Do Sertão as Savanas

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  • 7/24/2019 Do Serto as Savanas

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    Guimares Rosa:

    do serto s savanas

    GUIMARESROSA

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    Ps-Doutora pela Universidade Eduardo Mondlane(Moambique). Doutora em Letras (Letras Clssicas)pela Universidade de So Paulo. Professora da rea

    de Estudos Comparados de Literaturas de LnguaPortuguesa da Universidade de So Paulo.

    Rita Chaves

    G U I M A R E S R O S A

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    GUIMARESROSA

    RESUMOCom base em entrevistas e depoimentos do escritor moambicano Mia Couto, o texto focaliza aspectos deter-minantes para a relevncia de Joo Guimares Rosa na formao do sistema literrio em pases como Angola eMoambique. Conceitos como tradio, modernidade, oralidade, utopia e poltica so revistos por Mia Couto, queidentica outros sentidos para os processos de reinveno lingustica que tambm o ligam a Guimares Rosa.

    PALAVRAS-CHAVEGuimares Rosa; Mia Couto; frica; Lngua portuguesa; Tradio/modernidade; Utopia e poltica.

    ABSTRACTBased on interviews and testimonials by the Mozambiquean writer Mia Couto, the text focuses on decisive aspectsabout Joo Guimares Rosas relevance to literary system formation in countries like Angola and Mozambique.Mia Couto, who identies other meanings for linguistic reinvention processes, is revisiting concepts like tradition,modernity, orality, Utopia, and politics, which also tie him to Guimares Rosa.

    KEYWORDSGuimares Rosa; Mia Couto; Afric; Portuguese language; Tradition/modernity; Utopia and politics.

    Sobre a recepo de Guimares Rosa no Brasilno pode haver dvida. As constantes reedies, a

    produo de trabalhos acadmicos, as adaptaesde seus textos para outras linguagens, a organiza-o de coletneas, revistas e eventos em torno daobra e da vida do autor comprovam a fora de seutrabalho em nosso contexto cultural, colocando-ocomo um dos nomes mais importantes da nossahistria literria. A edio dessa revista vem con-firmar o fato.

    Como intelectual e criador, Guimares Rosaultrapassou os limites do seu pas, sendo tambmconhecida a imensa repercusso de sua obra emoutros continentes. Estudiosos de seu trabalho seespalham por universidades americanas e euro-

    pias. O ndice de inscritos nos eventos, que sobre-tudo nos ltimos anos se vm realizando no Bra-sil, evidencia o prestgio de seus livros em muitospases. H, entretanto, outras faces da repercus-so dessa obra que podem ser identificadas nono desenvolvimento de estudos literrios, mas noprocesso de produo da literatura. esse o casodo continente africano, tomando como baliza osterritrios que foram at os anos 70 do sculo XXocupados por Portugal.

    Pases de independncia recente, Angola eMoambique, por exemplo, no tiveram tempo

    para a consolidao do exerccio crtico como par-te importante do seu quadro cultural. A despeitoda qualidade de alguns trabalhos, relevncia daatividade literria no tem correspondido umaprtica de leitura que interfira vivamente na for-mao de seus sistemas literrios, seja atravs daproduo universitria, seja atravs da crtica jor -nalstica. A relao autor/obra/leitor, destacadapor Candido (1976), em seu notvel Literatura e so-ciedade, como a base do processo de sistematizaoda literatura no quadro da vida nacional, precisater ali, nesses dois contextos, um enquadramentoparticular, com aspectos muito interessantes para

    o campo da Teoria Literria e da Literatura Com-parada. Mas no so propriamente esses os pro-blemas que nos mobilizam no momento.

    Como o assunto Guimares Rosa, o que pau-ta esse texto o levantamento de alguns elementosque nos ajudem a identificar sinais da recepo deRosa, o que equivale a buscar marcas que reve-lem a dimenso do escritor mineiro na produode autores fundamentais na Literatura de Ango-la e Moambique, cujos resultados demonstram

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    largamente a energia de sua presena no s noitinerrio de ficcionistas, mas tambm na hist-ria recente dos universos culturais em que eles seinserem.

