19
DISPUTAS POR TERRA E VIOLÊNCIA NO CAMPO NA ATUALIDADE BRASILEIRA E O RESPEITO PELOS DIREITOS HUMANOS DISPUTES BY LAND AND VIOLENCE IN THE COUNTRYSIDE IN THE BRAZILIAN CURRENT AND THE RESPECT FOR HUMAN RIGHTS Elisaide Trevisam 1 Mirian Andrade Santos 2 RESUMO: O presente artigo visa propor uma reflexão com relação aos conflitos e violências no campo que vem atingindo a classe dos cidadãos que vivem e trabalham no meio rural brasileiro. Cidadãos que, ao defenderem a cidadania e igualdade contempladas pela democracia garantida pela Constituição Federal, se encontram frente ao desrespeito à dignidade que vem sendo dilacerada por uma classe dominante de proprietários violentos que, ao defenderem suas propriedades transgridem, em todos os aspectos, os direitos humanos consagrados universalmente e os direitos fundamentais positivados constitucionalmente, fazendo com que a verdadeira democracia não seja concretizada e o Brasil não seja efetivado como um Estado Democrático de Direito. Palavras-Chave: Cidadania; Democracia; Direitos fundamentais; Violência rural. ABSTRACT: The present paper aims propose a reflection regarding the conflicts and violence on the field that has been reaching the class of citizens who live and work in the Brazilian countryside. Citizens who, in defending the contemplated citizenship and equality for democracy guaranteed by the Federal Constitution, are facing to disrespect to the dignity that has been torn apart by a violent ruling class of landowners who, in defending their properties transgress, in all aspects, the human rights universally enshrined and fundamental rights constitutionally positivized, making that the true democracy does not be concretized and Brazil does not effected as a Democrated State of Law. Key-words: Citizenship; Democracy; Fundamental rights; Rural violence. 1 Doutoranda em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC SP. Mestra em Direitos Humanos. Especialista em Direito Individual e Processual do Trabalho. Professora Universitária. Advogada. 2 Mestranda em Direitos Humanos Fundamentais pelo Centro Universitário UNIFIEO Osasco/SP. Bolsista CAPES-PROSUP. Professora universitária da Faculdade Aldeia de Carapicuíba FALC. Advogada.

Disputas Por Terra e Violência No Campo Na Atualidade Brasileira e o Respeito Pelos Direitos Humanos

Embed Size (px)

Citation preview

  • DISPUTAS POR TERRA E VIOLNCIA NO CAMPO NA ATUALIDADE

    BRASILEIRA E O RESPEITO PELOS DIREITOS HUMANOS

    DISPUTES BY LAND AND VIOLENCE IN THE COUNTRYSIDE IN THE

    BRAZILIAN CURRENT AND THE RESPECT FOR HUMAN RIGHTS

    Elisaide Trevisam1

    Mirian Andrade Santos2

    RESUMO:

    O presente artigo visa propor uma reflexo com relao aos conflitos e violncias no campo

    que vem atingindo a classe dos cidados que vivem e trabalham no meio rural brasileiro.

    Cidados que, ao defenderem a cidadania e igualdade contempladas pela democracia

    garantida pela Constituio Federal, se encontram frente ao desrespeito dignidade que vem

    sendo dilacerada por uma classe dominante de proprietrios violentos que, ao defenderem

    suas propriedades transgridem, em todos os aspectos, os direitos humanos consagrados

    universalmente e os direitos fundamentais positivados constitucionalmente, fazendo com que

    a verdadeira democracia no seja concretizada e o Brasil no seja efetivado como um Estado

    Democrtico de Direito.

    Palavras-Chave: Cidadania; Democracia; Direitos fundamentais; Violncia rural.

    ABSTRACT:

    The present paper aims propose a reflection regarding the conflicts and violence on the field

    that has been reaching the class of citizens who live and work in the Brazilian countryside.

    Citizens who, in defending the contemplated citizenship and equality for democracy

    guaranteed by the Federal Constitution, are facing to disrespect to the dignity that has been

    torn apart by a violent ruling class of landowners who, in defending their properties

    transgress, in all aspects, the human rights universally enshrined and fundamental rights

    constitutionally positivized, making that the true democracy does not be concretized and

    Brazil does not effected as a Democrated State of Law.

    Key-words: Citizenship; Democracy; Fundamental rights; Rural violence.

    1 Doutoranda em Filosofia do Direito pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo PUC SP. Mestra em

    Direitos Humanos. Especialista em Direito Individual e Processual do Trabalho. Professora Universitria.

    Advogada. 2 Mestranda em Direitos Humanos Fundamentais pelo Centro Universitrio UNIFIEO Osasco/SP. Bolsista

    CAPES-PROSUP. Professora universitria da Faculdade Aldeia de Carapicuba FALC. Advogada.

  • INTRODUO

    Entre os maiores desafios da atualidade brasileira se encontra o de afrontar os

    conflitos agrrios e a forte violao dos direitos humanos, por parte de uma classe burguesa

    agrria dominante e violenta, concomitantemente a polticas pblicas fracas que esto a

    dilacerar uma convivncia democrtica, atrapalhando desse modo, a cidadania daqueles que

    buscam condies mnimas de sobrevivncia garantidas pela Constituio Federal e pela

    Ordem Internacional.

    Dentro de uma sociedade democrtica, que prega a igualdade e a justia, necessrio

    se faz ter conscincia de que as desigualdades se traduzem em injustia, violao da dignidade

    da pessoa humana e consequentemente em enfraquecimento do desenvolvimento do pas.

    Prope-se, ento, por meio deste artigo, uma reflexo sobre a realidade vivida no

    campo brasileiro, onde ocorrem a disputa por terras e a violncia, que vem afligindo o cidado

    que busca, atravs de seu trabalho, ter acesso terra e a sua produo para que seja

    consagrado seu direito igualdade, moradia e ao seu sustento, direitos que, infelizmente,

    esto sendo tolhidos por aqueles que detm o poder econmico e violam os direitos humanos

    consagrados internacionalmente.

