David Hume Anthony Quinton

  • Upload
    caio

  • View
    239

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    1/32

    David HUMEAnthony Quinton

    FUNDAO EDITORA DA UNESPPresidente do Conselho Curador Antonio Manoel dos Santos SilvaDiretor-Presidente Jos Castilho Marques NetoAssessor Editorial Jzio Hernani Bornfirn Gutierre

    Conselho Editorial Acadmico Aguinaldo Jos Gonalves, lvaro Oscar Carnpana, Antonio Celso Wagner Zanin, Carlos Erivany Fantinati, Fausto Foresti, Jos AluysioReis de Andrade, Jos Roberto Ferreira, Marco Aurlio Nogueira, Maria Sueli Parreirade Arruda, Roberto Kraenkel e Rosa Maria Feiteiro Cavalari.Editor Executivo Tulio y, KawataEditoras Assistentes Maria Apparecida F. M. Bussolotti e Maria Dolores Prades

    Anthony Quinton

    HUME

    Traduo Jos Oscar de Almeida Marques

    Departamento de Filosofia -UnicampEditora Unesp

    Copyright @ 1998 by Anthony QuintonTitulo original em ingls: Hume, publicado em 1998 pela Phoenix, uma diviso da Orion Publishing Group Ltda.Copyright @ 1999 da traduo brasileira: Fundao Editora da UNESPPraa da S, 10801001-900 -So Paulo -SP Tel.: (011) 232-7171 Fax: (011) 232-7172Home page: www.editora.unesp.brE-mail: [email protected]

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Quinton, Anthony.Hume / Anthony Quinton; traduo Jos Oscar de Almeida Marques - So Paulo: Editora UNESP (FEU), 1999. - (Coleo Grandes Filsofos)

    Ttulo original: Hume.ISBN 85-7139-234-4

    1. Hume, David, 1711-1776 I. Ttulo. II. Srie.

    ndice para catlogo sistemtico:I. Filsofos ingleses: Biografia e obra 192

    ABREVIAES DAS OBRAS DE HUME

    E Enquiries Concerning Human Understanding and Concerning the Principles of Morais. SELBY -BIGGE, L. A. (Ed.). 2.ed. Oxford, 1902.D Dialogues Concerning Natural Religion. KEMP SMITH, N. (Ed.). Oxford, 1935.Ess Essays. Oxford, 1963.N The Natural History of Religion and Dialogues Concerning Natural Religion. GLYN, A. W., PRICE,J. V. (Ed.). Oxford, 1976.T Treatise of Human Nature. SELBY -BIGGE, L. A. (Ed.). Oxford, 1888 e posteriores.

    Pg. 07

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    2/32

    INTRODUO

    Hume o maior dos filsofos britnicos: o mais profundo, penetrante e abrangente. Seutrabalho o ponto alto da tradio empirista dominante na filosofia britnicaque comea com Guilherme de Ockham no sculo XIV, passa por Bacon e Hobbes, Locke e

    Berkeley, prossegue, depois de Hume, com Bentham e J. S. Mill e culmina na filosofiaanaltica do presente sculo, que Bertrand Russell inaugurou e, postumamente, aindapreside.Ele no foi um filsofo to razovel nem - em parte por essa razo - to influente quantocke. Enquanto este recomendava, quanto s crenas, uma atitude cautelosaou reservada que era bem-vinda aps um sculo de horrveis conflitos religiosos, Humeparecia comprazer-se em paradoxos e chegar a um ceticismo total que s a frivolidadepodia aliviar. As doutrinas polticas de Locke contriburam em alguma medida, particularmente pela aprovao entusistica de Voltaire, para a corrente de pensamentoque inspirou a Revoluo Francesa e desempenhou um papel muito maior no projeto da C

    onstituio americana. Os utilitaristas do sculo XIX fizeram de uma verso simplificadada teoria moral e poltica de Hume a base efetiva de uma variedade radical de liberalismo que ele dificilmente teria aprovado. At o sculo XX, o principal efeitode sua filosofia terica foi negativo, provocando numerosos filsofos ao desafio derefuta-lo. Kant disse que Hume o tinha "despertado de seu sono dogmtico". ThomasReid, o filsofo escocs do senso comum, viu Hume como tendo demonstrado de maneirabrilhante o absurdo implcito da "teoria das idias" de Locke. T. H. Green escreveuuma enorme introduo a uma edio das obras de Hume,

    Pg. 08

    rastreando seus supostos erros com inabalvel resoluo. S o sculo XX o reconheceu comoum importante filsofo no sentido construtivo.Hume era profundamente escocs, pelo nascimento, residncia preferencial, lealdade,sotaque e maneiras. Foi o mais notvel expoente do Iluminismo escocs do sculoXVIII, que tambm incluiu Adam Smith, o grande economista, Adam Ferguson, o fundador da sociologia, o historiador William Robertson e muitos outros. Esses homenscriaram um ambiente intelectual admiravelmente vivo e estimulante no qual se cultivaram todas as cincias humanas: filosofia, histria, poltica, economia, crticae o estudo no-dogmtico da religio. O estilo desses escoceses do sculo XVIII compara-se muito favoravelmente, em seu rigor e generalidade, com os modos de pensamentomais descuidados de seus contemporneos ingleses. (H a exceo de Samuel Johnson, mas ele poderia ter-se beneficiado de um pouco mais de sistematicidade e de pessoasmenos inspidas com quem debater).Hume compartilhava com seus associados, e, na verdade, com a maioria dos filsofosde sua poca, duas qualidades que o distinguiam, e a eles, dos filsofos dos diasde hoje. Em primeiro lugar, a esfera de seus interesses era extraordinariamenteampla. No se limitou a escrever sobre filosofia - tanto terica como moral -, teoriapoltica, economia e o estudo histrico e doutrinrio da religio, mas trouxe, para essas reas, contribuies de decisiva importncia, escrevendo de forma memorvelsobre milagres, sobre a liberdade da vontade, sobre a imortalidade da alma e o suicdio, e devastando ao mesmo tempo o tipo de religio racional ou natural, o desmo,

    que era a posio mais avanada que a maioria dos pensadores das Luzes julgaram razovelatingir em termos prticos ou tericos.Ele foi, contudo, muito mais conhecido em sua poca como um historiador, e muito m

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    3/32

    ais bem recompensado por essa atividade. Sua obra-prima filosfica de juventude,o Tratado sobre a natureza humana, embora no tenha, como ele

    Pg. 09

    tristemente proclamou, "sado do prelo natimorto", levou dcadas para esgotar sua pequena primeira edio. Mas sua posterior Histria da Inglaterra em seis volumesfoi um best-seller.A outra qualidade que distingue Hume profissionalmente dos filsofos contemporneos o carter literrio de suas ambies. Em sua breve Autobiografia ele se refere "minha paixo dominante, meu amor pela fama literria". Foi um escritor consciente,elegante, de um tipo Augustino, produzindo sentenas polidas e equilibradas,coloridas com exemplos e analogias concretas. Samuel Johnson disse "ora, senhor,o estilo dele no ingls. A estrutura de suas sentenas francesa". O que noconstitui, evidentemente, um defeito. Hume escreveu o Tratado durante uma longaestada na Frana, e esse pode ser o trabalho que Johnson tinha em mente. A filosofia

    no sculo XVIII fazia parte das belas letras; e, nas universidades, aparecia apenas como uma tmida auxiliar da teologia e dos estudos clssicos. Hume se dirigiaa leitores providos de uma educao geral, no a acadmicos, os quais em sua maior partenunca o apreciaram. Trata-se, de fato, de um escritor despreocupado, demasiadotolerante para ficar se preocupando em amarrar todas as pontas de seu texto. Emparticular, do ponto de vista do estilo, ele est bem abaixo do quase perfeito Berkeley,mas no se poderia considerar isso uma fraqueza, e difcil pensar em algum filsofo britnico posterior que tenha escrito to bem quanto ele, com a possvel exceode F. H. Bradley.H uma importante limitao na bagagem intelectual de Hume. Possuidor de um conhecimento espantoso sobre as humanidades, ele parece no ter sabido quase nada de matemtica e cincia natural, nem ter tido qualquer interesse por essas disciplinas. Mas is

    so no trouxe muito prejuzo. O que ele escreveu sobre matemtica est perfeitamente dotado de

    Pg. 10

    um bom senso mais ou menos leibniziano. Se verdade que ele sups erroneamente quetoda cincia natural causal, pelo menos suas partes mais elementares o so.Onde sua fragilidade matemtica o pe a perder na parte 2 do Tratado, na qual coisasmuito estranhas so ditas sobre espao e tempo. Ele afirma, por exemplo, queum todo extenso deve ser composto de partes inextensas, que so no obstante finitasem nmero e dotadas de qualidades perceptveis, tais como cores. Os comentadores,quase universalmente, lanam um vu sobre essa parte do trabalho de Hume.

    Pg. 11

    VIDA

    Hume nasceu em Edimburgo em 1711. Originria das Borders, sua famlia l viveu a maiorparte do tempo, na propriedade que possua em Ninewells, situada entre Berwick,a leste, e Duns (onde Duns Escoto pode ter nascido, mas provavelmente no nasceu)a oeste. Seu pai morreu quando ele tinha dois anos, de modo que sua me, dedicada

    e intensamente calvinista, foi a principal influncia em seus primeiros anos. O lar e a religio da famlia teriam-no tornado profundamente antiptico tentativajacobita, em 1715, de instalar no trono o monarca catlico legtimo, que teria sido

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    4/32

    James III.Hume ingressou na Universidade de Edimburgo com a precoce idade de 12 anos, o que era bastante usual poca, deixando-a trs anos mais tarde. Voltou-se ento, dem vontade, para os estudos jurdicos, embora dedicando a maior parte de sua ateno a Ccero e outros autores clssicos. Depois de um tipo de colapso nervoso ede um breve perodo no escritrio de um comerciante de Bristol, ele isolou-se por dois anos em uma rea rural da Frana, vivendo frugalmente e escrevendo seu Tratado.

