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Storming the Winter palace on 25th October 1917. Kochergin, Nikolai Mikhaylovich (1897-1974) O marxismo e o problema do proletariado como vanguarda revolucionária O artigo foi publicado parcialmente com o título O marxismo e o papel dos camponeses na revolução socialista na Revista Mais Valia. V. 04, pp. 81-89. São Paulo: Editora Tykhé, 2008. Esta versão agora foi completada com as partes quatro e cinco ausentes naquela publicação. Jadir Antunes Introdução Este artigo pretende demonstrar o papel da obra O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte de Marx na Revolução Russa de 1917 e, especialmente, sobre as concepções políticas de Lênin e Trotsky. Demonstro como o Dezoito Brumário influenciou decisivamente as posições de Trotsky, especialmente, e como mais tarde, já na segunda metade do século XX, estas mesmas lições foram rejeitadas por Nahuel Moreno, líder de uma das maiores e mais influentes organizações trotskistas daquele século. O artigo se dividirá em quatro partes. Na primeira, mostro a concepção de Marx sobre o caráter oscilante do campesinato na política. Procuro mostrar aqui que o camponês, na concepção de Marx, é uma classe que delega a outras classes ou partidos, o papel de lhe representar na luta política. Delegar tem aqui o sentido de transferir para outros partidos ou classes, o direito e o papel de representação na luta política. Para Marx, neste sentido, o camponês é uma classe que sempre delega a outras classes, ou partidos, o direito de lhe representar. Na segunda parte, mostro como a fórmula ditadura revolucionária democrática do proletariado e do campesinato elaborada por Lênin em 1905 na Rússia revolucionária, se enreda em contradições e imprecisões exatamente por não compreender com toda profundidade esta caracterização do campesinato como classe que delega, realizada por Marx em 1851.

De fevereiro de 1848 a dezembro de 1851 as principais ... · no ar. Ele representava a classe dos camponeses ricos, surgida com as leis de terras de Napoleão Bonaparte, mas que agora

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Storming the Winter palace on 25th October 1917. Kochergin, Nikolai Mikhaylovich (1897-1974)

O marxismo e o problema do proletariado como vanguarda revolucionária

O artigo foi publicado parcialmente com o título O marxismo e o papel dos camponeses na revolução socialista na Revista Mais Valia. V. 04, pp. 81-89. São

Paulo: Editora Tykhé, 2008. Esta versão agora foi completada com as partes quatro e cinco ausentes naquela publicação.

Jadir Antunes

Introdução

Este artigo pretende demonstrar o papel da obra O Dezoito

Brumário de Luis Bonaparte de Marx na Revolução Russa de 1917 e,

especialmente, sobre as concepções políticas de Lênin e Trotsky.

Demonstro como o Dezoito Brumário influenciou decisivamente as

posições de Trotsky, especialmente, e como mais tarde, já na

segunda metade do século XX, estas mesmas lições foram rejeitadas

por Nahuel Moreno, líder de uma das maiores e mais influentes

organizações trotskistas daquele século.

O artigo se dividirá em quatro partes. Na primeira, mostro a

concepção de Marx sobre o caráter oscilante do campesinato na

política. Procuro mostrar aqui que o camponês, na concepção de

Marx, é uma classe que delega a outras classes ou partidos, o papel

de lhe representar na luta política. Delegar tem aqui o sentido de

transferir para outros partidos ou classes, o direito e o papel de

representação na luta política. Para Marx, neste sentido, o camponês

é uma classe que sempre delega a outras classes, ou partidos, o

direito de lhe representar.

Na segunda parte, mostro como a fórmula ditadura

revolucionária democrática do proletariado e do campesinato

elaborada por Lênin em 1905 na Rússia revolucionária, se enreda

em contradições e imprecisões exatamente por não compreender

com toda profundidade esta caracterização do campesinato como

classe que delega, realizada por Marx em 1851.

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Na terceira parte, mostro como Trotsky, se apoiando

radicalmente nesta caracterização de Marx sobre os camponeses,

corrige e soluciona, a partir da noção de revolução permanente, as

imprecisões da fórmula de Lênin. Corrigir e solucionar Lênin, na

verdade tem um sentido mais metafórico que real. Segundo o próprio

Trotsky, Lênin nunca leu sua tese sobre a estratégia revolucionária

para a Rússia, elaborada ainda em 1905. Segundo ele, é Lênin quem

corrige a si mesmo no intervalo entre 1905 e 1917. Neste intervalo de

tempo Lênin percebe, a partir de sua própria experiência e do curso

dos acontecimentos, a necessidade do proletariado se pôr

efetivamente à frente do campesinato como seu senhor e dirigente

natural. O auge desta compreensão se realiza em abril de 1917 com

as famosas Teses de Abril, onde Lênin defende a palavra de ordem

revolucionária de Todo poder aos soviets.

Na quarta parte, mostro o caráter liquidacionista, antimarxista

e antitrotskista da revisão de Nahuel Moreno, trotskista argentino, à

Teoria da Revolução Permanente de Trotsky e à caracterização

marxista sobre a natureza oscilante dos camponeses. A revisão de

Moreno ocorre sob a influência dos acontecimentos do pós-guerra e

às campanhas vitoriosas dos movimentos guerrilheiristas de base

camponesa em Cuba e China, principalmente. Para Moreno, as

revoluções vitoriosas nestes dois países exigiriam uma ousada

revisão das concepções de Marx e Trotsky sobre a incapacidade

natural do camponês para dirigir qualquer processo revolucionário

socialista vitorioso.

1) Marx e o camponês como classe subordinada

De fevereiro de 1848 a dezembro de 1851, as principais

classes da sociedade francesa haviam se posto em luta aberta pelo

controle do Estado. Ao final do processo, tanto a burguesia quanto o

proletariado urbano estavam derrotados e em seu lugar governava o

estrato mais baixo da grande e ilustrada sociedade francesa: o

lumpem-proletariado organizado na Sociedade de Dez de Dezembro

de Luis Bonaparte.

Marx explicava em O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte que

a Sociedade de Dez de Dezembro era uma sociedade supostamente

beneficente, surgida em 1849, dirigida por Luis Bonaparte e formada

pela escória mais baixa da sociedade francesa. Participavam dela,

segundo Marx, arruinados e aventureiros, rebentos da burguesia,

vagabundos, soldados desligados do exército, presidiários libertos,

forçados foragidos das galés, chantagistas, saltimbancos,

trapaceiros, jogadores, donos de bordéis, trapeiros, mendigos e etc.

Enfim, a sociedade beneficente de Bonaparte era composta pela ralé

da sociedade francesa. “Sociedade beneficente, diz ironicamente

Marx, no sentido de que todos os seus membros, como Bonaparte,

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sentiam necessidade de se beneficiar às expensas da nação

laboriosa” (Marx, 1988: 44).

Marx descrevia o golpe de Estado desferido por Bonaparte em

dezembro de 1851, como o resultado necessário da incapacidade

demonstrada tanto pela burguesia quanto pelo proletariado para

controlar o poder de Estado e governar a França a partir de seus

próprios interesses de classe. Em meio ao vazio e a instabilidade de

poder que se criaram durante o período de crise política, crise que

surge em 1848 e se desenvolve até 1851, surgiram, então, as

baionetas de Luis Bonaparte.

Marx se perguntava, então, em nome de quem Luis Bonaparte

aplicou sobre o país o golpe de Estado que pôs fim à Segunda

República? Em nome de que interesses a França ilustrada cedera o

poder de Estado para uma soldadesca ignorante que se deixava

corromper com festas animadas por vinho e salsichões? Segundo

Marx, foi assim que Bonaparte conquistou a simpatia dos soldados

da Guarda Nacional. Que classe da sociedade francesa Luis

Bonaparte pretenderia, dali em diante, representar no Estado?

De acordo com tese clássica de Marx e Engels exposta em O

Manifesto Comunista, de 1848, todos os fenômenos políticos

expressam sempre, mesmo que mediados por muitas formas e

interferências externas, determinadas correlações de forças entre as

diferentes classes da sociedade em luta pela defesa de seus

interesses econômicos. De acordo com esta tese, todos os partidos e

agrupamentos políticos com certa representatividade e programa

definido representam sempre, em última instância, certos interesses

de classes. Os partidos e agrupamentos políticos, assim como os

governos que estes dirigem, de acordo com esta tese, não pairam no

ar, acima das classes. O governo de Bonaparte, contudo, por ser um

governo composto por quadros militares oriundos do próprio aparelho

de Estado, por ser avesso à democracia representativa e às diversas

formações partidárias, por não possuir uma relação direta com as

diferentes classes da sociedade francesa, parecia negar esta tese.

Marx respondia esta questão, aparentemente contraditória,

demonstrando que o golpe de Luis Bonaparte e seu governo

ditatorial, apesar de aparentar flutuar acima de todos os interesses

de classe da sociedade francesa, na verdade possuía raízes na

estrutura econômica do país. Segundo Marx, Bonaparte não flutuava

no ar. Ele representava a classe dos camponeses ricos, surgida com

as leis de terras de Napoleão Bonaparte, mas que agora se

encontrava em rápido processo de empobrecimento e que, ainda na

metade do século XIX, compunha a maioria da nação francesa.

Bonaparte e a Sociedade de Dez de Dezembro representavam, diz

Marx, “a dinastia dos camponeses, ou seja, da massa do povo

francês” (Marx, 1988: 74).

Que relação, contudo, poderia ter Bonaparte e a Sociedade de

Dez de Dezembro com a classe dos camponeses? Como poderia

uma classe inteira de produtores, a maioria da nação francesa, que

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possuía na época em torno de 25 milhões de habitantes, se deixar

dirigir politicamente pela camada mais baixa e deteriorada da

população representada por Bonaparte, o príncipe do lumpem-

proletariado, como lhe chamava Marx?