    1 CONFLITOS NO MEIO RURAL BRASILEIRO: A LUTA PELA TERRA

    Com a violao dos direito humanos, com a desigualdade social rural e com a

    formao de polos de misria, onde o homem rural sofre as dores da humilhao, do peso do

    fracasso e das mazelas da excluso social, ou seja, neste abismo de desigualdades, reinam a

    criminalidade e a violncia causadas pela falha do Estado e pela explorao do homem pelo

    seu semelhante mais bem colocado economicamente. (MANIGLIA, 2005, p. 5)

    Para se entender o que vem a ser conflitos no campo, faz-se necessrio conceituar

    o que significa este termo e, para tanto, pode-se citar a conceituao da comisso Pastoral da

    Terra em seu relatrio anual do ano de 2012 que explica:

    Conflitos so as aes de resistncia e enfrentamento que acontecem em

    diferentes contextos sociais no mbito rural, envolvendo a luta pela terra,

    gua, direitos e pelos meios de trabalho ou produes. Estes conflitos

    acontecem entre classes sociais, entre os trabalhadores ou por causa da

    ausncia ou m gesto de polticas pblicas. [...] Conflitos por terra so

    aes de resistncia e enfrentamento pela posse, uso e propriedade da terra e

    pelo acesso a seringais, babauais ou castanhais, quando envolvem

  • posseiros, assentados, quilombolas, geraizeiros, indgenas, pequenos

    arrendatrios, pequenos proprietrios, ocupantes, sem terra, seringueiros,

    camponeses de fundo de pasto [...].

    As ocupaes e os acampamentos so tambm classificados na categoria de conflitos

    por terra, alm dos conflitos trabalhistas que compreendem os casos de trabalho escravo,

    superexplorao, e aes de resistncia.

    A violncia entendida como sendo o constrangimento e ou a destruio, quer seja

    fsica ou moral que so exercidas sobre os trabalhadores do campo e aqueles que so aliados,

    sendo que, tais violncias esto relacionadas com os mais diversos tipos de conflitos que so

    registrados, alm das manifestaes dos movimentos sociais que se do no campo.

    Segundo Tavares dos Santos (2000, p. 1), os conflitos pela posse e propriedade da

    terra, presentes em todas as regies brasileiras, so marcados por inmeros atos violentos, o

    que significa uma ao generalizada contra as formas de luta pela terra das populaes rurais

    brasileiras e acrescenta:

    Deve-se ressaltar que a maior ocorrncia de assassinatos de crianas em

    conflitos de terra revela o quanto foram destrudos grupos familiares de

    camponeses, principalmente no perodo inicial do Governo Civil, quando se

    abriu uma relativa possibilidade de uma redistribuio fundiria no Pas. As

    mortes em acidentes de transporte para o trabalho atingem principalmente as

    famlias de trabalhadores diaristas, que recebem por tarefa, motivo da

    presena de crianas que vem a completar o grupo familiar. A ocorrncia de

    mortes em situaes de trabalho escravo denota a brutalidade desta relao

    de trabalho presente no quadro da modernizao da agricultura brasileira.

    Finalmente, as mortes de crianas em acampamentos de colonos e

    trabalhadores sem-terra expressam a precariedade da vida destas famlias em

    acampamentos de lona beira de estradas e de fazendas. (TAVARES DOS

    SANTOS, 2000, p. 2)

    A formao da sociedade brasileira encontra-se num profundo processo de excluso

    da maioria de sua populao, onde a pobreza marca a estrutura do pas em consequncia do

    privilegiado setor econmico histrico, formado por donatrios de capitanias hereditrias,

    senhores de engenho e fazendeiros, que tm orientado de forma prioritria a dinmica de

    desenvolvimento, pautados em seus prprios interesses imperialistas de cada poca e,

    consequentemente, alijando do acesso aos bens do pas os escravos, os trabalhadores do

    campo e os imigrantes pobres. (RECH, 2003, p. 21)

    As situaes que envolvem a prtica poltica dos grandes proprietrios de terra e

    empresrios rurais no Brasil so inmeras no decorrer da histria do pas. Trata-se de desafios

    que unem o passado e o presente numa mesma realidade, transformando a reflexo da

    sociedade sobre o desenvolvimento num tema polmico e crucial. (Bruno, 2003, p. 284)

  • A grande concentrao da propriedade de terra forma a estrutura histrica do Brasil e

    a distribuio da terra cria uma problemtica, pois os posseiros e pequenos proprietrios so

    os que se veem prejudicados, uma vez que devem se pr a enfrentar fazendeiros e grileiros

    com maior poder poltico e econmico, esses que usam da violncia e da corrupo para

    expulsar os grupos com menor poder das terras.

    Enfatiza Elisabeth Maniglia (2005, p. 2) que,

    A nova ordem constitucional almejou a retomada do crescimento poltico,

    equilibrando a democracia, a justia social, numa sociedade carente de

    valores dignos e sem construo de cidadania. [...] a violncia e a

    criminalidade no meio rural surge de forma desordenada, ganhando espaos

    na imprensa policial ora, por meio de ocupaes de terra, num sucedneo de

    mortes e leses, ora por trabalho escravo e trabalho infantil ora ainda por

    crimes ambientais, num cenrio dramtico por meio do trfico de drogas que

    cresce em passos largos desenhando um modelo de agronegcio segmentado

    no plantio de plantas psicotrpicas e por fim na morte contumaz de

    indgenas num processo de extermnio lento.

    Como conviver com a modernizao capitalista do Estado e os conflitos agrrios que

    so marcados por tantos atos violentos, como assassinatos, trabalho escravo, mortes

    anunciadas, entre outros atos que indicam fortes violaes dos direitos humanos?

    Conforme dados do Greenpeace (2003, p. 14),

    O Par tem o maior ndice de assassinatos ligados a conflitos de terra no

    Brasil. Entre 1985 e 2001, cerca de 40% das 1.237 mortes de trabalhadores

    rurais no Brasil aconteceram no Par, de acordo com a CPT (Comisso da

    Pastoral da Terra). Um inventrio conduzido pelo governo do estado do Par

    durante o mesmo perodo registrou 804 vtimas de assassinatos. Em 2002, o

    nmero de visitas aumento quase 50% comparado com o ano anterior, e

    metade foi morta no Par. [...] Ainda que inmeros casos de violncia,

    incluindo assassinatos, sejam registrados, quase nunca eles so investigados

    de forma apropriada. Os responsveis raramente so punidos, porque as

    testemunhas geralmente so intimidadas ou mortas. A interveno pblica

    desestruturada, espordica, parcial e fragmentada. Os diferentes nveis e

    setores de governo no conversam ou interagem entre si. Algumas

    comunidades organizadas, que se recusam a aceitar a destruio ambiental e

    os abusos sociais, tm proposto projetos de desenvolvimento alternativos,

    baseados no uso sustentvel dos recursos naturais. No entanto, suas

    lideranas vivem sob crescente ameaa.

    Para Artur Zimerman (2010, p. 159), enquanto a modernizao faz com que o Brasil

    cresa, as camadas mais abastadas da populao mudaram sua qualidade de vida, contudo,

    [...] a desigualdade de renda e de terras cresceu. A conscientizao da

    situao desigual e da formao de resistncia entre os mais pobres foi

    semeada por setores militantes da igreja catlica, fomentada pela teoria da

    libertao de Leonardo Boff. No entanto, a colheita dessa semeadura est

    sendo realizada por diversas ONGs e entidades de trabalhadores na

    agricultura, com a abertura poltica e a instaurao do regime democrtico

  • no pas. A resistncia organizada e sua marca est na invaso de terras improdutivas, com a inteno de desapropriao e criao de assentamentos

    e unidades de agricultura familiar aos lavradores. Os defensores de uma

    reforma agrria extensiva veem a lentido da mesma, e tentam apress-la com as invases de terras, que causam confrontos e mortes.

