Coracini_Entre adquirir e aprender uma língua

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    4 Bakhtiniana, So Paulo, 9 (2): 4-24, Ago./Dez. 2014.

    Entre adquirir e aprender uma lngua:subjetividade e polifonia / Between Acqui r ing and Learning a Language:

    Subjectivi ty and Polyphony

    Maria Jos Coracini*

    RESUMO

    Pretende-se discutir e desconstruir as dicotomias aprendizagem/aquisio, lngua

    materna/lngua estrangeira, a partir de um corpus extrado de relatos de dez falantes delngua(s) estrangeira(s). Em geral, eles apre(e)deram a(s) lngua(s) em situaes informaisou, como dizem eles, em situaes autodidatas. A anlise efetuada tomou por base a

    perspectiva discursivo-desconstrutivista, que inclui pensadores como Bakhtin, Foucault,Derrida e Lacan. Todos eles partilham concepes como lngua(gem), sujeito e cultura. Aanlise empreendida permitiu perceber que, ao falarem de como aprenderam a(s) lngua(s)estrangeira(s), a maioria dos participantes da pesquisa s consideram as estratgias, asmetodologias (formais e informais), os meios utilizados para terem acesso lngua-culturado outro, esquecendo que adentrar a lngua do outro pressupe o desejo que se manifesta noamor da(s) lngua(s) e do outro.PALAVRAS-CHAVE: Dialogismo; Lngua Estrangeira; Lngua Materna; Desconstruo;Discurso; Subjetividade

    ABSTRACT

    This paper aims at discussing and deconstructing dichotomies such as learning/acquisition,mother tongue/foreign language, drawing upon a corpus extracted from reports of ten

    foreign language speakers. In general, they learned (grasped) those languages in informalsituations or, as they say, in autodidactic ones. The analysis was based on the discursive-deconstructive perspective, which includes thinkers such as Bakhtin, Foucault, Derrida and

    Lacan, who share concepts of language, subject and culture. The analysis has allowed us to

    realize that when talking about how they learned the foreign language(s), the majority ofthe participants only consider strategies, (formal and informal) methodologies, the meansused to have access to the other person's language-culture, forgetting that entering theother's language presupposes the desire that manifests itself in the love for the language(s)and for the other.

    KEYWORDS: Dialogism;Foreign Language; Mother Tongue; Deconstruction; Discourse;Subjectivity

    *Universidade Estadual de CampinasUnicamp, Campinas, So Paulo, Brasil;[email protected]

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    Este texto pretende discutir o pressuposto difundido na escola e junto a

    professores de lngua estrangeira de que, para se ensinar e, portanto, aprender uma

    lngua preciso, de um lado, conhecer essa lngua, no sentido gramatical (lexical,

    morfolgico e sinttico), e, de outro, ter uma metodologia de ensino bem estruturada

    como a que se pressupe existir em livros didticos. Estes so legitimados pelo nome da

    editora e do autor e, consequentemente, pela instituio escolar e por rgos ligados s

    polticas de ensino do pas, assim como por muitos pesquisadores que, no raro, so

    tambm autores desse material didtico que, muito frequentemente seno sempre, vem

    acompanhado (no mesmo livro ou em livro ou caderno separado) do manual, guia ou

    orientaes para o professor. A designao que se d a este material j mostra como

    esse caderno constitui a autoridade mxima que serve de espelho para o professor,orientando-o, guiando-o, servindo-o diariamentemanual o que se manuseia, que est

    sempre ao alcance das mos, at mesmo nos gestos e nas respostas a serem obtidas.

    Mas no propriamente o material didtico que pretendemos abordar neste

    texto, embora indiretamente ele esteja presente como um fantasma que assombra a

    todos, professores de lnguas em geral, inclusive da lngua dita materna. O que nos

    move problematizar a noo de metodologia a ser praticada em aula de lngua

    estrangeira, sobretudo no incio da aprendizagem. Como se aprende uma lngua? Todosprecisam de mtodos bem delineados para aprender/adquirir uma lngua? De que

    necessitam os interessados? Essas so algumas das questes que pretendemos abordar

    ao longo deste texto, trazendo para isso excertos de relatos de experincia de 10 falantes

    de outras lnguas.

