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Cora Diamond jogando fora a escada: como n‹o ler  o Tractatus  Paulo Margutti Faculdade Jesu’ta de Filosofia e Teologia I Ð Introdu•‹o Christian Mann, em um interessante trabalho, retrata Wittgenstein n‹o apenas como um dos maiores l—gicos do s. XX, mas tambŽm como um m’stico, que merece um lugar ao lado de pensadores como Eckhart ou dos grandes sistemas religioso-filos—ficos do oriente. 1  Embora n‹o adotem uma nfase semelhante, alguns de seus interlocutores, como Paul Engelmann e Maurice Drury, convergem na defesa da ideia de que o aspecto mais importante do pensamento de Wittgenstein est‡ na dimens‹o Žtico-religiosa. Os depoimentos de ambos, ligados a outras evidncias documentais, levam diversos intŽrpretes de Wittgenstein a fazer leituras semelhantes. Esse Ž o caso, p. ex., de Ray Monk, com a biografia Wittgenstein Ð O  Dever do Gnio, 2  de Cyrill Barrett, com o livro Wittgenstein on Ethics and Religious Belief , 3  de Isidoro Reguera, com o texto Cadernos de Guerra , 4  de Paul Shields, com o livro Logic and Sin in the Writings of Ludwig Wittgenstein, 5  de Iris Hermann, com o artigo  Ludwig Wittgensteins Schmerzbegriff im Dialog mit Fernando Pessoa, Franz Kafka und Clarice  Lispector , 6  de Daniel Hutto e John Lippitt, com o artigo  Making Sense of Nonsense:  Kierkegaard and Wittgenstein, 7  e de D. Z. Phillips, com o livro Wittgenstein and Religion. 8 . Esse Ž tambŽm o caso de nossa interpreta•‹o pessoal, registrada no livro  Inicia•‹o ao Silncio. 9  Em nossa leitura do Tractatus, concordamos integralmente com a tese de Mann. Ora, na dŽcada de 1990, surge uma linha de interpreta•‹o do Tractatus  bastante heterodoxa, segundo a qual Wittgenstein ali j‡ se revela um pensador fundamentalmente  Uma vers‹o mais curta desse texto e com o t’tulo ÒWittgenstein e Cora Diamond : a escada e o misticismo do TractatusÓ foi publicada em Cardoso, D. (Org.). Pensadores do SŽculo XX . S‹o Paulo: Edi•›es Loyola, 2012, p. 77-110. 1  Mann, Christian. Wovon man schweigen muss. Wittgenstein Ÿber die Grundlagen von Logik und Mathematik . Wien: Turia & Kant, 1994, Vorwort, p. IV. Dispon’vel em <http://www2.ipponsoft.de/diss.pdf>. Acesso em 11/06/2007. 2  Monk, R. Wittgenstein. O Dever do Gnio . S. Paulo: Cia. das Letras, 1995. 3  Barrett, C. Wittgenstein on Ethics and Religious Belief. Oxford: Blackwell, 1991. 4  Reguera, I. Cuadernos de Guerra. In: Wittgenstein, L. Diarios Secretos. Edici—n de Wilhelm Baum. Trad. de A. S. Pascual. Cuadernos de Guerra , de Isidoro Reguera. Madrid: Alianza Editorial, 1991, p. 161-231. 5  Shields, P. R. Logic and Sin in the Writings of Ludwig Wittgenstein . Chicago and London: The Un. Of Chicago Press, 1993. 6  Ver Hermann, Iris. Ludwig Wittgensteins Schmerzbegriff im Dialog mit Fernando Pessoa, Franz Kafka und Clarice Lispector. (Veršffentlicht in: Zeitschrift fŸr Linguistik und Literaturwissenschaft , September 1999, Jahrgang 29, Heft 115, Heft "Wittgenstein", S. 67-89). Dispon’vel em: <www.lili.uni-bielefeld.de/~zeitung/6witt.htm> Acesso em: 14 jan. 2004. 7  Hutto, D. D. & Lippit, J. Making Sense of Nonsense: Kierkegaard and Wittgenstein. In Proceedings of the Aristotelian Society , vol. xcviii, part III. 1998, p. 263-276. Dispon’vel em <www.herts.ac.uk/humanities/philosophy/Aris_Soc.html>. Acesso em 04/10/2005. 8  Phillips, D. Z. Wittgenstein and Religion. N. Yor,: St. MartinÕs Press, Inc., 1993. 9  Ver Margutti Pinto, P. R. Inicia•‹o ao Silncio Inicia•‹o ao Silncio. An‡lise do Tractatus. S. Paulo: Loyola, 1998.

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    Cora Diamond jogando fora a escada: como no lero Tractatus

    Paulo Margutti

    Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia

    I Introduo

    Christian Mann, em um interessante trabalho, retrata Wittgenstein no apenas como

    um dos maiores lgicos do s. XX, mas tambm como um mstico, que merece um lugar ao

    lado de pensadores como Eckhart ou dos grandes sistemas religioso-filosficos do oriente.1

    Embora no adotem uma nfase semelhante, alguns de seus interlocutores, como Paul

    Engelmann e Maurice Drury, convergem na defesa da ideia de que o aspecto mais importante

    do pensamento de Wittgenstein est na dimenso tico-religiosa. Os depoimentos de ambos,

    ligados a outras evidncias documentais, levam diversos intrpretes de Wittgenstein a fazer

    leituras semelhantes. Esse o caso, p. ex., de Ray Monk, com a biografia Wittgenstein O

    Dever do Gnio,2de Cyrill Barrett, com o livro Wittgenstein on Ethics and Religious Belief,3

    de Isidoro Reguera, com o texto Cadernos de Guerra,4de Paul Shields, com o livroLogic and

    Sin in the Writings of Ludwig Wittgenstein,5 de Iris Hermann, com o artigo Ludwig

    Wittgensteins Schmerzbegriff im Dialog mit Fernando Pessoa, Franz Kafka und ClariceLispector,6 de Daniel Hutto e John Lippitt, com o artigo Making Sense of Nonsense:

    Kierkegaard and Wittgenstein,7e de D. Z. Phillips, com o livro Wittgenstein and Religion.8.

    Esse tambm o caso de nossa interpretao pessoal, registrada no livro Iniciao ao

    Silncio.9Em nossa leitura do Tractatus, concordamos integralmente com a tese de Mann.

    Ora, na dcada de 1990, surge uma linha de interpretao do Tractatus bastante

    heterodoxa, segundo a qual Wittgenstein ali j se revela um pensador fundamentalmente

    Uma verso mais curta desse texto e com o ttulo Wittgenstein e Cora Diamond: a escada e o misticismo do Tractatus foi

    publicada em Cardoso, D. (Org.). Pensadores do Sculo XX. So Paulo: Edies Loyola, 2012, p. 77-110.1Mann, Christian. Wovon man schweigen muss. Wittgenstein ber die Grundlagen von Logik und Mathematik. Wien: Turia &

    Kant, 1994, Vorwort, p. IV. Disponvel em . Acesso em 11/06/2007.2Monk, R. Wittgenstein. O Dever do Gnio. S. Paulo: Cia. das Letras, 1995.

    3Barrett, C. Wittgenstein on Ethics and Religious Belief. Oxford: Blackwell, 1991.

    4Reguera, I. Cuadernos de Guerra. In:Wittgenstein, L. Diarios Secretos. Edicin de Wilhelm Baum. Trad. de A. S. Pascual.

    Cuadernos de Guerra, de Isidoro Reguera. Madrid: Alianza Editorial, 1991, p. 161-231.5Shields, P. R. Logic and Sin in the Writings of Ludwig Wittgenstein. Chicago and London: The Un. Of Chicago Press, 1993.

    6Ver Hermann, Iris. Ludwig Wittgensteins Schmerzbegriff im Dialog mit Fernando Pessoa, Franz Kafka und Clarice Lispector.

    (Verffentlicht in: Zeitschrift fr Linguistik und Literaturwissenschaft, September 1999, Jahrgang 29, Heft 115, Heft"Wittgenstein", S. 67-89). Disponvel em: Acesso em: 14 jan. 2004.7Hutto, D. D. & Lippit, J. Making Sense of Nonsense: Kierkegaard and Wittgenstein. InProceedings of the Aristotelian Society,

    vol. xcviii, part III. 1998, p. 263-276. Disponvel em . Acesso em04/10/2005.8Phillips, D. Z. Wittgenstein and Religion. N. Yor,: St. Martins Press, Inc., 1993.

    9

    Ver Margutti Pinto, P. R. Iniciao ao SilncioIniciao ao Silncio.Anlise do Tractatus. S. Paulo: Loyola, 1998.

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    teraputico que pretende libertar-nos das confuses em que nos envolvemos ao filosofar.

    Desse modo, a interpretao correta do Tractatus implicaria na rejeio, no final, da

    conhecida distino entre dizer e mostrar, o que traria, como consequncia inevitvel, a

    eliminao de qualquer forma de metafsica silenciosa. Essa interpretao foi inaugurada por

    Cora Diamond, em dois textos provocativos: Throwing away the ladder: how to read theTractatuseEthics, Imagination and the Method of Wittgensteins Tractatus.10Ela foi seguida

    nessa leitura por James Conant e diversos outros autores, cuja linha exegtica prope um

    Novo Wittgenstein.11Certamente esses intrpretes adotam perspectivas diferentes, mas o fio

    condutor das mesmas se encontra nos trabalhos germinais de Cora Diamond. E eles apontam

    para a completa dissoluo da dimenso tico-religiosa no pensamento de Wittgenstein.

    Contra essa leitura posicionam-se diversos autores. Dentre eles, destacam-se Hacker,

    com o texto Was he Trying to Whistle it?e Proops, com The New Wittgenstein: A Critique.12

    Esses dois autores convergem na ideia de que a compreenso adequada do Tractatus exige

    no s a considerao do prprio texto, mas tambm a comparao com outras fontes ligadas

    ao pensamento de Wittgenstein, devendo ser a includos tanto o material no publicado desse

    autor como depoimentos de outras pessoas que acompanharam a evoluo desse pensamento.

    Tendo em vista nossa interpretao de Wittgenstein como um mstico, concordamos com

    muitos dos argumentos por eles utilizados contra Cora Diamond. Todavia, consideramos que

    as posies de ambos ainda so tmidas com respeito ao sentido tico-religioso a ser atribudo

    ao Tractatus. Eles no fazem as devidas conexes entre Wittgenstein e os autores maisrelevantes para o contexto dessa obra e, por causa disso, no so capazes de desvelar

    inteiramente a dimenso tico-religiosa ali implicada. Em virtude disso, pensamos ser ainda

    oportuno fazer uma contraposio ainda que tardia interpretao de Cora Diamond, com

    o objetivo de contribuir para o esclarecimento da dimenso tico-religiosa do pensamento de

    Wittgenstein. Por motivos de espao, porm, teremos de restringir a discusso abordagem

    dessa autora.

    Para atingir nossos objetivos, dividiremos o presente trabalho em quatro sees. Na

    primeira, discutiremos o contexto utilizado por Cora Diamond para efetuar sua leitura do

    10 Diamond, C. Throwing away the ladder: how to read the Tractatus. In: Diamond, C. The Realistic Spirit. Wittgenstein,

    Philosophy, and the Mind. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press; London: Bradford Books, 1991, p. 179-204; Diamond, C.Ethics, Imagination and the Method of Wittgensteins Tractatus. In: Crary, A. & Read, R. (eds.). The New Wittgenstein. Londonand N. York: Routledge, 2000. p. 149-73.11

    Ver a lista completa dos mesmos em Hacker, P. M. S. Was he Trying to Whistle it? In: A. Crary and R. Read eds. The NewWittgenstein. London: Routledge, 2000, nota 7, p. 382-3.12

    Hacker, P. M. S. Was he Trying to Whistle it? In: A. Crary and R. Read eds. The New Wittgenstein. London: Routledge, 2000,p. 353-88. Proops, Ian. The New Wittgenstein: A Critique. In:European Journal of Philosophy9:3 (December 2001), p. 375

    404.