    Publicou suas duas primeiras partes em 1739, dois anos aps seu retorno, e a terceira parte em 1740. Dois volumes de ensaios, publicados em 1741 e 1742, tiveramsorte um pouco melhor. Candidatou-se sem sucesso a uma ctedra de filosofia em Edimburgo e, necessitando de algum rendimento, tornou-se tutor, por um ano, do insanomarqus de Annandale. Em 1746 acompanhou o general St. Clair em uma invaso da Bretanha, que acabou sendo cancelada, e, um pouco mais tarde, viajou com St. Claira Viena e a

    Pg. 12

    Turim. Nessa poca, em 1749, veio luz sua Investigao sobre o entendimento humano, uma reviso um tanto mutilada do livro 1 do Tratado, e ele retornou a Escciapara concluir a obra-irm daquela, a Investigao sobre os princpios da moral, sua favorita entre todas as que produziu.De 1751 a 1757 Hume administrou a Biblioteca dos advogados em Edimburgo, a melhor biblioteca do pas e o ambiente ideal para o projeto de grande envergadura a queento deu incio: os seis volumes de sua Histria da Inglaterra. Os volumes sobre os Stuarts - que geraram alguma controvrsia pela tentativa de fazer justia famlia - saram em 1754 e 1756; em 1759 foram publicados aqueles dedicados aos Tudors, e, em 1772, os volumes sobre as dinastias anteriores, remontando a JlioCsar. Hume visitou Londres em 1758 e 1761, mas, de todas as viagens ao exterior,

    a mais prazerosa foi sua estada em Paris de 1763 a 1766 como secretrio do condede Hertford. Ele foi agradavelmente festejado pelos philosophes, teve um srio romance, do qual se desconhece o grau de intimidade, com a condessa de Boufflers eesteve diversas vezes com Rousseau, que trouxe consigo, como refugiado, em sua volta Inglaterra. Rousseau logo retomou, disseminando implausveis fantasias paranicassobre Hume.Sua carreira pblica atingiu o ponto culminante com sua nomeao como subsecretrio de Estado da provncia setentrional entre 1767 e 1769. Essa foi a poca dos ltimosestertores polticos de William Pitt senior, idoso, doente e mentalmente perturbado. Hume parece ter desempenhado suas funes a contento. Em 1769 ele retomou aEdimburgo e a seu crculo de amigos para seus ltimos e felizes oito anos de existncia. Antes de morrer de cncer de estmago em 1776, ele teve o prazer de irritarBoswell com seu bem-humorado destemor diante da morte.Hume era um homem de grande estatura, magro e ossudo quando jovem, mas cada vezmais corpulento e rubicundo medida que passaram os anos. Simptico e gentil, socivele de bom temperamento, era um excelente amigo e um inimigo

    Pg. 13

    fcil de aplacar. Pde ver mritos em um oponente srio e honesto como Thomas Reid, e dispensou um nscio presunoso como James Beattie com o ameno comentrio "um

    camarada tolo e intolerante".Nasci no dia 26 de abril, datao antiga, em Edimburgo. Vim de uma boa famlia, tantodo lado paterno como materno: a famlia de meu pai descende do conde de Home,

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    5/32

    ou Hume, e meus ancestrais foram, por muitas geraes, proprietrios das terras que hoje meu irmo possui... Passei com sucesso pelos estgios usuais de educaoe fui desde muito cedo tomado de um amor pela literatura que tem sido a paixo dominante em minha vida, e a grande fonte de meus prazeres. Minha disposio paraos estudos, minha sobriedade e aplicao, deram a minha famlia a idia de que o Direitoera uma profisso adequada para mim, mas eu sentia uma averso insupervela tudo exceto a ocupar-me da filosofia e da erudio em geral; e enquanto eles imagi

    navam que eu me debruava sobre Voet e Vinnius, eram Ccero e Virglio os autoresque eu estava devorando. (Ess 607-8)

    Nunca um empreendimento literrio foi mais infortunado que meu Tratado sobre a natureza humana. Ele saiu natimorto do prelo, sem alcanar sequer a distino de provocarmurmrios entre os fanticos. Mas como eu era de temperamento naturalmente animado eotimista, muito pronto recuperei-me do golpe e, tendo ido viver no interior,retomei com grande ardor meus estudos. Em 1742 fiz imprimir em Edimburgo a primeira parte de meus Ensaios; o trabalho foi favoravelmente recebido e logo me fezesquecerinteiramente meu desapontamento anterior. Continuei morando no campo com minha me

    e meu irmo e nesse perodo recuperei o conhecimento da lngua grega, que havianegligenciado demasiadamente em minha juventude. (Ess 608-9)

    Mas no obstante essa variedade de intempries a que meus escritos haviam sido expostos, eles ainda continuaram a fazer tamanho progresso que o dinheiro que me foipago pelos livreiros

    Pg. 14

    excedia em muito qualquer coisa anteriormente vista na Inglaterra; eu tornei-meno apenas independente, mas opulento. (Ess 613)

    Aqueles que no conhecem os estranhos efeitos das modas jamais imaginaro a recepo quetive em Paris, por parte de homens e mulheres de todas as posies sociais.Quanto mais eu me esquivava de suas excessivas cortesias, mais era cumulado delas. H, entretanto, uma genuna satisfao em morar em Paris, pelo grande nmero depessoas sensatas, instrudas e refinadas que aquela cidade possui, em grau maior que qualquer outro lugar no Universo. Cheguei a pensar em instalar-me ali definitivamente.(Ess 614)

    Para concluir historicamente com meu prprio carter, sou, ou antes, era (pois esse o estilo que devo agora usar ao falar de mim mesmo, o qual me encoraja a expressar mais meus sentimentos); eu era, dizia, um homem de disposies brandas, de temperamento controlado, de gnio franco, socivel e bem-humorado, capaz de afeioar-se, maspouco suscetvel de inimizades, e de grande moderao em todas as minhas paixes. Mesmomeu amor pela fama literria, minha paixo predominante, nunca amargou meu temperamento, apesar dos desapontamentos freqentes. Minha companhia no era desagradvel paraos jovens e despreocupados, nem para os estudiosos e homens de letras; e como eu tinha um prazer especial na companhia de mulheres recatadas, nunca houve razespara sentir-me descontente com a recepo que me concederam. Emsuma, enquanto a maioria dos homens de alguma eminncia teve motivos para queixar-se da calnia, eu nunca fui atingido ou mesmo atacado por suas garras malignas;e embora tenha me exposto temerariamente ira das faces civis e religiosas, elas pareceram, em relao a mim, desarmadas de sua fria costumeira. Meus amigosnunca precisaram justificar qualquer circunstncia de meu carter ou conduta; no que

    os fanticos, como bem podemos supor, no tivessem ficado felizes em inventare propagar qualquer histria que me prejudicasse, mas jamais puderam encontrar alguma que julgassem capaz de assumir ares de plausibilidade. No posso dizer que

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    6/32

    no haja vaidade nesta orao fnebre que fao para mim mesmo, mas espero que no seja forde propsito, essas so questes de fato que podem ser facilmente elucidadase verificadas. (Ess 615-6)

    Pg. 15

    PRESSUPOSIES FILOSFICAS

    Hume um empirista em dois sentidos. Em primeiro lugar, ele considera que a filosofia uma cincia emprica. Essa posio anunciada no subttulo do Tratado:"uma tentativa de introduzir o mtodo experimental de raciocnio em assuntos morais". O mtodo experimental o que est na base da sublime faanha de Newton (emboraa matemtica tenha tambm muito a ver com isso), de modo que razovel atribuir a Humea ambio de ser o Newton das cincias morais (isto , humanas). Seu procedimento,em boa medida, concorda com essa declarao de intenes. Ele procura mostrar como o complexo detalhamento de nossa vida intelectual produz-se de acordo com as leisde associao de seus elementos primitivos, os tomos de pensamento que ele chama impr

    esses e idias. Mas no por essa psicologia cognitiva geral, baseada emprincpios associacionistas, que ele usualmente considerado importante.Hume , em segundo lugar, um empirista em uma acepo mais familiar, ao sustentar quetoda a matria-prima de nossos pensamentos e crenas provm da experincia,sensorial e introspectiva. Ele aplica esse princpio, de fato, como um critrio de significao. Nossos pensamentos esto desprovidos de contedo, e nossas palavras,de significado, a menos que estejam conectados com a experincia. Hume tambm sustenta que a maior parte de nosso conhecimento funda-se na experincia, ou - vistoque o nico conhecimento certo de que dispomos de natureza matemtica e diz respeitoa relaes entre idias -, que todas as nossas crenas provveis tm essefundamento na experincia. Pode parecer que ele estava comprometido com sua concepode que a filosofia uma cincia

    Pg. 16

    emprica em funo de sua idia de que todas as crenas factuais so empricas, mas uma cono se segue da outra. Em sua maioria, os modernos simpatizantes de Humediriam que a filosofia - a "verdadeira" filosofia - conceitual, no factual, e est,tanto quanto a matemtica, dedicada ao exame de relaes entre idias.Hume afirma ousadamente que a filosofia a primeira cincia, ou a cincia mestra. Todas as cincias, ou corpos de conhecimento admitido so obra do entendimentohumano. Portanto, o estudo do entendimento humano anterior a todos os outros. Enquanto Newton, na viso de Hume, havia explicado o universo material por meio dalei da atrao gravitacional, seu objetivo explicar o funcionamento da mente por umasemelhante lei de associao.As matrias-primas do pensamento, que o ofcio do entendimento, so as impresses e suascpias, as idias, de graus variados de vivacidade. As impresses dividem-seem impresses de sensao, tais como cores e sons, e de reflexo, tais como emoes e deses. Elas podem tambm ser simples -homogneas e no-analisveis - ou complexas.Toda idia simples pressupe uma impresso simples correspondente. Isso no necessrio ncaso das idias complexas: todos ns reconheceramos um drago se umdeles cruzasse nossa frente.As idias se distinguem das impresses por sua vivacidade menor. Se no tm nenhuma vivacidade, so idias de imaginao. Se so mais vvidas e preservam sua "formae ordem", so idias de memria. Do mesmo grau de vivacidade, parece, so as idias de expectativa, que so a forma elementar de nossas crenas causais. A crena,

    em contraste com o mero exerccio da imaginao, uma caracterstica das idias de memride expectativa. Ela no uma idia adicional dado que, se o fosse,poderia ser adicionada a qualquer outra idia, por mais fantstica que fosse, produz

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    7/32

    indo-se a crena nessa idia. Um ponto relacionado, estabelecido em um estgioposterior, que no h idia de existncia. A idia de uma coisa o

    Pg. 17

    mesmo que a idia dessa coisa enquanto existindo. Hume procuraria estabelecer as credenciais empricas da existncia dizendo que ela est presente em toda impresso,dado que impresses envolvem a infalvel conscincia de alguma coisa (mesmo que seja apenas uma mancha colorida no campo visual privado).Hume admite que seu princpio da dependncia universal que as idias mantm com as impresses imperfeito. Algum poderia reconhecer um tom de azul mesmo que nuncao tivesse visto antes, apenas seus vizinhos imediatos no espectro. Mas essa umaadmisso desnecessria. O tom faltante poderia ser explicado como uma idia complexaproduzida a partir do tom de azul prximo a ele, e da idia, empiricamente bem exemplificada, de "um pouco mais azul que".H, na explicao humana das impresses e idias, equvocos muito mais graves que esse. Umidia, para ele, uma figura ou imagem mental. verdade que pensamos,

    at certo ponto, por meio de imagens, mas pensamos tambm com palavras, e com diagramas e esquemas que so, de certo modo, similares a imagens, embora no se possadizer que sejam cpias. O ponto crucial que todos esses itens so veculos de conceitos ou significados. fcil pensar em imaginaes (sonhos e alucinaes, porexemplo) que so muito mais vvidas do que a maior parte do que percebemos, para no dizer do que meramente lembramos.A posio de Hume de que imagens so os veculos primrios do pensamento pode ter sido auxiliada por sua adeso recusa de Berkeley das "idias abstratas". Umaimpresso uma impresso de uma coisa particular, inteiramente determinada. Como pens-la como uma impresso de uma espcie, qual algum termo geral apropriadamentese aplicaria? Locke julgou que abstramos as qualidades comuns a todas as laranjase usamos a idia abstrata resultante para reconhecer uma laranja particular comosendo uma laranja. Berkeley rejeitou isso, dado que diferentes laranjas tm qualid

    ades incompatveis. Usamos uma imagem particular para "representar"