    Do ponto de vista terico, basear-nos-emos nos estudos do discurso,

    privilegiando Bakhtin para a compreenso da polifonia nos dizeres dos participantes de

    pesquisa, bem como da noo de ideologia, uma das contribuies mais relevantes doautor em Marxismo e filosofia da linguagem, e em Foucault, sobretudo para a

    compreenso das relaes de poder que perpassam todas as relaes humanas,

    substituto (com diferenas, claro) de ideologia e de subjetivao; na Psicanlise

    freudo-lacaniana, trazendo baila conceitos a respeito de tudo o que envolve o sujeito; e

    na desconstruo derrideana, para a problematizao do que nos parece natural,

    verdadeiro, real. Em suma, apoiamo-nos na perspectiva que denominamos discursivo-

    desconstrutivista, para distingui-la de outras abordagens discursivas. Trazer esses

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    pensadores pode sugerir falta de rigor cientfico pelas diferenas, por vezes profundas,

    existentes entre eles, mas eles trazem, tambm, similaridades: criticam a concepo de

    cincia, baseada na razo, na verdade absoluta, como um fim em si mesma, na ausncia

    de toda e qualquer subjetividade. Como contemporneos que foram, sua concepo de

    linguagem e sujeito era contrria racionalidade que vigorava nas Cincias Humanas

    at a dcada de 60. Compartilhando, cada qual sua maneira, uma viso

    desconstrutivista, que se ope construtivista, e concepes semelhantes de sujeito,

    subjetividade e linguagem (opaca), possvel aproxim-los e tomar de cada um o que

    h de mais adequado nossa pesquisa. o que procura(re)mos fazer.

    1 (Des)naturalizando crenas...

    Na dcada de 80, Krashen (1987; 1988) distingue aquisio de aprendizagem,

    defendendo a ideia, at hoje subjacente a pesquisas e mtodos didticos que se dizem

    comunicativos, de que apenas a lngua dita materna adquirida; as demais so

    aprendidas. Isso significa que a primeira lngua, aquela que marca definitivamente o

    indivduo tornando-o sujeito, assimilada sem que se conhea sua gramtica, ou

    melhor, sem que se conhea a lngua formalmente. As outras lnguas, denominadas

    comumente estrangeiras, so apre(e)ndidas em contextos formais, j que os aprendizes

    no esto em contato direto - ou em situao de imerso -, com falantes dessas lnguas.

    A primeira adquirida inconscientemente, sem que nos apercebamos, enquanto as

    outras so aprendidas de forma consciente. Alis, segundo Krashen (1988), quanto mais

    conscientes forem as estratgias de aprendizagem mais e melhor ser o processo e os

    resultados; da o estudo de estratgias didtico-pedaggicas (cognitivas e

    metacognitivas), fomentadas por pesquisas com aprendizes, com o intuito de facilitar talaprendizagem.

    Essa dicotomia foi tambm reforada pelo psicanalista, radicado em Paris,

    Melman (1992). Segundo ele, s possvel saber a lngua materna; as demais s

    possvel conhecer. Mais recentemente, em palestras1, o mesmo psicanalista afirmou

    que a lngua materna aquela na qual (se) conta, diferentemente das demais, nas quais

    1

    Refiro-me a palestras em que estive presente no ano de 2006, em Paris, nas quais o psicanalistacomentou a respeito de um microfilme sobre ser/estar entre lnguas.

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    apenas contamos (nmeros, por exemplo), de forma consciente. Mas, como

    compreender a diferena entre saber e conhecer postulada por Melman (1992)? Saber,

    parece-nos, tem a ver com adquirir, com nos constituir dessa e por essa lngua (que

    sempre cultura), que acolhe o beb at antes de nascer, que fala do e para o sujeito. Em

    outro trabalho (CORACINI, 2011c; 2014a), fao referncia ao verbo saber, num de

    seus sentidos caros aos portugueses, que remete a sabor,d prazer, mata minha sede

    ou minha fome, como no seguinte exemplo: algum est comendo (saboreando) uma

    fruta e diz Isso me sabe!. A lngua materna viria, ento, amalgamada cultura que

    acolhe o beb, protegendo-o, ainda que ilusoriamente, como uma me, que o protege e o

    enlaa na memria discursiva, na tradio e na historicidade (momento histrico-social

    e, portanto, cultural em que ambos se encontram).E o que dizer da lngua chamada estrangeira2? Segundo Melman, na obra citada,

    s possvel conhec-la, o que remete ao conceito de aprendizagem de Krashen (1987;

    1988). Assim se posiciona Melman (1992, p.15):

    Saber uma lngua muito diferente de conhec-la. Saber uma lngua querdizer ser falado por ela, que o que ela fala em voc se enuncia por suaboca como destacado a ttulo do eu.