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    Tractatus, argumentando que os autores aos quais ela recorre so insuficientes para a

    realizao dessa tarefa. Na segunda, procuraremos mostrar os resultados que podem ser

    obtidos a partir do apelo a um contexto mais amplo. Na terceira, tentaremos mostrar quais as

    consequncias que esses resultados trazem para a interpretao de Cora Diamond. Na quarta e

    ltima seo, apresentaremos as principais concluses dessa discusso. Nossa expectativa que, ao final do percurso, a leitura de Cora Diamond e seus seguidores ter sido

    suficientemente relativizada para que possamos recolocar na sua devida perspectiva a

    dimenso tico-religiosa do pensamento de Wittgenstein.

    II A questo do contexto relevante para a compreenso da filosofia do Tractatus

    Para facilitar a discusso, iremos apresentar inicialmente alguns aspectos fundamentais

    da interpretao que Cora Diamond oferece para o Tractatus. Essa autora parte do

    pressuposto de que h duas leituras alternativas dessa obra. De acordo com a primeira delas, a

    h numerosas doutrinas que no podem ser colocadas em palavras e que no contam como

    doutrinas. Depois de jogar fora a escada, ficamos com algumas verdades sobre a realidade,

    enquanto ao mesmo tempo negamos que estejamos de fato dizendo qualquer coisa sobre a ela.

    De acordo com a segunda leitura, a noo de algo verdadeiro da realidade mas no

    dizivelmente verdadeirodeve ser usada na filosofia tractatiana apenas com a conscincia de

    que essa noo tambm pertence quilo que deve ser jogado fora. No ficamos com isso nofinal, depois de reconhecer o que o Tractatuspretendia que reconhecssemos.13

    A ttulo de ilustrao da primeira leitura, Cora Diamond cita Geach, o qual, em seu

    texto Dizer e Mostrar em Frege e Wittgenstein, interpreta o Tractatus como admitindo que

    vrios traos da realidade apaream na linguagem, embora no possa ser dito nessa mesma

    linguagem que a realidade tem aqueles traos.14 Cora Diamond se ope a essa leitura,

    alegando que o problema com o aforismo 6.54 saber quo a srio devemos tom-lo e se ele

    pode ser aplicado tese de que alguns aspectos da realidade no podem ser colocados em

    palavras. Para Cora Diamond, defender esta tese amarelar (chicken out). Jogar fora a

    13 Diamond, Cora. Throwing away the ladder: how to read the Tractatus. In: Diamond, C. The Realistic Spirit. Wittgenstein,

    Philosophy, and the Mind. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press; London: Bradford Books, 1991, p. 182.14

    Diamond, Cora. Throwing away the ladder: how to read the Tractatus. In: Diamond, C. The Realistic Spirit. Wittgenstein,Philosophy, and the Mind. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press; London: Bradford Books, 1991, p. 180-1. O texto por elamencionado Geach, P. Saying and Showing in Frege and Wittgenstein. In: Hintikka, J. (ed.) Essays on Wittgenstein in Honour

    of G. H. von Wright.Acta Philosophica Fennica28 (1976), p. 54-70.

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    escada, no sentido oposto ao de amarelar, jogar fora a tentativa de tomar a srio a

    linguagem de "aspectos da realidade".15

    O contexto utilizado por Cora Diamond para compreender o Tractatus pode ser

    esclarecido a partir da discusso que ela empreende com relao leitura de Geach. Ela

    menciona inicialmente a receita de Geach para compreender o Tractatus, quese reduz a lerFrege, ler mais Frege ainda, e refletir sobre Frege. Diante disso, Cora Diamond se apressa em

    perguntar a respeito da possvel influncia exercida por Russell na elaborao da primeira

    filosofia de Wittgenstein. O trecho relevante de seu artigo merece ser citado em sua

    totalidade:

    Wittgenstein diz que toda filosofia crtica da linguageme acrescenta que o crdito devido a Russell por ter mostrado que a forma lgica aparente de uma sentena no

    precisa ser a sua forma real. Isso deveria parecer uma observao ligeiramenteestranha, dado que Wittgenstein tinha uma opinio mais elevada de Frege do que deRussell. E certamente pareceria que o crdito deveria ser dado a Frege por ter tornadoclara a distino entre a forma lgica aparente e a forma lgica real. Este no foi umobjetivo principal da Conceitografia de Frege? A questo tambm poderia sercolocada como segue. Em sua observao dando crdito a Russell, Wittgenstein estespecificando parcialmente o que significa chamar a filosofia de crtica da linguagem.Mas, dado que Frege realizou uma crtica da linguagem, porque Wittgenstein explicao tipo de crtica da linguagem que tem em mente apelando a Russell?16

    Evidentemente, Cora Diamond est comentando o aforismo 4.0031, segundo o qual toda

    filosofia crtica da linguagem, mas no no sentido de Mauthner. A referncia elogiosa a

    Russell constitui para ela indcio suficiente de que o mecanismo de anlise propiciado pela

    Teoria das Descries mais importante do que a abordagem de Frege para a compreenso

    do verdadeiro sentido da crtica da linguagemtractatiana.

    A aplicao rigorosa da anlise russelliana teria levado Wittgenstein a concluir que as

    tautologias no s nada dizem, mas tambm nada mostram, uma vez que so vazias de

    qualquer contedo ftico.17 Para discutir a necessidade lgica, Cora Diamond introduz uma

    distino entre dizer que (A) algo a iluso de uma perspectiva e dizer que (B) algo aperspectiva correta, mas no pode ser colocado em palavras. Ela alega que somente o ponto

    15 Diamond, Cora. Throwing away the ladder: how to read the Tractatus. In: Diamond, C. The Realistic Spirit. Wittgenstein,

    Philosophy, and the Mind. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press; London: Bradford Books, 1991, p. 181.16

    Diamond, Cora. Throwing away the ladder: how to read the Tractatus. In: Diamond, C. The Realistic Spirit. Wittgenstein,Philosophy, and the Mind. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press; London: Bradford Books, 1991, p. 186.17

    Diamond, Cora. Throwing away the ladder: how to read the Tractatus. In: Diamond, C. The Realistic Spirit. Wittgenstein,

    Philosophy, and the Mind. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press; London: Bradford Books, 1991, p. 192-3.

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    de vista de (A) constitui a leitura coerente do Tractatus.18 Nessa perspectiva, no

    imaginaremos a necessidade como um estado de coisas e simplesmente abandonaremos as

    sentenas sobre ela, pois so completamente vazias.19

    As colocaes acima fazem imediatamente pensar no significado que teria a tica

    tractatiana de acordo com a interpretao de Cora Diamond. A resposta a essa questo dadaemEthics, Imagination and the Method of Wittgensteins Tractatus, texto no qual ela discute

    a questo tica em conexo com a filosofia do Tractatus. Ali, ela argumenta que, quando uma

    pessoa atribui bondade ou maldade vontade, essa pessoa est dizendo de corao algo que

    no faz sentido, mas que nossa imaginao de agentes morais apreende como atraente. Desse

    modo, quando Wittgenstein afirma que a lgica ou a tica transcendental, ele no est se

    referindo atividade de algum suposto sujeito transcendental. Na verdade,

    o que transcendental significa no Tractatus que o signo para qualquer coisachamada transcendental a forma geral de uma proposio e no alguma proposioparticular ou algum conjunto de proposies que diz algo em particular.20

    De acordo com Cora Diamond, na leitura de Kant e de Wittgenstein, podemos entender a

    palavra transcendentalcomo uma espcie de advertncia. Em Kant, a conexo entre o sujeito

    transcendental e a tica tal que essa ltima destruda quando tentamos mover o

    pensamento tico para o mundo emprico. Em Wittgenstein, a conexo entre a tica e o

    transcendental no constitui, como em Kant, uma questo de ligar a tica a algo que no possaser conhecido e no pertena ao mundo emprico. Mas, do mesmo modo que acontece com

    Kant, em Wittgenstein a tica destruda quando tentamos introduzi-la no mundo emprico. O

    que Kant e Wittgenstein tm em comum a rejeio da psicologia da vontade enquanto

    preocupada com nossos pensamentos sobre o bem e o mal.21Nessa perspectiva, o objetivo do

    Tractatus tico porque nos ensina a ver o mundo da maneira correta, sem fazer falsas

    demandas ao mundo e sem ter falsas expectativas. Em suma, sem deixar que a falsa

    imaginao da filosofia determine nossa relao com o mundo.22 A inteno tica do

    18 Diamond, Cora. Throwing away the ladder: how to read the Tractatus. In: Diamond, C. The Realistic Spirit. Wittgenstein,

    Philosophy, and the Mind. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press; London: Bradford Books, 1991, p. 196.19

    Diamond, Cora. Throwing away the ladder: how to read the Tractatus. In: Diamond, C. The Realistic Spirit. Wittgenstein,Philosophy, and the Mind. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press; London: Bradford Books, 1991, p. 198-9.20

    Diamond, C. Ethics, Imagination and the Method of Wittgensteins Tractatus. In: Crary, A. & Read, R. (eds.). The New

    Wittgenstein. London and N. York: Routledge, 2000, p. 168.21

    Diamond, C. Ethics, Imagination and the Method of Wittgensteins Tractatus. In: Crary, A. & Read, R. (eds.). The NewWittgenstein. London and N. York: Routledge, 2000, p. 168.22

    Diamond, C. Ethics, Imagination and the Method of Wittgensteins Tractatus. In: Crary, A. & Read, R. (eds.). The New

    Wittgenstein. London and N. York: Routledge, 2000, p. 168-9.

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    Tractatus inclui a inteno de que o livro no seja interpretado.23Com essas consideraes,

    encerramos a nossa rpida apresentao da interpretao de Cora Diamond. Passemos agora

    discusso da mesma.

    Antes de mais nada, consideramos importante destacar aqui que concordamos com

    Cora Diamond quando ela afirma que a distino entre dizere mostrar o ponto principal doTractatus. Isso pode ser confirmado por uma declarao feita pelo prprio Wittgenstein em

    uma de suas cartas a Russell em 19/08/1919:

    Ora, tenho receio de que voc no tenha de fato apreendido minha tese principal, daqual o negcio todo das prop[osie]s lgicas s um corolrio. O ponto principal ateoria do que pode ser expresso (gesagt) pelas prop[osie]s ou seja, pela linguagem (e, o que d no mesmo, o que pode serpensado) e o que no pode ser expresso pelasprop[osie]s, mas apenas mostrado (gezeigt); a qual [teoria], creio, o problema

    cardeal da filosofia.