    Pg. 18

    todos os membros da espcie, mas uma imagem qualquer pode representar um sem-nmerode espcies: laranjas, mas tambm coisas redondas, coisas alaranjadas etc. Humeenfrentou essa dificuldade dizendo que, quando alocamos algo a uma espcie em razode sua similaridade com alguma imagem padro, temos nossa disposio muitasoutras imagens que podemos trazer mente para guiar nossa classificao na direo correta.Finalmente, nessa primeira parte do Tratado, Hume antecipa, com uma recusa geralda legitimidade da idia de substncia, pontos que ir desenvolver mais extensamente frente, ao tratar de objetos materiais e pessoas. No h impresso da qual a idia de substncia possa ser derivada. Tudo que percebemos uma coleo de qualidades,persistentemente associadas umas s outras. Se substncia for definida como aquilo que capaz de existncia independente, ento as nicas substncias so as impressese idias. evidente que todas as cincias tm, em maior ou menor grau, uma relao com a natureza humana, e que por mais que qualquer delas parea afastar-se, sempre retornama ela em uma ou outra passagem. Mesmo a matemtica, a filosofia natural e a religionatural so em alguma medida dependentes da cincia do homem, dado que caemsob a alada do conhecimento humano e so julgadas pelos poderes e faculdades deste... Se as cincias da matemtica, filosofia natural e religio natural exibem

    essa dependncia do conhecimento do homem, que se pode esperar nas outras cincias,cuja conexo com a natureza humana ainda mais ntima e profunda? (T XIX)

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    8/32

    No h nenhuma questo importante cuja resoluo no esteja compreendida na cincia do home nenhuma que possa ser decidida com alguma certeza antes de nos tornarmosfamiliarizados com essa cincia. Ao pretender, portanto, explicar os princpios da natureza humana, estamos com efeito propondo um sistema completo das cincias,construdo sobre uma fundao que a nica sobre a qual elas podem se erguer com alguma segurana. E como a cincia do homem a nica fundao slida das demaiscincias, a nica fundao slida que ela prpria pode receber deve provir da experincia

    observao. (T xix-xx)

    Pag. 19

    Todas as percepes da mente humana resolvem-se em duas diferentes espcies que chamarei impresses e idias. A diferena entre elas consiste nos graus de forae vivacidade com que afetam a mente e abrem seu caminho at nosso pensamento e conscincia. As percepes que adentram com maior fora e violncia podem ser denominadasimpresses, e por esse nome entendo todas as nossas sensaes, paixes e emoes, ao aparerem alma pela primeira vez. Por idias entendo as tnues imagens das

    anteriores, presentes no pensamento e no raciocnio, assim como o so, por exemplo,todas as percepes excitadas pelo presente discurso, com exceo apenas daquelasque provm da viso e do tato, e do prazer ou desconforto imediatos que ele pode provocar. Acredito que no ser necessrio empregar muitas palavras para explicaressa distino. Cada um de ns, por si mesmo, perceber prontamente a diferena entre sentir e pensar. (T 1)

    Para cada idia simples h uma impresso simples que a ela se assemelha, e para cada impresso simples, uma idia correspondente. (T 3)

    Uma questo muito importante foi levantada em relao a idias abstratas ou gerais, a saber, se elas so gerais ou particulares na concepo que a mente tem delas.Um grande filsofo [Berkeley] contestou a opinio corrente quanto a esse ponto e afi

    rmou que todas as idias gerais nada mais so que idias particulares anexadasa um certo termo, que lhes d uma significao mais abrangente e as faz evocar, quandopreciso, outros indivduos semelhantes a elas. Como considero esta uma dasmaiores e mais valiosas descobertas feitas nos ltimos anos na repblica das letras,vou esforar-me aqui para confirm-la por meio de alguns argumentos, os quais,segundo espero, vo coloc-la alm de toda dvida e controvrsia. evidente que, ao formar a maioria de nossas idias gerais, se no mesmo todas elas,fazemos abstrao de cada grau particular de qualidade ou quantidade, e queum objeto no deixa de ser de uma certa espcie particular em virtude de alguma pequena mudana em sua extenso, durao ou outras propriedades. Pode-se pensar,portanto, que h aqui um claro dilema quanto natureza dessas idias abstratas que tmdado aos filsofos tantos motivos de especulao. A idia abstrata de umhomem representa homens de todos os tamanhos e qualidades, do que se conclui que

    Pg. 20

    ela s pode faz-lo seja representando de imediato todos os possveis tamanhos e qualidades seja no representando nenhum deles em particular. Ora, uma vez que seconsidera absurdo defender a primeira alternativa, j que ela implica uma capacidade infinita da mente, tem-se decidido usualmente a questo em favor da segunda,tomando-se nossas idias abstratas como no representando nenhum grau particular dequantidade ou qualidade. Tentarei mostrar, porm, que essa inferncia errnea,provando, em primeiro lugar, que absolutamente impossvel conceber qualquer quanti

    dade ou qualidade sem formar uma noo precisa de seus graus; e, em segundo,mostrando que, mesmo que a capacidade da mente no seja infinita, podemos formar de imediato uma noo de todas as possveis qualidades e quantidades, pelo menos

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    9/32

    de uma maneira que, embora muito imperfeita, pode servir a todos os propsitos dareflexo e conversao. (T 17-18)

    Todos os objetos da razo ou investigao humanas podem ser naturalmente divididos emduas espcies, a saber, relaes de idias e questes de fato. Do primeirotipo so as cincias da geometria, lgebra e aritmtica, e, em suma, toda afirmao que ntuitivamente ou demonstrativamente certa. Que o quadrado da hipotenusa

    igual ao quadrado dos dois lados uma proposio que expressa uma relao entre essas gndezas. Que trs vezes cinco igual metade de trinta expressa umarelao entre esses nmeros. Proposies dessa espcie podem ser descobertas pela simpleserao do pensamento, independentemente do que possa existir em qualquerparte do universo. Mesmo que jamais houvesse existido um crculo ou tringulo na natureza, as verdades demonstradas por Euclides conservariam para sempre sua certezae evidncia.Questes de fato, que so o segundo tipo de objetos da razo humana, no so apuradas da mesma maneira, e tampouco nossa evidncia de sua verdade, por maior queseja, da mesma natureza que a precedente. O contrrio de toda questo de fato permanece sendo possvel, porque no pode jamais implicar contradio e a mente o

    concebe com a mesma facilidade e clareza, como algo perfeitamente ajustvel realidade. Que o sol no nascer amanh no uma proposio menos inteligvel nemimplica mais contradio que a afirmao de que ele nascer. (E 25-26)

    Pg. 21

    CAUSAO

    A explicao que Hume deu da causao , com justia, a parte mais bem conhecida e mais inuente de sua filosofia. Enquanto outras de suas principais afirmaesso no mximo interessantemente provocativas, esta continua sendo um foroso objeto de

    preocupao para os filsofos. Hume trata a causao como uma relao entreobjetos antes de expor suas desconcertantes opinies cticas sobre nosso conhecimento dos objetos, mas isso porque ele considera que todas as nossas crenas sobrequestes de fato - medida que avanam para alm das impresses que esto imediatamente psentes mente, como o fazem todas exceto as mais elementares - so produtode inferncias causais. Isso, rigorosamente, no correto. O gosto doce que eu infiroque se pode obter da laranja que vejo no a causa nem o efeito da laranjavista. Mas continua sendo uma "existncia distinta", que poderia ter deixado de ocorrer mesmo estando a laranja presente. A inferncia factual, da qual a infernciacausal o principal exemplo, o liame universal entre o observado e o inobservado,entre o que percebemos que acontece e o que deve ter acontecido ou deve vira acontecer.A caracterstica de ser uma causa, ou um efeito, no uma qualidade das coisas, comoser vermelha ou redonda. Se o fosse, seria uma propriedade de todas as coisas,assim como a existncia, e no teramos nenhuma impresso dela. Ela , de forma bastante simples, uma relao: um complexo, trplice, composto de contigidade noespao e tempo, sucesso e conexo necessria. Nem a contigidade, nem a sucesso so, de, essenciais causao. Pode haver ao distncia, e causa e efeitopodem ser simultneos (Hume tem um

    Pg. 22

    argumento engenhoso porm invlido para provar que no podem). A questo no importante

    em todo caso, os exemplos mais diretos de relaes causais tm termos queso contguos e sucessivos. No importante porque contigidade e sucesso so empiricameno-problemticas; temos impresses de ambas. A conexo necessria

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    10/32

    o indispensvel embora perturbador. Por mais atentamente que examinemos um supostoexemplo de relao causal (a bola branca entrando em contato com a vermelhae a vermelha partindo em direo caapa), no observamos uma conexo necessria entre elembora acreditemos que exista.Hume prope duas questes. Por que pensamos que todo evento deve ter uma causa e porque pensamos que cada causa particular deve ter o efeito que supomos que tem?O princpio causal geral no nem auto-evidente nem demonstrvel. Com destreza tpica, el

    e despacha algumas das tentativas de provas. Locke, por exemplo, disseque se o princpio fosse falso, alguma coisa teria sido causada por nada, mas o nada muito fraco para causar qualquer coisa. Mostra-se facilmente que essa antecipaode Lewis Carroll envolve uma petio de princpio. Tampouco se pode provar que um evento particular qualquer causa daquilo que se toma como seu efeito. Causa eefeito so existncias distintas; no h jamais contradio, portanto, em supor que a primra ocorra e o segundo no.Quando acreditamos que dois tipos de eventos esto causalmente relacionados, acreditamos que esto constantemente conjugados em todos os tempos com base em nossalembrana de que estiveram constantemente conjugados em nossa experincia. A inferncia da conjuno limitada que observamos para a conjuno universal envolvida

    em nossa crena causal assume que o inobservado assemelha-se ao observado ou, de forma mais vaga, que a natureza uniforme. Mas esta suposio, assim como o princpiogeral, no auto-evidente nem demonstrvel. O inobservado "distinto" do observado; ele pode tomar qualquer forma que seja, e continuar compatvel com o observadoser do jeito que .

    Pg. 23

    Tampouco podemos estabelec-la indutivamente com base na evidncia de que at agora, pelo menos, o inobservado tem se assemelhado em larga medida ao observado. Fazerisso seria argumentar em crculo, assumir a validade da suposio em sua prpria prova.