Marx respondia dizendo que esta contradição deveria ser

encontrada analisando-se a natureza do campesinato. O camponês,

por sua própria natureza, dizia Marx, é incapaz de se auto-

representar politicamente. Como classe atrasada, o campesinato

necessita sempre ser representado por forças políticas exteriores a

ele próprio. Sua dispersão pelo interior do território francês, seu

isolamento econômico e sua vida puramente individual o

incapacitavam para transformar-se numa força histórica capaz de

representar-se a si mesmo na luta política com um partido e

programa próprios e independentes das outras classes. Os

camponeses, devido ao caráter de seu modo de produção, trabalham

num sistema familiar e individual, onde cada lote de terra é cultivado

de modo isolado e separado do cultivo de outros lotes por outros

produtores independentes. “Os pequenos camponeses, dizia Marx,

constituem uma imensa massa, cujos membros vivem em condições

semelhantes mas sem estabelecerem relações multiformes entre si.

Seu modo de produção os isola uns dos outros, em vez de criar entre

eles um intercâmbio mútuo” (Marx, 1988: 74/75). O caráter isolado e

autônomo do trabalho camponês e o vínculo direto entre trabalho e

Natureza, mais do que ligarem as diversas famílias camponesas

entre si num único e grande sistema cooperativo de produção as

isolam e as separam politicamente umas das outras. “Seu campo de

produção, dizia Marx, a pequena propriedade, não permite qualquer

divisão do trabalho para o cultivo, nenhuma aplicação de métodos

científicos e, portanto, nenhuma diversidade de desenvolvimento,

nenhuma variedade de talento, nenhuma riqueza de relações sociais”

(Marx, 1988: 75).

A incapacidade natural do campesinato francês para superar

politicamente suas divisões internas e seus interesses particulares e

a necessidade de ser representado por um partido formado fora dele

era expressão, por isso, do isolamento vivido nas relações

econômicas. Deste modo, segundo Marx, os camponeses franceses

formavam uma classe apenas no sentido econômico do termo e não

no sentido político. “Na medida em que milhões de famílias

camponesas vivem em condições econômicas que as separam umas

das outras [como famílias quase auto-suficientes], e opõem o seu

modo de vida, os seus interesses e sua cultura aos das outras

classes da sociedade, estes milhões constituem uma classe” (Marx,

1988: 75). Contudo, dizia ainda Marx, “na medida em que existe

entre os pequenos camponeses apenas uma ligação local e em que

a similitude de seus interesses não cria entre eles comunidade

alguma, ligação nacional alguma, nem organização política, nessa

exata medida não constituem uma classe” (Marx, 1988: 75).

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Uma classe social, segundo esta definição de Marx, para

existir verdadeiramente como classe deve existir segundo duas

determinações: uma econômica e outra política. O campesinato

francês não formava uma verdadeira classe social porque destas

duas determinações fundamentais ele só participava de uma, da

econômica. Por seu próprio modo de trabalho individual e por viver

isolado e distante de outras famílias, o camponês francês era

incapaz de se organizar como classe não apenas em si, mas, ainda,

como classe para si, como classe organizada politicamente num

partido camponês e com um programa independente e autônomo

frente ao programa das outras classes. Os camponeses em geral,

por este motivo, “são incapazes de fazer valer seu interesse de

classe em seu próprio nome” (Marx, 1988: 75). Os camponeses em

geral, deste modo, “não podem representar-se, têm

[necessariamente] que ser representados” (Marx, 1988: 75). É por

isso que, na concepção de Marx, o campesinato foi representado na

França de Luis Bonaparte por um estrato social que em nada se

assemelhava ao seu modo de vida e de trabalho. O que havia de

irônico na história política dos camponeses franceses da metade do

século XIX era o fato de terem sido representados pelos amigos de

Luis Bonaparte: o lumpem-proletariado e os soldados beberrões e

comedores de salsicha da Guarda Nacional.

Por estar incapacitado ontologicamente de se converter de

classe em si em classe para si mesmo, o campesinato será,

necessariamente, uma classe representada que, por isso, delega a

outras classes o papel de dirigi-la. Os representantes políticos do

camponês serão, por isso, segundo Marx, representantes surgidos

de fora da classe e com um vínculo puramente exterior com ele.

Seus representantes devem, por isso, “aparecer como seu senhor,

como autoridade sobre eles, como um poder governamental ilimitado

que os protege das demais classes e que do alto lhes manda o sol

ou a chuva” (Marx, 1988: 75). Luis Bonaparte pôde aparecer como

senhor dos camponeses porque, na consciência atrasada destes, ele

aparecia como a continuidade das grandes e heróicas façanhas do

velho Napoleão, que lhes dera terras durante seu reinado. Na

consciência ilusória do camponês francês, o sobrinho Luis

continuaria lhe protegendo do mesmo modo como o tio Napoleão lhe

teria protegido na época do Império.

O camponês representado por Luis Bonaparte no governo do

Estado francês, contudo, não era mais o camponês revolucionário da

época da revolução, mas sim, o camponês conservador que, já dono

de um pequeno lote de terra recebido do Imperador Napoleão, mais

do que mudar o estado de coisas exigido pelas novas condições

históricas do capitalismo pretendia apenas conservá-lo a seu favor.

A França das luzes, da filosofia e da grande revolução de

1789 foi, assim, através do golpe de Bonaparte, lançada

ironicamente nas mãos da classe economicamente mais atrasada do

país, nas mãos do camponês em processo de empobrecimento que

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pretendia somente deter o desenvolvimento capitalista a seu favor.

“Bonaparte, por isso, dizia Marx, representa não o esclarecimento,

mas a superstição do camponês; não o seu bom senso, mas o seu

preconceito; não o seu futuro, mas o seu passado” (Marx, 1988: 76).

Segundo Marx, o campesinato, como classe intermediária da

nação francesa, se dividia entre campesinato rico e campesinato

pobre. A camada rica, por sua situação mais confortável no interior

da sociedade, tendia a encontrar nos partidos burgueses, ou em

camadas da burocracia do Estado, como a militar, seu representante

e dirigente natural na luta contra o processo de empobrecimento

capitalista. A camada empobrecida tenderia, por sua vez, a delegar

ao partido do proletariado a direção de suas lutas e interesses

econômicos. Por isso, segundo Marx, o camponês francês rico, mas

em processo de empobrecimento, pensara ter encontrado em

Bonaparte seu senhor e dirigente enviado dos céus para lhe salvar.

Os camponeses pobres e dispostos a mudar o estado de coisas em

favor da maioria da nação, por sua vez, dizia Marx, “encontram seu

aliado e dirigente natural no proletariado urbano, cuja tarefa é

derrubar o regime burguês” (Marx, 1988: 78).

Teria, contudo, Luis Bonaparte, por representar o camponês

decadente, realmente governado em nome dos interesses do

campo? Teria ele instituído uma república democrática camponesa

na França e resolvido o problema da histórica decadência da

pequena propriedade? Não! Apesar de representar os camponeses

ricos em processo de empobrecimento, Bonaparte não governou

para eles. Segundo Marx, não havia na França, nem haveria em

qualquer outra parte do mundo, a possibilidade de se construir

regimes de governos híbridos ou intermediários entre os governos da

burguesia e da classe operária. Os camponeses, como classe

intermediária, e os partidos e organizações que lhes representam só

podem subordinar-se ao capitalista ou ao proletariado. Bonaparte,

por isso, apesar de apoiar-se nos camponeses e ser seu senhor e

representante acabava governando para a grande burguesia.

Segundo Marx, a burguesia francesa - a alta aristocracia financeira,

os industriais e os comerciantes -, cansara-se da monótona disputa

entre seus partidos e Bonaparte. Desejosa de ordem para poder

voltar a enriquecer, a burguesia rapidamente rompeu com seus

principais partidos instalados no Parlamento e aliou-se a Bonaparte

em sua luta contra o proletariado. A burguesia francesa, segundo

Marx, ao apoiar Bonaparte e o fim da República trocara seus

interesses políticos e gerais de classe pelos mais sórdidos e

mesquinhos interesses particulares. Bonaparte, apesar da retórica

anti-capitalista e de combater os partidos burgueses no Parlamento,

apesar de prometer salvar os camponeses da falência e governar

para toda a França, foi, no fundo, e segundo Marx, um governo

burguês.

2) Lênin e a fórmula algébrica da revolução

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No final do século XIX a violência da história ocidental abalou

a Rússia czarista. As novas forças produtivas surgidas com o

desenvolvimento capitalista iniciado no século XVIII ameaçavam

destruir as relações de servidão e pôr em seu lugar a forma

assalariada do capitalismo europeu. No interior do marxismo o

problema da natureza da futura revolução russa e o papel a ser

desempenhado pelo camponês, a maioria absoluta da população,

tomou conta das discussões.

Em maio de 1905, os bolcheviques, liderados por Lênin,

realizaram em Londres o III Congresso do POSDR (Partido Operário

Social Democrata Russo). Na mesma época, os mencheviques, já

rompidos com Lênin, realizaram em Genebra sua Conferência, onde

defendiam as teses de Plekhanov. Em Duas Táticas da Social

Democracia na Revolução Democrática, Lênin critica radicalmente a

Conferência e expõe, ao mesmo tempo, as teses do Congresso para

a iminente revolução russa.

Para os partidários de Plekhanov e da Conferência

menchevique, a futura revolução teria necessariamente um caráter

burguês. Isto é, ela necessariamente seria capitalista em seus

fundamentos e estaria, assim, fora de qualquer cogitação, como

defendiam os populistas, a possibilidade de transformá-la numa

revolução socialista. Para os conferencistas, a revolução não apenas

seria burguesa em seu conteúdo como, ainda, seria dirigida

diretamente pela burguesia. Ao proletariado, e mesmo aos

camponeses, caberia um papel subordinado, o de atuar como aliado

da burguesia na luta contra as forças reacionárias ligadas à nobreza

e ao latifúndio. Para Lênin, esta tática dos conferencistas conduzia

diretamente à “traição da causa do proletariado no interesse da

burguesia” (Lênin, 1982: 440) e convertia o proletariado num

“miserável apêndice das classes burguesas” (Lênin, 1982: 440).