    24

    Para compreender essa passagem, importante localiz-la em seu contexto. Em 13/03/1919,

    Wittgenstein enviou de Monte Cassino, onde estava confinado como prisioneiro de guerra,

    uma carta comunicando a Russell que tinha terminado a redao do Tractatus, mas que no

    tinha como enviar-lhe o manuscrito de maneira segura.Russell repassou a notcia para alguns

    amigos que poderiam ajudar nisso. Um deles era Keynes, que intermediou junto s

    autoridades italianas e conseguiu que o manuscrito fosse enviado a Russell. Em 28/06/1919,

    esse ltimo escreveu a Wittgenstein, acusando o recebimento do texto. Em 13/08/1919,Russel escreveu novamente, informando que, apesar de ter lido o manuscrito cuidadosamente

    por duas vezes, ainda havia pontos que ele no tinha entendido. Por esse motivo, ele enviou

    algumas folhas em separado, com suas indagaes. A passagem acima corresponde resposta

    de Wittgenstein a essas dvidas e sua importncia imensa, pois inclui esclarecimentos feitos

    por ele a Russell, logo aps a redao do Tractatus.Ora, essa passagem no apenas confirma

    a importncia da distino entre dizere mostrar, mas tambm nos fornece outras informaes

    cruciais para compreender a filosofia tractatiana. Em primeiro lugar, ela indica que as

    caractersticas das proposies lgicas so um corolrio da distino. Isto significa que

    Wittgenstein transita da distino entre dizere mostrarpara as caractersticas das tautologias,

    e no inversamente. Em segundo lugar, a passagem faz uma importante equiparao entre o

    23 Diamond, C. Ethics, Imagination and the Method of Wittgensteins Tractatus. In: Crary, A. & Read, R. (eds.). The New

    Wittgenstein. London and N. York: Routledge, 2000, p. 169.24

    Wittgenstein, L. Letters to Russell, Keynes and Moore. Ed. with an Introduction by G. H. von Wright (assisted by B. F.

    McGuinness). 2nd

    ed. Oxford: Basil Blackwell, 1977, p. 71.

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    que pode ser expresso pela linguageme aquilo que pode ser pensado. Em terceiro, o trecho

    faz referncia a algo que pode ser mostrado, embora no possa ser expresso por proposies

    e, portanto, no possa ser pensado. Isso sugere a possibilidade de um domnio de

    conhecimento puramente intuitivo, no qual o contedo conceitual no desempenharia papel

    algum. Em quarto, o mesmo trecho ainda nos informa de que a distino em questo constituio problema principal da filosofia. Em quinto, finalmente, a passagem inclui a sugesto de que

    Russell no entendeu o Tractatus,uma vez que no entendeu a sua tese principal. E achamos

    digno de nota que, em outra passagem da mesma carta, Wittgenstein se queixa do fato de que

    Frege tambm no teria entendido coisa alguma da obra. Todos esses aspectos so

    importantes e considerados mais adiante.

    Feito esse esclarecimento inicial, passemos agora questo dos autores e obras que

    podem constituir o contexto relevante para a compreenso do Tractatus. Janik & Toulmin, em

    A Viena de Wittgenstein, conseguem estabelecer um contexto muito mais amplo do que o de

    Cora Diamond para a exegese do Tractatus.25 A considerao desse contexto mais amplo

    deixa claro que a leitura isolada do Tractatus,considerado apenas em si mesmo, como seria

    ideal numa exegese acadmica tradicional, pode levar o leitor ou a cometer erros graves de

    interpretao. por motivos semelhantes que Ray Monk afirma ser um engano considerar o

    primeiro Wittgenstein um positivista lgico ou ver o segundo Wittgenstein como um

    behaviorista. Para Monk, esse engano no poderia vitimar quem quer que conhecesse

    Wittgenstein ou entendesse o tipo de homem que ele era. Foi isso que levou seus amigosEngelmann e Drury a publicar textos em que procuram esclarecer justamente esse ponto,

    mostrando os equvocos existentes em algumas interpretaes do pensamento de

    Wittgenstein.26

    Isso posto, consideremos a referncia que Cora Diamond faz ao aforismo 4.0031, na

    passagem citada mais acima. Ela tem razo ao observar que o aforismo se refere

    elogiosamente contribuio de Russell quanto distino entre forma lgica aparente e

    forma lgica profunda. Mas salta aos olhos a maneira pela qual Cora Diamond ignora

    completamente o nome e a importncia de Mauthner para a discusso. A esse respeito, cabem

    as trs observaes que faremos a seguir.

    Em primeiro lugar, o aforismo 4.0031 nem sequer faz referncia a Frege. Mesmo

    assim, Cora Diamond considera adequado tratar as ideias desse autor como relevantes para a

    25Janik, A. & Toulmin, S. Wittgensteins Vienna. N. York: Simon and Schuster. Touchstone Books, 1973.

    26Monk, R. How to read Wittgenstein. New York; London: W. W. Norton & Co, 2005, p. 96. Grifo nosso.

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    questo em pauta. O problema que a preocupa est em explicar por que Wittgenstein recorre a

    Russell e no a Frege na sua caracterizao da crtica da linguagem. Nessa perspectiva, ela

    inclusive admite como ponto pacfico o fato de Frege ter realizado uma crtica da linguagem.

    Ora, esse autor no comumente ligado a tal crtica, se a entendermos como os pensadores

    vienenses da poca a concebem. Frege era alemo e no austraco, teve uma formaoeminentemente matemtica e suas preocupaes eram de carter lgico-cientfico. Alm

    disso, no temos notcia de que ele tenha sequer utilizado a expresso crtica da linguagem

    em algum dos seus textos. Na verdade, o que Frege procura construir uma linguagem

    cientfica formalmente adequada para expressar com preciso as relaes entre os objetos

    matemticos e isso tem muito pouco a ver com a crtica da linguagem mencionada no

    Tractatus. por motivos como esses que Janik & Toulmin, ao caracterizarem a crtica da

    linguagem como uma tendncia fundamentalmente originria da Viena do fim do sculo XIX,

    discutem sobretudo as ideias de Mauthner e no fazem referncia a Frege quanto a esse

    aspecto. O pensador alemo por eles mencionado vrias vezes, mas sempre em conexo

    com seus trabalhos lgicos e nunca com a crtica vienense da linguagem.

    Em segundo lugar, a referncia elogiosa a Russell no aforismo 4.0031 trata da

    distino entreforma lgica aparenteeforma lgica profunda, sugerindo que ela tem ligao

    com a crtica da linguagem, mas sem explicar como. Se levarmos em conta que Russell

    tambm no est interessado em realizar uma crtica da linguagem em sentido vienense,

    revelando preocupaes lgico-cientficas semelhantes s de Frege, poderemos concluir que aincluso de seu nome no aforismo mencionado s poder ser compreendida se tivermos

    acesso a alguma informao complementar a respeito da crtica da linguagem tal como

    concebida pelos intelectuais vienenses da poca. Tentar explicar a contribuio de Russell

    crtica da linguagem wittgensteiniana sem recorrer a essa informao, como faz Cora

    Diamond, nos deixaria inteiramente s cegas e envolveria o srio risco de deformar a nossa

    interpretao do Tractatus.

    Em terceiro lugar, o nico autor explicitamente ligado crtica da linguagem no

    aforismo 4.0031 Mauthner, cuja perspectiva est ligada de maneira direta concepo

    vienense. Certamente, Wittgenstein se refere a ele como tendo concebido a crtica da

    linguagem de maneira equivocada. Mas, para esclarecer a questo adequadamente, temos

    obrigatoriamente de recorrer ao texto de Mauthner para ver como concebe essa crtica, uma

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    vez que ele, e no Frege ou Russell, que a liga metfora da escada, como podemos ver

    pelo texto abaixo:

    se desejo avanar para cima na crtica da linguagem, que constitui a ocupao

    mais importante da humanidade pensante, devo aniquilar a linguagem atrs demim, diante de mim e em mim, passo a passo, assim como devo destruir cadadegrau da escada quando subir por ela. Quem quiser seguir-me, reconstrua osdegraus, para de novo destru-los.27

    As ligaes entre essa passagem e o aforismo 6.54 so mais evidentes do que quaisquer

    ligaes que o mesmo possa ter com as ideias de Frege ou de Russell. Desse modo, se

    quisermos efetivamente levar a srio esse aforismo, teremos de saber como concebe Mauthner

    a crtica da linguagem: isso nos fornecer elementos importantes para localizar os pontos dedivergncia entre ele e Wittgenstein. Ficaremos sabendo ao menos como a crtica da

    linguagem no deve ser concebidaem termos da filosofia tractatiana. Alm disso, como h

    pontos de convergncia entre os dois autores, poderemos constatar, atravs das ideias de

    Mauthner, como a crtica da linguagem deve ser concebida em termos tractatianos. Outro

    aspecto a ser considerado est nas conexes, seja por afinidade, seja por oposio, entre as

    ideias de Mauthner e as de outros autores alm de Frege e Russell, como Kant, Schopenhauer,

    Hertz e Boltzmann.28Todos eles, como veremos, possuem relevncia na leitura do Tractatus.

    A hiptese que defendemos a seguinte. Ao afirmar que toda filosofia crtica da

    linguagem, mas no no sentido de Mauthner, Wittgenstein est, por um lado, assumindo a

    inspirao tica desse autor e, por outro, rejeitando sua abordagem e seus resultados,

    substituindo-os por uma alternativa que considera mais adequada. A perspectiva tica comum

    pode ser justificada a partir dos pontos de contato entre Mauthner e Wittgenstein. Esses

    pontos so muitos, mas teremos de nos restringir aqui a apenas dois. Em primeiro lugar, as

    crticas mauthneriana e tractatiana da linguagem se enquadram no clima cultural da Viena do

    final do s. XIX. Para um excelente retrato dessa poca, remetemos o leitor ao Cap. 5 de A

    Viena de Wittgenstein, intitulado Linguagem, tica e Representao, em que Janik &

    Toulmin mostram o surgimento da ideia de uma crtica da linguagem como uma reao ao

    27Mauthner, F. Beitrge zu einer Kritik der Sprache. Erster Band. Zur Sprache und zur Psychologie. Dritte Auflage. Stuttgart

    und Berlin: J. G. Cottasche Buchhandlung Nachfolger, 1921, p. 1-2.28

    Outros autores tambm poderiam ser includos nessa lista, como Weininger, Tolstoi, Kierkegaard e William James. Por

    limitaes de espao, porm, no os consideraremos aqui.

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    estado de decadncia moral em que se encontrava o Imprio Austro-Hngaro na segunda

    metade do s. XIX, decadncia essa marcada principalmente pelo estetismo e pelo excesso de

    ornamentos utilizados nos diversos meios de comunicao.29 A necessidade de uma

    reavaliao desses mesmos meios atravs de uma crtica da linguagem era indicada por

    muitos intelectuais da poca como a nica via para a regenerao moral da sociedadeaustraca. Mauthner um dos principais representantes dessa tendncia moralizante.

    Wittgenstein tambm pode ser ligado a essa crtica da linguagem em perspectiva tica por

    inmeros motivos, como tambm mostram Janik & Toulmin na obra mencionada. 30E o ponto

    mais importante a ser destacado na crtica da linguagem est em que ela envolve, tanto em

    Mauthner como em Wittgenstein, um empreendimento suicida que termina no silncio.

    Em segundo lugar, a perspectiva tica de Mauthner e Wittgenstein se baseia numa

    concepo de solipsismo que possui uma origem schopenhaueriana comum. No caso do

    solipsismo mauthneriano, o eu se manifesta de maneira bastante peculiar. Mauthner afirma

    que, enquanto representao da realidade, o eu uma iluso criada pela linguagem. Todavia,

    enquanto sentimento manifestado pela observao introspectiva, o eu reconhecidamente

    uma realidade efetiva. Nessa perspectiva, o solipsismo , por um lado, logicamente irrefutvel

    e, por outro, alienado, pois no pode ser comprovado atravs da lgica. 31Como bem notam

    Janik & Toulmin, essa concepo de solipsismo encontra suas origens em Schopenhauer,

    cujas ideias constituem o ponto de partida da filosofia de Mauthner.32 Esse ponto ser

    explicado mais adiante. H outros pontos de contato entre Mauthner e Wittgenstein, masteremos de deix-los de lado, para no estender demasiadamente essa parte da discusso. 33

    Quanto rejeio da abordagem mauthneriana por parte de Wittgenstein, isso pode ser

    explicado atravs da considerao dos pontos de divergncia entre as duas crticas da

    linguagem. Por motivos de espao, iremos restringir a discusso a apenas trs pontos. O

    primeiro deles diz respeito concepo de crtica, que no a mesma nos dois autores. Para

    Mauthner, crtica se refere atividade do entendimento humano que separa ou distingue.