    Escondida em meio a uma discusso sobre probabilidade, est uma interessante distino entre concluses provveis baseadas em evidncia insuficiente (conheci cincoholandeses todos eles gostavam de enguia) e aquelas baseadas em evidncia contrria(conheci cem holandeses e noventa e cinco deles gostavam de enguia). Em qualquerdos casos, ao encontrar um novo holands, concluirei que ele provavelmente gosta de enguia, mas no vou afirmar nada mais que isso. No segundo caso, estou confiandona proposio geral de que dezenove entre vinte holandeses gostam de enguia, que o produto de uma inferncia indutiva a partir da proporo de apreciadores deenguia que observei. A crtica de Hume, portanto, no pode ser contornada argumentando-se que a natureza provavelmente uniforme, ou que o inobservado ir provavelmenteassemelhar-se ao observado, se for este segundo tipo de probabilidade que estiver em questo. Pois essa argumentao s poderia estar baseada na constncia das freqnciaou propores observadas. Mas o primeiro tipo de probabilidade, que Hume pe de lado como figurando apenas nos primeiros anos de vida, o que certamente incorreto,no est sujeito a essa objeo. Tem-se argumentado que a proposio "se todos os As conhedos so Bs ento provvel que (ou seja, h alguma evidncia, mesmoque insuficiente, de que) todos e quaisquer As so Bs" demonstrvel. por causa do significado da palavra "evidncia" que a proposio acima sobre As e Bs verdadeira;ela enuncia uma "relao abstrata de idias", no uma questo de fato.Convencido, em todo caso, de que a inferncia indutiva que est envolvida em nossascrenas causais, e em todas as demais crenas factuais que avanam alm das impressespresentes, no pode ser racionalmente justificada, Hume

    Pg. 24

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    11/32

    volta-se para o problema de explicar por que recorremos a ela de forma to inveterada. Sua resposta que, por influncia da associao, nossa experincia de uma conjunoconstante leva-nos, por uma questo de costume ou hbito, a ter uma vvida expectativade uma vidraa se despedaando quando vemos um tijolo voando em sua direo.A impresso da qual se deriva nossa idia de conexo necessria no uma impresso de sen

    as de reflexo, de nos sentirmos compelidos a esperar que a vidraase quebre ao perceber o tijolo voando em direo a ela.Hume conclui sua discusso principal sobre o tema oferecendo duas definies de "causa", que so definies de duas coisas completamente diferentes, ainda que relacionadas.A primeira dada em termos da conjuno constante dos dois fatores, a segunda, em termos do fato de que a impresso de um dos fatores determina a mente a formaruma idia vvida do outro. A segunda dessas definies parece exprimir o que Hume pensaque ocorre em nossas mentes quando temos ou formamos uma crena causal; aprimeira, o que efetivamente acreditamos. Elas no podem ser ambas corretas. A primeira o que acreditamos, a segunda explica a crena e exprime, talvez, tudo oque nos lcito acreditar.

    At o sculo XX, a maioria dos comentadores de Hume tomavam-no como, seja a srio, seja frivolamente, um completo ctico acerca de crenas causais e indutivas (eacerca de muitas outras coisas mais). Hume, entretanto, expe "regras para julgarcausas e efeitos", assume claramente como verdadeiro que todo evento tem uma causa(ao insistir, por exemplo que os eventos frutos do acaso so, na realidade, todoseles efeitos de causas desconhecidas) e, claro, entrega-se, ele prprio, a umbom nmero de inferncias indutivas ao aplicar o "mtodo experimental" ao funcionamento da mente humana.

    Todos os raciocnios referentes a questes de fato parecem fundar-se na relao de causae efeito. somente por meio dessa relao

    Pg. 25

    que podemos ir alm da evidncia de nossa memria e nossos sentidos. Se perguntssemos aum homem por que ele acredita em uma questo de fato qualquer queno est presente - por exemplo, que seu amigo acha-se no interior, ou na Frana, elenos daria uma razo, e essa razo seria algum outro fato, como uma carta recebidadesse amigo, ou o conhecimento de seus anteriores compromissos e resolues. Um homem que encontre um relgio ou qualquer outra mquina em uma ilha deserta concluirque homens estiveram anteriormente nessa ilha. Todos os nossos raciocnios relativos a fatos so da mesma natureza. E aqui se supe invariavelmente que h uma conexoentre o fato presente e o fato que dele se infere. Se nada houvesse que os ligasse, a inferncia seria completamente incerta. (E 26-27)

    Assim, se quisermos nos convencer quanto natureza dessa evidncia que nos d garantias sobre questes de fato, devemos investigar como chegamos ao conhecimentode causas e efeitos.Arrisco-me a afirmar, a ttulo de uma proposta geral que no admite excees, que o conhecimento dessa relao no em nenhum caso alcanado por meio de raciocniosa priori, mas provm inteiramente da experincia, quando descobrimos que certos objetos particulares acham-se constantemente conjugados uns aos outros. Apresente-seum objeto a um homem dotado das mais poderosas capacidades naturais de raciocnio

    e percepo - se esse objeto for algo de inteiramente novo para ele, mesmo o examemais minucioso de suas qualidades sensveis no lhe permitir descobrir nenhuma de suas causas ou efeitos. Ado, ainda que supusssemos que suas faculdades racionais

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    12/32

    estivessem inteiramente perfeitas desde o incio, no poderia ter inferido da fluidez e transparncia da gua que ela o sufocaria, nem da luminosidade e calor dofogo que este iria consumi-lo. Nenhum objeto revela jamais, pelas qualidades queaparecem aos sentidos, nem as causas que o produziram, nem os efeitos que deleproviro;e nossa razo tampouco capaz de extrair, sem auxlio da experincia, qualquer conclusoreferente existncia efetiva de coisas ou questes de fato. (E 27)

    Lancemos, portanto nosso olhar sobre dois objetos quaisquer, que chamaremos causa e efeito, e viremo-los de todos os lados, a fim de encontrar aquela impresso que produz uma idia de to

    Pg. 26

    grandiosa importncia. Percebo, primeira vista, que no devo procurar por ela em nenhuma das qualidades particulares dos objetos, dado que, para qualquer uma dessasqualidades que eu determine, encontro algum objeto que no a possui e, contudo, c

    ai sob a denominao causa ou efeito. E no h, na verdade, nada que exista, seja internamente ou externamente, que no deva ser considerado ou uma causa ou um efeito, embora seja claro que no h nenhuma qualidade singular que pertena universalmente a todos os seres e lhes d o direito a essa denominao.Assim, a idia de causao deve derivar-se de alguma relao entre objetos, e essa reladevemos agora esforar-nos por descobrir. Vejo, em primeiro lugar, que quaisquerobjetos considerados como causas ou efeitos so contguos, e que nada pode operar emum tempo ou lugar distante, ainda que minimamente, do tempo ou lugar em que existe. Embora objetos distantes possam algumas vezes parecer atuar uns sobre os outros, o exame comumente revela que esto ligados por uma cadeia decausas que so contguas umas s outras e aos objetos distantes; e quando em algum caso particular no conseguimos descobrir essa conexo, presumimos ainda assimque ela existe. Podemos, portanto, considerar a relao de contigidade como essencial

    para a relao de causao, ou pelo menos podemos sup-la assim de acordocom a opinio geral, at que possamos encontrar uma ocasio mais apropriada para esclarecer essa questo, examinando quais objetos so ou no so suscetveis dejustaposio e conjuno.A segunda relao que observo como essencial para causas e efeitos no to universalmente admitida, estando sujeita a alguma controvrsia. Ela a de prioridadeno tempo da causa em relao ao efeito. Alguns alegam que no absolutamente necessrio que uma causa deva preceder seu efeito, mas que qualquer objeto ou ao,no exato primeiro instante de sua existncia, pode exercer sua qualidade produtivae dar origem a outro objeto ou ao perfeitamente contemporneos consigo mesmo.Mas, alm do - ato de que a experincia na maioria dos casos parece contradizer essaopinio, podemos estabelecer a relao de prioridade por uma espcie de infernciaou raciocnio. um principio estabelecido tanto em filosofia natural quanto em filosofia moral que um objeto que exista por um certo tempo em sua plena perfeiosem produzir um outro, no sua nica causa, mas assistido por algum outro principioque o desloca de seu estado de inatividade e faz exercer aquela energia quesecretamente possua. Ora, se alguma causa for perfeitamente contempornea a seu efeito, certo,

    Pg. 27

    de acordo com esse princpio, que todos eles devem s-lo, dado que qualquer um delesque retarde sua operao por um nico momento, no se exerce naquele exato

    tempo individual no qual poderia ter operado, e portanto no propriamente causa. Aconseqncia disso seria nada menos que a destruio daquela sucesso de causasque observamos no mundo, e, na verdade, a completa aniquilao do tempo. Pois se uma

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    13/32

    causa fosse contempornea com seu efeito, e esse efeito com seu efeito, e assimpor diante, claro que no poderia haver nenhuma sucesso, e todos os objetos deveriam ser coexistentes.Se este argumento parecer satisfatrio, est tudo bem. Se no, peo ao leitor permitir-me a mesma liberdade, que usei no caso anterior, de supor que as coisas soassim. Pois ele descobrir que o assunto no tem muita importncia.Tendo assim descoberto, ou assumido, que as duas relaes de contigidade e sucesso so e

    ssenciais para a existncia de causas e efeitos, sinto que cheguei a umlimite e que a considerao de qualquer caso singular de causa e efeito no me permiteavanar mais. O movimento de um corpo tomado, na ocasio do impulso, comoa causa do movimento de outro. Ao considerarmos com a mxima ateno esses objetos, vemos apenas que o primeiro corpo se aproxima do outro, e que seu movimento precedeo movimento do outro, embora sem nenhum intervalo perceptvel. intil atormentarmo-nos com pensamentos e reflexes adicionais sobre o assunto. No podemos ir maislonge a partir da considerao deste caso particular. (T 75-77)

    Temos, portanto de proceder como aqueles que, estando procura de alguma coisa oculta e no a encontrando no lugar em que esperavam, vagueiam por todas as reas vizi

    nhas, sem nenhum pIano ou propsito definido, na esperana de que sua boa sorte v finalmente gui-los para o que procuram. necessrio que abandonemos a inspeo direta dessaquesto concernente natureza da conexo necessria que participa de nossa idia de causa e efeito, e esforcemo-nos para descobrir algumas outras questes cujo exame podetalvez proporcionar uma pista para esclarecer a presente dificuldade. Dessas questes, h duas que passarei a examinar, a saber:Primeiro, por que razo declaramos necessrio que tudo cuja existncia tem um comeo deva ter tambm uma causa?Segundo, por que conclumos que tais e tais causas particulares devam necessariamente ter tais e tais efeitos particulares, e qual

    Pg. 28

    a natureza dessa inferncia que fazemos das primeiras aos segundos, e da crena quenela depositamos? (T 77-8)

    No se pode demonstrar que necessria uma causa para cada nova existncia ou nova modificao de existncia sem mostrar, ao mesmo tempo, a impossibilidade de quealguma coisa possa comear a existir sem algum princpio produtivo; e caso esta ltimaproposio no possa ser provada, no poderemos esperar conseguir provar aprimeira. Ora, possvel convencermo-nos de que essa ltima proposio totalmente incapde receber uma prova demonstrativa observando que, j que todas as idiasdistintas so separveis umas das outras e j que as idias de causa e efeito so evidentemente distintas, fcil para ns conceber um objeto qualquer como inexistentenesse momento e existente no momento seguinte sem juntar-lhe a idia distinta de uma causa ou princpio produtivo. Assim, a separao entre a idia de uma causae a de um incio de existncia claramente possvel para a imaginao, e, conseqentementseparao real desses objetos possvel medida que no implicacontradio nem absurdo, e , portanto incapaz de ser refutada por qualquer raciocnio apartir de meras idias, sem o que impossvel demonstrar a necessidadede uma causa. (T 79-80)

    S a experincia, portanto, permite-nos inferir a existncia de um objeto a partir daexistncia de um outro. A natureza da experincia esta: lembramo-nos de terobservado freqentes exemplos da existncia de uma espcie de objetos, lembramo-nos tambm de que os indivduos de uma outra espcie de objetos sempre os acompanharam

    e sempre existiram segundo uma ordem regular de contigidade e sucesso com relao a eles. Lembramo-nos assim de ter visto essa espcie de objeto que denominamoschama, e de ter sentido essa espcie de sensao que denominamos calor. Temos igualmen

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    14/32

    te a lembrana da constante conjuno desses objetos em todos os casos passados.E, sem cerimnias, chamamos em causa a um efeito a outro, e, da existncia de um, inferimos a existncia do outro. Em todos os casos que nos instruem sobre a conjunode causas e efeitos particulares, tanto umas como outros foram percebidos pelossentidos e lembrados, mas nos casos em que raciocinamos acerca deles, apenas um percebido ou lembrado, sendo o outro suprido em conformidade com nossa experinciapassada.