A futura revolução russa poderia seguir um rumo diferente do

rumo pretendido pelos conferencistas e pela burguesia russa porque,

segundo Lênin, o proletariado, mesmo incipiente numericamente,

poderia dirigi-la apoiado na enorme massa camponesa espalhada

pelos campos do interior da Rússia.

Lênin concordava com certos aspectos das teses defendidas

pelos conferencistas. Para ele, não havia dúvida de que a futura

revolução russa seria burguesa em sua essência. Contudo,

discordava radicalmente da capacidade da burguesia para ser sua

direção. Segundo Lênin, a burguesia russa estava mais interessada

em pactuar com o czarismo do que em romper profundamente com

ele. Sendo assim, a futura revolução burguesa na Rússia deveria se

apoiar em outras forças políticas.

Lênin acreditava na possibilidade do camponês mais

empobrecido dirigir politicamente a futura revolução ao lado do

proletariado das grandes cidades. O resultado desta aliança

revolucionária entre o proletariado e o camponês empobrecido seria

uma ditadura revolucionária democrática. Na discussão sobre a

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natureza da futura revolução russa, dizia Lênin, não cabia a questão

da tomada do poder pelo proletariado. Para ele, “a questão posta na

ordem do dia por todo o povo [em 1905] é... a substituição da

autocracia czarista pela república democrática” (Lênin, 1982:

388/89).

Seguindo as pegadas do antigo mestre Plekhanov, Lênin não

acreditava na possibilidade do proletariado tomar e sustentar o poder

antes do desenvolvimento material e espiritual do capitalismo. “O

grau de desenvolvimento econômico da Rússia... e o grau de

consciência e de organização das grandes massas do proletariado...

tornam impossível a imediata e absoluta libertação da classe

operária” (Lênin, 1982: 391), dizia Lênin contra as teses populistas e

anarquistas que defendiam a revolução socialista para a Rússia de

1905. “E como resposta às objeções anarquistas de que adiamos a

revolução socialista, diremos: não a adiamos, e sim damos o primeiro

passo para ela através do único procedimento possível, do único

caminho justo, que é o da república democrática” (Lênin, 1982: 391).

Na concepção de Lênin, o único caminho possível e justo para a

revolução russa em 1905 seria o caminho da ditadura revolucionária

democrática do proletariado e do campesinato.

A ditadura, na fórmula pensada por Lênin, expressava o fato

de que a futura revolução deveria apoiar-se na insurreição e na força

armada das massas. A democracia representava o aspecto

republicano, constitucional, pequeno burguês (camponês) e não-

socialista da revolução. A fórmula da revolução combinava, deste

modo, tanto aspectos burgueses quanto não-burgueses, mas não

ainda socialistas. A revolução deveria realizar tanto tarefas que

caberiam a uma revolução clássica burguesa, como o

desenvolvimento das forças produtivas apoiadas no capital e a

formação de uma república constitucional, quanto tarefas

democráticas, como a reforma agrária e a expropriação do latifúndio.

Por ser democrática, a futura revolução não poderia atacar as bases

privadas da sociedade capitalista. A única propriedade que deveria

ser atacada seria a da nobreza fundiária. A propriedade capitalista

deveria ser, inclusive, estimulada e desenvolvida. “Esta ditadura será

democrática, dizia Lênin, e não socialista, e portanto não poderá

atacar (sem passar por uma série de graus intermediários de

desenvolvimento revolucionário) as bases do capitalismo” (Lênin,

1982: 411).

Segundo a fórmula de Lênin, a futura ditadura democrática e

revolucionária do proletariado e do campesinato na Rússia, não faria

mais do que: 1) instituir uma nova e radical distribuição da

propriedade da terra em benefício dos camponeses, 2) instituir uma

democracia republicana, 3) eliminar pela raiz a servidão do trabalho,

4) iniciar um melhoramento sério nas condições de vida da classe

trabalhadora e 5) alastrar o incêndio revolucionário para toda a

Europa desenvolvida. A revolução poria em ação, deste modo, dois

programas diferentes. Por um lado, poria o Programa Mínimo como o

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único programa capaz de ser desenvolvido em benefício dos

trabalhadores e o Programa Democrático como o programa dos

camponeses. Do ponto de vista de Lênin, o Programa Máximo da

Revolução, a conversão da propriedade capitalista em propriedade

socialista e a instauração da ditadura do proletariado, só seria posto

após a realização desta primeira etapa, a etapa democrática.

Na fórmula de Lênin, caberia ao governo revolucionário

operário-camponês realizar tanto tarefas burguesas quanto

democráticas. Segundo esta fórmula, o dirigente natural da

revolução, apesar de burguesa, seria o camponês. Ao partido do

proletariado caberia o papel secundário de atuar como aliado do

partido camponês no governo. Lênin confiava na força democrático-

revolucionária do camponês russo. Para ele, “o camponês russo se

converterá inevitavelmente, nestas condições, no baluarte da

revolução e da república pois somente a ditadura revolucionária do

proletariado e do campesinato poderá dar-lhe através da reforma

agrária tudo o que deseja e o que sonha, tudo o que lhe é

verdadeiramente necessário” (Lênin, 1982: 442). Na concepção de

Lênin, “a classe operária não pode deixar de cooperar nisto [na luta

pela reforma agrária] com o campesinato” (Lênin, 1982: 419).

A ditadura revolucionária democrática do proletariado e do

campesinato seria, então, simplesmente uma revolução burguesa

realizada pelo campesinato em aliança com o proletariado. “Os

marxistas [diz Lênin concordando com os mencheviques da

Conferência], estão inteiramente convencidos do caráter burguês da

revolução russa” (Lênin, 1982: 405). Desta tese inquestionável e

absolutamente verdadeira, se “deduz que constitui uma idéia

reacionária procurar a salvação da classe operária em algo que não

seja um maior desenvolvimento do capitalismo” (Lênin, 1982: 406).

Desenvolvimento que seria garantido pelo campesinato e pelo

proletariado no governo.

Dado, então, 1) que o proletariado era fraco numericamente e

tinha tanto interesse quanto a burguesia em desenvolver o

capitalismo pois, desenvolver as forças produtivas capitalistas, a

república e a democracia burguesa, seria desenvolver

simultaneamente as futuras condições sobre as quais ele poderia

levantar seu programa verdadeiro, o Programa Máximo da

Revolução Socialista; dado 2) que os camponeses formavam a

maioria absoluta da população russa e estavam interessados na

revolução burguesa e no fim da servidão tanto quanto o proletariado;

dado 3) que a burguesia estava impedida historicamente de levar sua

própria revolução até o final, já que pactuava com o czarismo contra

o movimento operário-camponês, a fórmula de Lênin determinava

necessariamente que, 4) a futura revolução só poderia ter um

conteúdo democrático-burguês e uma direção operário-camponesa.

O proletariado, assim, segundo Lênin, atuaria a favor da

burguesia na presente revolução unicamente com a intenção de lhe

expropriar futuramente. “Quanto mais completa e decisiva, quanto

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mais conseqüente for a revolução burguesa, tanto mais garantida

estará a luta do proletariado contra a burguesia, pelo socialismo”

(Lênin, 1982: 406). Na fórmula de Lênin, não havia ainda em 1905

uma contradição absoluta entre burguesia e proletariado. Havia sim,

uma contradição que deveria ser extirpada pela raiz que era a

contradição existente entre proletariado, burguesia e campesinato de

um lado versus nobreza fundiária e czarista, de outro.

Dada esta correlação histórica de forças, toda alternativa

oposta à revolução democrático-burguesa seria ilusória e reacionária.

“A transformação do regime econômico e político da Rússia no

sentido democrático burguês, dizia Lênin, é inevitável e inelutável.

Não há força na terra capaz de impedir esta transformação” (Lênin,

1982: 410). Dizia ainda Lênin que “em certo sentido [o do

desenvolvimento das forças produtivas materiais e da democracia

republicana] a revolução burguesa é mais vantajosa para o

proletariado do que para a burguesia” (Lênin, 1982: 406).

Estas teses de Lênin serão criticadas em seus fundamentos

por Trotsky. Segundo este, Lênin errava em sua avaliação sobre o

caráter da futura revolução russa por acreditar demasiadamente na

capacidade do campesinato para se constituir como força política

independente. Lênin erra, segundo Trotsky, por colocar muitas vezes

o camponês, inadvertidamente, ora ao lado do proletariado e ora até

mesmo à frente dele. Para Trotsky, os camponeses seriam, em

qualquer parte e em qualquer situação, incapazes de se constituírem

como força política autônoma. Os camponeses nunca poderiam estar

ao lado, e muito menos à frente do proletariado. Os camponeses só

poderiam, dado seu caráter atrasado de classe, estar atrás e dirigido

pelo proletariado.

Segundo Trotsky, Lênin corrigira as imprecisões de sua

fórmula ao longo do período que vai de 1905 a 1917. Esta correção

aparecerá claramente em abril de 1917, onde, nas famosas Teses de

Abril, após retornar do exílio, defendera a palavra de ordem

revolucionária de Todo poder aos sovietes, isto é, defendera a

ditadura revolucionária do proletariado com o apoio do campesinato

para toda a Rússia.