    Nessa perspectiva, a crtica de um objeto de estudo nada mais do que a observao

    29Janik, A. & Toulmin, S. Wittgensteins Vienna. N. York: Simon and Schuster. Touchstone Books, 1973, p. 120-66.

    30Janik, A. & Toulmin, S. Wittgensteins Vienna. N. York: Simon and Schuster. Touchstone Books, 1973, p. 120-166.

    31Mauthner, F. Beitrge zu einer Kritik der Sprache. Erster Band. Zur Sprache und zur Psychologie. Dritte Auflage. Stuttgart

    und Berlin: J. G. Cottasche Buchhandlung Nachfolger, 1921, p. 668-9.32

    Janik, A. & Toulmin, S. Wittgensteins Vienna. N. York: Simon and Schuster. Touchstone Books, 1973, p. 120-166.33

    Os demais pontos de contato so os seguintes: a) a tentativa de conciliar a lgica com a tica; b) a ideia de que as leis dopensamento nada mais so do que tautologias; c) a associao do processo de clarificao produzido pela crtica da

    linguagem metfora da escada.

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    escrupulosa desse mesmo objeto.34 Ao se propor apenas a descrever escrupulosamente seu

    objeto de estudo, a abordagem mauthneriana se inspira na perspectiva empirista de Hume. De

    maneira anloga a Mach, que aplica a perspectiva empirista humiana fsica, Mauthner aplica

    essa mesma perspectiva ao estudo da linguagem. Wittgenstein, em contraposio, parece

    entender a crtica numa perspectiva transcendentalista anloga kantiana, pelo vis dainfluncia de Schopenhauer. Com efeito, ele busca, no Tractatus, pelas condies de

    possibilidade da linguagem enquanto capaz de descrever o mundo. De maneira anloga a

    Hertz, que aplica a perspectiva kantiana fsica, Wittgenstein aplica essa mesma perspectiva

    linguagem. Da divergncia entre Mauthner e Wittgenstein resultam duas crticas da

    linguagem completamente diferentes, mas ainda inspiradas no mesmo ideal tico de

    reavaliao e reforma dos meios de comunicao.

    O segundo ponto diz respeito concepo de linguagemem cada um dos dois autores.

    Para Mauthner, a linguagem o uso que fazemos da prpria linguagem.35Ela um fenmeno

    pblico e constitui uma fora social.36 Como dizem Janik & Toulmin, a linguagem em

    Mauthner no uma entidade, mas uma atividade.37Para Wittgenstein, em contraposio, a

    essncia da linguagem est no seu poder descritivo e este ltimo anterior ao uso. A

    linguagem um fenmeno privado e seus limites significam os limites de meu mundo. Ela

    possui uma estrutura lgica necessria que ultrapassa o seu uso histrico contingente.

    O terceiro ponto tem a ver com a maneira pela qual os dois autores concebem os

    limites da linguagem. Mauthner um completo ctico quanto a esse ponto. Para ele, alinguagem constitui um magnfico meio artstico, mas um pobre instrumento de

    conhecimento.38No podemos reter o contedo conceitual das palavras por muito tempo e,

    em virtude disso, o conhecimento do mundo atravs da linguagem impossvel.39 Isso nos

    reduz ao silncio, que possui maior valor do que qualquer tentativa de expresso verbal.

    Quanto experincia mstica, Mauthner admite o sentimento inefvel de unidade com o

    34Mauthner, F. Beitrge zu einer Kritik der Sprache. Erster Band. Zur Sprache und zur Psychologie. Dritte Auflage. Stuttgart

    und Berlin: J. G. Cottasche Buchhandlung Nachfolger, 1921, p. 3.35

    Mauthner, F. Beitrge zu einer Kritik der Sprache. Erster Band. Zur Sprache und zur Psychologie. Dritte Auflage. Stuttgart

    und Berlin: J. G. Cottasche Buchhandlung Nachfolger, 1921, p. 24.36

    Mauthner, F. Beitrge zu einer Kritik der Sprache. Erster Band. Zur Sprache und zur Psychologie. Dritte Auflage. Stuttgartund Berlin: J. G. Cottasche Buchhandlung Nachfolger, 1921, p. 28-9; 42; 47.37

    Janik, A. & Toulmin, S. Wittgensteins Vienna. N. York: Simon and Schuster. Touchstone Books, 1973, p. 126.38

    Mauthner, F. Beitrge zu einer Kritik der Sprache. Erster Band. Zur Sprache und zur Psychologie. Dritte Auflage. Stuttgartund Berlin: J. G. Cottasche Buchhandlung Nachfolger, 1921, p. 93.39

    Mauthner, F. Beitrge zu einer Kritik der Sprache. Erster Band. Zur Sprache und zur Psychologie. Dritte Auflage. Stuttgart

    und Berlin: J. G. Cottasche Buchhandlung Nachfolger, 1921, p. 97.

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    universo, mas a deixa restrita contemplao silenciosa.40 Adotando uma perspectiva

    diferente, influenciada por Frege, Russell, Hertz e Boltzmann, Wittgenstein no ctico e

    reconhece o poder cognitivo da linguagem enquanto instrumento de descrio cientfica do

    mundo. No caso da metafsica e da experincia mstica, contudo, Wittgenstein chega a

    resultados semelhantes aos de Mauthner. A metafsica se baseia em conceitos formais, queno designam entidade alguma, j que, por meio da anlise, so substituveis por variveis

    numa linguagem formal apropriada. Quanto experincia mstica, Wittgenstein a descreve no

    Tractatus como o sentimento do mundo como um todo limitado, mas reconhece que isso no

    pode ser colocado em palavras.41H outros pontos que envolvem diferenas entre as crticas

    mauthneriana e wittgensteiniana da linguagem, mas no poderemos consider-los por razes

    de espao.42

    A discusso acima mostra que a importncia de Mauthner e de outros autores a ele

    relacionados da poca fundamental para compreender a filosofia tractatiana. O objetivo

    dessa ltima est claramente expresso no aforismo 4.0031. Toda a filosofia crtica da

    linguagem, mas no no sentido de Mauthner porque, embora o objetivo filosfico seja o

    mesmo a avaliao da linguagem em sentido predominantemente tico, as abordagens

    utilizadas so diferentes. Com efeito, Mauthner faz uma crtica empirista da linguagem e

    Wittgenstein, uma crtica transcendentalista da linguagem. A forma lgica profunda, proposta

    por Russell, serve apenas como instrumento da aplicao do mtodo transcendental

    linguagem.Se isso verdade, ento Frege e Russell, ao contrrio do que pensa Cora Diamond,

    no so os autores cujas ideias definem a moldura filosfica em que se enquadra o

    pensamento de Wittgenstein. Na verdade, essa moldura estranha a ambos. Eles apenas

    oferecem um instrumental lgico adequado para ser adaptado a uma crtica da linguagem etica

    e transcendentalmente orientada que busca em primeiro lugar resolver ou melhor, dissolver

    sem eliminar o problema do sentido da vida. verdade que Frege e Russell so os autores

    40Mauthner, F. Beitrge zu einer Kritik der Sprache. Erster Band. Zur Sprache und zur Psychologie. Dritte Auflage. Stuttgart

    und Berlin: J. G. Cottasche Buchhandlung Nachfolger, 1921, p. 82-3; 95-8; 117. Mauthner, F. Beitrge zu einer Kritik derSprache. Dritter Band. Zur Gramatik und Logik. Zweite Auflage. Stuttgart und Berlin: J. G. Cottasche Buchhandlung Nachfolger,1913, p. 618.41

    Uma outra diferena importante est na maneira pela qual Mauthner e Wittgenstein tentam conciliar lgica e tica. No casode Mauthner, ambas so fenmenos sociais regidos pelo interesse. No caso de Wittgenstein, ambas so transcendentais.Infelizmente, por motivos de espao, no poderemos tratar desse ponto aqui. De qualquer modo, a transcendentalidade da

    lgica e da tica no Tractatussero discutidas mais frente.42

    Entre essas outras diferenas, destacam-se as seguintes: a) a concepo de lgica, que Mauthner v como processo socialdeterminado pelo interesse e que Wittgenstein v como lei transcendentalmente estruturante do espao lgico; b) a maneirapela qual lgica e tica so conciliadas, j que Mauthner v ambas como processos sociais determinados pelo interesse e que

    Wittgenstein v como dimenses transcendentais complementares.

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    mais mencionados no Tractatus, inclusive no Prefcio, atravs de um agradecimento que

    parece dar a medida de sua importncia para a filosofia tractatiana. Mas convm lembrarmos

    que oPrefciono suficientemente claro quanto importncia de ambos. Ali, Wittgenstein

    certamente reconhece seu dbito em relao aos grandes trabalhos de Frege e aos escritos de

    Russell. Mas esse dbito atribudo ao estmulo (Anregung) produzido no pensamento deWittgenstein. Embora o agradecimento contenha a sugesto de que os dois autores sejam

    relevantes para a elaborao da filosofia tractatiana, no h referncias explcitas maneira de

    conceber essa relevncia. E as inmeras crticas que ambos recebem nos aforismos

    tractatianos faz suspeitar que suas respectivas influncias sobre Wittgenstein envolvem no a

    adoo das abordagens oferecidas por eles, mas sim a busca de abordagens alternativas mais

    satisfatrias. A ideia de uma adaptao das ideias de Frege e Russell a uma crtica da

    linguagem etica e transcendentalmente orientada pode ser reforada se levarmos em conta que

    Hertz e Boltzmann no apenas oferecem um instrumental lgico na anlise da linguagem

    cientfica, mas tambm se encaixam tanto num referencial terico inspirado pelo

    transcendentalismo kantiano como numa viso de mundo em que a religio possui um sentido

    tico semelhante quele defendido pelos autores ligados corrente tico-metafsica.

    III Resultados obtidos na leitura do Tractatus a partir de um contexto mais amplo

    Nessa seo, pretendemos argumentar que o contexto mais amplo contribui pararevelar o papel fundamental desempenhado pelo solipsismo na filosofia tractatiana. Conforme

    mencionamos, as concepes mauthneriana e wittgensteiniana de solipsismoprovm de uma

    raiz schopenhaueriana comum. Vejamos agora como. No Captulo VII de A Qudrupla Raiz

    do Princpio de Razo Suficiente, Schopenhauer estuda a quarta classe de objetos da

    faculdade perceptiva, que corresponde a um nico objeto, ou seja, o objeto imediato do

    sentido interior. Trata-se do sujeito da vontade, que aparece apenas no tempo para o sujeito

    cognoscente. Em outras palavras, Schopenhauer est descrevendo o fenmeno da conscincia

    de si mesmo, em que o sujeito cognoscente, fora do espao e do tempo, toma conscincia de

    si mesmo como sujeito volente dentro do tempo. Isso assim porque o sujeito cognoscente,

    enquanto tal, condio da representao e no pode ser ele mesmo uma representao ou um

    objeto, como acontece com o sujeito volente. Da o fato de a proposio sei que conheo ser

    equivalente proposio eu conheo, que, por sua vez, equivalente a eu sou sujeito, que

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    nada mais contm do que o mero eu.43 A proposio eu conheo analtica, porque todo

    conhecimento pressupe um cognoscente e um conhecido, sendo que apenas o conhecido est

    em ns como tal. A proposio eu quero sinttica a priori, sendo confirmada pela

    experincia interior. A identidade entre o sujeito cognoscente e o sujeito volente, em virtude

    da qual a palavra eu contm a ambos e os designa, o n do mundo e por isso mesmo revela-se inexplicvel. Esta identidade o milagre por excelncia.44Ora, aquilo que Mauthner chama

    de sentimento do eu apresenta muitas semelhanas com o fenmeno da conscincia de si

    mesmo, tal como descrito por Schopenhauer. O fato de esse fenmeno estar simultaneamente

    associado a uma evidncia logicamente irrefutvel e impossibilidade de justificao atravs

    da lgica tem a ver com o milagre inexplicvel que ele envolve: o euse revela o misterioso

    ponto de contato entre o sujeito transcendental, que est fora do mundo, e o sujeito

    emprico, que est mergulhado no mundo. As ideias romnticas de Schopenhauer esto

    ligadas em maior ou menor grau s de outros autores, como Tolstoi, Kierkegaard e Weininger.