    Pg. 29

    Avanando dessa maneira, descobrimos insensivelmente uma nova relao entre causa e efeito l onde menos a espervamos, e enquanto estvamos inteiramente ocupados com outroassunto. Essa relao sua conjuno constante. A contigidade e a sucesso no so sufipara fazer-nos julgar que dois objetos quaisquer so causa e efeito, a menos que percebamos que essas duas relaes so preservadas em vrios casos. Vemos agora a vantagem de ter abandonado o exame direto dessa relao para descobrir a natureza daquela conexo necessria, que forma uma parte to essencial dela. (T 86-7)

    Tendo assim explicado o modo pelo qual raciocinamos para alm de nossas impresses imediatas e conclumos que tais e tais causas particulares devem ter tido tais e tais efeitos particulares, devemos agora retroceder sobre nossos passos para examinar a questo que primeiramente nos ocorreu e que abandonamos pelo caminho, a saber: Qual nossa idia de necessidade quando dizemos que dois objetos esto necessariamente conectados um ao outro? Sobre esse ponto repito o que j tive freqentemente ocasio de observar: que, como no temos nenhuma idia que no seja derivada de uma impresso, devemos encontrar alguma impresso que d origem a essa idia de necessidade.(T 155)

    [Devemos] repetir para ns mesmos que a simples observao de dois objetos ou aes quaisquer, por mais relacionados que sejam, jamais nos d qualquer idia de poder ou de um

    a conexo entre eles; que essa idia surge da repetio de sua unio; que a repetio nemla nem causa coisa alguma nos objetos, mas tem uma influncia apenas sobre a mente, pela transio habitual que produz; que essa transio habitual , portanto, o mesmo queo poder ou a necessidade, que so conseqentemente qualidades das percepes, no dos objetos, e so sentidas internamente pela alma, no percebidas externamente nos corpos.(T 166)

    Podemos definir uma causa como "Um objeto precedente e contguo a outro, quando todos os objetos semelhantes ao primeiro exibem essas mesmas relaes de precednciae contigidade com os objetos semelhantes ao segundo". Se essa definio for julgada imperfeita porque recorre a objetos estranhos causa, podemos substitu-Iapor esta outra: "Uma causa um objeto precedente e contguo a outro, e to unido a este que a idia de um leva a mente a formar a idia do outro, e a impressode um, a formar uma idia mais vvida do outro". (T 170)

    Pg. 30

    COISAS MATERIAIS

    Tendo argumentado que todas as crenas em questes de fato - parte nossa conscincia imediata de nossas presentes impresses e, presumivelmente, as lembranas destas - Fundadas em crenas causais, Hume tentou mostrar que essas crenas no esto justificadas.No esto justificadas pela experincia, dado que no temos nenhuma impresso de conexo

    cessria, nem pela razo, dado que o contraditrio de qualquer princpio causal ou indutivo geral, ou de qualquer particular crena causal, sempre possvel. Tudo o que se pode esperar fazer explicar como chegamos a ter as crenas causais que temos, e a f

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    15/32

    azer as previses s quais elas nos conduzem; a saber, pela experincia da conjuno constante que instila em ns o hbito da expectativa.A mesma estratgia bastante empregada em suas explicaes de nossa crena em um mundo externo de coisas materiais, e nossa crena em ns mesmos enquanto existnciascontinuadas. Ele abre uma discusso das coisas materiais distinguindo duas questes.Uma delas, a questo sobre "se h ou no h corpos" , ele diz, "ftil levantar".Contudo, "podemos muito bem perguntar que causas induzem-nos a acreditar na exis

    tncia de corpos?". Acreditar na existncia de corpos ou coisas materiais acreditarem algo que tem uma existncia distinta e continuada, alguma coisa que existe em ocasies nas quais no temos impresses dela e que, portanto, existe independentementede ns. Supor que os sentidos nos revelam a existncia de coisas despercebidas (ou de segmentos despercebidos de sua histria) uma patente contradio. E essacrena tampouco pode estar baseada em uma inferncia causal a partir de nossas impresses, que o que isso significa

    Pg. 31

    nessas circunstncias, como na "filosofia moderna" de Locke. No podemos experimentar uma conjuno constante entre D percebido e o impercebido, muito menos compararum com o outro para descobrir a semelhana (parcial) que Locke declara existir entre eles.A questo "se h ou no h corpos" resulta "ftil" em dois sentidos. Dado que nem a expericia nem a razo podem respond-la, no h resposta justificada que pudssemosoferecer questo. Mas Hume tambm diz que "a natureza no deixou isso [nossa] escolhae sem dvida considerou o assunto de demasiada importncia para ser confiadoa nossos incertos raciocnios e especulaes". No podemos justificar nossa crena em um mundo de coisas materiais distintas e continuadas, mas tampouco podemosevitar essa crena. O que podemos fazer explicar como ela se impe a ns. A explicao ride na constncia e coerncia exibidas pelas impresses dos sentidos.Levantamos da mesa para olhar pela janela e, quando retomamos, coisas exatamente

    iguais s coisas que antes apareciam sobre a mesa l aparecem mais uma vez (constncia).O fogo que ardia na lareira quando samos para fazer um longo telefonema est agorareduzido a brasas, do mesmo modo que outros fogos observados sem interrupoforam vistos extinguir-se progressivamente em outras ocasies (coerncia).A concepo ordinria, "vulgar", do assunto imagina ou "finge" percepes no percebidas pa preencher as lacunas uniformes ou graduais. Isso uma contradio,mas a mente irrefletida passa por cima disso. O "sistema dos filsofos" (isto , deLocke) ainda pior, dado que supe a existncia de coisas que no esto causalmenterelacionadas, nem se assemelham, s impresses apresentadas como testemunho de sua existncia.

    Podemos muito bem perguntar que causas induzem-nos a acreditar na existncia de corpos? Mas ftil perguntar se h ou no h corpos.

    Pg. 32

    Esse um ponto que devemos assumir como certo em todos os nossos raciocnios.O assunto, portanto, de nossa presente investigao, concerne s causas que nos induzem a acreditar na existncia dos corpos, e abro minha discusso desse tpicocom uma distino que primeira vista pode parecer suprflua, mas que contribuir em muito para o perfeito entendimento do que segue. Devemos examinar separadamenteestas duas questes que so comumente confundidas, a saber, por que atribumos uma existncia continuada a objetos, mesmo quando no esto presentes sensao;

    e por que supomos que eles tm uma existncia distinta da mente e da percepo? Sob estaltima rubrica compreendo sua situao bem como suas relaes, sua posioexterna bem como a independncia de sua existncia e operao. (T 186-7)

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    16/32

    evidente que nossos sentidos no nos oferecem suas impresses como imagens de algo distinto, ou independente, e externo; porque o que nos transmitem no nadamais que uma percepo singular, e nunca nos do a menor sugesto de algo alm dela. Uma percepo singular no pode jamais produzir a idia de uma dupla existncia,a no ser por influncia da razo ou da imaginao. Quando a mente olha alm do que lhe apece imediatamente, suas concluses no podem ser creditadas aos sentidos,e ela est certamente olhando alm quando infere, de uma percepo singular, uma existnci

    a dupla, e supe relaes de semelhana e causao entre elas. (T 189)

    Podemos observar, ento, que no nem em virtude do carter involuntrio de certas impresses, como comumente se supe, nem de sua grande fora e impetuosidade,que atribumos a elas uma realidade e uma existncia continuada que recusamos a outras que so voluntrias ou tnues. Pois evidente que nossas dores e prazeres,nossas paixes e afeces, que nunca supomos como existindo fora de nossa percepo, so tnvoluntrias quanto as impresses de figura e extenso, cor e som,que supomos serem entes permanentes. O calor de uma chama, quando moderado, tomado como existindo na prpria chama, mas a dor que ele causa ao nos aproximarmosno considerada como tendo qualquer existncia exceto na percepo.Tendo rejeitado essas opinies vulgares, devemos procurar alguma outra hiptese que

    nos permita descobrir quais so as qualidades peculiares de nossas percepesque nos fazem atribuir-lhes uma existncia distinta e continuada.

    Pg. 33

    Aps um breve exame, descobriremos que todos os objetos aos quais atribumos uma existncia continuada tm uma peculiar constncia, que os distingue das impressescuja existncia depende de nossas percepes. Estas montanhas, casas e rvores que caemagora sob meu olhar, sempre apareceram a mim na mesma ordem; e quando deixode v-Ias porque fechei os olhos ou voltei a cabea, verifico logo em seguida que elas retomam sem a menor alterao. Minha cama e minha mesa, meus livros e papis,

    apresentam-se da mesma maneira uniforme, e no se modificam com a interrupo de minhaviso ou percepo deles. O mesmo ocorre com todas as impresses cujos objetosso tomados como tendo uma existncia externa, e no ocorre com nenhuma outra impresso,seja branda ou violenta, voluntria ou involuntria.Essa constncia, entretanto, no to perfeita que no admita excees muito considerveipos muitas vezes mudam suas posies e qualidades, e, aps uma pequenaausncia ou interrupo, podem tomar-se dificilmente reconhecveis. Mas aqui se observaque, mesmo nessas mudanas, eles preservam uma coerncia, e mantm uma dependnciaregular uns dos outros, que o Fundamento de uma espcie de raciocnio a partir da causao e produz a opinio de sua existncia continuada. Quando retorno minhacmara aps uma ausncia de uma hora, no encontro minha lareira na mesma situao em quedeixei, mas j estou acostumado, em outras ocasies, a observar uma alteraosemelhante produzida em um perodo equivalente, quer eu esteja presente ou ausente, prximo ou distante. Esta coerncia em suas mudanas , portanto, uma das caractersticasdos objetos externos, assim como sua constncia. (r 194-5)

    Pg. 34

    O EU

    O eu, considerado como algo dotado de uma contnua ao longo do tempo, tambm vtima doestilo bidentado de ataque caracterstico de Hume. Sei que estou tendo agora cert

    as experincias e lembro-me de ter tido outras. Mas no tenho nenhuma impresso de umitem imutvel ao qual todas essas coisas pertenam. Dado que esse teria de ser um contedo inaltervel e invariante de minha conscincia, ele no poderia se fazer sentir, e

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    17/32

    teria o mesmo carter empiricamente evasivo que tem a existncia.De fato, argumenta Hume, sempre que olho mais atentamente para mim mesmo, tudo que encontro uma seqncia mais ou menos catica de percepes, impresses e idiasde sensao e de reflexo, sentimentos e pensamentos particulares.A razo, por sua vez, requer to pouco quanto a experincia essa suposio de um portadorpersistente de minha identidade atravs do tempo, um suporte ao qual inserissemminhas experincias. Cada experincia ou "percepo" uma existncia distinta, da qual n

    segue necessariamente a de nenhuma outra coisa. Esta , de todas asousadas eliminaes realizadas por Hume, a que os filsofos tm julgado a mais difcil deengolir. No est ele refutando a si prprio quando diz "de minha parte,quando entro no mais profundo disso que chamo eu mesmo, sempre tropeo em uma ou outra percepo particular?" Que essa coisa que est fazendo a entrada? J.S. Mille outros julgaram impossvel que uma simples srie pudesse ter conscincia de si mesmacomo uma srie. Contra isso se poderia argumentar que um estado presente deconscincia poderia conter, ou ser, uma reminiscncia de estados anteriores de conscincia, a ele de algum modo relacionados.