    Do conjunto de escritores que podemos vi-sitar, o moambicano Mia Couto, que chegou aossertes e a seu principal escritor pelas mos do an-golano Jos Luandino Vieira, tem explicitado o seutributo, em diversas oportunidades e na forma detextos que abrem perspectivas para a leitura dasressonncias inscritas no dilogo entre as literatu-ras em portugus. Suas colocaes oferecem pistasprodutivas para o evidente e valioso esforo dealguns de nossos estudiosos na tentativa de ela-borar um quadro de anlise que desvende essa in-trincada rede de relaes no domnio da LiteraturaComparada. Vale destacar que so j vrios os tra-balhos produzidos no Brasil sobre a relao entreLuandino e/ou Mia e o autor de Grande Serto:

    veredas1. Tendo em vista a idia principal dessetexto abrir o espao s vozes dos escritores ,concentramo-nos na transcrio de algumas pas-sagens de entrevistas e depoimentos do autor deTerra sonmbulaque indicam rumos para o estudodessas intertextualidades conscientes e cultivadas.O confronto entre a voz autoral e a prtica de suaescrita pode apontar atalhos para aqueles que de-sejarem persistir na explorao dessas travessias.

    O SERT O NO NDICOOs primeiros contatos de um leitor brasileiro

    com a obra de Mia Couto, um dos mais conhe-cidos escritores africanos entre ns, colocam-nodiante da notria presena do escritor mineirona histria da narrativa produzida em lngua por-tuguesa na frica. Chama a ateno, partida, oprocesso de desmontagem do idioma imposto coma colonizao e somos levados a pensar no com-plexo problema da expresso num contexto scio-poltico-cultural marcado pela heterogeneidade epela contradio. E, na sequncia, somos levados

    a refletir acerca dos laos que se criaram entre oBrasil e o continente africano, laos que nascemcom o trfico de pessoas na industrializao daescravido, mas que no se encerram com a abo-lio oficial da escravatura. Modificados, revistos,atualizados, os elos se mantm e encontram ecotambm na criao literria e na sua capacidade deexprimir o jogo de semelhanas e diferenas que ahistria vai elaborando.

    Em diversas entrevistas e sobretudo em suas

    vindas ao Brasil, Mia Couto convidado a falarde sua relao com o Brasil, com a Literatura Bra-sileira e, de modo especial, com Guimares Rosa.Podemos localizar pelo menos dois momentos emque ele elabora snteses da sua prpria interpre-tao da importncia de Guimares Rosa em suatrajetria de escritor: em agosto de 2004, numa co-municao apresentada na Academia Brasileira deLetras e a que deu o ttulo de O serto brasileirona savana moambicana e em julho de 2007, numaconferncia em Belo Horizonte, intitulada Encon-tros e encantos Rosa em Moambique2. Sem se deternas consequncias que podemos ver materializa-das em seu texto, Mia Couto concentra sua aten-o em problemas que esto na origem de algumasconvergncias que os estudiosos vm detectando.Nas duas ocasies, ele passa em revista a espcie deabalo ssmico provocado em sua alma pelo encon-tro com Rosa. Na Universidade Federal de Minas

    Gerais, ele discorre sobre t rs aspectos:

    A importncia do escritor poder no ser1.escritor;O exemplo de uma obra que se esquivou2.da obra;A sugesto de uma lngua que se liberta3.dos seus regulamentos.

    Conhecedor, todavia, do contexto scio-cul-tural em que se ancora o seu trabalho, o escritormoambicano vai alm e avana na direo de al-

    guns pontos que estariam na base do terreno sobreo qual se d o tal abalo. So sete os pontos abor-dados por ele:

    A construo de um lugar fantstico;1.A instaurao de um outro tempo;2.A construo de um Estado Centraliza-3.dor e a recusa de homogeneidade;A impossibilidade de um retrato da na-4.o;A necessidade de contrariar os excessos5.do realismoA urgncia de um portugus cultural-6.

    mente remoldadoA afirmao da oralidade e do pensamen-7.to mgico.

    Quem conhece o percurso de Mia Couto,pode entender muito bem a valorizao da no ex-clusividade da atividade literria que ele assinalano itinerrio de Rosa. que a funo de mdico,que conduziu Guimares pelos interiores do Brasilpode ser associada ao trabalho de bilogo que o

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    moambicano desenvolve pelas terras espalhadasde um pas ainda em fase de consolidao de suaprpria territorialidade. Consultado, em algumasentrevistas sobre a diviso da sua vida entre doismundos to diversos como a literatura e a biolo-gia, definida por ele como uma indisciplina, Miadefende a necessidade de se entregar a outras ta-refas como modo de enriquecer o seu trabalho decriador:

    Eu quase que s me vejo criando nesse caos, nes-sa disperso. As vezes que eu tentei dizer assimvou parar e vou me fechar para escrever noaconteceu nada. Ento penso que essa maneirade fragmentar o meu olhar pelas coisas diversasque fao acaba por ser essencial, como se fosseuma resposta em que quando chega a noite eu te-nho que pr uma certa ordem naquele caos e essaordem a minha escrita, no vejo outra maneira(COUTO, 2007).