    Todos esses autores convergem na crena de que o sentido da nossa vida dado por uma

    experincia mstica que devemos buscar a todo custo.

    verdade que, contra essa interpretao, Cora Diamond apela a Conant, para quem os

    exegetas da perspectiva tica de Wittgenstein no Tractatus projetam nessa obra ou alguma

    combinao de ideias oriundas de Schopenhauer, Tolstoi e outros autores ou alguma

    combinao de ideias de lavra prpria.45 Em resposta a isso, dois pontos merecem ser

    destacados aqui. Em primeiro lugar, h inmeras evidncias externas indicando que, pocado Tractatus, Wittgenstein tambm tem uma concepo de solipsismo anloga

    schopenhaueriana. As evidncias mais significativas esto em passagens nos Cadernos de

    Notasque merecem ser citadas aqui. Em 11/06/1916, Wittgenstein se pergunta a respeito do

    que sabe a respeito de Deus e do objetivo da vida e, na resposta, afirma que sabe estar no

    mundo do mesmo modo que seu olho est no seu campo visual.46 Em 08/07/1916,

    Wittgenstein afirma que h duas divindades (Gottheiten), o mundo e o eu independente.47Em

    43Schopenhauer, A. Sobre la cuadruple raiz del principio de razon suficiente. Trad. por V. Romano Garcia. 2 ed. B. Aires:

    Aguilar, 1973, p. 216-7.44

    Schopenhauer, A. Sobre la cuadruple raiz del principio de razon suficiente. Trad. por V. Romano Garcia. 2 ed. B. Aires:Aguilar, 1973, p. 219-20.45

    Diamond, C. Ethics, Imagination and the Method of Wittgensteins Tractatus. In: Crary, A. & Read, R. (eds.). The NewWittgenstein. London and N. York: Routledge, 2000, p. 155. O texto a que ela se refere Conant, J. Must we show what wecannot say? In: Fleming, R. & Payne, M. (eds.). The Senses of Stanley Cavell. Pennsylvania, London and Toronto: Lewisburg,

    1989, p. 274.46

    Wittgenstein, L. Notebooks 1914-16. Ed. By G. H. von Wright and G. E. M. Anscombe. With an English translation by G. E. M.Anscombe. 2

    nded. Chicago: The Un. of Chicago Press, 1979, p. 72-3.

    47Wittgenstein, L. Notebooks 1914-16. Ed. By G. H. von Wright and G. E. M. Anscombe. With an English translation by G. E. M.

    Anscombe. 2nd

    ed. Chicago: The Un. of Chicago Press, 1979, p. 74.

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    02/08/1916, ele caracteriza o sujeito no como parte do mundo, mas como uma pressuposio

    da existncia do mundo.48Em 04/08/1916, Wittgenstein se pergunta onde no mundo poderia

    ser encontrado o sujeito metafsico. Para responder, ele retoma a comparao entre o olho e o

    campo visual, reconhecendo que, embora seja o olho que v o campo visual, o prprio olho

    no visto: no h nada no campo visual que permita inferir que ele est sendo visto por umolho.49Em 05/08/1916, Wittgenstein afirma que o sujeito volente existe e que ele constitui o

    centro do mundo, que chamamos de Eue que o portador da tica. O Eu caracterizado

    como profundamente misterioso.50 Em 02/09/1916, Wittgenstein caracteriza o Eu de uma

    forma to importante para a presente discusso que merece a citao de suas prprias

    palavras:

    O Eu filosfico no o ser humano nem o corpo humano ou a alma humana com as

    propriedades psicolgicas, mas o sujeito metafsico, o limite (no uma parte) do mundo.O corpo humano, contudo, meu corpo em particular, uma parte do mundo entreoutras, entre animais, plantas, pedras, etc.51

    H muitas outras passagens nos Cadernos de Notas que seguem a mesma inspirao. No

    apenas isso, porm. Com efeito, h inmeras evidncias no prprio Tractatus a respeito da

    ligao entre Wittgenstein e Schopenhauer, como, p. ex., pode ser verificado nos seguintes

    aforismos: a) eu sou meu mundo. (O microcosmos.) (5.63); b) o sujeito no pertence ao

    mundo, mas um limite do mundo (5.632, 5.641); c) nada no campo visualpermite concluir

    que visto a partir de um olho (5.633); d) o solipsismo, levado s ltimas consequncias,

    coincide com o puro realismo (5.64); e) a lgica transcendental e corresponde a uma

    imagem especular do mundo (6.13); f) o mundo independente de minha vontade (6.373);

    g) o sentido do mundo deve estar fora dele (6.41); h) a tica transcendental (6.421); i) deve

    haver, na verdade, uma espcie de recompensa tica e punio tica, mas elas devem estar na

    prpria ao (6.422); j) se a boa ou m volio altera o mundo, s pode alterar os limites do

    mundo, no os fatos (6.43); k) se por eternidade no se entende a durao temporal infinita,

    mas a atemporalidade, ento vive eternamente quem vive no presente (6.4311). Todos os

    48Wittgenstein, L. Notebooks 1914-16. Ed. By G. H. von Wright and G. E. M. Anscombe. With an English translation by G. E. M.

    Anscombe. 2nd

    ed. Chicago: The Un. of Chicago Press, 1979, p. 79.49

    Wittgenstein, L. Notebooks 1914-16. Ed. e1046By G. H. von Wright and G. E. M. Anscombe. With an English translation byG. E. M. Anscombe. 2

    nded. Chicago: The Un. of Chicago Press, 1979, p. 80. Essa passagem apresenta ligaes claras com o

    aforismo 5.633 do Tractatus.50

    Wittgenstein, L. Notebooks 1914-16. Ed. By G. H. von Wright and G. E. M. Anscombe. With an English translation by G. E. M.Anscombe. 2

    nded. Chicago: The Un. of Chicago Press, 1979, p. 80.

    51Wittgenstein, L. Notebooks 1914-16. Ed. By G. H. von Wright and G. E. M. Anscombe. With an English translation by G. E. M.

    Anscombe. 2nd

    ed. Chicago: The Un. of Chicago Press, 1979, p. 82.

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    aforismos mencionados falam por si mesmos, pois possuem uma inspirao nitidamente

    schopenhaueriana.52Desse modo, a advertncia de Conant no sentido de evitarmos projetar as

    ideias desses autores no Tractatus injustificada: tudo indica que o prprio Wittgenstein no

    apenas fez uma apropriao das mesmas, mas tambm deixou claramente impressas as suas

    marcas nos aforismos correspondentes. Em segundo lugar, a proposta de Conant que pareceestar contaminada por uma viso enviesada do Tractatus. Com efeito, em Elucidao e

    Contrassenso em Frege e no Primeiro Wittgenstein, Conant argumenta que o esquecimento

    do pensador alemo torna muitos intrpretes do Tractatus despreparados para compreender as

    instrues wittgensteinianas quanto leitura da obra.53Com isso, Conant comete o equvoco

    de atribuir uma importncia desproporcional a Frege no trabalho de interpretao do

    Tractatus, correndo os mesmos riscos de Geach e Cora Diamond no sentido de deformar a

    filosofia ali expressa. Em virtude das limitaes arbitrrias que impem aos autores e ideias

    relevantes para a compreenso do Tractatus, Conant e Cora Diamond que esto projetando

    no Tractatus uma combinao de ideias oriundas de Frege ou Russell, com isso deformando

    arbitrariamente a filosofia expressa na obra. Infelizmente, no poderemos levar adiante essa

    discusso com Conant.

    As consideraes acima, sobre a natureza do solipsismo tractatiano, nos fornecem uma

    pista para identificarmos as origens da distino entre dizer e mostrar. Tudo indica que a

    viso de mundo do jovem Wittgenstein romntica como a de Schopenhauer, para quem o ser

    humano possui duas dimenses cognitivas mutuamente excludentes, mas complementares. Aprimeira delas opoder de intuio, prprio do gnio, a includos o artista e o filsofo. Esse

    poder intuitivo possui carter ontolgico e consegue contemplar o quid, a essncia do mundo.

    A segunda a nossa capacidade discursiva, prpria do cientista e do homem comum. Esse

    poder discursivo possui carter instrumental e consegue apenas descrever como o mundo .

    Para evitar comprometimentos com o psicologismo, porm, Wittgenstein reformula a

    distino schopenhaueriana entre intuio e discurso, adotando aquela entre mostrar e dizer.

    A noo de intuioenfatiza a dimenso psicolgica do sujeito que intui a realidade, enquanto

    a noo de mostrar enfatiza a dimenso objetiva da realidade que se revela ao sujeito

    transcendental. Ponto digno de nota tanto em Schopenhauer quanto em Wittgenstein a

    52Quanto s ligaes com Tolstoi e outros autores, verdade que elas no so garantidas por referncias diretas no Tractatus,

    mas podem ser encontradas em muitos outros textos da poca, como, p. ex., os Dirios Secretos. Infelizmente, por motivos deespao, no poderemos tratar desse ponto aqui.53

    Ver Conant, J. Must we show what we cannot say? In: Fleming, R. & Payne, M. (eds.). The Senses of Stanley Cavell.

    Pennsylvania, London and Toronto: Lewisburg, 1989, p. 242-83.

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    aceitao de uma experincia de carter intuitivo que no pode ser racionalmente

    demonstrada porque pertence a um domnio que se encontra fora do mundo fenomnico. A

    admisso de tal experincia compatvel com as afirmaes de Wittgenstein na passagem da

    carta de 19/08/1919, em que ele faz a distino entre o que pode ser ditoou pensadoe o que

    pode ser somente mostrado ou, em terminologia pr-schopenhaueriana, intudo sem amediao de conceitos. Se nossa interpretao estiver correta, ento a influncia de Frege

    quanto elaborao da distino tractatiana entre dizer e mostrar mnima, tendo a ver

    sobretudo com a tentativa de despsicologizar a distino shopenhaueriana entre intuioe

    discurso.

    Isso posto, podemos passar agora discusso de duas idias muito importantes para a

    compreenso da filosofia tractatiana: a) a lgica e a tica so transcendentais, mas no a

    mesmo ttulo; b) cada uma delas envolve um tipo especfico de mostrao que est ligado ao

    sujeito transcendental e no envolve contedos fticos. Para tanto, procuraremos estabelecer

    inicialmente que h uma distino entre o mostrar lgico e o mostrar tico. Essa distino

    est presente nos aforismos tractatianos, mas de maneira no muito explcita. Felizmente, ela

    pode ser inferida a partir de uma evidncia externa. Trata-se da discusso entre Wittgenstein e

    Paul Engelmann a respeito de um poema de Uhland, intitulado O espinheiro do conde

    Eberhard. O texto do poema o seguinte:

    O espinheiro do Conde Eberhard

    O conde Eberhard de longas barbas,

    da bela terra de Wrttemberg,

    foi numa viagem errante

    dar nas praias da Palestina.