    Pg. 35

    E, na verdade, tem parecido a muitos, particularmente a Locke, que a memria, no sentido de uma lembrana pessoal direta, a relao que conecta um feixe temporalmenteespalhado de experincias ou estados mentais em um eu, mente ou pessoa, contnuo e singular. Hume rejeitou essa teoria, fiando-se no argumento de Butler de que,como Hume o expe, a memria no constitui a identidade pessoal, mas a descobre. No posso julgar que uma certa idia uma idia de memria e no de imaginaoa menos que j tenha descoberto primeiramente que a experincia supostamente lembrada era uma experincia minha.Hume permaneceu insatisfeito com a explicao que ele ofereceu no Tratado para a relao que une uma srie de experincias em um eu, a saber, que ela um compostode semelhana e causao. Talvez o argumento de Butler seja um pouco brusco demais. De

    cidir que alguma experincia passada minha e que a idia que tenho dela uma idia de memria no so duas coisas das quais a primeira deva preceder a segunda; parecem muito mais ser uma e a mesma coisa.Hume tem um longo e intrincado argumento sobre a imaterialidade da alma, uma tese de telogo que ele maldosamente assimila ao monismo de Espinosa. O argumento dependeda suposio de que a alma uma substncia imaterial. Mas a alma ou o eu, mesmo se no concebidos como uma substncia, mas como uma srie, podem ser tomados comono-materiais, como o prprio Hume parece fazer, e isso deixa aberta a possibilidadede sua sobrevivncia aps a morte do corpo. Ele retoma o problema em um atraenteensaio. Se nossas mentes so feitas de algum estofo espiritual, por que esse estofo no poderia compor diversas mentes, do mesmo modo que a matria entra na composio dediversos corpos? Alm disso, "a alma, se imortal, existia antes de nosso nascimento, e se essa existncia anterior nada teve a ver conosco, tampouco o ter a seguinte".H filsofos que imaginam que estamos a todo instante intimamente conscientes dissoque chamamos nosso eu; quesentimos

    Pg. 36

    sua existncia e sua continuidade de existncia, e que estamos certos, para alm de qualquer comprovao demonstrativa de sua perfeita identidade e simplicidade.

    A sensao mais forte, a mais impetuosa paixo, dizem eles, em vez de desviar-nos dessa concepo, apenas a firmam mais intensamente e fazem-nos considerar a influnciaque exercem sobre o eu, pela dor ou prazer que produzem. Buscar uma prova adicio

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    18/32

    nal disso seria enfraquecer sua evidncia, pois nenhuma prova pode ser derivada dealgum fato do qual estejamos to intimamente conscientes, e nem haveria nada de que pudssemos estar certos se vissemos a duvidar disso.Infelizmente, todas essas confiantes asseres so contrrias prpria experincia que da em seu favor, alm de no dispormos de qualquer idia do eu segundoa maneira aqui explicada, Pois de que impresso poderia essa idia ser derivada? imp

    ossvel responder a essa questo sem incorrer em patente absurdo e contradio,e, contudo, uma questo que deve necessariamente ser respondida se quisermos que aidia do eu aparea como clara e inteligvel. Deve haver uma impresso determinadapara dar origem a cada idia real; mas o eu, ou pessoa, no uma impresso determinada,mas aquilo a que nossas diversas impresses e idias supostamente tm umareferncia. Se h alguma impresso que d origem idia do eu, essa impresso deve contininvariavelmente a mesma ao longo de todo o curso de nossas vidas, poissupe-se que essa a maneira pela qual o eu existe. Mas no h nenhuma impresso que sejaconstante e invarivel. Dor e prazer, tristeza e alegria, paixes e sensaessucedem-se umas s outras e nunca existem todas ao mesmo tempo. Portanto, a idia doeu no pode ser derivada de nenhuma dessas impresses, nem de qualquer outra;e, conseqentemente, tal idia no existe. (T 251-2)

    Arrisco-me a afirmar que todas as demais pessoas nada mais so que um feixe ou coleo de diferentes percepes sucedendo-se umas s outras com inconcebvel rapidez,em perptuo fluxo e movimento. Nossos olhos no podem girar em suas rbitas sem que mudem nossas percepes. Nosso pensamento ainda mais varivel que a viso,e todos os outros sentidos e faculdades contribuem para essa mudana, no havendo umnico poder da alma que permanea inalteravelmente o mesmo sequer por um instante.A mente uma espcie de teatro no qual diversas percepes fazem sucessivamente sua apario, passam, repassam,

    Pg. 37

    esvaem-se e misturam-se em uma infinita variedade de posturas e situaes. Nela no h,propriamente, nem simplicidade em um mesmo momento nem identidade em momentosdiversos, seja qual for a propenso natural que tivermos para imaginar essa simplicidade e identidade. A comparao com o teatro no nos deve iludir: so as sucessivaspercepes, e s elas, que constituem a mente, e no temos a mais remota noo do lugar emue essas cenas so representadas nem dos materiais que entram em suacomposio. (T 252-3)

    Como apenas a memria nos informa da continuidade e extenso dessa sucesso de percepes,ela deve ser considerada, principalmente por essa razo, como a origemda identidade pessoal. Se no tivssemos memria, no teramos qualquer noo de causao,nseqentemente, dessa cadeia de causas e efeitos que constituinosso eu ou nossa pessoa. Mas uma vez que tenhamos adquirido essa noo de causao a partir da memria, podemos estender essa mesma cadeia de causas, e conseqentementea identidade de nossas pessoas, para alm de nossa memria, e podemos compreender ocasies, circunstncias e aes que esquecemos completamente, mas supomos, emgeral, que existiram. Pois quo poucas, dentre nossas aes, so aquelas das quais temosalguma lembrana? Quem pode dizer-me, por exemplo, quais foram seus pensamentose aes em 10 de janeiro de 1715, 11 de maro de 1719 e 3 de agosto de 1733? Ou ser queele vai afirmar que, dado que esqueceu-se totalmente dos incidentes ocorridosnesses dias, seu eu presente no a mesma pessoa que o eu daquela poca, subvertendocom isso todas as concepes mais bem estabelecidas sobre identidade pessoal?Nesta perspectiva, portanto, no bem que a memria produza a identidade pessoal, massim que a descobre, ao mostrar-nos a relao de causa e efeito entre nossas

    diferentes percepes. Cabe queles que afirmam que a memria produz inteiramente nossaidentidade pessoal explicar como podemos estender desse modo nossa identidadepara alm de nossa memria. (T 261-2)

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    19/32

    Pg. 38

    CETICISMO

    Como j mencionado. Hume foi tradicionalmente, como um ctico extremado, algum que solapou as pretenses de validade de todo o corpo de nossas crenas no mundoexterior, no eu e na causao. Mais recentemente tem ganhado terreno a idia de que ele estabeleceu ceticamente os limites da justificao racional, que ele voltoua razo sobre si mesma para mostrar que essas crenas so no obstante naturais, instintivas e inevitveis. Ao explicar de fato, a ter as crenas que temos, elemostra que estamos constitudos de tal modo que no nos possvel evitar ter essas crenas. Afinal, a menos que houvesse algo a dizer em favor delas, que pensaele estar fazendo ao explic-las, dado que explicao consiste em subsumir coisas a leis causais?

    A interpretao de Hume dificultada por uma espcie de oscilao entre duas posturas que

    le assume ao contemplar os resultados de sua prpria investigao. Emuma delas, ele se mostra deprimido e sem esperana diante desses resultados, sem saber para onde voltar-se. Em outra, mais bem-humorada, ele observa que, to prontomergulhamos novamente em nossa vida quotidiana, os danos infligidos pela razo a si mesma desvanecem-se e retomamos confortavelmente a nossos hbitos de crena costumeirose naturais. No devemos procurar algum suporte externo para esses hbitos, essa umamisso fadada a um deprimente fracasso. Devemos perseverar neles com moderao,conscientes de que no h certeza fora do reino das relaes abstratas de idias, ajustando-os perifericamente pela adeso aos "princpios estabelecidos do entendimento"e a recusa s formas incultas e supersticiosas de formao de crenas.

    Pg. 39

    Filsofos analticos do sculo XX (antecipados por J. S. Mill) tomaram os aspectos denossa experincia que Hume usou para explicar nossas crenas acerca de objetos, euse causas como - apesar das aparncias - caractersticas definidoras do que essas crenas realmente significam. Esses filsofos definiram objetos como sistemas de impresses, reais e possveis, cuja estrutura indicada pelos fragmentos constantes e coerentes efetivamente experimentados (fenomenalismo); os eus como uma srie inter-relacionada de eventos mentais (a teoria do "feixe") , e a causalidade como sucesso regular (teoria da regularidade). Isso menos chocante, enquanto ceticismo, que aposio de Hume. Mas essa estratgia deixa-nos com o que parece ser um resduo significativamente reduzido daquilo em que originalmente acreditvamos.E o que mais: no caso de objetos e causas, dado que a crena nessas entidades, mesmo nesta forma atenuada, uma inferncia aberta e generalizada a partir de umaevidncia parcial, ela permanece exposta dvida quanto induo.Tem sido sugerido que Hume estava realmente mais interessado nos tpicos prticos, concretos, dos ltimos livros do Tratado do que na filosofia terica do LivroI; mais interessado em moral, poltica e psicologia do que na teoria do conhecimento. Como exibio pirotcnica dos limites de nossas mentes enquanto fonte de conhecimentoseguro, seu propsito era neutralizar o dogmatismo naqueles domnios de crena em queas paixes tinham forte participao.