    A violao dos direitos humanos, econmicos, sociais, culturais, civis e polticos

    circunscrevem locais bem delimitados e se espalham no territrio brasileiro, atravs de

    indivduos ou grupos de indivduos que so forados a sarem da sua terra, que no

    conseguem retomar seu territrio, que no so beneficiados pela reforma agrria e,

    consequentemente, deparam-se com a violao de seus direitos terra, ao trabalho, moradia,

    alimentao, gua, cultura, ao direito de ir e vir. Portanto, assim, so concretizadas, no

    lugar da dignidade da pessoa humana, a ameaa e a violncia contra seus direitos

    proclamados. (RECH, 2003, p. 119)

    No meio rural brasileiro, a luta pela terra e a violncia que vem assolando o campo

    mostram a dilacerao da cidadania, a excluso social e a inobservncia dos direitos

    fundamentais consagrados pelo Estado Democrtico de Direito.

    A violncia tem sido muitas vezes usada para recobrir situaes como o sistemtico

    descumprimento da legislao trabalhista, a falta de condies mnimas de segurana nos

    locais de trabalho, os processos de expulso de trabalhadores de reas por eles ocupadas, por

    vezes h geraes, a explorao do trabalho escravo e infantil. (MEDEIROS, 1996, p. 3)

    Isso implica relacionar um conjunto de prticas do no reconhecimento dos

    trabalhadores rurais como portadores de direitos, e sim como sujeitos submissos por coero

    frente s formas de dominao fundadas em procedimentos aceitos pela sociedade.

    Como elucida Marilena Chau (2011, p. 378), no Brasil, a violncia no percebida

    pela sociedade, pois:

    [...] a violncia no percebida ali mesmo onde se origina e ali mesmo onde

    se define como violncia propriamente dita, isto , como toda prtica e toda

    ideia que reduz um sujeito condio de coisa, que viola interior e

    exteriormente o ser de algum, que perpetua relaes sociais de profunda

    desigualdade econmica, social e cultural. Mais do que isto, a sociedade no

    percebe que as prprias explicaes oferecidas so violentas porque est

    cega ao lugar efetivo de produo da violncia, isto , a estrutura da

    sociedade brasileira, que, em sua violncia cotidiana, reitera, alimenta e

    repete o mito da no-violncia. [...] As disputas pela posse da terra cultivada

    ou cultivvel so resolvidas pelas armas e pelos assassinatos clandestinos.

    As desigualdades econmicas atingem a proporo do genocdio.

  • O direito vida dos trabalhadores rurais uma questo limite, pois o dia a dia deles

    configurado por uma rotina de violncia expressada por rituais de dominao por parte dos

    que detm o poder da propriedade (TAVARES DOS SANTOS, 2000, p. 2).

    Alm dos conflitos armados, existe a problemtica do trabalho escravo, que se

    mostra, a cada momento, uma situao mais complicada e de difcil correo, uma vez que a

    desigualdade social e a assimetria de poder entre as classes trazem uma realidade cujo

    pagamento da relao trabalhista a barbrie e a angstia daqueles que se encontram sobre

    dominao.

    O aumento nos ndices de migraes internas no territrio brasileiro, que mostra o

    quadro de violao de direitos humanos de trabalhadores rurais no pas, oriundos do Nordeste,

    que chegam nas lavouras de cana-de-acar paulistas para trabalhar temporariamente, traz

    tona a problemtica do trabalho escravo. (RECH, 2003, p. 21)

    Cabe lembrar o que explana Kevin Bales (2000, p. 35):

    Para que as leis contra a escravido possam funcionar, precisa que ocorram

    violaes precisas para perseguir. Sempre sobre base jurdica, uma

    violao privar o indivduo dos direitos fundamentais, impedir-lhe de se

    mover com liberdade, no pagar-lhe pelo trabalho e obrig-lo a trabalhar em

    condies perigosas. A escravido , indiscutivelmente, a extrema violao

    dos direitos humanos. [...] Se um Estado no tem alguma motivao para

    garantir os direitos humanos ao interno de seus confins, tais direitos podem

    vir a menos. o que sucede na maior parte dos pases onde atualmente se

    pratica a escravido (traduo do autor).

    Os aspectos da escravido que permanecem, ao longo do tempo, so as ameaas, a

    coero, as punies e at assassinatos, alm do que os escravos da atualidade se sentem

    devedores de seus senhores a tal ponto de serem fiis ao cumprimento da dvida contrada

    com eles.

    Segundo Jos Reis dos Santos Filho (2001, p. 151),

    Considerado o trabalhador rural como objeto dessa violncia, sua condio

    de eficcia est ligada capacidade de minar individualidades e identidades.

    E, no entanto, no h nada que nos permita afirmar que o trabalhador rural

    abandone, necessariamente, a realizao de sua vontade. De fato, por mais

    que estejam dadas as "condies materiais" de emergncia do litgio, ele s

    deflagrado com uma ao do trabalhador rural. essa iniciativa que institui

    o conflito.

    O Estado contribui para a intensificao dos conflitos no campo por favorecer grupos

    empresariais e grandes senhores da terra, atravs de aes que fornecem garantias para o

    acesso ao mercado de capitais, e, com isso, desfavorece, ou seja, deixa de cumprir com o

    dever de assegurao dos direitos fundamentais dos cidados excludos.

  • O aparecimento da violncia no espao agrrio alimenta-se da crise da dominao

    poltica do Estado brasileiro, onde se assiste a uma disseminao da violncia, por estar os

    aparelhos repressivos do Estado vinculados uma violncia social e poltica difusa no campo.

    O Estado no cumpre com suas funes legtimas de proteo e isso multiplica os atos

    violentos contra os trabalhadores rurais. (MARTINS, 1991, p. 50)

    Acrescenta, ainda, Jos de Souza Martins (1991, p. 53) que,

    [...] Tradicional e moderno esto polarizados, mas contraditoriamente

    combinados. Essa a forma que a acumulao capitalista assume nesta

    sociedade, que se d, tambm, atravs dos incentivos fiscais, das isenes,

    das doaes do Estado, da transferncia da riqueza pblica para o particular.

    Nosso capitalismo um capitalismo tributrio, um capitalismo que se

    alimenta, sobretudo, da arrecadao de tributos e no s da explorao da

    fora do trabalho. Um capitalismo que vive, ainda, da renda da terra, que

    forma absolutamente irracional de acumulao.