    Conhecer uma lngua quer dizer ser capaz de traduzir mentalmente, apartir da lngua que se sabe, a lngua que se conhece. Desde ento, nofalamos mais do mesmo lugar, nos comunicamos.

    A lngua, portanto, que sabemos a chamada lngua materna, aquela que fala de

    ns, a que conhecemos a lngua estranha, a lngua do outro, que compreendemos a partir

    da primeira, que nos constitui enquanto sujeito. A lngua estrangeira seria, segundo

    Melman (1992), uma lngua de comunicao, que teria uma funo, mas que seria exterior

    ao prprio sujeito, tal como um instrumento.

    Assim, parece-nos, o posicionamento desses intelectuais (Krashen e, de modo

    diferente, Melman), defende a impossibilidade de que a(s) lngua(s) estrangeira(s) seja(m)

    assimilada(s) (lt. smile = anlogo, parecido), apre(e)ndida(s), capt(ur)ada(s) pelo sujeito,

    fazendo corpo com ele e nele, semelhana da lngua dita materna. E mais: como

    decorrncia, apontam para a aprendizagem consciente, racional, formal dessas lnguas, o

    que, de certa forma, remete necessidade de uma metodologia pensada, racionalizada por

    2Para entender por que me refiro s chamadas lngua materna e estrangeira, ler Coracini (2010).

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    algum que tenha a competncia e a legitimidade para fabricar um material a ser utilizado

    em sala de aula. Num mundo regido pela economia como o nosso, tal metodologia precisa

    ser comercializada, seja via papel ou tela do computador. Apoiando-se no argumento de

    que preciso facilitar o trabalho do professor, assoberbado de trabalho mal pago, com

    pouco tempo para preparar suas aulas, editoras ou sites vendem o produto, muitas vezes

    encomendado a certos autores, comumente tambm professores dessa(s) lngua(s).

    Ocultam, assim, uns e outros, a verdadeira razo pela qual aderem professores e escolas ao

    uso desse material: a formao lacunar do professor, que, frequentemente, no se sente ou

    no considerado (bem) preparado para a tarefa de ensinar.

    Seja como for, parece haver algo em comum: uma lngua estrangeira precisa ser

    aprendida em contextos formais ou institucionais, ainda que se diga, de forma recorrente,que no se aprende uma lngua na escola, referindo-se ao ensino fundamental e mdio,

    como o faz um dos participantes da pesquisa (cf. R1, mais adiante). Com essa assertiva to

    comum, privilegia-se o ensino em institutos ou escolas de idiomas. Mas, como explicar que

    alguns indivduos sejam capazes de aprender uma lngua estrangeira sozinhos, sem a

    participao de especialistas/professores? Haveria mesmo autodidatas nesse campo? Esse

    assunto ser tratado a seguir.

    Antes de passar para o item seguinte, vale lembrar que, apesar de tudo, hpesquisadores que no fazem a dicotomia entre adquirir e aprender, que, de certa forma,

    pode se referir a saber e conhecer, dicotomia que considerada por Melman (1992) e

    tambm por Foucault (1984). No caso de Foucault, ele nem sequer cogita em discutir a

    questo das lnguas, mas em distinguir essas concepes: conhecer aponta para os

    ambientes formais, em que a razo e, portanto, a conscincia predomina, enquanto saber se

    refere a processos inconscientes, s experincias de vida, em contextos, portanto, informais.

    Dentre os autores que no fazem tal distino, encontram-se Noyau (1987), Porquier &alii(1987), Derville & Portine (1998), Pekarek (1998), cujos textos resultam do Colquio

    Internacional Aquisio de uma lngua estrangeira: perspectivas e pesquisas3. Esses

    pesquisadores referem-se ao aprendiz de uma lngua estrangeira como aquele que adquire

    essa lngua no fazendo distino entre aprendizagem e aquisio.

    3Actes du XmeColloque International Acquisition dune langue trangre: perspectives et recherches,

    Besanon, 1996. Colquio com o mesmo nome aconteceu em 1986, em Aix-en-Provence, cujo temagirava em torno de Apropriar-se de uma lngua estrangeira (Sapproprier une langue trangre).

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    2 possvel aprender uma LE na escola ou fora dela?

