223
5/17/2018 Devires-dossierStraub&Huillet-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/devires-dossier-straubhuillet 1/223 1 DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 108-135, JAN/JUN 2013 STRAUB E HUILLET  V . 10 N .  1   J A N /  J U N 2 0 1 3 I S S N 1 6 7 9 - 8 5 0 3

Devires - dossier Straub&Huillet

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Film theory and criticism.

Citation preview

  • 1DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 108-135, JAN/JUN 2013

    STRAUBE HUILLETV . 10 N . 1 J A N / J U N 2 0 1 3 I S S N 1 6 7 9 - 8 5 0 3

  • devires, belo horizonte, v. 10, n. 1, p. 01-221, jan/jul 2013periodicidade semestral issn: 1679-8503

  • D 495 DEVIRES cinema e humanidades / Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas (Fafich) v.10 n.1 (2013)

    SemestralISSN: 1679-8503

    1. Antropologia. 2. Cinema. 3. Comunicao. 4. Filosofia. 5. Fotografia. 6. Histria. 7. Letras. I. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas.

    Publicao da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas (FAFICH) Universidade Federal de Minas Gerais UFMG

    Programa de Ps-Graduao em Comunicao / Programa de Ps-Graduao em AntropologiaAvenida Antnio Carlos, 6627 Pampulha 31270-901 Belo Horizonte MG Fone: (31) 3409-5050

    ORGANIZAO DOSSI STRAUB E HUILLET Joo Dumans Mateus Arajo

    CONSELHO EDITORIALAna Luza Carvalho (UFRGS)Cristina Melo Teixeira (UFPE)Consuelo Lins (UFRJ)Cornlia Eckert (UFRGS)Denilson Lopes (UFRJ)Eduardo Vargas (UFMG)Ismail Xavier (USP)Jair Tadeu da Fonseca (UFSC)Jean-Louis Comolli (Paris VIII)Joo Luiz Vieira (UFF)Jos Benjamin Picado (UFBA)Leandro Saraiva (UFSCAR)Mrcio Serelle (PUC/MG)Marcius Freire (Unicamp)Maurcio Lissovsky (UFRJ)Maurcio Vasconcelos (USP)Patrcia Franca (UFMG)Phillipe Dubois (Paris III)Phillipe Lourdou (Paris X)Rda Bensmaa (Brown University)Regina Helena da Silva (UFMG)Renato Athias (UFPE)Ronaldo Noronha (UFMG)Sabrina Sedlmayer (UFMG)Silvina Rodrigues Lopes (Universidade Nova de Lisboa)Stella SenraSusana Dobal (UnB)Sylvia Novaes (USP)

    EDITORESAnna Karina BartolomeuAndr BrasilCludia MesquitaCsar GuimaresCarlos M. Camargos MendonaMateus ArajoRoberta VeigaRuben Caixeta de Queiroz

    CAPA E PROJETO GRFICOBruno MartinsCarlos M. Camargos Mendona

    EDITORAO ELETRNICAThiago Rodrigues Lima

    COORDENAO DE PRODUOGlaura Cardoso ValeMaria Ines DieuzeideThiago Rodrigues Lima

    REVISO - PORTUGUSJoo DumansMateus Arajo

    IMAGENSStromboli (Roberto Rossellini, 1950) (pg. 12)Jeanne au bcher (Roberto Rossellini, 1954) (pg. 18)Am Siel (Peter Nestler, 1962) (pg. 24)Von Griechenland (Peter Nestler, 1965) (pg. 28)Viagem Itlia (Roberto Rossellini, 1954) (pg. 34)Antgona (Jean-Marie Straub e Danile Huillet, 1991) (pgs. 46, 62)O noivo, a atriz e o cafero (Jean-Marie Straub e Danile Huillet, 1968) (pg. 74)Moiss e Aaro (Jean-Marie Straub e Danile Huillet, 1975) (pgs. 88, 102 e 104)Composio de fotogramas pg. 108, ver nota pg. 111Aqueles encontros com eles (Jean-Marie Straub e Danile Huillet, 2006) (pg. 138)Onde jaz o teu sorriso (Pedro Costa, 2001) (pg. 160)

    Cemitrio na falsia (Jean Rouch, 1950) (pg. 182)Trs-os-montes (Antonio Reis e Margarida Cordeiro, 1976) (pg. 194)

    APOIOGrupo de Pesquisa Poticas da ExperinciaFAFICH UFMG

  • Sumrio

    7

    12

    18

    24

    28

    34

    46

    62

    74

    108

    138

    ApresentaoJoo Dumans e Mateus Arajo

    Dossi: Straub e Huillet

    A obra de Rossellini tem uma significao crist?Jean-Marie Straub

    Os prximos cinco filmes de RosselliniJean-Marie Straub

    Peter Nestler, um documentarista no reconciliadoJean-Marie Straub

    Introduo a NestlerJean-Marie Straub

    Viagem s litaniasJean Narboni

    O ponto de vista das pedrasLuiz Carlos de Oliveira Jr.

    Straub/Huillet e Antgona: o rigor do mitoJoo Lanari Bo

    Estratgias de distanciamento em O noivo, a atriz e o cafetoTheo Duarte

    Composio musical e pensamento cinematogrfico: Reverberaes da msica de Schoenberg no cinema de Straub-HuilletPedro Aspahan

    Straub, Huillet e o ensasmo dos outrosMateus Arajo

    Mito e Natureza nos Straub: Pavese, Hlderlin e CzanneJoo Dumans

    Fotograma comentado - Um fotograma de diferenaAnita Leandro

    Fora-de-campo

    Rouch narradormile Breton

    A consistncia do fantasmaEmlio Maciel

    Normas de publicao

    Sumrio

    88

    160

    182

    194

    220

  • 6 APRESENTAO / JOO DUMANS E MATEUS ARAJO SILVA

  • 71. Recolhidos respectivamente em O Sculo do cinema (1983, Reed. Cosac Naify, 2006, p.345 e 350-1) e Revoluo do Cinema Novo (1981, Reed. CosacNaify, 2004, p.223-4).

    2. Rio: Nova Fronteira, 1993 (cf. p.210-1, 241 e 323).

    3. Recolhida em Ismail Xavier (org.), O Cinema no Sculo. Rio, Imago, 1996 (cf. p.270-3).

    4. Folha de S. Paulo, 6/8/2000, Mais!, n.443, p.30-1.

    5. Includo no seu livro Fotodrama (Rio: Imago, 2005, p.7-15), depois de aparecer em italiano no de Roberto Turigliatto e Simone Fina (a cura di), Julio Bressane (Torino, Lindau, 2003, p.67-8).

    6. Elas transpareceram, por exemplo, numa bronca de Alex Viany em 1968 a Saraceni e Bressane por terem eles adorado a Crnica (cf. Saraceni, Op. cit., p.241), num desabafo de Arnaldo Jabor contra a influncia de Straub (Filme Cultura, n.30, agosto de 1978, p.8) e numa referncia desdenhosa de Leon Cakoff a Straub, que faria um tipo de cinema falado muito antes de Caetano Veloso, [...] com a diferena de que no tem humor ou graa (Folha de So Paulo, 27/2/1987, p.48).

    Apresentao

    Em quase cinquenta anos de trabalho, Jean-Marie Straub e Danile Huillet construram uma das obras mais importantes do cinema moderno, que ele prolonga em solo aps a morte dela em 2006. J na dcada de 1960, os primeiros filmes do casal impressionaram vivamente alguns dos melhores cineastas brasileiros, como Glauber Rocha, Jlio Bressane e Paulo Csar Saraceni, aos quais se seguiram, um pouco depois, Luiz Rosemberg, Arthur Omar, Ricardo Miranda e Carlos Reichenbach, entre outros.

    De l para c, o impacto causado pela obra do casal entre nossos cineastas e nossos crticos no chegou porm a se traduzir em contribuies brasileiras de flego bibliografia consagrada a ela, que foi se avolumando no mundo. Embora alguns de seus filmes tenham sido exibidos por aqui em cinematecas, cine-clubes e mostras, publicamos muito pouco sobre eles at 2000, ano do lanamento comercial no Brasil de Gente da Siclia (1998), o primeiro filme deles a estrear em nossas salas e a suscitar, assim, algumas resenhas na imprensa.1 Incluindo-as ou no, o balano continuava magro: consideraes lcidas de Glauber nos artigos O Novo cinema no mundo (O Cruzeiro, 30/03/1968) e Glauber Rocha escreve: assim se faz a revoluo no cinema (Manchete, n.939, abril 1970)1, evocaes admirativas de Saraceni em seu livro de memrias Por dentro do cinema novo: minha viagem (1993)2, alguns pargrafos penetrantes de Arthur Omar na sua conferncia Cinema: msica e pensamento (1995)3, sugestes de comparao dos Straub com Ozu e Brecht no ensaio de Stella Senra O Homem de Costas (2000)4 e o belo artigo de Bressane Jean-Marie Straub, a Crnica de Anna Magdalena Bach (2003)5 constituam at recentemente o principal do debate pblico brasileiro sobre a obra do casal - que tambm enfrentou resistncias por aqui.6

    Seja como for, embora no conheamos pesquisas mais circunstanciadas sobre a recepo e a eventual influncia do trabalho dos Straub junto aos cineastas, aos estudiosos e ao pblico cinfilo do Brasil, podemos constatar que a admirao pelos seus filmes atravessou as dcadas e parece ter re-emergido por aqui em anos recentes, quando seu lanamento em DVD, sua circulao na

    DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 7-9, JAN/JUN 2013

  • 8internet e sua presena mais constante em nossos festivais facilitaram seu acesso. Assim, ainda que com atraso e vagar, sua obra vem se tornando aos poucos mais conhecida e discutida no Brasil.

    Em janeiro de 2012, uma retrospectiva praticamente integral coroou esforos variados (a includos os de outros admiradores que tentavam noutras frentes implementar projetos semelhantes) e trouxe ao CCBB de So Paulo, Rio de Janeiro e Braslia 28 filmes do casal e 8 mais recentes de Straub. Embora tardia, ela ajudou a colocar em novo patamar o conhecimento e a discusso brasileiros do trabalho dos Straub. Junto com a exibio dos filmes, e com os debates que a secundaram, um catlogo exigente organizado a dez mos7 reuniu 19 textos, 3 entrevistas e um dirio de filmagem dos cineastas, alm de 8 textos importantes de alguns dos seus melhores intrpretes franceses e italianos. Com um nico texto de autor brasileiro no seu sumrio8, o catlogo careceu porm de esforos de reflexo propriamente brasileiros sobre o trabalho dos cineastas.

    Federar e impulsionar tais esforos (que avanam tambm em pesquisas universitrias9 e revistas eletrnicas10) foi o que buscamos neste volume monogrfico, o quinto na histria da revista a se concentrar em obras de cineastas particulares. Em nmeros anteriores, j havamos nos debruado sobre o trabalho de Jean-Luc Godard, Pedro Costa, Jean Rouch, Chantal Akerman e Andrea Tonacci. Agora a vez dos Straub.

    Trazendo ainda a primeira traduo em portugus de quatro textos de Straub de 1955 a 1972 (sobre Rossellini e Peter Nestler) e de um ensaio notvel de Jean Narboni (um dos seus intrpretes mais finos na Frana) sobre Relaes de Classe (1984) e Sicilia! (1998), este dossi rene sete ensaios brasileiros sobre diversos aspectos do trabalho do casal, escritos por estudiosos de diferentes geraes e procedncias (USP, UFMG, UFRJ e UnB).