    Na verdade, a fragmentao do olhar, quepode ser vista como uma maneira de apreender,ou talvez melhor, de conceber a totalidade deum pas, apostando na legitimidade de fazer daliteratura um lugar de encontro das diferentesrealidades, auxilia-nos a compreender a magiado serto como um lugar inventado pela escritade Rosa. Esse lugar fantstico uma espcie delugar de todos os lugares, afirma Couto (2007),para quem:

    O serto e as veredas de que ele fala no so da or-

    dem da geograa. O serto um mundo construdona linguagem. [...] Rosa no escreve sobre o serto.Ele escreve como se ele fosse o serto.

    Para os que guardam alguma familiaridadecom os estudos rosianos, as colocaes no ins-tauram novidade. A novidade est certamente namaneira de observar essa questo trazendo-a parao contexto moambicano, encarando-a no quadrode um momento chave da histria do pas: o mo-mento da independncia:

    Em Moambique ns vivamos e vivemos ain-da o momento pico de criar um espao que seja

    nosso, no por tomada de posse mas porque nelepodemos encenar a co de ns mesmos, enquan-to criaturas portadoras de Histria e fazedores defuturo. Era isso a independncia nacional, era isso autopia de um mundo sonhado que tivesse tudo desonho e pouco de mundo (COUTO, 2007).

    Inventado pelo drama do colonialismo, vio-lentado por quase duas dcadas de guerras, o pasv-se confrontado ainda com ameaas de desinte-

    grao. Participar na organizao desse caos, nasua converso em cosmos, tem sido uma das fun-es que a literatura se atribui em espaos mar-cados pelo selo da periferia. Nos pases africanosesse processo est em curso, tendo em vista quea criao do estado ainda no completou quatrodcadas. Se os governos, frequentemente, se tmconferido, nem sempre com xito, a misso de as-segurar a coeso interna para evitar o que consi-deram o desmantelamento da pretensa unidadenacional, as artes, com a literatura entre elas, in-vestigam maneiras de integrar a diversidade, fa-zendo da multiplicidade uma espcie de ponto defuga, um porto de abrigo para onde devem con-vergir e de onde devem partir as referncias comque se constri o patrimnio cultural.

    Entendendo a construo de Braslia comoum marco do esforo de modernizao do Brasilno decurso dos fervilhantes anos 1950/1960, Mia

    Couto v na obra de Guimares um contraponto auma idia uniformizante e modernizante de umBrasil em ascenso. E traa um paralelo com a si-tuao de seu pas:

    Tambm Moambique vive a criao de uma ra-zo de Estado, de processos de uniformizaolingustica e cultural. A negao dessa globaliza-o domstica , muitas vezes, feita por via da sa-cralizao daquilo que se chama tradio. fricatradicional, frica profunda e outras entidadesfolclorizadas tm sido erguidas do lado de fora ede dentro de frica. A tradio surge como uma

    espcie de lugar congelado da cidadania, umanao que s vive estando morta.O que a escrita de Rosa sugeria era uma espciede inverso deste processo de recusa. Tratava-se no de erguer uma nao mistificada mas daconstruo do mito como nao (COUTO, 2007).

    Incorporando dessa maneira o que v comouma lio de Guimares Rosa, o escritor faz umaleitura politizada de alguns procedimentos que,via de regra, so apresentados como transcenden-tes. Esse posicionamento poltico no formuladose inscreve no tratamento da linguagem, quer di-

    zer, na recriao da linguagem h a sugesto deuma utopia, uma ideia de futuro que faz sentidonos dois pases, cuja aproximao pode ser com-preendida do seguinte modo:

    Moambique e o Brasil so pases que encerramdentro de si contrastes profundos. No se trataapenas de distanciamento de nveis de riqueza.Mas de culturas, de universos, de discursos todiversos que no parecem caber numa mesmaidentidade nacional. A escrita de JGR uma es-

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    pcie de viagem em cima dessa linha de costura.O que ele busca na escrita: um retrato do Brasil?No. O que oferece um modo de inventar o Bra-sil (COUTO, 2007).