    A fim de problematizar a aprendizagem formal de uma LE, foram feitas

    entrevistas online junto a 10 estudantes universitrios de diferentes reas de

    conhecimento, que se dizem autodidatas em pelo menos uma lngua, fazendo a hiptese

    de que possvel assimilar uma lngua sem passar pelos aspectos formais da

    aprendizagem que pressuporia, acima de tudo, o conhecimento (consciente, portanto)

    dessa lngua. Tal hiptese se viu respaldada, mais tarde, por Gee (2004) que, na

    Introduo de sua obra Situated Language and Learning: A Critic of Traditional

    Schooling, depois de apresentar brevemente a mudana ocorrida em seu posicionamento

    como professor e pesquisador antes, voltado para os aspectos gramaticais maisrelevantes para o ensino da lngua inglesa; agora, voltado para outros aspectos, menos

    escolares , admite que

    [...] existem [...] novas formas de aprendizagem, em voga no mundo -maneiras no necessariamente ligadas a acadmicos ou escolas. Essasformas so, sua maneira, to especiais, tcnicas e complexas quanto asformas acadmicas e escolares. Mas so motivadoras para muitas pessoaspara quem a escola no era (p.1-2)4.

    O que se queria obter com as entrevistas era o relato de experincias, muito prximo

    s histrias de vida, no caso em questo, parciais, focadas no aspecto que nos interessa.

    Desse modo, como forma de estmulo, foram feitas as seguintes perguntas: Que lnguas

    voc sabe? Voc as aprendeu na escola? Escreva, como se estivesse falando, com todos os

    detalhes, como voc aprendeu essa(s) lngua(s)? Como voc procedeu (tudo o que lembrar,

    por favor)?

    Obtivemos respostas, ao mesmo tempo, semelhantes e diferentes. Semelhantes,porque todas se referem ao autodidatismo na aprendizagem de uma ou mais lngua(s),

    entendendo que o autodidata no aprende a(s) lngua(s) em ambientes formais.

    Semelhantes, ainda, porque, embora no tendo aprendido na escola, em contexto formal de

    aprendizagem, os participantes da pesquisa se serviram de estratgias semelhantes quelas

    4 Traduo minha: [...] there are [...] new ways of learning, afoot in the worldways not necessarily

    connected to academics or schools. These ways are, in their own fashion, just as special, technical, andcomplex as academic and school ways. But they are motivating for many people for whom school wasnt.

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    em uso nesse contexto; por exemplo, trs dos entrevistados seguiram um curso (o mesmo)

    pela internet, outros, embora no reconhecendo o valor do que aprenderam na escola, se

    serviram, de algum modo, dos aspectos gramaticais que lhes foram transmitidos nesse

    contexto institucional. Observemos o seguinte excerto:

    R1: claro que eu tive ingls no ensino fundamental e mdio, noentanto no se aprende muita coisa nesse ingls de escola, apesar deque no posso negar que tenha aprendido como escrever sentenas nasformas interrogativa, negativa e afirmativa, por exemplo, eu aprendina escola que em alguns casos necessrio usar o auxiliar doparafazer uma pergunta. Mas nunca fiz curso de ingls em escolas pagascomo Cultura Inglesa, Fisk, etc. (Valrio).

    Observe-se o uso argumentativo da estrutura concessiva claro que no

    entanto -, que indicia a presena, na materialidade lingustica, de ao menos outra voz

    que afirmaria a aprendizagem da lngua inglesa no ensino fundamental e mdio e outra,

    que simula ser a do prprio enunciador, afirmando que no se aprende lngua

    estrangeira na escola. Essa assero, como sabemos por outras pesquisas, j se tornou

    lugar comum, inquestionvel, naturalizado, apontando os cursos particulares em escolas

    de idiomas como o lugar onde se aprende efetivamente. Essa voz emerge claramente no

    recorte anterior, j que Valrio justifica o que ele denomina autodidatismo (na resposta

    primeira pergunta)por no ter feito curso de ingls em escolas pagas como Cultura

    Inglesa, Fisk, etc.: mesmo sem querer, faz a apologia desses cursos, sem deixar de

    reconhecer o valor dos aspectos formais aprendidos na escola.

    Assim, esse recorte e os demais apontam tambm para outra semelhana: as

    inmeras vozes que, vindas do outro, fazem eco no dizer de cada um, indiciando o que

    Bakhtin/Voloshinov (1977) denominam dialogismo ou polifonia5: vrias vozes que

    entram na constituio do dizer, vozes j ditas, sempre repetidas, mas semprecarregadas do novo proveniente de cada situao de enunciao, como observamos no

    recorte anterior.

    E Todorov (1981) afirma, com base em Bakhtin, que

    5

    Nas palavras de Todorov (1981, p.95), trata-se da intertextualidade, palavra que, tomada de Kristeva,prefere a dialogismo.