    O Estado deve ser superado e essa superao tem a ver com a eliminao da

    sociedade de classes, uma vez que no a sociedade que se encontra a servio do Estado ou

    regulada por ele, mas sim o Estado que se destina a agir em defesa da sociedade. Na

    atualidade, o Estado se coloca a servio da sociedade desde que ela seja a classe dominante.

    As faces da violncia rural no Brasil mostram um problema cotidiano enfrentado por

    aqueles que, excludos da sociedade, procuram uma maneira de ter seus direitos como

    cidados e seres humanos, traduzidos em eficcia plena, ou seja, que o Estado trace meios

    para que eles passem de simples objetos ou mercadoria para a condio de pessoa

    emancipada.

    2 A VIOLNCIA NO CAMPO: ATUALIDADE BRASILEIRA

    As denncias de violncias contra trabalhadores rurais tm origem no poder do

    latifndio e do agronegcio, em uma poltica dos governos federais e estaduais que privilegia

    as oligarquias, lembrando que o Estado capitalista defende os interesses de uma minoria e no

    se importa com os interesses daqueles mais necessitados. No se pode olvidar, porm, que a

    funo principal do Estado deve ser a de garantir a justia e a igualdade social. (BUENO

    MOTA, 2009, p. 16)

    A Comisso Pastoral da Terra (2011), em seu relatrio parcial de 2011, revela o

    registro de 439 ocorrncias de conflitos de terra, dos quais 164 conflitos por terra, 29 conflitos

    por gua e 218 casos de conflitos trabalhistas, concretamente o trabalho escravo.

  • Foram somados 17 assassinatos de trabalhadores, sendo 12 trabalhadores mortos na

    regio Norte e, somente no Par, foram totalizados 9 assassinatos. Pelo menos 8 das mortes

    esto diretamente relacionadas com a defesa do meio ambiente. Outras 4 se relacionam com

    comunidades originrias ou tradicionais: 2 mortes so de quilombolas e 2 de indgenas.

    As ameaas de morte que se materializam, segundo a Comisso Pastoral da Terra

    (2011), concretizam-se num dado que apresenta um crescimento elevado de pessoas

    ameaadas de morte.

    Em 2010, houve o registro de 83 pessoas ameaadas; j em 2011, esse nmero se

    elevou para 172, 107% a mais. Esse crescimento exponencial reflexo das aes que se

    desenvolveram, aps os assassinatos de maio.

    No ano de 2012, na Amaznia se registraram 489 dos 1067 conflitos no campo,

    porm, no se pode olvidar que nessa regio se encontram 97% das reas envolvidas nestes

    conflitos sendo que, ali se concentram 58,3% dos assassinatos, 84,4% das tentativas de

    assassinatos, 77,4% dos ameaados de morte, 62,6% de presos e 63,6% de pessoas agredidas.

    (PASTORAL DA TERRA, Relatrio 2012).

    A Comisso Pastoral da Terra apresentou Secretaria de Direitos Humanos do

    governo Federal a relao dos ameaados de morte nos ltimos dez anos, destacando que as

    ameaas haviam se concretizado efetivamente em 42 casos e essa informao foi veiculada

    com insistncia.

    A partir de ento muitas ameaas que surgiram, de to corriqueiras que eram, foram

    encaradas por muitos como normais. Com um levantamento mais acurado, chegou-se ao

    nmero de 172. Deve-se considerar que tal registro se refere a ameaas ocorridas somente no

    decorrer do ano de 2011.

    Importa destacar que das 23 pessoas assassinadas at novembro de 2011, 9,39% j

    haviam recebido ameaas, ou em anos anteriores, ou nesse mesmo ano. A maioria havia

    registrado ocorrncia na polcia.

    A interveno federal depois dos primeiros assassinatos no foi minimamente

    suficiente para inibir a ao dos grileiros, proprietrios de terra e outros. O nmero cresceu de

    38.555 pessoas, em 2010, para 45.595, em 2011. Um aumento de 18,2%.

    Conforme a Agncia de notcias Reprter Brasil (2012), Organizao no

    governamental que trata da problemtica do trabalho escravo no Brasil,

  • Quatro adolescentes foram encontrados entre 52 trabalhadores resgatados de

    situao anloga escravido em fiscalizao realizada na zona rural do

    municpio de Tailndia (PA), no final de janeiro de 2012, de acordo com o

    Ministrio do Trabalho e Emprego (MTE). Dois deles, de 13 e 14 anos,

    exerciam atividade de risco manuseando machados na extrao e

    beneficiamento de madeira, trabalho que est entre as piores formas de

    explorao infantil, conforme a Conveno 182 da Organizao

    Internacional do Trabalho e a legislao brasileira. Outro, de 16 anos,

    trabalhava com uma foice para abrir caminho para a passagem das toras. E

    uma garota de 15 anos trabalhava como cozinheira em uma das frentes de

    trabalho. O proprietrio da fazenda em que o flagrante aconteceu, nega que

    tenha explorado trabalho escravo e infantil, diz que os adolescentes no

    trabalhavam e que foram oportunistas ao se depararem com a fiscalizao. Na ao, o Grupo Especial de Fiscalizao Mvel formado por agentes de

    diferentes rgos, incluindo da Polcia Rodoviria Federal, apreendeu 11

    armas, que, segundo os trabalhadores e os proprietrios, eram utilizadas para

    caa. Entre os resgatados, havia uma mulher grvida, isolada assim como os

    demais dentro da mata.

    Segundo a Comisso Pastoral da Terra, em 2013 cresceu o nmero de casos de

    trabalho em condies anlogas de escravo em relao a 2012, sendo que este nmero saltou

    de 189 para 197 e desses casos, foram identificados 128 ocorridos em atividades no campo. O

    que chama a ateno que estes casos tiveram acrscimo na regio Sudeste do Pas. A

    explorao dos trabalhadores est, ainda, concentrada em lavouras e na agropecuria.

    Conforme relatrio de 2012 da Comisso Pastoral da Terra:

    Os dados permitem afirmar que h uma acirrada disputa pelos territrios,

    entre o capital e as comunidades camponesas. O mais correto seria dizer que

    o capital continua a espoliar as comunidades de seus territrios, pois a

    disputa dura e desigual. Os indgenas e camponeses contam com a fora de

    sua resistncia e o apoio de seus aliados. J os interesses do capital so

    defendidos, estimulados e financiados pelos poderes pblicos, e so

    enaltecidos pela grande mdia. O Congresso Nacional o espelho da

    desigualdade das foras em jogo.