    Enquanto ele viajava devagar

    ao longo de uma via arborizada,

    cortou do arbusto de espinheiro

    um pequeno ramo verde.

    Ento em seu elmo de ferro

    colocou o pequeno broto;

    e usou-o nas guerras

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    e sobre as mars do oceano.

    Quando chegou a sua casa,

    colocou-o na terra,

    onde folhinhas e botes

    a gentil primavera fez surgir.A cada ano ele o visitava,

    o conde to bravo e verdadeiro.

    E enlevado ficou

    ao testemunhar como crescia.

    O conde estava gasto pela idade

    o broto se tornou uma rvore,

    debaixo da qual o velho muitas vezes

    se assentava em devaneio.

    Os ramos se arqueiam to alto

    e seu sussurro to brando,

    lembram-lhe o passado

    e a praia da Palestina.54

    A discusso entre Engelmann e Wittgenstein a respeito desse poema se encontra em dois

    trechos, ambos registrados no livro Cartas de Ludwig Wittgenstein, Com uma Memria,dePaul Engelmann. O primeiro texto diz o seguinte:

    Eu lhe tinha enviado um poema de Uhland que to claro que ningum ocompreende (Karl Kraus) e que, num certo sentido, me tocou diferentemente e maisprofundamente do que at mesmo a poesia j redescoberta naquela poca pertencente ao grande passado da literatura alem. Ele respondeu:

    o poema de Uhland realmente magnfico. E assim que as coisas so: se aomenos voc no tenta enunciar o que inexprimvel, ento nada se perde. Mas oinexprimvel estar inexprimivelmente contidono que foi enunciado!

    A realizao positiva de Wittgenstein, que at agora s encontrou completaincompreenso, est em seu apontar para aquilo que est manifesto numa proposio.E o que est manifesto nela, a proposio tambm no pode afirmar explicitamente.As sentenas do poeta, por exemplo, realizam seu efeito no atravs do que dizem,

    54Apud Engelmann, P. Letters from L. Wittgenstein. With a Memoir. N. York: Horizon Press, 1968, p. 83. Traduo nossa, mais

    ou menos literal, sem preocupao de transpor para o portugus o estilo potico de Uhland. A inteno dar uma ideia do

    contedo descritivo do poema.

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    mas atravs do que est manifesto nelas, e o mesmo vale para a msica, que tambmnada diz.55

    De acordo com Engelmann, Wittgenstein escreveu essa carta em 09/04/1917, quando estava

    finalizando o Tractatus e possivelmente antes de ter dado forma final afirmao de suas

    intuies msticas. Nessa perspectiva, a passagem acima praticamente contempornea daelaborao final da obra, o que nos parece bastante significativo. O segundo texto segue

    abaixo:

    Fiquei aqui ciente pela primeira vez por experincia direta daquilo que aprendiantes como leitor de Karl Kraus: o fato de que a poesia pode produzir um profundoefeito artsticopara alm do(mas nunca sem) o efeito imediato de sua linguagem. [...]Cada um dos versos de Uhland era simples no engenhoso, mas concisamenteinformativo [...] de tal modo que nenhum deles, tomado por si s, causaria prazer.Mas o poema como um todo d em 28 linhas o quadro de uma vida. A impresso era

    to poderosa que compreendi haver um nvel mais elevado de poesia e linguagem quetinham-me escapado previamente.

    A carta de Wittgenstein mostrou-me, para meu deleite, que ele compartilhavaminha reao.56

    O depoimento de Engelmann, associado a aforismos tractatianos e a outros textos da poca,

    permite que faamos uma clara distino entre mostrar lgicoe mostrar tico.

    Comecemos pelo mostrar lgico. Esse aspecto j est suficientemente discutido em

    nosso livro Iniciao ao Silncio.57Por esse motivo, iremos apenas mostrar resumidamente

    como o mostrar lgico se aplica ao caso do poema de Uhland. Embora tenha vinte e oito

    versos, o poema se compe de nove proposies declarativas, cada uma delas descrevendo

    fatos sobre a vida do Conde Eberhard. O carter descritivo dessas proposies muito

    marcante. O mximo que acontece com algumas delas que certos adjetivos foram usados

    metaforicamente, como em viagem errante,gentil primavera,gasto pela idade,seu sussurro

    to brando, etc. Todos esses contedos metafricos podem ser traduzidos em proposies

    dotadas de contedo descritivo adequado. Portanto, todas as nove proposies declarativas

    que compem o poema, embora estejam em linguagem potica, so dotadas de sentidodeterminado e podem ser reduzidas a proposies da linguagem ordinria realizando a mesma

    funo descritiva. Isso quer dizer que o poema faz sentido porque pode ser reduzido a uma

    55Engelmann, P. Letters from L. Wittgenstein. With a Memoir. N. York: Horizon Press, 1968, p. 83.

    56Engelmann, P. Letters from L. Wittgenstein. With a Memoir. N. York: Horizon Press, 1968, p. 84-5.

    57Ver os Captulos 6 e 7 de meu livro Iniciao ao Silncio(Margutti Pinto, P. R. Iniciao ao Silncio.Anlise do Tractatus. S.

    Paulo: Loyola, 1998, p. 175-90; 191-222).

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    conjuno de nove proposies declarativas complexas da linguagem ordinria. Qual seria a

    forma lgica de cada uma dessas proposies e como se mostraria ela, de acordo com a

    perspectiva tractatiana? A resposta a essa questo exige estarmos atentos para o fato de que,

    diferentemente de Cora Diamond, que concentra a discusso na forma lgica de casos

    localizados, como por exemplo em sua anlise de A um objeto, a preocupao fundamentalde Wittgenstein consiste em determinar as condies de possibilidade da linguagem descritiva

    como um todo. Isso implica em explicitar o que se mostra logicamente quando enunciamos

    despreocupadamente qualquer sentena da linguagem ordinria.

    A forma lgica de cada proposio declarativa do poema deve ser pressuposta mesmo

    que a anlise lgica da mesma no tenha sido explicitada. A anlise tem de ser possvel a

    priori para garantir a determinabilidade do sentido da proposio, mas no precisa ser

    efetuada a cada enunciao da mesma. Assim, quando tentamos analisar logicamente uma

    proposio da linguagem ordinria, substitumos suas expresses ordinrias por smbolos

    pertencentes a uma linguagem formal. Esse procedimento permite que a forma lgica se

    manifeste de maneira mais explcita. Porm a forma lgica profunda nunca nos ser

    integralmente acessvel em notao simblica, pois no temos como exibir a forma lgica da

    proposio elementar [5.5571]. O argumento transcendental e localiza tanto os signos

    simples como os objetos simples num nvel que est para alm do nvel ftico. Nessa

    perspectiva, as nove proposies declarativas que compem o poema de Uhland possuem

    sentido determinado porque esto garantidas a priori pelas suas condies de possibilidadeque se mostram ao sujeito transcendental.

    Faamos nesse ponto uma comparao entre Wittgenstein e Schopenhauer. Esse

    ltimo adota uma perspectiva gnosiolgica, voltada para a anlise da representao.

    Wittgenstein, por sua vez, adota um ponto de vista lingustico, buscando as condies de

    possibilidade da linguagem. Isso o leva a postular um espao lgico que o sujeito

    transcendental impe a priori linguagem e ao mundo por ela descrito. Esse espao

    estabelece um isomorfismo entre a estrutura a priorida linguagem e a estrutura a priorido

    mundo, funcionando como um cimento comum a ambas. Temos, assim, a partir desse

    domnio comum, a possibilidade de estabelecer uma correspondncia biunvoca entre dois

    sistemas transcendentais isomrficos de mltiplas coordenadas. Isso permite a construo de

    proposies dotadas de sentido, mas com a condio de que o sujeito transcendental esteja

    fora do espao lgico que ele impe linguagem e ao mundo. Isso o localiza fora da

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    lgica e fora do mundo. O aforismo correspondente no Tractatus costuma ser lido como

    meramente indicando a impossibilidade lgica do discurso metafsico em geral, mas ele

    tambm pode incluir e, em nossa leitura, ele efetivamente inclui a possibilidade de uma

    posio for a do espao lgico e, portanto, fora da lgica e do mundo, posio essa que

    ocupada pelo sujeito transcendental, que se encontra justamente no ponto de tangncia entre osolipsismo (idealismo transcendental kantiano) e o realismo (realismo emprico kantiano). Se

    essa interpretao est correta, ento a crtica tractatiana da linguagem envolve a uma

    transcendentalizao do sistema de coordenadas fsicas de Hertz e Boltzmann, localizando-

    o para alm do plano dos fatos, mas pressupondo-o como condio de possibilidade dos fatos

    e da descrio lingustica dos mesmos.58 Isso d necessidade lgica uma caracterstica

    peculiar: embora exista, ela no pode ser concebida como fato, pois corresponde s condies

    transcendentais de possibilidade da constituio dos prprios fatos. Isso explica por que

    Wittgenstein considera a distino entre dizer e mostrar anterior doutrina das tautologias,

    cuja funo justamente mostrar a forma do espao lgico. O mostrar se refere a uma

    dimenso puramente intuitiva, de carter no conceitual. Nesses teremos, certamente a

    distino constitui o problema mais importante da filosofia.

    Passemos agora ao mostrar tico, que completamente diverso, embora se baseie na

    mesma concepo de sujeito transcendental. Recapitulemos o ponto crucial da passagem de

    Engelmann acima citada. Como vimos, o poema de Uhland se compe de vinte e oito versos

    concisamente informativos de tal modo que, tomados isoladamente, no so capazes deproduzir deleite esttico. Mas o conjunto deles fornece o quadro de uma vida e produz um

    efeito que no est presente nos versos isolados. Ora, esse conjunto que forma o poema

    tambm no passa de uma lista de versos informativos. Assim, podemos constatar que o todo

    maior do que a soma de suas partes, mas no temos como exprimir esse processo misterioso.

    Como tal, o processo no possui qualquer caracterstica lingstica aparente que possa tornar

    o poema superior a cada verso isolado que o constitui. Mesmo assim, o poema consegue ir

    alm do que cada um de seus versos est dizendo e permite o acesso a algo inexprimvel que

    se encontra inexprimivelmente manifesto no conjunto desses mesmos versos. Num vis

    inspirado por Kraus e Loos, o sucesso do poema depende da simplicidade com que ele foi

    58Ver nota anterior. Janik & Toulmin tambm percebem as ligaes entre o espao de possibilidades tericas boltzmanniano e

    o espao lgico tractatiano, embora a hiptese interpretativa que oferecem seja diferente da nossa. Para eles, Wittgenstein seinspira no espao multidimensional de Boltzmann para elaborar o mtodo das tabelas-verdade, em que a verdade ou falsidadeduma proposio complexa funo dos valores-verdade das proposies elementares correspondentes (Janik, A. & Toulmin,S. Wittgensteins Vienna. N. York: Simon and Schuster. Touchstone Books, 1973, p.143-5). Mas no poderemos discutir esse

    ponto aqui.

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    feito. Isso certamente pertence a um nvel mais elevado de linguagem, que no facilmente

    perceptvel pelo comum dos mortais, mas que parece ter sido constatado e compartilhado por

    Engelmann e Wittgenstein. Essas consideraes indicam que, alm daquilo que se mostra

    logicamente em cada uma das proposies declarativas do poema, h algo que se mostra no

    poema como um todo e esse algo no pode ser afirmado explicitamente pelas proposiesdeclarativas que compem o poema. H uma dimenso esttica que ultrapassa cada

    proposio individual, embora esteja presente no conjunto delas.