    Tomando Antgona (1991) como exemplo privilegiado, Luiz Carlos de Oliveira Jnior examina o trabalho de mise-en-scne dos Straub, e atenta para o seu dilogo com Brecht e Czanne. Joo Lanari volta ao mesmo filme numa outra angulao, confrontando as escolhas dos cineastas com a tragdia de Sfocles, a traduo de Hlderlin e a verso de Brecht. Theo Costa Duarte assinala e analisa estratgias de distanciamento presentes em O noivo, a atriz e o cafeto (1968), remetendo-as a Brecht sem reduzi-las sua herana. Pedro Aspahan aborda as relaes do cinema dos

    7. Ernesto Gougain, Fernanda Taddei, Mateus Arajo Silva,

    Patrcia Mouro e Pedro Frana (Orgs.), Straub-Huillet.

    So Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2012, 271p.

    8. Mateus Arajo Silva, Glauber Rocha e os Straub: dilogo de exilados (p.243-

    63).

    9. Das concludas, citemos a dissertao de mestrado de um dos editores desse

    volume, O cinema de Straub e Huillet: dilogos com Pavese (Joo Dumans, B. Horizonte: FAFICH-UFMG, 2013, 209p.) e o captulo sobre os Straub

    da tese de doutorado de Cristian Borges, Vers un

    cinma en fuite: le puzzle, la mosaque et le labyrinthe

    comme clefs de composition filmique (Paris: Univ. de Paris

    III, 2007).

    10. Ver, entre outros, O cinema como ato de

    dissidncia (2006), de Carlos Adriano, na revista Trpico; A

    pera do cinema intransitivo contra as almas desgostosas

    (2000) e Homenagem a Danile Huillet (2006), de

    Ruy Gardnier, e Uma visita ao Louvre (2007) e Crnica

    de Anna Magdalena Bach (2009), de Luiz Carlos de

    Oliveira Jr., na Contracampo; A imagem e o Infinito

    (2008) e A pica dos gestos (2011), de Luiz Soares Jnior,

    Primeira Vista (2013), de Dalila Martins, e Nas

    sombras da imagem (2014), de Raul Arthuso, na Cintica.

    APRESENTAO / JOO DUMANS E MATEUS ARAJO SILVA

  • 9Straub com a msica de Schoenberg, e aponta uma homologia entre a partitura da pera Moiss e Aaro do compositor austraco e a decupagem do filme homnimo do casal, que a rel em 1974. Anita Leandro parte das conversas do casal no documentrio Onde Jaz o teu sorriso? (Pedro Costa, 2001) para propor um exame agudo das estratgias de montagem em seus filmes, articulando-as tambm com outros aspectos do seu trabalho (uso do som, atuao dos atores etc). Os editores do volume contribuem tambm com dois textos: o primeiro trata de um veio ensastico no trabalho dos Straub, apontando-o e discutindo-o em cinco filmes do casal e em dois curtas mais recentes de Straub; o segundo discute o sentido do dilogo travado pelos Straub com os textos de Pavese, explorando o estatuto do mito e da natureza em Da nuvem resistncia (1978) e Aqueles encontros com eles (2005).

    Neste mero anncio dos seus temas, o leitor perceber logo que estes ensaios no cobrem nem de longe o largo espectro dos filmes dos cineastas e das questes que eles suscitam. Possam eles ao menos sugerir algumas linhas de fora de sua recepo recente no Brasil, e representar tambm os outros textos recebidos para este dossi, cujas discusses nos interessaram e cujos autores merecem nosso sincero agradecimento. Face limitao de espao e necessidade de escolher alguns em detrimento dos outros, os pareceristas e os editores julgamos que os textos aqui recolhidos traziam, entre todos os recebidos, as formulaes mais felizes, embora necessariamente parciais, do debate brasileiro em curso sobre os Straub.

    Completam ainda o volume, na seo Fora-de-Campo, dois textos sobre cineastas cujas poticas, mobilizando o mito e a palavra oral, revelam uma ntima fraternidade com o cinema dos Straub. Emlio Maciel enfrenta, num ensaio denso, a riqueza de significaes de dois filmes (Trs-os-montes, de 1976, e Ana, de 1982) de outro casal de cineastas radicais, os portugueses Antnio Reis e Margarida Cordeiro. O crtico francs mile Breton discute, enfim, com muita propriedade, o pendor e o prazer de seu amigo Jean Rouch pela atividade de narrar, que est no corao de toda a sua obra.

    Joo Dumans e Mateus Arajo

    DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 7-9, JAN/JUN 2013

  • 10

    STRAUB E HUILLET

  • 11

    STRAUB E HUILLET

  • Jean-Marie Straub

    A obra de Rossellini tem uma significao crist?1

    DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 12-17, JAN/JUN 2013

  • 14 A obra de Rossellini tem uma significao crist? / Jean-Marie Straub

  • 15DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 12-17, JAN/JUN 2013

    Para alm das aparncias do neo-realismo, a obra de Roberto Rossellini no parece trazer uma significao francamente crist, mais profundamente at do que as de Alfred Hitchcock e Robert Bresson?

    O ponto de vista de todos aqueles que querem limitar o gnio de Rossellini a Roma, cidade aberta (1945) e a Pais (1946) repousa num mal-entendido. Afinal, desde Roma, cidade aberta, Rossellini exprimia uma viso catlica da condio humana. A presena de um padre neste filme, escreve muito acertadamente Henri Agel, no vale apenas pela exatido folclrica (h quase sempre um padre nos filmes italianos). Ela articula espiritualmente o drama (Le cinma a-t-il une me? Paris, Cerf, 1952: 50). Em Roma, cidade aberta, pela boca do oficial alemo, jogador de cartas, Rossellini afirma que, seja qual for a ferocidade do dio, da maldade e da crueldade dos homens, sempre o mesmo que ganha, isto , o Crucificado ao qual se identifica o resistente morrendo sob tortura sem ter trado, justo no caminho justo, e que, combatendo pela justia, trilhava as vias do Senhor, que so infinitas, diz Rossellini. Neste sentido, Roma, cidade aberta no mais sobre a resistncia do que A Paixo de Joana DArc (Dreyer, 1928) sobre os processos por bruxaria.

    A recusa da no participao na sujeira dos outros, em Pais

    Henri Agel provavelmente tem razo em dizer que as ltimas imagens de Pais gritam o horror de um mundo em que se desencadeia o mal, e que elas tm uma grandeza de apocalipse. Mas Rossellini declara ter querido exprimir tambm uma inocncia extraordinria, uma pureza, uma no participao na sujeira dos outros que, segundo ele, a coisa milagrosa: Vocs se lembram, em Pais eu peo desculpas por me citar, mas para mim esta linha de dilogo tem uma importncia enorme , quando o negro dorme, a criana lhe diz cuidado que se voc dormir, eu te roubo os sapatos. O negro adormece e o garoto rouba seus sapatos. correto, normal, neste jogo extraordinrio que esto os limites da moral.

    E absurdo tambm ver em Alemanha ano zero (1948) uma reportagem. Este filme, escreve o padre (Amde) Ayfre, seria um fracasso se fosse apenas um documentrio. Este filme outra coisa. Ele se desenrola numa outra dimenso,

    1. LOeuvre de Rossellini a-t-elle une signification chrtienne?. In: Jean-Marie Straub et Danile Huillet. crits. Paris: Independencia ditions, 2012, p. 23-24. (Publicado originalmente em Radio Cinma Tlvision, 13/02/1955).

  • 16 A obra de Rossellini tem uma significao crist? / Jean-Marie Straub

    a profundidade.... O padre Ayfre tem razo de interpretar Alemanha Ano Zero como o testemunho de um mundo em que o imenso amor de Deus no chega a encontrar uma passagem atravs do jogo sanguinrio e triste das paixes humanas, seno sob a forma de uma figura ajoelhada face a uma criana morta... Achado genial de ter sabido fazer desta criana no um smbolo, a palavra vazia demais, mas o signo eficaz, quase o sacramento de uma humanidade que, para alm de todos os progressos, parece constantemente obrigada a voltar estaca zero, e a se colocar constantemente a questo de seu sentido (Dieu au cinma, Paris: PUF, 1953: 167-171).

    Stromboli (1949): o reino dos corpos e o do esprito

    Quanto a Stromboli, permitam-me citar aqui um texto importante de Maurice Schrer, que se aplica to bem a ele quanto aos Fioretti (Francesco, giullare de Dio, 1950) e a Europa 51 (1952): Assim como a beleza da arte gtica s nos toca por meio do sentimento religioso e prova, por isso mesmo, o gnio da idia que a inspira, os ltimos filmes de Rossellini nos permitem enfim entrever os limites deste amvel atesmo ao qual o cinema contemporneo deve em geral suas obras mais admiradas... O gnio de Rossellini , como o da religio qual ele se refere, o de saber descobrir uma unio de tal modo estreita e ao mesmo tempo uma distncia de tal modo infinita entre o reino dos corpos, seu material, e o do esprito, seu objeto, que os efeitos mais testados de uma arte j velha e da qual ele se utiliza com que autoridade, que refinamento! acabam ganhando naturalmente a dignidade de uma significao muito mais nova, mais rica, mais profunda (Cahiers du Cinma, n.25, julho de 1952: 45).

    E no entanto, os filmes de Roberto Rossellini so ainda muito menos frequentes na Frana do que os filmes de Vittorio De Sica, mesmo nos cineclubes de inspirao catlica!

    Traduo de Mateus Arajo e Joo Dumans

  • 17DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 12-17, JAN/JUN 2013

  • Jean-Marie Straub

    Os prximos cinco filmes de Rossellini1

    DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 18-23, JAN/JUN 2013

  • 20 Os prximos cinco filmes de Rossellini / Jean-Marie Straub

  • 21DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 18-23, JAN/JUN 2013

    Cinco filmes de Rossellini sero lanados nas salas de Paris ao longo desta temporada. Estes cinco filmes so Amore (1947), Dov la libert (1953), Viaggio in Italia (1953), Jeanne DArc au bcher e La Peur (1954).

    Amore (A voz humana e O milagre). Extraordinrio recital de Anna Magnani rodado por Rossellini em 1947, Amore composto por dois mdias-metragens, A voz humana, a partir de Jean Cocteau, e O Milagre, a partir de um roteiro de Federico Fellini, e que chocou alguns catlicos americanos.

    Dov la libert (Onde est a liberdade?). O primeiro filme cmico de Rossellini, com a estrela italiana Tot, que, depois de vinte anos passados na priso, escapa e, desgostoso com a vida que levam as pessoas em liberdade, retorna fraudulentamente sua cela usando o mesmo procedimento que usara para escapar.

    Viaggio in Italia (para o ttulo em francs por muito tempo cogitou-se La Divorce de Naples mas acabou-se optando por LAmour est le plus fort!2). Interpretado pela Senhora Rossellini, Ingrid Bergman, e em torno do qual Robert Lachenay nos prometia recentemente, em ARTS, uma bela batalha, pois a projeo privada do filme nos Champs-lyses dividiu violentamente uma centena de cineastas e crticos, uns vendo nele um dos piores filmes j rodados, outros um dos mais belos.

    Jeanne au bcher, a partir do oratrio de Claudel e Honegger, o primeiro filme de Rossellini em cores, em Gevacolor.3 Esse filme se abre e se fecha com a ciranda de anjos no cu e sobre a terra, e recolhe a herana ao mesmo tempo de Mlis e de Murnau (as sequncias no realistas do Fausto), provando que s o cinema poderia exprimir to plenamente a poesia csmica do catolicismo de Claudel, e muito mais ainda... A verso francesa desse filme acaba de ser realizada pelo prprio Rossellini, Ingrid Bergman dublando a si mesma com um maravilhoso sotaque que acrescenta ainda mais ao filme!

    O medo, enfim, o mais recente filme de Rossellini, rodado na Alemanha, onde j estreou, a partir da novela de Stefan Zweig muito livremente adaptada. As pessoas me censuraram, me disse Rossellini, por eu no ter dado relevo suficiente ao personagem do amante. intencional: o que importava para mim era a mentira de uma mulher e sua confisso, a liberao pelo reconhecimento da culpa. Interpretado tambm por Ingrid Bergman.