    O Conselho Indigenista Missionrio (CIMI) solicitou Organizao das Naes

    Unidas que intervenha junto ao governo brasileiro frente s graves violaes de direitos

    humanos envolvendo os povos indgenas no pas. (PASTORAL DA TERRA, 2012)

    A solicitao deu-se por intermdio de duas denncias: a violncia no Mato Grosso

    do Sul, que entre 2003 e 2010 vitimou 250 Guaranis Kaiow, e as mortes de indgenas no

    Vale do Javari, Amazonas, onde nos ltimos dez anos 300 indgenas morreram vitimados por

    todos os tipos conhecidos de hepatite.

    Na cidade de Nova Califrnia, no Estado de Rondnia, no dia 31 de maro de 2012,

    uma trabalhadora rural sem terra foi assassinada. A cidade est localizada na Ponta do Abun,

    regio conhecida como uma das mais violentas do Estado, dentre outros fatores, por ser o

  • caminho por onde entram madeiras extradas e griladas ilegalmente no Amazonas. A jovem

    vinha sofrendo ameaas e chegou a ter sua casa queimada no acampamento Ramal Mendes

    Junior. (PASTORAL DA TERRA, 2012)

    No Estado do Pernambuco, no dia 02 de abril de 2012, morreu um jovem que era

    assentado no Assentamento Dona Margarida Alves, e se dirigia a outro assentamento, o

    Frescudim, quando foi alvejado por vrios tiros de arma de fogo. O Movimento dos Sem

    Terras (MST) acredita que o assassinato tenha sido uma retaliao reocupao do engenho

    Pereira Grande, que ocorreu na madrugada de 01 de abril de 2012. O local em que aconteceu

    a violncia uma das reas mais emblemticas de conflitos de terra no Estado de

    Pernambuco. A rea foi declarada de interesse social para fins de reforma agrria em

    novembro de 2003, mas, depois de uma srie de recursos impetrados, a Usina conseguiu

    barrar o processo de desapropriao. (PASTORAL DA TERRA, 2012)

    O Movimento dos Sem Terras e organizaes de direitos humanos, como a Terra de

    Direitos (2012), vm denunciando amplamente a violncia no campo em Pernambuco, onde

    pistoleiros recebem R$ 50,00 (cinquenta reais) por dia para matarem trabalhadores rurais Sem

    Terra, alm do que, fazendeiros andam armados e ameaam agricultores at mesmo em suas

    prprias casas.

    O que dificulta ainda mais que a polcia, no lugar de atuar como defensora da

    sociedade atua como segurana privada de fazendas, intimidando e ameaando famlias Sem

    Terra. Delegados, juzes e promotores legitimam o uso de violncia e de milcias armadas por

    parte de proprietrios de terra e trabalhadores rurais desaparecem ou so mortos em

    emboscadas.

    Nesse cenrio de ultraje aos direitos humanos e violao do direito social ao trabalho

    digno, implica-se reconhecer a importncia da atuao estatal, consubstanciada em sua funo

    jurdica, qual seja:

    O Estado moderno repudia as bases da filosofia poltica liberal e pretende

    ser, embora sem atitudes paternalista a providencia do seu povo, no sentido de assumir para si certas funes essenciais ligadas vida e

    desenvolvimento da nao e dos indivduos que a compem (...) Afirma-se

    que o objetivo-sntese do Estado contemporneo o bem comum e, quando

    se passa ao estudo da jurisdio, licito dizer que a projeo particularizada

    do bem-comum nessa at a pacificao com justia (...) compreende

    tambm as providncias de ordem jurdica destinadas, como j vimos, a

    disciplinar a cooperao Emre indivduos e a dirimir conflitos entre pessoas

    em geral. Tal a funo jurdica do Estado. (CINTRA, 2010, p. 43-44)

  • Imperiosa se faz a atuao do Poder Judicirio para fins de eliminao de tais

    conflitos intersubjetivos vinculados reduo de condies de trabalho anlogas a de escravo,

    demonstrando triste e atual realidade dos trabalhadores rurais, oportuno registrar a posio

    do Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito desta problemtica. Na deciso proferida no

    Inqurito 2131 / DF Distrito Federal, Relatora Min. Ellen Gracie, julgamento proferido em

    23/02/2012, o STF recebe a denncia de crime de aliciamento de trabalhadores, preceitua a

    ementa desse julgado:

    Ementa: INQURITO. DENNCIA. ALICIAMENTO DE

    TRABALHADORES (ART. 207, 1, CP). FRUSTRAO DE DIREITO

    ASSEGURADO PELA LEGISLAO TRABALHISTA MAJORADO

    (ART. 203, 1, I, E 2, CP). REDUO A CONDIO ANLOGA

    DE ESCRAVO (ART. 149). INDEPENDNCIA DE INSTNCIAS. JIZO

    DE PROBABILIDADE CONFIGURADO. DENNCIA RECEBIDA. 1. O

    art. 395 do CPP s permite a rejeio da denncia quando for

    manifestamente inepta, faltar pressuposto processual ou condio para o

    exerccio da ao penal, ou, ainda, faltar justa causa para o exerccio da ao

    penal, situaes que no se configuram na hiptese. 2. A persecuo penal

    relativa suposta prtica dos crimes previstos nos arts. 207, 1

    (aliciamento de trabalhadores), 203, 1, I, e 2 (frustrao de direito

    assegurado pela legislao trabalhista majorado), e 149 (reduo a condio

    anloga de escravo) do Cdigo Penal, independe do prvio desfecho dos

    processos trabalhistas em curso, ante a independncia de instncias. 3. A

    orientao jurisprudencial relativa ao delito de sonegao tributria

    inaplicvel situao, porquanto a reduo ou supresso de tributo

    elemento tpico do crime do art. 1 da Lei n 8.137/90, o mesmo no

    ocorrendo com relao aos delitos apontados na denncia. 4. Os argumentos

    de fato suscitados pelo denunciado, como a temporariedade do vnculo de

    trabalho, a inexistncia da servido por dvida ou de qualquer coao, dentre

    outros, no merecem anlise nesta sede de cognio sumria, que se limita a

    apurar a existncia de justa causa, esta configurada pelas inmeras provas

    colhidas pelo Ministrio Pblico Federal. 5. Os elementos de prova

    acostados denncia so capazes de conduzir a um juzo de probabilidade a

    respeito da ocorrncia do fato tpico, antijurdico e culpvel, bem como de

    sua autoria. 6. Denncia recebida.(grifo nosso)

    No se pode olvidar a constante luta por terras da populao indgena. A demarcao

    de terras indgenas segue o procedimento determinado pelo Decreto 1.775/96 para ser

    declarada a posse permanente e usufruto exclusivo dos ndios nos termos do artigo 231 da

    Constituio Federal.