3) Trotsky e o caráter permanente da revolução socialista

Trotsky se opõe às ilusões de Lênin acerca da possibilidade

do campesinato se constituir em partido revolucionário com programa

próprio e independente dos outros partidos e da possibilidade de

uma ditadura revolucionária democrática do proletariado e do

campesinato. Para ele, a futura revolução não poderia ser definida

com a mesma rigidez definida pelo chamado marxismo oficial. Para

Trotsky, a futura revolução russa não seria exatamente burguesa,

democrática ou mesmo proletária, mas seria sim, permanente. Por

revolução permanente Trotsky entendia o processo ininterrupto de

transformações revolucionárias que começava com a luta anticzarista

Page 11: De fevereiro de 1848 a dezembro de 1851 as principais ... · no ar. Ele representava a classe dos camponeses ricos, surgida com as leis de terras de Napoleão Bonaparte, mas que agora

e se encerrava apenas com a tomada final do poder pelo

proletariado. Para que a futura revolução russa tivesse este caráter

“permanente”, o proletariado não poderia, de modo algum, dividir o

poder com os camponeses, como compreendia a fórmula de Lênin,

nem muito menos deixar se dirigir por eles. Para que a futura

revolução tivesse este caráter permanente o proletariado deveria,

desde o começo da luta anticzarista, ser o único e verdadeiro

dirigente do processo. Os camponeses, na concepção de Trotsky,

participariam da revolução como aliados do proletariado. “A teoria da

revolução permanente significa que a solução verdadeira e completa

de suas tarefas democráticas e nacionais libertadoras só é

concebível por meio da ditadura do proletariado, que assume a

direção da nação oprimida e, antes de tudo, de suas massas

camponesas” (Trotsky, 1979: 137).

Para Trotsky, os camponeses nunca poderiam dirigir a

revolução democrática, nem mesmo dividir esta direção com o

proletariado porque, seguindo a concepção de Marx, o campesinato

é incapaz, por sua própria natureza, de se constituir em partido

revolucionário independente dos partidos burgueses ou operários.

Para Trotsky, o campesinato, por constituir uma classe intermediária

entre as duas principais classes do capitalismo, seguirá sempre, ora

a burguesia ora o proletariado. Dividir com o campesinato a direção

da futura revolução democrática, ou mesmo deixar a revolução

inteiramente sob sua direção, seria abrir um flanco ao

desenvolvimento de aspirações oportunistas, egoístas e pequeno-

burguesas. Aspirações que encontrariam facilmente apoio entre a

burguesia. A fórmula de Lênin, ditadura revolucionária democrática

do proletariado e do campesinato, segundo Trotsky, errava por

possuir um aspecto algébrico, isto é, indeterminado, por não definir

com segurança o caráter oscilante do campesinato e por não colocar,

desde o princípio, o proletariado como direção absoluta de todo o

processo, inclusive dos camponeses. “O camponês, segundo

Trotsky, segue o operário ou o burguês. Isso significa que a ‘ditadura

democrática do proletariado e dos camponeses’ só é concebível

como ditadura do proletariado arrastando atrás de si as massas

camponesas” (Trotsky, 1979: 138).

Um terceiro regime, o democrático, situado entre a ditadura

burguesa e a ditadura do proletariado, dirigido pelos camponeses e

com o auxílio do proletariado, como sugeria a fórmula indeterminada

de Lênin, só seria possível “se pudesse existir um partido

revolucionário independente que exprimisse os interesses da

democracia camponesa e pequeno burguesa em geral e, com o

auxílio do proletariado, fosse capaz de conquistar o poder e

determinar o seu programa revolucionário” (Trotsky, 1979: 138).

Possibilidade eliminada pelo caráter retardatário e oscilante do

campesinato.

Na fórmula de Plekhanov e dos Conferencistas, a revolução

russa seria não apenas burguesa como seria, ainda, dirigida e

Page 12: De fevereiro de 1848 a dezembro de 1851 as principais ... · no ar. Ele representava a classe dos camponeses ricos, surgida com as leis de terras de Napoleão Bonaparte, mas que agora

aproveitada exclusivamente pela burguesia. Ao proletariado e aos

camponeses caberia o papel de atuarem como apêndices auxiliares

da revolução. Na fórmula algébrica de Lênin, a revolução, como para

os mencheviques, possuiria um conteúdo burguês, contudo, sua

direção poderia ser dividida, desde o começo, entre o partido

proletário e o partido camponês. A decisão sobre quais dos partidos

assumiria verdadeiramente a direção do processo ficaria a cargo da

correlação de forças. Decisão, portanto, que não poderia ser definida

a priori. Para Trotsky, a revolução possuiria, desde o início, um

conteúdo já operário e socialista que se desenvolveria

ininterruptamente ao longo de uma série progressiva de lutas, sem

se deter em nenhuma de suas etapas, seja burguesa ou

democrática, como sugere claramente a fórmula menchevique e

como parece sugerir certas vezes a fórmula indeterminada de Lênin.

Para que a revolução possuísse este caráter socialista desde o

começo, o proletariado deveria assumir-se como direção dela,

pondo-se à frente dos camponeses como o pai se põe à frente dos

filhos e indicando desde cedo o caminho seguro a ser tomado.

O misterioso da fórmula de Trotsky se encontrava no fato de

que, segundo as teses clássicas do marxismo, o desenvolvimento

histórico de uma nação se realiza sempre mediado por etapas

determinadas que não podem ser arbitrariamente ultrapassadas. A

tese da revolução operária de Trotsky na Rússia atrasada, semi-

feudal e semi-asiática, com um proletariado fraco numericamente e

uma imensa população camponesa, chocava-se com os cânones do

marxismo oficial na medida em que parecia propor, arbitrariamente,

saltar a etapa burguesa e democrática da revolução russa e

convertê-la diretamente em revolução operária.

Na verdade, a teoria da revolução permanente não eliminava

as etapas democrática e burguesa passando por cima das chamadas

leis inevitáveis da história universal. Ao contrário, segundo Trotsky,

ela seria a única capaz de realizar com toda profundidade estas

etapas da revolução porque o campesinato, como classe oscilante e

pequeno burguesa, teria tanto interesse quanto a burguesia em parar

a revolução numa etapa determinada do processo. A burguesia, por

sua própria natureza, teria interesse apenas em realizar a revolução

burguesa. De acordo com Lênin e Trotsky, a burguesia russa, dado

seu caráter retardatário, não teria nem mesmo interesse em levá-la

até o fim, parando em algum ponto do processo, aliando-se ao

czarismo e aos proprietários fundiários. O campesinato, por sua

natureza intermediária, uma vez posto no poder pela revolução, por

temer seu avanço e a socialização da propriedade, poderia retornar

para trás e se aliar à burguesia na defesa da pequena propriedade e

de seus interesses particulares. Por isso, na concepção de Trotsky,

pôr o campesinato no poder, ou mesmo ao lado do proletariado, seria

abrir o flanco da revolução às aspirações conservadoras da pequena

burguesia. A única fórmula para que a revolução burguesa se

convertesse em revolução operária, como desejava Lênin, seria pôr o

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proletariado na direção do processo e à frente dos camponeses

desde o começo.

A revolução permanente não saltaria, assim, nenhuma etapa

do processo, ela seria, na verdade, a única a realizar com a maior

radicalidade todas as etapas da revolução socialista, isto é, a realizar

tanto a revolução burguesa anticzarista quanto a revolução

democrática aspirada pelo campesinato, desembocando numa

revolução operária e socialista. A revolução democrático-burguesa

transcresceria, assim, em revolução socialista. O termo

transcresceria, diz Trotsky em A Revolução Permanente, não é dele,

mas, sim, de Lênin. A revolução burguesa transcresceria em

revolução socialista porque no curso ininterrupto do processo “a

sociedade não faz senão mudar de pele, sem cessar” (24). A

ditadura do proletariado tornar-se-ia, por isso, “a arma com a qual

seriam alcançados os objetivos históricos da revolução burguesa

retardatária” (Trotsky, 1979: 21).

Cabe esclarecer que Trotsky e Lênin nunca debateram

diretamente estas teses. Segundo Trotsky, Lênin nunca demonstrou

ter lido diretamente seu trabalho Balanços e Perspectivas, de 1906,

onde analisara o debate entre Conferencistas e Congressistas,

exposto na obra Duas Táticas da Social Democracia na Revolução

Democrática, de Lênin, publicada em 1905. A Revolução

Permanente, obra de 1930 publicada no exílio francês, não é

exatamente uma obra em que Trotsky propôs somente demonstrar

com mais exatidão suas diferenças com Lênin durante a revolução

de 1905. Esta obra se propôs, muito mais, a demonstrar as

falsidades e acusações grosseiras do stalinismo contra suas

concepções. Nesta obra, Trotsky se empenhou, sobretudo, em

demonstrar o quanto ele e Lênin, mesmo que militando em partidos

diferentes, estavam muito próximos teoricamente sobre o sentido da

futura revolução russa.

Segundo Trotsky, a única diferença que havia entre ele e

Lênin nesta época na questão da estratégia da revolução, nunca

debatida abertamente entre ambos, era a diferença de concepção

acerca do papel do campesinato na futura revolução. Segundo

Trotsky, a deficiência de Lênin nesta época resumia-se unicamente

ao fato de ele não determinar com exatidão o papel central e

dirigente do proletariado na revolução iminente. A diferença entre

ambos resumia-se no seguinte, diz Trotsky: “Lênin, partindo sempre

do papel dirigente do proletariado, insistia sobre a necessidade da

colaboração revolucionária e democrática dos operários e dos

camponeses” (Trotsky, 1979: 69). Trotsky, segundo ele mesmo,

“partindo sempre dessa colaboração, insistia sobre a necessidade da

direção proletária, tanto no bloco das duas classes como no governo

chamado a pôr-se à frente desse bloco” (Trotsky, 1979: 69).

Stálin e seus “epígonos”, como os chamava Trotsky,

acusavam-no, contudo, de pretender saltar etapas, de desprezar o

papel dos camponeses e, sobretudo, por acreditar que a Revolução

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Russa só se consolidaria verdadeiramente com o apoio do

proletariado internacional, especialmente o europeu, e da expansão

da revolução socialista para fora da Rússia, de não confiar na força

nacional-revolucionária do proletariado russo. A teoria de Trotsky não

pretendia saltar nenhuma das etapas da revolução, nem desprezar

nem enaltecer absolutamente qualquer força revolucionária parcial e

nacional, mas, sim, de subsumir todas estas forças e partidos a um

único e mesmo processo global, internacional e ininterrupto de

transformações revolucionárias, processo que partia da etapa

nacional-burguesa e se encerrava e se completava somente com a

vitória da ditadura do proletariado no campo da revolução

internacional.