    1. Voici les cinq prochains films de Rossellini. In: Jean-Marie Straub et Danile Huillet. crits. Paris: Independencia ditions, 2012, p. 25-26. (Publicado originalmente, em francs, em Radio Cinma Tlvision, 13/02/1955).

    2. O ttulo adotado no Brasil foi Viagem Itlia. (N.T.)

    3. Processo de revelao de filme em cores desenvolvido no final dos anos 1940, na Blgica. (N.T.)

  • 22 Os prximos cinco filmes de Rossellini / Jean-Marie Straub

    Seus projetos

    Atualmente, Rossellini prepara Carmen (a partir de Mrime), que vai rodar muito em breve na Espanha. Ele admira muito o Fausto de Murnau, e gostaria de poder rodar um dia, ele tambm, um Fausto, com Grard Philipe e Fredric March.4 Ele pensa tambm numa surpreendente comdia siciliana, da qual me contou longamente o argumento. Enfim, ele sonha com um filme sobre a Itlia da Renascena, na atmosfera das Crnicas italianas de Stendhal. O argumento ainda bastante vago: a histria de uma mulher casada com um senhor que ela no ama de incio, mas pouco a pouco ela se apieda desse tirano cruel, at o sacrifcio...

    Sacrifcio que eficaz para o seu marido ou que permanece vo?

    Um sacrifcio no nunca vo, me responde Rossellini... Compare a humanidade da Renascena humanidade atual: essa ltima apesar de tudo menos cruel.

    Traduo de Mateus Arajo e Joo Dumans

    4. Rossellini no realizaria Carmem, nem rodaria com

    Grard Philipe e Fredric March.

  • 23DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 18-23, JAN/JUN 2013

  • Jean-Marie Straub

    Peter Nestler, um documentarista no reconciliado1

    DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 24-27, JAN/JUN 2013

  • 26 Peter Nestler, um documentarista no reconciliado / Jean-Marie Straub

  • 27DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 24-27, JAN/JUN 2013

    Peter Nestler rodou sete documentrios, alguns para a televiso, alguns por conta prpria, e pouco a pouco se comea a dizer que preciso lev-los em considerao. Por que pouco a pouco? Estes filmes no se oferecem aos espectadores cobertos de atrativos superficiais, eles exigem serem vistos com ateno, uma qualidade escassa justamente nos meios que se ocupam de cinema. Filmar documentrios coercitivo. Nunca se tem ocasio de mostrar seu eu artstico sob um aspecto favorvel, de imprimir no mundo sua marca pessoal de realizador, ou mesmo de cultivar modas: o que conta s a modstia face ao que est diante da cmera; e precisamente nisso que se revela a personalidade do realizador.

    Peter Nestler aborda seus filmes sem asseres previamente formuladas, a realidade no neles manipulada em proveito da inteno coisa que deveria ser bvia mas que infelizmente no . mais fcil explicar o que so seus filmes partindo daquilo a que ele renuncia. Por qu? O que ele faz? Evidentemente, a coisa mais simples do mundo, e ao mesmo tempo a mais difcil. Ele volta sua cmera para as casas, as ruas, as pessoas. Ele deixa as pessoas falarem, faz escolhas sem comentar; assim que ele compe, com fragmentos esparsos, o quadro de uma cidade industrial, de uma paisagem em transformao, de um crculo de trabalhadores. E de modo coerente, diante de nossos olhos, um mundo se forma de novo; vemos o mundo numa nova coerncia. Peter Nestler nunca se confina atrs da cmera sem participar, seus filmes so tudo menos frios, mas isto s torna seu olhar mais preciso e inexorvel, pois a nica coisa que lhe interessa encontrar estes pontos em que a matria mais vulnervel, em que ela pode revelar seu segredo. Porque o autor, justamente, se probe toda ingerncia direta, o que percebemos atrs destes planos no a resignao, como se poderia crer de incio, mas a acusao que extrai seu pathos precisamente do fato de no estar formulada. Assim, a beleza e a poesia mesmas destes filmes no tem nada a ver com a beleza formal das imagens poticas: so as que irrompem quando a realidade trazida luz. Como toda obra de arte, os filmes de Peter Nestler tm uma exigncia para com o mundo, para que ele se transforme. Estes filmes so: Am Siel, Aufstze, Mlheim (Ruhr), Rheinstrom, denwaldstetten, Ein Arbeiterclub in Sheffield, Von Griechenland.2

    Traduo de Mateus Arajo e Joo Dumans

    1. Peter Nestler, un documentariste non rconcili (traduzido do italiano por Giorgio Passerone e Jeanne Revel). In: Jean-Marie Straub et Danile Huillet. crits. Paris: Independencia ditions, 2012, p. 50. (Publicado originalmente, em italiano, em Gli Irrequieti, n.1, 1967).

    2. Respectivamente, A Eclusa (1962), Redaes (1963), Mlheim (Ruhr) (1964), Sobre o Reno (1965), denwaldstetten, um vilarejo muda de rosto (1964), Um clube de trabalhadores em Sheffield (1965), Da Grcia (1966). (N.T.)

  • Jean-Marie Straub

    Introduo a Nestler1

    DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 28-33, JAN/JUN 2013

  • 30 Introduo a Nestler / Jean-Marie Straub

  • 31DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 28-33, JAN/JUN 2013

    Creio cada vez mais que Peter Nestler foi o cineasta mais importante na Alemanha do ps-guerra afora pessoas mais velhas que puderam filmar aqui, Fritz Lang, e afora La Paura (1954) de Rossellini. Justamente porque ele provavelmente o nico por aqui s filmou aquilo que filmou e no procurou agradar as pessoas. Isto foi tambm seu azar. Quando eu disse a Hinz2 que Nestler no figurava no catlogo da exposio da Constantin-Film, ele disse: Ns s queremos pessoas que tornem o cinema atraente. Gente que apenas filma, pinta, desenha o que v, sem tentar de antemo impor uma forma e assim apagar a realidade como Czanne, que no fez nada alm de pintar mas, e a quem as pessoas disseram: no so mas o que voc pinta gente assim se torna cada vez mais rara no campo do cinema. (Isto ocorre) porque o cinema se torna cada vez mais o que ele nunca deveria ser, ou o que lhe deveria ser acessoriamente permitido no ser, isto , uma mercadoria. Que se possa vender filmes uma outra questo, mas que eles se tornem cada vez mais uma mercadoria, isto obriga a explodir as estruturas s quais eles so entregues.

    Enquanto que Nestler fez os filmes mais poticos. Isto comeou com Am Siel (Nas Margens do Canal, 1962) ainda antes de Machorka-Muff e antes de (Rudolf) Thome chegar com o seu belssimo Vershnung (Reconciliao, CM, 1964), que eu considero at hoje uma das etapas mais importantes no jovem cinema alemo. Quando Am Siel passou em Mannheim diante da comisso de seleo, disseram: no d, um canal no pode falar. Depois, veio Aufstze (1963), ento disseram: no d, no se pode fazer as crianas falarem desse jeito. E depois veio Mlheim (Ruhr) (1964), a j no disseram quase nada, exceto o que vocs escreveram em Filmkritik. Mlheim foi para mim, sem que Nestler tenha naquela poca visto o que quer que seja de Mizoguchi, um filme mizoguchiano. Refiro-me ao Mizoguchi de Sansho dayu (O Intendente Sansho, 1954), por exemplo, que um dos filmes mais violentos que existem, provavelmente o nico filme marxista, e de modo algum como se escreveu um filme sobre o deus da misericrdia isto tambm, mas tambm um filme sobre o contrrio.

    Mlheim foi rejeitado porque mostra crianas condenadas pela sociedade na qual vivemos antes mesmo de crescerem.

    Depois Nestler fez dois longas, denwaldstetten (1964) e Arbeiterclub in Sheffield (1965) que j no passaram na televiso. A veio Von Griechenland (1965), um filme muito importante,

    1. Introduction Nestler (Traduzido do alemo por Bernard Eisenschitz e do italiano por Giorgio Passerone). In: Jean-Marie Straub et Danile Huillet. crits. Paris: Independencia ditions, 2012, p. 51-52. (Publicado originalmente em alemo em Filmkritik, outubro de 1968 e depois, numa verso italiana aumentada com o ltimo pargrafo, em Filmcritica, n.227, setembro de 1972).

    2. Nascido em 1931, Theo Hinz foi at o fim dos anos 1990 uma figura importante da distribuio e da produo do cinema alemo de autor (Fassbinder, Kluge etc.). Ele entra para a Constantin Film em 1955, dirige a Filmverlag der Autoren a partir de 1977, depois funda a sua prpria distribuidora, Futura Film, em 1983. A exposio Der junge deutsche Film (O Novo Cinema Alemo) foi organizada por ele no Constantin Film-Center de Berlim em maro de 1967. Redigido por Leonard H. Gmr, seu catlogo trazia 38 biofilmografias.

  • 32 Introduo a Nestler / Jean-Marie Straub

    esteticamente terrorista, e que se torna para mim cada vez mais importante. Ento as pessoas disseram que Nestler tinha um filo poltico, mas ele no tinha um filo, os acontecimentos na Grcia mostraram isso de l para c. Era genial os slogans da multido no estarem gravados em som direto. Quando escrevo assim, isto quer dizer algo, pois sou quase um apstolo do som direto. A intuio genial era fazer os slogans serem ditos apenas no comentrio, por ele. Ele repetia o que as pessoas diziam e gritavam. Agora Nestler fez um longa-metragem para a televiso sueca. Ele se chama Im Ruhrgebiet (1967). Dele se poderia dizer o que diz Brecht: Desenterrar a verdade sob os escombros da evidncia, ligar de maneira visvel (voyante) o singular ao geral, fixar o particular no grande processo, esta a arte dos realistas.

    (Acrscimo de 1972)

    Nestler um amigo. Quando nos conhecemos, ele j tinha feito trs filmes; eram os nicos filmes alemes do ps-guerra. Hoje, depois de seus ltimos filmes, ele continua sendo o nico cineasta alemo; se comparamos todos os filmes alemes atuais com os seus, podemos dizer o que Brecht dizia do teatro alemo dos anos 1920: vocs sempre pensaram que isto seria algo, mas lhes digo: (isto) no nada mais do que um escndalo, o que vocs veem aqui sua falncia completa, sua estupidez que est aqui publicamente demonstrada, sua preguia mental, sua depravao.

    Traduo de Mateus Arajo e Joo Dumans

  • 33DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 28-33, JAN/JUN 2013

  • Jean narboni

    Viagem s litanias1

    DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 34-45, JAN/JUN 2013

    Crtico de cinema, redator-chefe dos Cahiers du Cinma entre 1969-1974, fundador e coordenador durante muitos anos da editora da revistaAutor, entre outros, de livros como Mikio Naruse, Les temps incertains (Capricci, 2010) e Notes actuelles sur Le Dictateur (Cahiers du Cinma, 2006)

  • 36 Viagem s litanias / Jean Narboni

  • 37DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 34-45, JAN/JUN 2013

    Quem quer que tente escrever hoje sobre um filme dos Straub de maneira um pouco convincente sabe perseguir no fundo dois objetivos, de visibilidade desigual. Ao mesmo tempo em que procura trazer luz, para compartilh-las, as belezas que nele descobre, se esforar para sublinhar seus encantos e, encarnando mais Aaro do que Moiss, dissipar primeiro a aura intimidante que continua atrelada a esse nome: os Straub. Vimos assim, ao longo dos trinta anos que cobrem aproximadamente a sua obra, se recolherem pouco a pouco muitas noes austeras, teis no seu tempo e nem sempre infundadas, tais como rigor, despojamento, intransigncia formal e poltica, ascese, recusa das sedues fceis, insistncia na durao, primado da palavra e ativao do espectador.