    Caso intrigante foi demarcao da terra indgena da Reserva Raposa Serra do Sol

    situado no Estado de Roraima quanto ao cumprimento das exigncias do procedimento

    homologatrio dando origem a Ao Popular n. 3388/RR Roraima, Relator Min. Carlos

    Brito, julgamento proferido em 19/03/2009. Convm destacar, o posicionamento do STF em

  • atendimento aos ideais constitucionais, consubstanciados na finalidade cidad, fraternal e

    solidria da Carta Magna, com vistas integrao e reconhecimento da igualdade da minoria:

    A DEMARCAO DE TERRAS INDGENAS COMO CAPTULO

    AVANADO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. Os arts. 231

    e 232 da Constituio Federal so de finalidade nitidamente fraternal ou

    solidria, prpria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivao

    de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em

    vista o proto-valor da integrao comunitria. Era constitucional

    compensatria de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar

    por mecanismos oficiais de aes afirmativas. No caso, os ndios a desfrutar

    de um espao fundirio que lhes assegure meios dignos de subsistncia

    econmica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade

    somtica, lingustica e cultural. Processo de uma aculturao que no se dilui

    no convvio com os no-ndios, pois a aculturao de que trata a

    Constituio no perda de identidade tnica, mas somatrio de

    mundividncias. Uma soma, e no uma subtrao. Ganho, e no perda.

    Relaes intertnicas de mtuo proveito, a caracterizar ganhos culturais

    incessantemente cumulativos. Concretizao constitucional do valor da

    incluso comunitria pela via da identidade tnica.

    H de se ressaltar que o julgamento do STF resguarda os direitos dos povos

    indgenas quanto s terras que por eles so ocupadas, declarando ser direitos originrios que

    no foram outorgados pela Constituio e sim reconhecidos:

    DIREITOS "ORIGINRIOS". Os direitos dos ndios sobre as terras que

    tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente "reconhecidos", e no

    simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcao se orna de

    natureza declaratria, e no propriamente constitutiva. Ato declaratrio de

    uma situao jurdica ativa preexistente. Essa a razo de a Carta Magna

    hav-los chamado de "originrios", a traduzir um direito mais antigo do que

    qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos

    adquiridos, mesmo os materializados em escrituras pblicas ou ttulos de

    legitimao de posse em favor de no-ndios. Atos, estes, que a prpria

    Constituio declarou como "nulos e extintos" ( 6 do art. 231 da CF).

    Ser somente atravs da construo de um projeto social e poltico que vir o

    reconhecimento da violncia no campo com a capacidade de mostrar as profundas

    contradies do regime de propriedade que impera na explorao capitalista brasileira, onde o

    poder da elite dominante destri a autonomia dos dominados.

    H que se concretizar um processo de assentamento rural, que venha a ser discutido,

    como parte da rede complexa de contradies que cercam e penetram na luta pela terra por

    parte dos trabalhadores rurais. Impe-se a emergncia de novas necessidades da reproduo

    da fora de trabalho e de novas relaes sociais de produo.

    Desta forma, urge colocar em evidncia a violncia no campo, pois, somente desse

    modo poder-se- alimentar uma tomada de posio sria por parte do Estado e da sociedade,

  • para que essas barbries venham a ser superadas e os direitos dos cidados conquistados e

    efetivados.

    3 RESPEITO PELOS DIREITOS FUNDAMENTAIS PARA A REALIZAO DA

    DEMOCRACIA

    Cada vez mais cresce a importncia do respeito aos direitos humanos universalmente

    considerados, contudo, na prtica, cresce o nmero de exemplos em que se questiona a

    veracidade de que tais direitos esto sendo concretizados para demonstrar que a finalidade do

    Direito e o progresso da justia demonstram a base de um pas democrtico.

    No se pode admitir um direito que no priorize a importncia da realizao dos

    valores da vida humana e que traga como consequncia a falta de sentido do direito (Silva,

    2009, p. 150), portanto se faz necessria a busca de um fundamento mais profundo do que o

    simples reconhecimento estatal para a vigncia dos direitos humanos (COMPARATO, 2010,

    p. 171).

    Nas palavras de Fbio Konder Comparato (2010, p. 80),

    Todos os direitos humanos so universais, indivisveis, interdependentes e

    inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos

    humanos globalmente, de modo justo e equitativo, com o mesmo

    fundamento e a mesma nfase. Levando em conta a importncia das

    particularidades nacionais e regionais, bem como os diferentes elementos de

    base histricos, culturais e religiosos, dever dos Estados,

    independentemente de seus sistemas polticos, econmicos e culturais,

    promover e proteger todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais.

    O Brasil, sob a condio de um Estado Democrtico de Direito, deve colocar a

    democracia sob a gide de valores que dirijam o agir concreto dos homens, e isso implica a

    efetividade de uma democracia que preserva a dignidade da pessoa humana com absoluta

    igualdade de considerao dos elementos mnimos asseguradores dessa dignidade.

    A Declarao Universal dos Direitos Humanos garante a liberdade e a igualdade

    entre os povos e reclama o resgate da dignidade como valor intrnseco condio humana,

    vedando a coisificao do homem, alm de estabelecer que os direitos fundamentais so

    declarados a fim de proteger o cidado de ser dominado e instrumentalizado.

    Fabio Konder Comparato (2010, p. 210) salienta que:

    Reconhece-se hoje, em toda parte, que a vigncia dos direitos humanos

    independe de sua declarao em constituies, leis e tratados internacionais,

    exatamente porque se est diante de exigncias de respeito dignidade da

  • pessoa humana, exercida contra todos os poderes estabelecidos, oficiais ou

    no.

    Os direitos humanos funcionam como paradigma moral de respeito aos direitos mais

    elementares do ser humano, ou seja, como padro de referncia tica para guiar e nortear toda

    a essncia de proteo da ordem jurdica. So direitos que a sociedade poltica tem o dever de

    consagrar e garantir, servindo como base de sustentao jurdica para alicerar o resguardo

    dos interesses mais primrios e bsicos do ser humano, quais sejam, a dignidade, a liberdade e

    a igualdade da pessoa humana. (FRANCO, 2007, p. 8)

    Como destaca Norberto Bobbio (1992, p. 25-46),

    O problema grave de nosso tempo, com relao aos direitos do homem, no

    mais o de fundament-lo, mas sim de proteg-los. [...] O problema que

    temos diante de ns no filosfico, mas jurdico e poltico. No se trata de

    saber quais e quantos so esses direitos, qual sua natureza e seu

    fundamento, se so direitos naturais ou histricos, absolutos ou relativos,

    mas sim qual o modo mais seguro para garanti-los, impedindo que eles

    sejam continuamente violados. A exigncia do respeito aos direitos humanos

    e s liberdades fundamentais nasce da convico, partilhada universalmente,

    de que eles possuem fundamento. [...] A Declarao Universal dos Direitos

    do Homem representa a nica prova da qual um sistema de valores pode ser

    considerado humanamente fundado e reconhecido.