Segundo Trotsky, as teorias sociais-democratas da época, e

mesmo a teoria defendida por Lênin, “consideravam a democracia e

o socialismo, em todos os povos e em todos os países, como duas

etapas não somente distintas, mas também muito distantes uma da

outra” (Trotsky, 1979: 23). Enquanto a opinião dos partidos

revisionistas considerava que o caminho para a ditadura do

proletariado passaria por um longo período de democracia, “a teoria

da revolução permanente proclamava que, para os países atrasados

[como a Rússia], o caminho para a democracia passa pela ditadura

do proletariado” (Trotsky, 1979: 24).

Sobre a acusação de que a teoria da revolução permanente

não confiava na força nacional-revolucionária do proletariado russo,

Trotsky respondia que o proletariado russo só poderia se pôr como

vanguarda da revolução ainda em 1905, porque a futura revolução

não seria uma revolução nacional, mas, sim, internacional. A força

revolucionária do proletariado não viria apenas da covardia da

burguesia e da fraqueza do campesinato russo, mas, viria,

sobretudo, da força das revoluções socialistas vitoriosas no resto da

Europa, especialmente na Alemanha. Só a revolução internacional

poderia completar e consolidar a revolução russa como uma

revolução operária.

Trotsky refutava toda exaltação ufanista ao proletariado russo

porque se considerava inimigo de todo “messianismo nacional”, isto

é, inimigo de todo tipo de reconhecimento de vantagens e qualidades

peculiares a certos países capazes de lhes conferir um papel que os

demais países não poderiam desempenhar (Trotsky, 1979: 140).

Para Trotsky, o papel de vanguarda do proletariado russo em 1905

estava condicionado pela possibilidade da revolução operária se

disseminar para os principais países industrializados da Europa.

Acreditar que a Rússia, pelas suas peculiaridades excepcionais,

como extensão territorial e riquezas naturais abundantes, poderia

desenvolver por si mesma o socialismo, independente da

transformação socialista estendida a outros países, seria cair numa

utopia nacionalista arcaica incompatível com o caráter internacional

das forças produtivas desenvolvidas pelo capitalismo.

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No caso da revolução proletária não conseguir se disseminar

para outros países, no caso de ela se manter limitada no interior de

uma única nação, mesmo que esta nação fosse a poderosa Rússia

de 1905, “as contradições internas e externas aumentam

inevitavelmente e ao mesmo passo que os êxitos. Se o Estado

proletário continuar isolado, ele, ao cabo, sucumbirá vítima dessas

contradições” (Trotsky, 1979: 24). O sucesso da revolução operária

em um determinado país dependeria, por isso, segundo as palavras

proféticas de Trotsky, do sucesso da revolução operária

internacional.

Com as revoluções chinesa e cubana e a crise do movimento

operário a partir da segunda metade do século XX, O Dezoito

Brumário de Luis Bonaparte deixou, porém, de desempenhar um

papel programático e revolucionário fundamental, como havia sido

para Lênin e Trotsky. A tese da supremacia política do proletariado

sobre os camponeses passou a ser esquecida e em seu lugar surgiu

a concepção de que os camponeses poderiam desempenhar um

papel de vanguarda na luta contra o capitalismo, como teriam

desempenhado na China em 1949 e em Cuba em 1959. Em lugar da

luta de classes nas cidades, com o campo sob sua direção, a

segunda metade do século XX foi dominada pela luta de guerrilhas

camponesas. Com essa virada O Dezoito Brumário de Luis

Bonaparte foi transformado em mera obra de sociologia marxista e

empregado para descrever a dinâmica geral da luta de classes e dos

frequentes golpes militares, especialmente os da América Latina.

4) Moreno e a natureza das revoluções do século XX

A partir dos anos 50 do século passado, a Teoria da

Revolução Permanente de Trotsky começou a sofrer uma importante

revisão surgida no interior da própria IV Internacional, fundada por

ele em 1938. Segundo a Teoria da Revolução Permanente, a

revolução realizada na Rússia em 1917 foi socialista apenas em seu

começo, quando ainda era realizada pelos próprios operários e sob a

direção de Lênin. Com a ascensão de Stálin ao poder a partir de

1924, ascendeu junto a ele uma série de camadas burocráticas e

conservadoras que em nada se interessava pelo caráter socialista da

revolução. Por este caráter burocrático e contrarrevolucionário do

regime stalinista, Trotsky propunha a necessidade de uma segunda

revolução para a Rússia, agora dirigida contra a burocracia e o

Partido Comunista.

Segundo Michel Pablo e Ernest Mandel, principais dirigentes

da IV Internacional nos anos 50, a caracterização de Trotsky sobre a

natureza contrarrevolucionária da burocracia soviética deveria ser

relativizada. Segundo suas previsões, nunca efetivadas, o mundo

estaria, nesta época, na iminência de viver uma terceira guerra

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mundial de proporções catastróficas. Numa conjuntura de guerra

entre o bloco imperialista, liderado pelo Estado norte-americano, e o

bloco socialista, liderado por Moscou, a burocracia poderia adotar

posições revolucionárias e ser obrigada, pela força objetiva da

situação, a avançar a revolução socialista no interior da União

Soviética e realizá-la nos países imperialistas, rompendo, assim, o

pacto de convivência pacífica dos anos 40.

Segundo este falso prognóstico, Pablo e Mandel

relativizavam o papel conciliador dos partidos stalinistas e defendiam

o chamado entrismo sui generis de todas as seções da IV

Internacional nos partidos comunistas. De acordo com eles,

impulsionados pela lógica objetiva do movimento revolucionário, os

partidos stalinistas seriam obrigados a dirigir as novas revoluções

que eclodiriam com a guerra. Segundo estes dirigentes, a tarefa de

construir uma nova internacional revolucionária poderia ser

dispensada, pois as futuras revoluções socialistas seriam dirigidas

pelos partidos stalinistas. Aos trotskistas, caberia o papel de atuarem

como ala esquerda do stalinismo nestas revoluções.

Moreno não concordava com os prognósticos de Pablo e

Mandel e a política de subordinação ao stalinismo. Contudo, nem por

isso deixou de ser influenciado por estas concepções revisionistas,

liquidacionistas e objetivistas da revolução socialista. Moreno

defenderá abertamente a necessidade de se revisar a Teoria da

Revolução Permanente à luz, segundo ele, das novas revoluções

operárias surgidas após a morte de Trotsky em 1940.

A visão de moreno sobre as revoluções do século XX

Moreno divide a revolução russa de 1917 em três etapas

cronológicas distintas: 1905, fevereiro e outubro. A revolução de

1905 e a de fevereiro foram o prólogo da revolução de outubro. Esta,

como sabemos, foi a revolução que pôs o partido bolchevique e o

proletariado no poder. A revolução de fevereiro foi aquela que

antecipou a de outubro e foi dirigida por partidos burgueses e

pequeno burgueses.

A revolução de outubro se diferenciou da de fevereiro por

dois fatores: a existência dos soviets como órgãos da democracia

operária e a existência de um partido marxista revolucionário que

dirigiu as massas para a revolução. Ambas as revoluções foram,

contudo, segundo Moreno, revoluções socialistas. A de fevereiro foi o

prólogo obrigatório da de outubro. “Por sua dinâmica de classes e

pelo inimigo que enfrentam, ambas são revoluções socialistas”

(Moreno: Atualização do Programa de Transição – Tese XV). Para

Moreno, a diferença entre ambas é uma diferença apenas subjetiva.

A de fevereiro foi, objetivamente, uma revolução socialista pelo seu

caráter democrático e anticzarista e se diferenciou da revolução de

outubro pelo seu caráter “inconsciente”, pela ausência dos soviets e

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do partido bolchevique como dirigente das massas. A revolução de

fevereiro pode ser considerada objetivamente socialista pelo sentido

dos acontecimentos e da obrigatoriedade das tarefas que cumpriu. “A

revolução de fevereiro é inconscientemente socialista, enquanto que

a de outubro é em forma consciente” (Moreno: Tese XV).

A diferença entre ambas as revoluções pode ser explicada

deste modo. Por um lado, ambas foram socialistas porque ambas

foram impulsionadas pelo movimento operário e camponês, a massa

da revolução. Contudo, a de fevereiro, por ter sido dirigida por

partidos não marxistas e revolucionários, por ter sido dirigida por

partidos burgueses e pequeno-burgueses, foi uma revolução

socialista incompleta e embrionária. Porém, ela serviu objetivamente

como prólogo e trampolim obrigatório para a segunda, a revolução

operária dirigida por um partido marxista revolucionário. A revolução

de fevereiro, mesmo tendo sido dirigida por partidos não marxistas,

não foi uma revolução burguesa: “Fevereiro é uma revolução

socialista, categoricamente socialista, que destrói o aparato estatal

capitalista mediante uma luta armada revolucionária dos

trabalhadores” (Moreno: Tese XV). A diferença entre fevereiro e

outubro estava no caráter mais ou menos avançado de ambas.

Apesar de fevereiro não ter sido dirigida por um partido socialista ela

foi socialista pelas tarefas que cumpriu, tarefas que nem mesmo sua

direção tinha consciência de estar realizando.

Segundo a lógica da Teoria da Revolução Permanente, para

que fevereiro pudesse se converter plenamente em revolução

socialista haveria a necessidade de ela ser dirigida, desde o começo,

pelo proletariado e seu partido. Contudo, segundo Moreno, o curso

objetivo dos acontecimentos em 1917 refutou este esquema lógico

de Trotsky e converteu a revolução de fevereiro em revolução de

outubro. A história da revolução russa, e mesmo a história de todas

as futuras revoluções, como veremos adiante, teria, segundo

Moreno, negado Trotsky, que acreditava que somente com o

proletariado na dianteira da revolução seria possível a realização da

democracia, e mesmo a realização da revolução burguesa. “Na

Rússia, diz Moreno, se deu uma combinação de revolução socialista

com democrático-burguesa em fevereiro” (Moreno: Tese XV).