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    [n]os escritos posteriores, Bakhtin insistir particularmente em umaoutra evidncia: seja qual for o objeto da fala, esse objeto, de ummodo ou de outro, j foi dito sempre e no se pode evitar o encontrocom discursos anteriores mantidos sobre esse objeto (1981, p.98)6.

    De forma semelhante, Foucault (1996, p.26) se pronuncia sobre o j dito, afirmando

    que a cada enunciao novos sentidos (ou, melhor, efeitos de sentido) so produzidos.

    Foucault aponta para isso na seguinte frase: O novo no est no que dito, mas no

    acontecimento de sua volta. Ainda de forma semelhante, Derrida (1972) se refere ao

    mesmo que sempre diferente a cada enunciao, no to diferente a ponto de no haver

    semelhanas nem to semelhante a ponto de no se perceberem retomadas. Na esteira de

    Bakhtin, Authier-Revuz (1998) prope a heterogeneidade constitutiva do texto que, vez por

    outra, emerge ou se acha representada na materialidade lingustica.

    Ainda a partir de Bakhtin (1977), vale lembrar que todo dizer se oferece a um outro

    sujeito, como algo a ser interpretado, segundo o contexto (aspectos contextuais, sociais e,

    portanto, culturais) em que este se encontra. A bem da verdade, no h uso da linguagem

    que no venha perpassado, constitudo pela cultura, se entendermos cultura como os

    aspectos histrico-sociais, ou melhor, como ideolgicos (modos de ver o mundo, ao outro e

    a si mesmo) que caracterizam um dado povo, nao ou grupo (familiar, profissional, de

    amizade...). Poderamos, ainda, entender cultura semelhana do que Bakhtin/Voloshinov

    (1977, p.32) denominam ideologia: conjunto de ideias que constituem toda e qualquer

    relao dialgica. Ora, segundo Bakhtin/Voloshinov (1977), a comunicao humana

    cotidiana se d inevitavelmente por ideias (alis, no o fazemos de outra maneira) e estas s

    podem se oferecer ao outro (interlocutor) atravs de signos (verbais ou no). Assim, toda

    comunicao ideolgica, j que todo e qualquer signo, todo e qualquer enunciado

    encontram-se localizados profundamente em uma dimenso ideolgica (literatura, poltica,

    arte etc.) e, ao serem interpretados pelo ser humano, tomam sentido docarter valorativo

    com que o sujeito concebe a significao. Bakhtin/Voloshinov (1977) partem do princpio

    de que onde h signo h ideologia: Tudo o que ideolgico um signo.Sem signo no h

    6Traduo minha. Em francs: Dans les crits postrieurs, Bakhtine insistira particulirement sur une

    autre vidence: quel que soit lobjet de La parole, cet objet, dune manire ou dune autre, a toujours djt dit; et lon ne peut viter ls rencontres avec lesdiscours antrieurs tenus sur cet objet.

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    ideologia (p.25)7. Chaguri (2010, p.226-227) lembra que a ideologia em Bakhtin no

    negativa, pelo contrrio, produtiva, por constituir a base de qualquer conhecimento:

    A ideologia em Bakhtin no deve ser compreendida como valores eintenes negativas, mas como uma rea da expanso da criatividadeintelectual/cultural humana. As bases para os estudos do conhecimentocientfico, da literatura, da religio, da moral e outros, no podem serestudadas separadamente da realidade concreta que as abriga. Por isso ossignos so intrinsecamente ideolgicos, ou seja, jamais os signos poderoser estudados separadamente de suas realidades.

    Deduz-se da que todo dizer se ancora na situao de enunciao em que se encontra

    - que Chaguri (2010) denomina realidade concreta -, na relao dialgica (j que no h

    dizer que no se dirija a outro, mesmo no caso de um monlogo, em que se constri um

    outro para com ele falar), portanto, todo dizer ideolgico. No caso das entrevistas que

    servem de corpus para este texto, a pesquisadora se apresentou como professora do Instituto

    de Estudos da Linguagem da Unicamp, o que, certamente, afetou os relatos apresentados,

    principalmente nos primeiros minutos da entrevista, mas isso parece inevitvel dado o

    carter dialgico (e ideolgico) de toda e qualquer relao humana. E, se se trata de um

    fenmeno ideolgico, ele necessariamente sociolgico e vice-versa (TODOROV, 1981,

    p.52). Esse pensamento permite pensar que adquirir uma lngua estrangeira significa

    adentrar em outra lngua-cultura (CORACINI, 2014b), em discursividades outras que

    modificam a subjetividade daquele que nela imerge, sem, contudo, abandonar a sua lngua-

    cultura primeira que sempre estar ali como vozes que servem de parmetro para a

    compreenso e apreenso do diferente.