    Os direitos humanos e o da soberania popular determinam a evidncia de um Estado

    Democrtico de Direito, e nesse contexto que os direitos humanos passam a ser

    considerados como elementos da ordem jurdica objetiva e isso constitui na compreenso de

    que a funo do Estado, que efetivamente merea ostentar este ttulo, deve atentar-se para a

    concretizao de tais direitos. (SARLET, 2007, p. 72)

    Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p. 72-73) entende que,

    A imbricao dos direitos fundamentais com a ideia especfica de

    democracia um aspecto que impende ser destacado. Com efeito, verifica-se

    que os direitos fundamentais podem ser considerados simultaneamente

    pressuposto, garantia e instrumento do princpio democrtico da

    autodeterminao do povo por intermdio de cada indivduo, mediante o

    reconhecimento do direito de igualdade (perante a lei e de oportunidades), de

    um espao de liberdade real, bem como por meio da outorga do direito

    participao (com liberdade e igualdade), na conformao da comunidade e

    do processo poltico, de tal sorte que a positivao e a garantia do efetivo

    exerccio de direitos polticos podem ser considerados o fundamento

    funcional da ordem democrtica e, neste sentido, parmetro de sua

    legitimidade.

    A Constituio Federal de 1988 firmou compromissos inalterveis no que diz

    respeito ao princpio democrtico e, consequentemente, garantia dos direitos humanos que

    esto amplamente destacados no artigo 5. Desse modo, cristalizou a ideia de que a dignidade

  • e a cidadania so objetivos a serem alcanados por meio de vias econmicas, jurdicas e

    sociais. (MANIGLIA, 2005, p. 1)

    Como observa Dalmo de Abreu Dallari (1999, p. 123),

    Para os seres humanos no pode haver coisa mais valiosa do que a pessoa

    humana. Essa pessoa, por suas caractersticas naturais, por ser dotada de

    inteligncia, conscincia e vontade, por ser mais do que uma simples poro

    de matria, tem dignidade que a coloca acima de todas as coisas da natureza.

    [...] O respeito pela dignidade da pessoa humana deve existir sempre em

    todos os lugares e de maneira igual para todos. O crescimento econmico e o

    progresso material de um povo tm valor negativo se forem conseguidos

    custa de ofensas dignidade de seres humanos.

    A distino entre o Estado e a sociedade civil um resultado da luta poltica

    moderna, e a tenso que dessa luta se aflora deixa de ser entre o Estado e a sociedade civil,

    passando a se destacar como um problema de interesse de grupos sociais. Desse modo, o

    mbito efetivo dos direitos humanos torna-se inerentemente problemtico sob o ponto de vista

    da construo de uma sociedade emancipada. (SOUZA SANTOS, 2003, p. 431)

    A igualdade configura uma meta a ser alcanada por meio de leis e pela correta

    implementao de polticas pblicas, caso contrrio as classes, os grupos ou os gneros

    inferiorizados que possuem menos fora ou capacidade de autodefesa na sociedade sero

    potencialmente afetados. Portanto, dever do Estado, na condio de um Estado Democrtico

    de Direito, assegurar uma poltica de integrao social efetiva.

    Para se viver uma democracia, faz-se imprescindvel respeitar os direitos humanos

    como o primeiro princpio de toda e qualquer sociedade, e, se a realidade da efetivao da

    dignidade da pessoa humana um contedo evidente que no pode ser revogado, o respeito s

    diversas classes sociais, a autonomia pessoal e a dignidade de cada cidado so fatores que

    devem ser lembrados.

    A intensa desigualdade socioeconmica, que advm da explorao externa e interna

    das elites capitalistas, vem especificar seu lado mais cruel, e o Brasil um pas violento, em

    que os conflitos gerados pelas diferenas fazem parte da realidade, ou seja, somente por meio

    da diminuio das desigualdades socioeconmicas, da educao para a cidadania e da

    ampliao da democracia, ampliar-se- a ideia de que a convivncia democrtica em

    sociedades pluralistas, polticas e cultural, um dos grandes desafios atuais. (Cardoso, 2003,

    p. 104)

    A batalha daqueles que esto comprometidos com os direitos humanos consiste na

    abrangncia da dignidade e do respeito de todos por todos. Em uma sociedade democrtica e

  • pluralista no h que se falar em coexistncia sem respeito entre a maioria dominante e a

    minoria excluda.

    Numa sociedade em que no se promulga a igualdade entre o povo, onde todos no

    possam gozar da liberdade de trabalho, livres de coao ou ameaas, onde no prospera a

    segurana contra a violao de seus direitos fundamentais constitucionalmente estabelecidos,

    ou ainda, numa sociedade que os excludos sofrem de violncia e no podem se manifestar em

    favor de seus direitos, no se est mantendo a legitimidade constitucional, pois compreender e

    respeitar o outro pressuposto fundamental de uma democracia.

    CONSIDERAES FINAIS

    Nos dias atuais, a sociedade deve atentar para o que realmente se leva em conta, ou

    seja, a brutalidade e a desumanidade a que esto sendo submetidas as populaes menos

    favorecidas economicamente, no somente no Brasil, mas em todo o mundo.

    Em pleno sculo XXI, a existncia de pessoas que trabalham em condies anlogas

    de escravo, que sofrem com ameaas e violncia, de maneira execrvel e cruel como se

    apresenta, vai de encontro aos princpios da dignidade da pessoa humana e aos direitos

    fundamentais constitucionalmente garantidos, e ainda, ao mais primitivo ensinamento que

    conduz as relaes humanas, ou seja, o respeito pelo semelhante.

    A configurao dos conflitos armados no campo, a violncia contra a pessoa e a

    explorao humana existente nos dias de hoje deve promover o desenvolvimento de aes

    tanto na esfera jurdica, como na social, capazes de combater essa barbrie de violao

    construo da dignidade humana.

    No Brasil, um pas Democrtico de Direito, onde a Constituio da Repblica

    fundamentada na dignidade da pessoa humana, a promoo dos valores da dignidade no

    trabalho e da liberdade e da propriedade deve ser direcionada efetivao da democracia

    como forma de justia.

    A reforma agrria, como uma das primordiais respostas polticas do Estado brasileiro

    aos conflitos agrrios, uma das possibilidades da efetivao da democracia no Estado

    brasileiro e de construo de uma verdadeira cidadania.