Esta concepção de Moreno, porém, não encontra nenhum

apoio em Trotsky. Este é muito claro ao dizer que nunca houve uma

revolução democrático burguesa na Rússia como etapa

independente e, muito menos, antes da tomada do poder pelo

proletariado em outubro. Tomemos esta prova do próprio Trotsky,

quando responde a Radek, que como Moreno defendia a idéia de

que fevereiro foi uma revolução democrático burguesa independente,

o questionando enfaticamente: “Teria a burguesia russa ‘resolvido’ os

problemas da revolução democrática com a Revolução de Fevereiro?

Não, pois que todos esses problemas e, entre eles, como

predominante, o problema agrário, ficaram sem solução” (Trotsky,

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1979: 111). Se a revolução democrática e a reforma agrária tivessem

sido realizadas como etapas independentes em fevereiro pelo

governo de Kerensky, então, dizia Trotsky a Radek, a revolução de

outubro teria sido dispensada na Rússia. Na Rússia, a ditadura

democrática e a reforma agrária não apenas não foram realizadas

antes da revolução de outubro e independentes dela, como tinham

outubro como condição de sua realização. “A ditadura do

proletariado, diz Trotsky, apareceu como condição preliminar da

revolução agrário-democrática, e não depois dessa revolução”

(Trotsky, 1979: 100). E aqui, diz Trotsky, “temos, em suma... todos os

elementos essenciais da teoria da revolução permanente” (Trotsky,

1979: 100).

Moreno não define o caráter de uma revolução pela classe

que a dirige ou, pelo menos, que a dirige conscientemente, mas, sim,

pelos inimigos que ela combate e pelas tarefas históricas que ela

deve realizar. Assim, não há nenhuma incoerência para ele

conceituar a revolução de fevereiro na Rússia como uma revolução

socialista. Segundo Moreno, não teria sido a burguesia e seu partido

quem realizaram a revolução de fevereiro na Rússia, mas, sim, o

proletariado. Segundo ele, o proletariado, por conta de sua fraqueza

como classe social e por conta de sua consciência atrasada “se viu

obrigado a levar a cabo uma revolução de fevereiro como prólogo à

necessária revolução de outubro” (Moreno: Tese XV). Esta última

etapa da revolução só foi possível porque fevereiro serviu de prólogo

a ela, porque “a traição dos mencheviques e socialistas

revolucionários [um produto objetivo da revolução e não da arte

bolchevique] obrigou as massas a levar a cabo a grande mobilização

contra Kornilov” (Moreno: Tese XV).

Segundo a visão de Moreno, como uma locomotiva que

desliza inconscientemente ladeira abaixo, a revolução russa foi,

desde 1905, se desenvolvendo objetiva e paulatinamente em direção

da revolução socialista. Ao mesmo tempo em que determinadas

barreiras iam se colocando no caminho da locomotiva socialista, elas

também iam sendo derrubadas pela força da lógica objetiva presente

em toda revolução. O fator fundamental que explica a revolução de

fevereiro, segundo a lógica de Moreno, é o atraso da consciência da

massa operário-camponesa, atraso que se manifestava na forma de

organização, não ainda na forma dos soviets, e no apoio dela aos

partidos da burguesia e pequeno-burguesia. Uma vez que estes

partidos traíram o apoio das massas e uma vez que a revolução

socialista, ainda inconsciente, fora bloqueada pela direção

contrarrevolucionária, a dinâmica objetiva da revolução levou

naturalmente as massas a se organizarem em soviets e a apoiarem o

partido de Lênin.

Segundo Moreno, todas as revoluções do pós-guerra

seguiram esta mesma lógica. A diferença entre elas resume-se no

fato de que a única a passar da primeira fase, a de fevereiro, foi a

russa. Todas as outras revoluções foram bloqueadas no meio do

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caminho pelos mesmos partidos que a dirigiram. Somente na Rússia,

dada a existência desde o começo de um partido revolucionário com

influência de massas, foi possível chegar até outubro. O pós-guerra

por isso, “é a etapa da revolução socialista inconsciente ou de

fevereiro generalizada a nível de todo o planeta” (Moreno: Tese XV).

Assim, no esquema objetivista de Moreno, contrário ao

esquema de Trotsky, a revolução russa se realizou em duas etapas

bem distintas, mesmo que tenham sido etapas de um mesmo

processo. Uma revolução socialista e inconsciente em fevereiro que

possui o caráter de prólogo e outra em outubro, consciente, que

completa a primeira. A de fevereiro foi uma revolução democrático-

burguesa e a de outubro socialista. Esta mesma distinção permite a

Moreno classificar a etapa do pós-guerra como a etapa das

revoluções de fevereiro e, deste modo, apesar das traições do

stalinismo e da crise de direção proletária, classificar o pós-guerra

eufórica e entusiasticamente como a etapa mais revolucionária de

toda a história da humanidade.

A avaliação de Moreno sobre a revolução russa lhe permite,

então, relativizar a importância da construção de partidos trotskistas

desde o começo da revolução, já que a primeira etapa dela, não

apenas na Rússia mas mesmo em Cuba e China, foi dirigida e

realizada por partidos e organizações pequeno-burguesas,

oportunistas e mesmo contrarrevolucionárias. Esta relativização

permite a Moreno, deste modo, prestar certo apoio e solidariedade,

ainda que crítica, às revoluções cubana e chinesa e às suas direções

oportunistas. Permite, ainda, prestar apoio a certos movimentos de

guerrilha com caráter nacionalista e democrático-burguês, como o

apoio às diversas guerrilhas latino-americanas da segunda metade

do século passado, e, mais que tudo, esquecer na gaveta o

Programa de Transição, já que este supõe a classe operária à frente

da revolução desde o começo dela.

A experiência da revolução cubana dá a Moreno a certeza de

suas teorias e dos supostos erros de Trotsky. Michel Pablo e Mandel

caracterizavam a revolução cubana como revolução socialista pura e

simplesmente, negando a ela qualquer adjetivo que a

desqualificasse. A diferença entre ambos e Moreno é que para este a

ditadura cubana era burocrática e precisava ser derrubada por uma

nova revolução, como a de outubro na Rússia.

Segundo Moreno, a revolução cubana, apesar de ser dirigida

por um movimento guerrilheiro e pequeno-burguês, devia ser

caracterizada como uma revolução socialista inconsciente. Ela

representou para Cuba o mesmo que representou fevereiro para a

Rússia. Contudo, dada a ausência de uma direção trotskista com

força para dirigir a segunda etapa da revolução, o Estado cubano se

petrificou na forma de um estado operário burocratizado, como o

estado russo na era de Stálin. A ditadura implantada em Cuba, por

ter expropriado a burguesia e os proprietários de terras, foi uma

ditadura socialista. Contudo, por não desenvolver os órgãos da

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democracia operária e por não expandir a revolução para outros

países, se ossificou na forma de uma ditadura burocrática dos

trabalhadores. “Este caráter tem feito que Cuba desde seu início seja

um estado operário burocratizado, igual aos estados operários

controlados pelos partidos stalinistas” (Moreno: Tese XX). A ditadura

em Cuba, assim como na China, “é uma ditadura proletária, ainda

que se expresse sob forma distorcida através da burocracia e apesar

de que a classe operária não goze de nenhum tipo de democracia”

(Moreno: Tese XXI).

A polêmica Trotsky - Preobrazensky

Moreno pretende explicar suas teses revisionistas a partir de

dois pontos importantes. O primeiro surge a partir de uma rápida

troca de cartas entre Trotsky e Preobrazensky no final dos anos 20.

O segundo surge a partir de uma crítica de Moreno a uma suposta

lógica da identidade presente no esquema de Trotsky. Comecemos,

então, expondo o primeiro ponto da revisão.

Segundo as teses clássicas da Teoria da Revolução

Permanente, a revolução será socialista se for dirigida, desde o

início, por um partido marxista revolucionário. Por isso, tal partido

deve ser construído antes mesmo da revolução democrática. Melhor:

a própria revolução democrática só será possível se existir este

partido. Preobrazensky, em carta endereçada a Trotsky, e citada por

Moreno, acusa Trotsky de ser subjetivista por desconsiderar a

possibilidade de surgirem revoluções democráticas dirigidas por

partidos pequeno burgueses, como na China especialmente.

Segundo Preobrazensky, o esquema de Trotsky pecava por sua

generalidade, por acreditar que os camponeses eram incapazes de

se organizar politicamente, com partido e programa próprios, em

todas as partes do planeta e não apenas na Rússia.

Trotsky respondia a Preobrazensky, resposta na qual Moreno

se agarra para criticar a Teoria da Revolução Permanente em sua

concepção clássica, dizendo que se uma revolução, mesmo que

democrática, pudesse ser dirigida por um partido não operário, então

esta revolução já seria socialista desde o início. Segundo esta

concepção de Trotsky, na época do imperialismo as revoluções

burguesas já não eram mais possíveis porque expropriar o

imperialismo seria o mesmo que expropriar o capitalismo, ou, seja,

seria o mesmo que implantar a ditadura do proletariado. Segundo as

concepções da carta, uma revolução como a chinesa deveria ser

considerada socialista não pelo critério da classe que a dirigiria, mas,

sim, pelo critério das classes que ela expropriaria. Como ela

expropriaria o imperialismo e os proprietários de terras e como estas

duas classes são classes do capitalismo, então a revolução nestes

países seria objetivamente socialista mesmo que fosse realizada e

dirigida por camadas pequeno burguesas. “Então, diz Trotsky na

carta resposta, não me interessa o sujeito. Seja qual for o sujeito,

Page 21: De fevereiro de 1848 a dezembro de 1851 as principais ... · no ar. Ele representava a classe dos camponeses ricos, surgida com as leis de terras de Napoleão Bonaparte, mas que agora

tem que fazer a revolução socialista” (Moreno: Intervenções na

Escola de Quadros - Argentina 1984). Moreno se lamenta pelo fato

de Trotsky não ter levado a sério sua própria resposta a

Preobrazensky e continuar apegado a sua fórmula subjetivista da

revolução socialista.