    Muito frequentemente acusada de estar presaao documento, com as dificuldades das circuns-tncias que enfrenta em cenrios de funda instabi-lidade, em Angola e Moambique, a literatura, temse pautado pela busca de uma dimenso estticaem sua linguagem. A despeito dos vnculos mui-to fortes com a Histria, a atividade literria noignora o compromisso com a criao e o processode inveno afirma-se como uma ntida preocupa-o de alguns escritores. Os sculos de dominaocolonial impuseram a esses povos, hoje situadosentre os limites geogrficos que a dominao co-lonial sagrou, um conjunto de contradies que,muitas vezes e sob muitos aspectos, coloca em

    cheque o sentido de nacionalidade que foi base daconquista da independncia. Legitimar a invenodo outro o invasor , isto , os espaos hoje iden -tificados como cada um desses pases, constru-dos sobre um conjunto de povos e delimitados porfronteiras desvinculadas de sua prpria histria,inscreve-se como um compromisso a que a litera-tura no se pode a lhear.

    altura da independncia, Angola e Moam-bique, como grande parte dos pases colonizados,apresentavam enormes diferenas regionais, comreas tocadas em maior ou menor escala pelos

    ocupantes. Em funo do lugar que ocupavamno tabuleiro dos interesses dos colonizadores, adistncia entre os territrios reconhecidos comoprovncias era imensa. Por razes vrias, muitasdiferenas persistem. O ritmo e o tipo de moder-nizao imposta a certas zonas acabam por criarhiatos profundos no interior desses pases e pre-ciso investir em processos que impeam a desa-gregao, ajudando a garantir a comunicabilidadeentre os vrios mundos que habitam essas socie-dades. Uma das lies aprendidas com as narrati-vas rosianas, Mia Couto exprime na sua viso doGrande serto:

    O personagem Riobaldo no apenas o protago-nista-narrador de Grande Serto Veredas, mas uma espcie de contrabandista entre a culturaurbana e letrada e a cultura sertaneja e oral. Aescrita de Joo Guimares Rosa empreende algoque est para alm da literatura: uma mestia-gem de sentidos, uma ponte entre a modernidadee a tradio rural, entre forma pica e as lgicasdo relato tradicional. isso, no fundo, que oprprio Brasil.

    Esse o desafio de procura incessante de umaidentidade plural que ainda hoje enfrenta o Bra-sil. O mesmo desafio enfrenta Moambique. Maisque um ponto de charneira necessita-se hoje deum medium, algum que usa poderes que noprovenham da cincia nem da tcnica, para colo-car esses universos em conexo. Necessita-se daligao com aqueles a que Rosa chama de os dolado de l. Esse lado est dentro de cada um dens (COUTO, 2007, p. 112)

    Mia Couto v na arte e no que ela tem de liber-tador a possibilidade de desempenhar tal papel. Amodernidade estilstica que marca a obra de Rosa considerada por ele uma recusa da moderniza-o automtica e excludente, do mesmo tipo da-quela que assombra o seu pas. Por isso, a noode liberdade deve ser levada ao extremo tambmno que diz respeito lngua. E em sua obra, a ne-

    cessidade de contrariar os excessos do realismoe a afir-mao da oralidade e do pensamento mgico, a quintae a stima razo detectadas como expresso dotal abalo ssmico, legitimam plenamente a que eleidentificou como sexta: a urgncia de um portugusculturalmente remoldado.

    A idia, e correta, diga-se de passagem, daexistncia de uma variante da lngua portuguesaem Moambique faz levantar no leitor a suspeitade que a linguagem utilizada por Mia correspon-de ao modo de falar dos moambicanos, como setivssemos ali um reflexo direto do uso do idio-

    ma; porm, remoldar a lngua no significa pro-priamente para Mia Couto incorporar a fala doshabitantes cujo contato com o portugus no re-sultou num domnio efetivo do idioma. verdadeque ainda hoje a maioria dos moambicanos notem o portugus como primeira lngua e o baixonvel de escolarizao e at da difuso da lnguaportuguesa so fenmenos que interferem na suaapropriao, gerando uma fala pontuada por des-vios ao que poderia ser encarado como portuguspadro. Sem ignorar esses dados, como se podeobservar num esclarecedor artigo de Gonalves(2000, p. 212-223), o que Mia faz no resultado