    No conheo, no registro do proselitismo straubiano, um golpe de fora retrico mais desconcertante nem mais engraado, uma introduo mais virtuosamente intrigante, do que o comeo do artigo de Serge Daney sobre Trop tt trop tard, lanado em Paris em 1982, no mesmo dia de Blow Out, de Brian de Palma. Qual o ponto comum entre John Travolta e Jean-Marie Straub? Questo difcil, concordo. Um dana, o outro no. Um marxiano, o outro no. Um bem conhecido, o outro menos. Ambos tem seus fs. Eu, por exemplo. No entanto, basta ver seus filmes lanados no mesmo dia nas telas parisienses para compreender que uma mesma preocupao os atormenta. Uma preocupao? Antes uma paixo. A do som. (Libration, 20 de fevereiro de 1982, republicado no Cin-Journal).2

    tambm a Daney que devemos a insistncia na presena fsica irradiante dos corpos nos filmes dos Straub, e a passagem progressiva, na sua demonstrao, da materialidade sensualidade, e desta ao erotismo, at aquele, discreto, de um certo joelho em Introduo Msica de acompanhamento para uma cena de filme de Arnold Schoenberg.

    Erotismo. Foi ouvindo, num debate aps a projeo de Relaes de Classe no Espace Saint-Michel em 8/4/1999, Jean-Marie Straub em pessoa acrescentar lista de aspectos sob os quais esse filme podia ser visto, num sopro seguido por um silncio, e mesmo... o aspecto ertico, que a deciso de retornar a esse filme me veio mente. Sobretudo por causa de um plano, nunca esquecido depois que o vi pela primeira vez em 1984, e antes que a descoberta do grandioso Gente da Siclia viesse confirmar

    1. Voyages en litanies, publicado originalmente na revista Trafic, n.31, outono de 1999, pp.14-18. Em francs, o jogo de palavras do ttulo faz uma aluso ao filme de Roberto Rossellini, conhecido na Frana como Voyage en Italie (Viagem Itlia, 1954).

    2. Serge Daney, Trop tt, trop tard, in Cin-journal 1981-1986, Paris, Cahiers du Cinma, 1986, p.83-86. Traduzido no Brasil por Tatiana Monassa, sob o ttulo Cinemetereologia, em Ernesto Gougain et al (org.), Straub-Huillet, So Paulo, CCBB, 2012, p.214-8.

  • 38 Viagem s litanias / Jean Narboni

    a predileo que sempre tive pelos filmes dos Straub em preto e branco ( exceo de Othon) e, entre eles, os modernos, os sem figurino.

    O plano em questo surge aps a primeira bobina do filme, que corresponde ao nico captulo do romance americano de Kafka publicado em vida pelo autor, O foguista. Karl Rossmann, expulso por seus pais da Alemanha por ter sido seduzido por uma empregada bem mais velha que ele e lhe ter dado um filho, e depois da longa cena, no barco, de defesa do foguista e reconhecimento por seu tio Jakob, caminha pela primeira vez diante dos nossos olhos na terra firme do continente americano. Num lento movimento de cmera ao longo de um plano dgua que cintila suavemente, o tio Jakob, caminhando ao lado do sobrinho, conta-lhe o progresso de sua empresa, a multiplicao de seus entrepostos e o tamanho de sua fortuna, pela qual Karl Rossman se encanta como por um milagre tipicamente americano. No sei por qual conspirao de razes, por qual conjuno de indcios, eu nunca mais consegui afastar do meu esprito, diante desse plano emblemtico da absurda mquina de seduo e de poder que ao longo de todo o filme assediar Karl, a imagem de um Charlus3 procurando subjugar algum adolescente ou aquela de Aschenbach que teria vencido sua inibio para abordar Tadzio4: a atmosfera de passeio desse nico instante, to contrrio tenso exaustiva daquilo que o precede e sucede, a boa postura um pouco constrangida de Karl pescoo ereto, balano regular dos braos, andar ao mesmo tempo rgido e flexvel , ou o inverossmil chapu-palheta de fita larga preta colocado deliciosamente sobre sua cabea. Nenhum Morte em Veneza igualaria a elegncia, o maneirismo, a faceirice ambgua dessa imagem. Muito alerta, o prprio Straub dizia, depois de ter citado Sade (Cahiers du Cinma, n.364), que seu filme poderia ter se chamado Karl Rossman ou os infortnios da virtude. E mesmo que ele diga muitas maldades inteis e injustas sobre Rossellini, se Relaes de Classe, relato das desventuras de um corpo desejvel (e suscitando por isso tanto o afago quanto a punio ou os golpes), faz pensar em um filme, menos em A adolescente5 ou Viridiana6 de Buuel (explicitamente sadianos) que em Alemanha Ano Zero7, do qual constitui uma espcie de inverso, ou de negativo: velho pas europeu devastado pela guerra contrastando com um novo

    3. Baro de Charlus, personagem de Em busca do

    tempo perdido, de Marcel Proust. [N.T]

    4. Gustav von Aschenbach e Tadzio, personagens do

    romance Morte em Veneza, de Thomas Mann, adaptado

    ao cinema por Luchino Visconti em 1971. [N.T]

    5. The Young One (Luis Buuel, 1960).

    6. Viridiana (Luis Buuel, 1961).

    7. Germania anno zero (Roberto Rossellini, 1948).

  • 39DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 34-45, JAN/JUN 2013

    mundo de conquista e expanso, calvrio e morte de um jovem criminoso inocente em oposio ao segundo nascimento de um adolescente exilado (os primeiros passos nos Estados Unidos eram comparveis a um nascimento, escreve Kafka) e sua integrao libertadora ao teatro de Oklahoma. Em compensao, impressionam as semelhanas entre esses dois personagens que seus respectivos filmes no abandonam por um minuto, o garoto excessivamente maduro Edmund e seu irmo mais velho Karl (de quem esquecemos a paternidade faltosa, to impensvel a coisa): a seriedade, a boa vontade, a concentrao, a inocncia, e uma paradoxal passividade teimosa atravessada por acessos de revolta. Ameaando tanto um quanto o outro, gira a ciranda de manipulaes do mundo adulto, reinam a dureza das relaes de poder e a precariedade da existncia.

    Em Relaes de Classe, sou sensvel ao contraste entre a distncia severa que frequentemente separa os personagens, e a fora de atrao e de desestabilizao que s o corpo de Karl exerce sobre os ambientes que ele atravessa. Ele aquele a quem, ao longo de todo o filme, os outros no cessam de tentar se anexar ou de rechaar, de tocar, de empurrar, de derrubar ou de bater. Na longa passagem da casa nos arredores de Nova Iorque, os Straub se aproximam ao mximo da progresso lgica (que desemboca na loucura) de Kafka, quando descrevem a conspirao de todos os indivduos presentes para empurrar o jovem para o quarto de Klara, at o momento delirante em que ela o derruba. Eles no nos poupam nem do golpe de jud, nem do desejo declarado dos tapas sobre as bochechas at que elas inchem, nem da incitao ao suicdio por vergonha. H, nessa manso nos arredores de Nova Iorque, uma certa reminiscncia de um dia no campo8, no bracelete ouriado de pontas usado por Klara quando ela aperta o pescoo de Karl, eco da munhequeira que Renoir coloca diante de ns quando Henri enlaa Henriette (a assonncia dos nomes acentua a similaridade). Longe da lenda straubiana da rigidez montona dos corpos, Relaes de Classe libera posturas e atitudes (ajoelhamentos, langores, quedas, agachamentos, corridas...) assim como as anomalias de vesturio (o j mencionado chapu-palheta de Karl, a gravata borboleta desproporcional de Green, o chapu obtuso, o roupo vestido por Delamarche em plena rua sobre o peito peludo de Harun Farocki, os capacetes de polcia, os adornos de Brunelda, a

    8. Referncia ao filme Um Dia no Campo (Partie de Campagne, 1936), de Jean Renoir. [N.T]

  • 40 Viagem s litanias / Jean Narboni

    indumentria heterclita de Robinson). Ternura pelos cafajestes, escrevia ainda Daney. Em todo caso, jbilo em film-los. Como no se sensibilizar diante desse tio improvvel e desconfiado, desta manso de arrivistas que vira um bordel, do pai, do amigo, do criado e do noivo alcoviteiros, desses vagabundos transformados em gigols ou palhaos, dessa grande cantora com ar de puta? Talvez o aspecto mais profundamente fordiano dos Straub resida nessa alternncia do trivial e do solene, do relaxamento e do hieratismo (e nos mais altos momentos de humor impassvel, na sua simultaneidade). Durante muito tempo procurei uma expresso capaz de traduzir o sentimento que me transmitia, nesse filme, a forma de apario, a postura, a circunspeco frequentemente derrisria dos diferentes atores, antes de chegar a esta: mais do que presentes na imagem, eles so intimados a comparecer, e o filme inteiro se desenrola como a instruo de um processo. A diferena entre protagonistas e comparsas, personagens principais e secundrios, heris e figurantes, se apaga em benefcio de uma repartio de papis entre ru, juiz, procurador, advogado e testemunha. Por mais diversos que sejam, os lugares atravessados cabine de navio, casa na periferia, floresta noturna irrealista, escritrio de um gerente de hotel ou rua nova-iorquina se constituem como salas de audincia, nas quais impera uma atmosfera de tribunal e um pesado clima de suspeita. Cada cena prope (se excetuarmos o terrvel relato que a secretria faz da morte de sua me, um dos raros momentos em que uma pessoa fala a algum que a escuta) uma dura confrontao de partes litigantes, de acusaes movidas frequentemente por pura m-f e de defesas raramente ouvidas. Seja quando um enquadramento vazio preexiste entrada de uma das partes presentes, seja quando um ator at ento desapercebido em cena se revela (surgido no se sabe de onde), seja quando um descentramento dos protagonistas na imagem reserva um espao vazio que mais tarde algum vir ocupar, sempre se impe uma severa cenografia de tribunal, que torna ainda mais sensvel a articulao, o peso e a velocidade das palavras, jurdicas e processuais. A que ponto tambm os elementos do cenrio e a moblia, instalando uma divisria na imagem, acentuam as distncias hierrquicas e a separao dos papis: longa mesa vazia, balco de hotel, cadeira qual se segura como a uma barra de tribunal. Creio tambm que a escolha de um ponto nico da cmera para cada cena (e da

  • 41DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 34-45, JAN/JUN 2013

    iluminao fixada de uma vez por todas), a busca do ponto estratgico graas ao qual os Straub pelo jogo das mudanas de eixo, de lentes e da escala dos planos visam preservar a consistncia do espao, decorre mais profundamente de uma vontade de subverter a cena judiciria, a princpio onipotente. Como se o lugar da cmera, ligeiramente deslocado em relao mquina do processo, se transformasse no lugar de um apelo ou de um ltimo recurso a partir do qual uma vez destituda a instncia sempre inqua do julgamento a justia poderia enfim ser feita.

    *

    Vemos assim em que, politicamente ou mesmo filosoficamente, os Straub podem se reconhecer tanto em Kafka, que dizia por vezes temer mais pelo mundo do que por si, quanto em Vittorini, que faz o amolador de facas proclamar, no fim de Conversa na Siclia (escrito sob o fascismo em 1937/1938, publicado depois apreendido), que ele no sofre por si mesmo, mas somente pela dor do mundo ofendido. Mas do ponto de vista do estilo, no haveria, primeira vista, incompatibilidade entre o antilirismo vibrante de um e a amplitude musical e operstica do outro? Como os mesmos cineastas podem ser atrados tanto pelo estilo jurdico e processual de Kafka, cerebral, ardiloso, infinitamente espiralado (transcrito o mais prximo possvel de sua dimenso lgica, desembocando na loucura e na frieza do seu humor), e a potncia potica encantatria de Vittorini? Como podem passar de um ao outro depois de um desvio por Hlderlin (duas vezes), Sfocles/Brecht e novamente Schenberg? Precisamente, a meu ver, porque eles no param de trabalhar na inveno, pelos meios de sua arte apenas, de uma zona de indiscernibilidade entre o cinema, o teatro e a pera, a palavra, a palavra cantada e o canto. Se admitimos, com Deleuze, que o que a tragdia grega instaurou em primeiro lugar a forma do tribunal, e que nela o trgico vem menos da ao do que do julgamento (a conscincia de ter uma dvida em relao divindade, segundo Nietzsche), dimensionamos melhor o papel central de um filme como Relaes de Classe, com sua cenografia de tribunal e sua palavra de deposio, e em qu ele encontra

  • 42 Viagem s litanias / Jean Narboni

    necessariamente lugar na constelao que conduz nos dias de hoje ao atordoante [bouleversant] Gente da Siclia, ainda mais saturado de msica por no trazer nenhuma, exceto nos crditos iniciais e bem perto do fim.