Para Moreno, a fórmula objetivista da revolução permanente,

a de que sujeitos políticos que não têm querido realizar a revolução

socialista se viram obrigados a fazê-la pela própria situação objetiva,

como nos casos da revolução chinesa e cubana, fórmula desprezada

pelo próprio Trotsky, tem sido uma das partes que ainda se

conservaria viva e atual da Teoria da Revolução Permanente. A

formulação clássica da Teoria da Revolução Permanente de Trotsky,

“tem, segundo Moreno, o grave defeito de que gira ao redor dos

sujeitos” (Moreno: Intervenções na Escola de Quadros) e não das

tarefas a serem objetivamente executadas. Para Moreno, este

subjetivismo da fórmula clássica não teria resistido aos

acontecimentos do pós-guerra, pois este “tem demonstrado que,

contra a opinião de Trotsky, a pequeno burguesia pode ir a esquerda

[mesmo na ausência de um partido marxista revolucionário]. E as

vezes, como em Cuba, ir mais a esquerda, inclinar-se para posições

mais revolucionárias que a classe operária” (Moreno: Intervenções

na Escola de Quadros). Em Cuba e China, como já dissemos

anteriormente, a revolução não foi até o fim porque as direções eram

oportunistas. Mas, segundo Moreno, mesmo sendo oportunistas

estas direções fizeram tanto a revolução democrática quanto a

socialista, esta no sentido de revolução inconsciente, isto é, no

sentido de que cumpriu a tarefa de expropriar econômica e

politicamente a burguesia. Faltaria a Cuba e China apenas

desenvolver os órgãos da democracia operária, órgãos que não se

desenvolveram pelo caráter oportunista destas direções e pela

fraqueza do proletariado cubano e chinês.

Segundo Moreno, a revisão da teoria clássica de Trotsky, a

revisão da teoria fundamentada nos sujeitos, deveria ser concebida

como uma das maiores necessidades do movimento trotskista atual.

“Temos que formular que não é obrigatório que seja a classe

operária e que seja um partido marxista revolucionário com influência

de massas que dirija o processo da revolução democrática para a

revolução socialista” (Moreno: Intervenções na Escola de Quadros).

A necessidade de um partido revolucionário que dirija todo o

processo desde o começo tem ficado claramente relativizada na

compreensão objetivista de Moreno. Um partido assim, seria

necessário apenas para impulsionar, de fora ou de dentro dos

partidos pequeno burgueses, a segunda etapa da revolução, a que

vai da revolução socialista inconsciente à etapa final consciente.

Concluindo, diz Moreno, há que mudar a teoria da revolução

permanente em sua redação, para insistir nisto: sem partido

revolucionário e sem intervenção primordial, hegemônica, da

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classe operária, tem havido revoluções democráticas

triunfantes, e algumas destas revoluções democráticas

triunfantes, dirigidas por correntes pequeno burguesas que

se apoiavam na pequena burguesia têm avançado até fazer

a revolução socialista, até expropriar a burguesia. Isto é, por

falta de maturidade da classe operária e porque era uma

necessidade, uma classe não operária, setores da pequena

burguesia, se têm visto obrigados a fazer a revolução,

democrática primeiro e socialista depois (Moreno:

Intervenções na Escola de Quadros).

Mesmo que estas revoluções tenham sido dirigidas por

setores pequeno burgueses, mesmo que elas tenham se

burocratizadas no meio do caminho, mesmo que elas sejam

revoluções incompletas, mesmo que elas não coloquem a classe

operária diretamente no poder, mesmo que o poder seja ocupado

pela burocracia pequeno burguesa, estas revoluções são socialistas

e, por isso, progressivas diz Moreno, porque elas “abrem [e não

fecham, como poderíamos pensar] o caminho para a revolução de

outubro” (Moreno: Intervenções na Escola de Quadros).

A lógica das revoluções do século XX segundo Moreno

O segundo ponto no qual Moreno pretende se apoiar para

revisar a Teoria (clássica) da Revolução Permanente e criticar os

pretensos erros de Trotsky é a lógica. Segundo Moreno, o erro

subjetivista de Trotsky se explica pelo mau uso que ele faz da lógica.

Segundo ele, Trotsky se apoiava erroneamente na lógica da

identidade e, assim, caia no mesmo erro dos mencheviques e dos

marxistas que não sabem pensar dialeticamente.

No esquema menchevique, a revolução seria

necessariamente burguesa e, por isso, de acordo com a lógica da

identidade utilizada por eles, deveria ser dirigida e usufruída

exclusivamente pela burguesia revolucionária e seus partidos. Para

os mencheviques revolução burguesa = direção burguesa. No

esquema de Trotsky a revolução operária só seria viável se fosse

dirigida desde o começo pelos operários e seu partido revolucionário.

Para ele, revolução operária = direção operária = partido marxista

revolucionário. Moreno explica que este esquema de Trotsky foi

construído assim devido ao fato de ele não compreender

profundamente as leis do desenvolvimento desigual e combinado das

revoluções. Segundo esta lei, que teria se manifestado abertamente

em todas as revoluções do século XX de acordo com Moreno, não há

uma relação de identidade entre sujeitos sociais e sujeitos políticos

em uma revolução. Isto é, segundo Moreno, não há uma relação de

identidade direta entre as classes que fazem uma revolução e os

partidos que a dirigem. Ou seja, segundo Moreno, a história e as

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revoluções não seguem nenhuma lei necessária. Segundo ele, a

lógica reinante nestas revoluções é, na verdade, a ausência que

qualquer lógica.

Na Rússia, de acordo com Moreno, enquanto a revolução

socialista da primeira etapa fora impulsionada por operários e

camponeses, sua direção fora pequeno burguesa. Em Cuba e China

a revolução tivera como sujeito social e base de apoio os

camponeses e sua direção era pequeno burguesa e guerrilheira.

Mesmo assim, em todas elas, a revolução fora socialista em seu

conteúdo. O erro de Trotsky, segundo Moreno, se explica pela

circunstância de que sua fórmula coloca um sinal de igualdade entre

conteúdo e forma da revolução. Para Moreno, a relação destes dois

pólos não pode ser determinada pondo-se um sinal de igualdade

entre eles, como fizera Trotsky, mas, deve sim, ser determinada pelo

caráter desigual e combinado da revolução.

Segundo Moreno, a lógica do desenvolvimento desigual e

combinado da revolução pode ser comparada a duas locomotivas

postas sob um par de trilhos. Quando uma locomotiva se movimenta

dirigida por um maquinista que conscientemente aciona seu motor e

lhe conduz para um rumo que ele, como sujeito, antecipa antes da

partida, a locomotiva se movimenta segundo um princípio subjetivo,

já que é conduzida por uma vontade consciente, a do maquinista.

Quando a mesma locomotiva se põe em movimento impulsionada

por forças naturais, como no caso de uma locomotiva posta em uma

descida, o curso deste movimento é um curso objetivo, já que não

depende da vontade e da consciência de um sujeito para seguir o

curso dos trilhos. A locomotiva segue este curso naturalmente,

independente de quem seja o maquinista.

Moreno transporta esta imagem da locomotiva para a análise

das forças que dirigem uma revolução. Segundo ele, há dois sujeitos

envolvidos num processo revolucionário. Um primeiro, que ele chama

de sujeito social, e um segundo, que ele chama de sujeito político. O

sujeito social da revolução é a classe social e o sujeito político é o

partido. Assim, por exemplo, na lógica do desenvolvimento desigual

e combinado de Moreno, apesar do proletariado ter atuado como o

verdadeiro sujeito social, ainda que inconsciente, de todas as

revoluções do século XX, ele foi dirigido por diferentes sujeitos

políticos. Na revolução de fevereiro na Rússia, por exemplo, ele foi

dirigido pelos mencheviques e socialistas revolucionários e na

revolução de outubro pelo partido bolchevique. Em Cuba ele foi

dirigido pelo movimento guerrilheiro e pequeno burguês de Fidel

Castro e na China pela guerrilha de Mao Tsé Tung.

Segundo Moreno, Cuba, China, Camboja etc. seriam nações

socialistas, mesmo que burocratizadas, porque nelas a burguesia

teria sido expropriada pela revolução. Assim, para ele revolução

socialista = expropriação da burguesia e tanto Fidel Castro quanto o

sanguinário Pol Pot e o Kmer Vermelho, como todos os modernos

oportunistas do movimento socialista que tenham expropriado a

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burguesia também seriam socialistas e revolucionários

(inconscientes, é claro).

Esta lógica objetiva, desigual e combinada teria sido,

segundo Moreno, a lógica que predominou em todas as revoluções

do século XX (Moreno: Intervenções na Escola de Quadros).

5) O caráter antimarxista e antitrotskista das concepções de

Moreno

Em nossa concepção, Moreno, apesar de seus esforços em

desenvolver teoricamente a Teoria da Revolução Permanente para a

realidade do pós-guerra, não fez mais do que repetir de maneira

diferente os mesmos argumentos liquidacionistas do pablismo e,

inclusive, dos adversários diretos de Trotsky, como Radek e

Preobrazensky.

Sua concepção da revolução, apesar de não dispensar a

construção da IV Internacional, como dispensara abertamente o

pablismo, relativiza a importância e a necessidade dela para o triunfo

da revolução socialista. Do mesmo modo que Plekhanov e os

mencheviques, e mais tarde o stalinismo, sua teoria da revolução

socialista é uma teoria claramente etapista, estanque e mecanicista e

não uma teoria dialética da revolução, não uma teoria do

transcrescimento da revolução democrática em revolução socialista

dirigida diretamente pelo proletariado e seu partido revolucionário em

um único processo, como conceberam Lênin e Trotsky.