    Enquanto a sociedade brasileira no se conscientizar que deve lutar e exigir sua

    emancipao, no h que se falar numa vivncia plena da democracia e muito menos em ver

  • seus direitos fundamentais efetivados. Somente se os cidados exercerem o poder de

    cidadania que se vivenciar uma histria de liberdade e consecuo de seus direitos.

    de fundamental importncia que o Brasil adote uma poltica social mais sria e

    eficaz, para que a corrupo venha a ser dilacerada, e, aqueles poucos abastados

    economicamente que detm o poder deixem de mandar e comandar o pas, destruindo por

    meio da violncia os menos abastados, que necessitam de sobreviver e ver seus direitos

    efetivados, pois somente assim o pas poder ostentar o ttulo de Estado Democrtico de

    Direito.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BALES, Kevin. I nuovi schiavi. La merce umana nelleconomia globale. Milo: Feltrinelli.

    2000.

    BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Traduo de Carlos Nelson Coutinho. Rio de

    Janeiro: Campus, 1992.

    BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponvel em

    http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28Pet%24%2ESCL

    A%2E+E+3388%2ENUME%2E%29+OU+%28Pet%2EACMS%2E+ADJ2+3388%2EACMS

    %2E%29&base=baseAcordaos. Acesso 03 fev. 2014.

    BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pesquisa de jurisprudncia.

    http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28violencia+trabalha

    dor+rural%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/qfq6eto Acesso 04 fev. 2014.

    BRUNO, Regina Angela L.. Nova repblica: a violncia patronal rural como prtica de

    classe. Porto Alegre: Revista Sociologias, ano 5, n. 10, 2003.

    CARDOSO, Clodoaldo Meneguello. Tolerncia e seus limites: um olhar latino-americano

    sobre diversidade e desigualdade. So Paulo: Editora UNESP, 2003.

    CHAU, Marilena. Ensaio: tica e violncia. Fundao Perseu Abramo.Teoria e Debate, n.

    39, 1998. Disponvel em: http://www.fpabramo.org.br/o-que-fazemos/editora/teoria-e-

    debate/edicoes-anteriores/ensaio-etica-e-violencia. Acesso em: 30 de maro de 2012.

    CINTRA, Antonio Carlos de Arajo. GRINOVER, Ada Pellegrini. DINAMARCO, Cndido

    Rangel. Teoria geral do processo, 26 ed., rev. e atual., So Paulo: Malheiros, 2010.

  • COMISSO PASTORAL DA TERRA. Divulgao de dados parciais dos Conflitos no

    Campo Brasil de janeiro a setembro de 2011. Disponvel em:

    http://www.cptnacional.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=908:cpt-

    divulga-dados-parciais-dos-conflitos-no-campo-brasil-de-janeiro-a-setembro-de-

    2011&catid=12:conflitos&Itemid=94. Acesso 03 dez. 2013.

    ______. Conflitos no campo Brasil 2012: Relatrio anual. Disponvel em:

    http://www.cptnacional.org.br/index.php/component/jdownloads/finish/43-conflitos-no-

    campo-brasil-publicacao/316-conflitos-no-campo-brasil-2012?Itemid=23. Acesso 30 jan.

    2014.

    COMPARATO, Fabio Konder. A afirmao histrica dos direitos humanos. So Paulo:

    saraiva, 2010.

    DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos Humanos e Cidadania. So Paulo: Editora Moderna.

    1999.

    FRANCO, Marcelo Veiga. Direitos humanos x direitos fundamentais: matriz histrica sob o

    prisma da tutela da dignidade da pessoa humana. In: O sistema interamericano de proteo

    dos direitos humanos: interface com o direito constitucional contemporneo. Belo

    Horizonte: Del Rey. 2007.

    GREENPEACE, Relatrio. Estado de conflito: uma investigao sobre grileiros, madeireiros

    e fronteiras sem lei do Estado do Par na Amaznia. Campanha da Amaznia 2003, p. 14.

    Disponvel em: http://www.greenpeace.org.br/amazonia/pdf/para_estadodeconflito.pdf.

    Acesso 10 jan. 2014.

    MANIGLIA, Elisabete. Criminalidade e violncia no mbito rural: crticas e reflexes.

    Disponvel em: http://www.saoluis.br/revistajuridica/arquivos/012.pdf. Acesso 10 jan. 2014.

    MARTINS, Jos de Souza. Expropriao e violncia. So Paulo: Hucitec, 1991.

    RECH, Daniel (Org). Direitos humanos no Brasil: diagnstico e perspectivas. Rio de

    Janeiro: Mauad, 2003.

    REPORTER BRASIL. Adolescentes escravizados exerciam atividades de risco no Par.

    Disponvel em: http://reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=2001. Acesso 15 de dez. 2013.

    SANTOS FILHO, Jos Reis. Violncia e projetos de vida em conflitos pela posse da terra.

    Estudos de Sociologia, UNESP, Araraquara, ano 6, n. 11, 2001.

  • SARLET, Ingo Wolfgang. A eficcia dos direitos fundamentais. 7. ed. Porto Alegre:

    Livraria do Advogado, 2007.

    SILVA, Jos Gomes da. Humanizao da aplicao do direito para dar-lhe o seu verdadeiro

    sentido. In.: BARUFFI, Helder (org.). Direitos fundamentais sociais: estudos em

    homenagem aos 60 anos da declarao universal dos direitos humanos e aos 20 anos da

    Constituio Federal. Dourados: UFGD, 2009.

    SILVA, Sergio Gomes da. Direitos humanos: entre o princpio de igualdade e a tolerncia.

    In: Revista Praia Vermelha. v. 19. n. 1. Jan-Jun 2010. Rio de Janeiro. p. 79-94. Disponvel

    em: www.ess.ufrj.br/ejornal/index.php/praiavermalha/article/download/.../65. Acesso 05 de

    jan. 2014.

    SOUZA SANTOS, Boaventura de. Reconhecer para libertar: os caminhos do

    cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003.

    TAVARES DOS SANTOS, Jos Vicente. Conflictos agrrios e violncia no Brasil: agentes

    sociais, lutas pela terra e reforma agrria. Pontifcia Universidad Javeriana. Seminrio

    Internacional, Bogot, Colmbia. Agosto de 2000. Disponvel em:

    http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/rjave/paneles/tavares.pdf. Acesso 15 jan. 2014.

    TERRA DE DIREITOS. Organizao de direitos humanos. Disponvel em:

    http://terradedireitos.org.br/biblioteca/noticias/mais-um-sem-terra-assassinado-em-

    pernambuco/. Acesso 20 dez. 2013.

    ZIMERMAN, Artur. Governos democrticos e as vtimas da luta pela terra. Disponvel

    em:

    http://www.pucsp.br/revistaaurora/ed7_v_janeiro_2010/artigos/download/ed7/9_artigo.pdf.

    Acesso 15 jan. 2014.