    Estranha conversa, alis, quando paramos para escut-la. Se entendemos por isso uma forma de sociabilidade difusa, familiar, fluente, anrquica e regulada, entre interlocutores de p, por uma distncia de pouco menos de um metro, ento possvel dizer que h muito tempo nos filmes dos Straub, e menos ainda em Gente da Siclia, os atores no conversam nem se falam. Eles se apostrofam, se interpelam, se gritam, discursam se estranhando, se admoestam, se acusam, se medem pela palavra, se intimam ou se impem. As conversas nunca se dispersam numa nebulosa de palavras, elas retinem muito mais como num choque de rplicas. Conversa, se quisermos, mas ento no sentido em que Stendhal a entendia: como batalha. Da geralmente essa surpresa inicial, e a lenda maldosa, incompreensiva, segundo a qual os atores, nos filmes dos Straub, falam de maneira falsa e muito alto, com uma veemncia excessiva, e em geral muito longe uns dos outros. O poder de vibrao e o impacto das trocas verbais so tais que impediram de ver uma distoro de mesma natureza na restituio do espao. Sempre me surpreendeu que ningum tenha se admirado nos Straub (sob o pretexto do neo-lumierismo que lhes imputado, e da devoo que proclamam pela realidade do espao) com as bizarrices do universo visvel, geralmente bastante distantes da percepo dita natural, aquela que Bresson dizia querer reencontrar usando a 50mm e aplainando suas imagens como se com um ferro de passar. Aqui, ao contrrio, so frequentes as perspectivas marcadas, os mltiplos eixos, as linhas interrompidas, as transversais ostensivas, os ngulos duros, os planos inclinados, os conflitos de volume na imagem, que dramatizam e atormentam o espao, dando por vezes a impresso de que os atores, empurrados para o fundo da cena ou projetando-se ao primeiro plano, esto espremidos ali. E isso vale, curiosamente, tanto para as cenas de interior (a exiguidade das locaes e os problemas de iluminao da resultantes seriam ento, em parte, capazes de explic-lo) quanto para aquelas ao ar livre, como provam a j clebre volta de carro em torno da Praa da Bastilha em Cedo Demais, Tarde Demais ou, em Relaes de Classe, a panormica

  • 43DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 34-45, JAN/JUN 2013

    sobre o trfego que termina no parapeito da ponte, onde Karl, Robinson e Delamarche esto apoiados. A presena ostensiva das figuras, a estranheza das linhas, a profundidade marcada de sombras por vezes enormes, os contrastes entre o claro e o escuro conferem assim aos filmes uma dimenso quase expressionista, na fronteira com o fantstico. Czanne tambm reclamava um realismo, mas pleno de grandeza, sem duvidar do herosmo do real, e alguns de seus contemporneos desconfiavam que ele sofresse de problemas de vista.

    Jamais como em Gente da Siclia os Straub haviam chegado a esse ponto de indistino ou de indiscernibilidade das trs cenas do cinema, do teatro e a da pera cuja procura constitui a sua maior preocupao. A estratgia, esttica e poltica, prpria a toda grande arte, que Jacques Rancire definia como estratgia da interface, que faz com que se cruzem as idealidades materiais de artes diferentes, alcana a uma densidade e uma grandeza novas. Cada palavra proferida, cada interlocuo, faz surgir uma dimenso encantatria, ressoando ao mesmo tempo como prece e como ordem. A pobreza, a fome, a tristeza, a clera, a opresso, a revolta, a vida difcil, a filiao inquieta, as alegrias tambm e o amor devastado se dizem a em loucas enumeraes a cappella, alternadas, fugitivas, concertantes. preciso ouvir a litania do ningum as quer (nessuno ne vuole) do vendedor de laranjas no porto de Messina, a recitao dos nomes das cidades ditos, reditos e retomados, a lista de profisses suspeitas (quase todas) enumeradas pelos policiais fascistas (um deles com uma bela voz de bartono), a circulao da palavra fedentina (puzza) que eles suscitam em meio aos passageiros do trem. Timbre surdo, emisso breve, voz estrangulada do filho em sua insistncia ansiosa de perguntas (to prxima da litania dos voc se lembra de No reconciliados). Recitao [Sprechgesang] inaudita da me, com seus picos agudos, suas quedas, suas pausas marcadas, seus glissandi de clera, de alegria, de dor pela evocao de seu amor secreto e desaparecido (a emoo desse momento da mesma natureza daquele experimentado na leitura, em Os Mortos de Joyce, da confisso de Gretta a Gabriel: Assim houve em sua existncia este evento romanesco: um homem morreu por ela). Culminncia enfim da ltima cena, onde a enumerao dos elementos que fazem a beleza e a diversidade do mundo (a luz, a sombra, a esperana, os homens e as mulheres, o po, o vinho,

  • 44 Viagem s litanias / Jean Narboni

    os lobos, os pssaros, a vida, a morte, a ressureio...) ganha uma amplitude verdadeiramente mtica, onde a nomeao e por fim a soletrao tornam-se constituintes, criadoras. Invocao enfim das armas que faltam para que o mundo no seja mais ofendido, para que nele no reine mais a tristeza, o desgosto, o dio de si e a calma cmoda da desesperana. E ento, mas s ento, no face a face imvel de uma fraternidade reencontrada e como que escuta de um hino, que pode surgir o Adagio do dcimo quinto quarteto de Beethoven, canto de ao de graas de um convalescente.

    Traduo de Joo Dumans e

    Mateus Arajo

  • 45DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 34-45, JAN/JUN 2013

  • Luiz CarLos oLiveira Jr.

    O ponto de vista das pedras

    DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 46-61, JAN/JUN 2013

    Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo ECA-USP

  • 48 O ponto de vista das pedras / Luiz Carlos Oliveira Jr.

    Resumo: O texto aborda os estilos de mise en scne e as estratgias visuais e sonoras do cinema de Jean-Marie Straub e Danile Huillet, priorizando a anlise do dispositivo cnico do filme Antgona, de 1991, bem como a importncia da relao dos Straub com as teorias brechtianas e a pintura de Czanne.

    Palavras-chave: Straub/Huillet. mise en scne. Antgona. rigor formal.

    Abstract: The text focuses the styles of mise en scne, and the visual and sound strategies of Jean-Marie Straub and Danile Huillet, emphasizing the analysis of the scenic device conceived for Antigone (1991), as well as the importance of Straubs relationship to Brechtian theories and Czannes painting.

    Keywords: Straub/Huillet. mise en scne. Antigone. aesthetic austerity.

    Rsum: Le texte se concentre sur les styles de mise en scne et les stratgies visuels du cinma de Jean-Marie Straub et Danile Huillet tout en mettant laccent sur lanalyse du dispositif scnique du film Antigone, de 1991, et sur limportance du rapport des Straub avec les thories brechtiennes et la peinture de Czanne.

    Mots-cls: Straub/Huillet. mise en scne. Antigone. rigueur esthtique.

  • 49DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 46-61, JAN/JUN 2013

    Em conferncia realizada na Fmis em 1988, Jean-Marie Straub e Danile Huillet se puseram a explicar todos os detalhes da construo de uma cena de A morte de Empdocles (1986), a cena do primeiro confronto de Empdocles com o sacerdote e o arconte, que chegam acompanhados de trs representantes civis de Agrigento.1 Uma cena de julgamento, basicamente. A descrio do processo de elaborao da cena no deixa dvida de que a decupagem, para eles, um verdadeiro jogo de xadrez. Cada posio de cmera constitui um ponto estratgico. A primeira etapa da mise en scne estudar o espao e encontrar os centros nevrlgicos, domesticar o espao, dobrar-se a ele e ao mesmo tempo domin-lo, achar a posio justa da cmera (LOUNAS, 1997: 45). A segunda estabelecer limitaes, constries. Por exemplo: criar uma espcie de arco de circunferncia delimitada pela linha de olhar entre Empdocles e o arconte e jamais filmar nada que esteja fora desse arco (o espao da cena quase teatral, o que est ali como presena real no h geografia criativa em Straub/Huillet, no h trucagem do cenrio ou montagem abstrata dos lugares). Em seguida, eles determinam que a cmera ocupe uma nica posio ao longo de toda a cena e uma mesma altura que sempre a altura do homem. E assim vai. A cada novo elemento, um novo obstculo estimulante. O que emerge da um sistema que obedece a uma srie de regras desafiadoras um cozimento espacial, nas palavras do prprio Straub.

    Mas qual a razo de ser de todo esse sistema, de toda essa racionalizao das solues cnicas? Dar-se o direito de ter surpresas. Ter surpresas descobrir uma realidade (STRAUB, 1970: 53). A rigidez do mtodo a condio para que aparea na imagem, na revelao da imagem, o sorriso que jaz fugidio. Straub e Huillet pertencem quela categoria de artistas que, somente dentro de um conjunto de restries, conseguem encontrar a maior liberdade possvel.

    O filme que realizaram em 1991 a partir da adaptao de Brecht para a pea Antgona, de Sfocles, segue uma estrutura de mise en scne to rigorosa quanto a de A morte de Empdocles, porm submetida a uma depurao ainda maior. O ttulo completo do filme A Antgona de Sfocles, na traduo de Hlderlin, tal como foi adaptada cena por Brecht [Die Antigone des Sophokles nach der Hlderlinschen bertragung fr die Bhne bearbeitet von Brecht (Suhrkamp Verlag, 1948)]. Alm das referncias a Sfocles,

    1. Cf. Jean-Marie Straub e Danile Huillet, Concepo de um filme. In: GOUGAIN, Ernesto et al. (Orgs.). Straub-Huillet. So Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2012. p. 39-49.

  • 50 O ponto de vista das pedras / Luiz Carlos Oliveira Jr.

    Hlderlin e Brecht, que formam as trs camadas geolgicas do texto, o ttulo da verso contempornea de Straub/Huillet destaca ainda suas condies materiais de existncia por intermdio do parnteses (Suhrkamp Verlag, 1948) acoplado por eles ao j extenso ttulo usado por Brecht na primeira encenao da pea em Chur, na Sua. A data situa a adaptao de Brecht no tempo histrico, e o nome do editor no s lhe d o devido crdito como ainda lembra o espectador do filme de que os direitos da obra de Brecht precisaram ser comprados. O prprio ttulo do filme, portanto, j traz uma inscrio materialista da obra.