Ao dispensar a necessidade de se construir partidos

trotskistas que dirijam a revolução democrática, ao dispensar o papel

da classe operária nesta fase da revolução, Moreno dispensa junto a

necessidade de se agitar o Programa de Transição no meio do

movimento operário. Com isso, o programa do morenismo desce ao

nível do programa das organizações centristas e reformistas do

movimento operário. Moreno, assim, recua a uma época anterior a

Trotsky e a Lênin, à época da Segunda Internacional e sua divisão

mecânica entre Programa Mínimo de caráter economicista para ser

agitado no meio sindical e Programa Máximo a ser agitado em dias

de festas no Parlamento. Na nova lógica das revoluções descoberta

por Moreno, nenhum papel caberia ao Programa de Transição. Na

primeira etapa, inconsciente, da revolução se agitaria o Programa

Mínimo, isto é, o programa das direções pequeno burguesas, e na

segunda etapa, consciente, se agitaria o Programa Máximo, o

programa do esquerdismo radicalizado.

Na fórmula da revolução pensada pelos mencheviques e por

Plekhanov, não havia a necessidade de se agitar um programa

revolucionário e de se criar um partido revolucionário de combate.

Como a revolução seria dirigida pelos partidos burgueses, ao

proletariado caberia o papel de criar organizações de propaganda e

de servir de ala esquerda da revolução burguesa. Na fórmula

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pensada por Lênin, como o proletariado deveria dirigir o processo,

mesmo que ao lado dos camponeses, havia a necessidade de se

criar um partido de combate e de agitação revolucionária, um partido

centralizado e de quadros que organizasse a classe operária para a

tomada do poder. Na fórmula da revolução permanente de Trotsky,

também havia a necessidade, assim como em Lênin, de se organizar

os operários num partido de combate e de agitação revolucionária.

Na fórmula de Trotsky a revolução só poderia adotar um caráter

permanente com a condição de que o proletariado fosse sua direção

desde o começo.

Na fórmula liquidacionista de Moreno, contudo, todas as

lições de Trotsky foram ignoradas ou relativizadas. Como agora a

revolução democrática pode ser dirigida por partidos e organizações

pequeno burguesas, como estes partidos podem substituir o partido

marxista e até mesmo cumprir parcialmente suas tarefas, que

necessidade haveria de se construir partidos de combate como era o

partido de Lênin? Na fórmula relativista de Moreno esta necessidade

ficaria adiada para a segunda etapa da revolução, a etapa

consciente. Antes da etapa democrática, a etapa da revolução

inconsciente, o trotskismo poderia ficar namorando as diversas

organizações centristas e oportunistas do movimento operário, e

mesmo certas organizações nacionalistas guerrilheiras e

democráticas, poderia atuar como a ala esquerda destas

organizações e conclamá-las a fazer sua tarefa: a de realizar a

revolução democrática como etapa separada e independente da

ditadura do proletariado.

Como, em nossa concepção, deveríamos classificar as

revoluções cubanas e chinesas, e mesmo todas as revoluções que

se deram no pós-guerra? Para nós estas revoluções não passaram

de meros golpes bonapartistas sobre o movimento revolucionário dos

trabalhadores. O fato de não haver burguesia em Cuba ou China e o

fato de ela ter sido expropriada nestes países por movimentos

guerrilheiros não transforma estes países em países socialistas,

mesmo que burocratizados. Para nós, estas revoluções devem ser

entendidas dentro do quadro mundial da dominação imperialista.

O imperialismo é uma realidade mundial, é uma totalidade

que domina todos os diferentes países sob as mais diversas formas.

Seja a forma republicana dos Estados Unidos ou social democrata da

Europa rica, seja a forma fascista da Europa da segunda guerra ou a

das ditaduras latino-americanas dos anos 70, seja a forma semi-

bonapartista de Lula no Brasil e de Kirchner na Argentina ou a

claramente bonapartista de Chávez na Venezuela, sejam as formas

que forem, sem a classe operária no poder não há revolução

socialista e sim, domínio do imperialismo. Não existem regimes

híbridos de governo, como imagina Moreno. No mundo moderno só

são possíveis duas formas fundamentais de governo: o imperialista

ou o socialista, consciente, para usar os termos de Moreno. As

tentativas de classificar os diferentes governos nacionais a partir de

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critérios extraídos da situação particular de cada país, da existência

ou não de burguesia no seu interior, são antimarxistas e revisionistas

e servem apenas para criar mais confusões e divisões no seio do

movimento trotskista.

Como governos bonapartistas, Fidel Castro e Mao Tsé Tung

nunca passaram de governos burgueses e contrarrevolucionários

desde o princípio. Em Cuba e China nunca houve um processo de

degeneração burocrática da revolução, como houve na Rússia. Estas

revoluções sempre foram, desde o início, burocráticas e

antissocialistas pelo caráter global da dominação imperialista.

A burguesia mundial adoraria ter em todos os países

governos estáveis, republicanos e constitucionais, pois apenas nesta

forma de governo a pluralidade e o conflito permanente entre os

diferentes capitais poderiam ser equacionados segundo regras

democráticas e impessoais e não segundo o capricho e a

arbitrariedade do Bonaparte de plantão. Porém, a realidade nem

sempre consegue corresponder a este sonho idílico da burguesia

mundial e ela se vê, então, obrigada e a contragosto, a aceitar que

em certas áreas do planeta governos bonapartistas como os de Fidel

Castro e do Partido Comunista Chinês governem em seu nome.

A burguesia mundial não é formada por uma classe de

homens ingênuos que acreditam nos discursos inflamados dos

Bonapartes latinoamericanos. Ela tem consciência de que estes

discursos não passam de demagogia para acalmar o ânimo socialista

das massas. Como Trotsky, a burguesia mundial sabe que estes

discursos são discursos oficiais e televisivos proferidos apenas em

dias de festas. Os discursos inflamados dos príncipes do

lumpemproletariado latinoamericano fazem parte do show mundial da

dominação imperialista e nada mais que isso.

O morenismo foi, durante muitas décadas, a maior e mais

influente organização trotskista da América Latina. Nos anos 80 o

MAS, Movimento Ao Socialismo, da Argentina, construído e dirigido

diretamente por Moreno, chegou a possuir cerca de 10 mil militantes

em seus quadros. Após o fim da ditadura militar na Argentina e o

retorno da democracia parlamentar, o MAS se transformou

rapidamente em um forte partido de massas, chegando a dirigir o

sindicato de cerca de 150 fábricas do país. Nas eleições

presidenciais de 1989 conseguiu obter mais de 400.000 votos,

convertendo-se na quarta força eleitoral, atrás apenas das forças do

peronismo. Nestas eleições Luis Zamora chegou a ser eleito

deputado federal pelo MAS.

Após a morte de Moreno em 1987, contudo, o MAS se

esfacelou em dezenas de minúsculas organizações. Até hoje o

morenismo continua a se fragmentar e lutar entre si pelo espólio

liquidacionista de Moreno. Os morenistas se encontram hoje

principalmente no PSTU, do Brasil, e no MST, da Argentina.

Individualmente, seus militantes podem ainda ser encontrados em

partidos abertamente centristas como o PSol brasileiro, onde atuam

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como dirigentes importantes. Na base desta fragmentação se

encontram, sem dúvida nenhuma, o abandono das teses clássicas

do trotskismo sobre o papel da classe operária na revolução

socialista e o caráter pablista, revisionista e liquidacionista do próprio

morenismo.

O movimento trotskista do século XX, liderado por Pablo-

Mandel e Moreno, se caracterizou por ter buscado atalhos que

facilitassem a atividade revolucionária. Estes atalhos implicaram

sempre em ceder ao oportunismo pequeno burguês e ao ecletismo

sociológico as posições mais clássicas e revolucionárias do

marxismo. Estes atalhos têm conduzido sempre o trotskismo ao

pântano do centrismo e da traição revolucionária. A construção, hoje,

de uma verdadeira organização trotskista profundamente enraizada

na classe operária, com radical influência de massas e

verdadeiramente internacionalista passa, sem dúvida nenhuma, pela

recuperação das concepções clássicas do trotskismo revolucionário:

a de que só a classe operária é uma classe verdadeiramente

revolucionária, de que só ela e mais ninguém poderá conduzir a

humanidade a um mundo novo e verdadeiramente humano, a de que

só o Programa de Transição em sua concepção clássica é um

programa revolucionário, a de que a Teoria clássica da Revolução

Permanente é mais atual hoje do que em todas as épocas passadas.

A Teoria (clássica) da Revolução Permanente e o Programa

de Transição são hoje mais atuais do que nunca. Mais atuais

inclusive do que na época de Trotsky, quando ainda havia no planeta

países atrasados com uma imensa população camponesa e um

baixo número de operários industriais. Hoje o proletariado constitui a

maioria absoluta da população em todos os principais países do

mundo e toda revolução anticapitalista pode e deve, por isso, ser

conduzida diretamente por ele. Todas as classes e camadas de

classes intermediárias têm desaparecido de nossa história recente

pelo desenvolvimento implacável da acumulação capitalista. Hoje,

mais do que em todas as épocas, se faz necessário a construção de

partidos trotskistas de massas e a organização do proletariado como

o único e verdadeiro sujeito da única e verdadeira revolução possível

de ser realizada com sucesso: a revolução socialista permanente e

internacional.

6) Bibliografia citada

Karl Marx: O 18 Brumário de Luis Bonaparte. In: Karl Marx – Os

Pensadores. S.P: Nova Cultural, 1988.

Leon Trotsky: A Revolução Permanente. S.P: Livraria Editora

Ciências Humanas Ltda., 1979.

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Nahuel Moreno: Critica a las Tesis de la Revolución Permanente de

Trotsky. In: Intervenciones en la Escuela de Cuadros –

Argentina 1984. Marxists Internet Archive: janeiro de 2001.

Texto on-line disponível no seguinte endereço:

http://www.marxists.org/espanol/moreno.

_____. Actualización del Programa de Transición. Marxists Internet

Archive: novembro de 2001. Texto on-line disponível no

seguinte endereço eletrônico:

http://www.marxists.org/espanol/moreno.

V. I. Lenine: Duas Táticas da Social Democracia na Revolução

Democrática. In: Obras Escolhidas. S.P: Editora Alfa-Omega,

1982.