    de pesquisas dos desvios que os moambicanosimpem norma culta,

    Remoldar a lngua significaria para Mia Cou-to aceitar aportes das lnguas do grupo bantucom que se exprimem parcelas considerveis dapopulao, mas sobretudo, compreender e poten-cializar a sua ligao com as matrizes culturais quefazem do seu um pas de inegvel mestiagem. Eas referncias da oralidade constituem um legadofundamental. Dessa maneira, podemos atentar

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    para a dimenso da mestiagem a que ele se refe-re tantas vezes. No se trata, pois, da mestiagemque se v na cor da pele e que, se patente no Bra-sil, ali parece rarefeita aos nossos olhos de estran-geiro; mas de outra, que, embora atacada pelos de-fensores do essencialismo, revela-se ao olhar maisatento, da qual a prpria literatura, como produtoda modernidade, um vigoroso sinal:

    Quando falamos de mestiagens falamos com al-gum receio como se o produto hbrido fosse qual-quer coisa menos pura. Mas no existe purezaquando se fala da espcie humana. E se nos mes-tiamos signica que algum mais, do outro lado,recebeu algo que era nosso (COUTO, 2007, p. 60).

    Na elaborao dessa linguagem capaz de ex-primir no s a concepo de um outro espao,mas tambm a instaurao de um outro tempo,Mia Couto explora as potencialidades do idioma,

    desarticulando construes convencionalmente es-tabelecidas e criando neologismos como podemosver em perfumegante(EA, p. 43), aurorava (EA, p.51), mal-desentendidos (EA, p. 59), timido (EA,p. 102); estridentou (CNT, p. 128), misantrpego(CNT, p. 80); hematombos (CNT, p. 56); teatroso(VA, p. 37) , ciumava (VA, p. 103) aucaroso (VA,p. 77), boquiaberturas (TS) , lusco-focaram (TS),para citar apenas uns poucos exemplos. Muitosmais foram referidos por Fernanda Cavacas, emMia Couto: Brincriao vocabular.

    Coerente com a sua recusa de incorporar a

    tradio como um espelho imvel, uma fonte deguas repetidas, Mia Couto tambm investe na re-criao de provrbios, atentando, portanto, contraa vitria do senso comum que tende a congelar omovimento que mantm viva a sabedoria dos po -vos. Alguns exemplos ajudam a compreender oque move a sua pulso criativa:

    Contra factos s h argumentos (CNT, p.215)Nem tudo que luz besoiro ( (CNT, p. 116)[...] para meio entendedor, duas palavras nobastam (EA, p. 66).

    [...]para os quais nem tanto h mar, nem tantoh guerra (EA, p. 84).Quem faz uma crnica, acrescenta uma tnica[...] (C, p. 137).A culatra saiu pelo tiro (C, p. 153).Quem mais se engasga quem no come(CNT, p. 62).Conversa puxa silncio [...] (CNT, p. 216).

    A vontade de trazer a mestiagem para a ln-

    gua literria, to evidente na sua obra, articula-se perfeitamente com esses procedimentos, foraconstitutiva de uma escrita que ataca a regulamen-tao e apela a recursos que, para ser fiel s pala-vras do autor de Cronicando, podem exprimir me-lhor o sentido da criao ou da estria do mundocomo ele prefere em O viajante c landestino:

    A criana tem a vantagem de estrear o mundo,iniciando outro matrimnio entre as coisas e osnomes. Outros a elas se semelham, vida sem-pre recm-chegando. So os homens em estadode poesia, essa infncia autorizada pelo brilho dapalavra. (COUTO, 1991, p. 25).