    Poucos cineastas tm preocupaes formais to concretas e palpveis quanto Straub e Huillet. Em Crnica de Anna Magdalena Bach (1968), por exemplo, eles tecem uma articulao fundamental entre a msica do gnio barroco e o contexto material de sua criao. Tal articulao passa, em primeiro lugar, pela prpria relao da msica com a arquitetura. A msica de Bach composta de acordo com o espao onde ser ouvida. Compor para uma igreja barroca no a mesma coisa que compor para o salo de um nobre. A voz de sua esposa Anna nos informa sempre para qual espao e em que contexto, sob que condies a msica que ouviremos na cena seguinte foi pensada e concebida por Bach. Vemos e ouvimos a msica no espao, uma coisa implicando a outra. No primeiro plano do filme, aps alguns minutos fechado somente em Bach tocando o cravo, o quadro se abre por um travelling para trs e reconhece que h um espao volta dele, e que h outros msicos nesse espao. O movimento de cmera comea no exato instante em que a msica solicita a participao dos outros instrumentistas. um movimento que apreende a relao de Bach com o entorno, do indivduo com a comunidade, do gnio com o mundo. Bach no seria Bach sem a presena desse mundo e dessas pessoas que o circundam. Brecht tinha essa mesma preocupao com relao aos grandes homens do passado: ele tambm acreditava que era preciso despi-los da capa mitolgica e/ou romntica e investigar a realidade sensvel em que viveram e conduziram seus feitos. S assim surgiriam as relaes sociais, as relaes mantidas entre eles e os outros homens, ou seja, as relaes que os fizeram ser o que foram: a mnima unidade social no um homem, mas dois homens (BRECHT, 1967: 208).

    Outro aspecto importante que se verifica no ttulo da adaptao de Straub/Huillet para Antgona a necessidade de apontar a origem e, mais ainda, a trajetria de transformao do

  • 51DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 46-61, JAN/JUN 2013

    texto. O nome do filme praticamente um itinerrio: de Sfocles para Hlderlin, do grego para o alemo, de Hlderlin para Brecht, do drama clssico para o teatro pico, e da finalmente para o cinema de Straub/Huillet, que a soma ou a superposio de tudo isso. Os diretores do filme j anunciam, desde o ttulo, que l encontraremos no s a encenao presente, como tambm todo o passado do texto, todos os vestgios arqueolgicos que jazem debaixo da superfcie das palavras. O filme parte da verso retrabalhada por Bertolt Brecht em 1948 da traduo em alemo (1800-1803) de Friedrich Hlderlin (1770-1843) da tragdia (c. 442 a.C.) de Sfocles (496-406 a.C.). Straub e Huillet filmam a resistncia das palavras, a resistncia do material dramtico da Antgona ao tempo. L onde algo resiste, preciso filmar, disse Serge Daney (2007: 174) a propsito, justamente, dos Straub. Do mesmo modo que as runas da Roma antiga convivem com as construes modernas da cidade, subjazem mise en scne de Straub/Huillet as runas do texto de Sfocles, as reconstrues da traduo de Hlderlin e a estrutura moderna da adaptao de Brecht. As vrias idades do drama confluem para dentro do filme e l se atritam.

    Em Antgona, Straub e Huillet reduzem o cinema ao mnimo, filmam como Griffith filmava em 1910: uma cmera, um trip, alguns atores, uma rvore balanada pelo vento ao fundo. O filme foi rodado no Teatro de Segesta, um anfiteatro em estilo grego localizado na Siclia, sul da Itlia, datando do sculo IV a.C., um dos teatros gregos da antiguidade mais bem preservados, descoberto por Straub mais ou menos vinte anos antes, quando fazia pesquisa de locao para Moiss e Aro (1975), adaptao da pera homnima de Schnberg. A existncia concreta, singular e histrica do Teatro de Segesta um dado importante para os diretores.

    A ideia de afloramento, de uma reserva (de sentido, de memria, de histria, de morte) que jaz no subsolo e que o solo tem a tarefa de evocar ou de conjurar, essa ideia eminentemente reconhecvel, ela praticamente uma marca temtica autoral do cinema dos Straub. (AUMONT, 1996: 226)

    Tal afloramento est incrustado nas figuras do drama, nas roupas, nas posturas e nos gestos. O que tenciona o lugar desde suas camadas geolgicas mais profundas no verbalizado nem propriamente mostrado, mas se faz presente de alguma maneira.

  • 52 O ponto de vista das pedras / Luiz Carlos Oliveira Jr.

    Para servir eficazmente ao drama, o teatro deve adquirir uma configurao concreta no filme, ele no pode ser um espao imaginrio criado de forma abstrata na montagem. O espao deve ser apreendido pela topometria da decupagem, o tempo pela durao, o cenrio por sua existncia concreta, o drama pela geografia dos afrontamentos.

    O espao do anfiteatro cirurgicamente dividido por Straub e Huillet. O filme inteiro construdo de uma nica posio de cmera, que respeita rigidamente a regra clssica dos 180 (s mostrando um lado do cenrio, o outro onde a cmera e os tcnicos se encontram estando radicalmente interditado ao campo de viso). O arco de 180 abarcado pelo campo favorecido aqui pela configurao semicircular do anfiteatro.

    Straub decupou o texto de Brecht em apenas 147 planos (incluindo a cartela final), nmero bastante reduzido para um filme de 93 minutos. a primeira restrio que ele se imps (s cortar quando for essencial). A segunda no mover a cmera, mant-la fixa na maior parte do tempo. O corolrio dessa regra de estatismo que, quando finalmente a cmera se move, o efeito do movimento sentido com intensidade rara, e somos imediatamente impelidos a especular sobre sua significao no filme. Por que a cmera se deslocou bruscamente com uma veloz panormica lateral de um corpo para o outro? Para dizer que eles esto interligados por um lao to profundo quanto arbitrrio? Para violentamente confront-los num espao e num movimento contguos, sem permitir evaso do conflito?

    A decupagem de Antgona possui to somente duas indicaes de cmera: von oben (do alto) e von unten (de baixo).2 Ou a cmera se pe ao nvel dos olhos dos atores, ou se coloca numa plataforma elevada mais ou menos cinco metros acima desse patamar, num ponto de vista que, a princpio, pode parecer simular a posio de um espectador situado na arquibancada do anfiteatro, o que, todavia, se mostra improvvel no decorrer do filme. A forma mais adequada de enxergar essas duas angulaes de cmera seria admitir que Straub filma ora da altura do homem, ora da altura dos deuses.

    O Teatro de Segesta fica no alto de uma colina um cenrio em runas, com blocos de pedra envelhecidos pelo tempo, espao austero que faz jus rgida proposta esttica de Straub. O

    2. Tanto a decupagem do filme quanto os dilogos

    podem ser lidos na ntegra em Danile Huillet e

    Jean-Marie Straub, Antigone. Toulouse: ditions Ombres,

    1992.

  • 53DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 46-61, JAN/JUN 2013

    nico respiro uma graciosa rvore que se acha na poro central do espao cnico, praticamente a nica coisa viva no filme, como notou Barton Byg (1995). Nesse cenrio esttico e inabalvel, os atores se comportam, tambm eles, como blocos de pedra, esculturas imveis cravadas no cho de terra o que nos ajuda a perceber, dialeticamente, tudo o que difere um homem de uma pedra. Essa imponncia dos atores se inspira, de certa forma, no hieratismo de algumas figuras do western dos anos 1950 pensar nos personagens de Randolph Scott nos filmes de Budd Boeticher (de quem Straub admirador confesso), ou no personagem de Gary Cooper em O Homem do Oeste (Man of the West, Anthony Mann, 1958), sobre o qual Godard (1989: 197) escreveu certa vez: Falei mais acima da beleza vegetal [dos planos de Mann]. O rosto amorfo de Gary Cooper em O Homem do Oeste pertence ao reino mineral. a prova de que Anthony Mann retorna s verdades primeiras. Essas palavras os planos do filme possuem uma beleza vegetal, o rosto amorfo do ator pertence ao reino mineral, o diretor retorna s verdades primeiras poderiam ter sido escritas sobre um filme de Straub/Huillet. Sobre Antgona.

    Cineastas da palavra, Straub e Huillet economizam nos gestos, guardam a ao para momentos precisos e nfimos. Num filme de Hawks, ou de Minnelli, ou de Chaplin, a mise en scne est basicamente na apreenso da relao que os corpos estabelecem com os objetos (e com os outros corpos) no espao fsico do cenrio. J em Antgona, o verdadeiro assunto posto em cena por Jean-Marie Straub e Danile Huillet a palavra, no a linguagem, mas a palavra em sua relao com o tempo, com o passado (GIAVARINI, 1992: 40). Pela densidade dos assuntos polticos e morais de que trata e pela riqueza fontica das palavras, o texto de Sfocles-Hlderlin-Brecht impe, a princpio, uma dificuldade de representao, e esta dificuldade que Straub transforma em sua matria mesma, em seu tema. O importante submeter os atores a obstculos, pois so os obstculos que os revelam. Em Os olhos no querem sempre se fechar ou talvez um dia Roma se permita fazer sua escolha (Othon) [1969], Straub tambm respeitou o texto de Corneille (do sculo XVII) em termos literais, sem substituir palavras fora de uso por outras atuais nem nada do tipo. Para dificultar ainda mais, o texto falado num fluxo ininterrupto: contrariamente atitude que consiste em facilitar a compreenso do texto que o envelhecimento da lngua torna

  • 54 O ponto de vista das pedras / Luiz Carlos Oliveira Jr.

    difcil mesmo para os ouvintes cultos , Straub multiplica os obstculos e as dificuldades (AUMONT, 2008: 31). Os atores so extremamente exigidos: foram escolhidos atores que no tm o francs como lngua materna, forando-os a atuar numa lngua que, alm de articulada na forma erudita de trs sculos antes, lhes estrangeira. Assistimos, ento, a homens em luta com uma lngua que no a sua nem a do seu tempo, mas que fortemente atualizada por estas distncias (FIESCHI, 1998: 36). Os atores desempenham um verdadeiro esforo vocal e corpreo para dar vida ao texto. A fala adquire materialidade, fora fsica, exaltando o fato de que a voz um sopro que atravessa o corpo, e de que um texto, mesmo santificado pela antiguidade e reconhecido como clssico, no tem existncia teatral (nem cinematogrfica) independente do corpo do ator (AUMONT, 2008: 31).

    Straub submete seus atores a ensaios exaustivos, corrigindo, aprimorando e repetindo milimetricamente os gestos, a dico, a movimentao, a entonao, indo at o detalhe, a mincia, a combinao do olhar e do gesto com as nuanas fonticas da fala.

    Ele [o ator] diz o seu texto, inicialmente durante vrias semanas, antes mesmo de levantar a bunda da cadeira. Depois dizemos a ele: agora vamos tentar isso de p. Em seguida, de repente ele olha para o vazio e a gente diz: Mas isso no vale nada, por qu?. Ou ento de repente ele levanta os olhos e a gente diz: Mas isso funciona. Depois tentamos trasladar isso para uma slaba, uma letra, uma palavra ou o fim ou o comeo de uma frase. (STRAUB/HUILLET, 2012: 49)

    Alm do aprimoramento da dramaturgia, esse trabalho incansvel tem ainda outro objetivo, de cunho brechtiano, que consiste em deixar transparecer, no filme, o carter ensaiado da ao e do dilogo. Para quem assiste ao filme, no deve restar dvida de que se trata de um processo concebido ao longo de meses de ensaio e composio. Assim como o ator no mais deve iludir o pblico mostrando que se trata de uma personagem fictcia no palco e no dele, ator, no deve tambm simular que o que est acontecendo no palco no foi ensaiado, e que est acontecendo pela primeira e nica vez (BRECHT, 1967: 204). Mais do que quebrar a iluso realista do espetculo, a ideia tornar

  • 55DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 46-61, JAN/JUN 2013

    presente na encenao (ou seja, reconhecvel para o espectador) as marcas do trabalho do ator, ou, se preferirem, a dialtica entre o ator e a personagem. Para encarnar um fascista, Brecht jamais pegaria um fascista [porque] isso careceria de dialtica, seria uma personagem frgil; melhor fazer um fascista ser interpretado por um antifascista (STRAUB, 1970: 50).