    Mesmo na lngua primeira, tambm denominada materna, a pluralidade de vozes

    constitui todo e qualquer dizer, como foi possvel observar no recorte anterior e como

    possvel detectar nos seguintes recortes extrados dos relatos obtidos nos relatos obtidospara esta pesquisa.

    R2: Francs: Comecei a estudar esse idioma sozinho como resoluo parao ano de 2004. Comecei com uma gramtica e a segui at o fim, mas nome garantiu uma fluncia. Ative-me a ela pelos anos seguintes e estudeilivros de vocabulrio, tais como guias de viagens para ampliar o que

    7

    Traduo minha. Em francs: [... ] tout ce qui est idologique, cest un signe. Sans signe pointdidologie.

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    sabia. Comecei a lecion-lo no meio de 2008 e o desenvolviposteriormente atravs de leituras de livros, revistas e jornais. Falo-ofluentemente, mas no com a destreza das trs lnguas anteriores. Fiz efao trabalhos de traduo. [Jonas]

    R3: Em 2006 eu havia achado um curso da Deutsche Welle, on-line, parainiciantes (chamado Warum Nicht), sendo cada lio 20 minutos de udioe um pdf explicativo com alguns termos, gramtica e pequenos exercciosno comeo. Eu ouvia a aula de 20 minutos umas 2 vezes e copiava oarquivo pdf inteiro em um caderno, s ento o imprimia e fazia osexerccios, e isso me tomava cerca de 3 horas por dia estudando todos osdias da semana (comecei a estudar num domingo). Como eu estudava oalemo na parte da noite, eu passava o dia seguinte inteiro treinando o queeu aprendi na noite anterior, praticava em voz alta mesmo, falava econversava sozinho para treinar, era a nica forma. [Roberto]

    Como possvel perceber, todos os recortes aqui trazidos e os demais analisados so

    constitudos por vozes que vm da escola (porque todos so escolarizados, universitrios),

    do ensino-aprendizagem de ao menos uma lngua que, bem ou mal, foi conhecida ou a ele/a

    introduzida na escola, frequentemente, por meio de um livro didtico e/ou do dicionrio e

    gramtica. Um pouco maneira do professor de lnguas que recusa o uso cotidiano de

    material didtico comercializado, mas procede em aula, com material dito autntico

    (extrado de jornais ou revistas, msicas, dilogos em situao real de comunicao)

    maneira do livro didtico (CORACINI, 2011a), os aprendizes participantes de nossapesquisa tambm incorporaram esse material ou a metodologia de que se serviu o professor

    na escola, para, ainda que sozinhos, adentrarem no mundo desconhecido do outro, que

    desejam sem saber. Algumas estratgias retomam certos exerccios comuns na escola ou

    recomendadas pelo(a) professor(a): a cpia, a escuta de documentos orais, a repetio oral,

    a conversa ainda que consigo mesmo. A ideia de treino, repetida duas vezes no recorte R3,

    carrega sentidos que ainda esto presentes no dizer da escola e do professor ( preciso

    treinar), remanescente da viso behaviorista ligada ao estruturalismo lingustico: treinar,repetir, imitar so termos caros a essa vertente didtico-pedaggica, muito em voga na

    dcada de 70 e ainda presente, de forma disfarada, nos livros didticos que se dizem

    inseridos na abordagem comunicativa, que, pretendem os especialistas e professores, o

    oposto do mtodo direto (calcado no behaviorismo e no estruturalismo).

    Entretanto, se trazem semelhanas entre si e com as prticas escolares, os relatos

    carregam tambm diferenas metodolgicas ou estratgicas entre si e entre cada um dos

    relatos e a prtica discursiva escolar, atividades, portanto, muito pouco ou nunca utilizadas

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    14 Bakhtiniana, So Paulo, 9 (2): 4-24, Ago./Dez. 2014.

    em contextos formais de aprendizagem: fazem uso de vdeos que obtm na internet,

    inscrevem-se em salas de bate-papo para contatarem nativos e, assim, se corresponderem

    com gente que no conhece a lngua portuguesa, estratgia semelhante embora tambm

    diferente situao de imerso, quando se encontram, durante algum tempo, como

    Roberta, mergulhados na lngua-cultura do outro, nas discursividades que constituem essa

    lngua-cultura, enfim, no pas estrangeiro. No caso de tal experincia, as diferenas so

    ainda mais notadas pela reao face a face daquele que no entende ou interpreta de forma,

    por vezes, inesperada ou marcada pela cultura ou pela ideologia que constitui cada uma das

    lnguas e cada interlocutor. Observemos alguns recortes.