    Essa dvida ctica, tanto com respeito razo como aos sentidos, uma doena que nunca pe ser radicalmente curada mas sempre ir acometer-nos a cada momento,por mais que a expulsemos e julguemos, s vezes, estar inteiramente livres dela. No

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    20/32

    possvel defender, em nenhum sistema, nem nosso entendimento nem nossos sentidos,e apenas os desmascaramos ainda mais quando tentamos assim justific-los. Visto que a dvida ctica surge naturalmente de uma reflexo profunda e intensa sobre essesassuntos, ela aumenta cada vez mais medida que levamos mais longe nossas reflexes, quer em oposio, quer em conformidade

    Pg. 40

    com ela. S a negligncia e a desateno podem prover-nos de algum remdio. Por essa razoconfio neles inteiramente e tomo como certo, seja qual for a opiniodo leitor no momento presente, que daqui a uma hora ele estar persuadido tanto deque h um mundo externo como um interno. (T 218)

    A intensa contemplao dessas mltiplas contradies e imperfeies na razo humana tanto-me e inflamou meu crebro que estou pronto a rejeitar toda crena e raciocnio, e no posso considerar nenhuma opinio como mais provvel ou plausvel que qualquer outra. On

    de estou eu, ou o que sou? De que causas derivo minha existncia e a que condio ireiretornar? De quem devo solicitar favores, e de quem devo temer a clera? Que seres me circundam? Quem posso de algum modo influenciar, ou pode de algum modo influenciar-me? Fico perplexo com todas essas questes e comeo a sentir-me na mais deplorvel das condies concebveis, envolto na mais profunda escurido e totalmente privadodo uso de todos os membros e faculdades.Mas ocorre felizmente que, sendo a razo incapaz de dissipar essas nuvens, a prpriaNatureza basta para esse propsito e cura-me dessa tristeza e delrio filosficos,quer relaxando essa inclinao da mente, quer por meio de alguma ocupao e impresso vvide meus sentidos que obliteram todas essas quimeras. Fao minha refeio,jogo uma partida de gamo, converso e divirto-me com meus amigos, e quando, aps umadistrao de trs ou quatro horas, retorno a essas especulaes, elas me parecem to friae foradas, e ridculas, que no me animo a penetrar nelas nOVamente. (T 268-9)

    Pag. 41

    M0RALIDADE E AS PAIXES

    Hume dedicou s paixes o segundo dos trs livros do Tratado. Nisto ele estava seguindo o exemplo de seus grandes predecessores sistemticos, Descartes, Hobbes e Espinosa. Mas enquanto o procedimento destes era analtico, quase algbrico, um trabalho de classificao de sentimentos e emoes seguido de uma definio do conjunto deles em ters de itens elementares como prazer, dor e desejo, o de Hume era mais descritivo,e mais explicativo do ponto de vista psicolgico. Embora cheia deidias brilhantes, sua exposio em geral aborrecida e tediosa; uma balbrdia de especulao associacionista, que alguns insights luminosos aliviam ocasionalmente.Ela nunca provocou o mesmo interesse e discusso que foram estimulados por seus trabalhos sobre o conhecimento e a moralidade.H, no obstante, trs coisas importantes nessa exposio. A primeira um conjunto de disnes amplas e gerais no campo que ela cobre. As paixes so divididasem violentas e calmas (o que mostra que ele no entende por "paixo" o mesmo que ns entendemos, a saber, uma emoo violenta), em diretas (isto , naturais ou instintivas)e indiretas, e em fortes e fracas. Uma paixo calma (como a prudncia) pode superaruma paixo violenta (como a luxria) e mostrar-se, assim, como mais forte queesta. Em segundo lugar, h um tratamento interessante e influente do problema da l

    iberdade da vontade. O terceiro ponto, de maior importncia para a subseqenteteoria da moralidade, sua insistncia de que a razo "inerte", que ela no pode nunca,por si s e sem o auxlio da paixo, mover-nos ao.

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    21/32

    A aceitao por Hume na prtica, apesar de todas as suas dvidas tericas, da lei da causauniversal, indicada por

    Pg. 42

    sua afirmao de que nossas aes so causadas por nossas paixes, da mesma forma e com asma abrangncia que eventos naturais so o produto de causas naturais.Isso exclui a "liberdade da indiferena". Mas a inexistncia de aes imotivadas no algque nos deva preocupar muito. comum sentirmo-nos livres em nossas aes,e isso ocorre porque algumas vezes agimos sem coero ou constrangimento, isto , agimos de acordo com nossos desejos. Esse o tipo de liberdade a que devemos darateno, pois s razovel atribuir-nos responsabilidade por aes que tivermos causado,sero suscetveis das sanes de louvor ou repreenso, recompensaou punio.Hume proclama o carter inerte da razo em sua notvel declarao "a razo , e s deve sescrava das paixes". "S deve ser" um floreio retrico irrelevante.O mesmo vale para "escrava", que deve ser entendida como "serve como instrumento

    para a satisfao de", bem-como "paixo", sentido que hoje damos palavra. Convicesmorais movem-nos ao; a razo, sozinha, no capaz de faz-lo; por tanto, convices mso produto da razo. Um bom nmero de outros argumentos, bastanteelaborados e no muito persuasivos, so oferecidos para essa concluso. Mas h um importante argumento de que ele dispe para mostrar que a moralidade de uma aono uma questo factual. Tomemos qualquer ao considerada viciosa; por mais atentamenteque a examinemos jamais encontraremos vcio nela. Muito disso est presenteem sua afirmao de que a passagem do para o deve, que se acha por toda parte no discurso moral, deve ser explicada ou justificada.A origem da moralidade nas paixes a simpatia, a inclinao natural de agradarmo-nos com a felicidade dos outros e sentirmos desconforto com seu sofrimento. Issoexplica, associativamente, o impulso natural da benevolncia. O interesse prprio tambm natural ou instintivo, mas no nossa forma exclusiva de motivao. A

    simpatia subjaz prtica da contemplao desinteressada de aes e caracteres das

    Pg. 43

    pessoas. Quando o resultado dessa contemplao agradvel, temos a aprovao moral; quanddesagradvel, a desaprovao. O que , nos caracteres e aes das pessoas,que causa essas reaes emocionais (que, sendo emoes, no so nem verdadeiras nem falsasA resposta de Hume que reagimos com aprovao ao que til ou agradvelao agente ou a outros. Mas qualidades teis ou agradveis ao agente parecem antes virtudes naturais que morais; dotes de carter como a prudncia ou a coragem, maisque virtudes em sentido estrito. Mas Hume no se prende a essa frmula demasiado abrangente. Na maior parte das vezes ele explica as virtudes por sua contribuio utilidade da sociedade em geral.S um pequeno passo separa essa posio - um passo que Hume, entretanto, no d - da tesede que a aprovao moral no apenas explicada pela utilidade daquiloa que conferida, mas implica e justificada pela utilidade do que se aprova. Issoabriria um espao - que Hume no abre - para corrigir como errneas as aprovaescaso se baseiem em falsos julgamentos de utilidade. Ele parece no pr em dvida que autilidade, o "bem da sociedade", uma simples questo de fato. Essa claro, a posio dos utilitaristas propriamente ditos, Bentham, sobretudo, e, com algumas restries, John Stuart Mill.Hume reconhece que nosso instinto natural de benevolncia, embora um princpio independente de ao ao lado do interesse prprio, no tem um alcance to longo, e

    tende a prevalecer apenas em nossas relaes com aqueles que nos so prximos. Mas, alm da virtude natural da benevolncia, h tambm a virtude artificial da justia.Na sociedade humana dependemos crucialmente uns dos outros, muito mais do que ou

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    22/32

    tros animais que dependem mais de si prprios. Pela cooperao, porm, podemos aumentarnossa fora, pela diviso do trabalho nossas habilidades, e pela ajuda mtua nossa segurana contra os infortnios. Para estabelecer esses arranjos desejveis, criamosinstituies tais como o cumprimento das promessas, a propriedade e o Estado.

    Pg. 44

    Os deveres de respeito pela propriedade, fidelidade e obedincia produzem conseqncias benficas apenas se recebem uma adeso geral. Um ato isolado de benevolnciapode produzir, por si s, um bem, mas ftil respeitar uma propriedade ou obedecer aum Estado que ningum mais respeita ou obedece. Hume, de maneira geral, identificaa justia com o respeito propriedade. A escassez dos bens em relao a fora do desejoque as pessoas tm por eles leva ao conflito. Regras definidas para a aquisio, possee transferncia de propriedade so necessrias para a paz social. As regras da justiaso teis apenas como um sistema; deve-se, portanto, obedecer s regras mesmo quando sua aplicao produz excepcionalmente um mau resultado.A justia e as outras virtudes artificiais no tm um respaldo direto nas paixes. Todos

    ns temos um forte motivo, de natureza auto-interessada, para que sejam respeitadas de forma geral auto-interessada para uma aprovao desinteressada, moral, dessasvirtudes enquanto benficas sociedade; um efeito de simpatia.

    Provarei em primeiro lugar pela experincia que nossas aes mantm uma constante unio com nossos motivos, temperamento e circunstncias, antes de considerar as infernciasque retiramos disso.Para isso, uma apreciao muito geral e superficial do curso comum dos afazeres humanos j ser suficiente. No h perspectiva sob a qual o examinemos que no confirme esse princpio. Quer consideremos a humanidade de acordo com diferenas de sexo, idade, formas de governo, condies ou mtodos de educao, so discernveis a mesma uniformidade eesma operao regular dos princpios naturais. Causas semelhantes continuam a produzirefeitos semelhantes, da mesma maneira que na ao mtua dos elementos e poderes da na

    tureza. (T 401)

    Depois de termos realizado uma ao qualquer, ainda que admitamos que fomos influenciados por motivos e opinies particulares, difcil persuadir-nos que fomosgovernados pela necessidade,

    Pg. 45

    e que era absolutamente impossvel para ns ter agido de outro modo, pois a idia denecessidade parece implicar alguma Fora, violncia, e coero que nosentimos na ocasio. Poucos so capazes de distinguir entre a liberdade da espontaneidade, como chamada pelos escolsticos, e a liberdade da indiferena; entre a liberdade que se ope violncia e a que significa uma negao da necessidade e das causas. A primeira , mesmo, o sentido mais comum da palavra, e como a nica espcie de liberdadeque nos interessa preservar, nossos pensamentos tm-se voltado principalmente para ela, e tm-na quase universalmente confundido com a segunda.(T 410)

    Os homens no so censurados pelas aes que realizam na ignorncia ou de forma casual, quaisquer que possam ser suas conseqncias. Qual a razo disso, a noser o fato de que os princpios dessas aes so apenas momentneos, e esgotam-se com as prprias aes? Os homens so menos censurados pelas aes que realizam de forma abrupta em premeditao do que por aquelas que procedem da deliberao. E por qual razo, a no ser

    orque um temperamento precipitado, embora seja uma causa ou princpio constante namente, opera apenas por intervalos e no contamina o carter como um todo? Alm disso, o arrependimento apaga todos os crimes, se acompanhado por uma reforma da vida

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    23/32

    e dos costumes. Como explicar isso, a no ser declarando que as aes tornam uma pessoa criminosa meramente por provarem a existncia de princpios criminosos na mente;e quando uma alterao desses princpios faz com que deixem de ser provas legtimas, elas deixam igualmente de ser criminosas?Mas, amenos que se admita a doutrina da necessidade, elas nunca teriam sido provas legtimas, e, conseqentemente, nunca teriam sido criminosas. (E 98-9)

    Nada mais usual em filosofia, e mesmo na vida comum, do que falar sobre o combate entre a paixo e a razo, dar preferncia razo e asseverar que os homens sso virtuosos na medida em que se conformem a seus ditames. Toda criatura racional, diz-se, est obrigada a regular suas aes pela razo, e se algum outro motivoou princpio desafia a direo de sua conduta, ela deve opor-se a ele, at estar inteiramente submetida ou pelo menos posta de acordo com aquele princpio superior.