    Ora, acreditamos ser possvel afirmar que essa dimenso esttica corresponde ao

    mostrar tico. Se levarmos em conta que, no aforismo 6.421, Wittgenstein afirma que tica e

    esttica so uma s, poderemos estabelecer um paralelo entre o que acontece com a leitura do

    poema de Uhland e com a experincia mstica apresentada nos ltimos aforismos do

    Tractatus. Mas importante entender inicialmente em que sentido a tica e a esttica so uma

    s. Propomos que isso assim porque ambas esto ligadas a valores que se manifestam como

    um plus ao contemplarmos uma totalidade limitada. No caso da esttica, os valores se

    manifestam a partir da contemplao do conjunto das proposies declarativas do poema

    como uma totalidade limitada. No caso da tica, os valores se manifestam a partir da

    contemplao do mundo como uma totalidade limitada (6.45). Isso significa que a experincia

    esttica e a experincia tica so fundamentalmente equivalentes e diferem apenas por uma

    questo de grau: a experincia mstica nada mais do que a experincia esttica por

    excelncia. H passagens nos Cadernos de Notas 1914-16 que reforam essa interpretao.Dentre elas, destacamos respectivamente uma de 07 de outubro de 1916 e outra de 20 de

    outubro de 1916:

    A obra de arte o objeto visto sub specie aeternitatis; e a vida boa o mundo vistosub specie aeternitatis. Esta a conexo entre a arte e a tica.A maneira usual de olhar para as coisas v os objetos por assim dizer no meio deles, aperspectivasub specie aeternitatis, de fora.De tal modo que eles tm o mundo todo como pano de fundo.

    No seria porventura isso, que nessa perspectiva o objeto visto com o espao e otempo, ao invs de noespao e no tempo?59

    Esteticamente, o milagre que o mundo exista. Que exista o que existe.60

    59Wittgenstein, L. Notebooks 1914-16. 2 ed. Ed. by G. H. von Wright and G. E. M. Anscombe. With an English translation by G.

    E. M. Anscombe. Chicago: The Un. of Chicago Press; Oxford: Basil Blackwell, 1979, p. 83.60

    Wittgenstein, L. Notebooks 1914-16. 2 ed. Ed. by G. H. von Wright and G. E. M. Anscombe. With an English translation by G.

    E. M. Anscombe. Chicago: The Un. of Chicago Press; Oxford: Basil Blackwell, 1979, p. 86.

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    Se nossa interpretao est correta, ento podemos estabelecer o seguinte paralelo entre as

    duas experincias, a partir dos aforismos tractatianos relevantes. Em primeiro lugar, no caso

    da experincia mstica, o mundo no alterado, mas sim os seus limites. Isso produz um

    mundo inteiramente diferente (6.43). No caso da experincia esttica, o poema no alterado,mas sim os seus limites. Isso produz um poema inteiramente diferente: sem a experincia

    esttica, teramos apenas uma lista de nove proposies; com a experincia esttica, a lista de

    nove proposies continua a mesma, mas a maneira de ver o poema completamente diversa.

    Nos dois casos, o apelo a limites revela as ligaes das duas experincias com o sujeito

    transcendental, que se encontra no limite do mundo. Em segundo lugar, no caso da

    experincia mstica, comoas coisas so no mundo completamente indiferente para o mais

    elevado. Deus no se revela no mundo (6.432), mas com o mundo (Cadernos de Notas,

    07/10/1916). No caso da experincia esttica, como as coisas so no poema completamente

    indiferente para o valor esttico. O belo no se revela nas proposies do poema, mas com

    essas proposies. Nos dois casos, a descrio de como as coisas so no o mais importante,

    mas sim aquilo que se manifesta como umplusque vai alm da mera descrio. Em terceiro

    lugar, no caso da experincia mstica, a soluo do enigma da vida no espao e no tempo est

    forado espao e do tempo (6.4312). No caso da experincia esttica, a contemplao do valor

    esttico que se manifesta no poema no espao e no tempo est fora do espao e do tempo. Nos

    dois casos, o que estforado espao e do tempo o sujeito transcendental, que se encontraem condies de contemplar aquilo que se manifesta inexprimivelmente no mundo e no

    poema. Em quarto lugar, no caso da experincia mstica, no comoas coisas so no mundo

    que o mstico, mas que o mundo exista (6.44). No caso da experincia esttica, no como

    as coisas so nos versos do poema que o belo, mas que o seu conjunto no poema exista. Nos

    dois casos, a mera descrio de comoas coisas so irrelevante para a contemplao do quid

    que nelas se manifesta como algo mais. Em quinto lugar, no caso da experincia mstica, ver

    o mundosub specie aeterni v-lo como uma totalidade limitada. O mstico sentir o mundo

    como uma totalidade limitada (6.45). No caso da experincia esttica, ver o poema sub specie

    aeterni v-lo como uma totalidade limitada. O esttico sentir o poema como uma

    totalidade limitada. Nos dois casos, preciso que um sujeito em posio privilegiada seja

    capaz de contemplar aquilo que se manifesta na totalidade limitada e que ultrapassa as suas

    partes isoladas. Em sexto lugar, no caso da experincia mstica, podemos perceber que h

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    coisas que no podem ser colocadas em palavras, mas que se mostram ou manifestam (6.522).

    No caso da experincia esttica, podemos perceber que h coisas que no podem ser

    colocadas em palavras, mas que se mostram ou manifestam. Nos dois casos, temos

    manifestaes do mostrar tico, que radicalmente diferente do mostrar lgico. Ora, essa

    dimenso do mostrar tico simplesmente foi ignorada por Cora Diamond em sua discussosobre a escada tractatiana. Reconhecer a sua especificidade permite concluir que, embora a

    lgica e a tica sejam transcendentais, a transcendentalidade da lgica tem ligao direta com

    a forma geral da proposio, ao passo que a transcendentalidade da tica tem ligao direta

    com o valor absoluto. Esse ltimo se manifestapara almda forma geral da proposio e no

    se identifica com ela.

    IV Consequncias dos resultados obtidos em relao leitura de Cora Diamond

    Esperamos ter justificado de maneira adequada a existncia de uma distino entre o

    mostrar lgico e o mostrar tico. Surpreendentemente, esse ltimo se manifesta como algo

    que vai alm da contemplao das condies transcendentais de possibilidade da linguagem

    descritiva. O mostrar ticose revela juntamente com o mostrar lgico, mas no se identifica

    com ele. Desse modo, a lgica e a tica se referem a domnios transcendentais especficos. A

    lgica tem a ver com as condies transcendentais de possibilidade da linguagem dotada de

    sentido, condies essas, que, como j mencionamos, se mostram no espao lgico queestrutura tanto a linguagem descritiva como o mundo ftico. Nessa perspectiva, a lgica

    transcendental. A tica tem a ver com a contemplao do sentido da vida, contemplao essa

    que s pode ser realizada a partir de uma posio fora do mundo, no limite do mundo. O

    valor em sentido absoluto se mostra ao sujeito transcendental. Por esse motivo, a tica

    transcendental, mas num sentido diferente da lgica. Alm disso, a tica e a esttica so uma

    s no nvel transcendental. Suspeitamos que essa identificao pode ser feita porque a

    experincia mstica nada mais do que a experincia esttica por excelncia.

    Com base nessa distino, pensamos ser possvel explicar o mecanismo que leva Cora

    Diamond a avanar a sua interpretao equivocada do Tractatus. Ignorando a maioria dos

    autores e ideias que constituem o contexto relevante para a compreenso do Tractatus, ela

    concentra toda a sua ateno na questo da forma lgica. Isso faz com que a dimenso tica

    bem como toda perspectiva metafsica associada seja ou ignorada ou reduzida dimenso

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    lgica. O problema todo est na recusa de Cora Diamond em reconhecer que a intuio

    filosfica fundamental do Tractatus envolve a experincia acima mencionada de

    autoconscincia, em que duas dimenses opostas, a emprica e a transcendental, esto

    presentes. Essa intuio solipsista est ligada ao romantismo filosfico schopenhaueriano,

    porque envolve uma forma de coincidentia oppositorum que no pode ser explicada pelodiscurso racional. Como vimos, Cora Diamond faz uma distino forte entre dizer que (A)

    algo a iluso de uma perspectivae dizer que (B)algo a perspectiva correta, mas no pode

    ser colocado em palavras. E alega que a correta interpretao de Wittgenstein se encontra na

    alternativa (A) e no em (B), que amarelante. Mas se levarmos em conta as afinidades

    entre os pensamentos de Schopenhauer, Weininger, Mauthner e Wittgenstein,

    reconheceremos que a base da filosofia tractatiana envolve a experinciasui generisdo ponto

    de contato entre o sujeito transcendental e o sujeito emprico. Isso nos levar a perceber que

    as leituras alternativas por ela apresentadas, embora sejam mutuamente excludentes, so

    igualmente vlidas e complementares na leitura do Tractatus, porque se aplicam a dimenses

    diferentes: (A) correta do ponto de vista do sujeito emprico, mas no do ponto de vista do

    sujeito transcendental; (B) correta do ponto de vista do sujeito transcendental, mas no do

    ponto de vista do sujeito emprico. Com efeito, o sujeito emprico corresponde a um

    fenmeno mundano e, enquanto tal, no tem condies de assumir uma perspectiva fora da

    lgica e fora do mundo. De seu ponto de vista mundano, a ideia de que algo a perspectiva

    correta, mas no pode ser colocado em palavras constitui efetivamente a iluso de umaperspectiva e qualquer tentativa de express-la linguisticamente envolve confuso lgica.

    Nessa perspectiva, a tautologia nada diz e nada mostra, porque no tem contedo ftico. Aqui,

    a tautologia no uma proposio autntica cujas condies-verdade so sempre satisfeitas,

    mas sim uma pseudo-proposio formada a partir da estrutura do prprio simbolismo

    utilizado. Quanto necessidade lgica, ela constitui uma iluso, pois no possui contedo

    ftico. Alm disso, a tica e a lgica so impossveis enquanto cincias, pois suas respectivas

    proposies no satisfazem aos requisitos da forma geral da proposio. A distino entre

    dizere mostrarno possui contedo ftico para poder ser feita e deve ser abandonada como

    uma linguagem de transio. Na verdade, no apenas os aforismos tractatianos que fazem essa

    distino, mas tambm todos os aforismos restantes fazem parte de uma linguagem de

    transio, que deve ser abandonada no final, conforme a sugesto da metfora da escada. At

    esse ponto, os objetivos teraputicos da crtica tractatiana da linguagem esto plenamente

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    realizados, em concordncia com Cora Diamond. Mas se ignorarmos o contexto mais amplo

    do Tractatus e restringirmos nossa interpretao da obra a essa dimenso teraputica,

    estaremos comprometendo gravemente a compreenso da filosofia tractatiana e eliminando a

    sua dimenso mais rica, ou seja, a sua inteno tico-metafsica.