    Publicada no livro de 1991, a crnica, nessapassagem, antecipa as snteses que Mia Couto for-mularia quando chamado ou motivado a falar deGuimares Rosa. Esse brilho da palavra, na suainterpretao, est associado utopia e, portanto,

    insere-se num projeto poltico, cujo sentido se re-nova em seu pas e est na origem de sua ligaocom o escritor mineiro. Mia Couto recupera da po-esia o seu carter de elemento de coeso, buscan-do nela a possibilidade de restabelecer elos que agrande ciso gerou, como to bem discute AlfredoBosi em O ser e o tempo da poesia. No seu caso, a bio-grafia atribui contornos especiais ao problema:

    Sou moambicano, lho de portugueses, vivi osistema colonial, combati pela independncia,vivi mudanas radicais do socialismo ao capitalis-mo, da revoluo guerra civil. Nasci num tempo

    de charneira entre um mundo nascia e outro quemorria. Entre uma ptria que nunca houve e outraque est nascendo. Essa condio de ser de fron-teira marcou-me para sempre..(...) A poesia veioem meu socorro para criar essa ponte entre doismundos distantes (COUTO, 2007, p. 106).

    No se pode, com certeza ignorar a conver-gncia de procedimentos que surpreendemos nasobras, mas, efetivamente, o que fundamental atentar para outros nveis dessa relao to forte.Prosador consagrado, Mia Couto apenas de vezem quando visita a poesia como gnero3. Mas

    fato que se deixa visitar por ela com constncia e por a que situa com firmeza e exatido a suadvida para com Guimares Rosa:

    E foi poesia que me deu o prosador GuimaresRosa. Quando o li pela primeira vez experimen-tei uma sensao que j tinha sentido quando es-cutava os contadores de histria da infncia. Pe-rante o texto eu no simplesmente lia: eu ouviavozes da infncia. Os livros de Rosa me atiravampara fora da escrita como se, de repente, eu me

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    NOTAS

    1 Em Angola e Brasil: estudos comparados, Tania Ma-cdo aborda o problema em dois ensaios. O problemaser tambm tratado por Fabiana Carelli em: Runa eConstruo: oralidade e escritura em Joo GuimaresRosa e Jos Luandino Vieira, tese de doutoramentodefendida na USP em 2003.

    2 O primeiro texto est publicado no volume Pensatem-O primeiro texto est publicado no volume Pensatem-O primeiro texto est publicado no volume Pensatem-pos textos de opinio. O segundo texto foi cedidopelo prprio autor, a quem agradecemos muito maisessa gentileza.

    REFERNCIAS

    BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. So Paulo: Cul-

    trix/EDUSP, 1977.CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. So Paulo:Nacional, 1976.

    CHAVES, Rita; MACDO, Tania. Entrevista com MiaCouto. Veredas: revista da Associao Internacional deLusitanistas. Porto Alegre, 2006.

    COUTO, Mia. Contos do nascer da terra. Lisboa: Cami-nho, 1997.

    ______. Cronicando. Lisboa: Caminho, 1991

    ______. Encontros e encantos: Rosa em Moambique.[Conferncia proferida na UFMG, em 2007. Texto poli-copiado].

    ______. Estrias abensonhadas. Rio de janeiro: NovaFronteira, 1996,

    ______. Pensatempos: textos de opinio. 3.ed. Maputo:Ndjira, 2007

    ______. Terra sonmbula. Maputo: Ndjira, 1996.

    ______. Vozes anoitecidas. Lisboa: Caminho, 1987.

    GONALVES, Perptua. Para uma aproximao Lngua-Literatura em portugus de Angola e Moambique. ViaAtlntica. So Paulo, n. 4, 2000.

    MACDO, Tania. Angola e Brasil: estudos comparados.So Paulo: Arte & Cincia e Via Atlntica, 2002.

    tivesse convertido num analfabeto selectivo. Paraentrar naqueles textos eu devia fazer uso de umoutro acto que no ler mas que pede um ver-bo que a inda no tem nome (ROSA, 2007, p. 107)

    Conduzido, segundo ele prprio em vriasentrevistas, por Jos Luandino Vieira fico deGuimares Rosa como repete em depoimentosentusiasmados e como demonstra na consecuode seus textos Mia Couto, ancorado na distan-te margem do Oceano ndico, realimenta o senti-do da proximidade com o Brasil, e o que ele poderepresentar no nvel do concreto e do imaginriopara milhes de africanos, reinventando travessiasque lhe permitem refundar pontes com o sertoque faz e de que se faz o escritor mineiro.

    O serto e as veredas de que ele fala no so da ordem da geograa.

    O serto um mundo construdo na linguagem. (...) Rosa no escreve sobre o serto.

    Ele escreve como se ele fosse o serto.

    Mia Couto

    3 Autor de livros de co, tem apenas duas coletneasde poemas: Raiz de Orvalho, de 1983.

    p. 136-143.