    Pg. 46

    sobre este modo de pensar que a maior parte da filosofia moral, antiga e moderna, parece estar fundada... A fim de mostrar a falcia de toda essa filosofia, vou p

    rocurar provar, primeiro, que a razo, por si s, no pode jamais ser um motivo para qualquer ao voluntria; e segundo, que ela jamais pode fazer frente paixo no direcionamento da vontade. (T 413)

    bvio que quando algum objeto nos traz a expectativa de dor ou prazer, sentimos emconseqncia uma emoo de averso ou propenso, e somos levados a evitar oua buscar aquilo que nos trar esse desconforto ou essa satisfao. tambm bvio que essamoo no se detm aqui, mas, fazendo-nos voltar os olhos para todosos lados, inclui todos os objetos que esto conectados com o objeto original pelarelao de causa e efeito. Aqui, ento, entra em cena o raciocnio, para descobriressa relao; e conforme varie nosso raciocnio, nossas aes recebem uma variao subseqMas evidente neste caso que o impulso no provm da razo, mas apenas dirigido por ela. da expectativa de dor ou prazer que surge a averso ou pr

    openso em relao a qualquer objeto, e essas emoes se estendem s causase efeitos desse objeto, tal como nos so indicados pela razo e experincia. No teramoso mnimo interesse em saber que certos objetos so causas e outros soefeitos, se tanto as causas como os efeitos fossem indiferentes. Quando os prprios objetos no nos afetam, sua conexo no pode dar-Ihes jamais alguma influncia,e claro que, como a razo nada mais que a descoberta dessa conexo, no pode ser por seu intermdio que os objetos so capazes de nos afetar.Dado que a razo, sozinha, no pode jamais produzir nenhuma ao ou dar origem a uma volio, infiro que essa mesma faculdade incapaz de evitar a volio ou dedisputar a preferncia com alguma paixo ou emoo... Parece, assim, que o princpio que se ope a nossa paixo no pode ser o mesmo que a razo, e assim chamadoapenas de maneira imprpria. No falamos de forma rigorosa e filosfica quando nos referimos ao combate entre a razo e a paixo. A razo , e s deve ser, a escravadas paixes, e no pode almejar outro ofcio que o de servi-Ias e obedec-las. (T414-5)

    Se a moralidade no tivesse naturalmente uma influncia sobre as paixes e aes humanas,seria vo empregar tanto esforo

    Pg. 47

    para inculc-la, e nada haveria de mais infrutfero que a multido de regras e preceitos que abundam em todos os moralistas. comum dividir a filosofia em filosofiaespeculativa e filosofia prtica, e como a moralidade sempre includa nesta ltima div

    iso, supe-se que ela influencie nossas paixes e aes e que v alm dosjulgamentos calmos e indolentes do entendimento. E isso se confirma pela experincia ordinria, que nos informa que os homens so muitas vezes governados por seus

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    24/32

    deveres, dissuadidos de algumas aes pela opinio de injustia e impelidos a outras pela de obrigao.Dado que a moral, portanto, tem uma influncia nas aes e afeces, segue-se que ela node ser derivada da razo, e isso porque a razo, por si s, como j provamos,no pode ter uma tal influncia. A moral excita paixes, e produz ou evita aes. A razo,or si s, completamente impotente a esse respeito. As regras da moralidade,portanto, no so concluses de nossa razo. (T 457)

    Mas pode haver qualquer dificuldade em provar que o vcio e a virtude so questes defato, cuja existncia podemos inferir pela razo? Tome-se qualquer ao consideradaviciosa; um assassinato deliberado, por exemplo. Examinemo-lo de todos os ngulose vejamos se podemos encontrar qualquer fato ou existncia real que pudssemoschamar vcio. Seja como for que o consideremos, encontraremos apenas certas paixes,motivos, volies e pensamentos. No h, no caso, nenhum outro fato. O vcionos escapa inteiramente quando consideramos o objeto. Jamais poderemos encontr-loat que voltemos nossa reflexo para nosso prprio peito, encontrando l um sentimentode desaprovao, que surge em ns perante essa ao. Eis aqui uma questo de fato, mas elabjeto do sentimento, no da razo. Ela jaz em ns mesmos, no no objeto.Assim, quando declaramos que alguma ao ou carter viciosos, no estamos dizendo nada a

    no ser que, pela constituio de nossa natureza, temos um sentimento oupercepo de aprovao diante deles. Vcio e virtude podem ser comparados, portanto, a sons, cores, calor e frio, os quais, de acordo com a moderna filosofia, noso qualidades no objeto mas percepes na mente; e essa descoberta em moral, tal comoa anterior em fsica, deve ser considerada um avano considervel das cinciasespeculativas; embora, como aquela, tenha pouca ou nenhuma influncia na prtica. Nada pode ser mais real, ou dizer-nos mais

    Pg. 48

    respeito que nossos prprios sentimentos de prazer e desconforto, e se esses forem

    favorveis virtude e desfavorveis ao vcio, no h mais o que requerer paraa regulao de nossa conduta e comportamento.No posso abster-me de acrescentar a estes raciocnios uma observao que se poderia, talvez, julgar de alguma importncia. Em todos os sistemas de moralidade queencontrei at agora, sempre observei que o autor procede durante algum tempo segundo a maneira ordinria de raciocnio, e estabelece a existncia de um Deus, oufaz observaes relativas aos assuntos humanos, quando de repente surpreendo-me observando que, ao invs das cpulas proposicionais usuais e no , no encontromais nenhuma proposio que no esteja articulada por meio de um deve ou um no deve. Amudana imperceptvel, mas , contudo, de mxima importncia. Pois comoesse deve, ou no deve, expressa uma nova relao ou afirmao, preciso que ele seja indado e explicado; e, ao mesmo tempo, que se d uma razo para aquilo queparece totalmente inconcebvel: como derivar essa nova relao de outras que so inteiramente diferentes dela. (T 468-9)

    Podemos observar que todas as circunstncias requeridas para sua operao [da simpatia] encontram-se na maior parte das virtudes, que tm, em sua maioria, uma tendnciaa produzir o bem da sociedade ou da pessoa que as possui. Se compararmos todas essas circunstncias, no teremos dvidas de que a simpatia a principal fonte dasdistines morais, especialmente quando refletimos que nenhuma objeo pode ser levantada contra essa hiptese, em um caso, sem que se estenda a todos os outroscasos. A aprovao que a justia recebe certamente no decorre de outra razo seno a de qela tem uma tendncia a produzir o bem pblico, e o bem pblico nos indiferente exceto na medida em que a simpatia nos torna interessados nele. Podemos supor o mesmo com relao a todas as outras virtudes que tendem igualmente

    ao bem pblico. Todas elas devem derivar o seu mrito de nossa simpatia para com aqueles que colhem delas alguma vantagem, assim como as virtudes que tm uma tendnciaao bem da pessoa que as possui derivam seu mrito de nossa simpatia para com essa

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    25/32

    pessoa. (T 618)

    A nica diferena entre as virtudes naturais e a justia reside em que o bem que resulta das primeiras decorre de cada ato singular e objeto de alguma paixo natural,ao passo que um ato

    Pg. 49

    isolado de justia, considerado em si mesmo, pode muitas vezes ser contrrio ao bempblico, e apenas a colaborao da humanidade em um esquema ou sistema geralde ao que vantajosa. Quando socorro pessoas em situao aflitiva, minha natural humanidade meu motivo, e terei promovido a felicidade de meus semelhantes atonde meu auxlio se estender. Mas se examinar- mos todos os litgios que so levados aqualquer tribunal de justia, descobriremos que, considerando cada caso isoladamente,seriam igualmente freqentes as situaes em que seria humanitrio decidir contrariamente s leis da justia quanto em conformidade com elas. Juzes tiram de um

    homem pobre para dar a um rico, conferem ao dissoluto o trabalho do industrioso,e pem nas mos dos malvolos os meios para prejudicar tanto a si mesmos quantoaos outros. O esquema da lei e da justia como um todo , contudo, vantajoso para asociedade, e foi com vistas a essa vantagem que os homens o estabeleceram pormeio de suas convenes arbitrrias. Uma vez estabelecido por meio dessas convenes, elenaturalmente acompanhado de um forte sentimento de moralidade, que nopode proceder seno de nossa simpatia para com os interesses da sociedade. No precisamos de nenhuma outra explicao para aquela estima que acompanha as virtudesnaturais que tm uma tendncia a produzir o bem pblico. (T 579-80)

    Para evitar ofensas, devo aqui observar que quando nego que a justia seja uma virtude natural, uso a palavra natural apenas enquanto oposta a artificial. Em outro

    sentido da palavra, como nenhum princpio da mente humana mais natural que um sentido de virtude, nenhuma virtude, conseqentemente, mais natural que a justia.A humanidade uma espcie inventiva, e quando uma inveno bvia e absolutamente necess, ela pode ser dita natural to apropriadamente quanto qualquer outracoisa que proceda imediatamente de princpios originais, sem a interveno do pensamento ou reflexo. Embora as regras da justia sejam artificiais, elas no soarbitrrias. E tampouco inapropriado cham-las Leis de Natureza, se por natural entendemos o que comum a uma espcie qualquer, ou mesmo se o limitarmos a designar o que inseparvel da espcie. (T 484)

    Em seu conjunto, portanto, temos de considerar essa distino entre justia e injustiacomo tendo dois diferentesfundamentos

    Pg. 50

    a saber: o do interesse, quando os homens observam que impossvel viver em sociedade sem refrear-se por certas regras; e o damoralidade, logo que esseinteresse observado e os homens passam a obter prazer da contemplao das aes que tendem paz da sociedade, e desconforto das que so contrrias a ela. aconveno e o artifcio voluntrios dos homens que levam o primeiro interesse a ter lugar, e nessa medida, portanto, as leis da justia devem ser consideradas artificiais

    .Depois que esse interesse foi estabelecido e reconhecido, o sentido da moralidade na observncia dessas regras segue-se naturalmente e por si mesmo, embora seja

  • 7/25/2019 David Hume Anthony Quinton

    26/32

    certo que ele aumentado por um novo artifcio, e que a instruo pblica pelos polticosa educao privada pelos pais contribuem para nos dar um sentido dehonra e de dever na regulao estrita de nossas aes com relao s propriedades dos dema(T 533-4)

    Pg. 51

    POLTICA

    Hume interessou-se de forma bastante isenta pela poltica de sua poca, bem como pelas generalidades mais amplas da teoria po