    R4: [...] aprendi a ouvir em ingls, ouvindo msicas e assistindo filmessem legenda, mas ainda assim no conseguia falar. S fui aprender a falarquando viajei ao Canad com um amigo meu, passei 20 dias l e j foi osuficiente para eu aprender a falar. Bom assim que eu me lembro queaprendi. [Vitor]

    R5: No obtive ajuda de qualquer tipo de professor, porm por meio dosite Livemocha.com, que oferece um curso de vrios idiomas num nvelbem fraco, conheci pessoas de diversas nacionalidades e idiomas, algumasmantenho contato at hoje estas me ajudavam em algumas Duvidas que eupossua. A estratgia que eu uso para aprender qualquer idioma sempre amesma, procuro por msicas, filmes, livros e procuro tambm conhecerpessoas que so nativas desse idioma. [...]. Sempre fiz muitas tradues,pesquisas sobre regras gramaticais, formas corretas de pronncia,abreviaes e grias usadas. [Jonas]

    R4 enfatiza as atividades em udio (msicas) e udio-visual (filmes sem

    legenda), que, ao lado da experincia in loco, no Canad, constituem situaes

    autnticas de comunicao ou, se preferirmos, atividades autnticas. Assim se

    nomeavam os materiais (textos, escritos e orais) produzidos para nativos, sem objetivo

    pedaggico. verdade que a escola, muitas vezes, traz msicas para a sala de aula, masas estratgias pedaggicas nem sempre agradam os alunos, talvez porque elas anulam o

    carter autntico do material: a escola pedagogiza todo e qualquer material (escrito ou

    oral) (CORACINI, 2011a); isso parece inevitvel, j que, no caso, o atributo autntico

    se aplica ao ambiente escolar e aos procedimentos pedaggicos que da decorrem.

    Em R5, Jonas afirma ser autodidata, mas, logo depois, faz referncia a um

    curso apresentado pela internet. Note-se o uso das aspas em curso, marca grfica

    que aponta a voz do outro e, sobretudo, de um sentido outro: no se trata de um curso

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    Bakhtiniana, So Paulo, 9 (2): 4-24, Ago./Dez. 2014. 15

    como qualquer outro, ou melhor, como aquele que acontece na escola. O simples fato de

    se encontrar na internet faz com que tudo seja diferente, mesmo que as atividades sejam

    muito semelhantes quelas usadas no LD. Outra caracterstica do curso na internet o

    fato de no ter professor, segundo Jonas, que afirma no ter nunca precisado da ajuda de

    professor. Esquece o aprendiz que algum montou o material e que, portanto, o

    professor se faz presente ainda que esteja ausente. Vale lembrar que todos os

    participantes da pesquisa citam a internet como o meio mais utilizado para aprender

    lnguas, na iluso de que, assim, aprendem sozinhos, apesar de reconhecerem que o

    material fraco.

    Mais uma vez, ao lado de msicas, livros e tradues, o mito do nativo se

    manifesta no dizer do entrevistado (procuro tambm conhecer pessoas que so nativasdesse idioma), cujo efeito semelhante estadia de 20 dias no pas da lngua em

    estudo (ver R4), embora, neste caso, o tempo seja exguo demais para poder

    desencadear de forma to produtiva a oralidade, como afirma Vitor (passei 20 dias l e

    j foi o suficiente para eu aprender a falar). Atente-se para o sintagma j foi o

    suficiente, em que o advrbio de relatividade j denuncia a antecipao do que era

    esperado (CORACINI, 1981), e o suficiente, o marco final de um tempo to curto, o

    que visto como uma vantagem: quanto mais rpido, melhor; no se tem tempo aperder no mundo da virtualidade. Mas, bom ressaltar que se trata sempre e

    inevitavelmente de lembrana, memria que tambm esquecimento (CORACINI,

    2011b) daquilo que parece ter ocorrido (Bom assim que eu me lembro que

    aprendi), dando a iluso de que apre(e)nder uma lngua pressupe uma srie de passos

    legitimados por autoridades no assunto ou por outros que tambm seguiram os mesmos

    passos e alcanaram xito.

    interessante observar que outras pesquisas apontam para as mesmas estratgiasusadas por nossos participantes de pesquisa. Paiva (1998) coletou falas de alunos que

    diziam das estratgias que usavam para aprender ingls: para falar, preciso repetir,

    imitar, ouvir; pensar na lngua de interesse, usar dicionrio e gramtica ou guias

    gramaticais so tambm bastante recorrentes. Alm desses dizeres, que, certamente, so

    atravessados pela voz do outro (escola, sobretudo), que constri representaes,

    imagens do que seja aprender uma lngua denominada estrangeira, tambm so

    recorrentes aqueles que se referem a vdeos, filmes, ferramentas da internet (visite sites

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    no idioma que voc est aprendendo; baixar aulas pela internet e tambm frequentar

    algum site bom de aprendizado de idiomas).