    Assim, se passarmos para a dimenso do sujeito transcendental, veremos que ele nocorresponde a nenhum fenmeno mundano e est no limite do mundo. Nessa posio, ele

    tem plenas condies de assumir uma perspectiva fora da lgica e fora do mundo. De seu

    ponto de vista extra-mundano, a ideia de que algo a perspectiva correta, mas no pode ser

    colocado em palavras perfeitamente vlida e no constitui a iluso de uma perspectiva. Se o

    ponto de vista do sujeito transcendental possvel, ento a necessidade lgica no um fato,

    mas tambm no constitui uma mera iluso. Ela estrutura o espao lgico que o sujeito

    transcendental impe aos fatos mundanos para poder discursar sobre eles. A necessidade

    lgica no um fato e no pode ser tratada como tal porque ela estabelece as condies de

    possibilidade dos fatos e de sua descrio lingustica. De maneira semelhante, a tautologia

    nada diz, mas isso no significa que ela nada mostre. verdade que ela no possui contedo

    ftico e por conseguinte no mostra coisa alguma que seja ftica. Mas o vis

    schopenhaueriano da filosofia tractatiana permite inferir que ela mostra algo que no seja

    ftico e sim condio de possibilidade da estruturao de fatos. Nesse sentido, a tautologia

    mostra para o sujeito transcendentala estrutura do espao lgico. E a distino entre dizere

    mostrar, embora pertena tambm ao grupo dos contrassensos tractatianos, aponta na direode uma perspectiva correta que no pode ser colocada em palavras. verdade que Cora

    Diamond alegaria, contra isso, que no podemos conceber algo que se mostre ao sujeito

    transcendental como no-ftico, mesmo que esse algo constitua a condio de possibilidade

    dos fatos, seja sob a forma da necessidade lgica, seja sob a forma da estrutura do espao

    lgico. Mas essa objeo envolveria a mesma confuso de perspectivas anteriormente

    mencionada. Ela est certa do ponto de vista do sujeito emprico, que usa uma linguagem

    ftica para descrever fatos. Todavia, do ponto de vista do sujeito transcendental, ela est

    errada, j que esse olho geomtrico est no limite do mundo ftico e, portanto, fora da

    dimenso ftica. Ele tem acesso no-ftico quilo que se mostra no-faticamente. No por

    outro motivo que todos os autores que assumem essa perspectiva fazem como Schopenhauer e

    reconhecem que a existncia de um ponto de tangncia entre o sujeito emprico e o

    transcendental constitui um milagre inexplicvel. verdade que um pensador de tendncias

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    iluministas, como Cora Diamond, tenderia a negar essa dimenso no-ftica como ilusria.

    Mas tambm verdade que um pensador de tendncias romnticas, como Wittgenstein,

    tenderia a assumir essa dimenso miraculosa como capaz de fornecer o sentido da vida,

    mesmo que apenas sob a forma de uma contemplao silenciosa.

    Desse ponto de vista, a caracterizao diamondiana de um juzo moral como algo queno faz sentido, mas que dizemos de corao em virtude da atrao excercida sobre nossa

    imaginao de agentes morais est certa, mas apenas na perspectiva do sujeito emprico. Na

    perspectiva do sujeito transcendental, a bondade ou maldade da vontade se mostra de maneira

    inexprimvel como valor absoluto. Assim, Cora Diamond est certa quando afirma que a

    palavra transcendentalpode ser entendida como uma espcie de advertncia em Wittgenstein

    e que a tica est ligada ao transcendental justamente porque ela destruda quando tentamos

    introduzi-la no mundo emprico. Mas a advertncia se aplica apenas ao sujeito emprico, que

    no pode colocar em palavras o valor tico. Quando o sujeito transcendental est envolvido, a

    advertncia perde sua fora e cede lugar contemplao silenciosa desse mesmo valor tico.

    Desse ponto de vista, a equiparao que Cora Diamond faz entre a lgica e a tica, dizendo

    que ambas so transcendentais em virtude das ligaes desse termo com a forma geral da

    proposio, revela-se bastante equivocada e empobrecedora. Isso assim no somente porque

    ela no encontra corroborao nos prprios aforismos tractatianos, que apenas equiparam a

    tica esttica, deixando a lgica em separado, mas tambm porque possvel mostrar a

    diferena fundamental entre tica e lgica. Reduzir tudo forma geral da proposio significaconfundir o mostrar tico com o mostrar lgico, minimizando a participao do sujeito

    transcendental. Assim, quando Wittgenstein afirma que a lgica ou a tica transcendental,

    ele est efetivamente se referindo atividade do sujeito transcendental. E o objetivo do

    Tractatus tico no apenas porque a obra nos ensina a ver o mundo da maneira correta, sem

    fazer falsas demandas ao mundo e sem ter falsas expectativas filosficas, mas tambm porque

    ver o mundo da maneira correta envolve contemplar silenciosamente o sentido da vida.

    verdade que a inteno tica da obra inclui a inteno de que o livro no seja interpretado,

    mas a rejeio dos aforismos tractatianos inclui uma operao de clarificao bem mais ampla

    e moralmente muito mais rica do que a meramente teraputica. Como diz Mauthner, a

    convico produzida pela intuio solipsista logicamente irrefutvel enquanto experincia

    vivida interiormente, mas se torna um relato alienado quando a tentamos colocar em palavras.

    Reduzir a inteno tica da obra apenas funo teraputica de eliminar o discurso

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    metafsico, como faz Cora Diamond, equivale a ignorar de maneira injustificada todas as

    evidncias ligadas viso de mundo tico-religiosa de Wittgenstein.

    Com sua viso influenciada pela perspectiva analtica anglo-americana, de tendncias

    naturalizantes, Cora Diamond no est equivocada porque defende o carter teraputico do

    pensamento de Wittgenstein em todas as suas fases, mas sim porque concentra suainterpretao nesse carter teraputico e simplesmente ignora a dimenso tico-religiosa desse

    mesmo pensamento. Se isso verdade, ento o significado de levar a srio o aforismo 6.54

    ainda pode ser entendido no sentido metafsico que Cora Diamond pretende rejeitar.

    verdade que, nesse aforismo, Wittgenstein afirma que quem oentende acaba por reconhecer

    as proposies do Tractatus como contrassensos. Essas proposies nada dizem, no possuem

    qualquer contedo e por isso Wittgenstein tem de passar por cima delas e dizer quem me

    entende. Mas tambm verdade que, se algum oentende, ento algo que no contrassenso

    pode ser compreendido a partir da leitura do Tractatus. Esse algo no pode estar nas

    proposies tractatianas, que nada dizem e nada mostram, mas deve manifestar-se de algum

    modo, apesar dessas proposies. Esse algo deve estar no nessas proposies, mas para

    alm delas. O leitor que entende Wittgenstein nos termos do aforismo 6.54 eventualmente

    perceber que os aforismos tractatianos so tentativas frustradas do sujeito emprico de dizer o

    que se mostra ao sujeito transcendental mas no pode ser colocado em palavras. Ao

    acompanhar Wittgenstein na realizao dessa tentativa frustrada, ele perceber tambm que

    ela funciona como um ritual de passagem, uma escada para que o sujeito emprico reconheaestar lutando contra os limites da linguagem e ceda o lugar ao sujeito transcendental e o

    mundo possa ser visto corretamente por esse ltimo. Nessa perspectiva, todas as proposies

    do Tractatus se revelam contrassensos a mesmo ttulo, sem a necessidade de qualquer

    linguagem de transio sobre a distino entre dizer e mostrar.

    Se isso est correto, ento o uso de uma expresso como amarelar para bloquear a

    leitura transcendental s ir trazer mais obscuridade para uma discusso que, por si s, j

    suficientemente obscura. Com efeito, o uso dessa expresso retrica envolve a inteno de

    sugerir que os intrpretes do Tractatus que admitem a distino entre dizer e mostrar ainda

    no tiveram a coragem de se libertar de seus preconceitos filosficos, refugiando-se numa

    metafsica silenciosa que incompatvel com os objetivos teraputicos da obra. Mas essa

    expresso uma faca de dois gumes. No sem razo que Hacker, ao criticar a noo de

    contrassenso transicional, pergunta se Cora Diamond e seus seguidores seriam capazes de

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    explicar o seu funcionamento sem amarelar.61 Na verdade, a proibio tractatiana com

    relao metalinguagem sistematicamente desrespeitada por Cora Diamond ao tentar

    justificar sua leitura. Esse problema no afeta os aforismos do Tractatus, que, envolvendo

    consideraes metalingusticas ou no, so todos descartados no final. E a recusa de Cora

    Diamond em trazer para a discusso as ideias de autores relevantes como Mauthner deixaclaro que ela no mximo oferece uma leitura empobrecida do Tractatus, separando

    esquizofrenicamente essa obra das demais manifestaes da pessoa que a escreveu. Tais

    manifestaes ineludivelmente apontam na direo de uma viso de mundo tico-religiosa

    que vai muito alm da mera inteno teraputica.

    VI Observaes finais

    Esperamos ter mostrado que, embora verossmil, a interpretao oferecida por Cora

    Diamond para o Tractatus pouco provvel. Sua leitura somente possvel se o ser humano

    Wittgenstein for completamente desligado de seu contexto austraco. O ponto mais fraco da

    interpretao diamondiana est justamente no esquecimento de Mauthner e dos autores a ele

    ligados. Ao invs de levar em conta esse pensador para tentar compreender o Tractatus, Cora

    Diamond concentra sua ateno em Frege e Russell, como se os dois fossem a nica fonte de

    inspirao para a complexa filosofia do jovem Wittgenstein. Se levarmos em conta o fato de

    que Mauthner o nico dentre os trs a discutir explicitamente a crtica da linguagem e a usara metfora da escada em conexo com ela, sua importncia para compreendermos o aforismo

    6.54 se torna crucial.

    Os pontos de convergncia entre as crticas mauthneriana e wittgensteiniana da

    linguagem explicitam e ajudam a justificar os objetivos ticos do Tractatus. Esses objetivos

    esto ligados ao projeto de moralizao dos meios de comunicao no decadente Imprio

    Austro-Hngaro do final do s. XIX e busca de uma experincia mstica capaz de dar o

    sentido da vida. Os pontos de divergncia entre as duas crticas explicitam e ajudam a

    compreender as principais caractersticas da abordagem tractatiana. Mauthner efetua uma

    crtica nominalista da linguagem, de carter meramente descritivo, e chega a resultados

    bastante cticos: embora possua poder evocativo atravs da poesia, a linguagem incapaz de

    expressar qualquer tipo de conhecimento. Wittgenstein, em contraposio, efetua uma crtica

    61Hacker, P. M. S. Was he Trying to Whistle it? In: A. Crary and R. Read eds. The New Wittgenstein. London: Routledge, 2000,

    p. 361.

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    transcendental da linguagem, buscando sua essncia, e chega a resultados menos drsticos: a

    linguagem est apta a descrever cientificamente o mundo, embora no seja capaz de expressar

    a experincia mstica da contemplao do sentido da vida. Ambas as crticas so suicidas, pois

    utilizam a linguagem como uma escada para depois jog-la fora e terminar no silncio

    contemplativo. Ambas as crticas envolvem um ritual de iniciao que nada tem a ver com asintenes puramente analticas de Frege e Russell. verdade que ambos motivaram bastante

    as reflexes de Wittgenstein, mas suas ideias foram transplantadas e adaptadas para uma

    atmosfera completamente estranha ao ambiente analtico. O apelo a um contexto mais amplo

    permite tambm uma melhor compreenso da relevncia e do papel desempenhado na

    elaborao da filosofia tractatiana pelas ideias de outros autores, como Hertz, Bolztmann,

    Kant e Schopenhauer. Essa contextualizao mais ampla tambm permite a compreenso da

    relevncia das ideias de outros autores, como Tolstoi, Kierkegaard e William James, embora

    os mesmos no tenham sido considerados aqui por motivos de espao.

    O apelo s ligaes entre Wittgenstein, Mauthner e Schopenhauer revela que a busca

    da experincia mstica envolve uma forma particular de solipsismo em que o eucorresponde a

    um miraculoso ponto de tangncia entre a dimenso emprica e a transcendental. A dimenso

    emprica pode ser descrita pelo discurso racional, baseado em conceitos, enquanto a dimenso

    transcendental s pode ser acessada atravs de uma intuio de carter no-conceitual. essa

    concepo schopenhaueriana que leva Wittgenstein a fazer a distino entre dizere mostrar,

    que, nessa perspectiva, certamente constitui o tema mais importante da filosofia. E graas aessa distino que Wittgenstein pode caracterizar as tautologias como capazes de mostrar

    alguma coisa ao sujeito transcendental, apesar de no possurem contedo ftico algum.

    O solipsismo acima descrito tambm permit