    Um filme de Straub/Huillet uma luta materialmente inscrita na superfcie branca, um conflito de formas, sentidos e materiais (FIESCHI, 1998: 36). Eles precisam sentir o peso da criao, a resistncia do mrmore ao toque do cinzel. Filmar negociar no s com os conceitos e as ideias, mas, sobretudo, com as condies geogrficas, meteorolgicas e fsicas de um lugar, com os fatores humanos e econmicos, enfim, com as circunstncias materiais de um stio de filmagem. A obra se realiza em funo tanto das condies climticas da filmagem quanto do rigor do mtodo adotado. Antgona, rodado a cu aberto, mostra atores lentamente queimados pelo sol no por projetores com os lbios a rachar, a pele a avermelhar. A sua voz, o seu ritmo, o modo como se movem, todos eles submetidos rivalidade do vento (FIESCHI, 1998: 36). preciso respeitar no apenas a ideia contida no texto que se est adaptando, mas tambm a disposio atual do mundo corpreo da natureza. O filme um documentrio sobre o esforo do artista confrontado resistncia da matria esforo visvel na forma.

    A composio estaturia da representao, por um processo dialtico, permite que certos gestos, uma vez executados, se amplifiquem no quadro. Quando Creonte recebe a notcia da morte de seu filho Megareus, por exemplo, ele ergue as mos ao cu num gesto que explode na tela com uma intensidade, uma expressividade, um pathos dramtico digno de uma pintura de El Greco, o que no seria sentido em sua plenitude se o restante do filme no estivesse destitudo de gestos semelhantes. A ausncia de ao serve para potencializar a ao quando esta finalmente surge.

    Creonte quase sempre visto na poro esquerda do espao cnico, com uma paisagem de cu e montanhas atrs dele. Num dos planos mais importantes e impressionantes do filme, ele enquadrado na extremidade direita e inferior do quadro, filmado de cima; l ao longe, na parte superior

  • 56 O ponto de vista das pedras / Luiz Carlos Oliveira Jr.

    esquerda, avistamos uma estrada com carros passando. Aqui em cima, no Teatro de Segesta, atores encenam um drama do sculo V a.C., com trajes de poca, dico anacrnica. L embaixo, o mundo contemporneo continua seu curso, vemos uma ponte de construo recente, com automveis a passar. O perene e o transitrio, a fixidez e o movimento se opem no interior da composio plstica do plano (lio de John Ford). O tempo mitolgico convidado a dialogar com o tempo histrico. A fora mtica de Antgona no evoca um mundo sem histria: ela estimula, antes, uma forma dialtica de pensar o presente. O drama de Antgona pertence concretamente ao mundo de hoje, no s uma reconstituio ficcional da antiguidade.

    Em Othon, o contraste salientado com mais frequncia e, diria at, ostensivamente: Straub filmou em runas situadas no centro de Roma; a todo tempo, veem-se carros e construes modernas como pano de fundo, e o rudo do trfego onipresente, s vezes comprometendo a prpria compreenso dos dilogos (um dos motivos pelos quais os Straub s trabalham com som direto, alm da questo de evitar a falsificao da realidade, justamente abrir a possibilidade de uma significao nova no momento da filmagem: depois de ensaiado exausto em seus mnimos detalhes, o texto se oferece s combinaes do acaso por exemplo: o barulho de uma motocicleta que engole a fala de um ator, criando no um sentido, mas uma significao que eles consideram interessante para o filme).

    Othon foi visto por alguns como provocao a Maio de 68, na forma de um apelo memria. O prprio Straub disse: Othon um filme poltico exatamente porque o contrrio de um filme de agitao (1970: 48). s pessoas de Maio de 68, os Straub dizem que a questo do poder, das relaes de classes, muito mais antiga do que a sua prpria histria, e muito mais poderosamente estruturada do que a sua agitao momentnea pode dar a perceber. De acordo com Alain Badiou, essa seria a lio de atemporalidade dos Straub: eles esto em posio de sobrevoo em relao ao presente; o que os move um pensamento crtico, um marxismo analtico real, mas em sobrevoo porque seu arco temporal mais vasto, inclui o passado das lutas em questo. a histria dos homens [a histria da luta de classes], dos gregos aos nossos dias, no a pequena histria de 68 (BADIOU, 2008: 35).

  • 57DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 46-61, JAN/JUN 2013

    O presente imediato, no cinema de Straub/Huillet, nunca desprovido de camadas temporais mais profundas, assim como o espao guarda as marcas de eventos passados. As imagens de seus filmes acabam sendo, dessa forma, condensaes de tempo-espao, e no apenas passagens efmeras. Em Gente da Siclia (Sicilia!, 1999), os planos mais marcantes do filme so as tomadas feitas da janela do trem em movimento e, principalmente, aquelas lentas panormicas filmadas do alto de um morro de onde se veem algumas belas paisagens naturais, que se repetem em diferentes horas do dia (ele mostra a mesma paisagem em situaes luminosas distintas, como Czanne ou Monet costumavam fazer). Podemos ver planos praticamente idnticos num filme de cinco minutos e algumas poucas tomadas que se chama Sicilia illustrata, feito por Arturo Ambrosio em 1907. Straub e Huillet viram o filme de Ambrosio? Provavelmente no. Se esses dois filmes rodados no mesmo lugar, porm em pocas diferentes e por pessoas diferentes puderam produzir praticamente os mesmos planos, foi por um motivo muito simples: ambos proporcionaram o desocultamento de uma imagem que j estava l, cravada na paisagem captaram a tal fotografia j tirada nas coisas de que Bergson falava. Lanaram-se apreenso do mundo, e no de seus prolongamentos subjetivos. Essa fotografia implcita na paisagem o elemento que guia a cmera, induz a panormica. Nem todo cineasta, entretanto, poderia causar tal coincidncia. Se o interesse de Straub fosse o devir movente das coisas, provavelmente ele no teria filmado a mesma Siclia de Sicilia illustrata, ele teria filmado j outra coisa, as guas de outro rio. Straub, contudo, filma o ser das coisas. Por isso ele pode repetir o mesmo plano de um registro feito mais de noventa anos antes sem sequer conhec-lo. O plano, para Straub e Huillet, uma reentrncia da matria; eles perscrutam o antepassado das coisas. Exatamente como Czanne quando olha para a montanha Sainte-Victoire e diz que aquelas rochas um dia j foram fogo. E ento ele pinta o fogo que se agita dentro das rochas. Ele toca o invisvel atravs do visvel, capta uma presena sutil, que se acha no limiar do infrassensvel, um estofo silencioso, somente acessvel a um olhar pr-humano o olhar da pedra. O cinema de Straub/Huillet tambm busca o lmen das coisas, deixando que elas enviem luz ao filme, e no o contrrio (s vezes a coisa que olha para o pintor, dizia Merleau-Ponty a respeito de Czanne).

  • 58 O ponto de vista das pedras / Luiz Carlos Oliveira Jr.

    Ao lado de Brecht, Czanne a grande inspirao do cinema dos Straub, guiando-os na direo de um materialismo absoluto, fundado na ideia de que as coisas no devem ser hierarquizadas; tudo pertence a um mesmo plano material. Bresson, que tambm buscava mostrar, por caminhos outros, a igualdade de todas as coisas, afirma que Czanne pintava com o mesmo olho e a mesma alma uma fruteira, seu filho, a montanha Sainte-Victoire (BRESSON apud LOUNAS, 1997: 44). da prpria natureza inconsciente do cinematgrafo no saber distinguir por si s entre o grande e o pequeno, entre o documento e o monumento. O enquadramento pode destacar um objeto em detrimento do outro, as tcnicas de iluminao podem privilegiar uma poro do cenrio em detrimento da outra; mas todos os elementos desfrutam uma mesma presena ontolgica no filme, e a cmera os registra com a mesma objetividade, sem interpretao sentimental. O ator conta tanto quanto o menor detalhe do muro atrs dele (LOUNAS, 1997: 44). Assim sendo, tudo merece cuidado, pois cada pequeno detalhe aparece na imagem, mesmo as ranhuras do cenrio. No se pode menosprezar a Kodak, Straub costuma dizer.

    Como a pintura de Czanne, o cinema dos Straub concretiza o desejo de uma forma sbria, desprovida de ornamentos, de nfases, de incidentes, fortemente postada no solo, enraizada, reduzida to somente s massas, s linhas que definem suas relaes (FAURE, 1988: 162). Czanne no tinha muita disposio para transportar o mundo exterior imediato para um mundo imaginrio; ele assumia certa impotncia imaginativa, uma incapacidade de imaginao. Ele no inventava, no podia inventar: seu trabalho, ento, se concentrava em abstrair e simplificar ao mximo a consistncia do mundo visvel, restando unicamente, e apesar de tudo, um pintor, e nada mais que um pintor, indo verdade mais intensa da prpria matria das coisas (FAURE, 1988: 167). Straub, igualmente, ao declarar que no tem imaginao para imaginar de dia algo que acontece durante a noite, se filia a esse sentimento de Czanne de nada poder fazer alm de ser um eco perfeito, oferecer sua tela como placa sensvel em que a paisagem (e, no caso de Straub, tambm os textos de outros autores) se refletir: nada acrescentar, nada inventar, somente assimilar e condensar, receber e concentrar. Os filmes de Straub do prova dessa literalidade na apreenso do

  • 59DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 46-61, JAN/JUN 2013

    mundo ou na adaptao de um texto, dessa busca por um carter impessoal e geral, absolutamente despregado de toda espcie de inteno psicolgica. Tento eliminar todos os obstculos entre o espectador e o que fao ver ou a realidade, ou entre mim e a realidade. A linguagem, dessa maneira, seria um obstculo [...] Eu fao as coisas sem arte e sem linguagem (STRAUB, 1970: 50). A linguagem, para Straub (1970: 51), funciona como lentes deformantes ou coloridas: Infelizmente, o cinema uma linguagem, mas eu tento destruir essa linguagem, tento fazer filmes que no levem em conta essa linguagem. Huillet: ... o mesmo trabalho que os poetas fazem com a lngua. Eles pegam uma lngua que em muitos casos se tornou engessada, se tornou um sistema de convenes, que quase uma lngua morta, e de um s golpe eles tentam fazer coisas que no se tinha feito ou que se esqueceu de fazer h muito tempo. Straub: Mas justamente com as palavras mais simples, as mais usadas. No com palavras poticas que se faz poesia.

    Essa despoluio das coisas, essa tentativa de enxerg-las sem acorrer ao discurso flmico j institudo ou linguagem cinematogrfica no sentido de um conjunto de convenes que situa o espectador em terreno conhecido, enfim, essa secura straubiana no descamba numa busca puritana do real. Se, por um lado, h a necessidade de lavar a imagem de toda expresso e de toda sobra de estilo, de reduzi-la a uma forma estritamente denotativa, nascida das coisas, apreendida sem distoro subjetiva ou retrica textual, do outro, h a convico de que se deve faz-lo dentro de um rigor e de um distanciamento (no sentido de um emolduramento, de uma demarcao do espao da representao) que deixa as coisas totalmente compostas, estilizadas, lapidadas. Estilizao como forma de chegar ao cerne dos materiais, de decantar o elemento natural do mundo, ou seja, o contrrio do que se costuma designar como estilizao (geralmente se fala dela como uma espcie de verniz esttico). Straub se interessa pela presena intrnseca das coisas. Mas, para captar essa presena, ele precisa de todo um pensamento formal. Ele no tem o olhar impulsivo de um Philippe Grandrieux ou de uma Claire Denis, que mergulham no caos das matrias, nas sensaes corpreas, no lado transitrio e instvel do mundo Straub tem, ao contrrio, um olhar mais mineral: ele gostaria de assumir o ponto de vista das pedras, das runas daqueles

  • 60 O ponto de vista das pedras / Luiz Carlos Oliveira Jr.

    anfiteatros antiqussimos que resistem ao tempo e assistem passagem do homem de uma posio segundo a qual um texto de Sfocles continua sendo um recm-nato, um texto ainda por ouvir (o que so dois mil e quinhentos anos para uma pedra? Um milsimo de segundo?).

