiantes que nào sei se essa m á pintura representa Inca­pacidade técnica, tudo me le­vando a deduzir ser isso um resultado do seu tempera­mento.

Mormente no desenho, a presença de ótimos trabalhos t i ram-nos todo o direito de falarmos em Incapacidade té ­cnica .

O que é indiscutível é o pouco cuidado na condicção de perdurabilidade da sua obra pictural , pois isto es tá bem evidente, quer no abuso de veladuras e esjregaços quer mesmo no emprego imoderado de betumes, vernizes e secan­tes. Creio a té que o seu defeito como pintor é esse desleixo com processos e finalidades.. Mas não será esse desleixo uma das notas mais vibrantes do seu valor art ís t ico, a e x ­pressão mais s incera do seu temperamento irreverente?

S e j a como fõr, Abel Sa lazar é um grande ar t is ta .

sol nascente onze