    Em seu belo ensaio O cinema ou o homem imaginrio (um pouco esquecido nas ltimas dcadas), Edgar Morin comentava o sentimentalismo excessivo que observava no cinema:

    A esttica do sentimento se tornou uma esttica do sentimento vago na medida em que a alma deixou de ser exaltao e pleno desenvolvimento para se transformar em jardim privado de complacncias ntimas. Amor, paixo, emoo, criao: o cinema, tal como o nosso mundo, todo viscoso e lacrimejante. Tanta alma! Tanta alma! Compreende-se a reao que contra a projeo-identificao grosseira, contra a alma gotejante, se desenhou no teatro, com Bertolt Brecht, e no cinema, sob diversas formas, com Eisenstein, Wyler, Welles, Bresson, etc. (MORIN, 1983: 169)

    Com as devidas adaptaes, algo muito parecido pode ser dito, mais de 60 anos depois, a respeito do cinema dos Straub: um cinema austero e luminoso luminoso porque austero que reage contra a alma gotejante, contra o sentimentalismo apoltico e anti-histrico. Um cinema que quer confrontar o outro, e no se fechar no jardim privado de complacncias ntimas.

    REFERNCIAS

    AUMONT, Jacques. quoi pensent les films? Paris: Sguier, 1996.

    ______. O cinema e a encenao. Lisboa: Edies Texto & Grafia, 2008.

    BADIOU, Alain. Pensez le surgissement de lvnement. In: BAECQUE, Antoine de; BOUQUET, Stphane ; BURDEAU, Emmanuel (Orgs.). Cinma 68. Paris: Cahiers du Cinma, 2008.

  • 61DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 46-61, JAN/JUN 2013

    BRECHT, Bertolt. Teatro dialtico. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1967.

    BYG, Barton. Landscapes of Resistance: the german films of Danile Huillet and Jean-Marie Straub. Los Angeles: University of California Press, 1995.

    DANEY, Serge. A rampa. So Paulo: Cosac Naify, 2007.

    FAURE, lie. Histoire de lArt: lart moderne. v. 2. Paris: Folio, 1988.

    FIESCHI, Jean-Andr. Jean-Marie Straub e Danile Huillet. In: RODRIGUES, Antonio (Org.). Jean-Marie Straub/Danile Huillet. Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 1998.

    GIAVARINI, Laurence. Antigone, sauvage! Cahiers du Cinma, Paris, n. 459, p. 38-41, set. 1992.

    GODARD, Jean-Luc. Godard par Godard: les annees cahiers (1950-1959). Paris: Flammarion, 1989.

    SOPHOCLE; HLDERLIN, Friedrich; BRECHT, Bertold; STRAUB, Jean-Marie; HUILLET, Danile. Antigone. Tolouse: Ombres/Cinemathque franaise, 1992.

    ______. Concepo de um filme. In: GOUGAIN, Ernesto; TADEI, Fernanda et al. (Orgs.). Straub-Huillet. So Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2012.

    ______. Entretien avec Jean-Marie Straub et Danile Huillet. Cahiers du Cinma, Paris, n. 223, p. 48-57, ago./set. 1970.

    LOUNAS, Thierry. O gt votre sourire, enfoui?! Cahiers du Cinma, Paris, n. 509, p. 42-45, jan. 1997.

    MORIN, Edgar. A alma do cinema. In: XAVIER, Ismail (Org.). A experincia do cinema. Rio de Janeiro: Graal/Embrafilme, 1983.

    Data do recebimento:15 de maro de 2013

    Data da aceitao:11 de junho de 2013

  • Joo Lanari Bo

    Straub/Huillet e Antgona:o rigor do mito

    DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 62-73, JAN/JUN 2013

    Professor de Cinema do Departamento de Audiovisual da UNB

  • 64 Straub/Huillet e Antgona: o rigor do mito / Joo Lanari Bo

    Resumo: O singular percurso da dupla Jean-Marie Straub e Daniele Huillet tem como uma de suas estratgias fundamentais a revisitao de clssicos, da antiguidade modernidade. Em cada uma dessas operaes, a dupla emprega seu conhecido rigor construtivo, de modo a extrair dessas obras o vigor original que exibiam poca de sua criao. Antgona, a pea de Sfocles, de larga importncia para a cultura ocidental, um dos casos bem sucedidos dessa estratgia.

    Palavras-chave: Straub. Huillet. Antgona. Hlderlin. Brecht.

    Abstract: The unique trajectory of the couple jean-marie Straub and Danile Huillet has as one of their basic strategies the process of revisiting the classics, from antiquity to modernity. In each of these operations, the couple employs their well known constructive rigor, in order to extract from these works their original vigor, which they exhibited at the time of their creation. Antigone, Sophocles play, of large importance to western culture, is one of the well succeed cases of this strategy.

    Keywords: Straub. Huillet. Antgona. Hlderlin. Brecht.

    Rsum: Le parcours singulier du couple Jean-Mari Straub et Danile Huillet a comme une de ces stratgies fondamentales la revisitacion des classiques, de lantiquit la modernit. Dans chacune de ces oprations, le couple emploi son bien connu rigueur constructive, a fin dextraire de ces oeuvres le vigueur original quelles ont montr lpoque de sa cration. Antigone, La pice de Sophocles, avec une telle importance pour la culture de loccident, est une des bien connues enterprises avec cette stratgie.

    Mots-cls: Straub. Huillet. Antgona. Hlderlin. Brecht.

  • 65DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 62-73, JAN/JUN 2013

    Antgona (em grego A) uma figura da mitologia grega, irm de Ismnia, Polinice e Etocles, os

    filhos incestuosos de dipo e Jocasta.

    Na filmografia do casal Straub/Huillet pairam vrias revisitaes a pilares clssicos da cultura ocidental. conhecido o rigor com que so processadas essas incurses, como tudo o que produz a dupla. No caso dos clssicos categoria que vai de modernos como Schoenberg e Pavese, passando a Hlderlin e Corneille a ousadia do tratamento denota sempre uma releitura da tradio que escapa aos ditames vigentes da indstria do entretenimento. Sem receios de qualquer ordem em inscrever-se no debate que cada um desses clssicos carrega, os filmes apelam para um rigor construtivo, a marca dos Straub, que no hesitam em eleger e explorar veios de expresso e significao negligenciados pela tradio cultural estabelecida.

    A estratgia, por certo, recuperar o vigor e a contundncia dos discursos originais. No caso de Antgona (1991), a operao visou trs camadas da tradio: o texto trgico de Sfocles, uma das grandes matrizes da dramaturgia ocidental; a traduo de Hlderlin, a principal ruptura com o cnone classicizante; e a verso de Brecht, que tentou imprimir uma contemporaneidade ps-guerra ao texto grego. Dialogando com cada uma dessas vertentes, sem perder em nenhum momento o controle dos procedimentos cinematogrficos, Straub/Huillet lograram produzir uma poderosa inscrio na recepo da tragdia atualizando a potncia do mito, em outras palavras, para os dias que vivemos. Examinar essa operao, ainda que de forma breve, o tema desse artigo.

    Antgona revisitada: uma obsesso reincidente

    Diz a lenda que Antgona, filha de dipo, sepultou secretamente seu irmo Polinice, desafiando seu tio Creonte, rei de Tebas e irmo de sua me, Jocasta. Condenada a ser enterrada viva, Antgona deixa-se morrer antes da execuo, e sua morte leva a mais dois suicdios, de Hmon, seu noivo e filho de Creonte, e de Eurdice, mulher de Creonte. Uma sucesso de mortes desencadeada por um conflito crucial entre Antgona e

  • 66 Straub/Huillet e Antgona: o rigor do mito / Joo Lanari Bo

    Creonte, que acabou forjando um drama de efeitos simblicos devastadores na vida ocidental. George Steiner consagrou um belo livro ao imenso legado desse momento inaugural, auscultando o impacto da tragdia de Sfocles no discurso filosfico, na prosa, poesia, poltica, e direito. Uma das etapas mais importantes desse percurso alinhavado por Steiner vem do filsofo mais atilado com a fora da dialtica na formao da conscincia histrica, o prprio Hegel, admirador incondicional do texto sofocleano. Vale a citao, apesar de longa:

    Mais interessante ainda [do que As Eumnides, de squilo], embora j transferida inteiramente para dentro do sentir e do agir humanos, surge a mesma oposio na Antgona, uma das obras de arte mais sublimes, mais primorosas sob todos os aspectos em todas as pocas. Tudo consequente nessa tragdia; a lei pblica do Estado, o amor e o dever familiares [...], Antgona tem como pthos o interesse familiar; e Creonte, o homem, o bem estar da coletividade [...] Antgona no se deixa afetar pela ordem de Creonte [de no sepultar o irmo], que diz respeito apenas ao bem pblico do Estado; ela consuma, como irm, o dever sagrado do funeral, conforme a piedade do seu amor ao irmo. Nisso, ela se apoia na lei dos deuses; mas os deuses que ela venera so os deuses inferiores do Hades, os deuses externos do sentimento, do amor, do sangue, no os deuses diurnos da vida livre e autoconsciente do povo e do Estado. (HEGEL, 2004: 194-95 apud REINHARDT, 2007: 81)

    A ciso detectada pela pontaria hegeliana subsidiou um sem-nmero de exploraes posteriores do racha original do texto trgico, explicitado no dilogo entre Antgona e Creonte, comeando pelo direito contra o direito (o texto mesmo de Antgona uma metfora do conflito entre direito natural e positivo), passando pelos pares homem e mulher, famlia e Estado (cidade), culpa trgica e expiao, generosidade e egosmo embora, como salienta Reinhardt, os dois lados da contenda, Creonte e Antgona, estejam em mundos opostos, no se comunicam ou influenciam um ao outro. Alm disso, a narrativa de Sfocles recupera os fundamentos mticos da legenda tebana e os atualiza para a experincia prtica da polis grega do sculo V, ampliando o poder da lngua e delimitando o alcance das potncias divinas (o lote de textos trgicos que cobre pouco mais de um sculo de vida grega representa, no

  • 67DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 1, P. 62-73, JAN/JUN 2013

    plano simblico, o processo poltico de secularizao urbana experimentado em Atenas e adjacncias, visceral para a cultura e o pensamento ocidental). Para Jean-Pierre Vernant, a verdadeira matria da tragdia o pensamento social prprio da cidade, especialmente o pensamento jurdico com fase de elaborao (VERNANT; VIDAL-NACQUET, 2011: 3), com os poetas trgicos utilizando o vocabulrio do direito em gestao justamente para acentuar suas incertezas, imprecises e flutuaes. Antgona, que integra a famosa trilogia tebana de Sfocles, situa-se nessa soleira lingustica em que os nomes jurdicos ainda no se consolidaram, na linguagem e na organizao social. Vernant lembra que para os gregos no existia o conceito de direito absoluto, ou seja, algo fundado sobre princpios e organizado num sistema coerente: para eles, os gregos, haviam como que graus de direito (VERNANT e VIDAL-NACQUET, 2011: 3), da coero dos homens coero da justia de Zeus.

    Foi um contemporneo de Hegel, o poeta Hlderlin amigo ntimo do filsofo, por um breve perodo de quatro anos , quem arrancou Antgona do sonho dogmtico a que se instalara com as sucessivas tradues arcdicas de que fora alvo. Hlderlin tratou a sintaxe e a semntica do texto sem a menor complacncia, com aspereza, erros (seriam centenas), literalidade mas aplicando ao poema trgico toda a energia e a radicalidade do seu projeto potico, desvelando por fim a fora do original, antes mitigada pelo achatamento harmonioso da linguagem em nome da boa poesia. Se Hlderlin foi ridicularizado por contemporneos, como Goethe e Schiller, que julgavam ser a traduo em tela a prova irrefutvel da derrocada mental do poeta (STEINER, 2008: 80), o futuro trouxe-lhe a glria: alm da influncia sobre Nietzsche, personalidades como Walter Benjamin, Heidegger e Karl Reinhardt fizeram-lhe ju