    Sabe-se, entretanto, que preciso muito mais do que isso para adentrar na

    lngua-cultura (CORACINI, 2014) do outro. Os recortes aqui trazidos indiciam como se

    d, hoje, a entrada na lngua do outro, o que acontece no antes de a lngua-cultura do

    outro ter entrado no sujeito pela porta do desejo. O desejo do e pelo outro, o desejo de

    ser o desejo do outro e, ao mesmo tempo, o desejo de ser o outro , que imagina

    (representa) como ideal, constitui uma das marcas mais relevantes, seno a mais

    importante, que impulsiona o sujeito na sua busca incessante pelo preenchimento da

    falta que o constitui. o que resta (sobra, objeto a) que nos move em direo ao outro

    do imaginrio.Com relao a isso, vale a pena retomar a historieta trazida por Prasse (1997),

    logo no incio de seu texto. A autora (1997, p.63) inicia narrando uma histria de

    almanaque, que, segundo ela, aponta para um encontro um tanto particular e

    absolutamente bem sucedido com uma lngua estrangeira. Todas as crianas da

    gerao da autora conheciam essa histria. Trata-se de um jovem arteso que,

    percorrendo o curso do Reno, chegou a Amsterdam, local que o deixou maravilhado por

    sua beleza, palcios suntuosos, rodeado por flores que caem das janelas. Pergunta a umpassante quem seria o proprietrio de tal palcio, mas o faz, evidentemente, em sua

    lngua materna, porque nada sabe da lngua do outro. O passante, por sua vez, no

    entendendo o que o arteso lhe pergunta, responde, em sua lngua materna:

    Kannitverstan, o que significa no entendo. O arteso interpreta a palavra ouvida

    como sendo o nome do proprietrio. A mesma resposta se repete todas as vezes em que

    ele faz alguma pergunta a um nativo do local, movido pelo espanto diante da beleza e da

    riqueza do lugar. A admirao por esse tal de Kannitverstan era tal que ele, pobre ecansado de tanto trabalhar, dizia a si mesmo quo feliz seria se tivesse a possibilidade

    de, ao menos uma vez na vida, [...] se encontrar no lugar desse rico e feliz

    Kannitverstan (p.64). Tal sensao de tristeza por no ser como ele e de satisfao

    diante da ideia (sonho?) de, por um dia pelo menos, ser como ele, se aplacou quando viu

    passar um cortejo fnebre, cheio de pompa. sua pergunta sobre quem estaria sendo

    enterrado, ele obteve a mesma resposta de sempre: Kannitverstan. O arteso percebeu,

    ento, que a morte iguala a todos e que, portanto, no se deve invejar o outro.

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    Mas, o que interessa aqui no a moral que da histria pode ser extrada, mas

    essa felicidade outra, do outro, que, no imaginrio, se apresenta como

    incomparavelmente maior do que a nossa, provocando inveja e admirao, como a

    lngua-cultura do outro que no compreendemos, mas que nos parece infinitamente

    mais interessante, porque carrega consigo uma promessa, a de ser como o outro (mais

    desenvolvido, mais rico, com menos problemas sociais) que admiramos e invejamos (ao

    menos assim que representamos o nativo dessa lngua-cultura desconhecida e, por isso

    mesmo, desejada). Kannitverstan, frase (que ele ouve sem segmentao) transformada

    em nome prprio pelo arteso, constitui um significante. Como afirma Prasse (1998,

    p.64), [o] nome prprio a funo significante em estado puro, o trao especial, a

    marca de uma funo sujeito na linguagem, como o define Lacan (no Seminrio AIdentificao), por exemplo. O significante kannitverstan (no compreendo),

    transformado no nome suposto do outro designa justamente a si mesmo como sujeito

    desejante (p.65). Ao desejar ser como o outro, o arteso ignora que na diferena entre

    o seu lugar e o lugar do outro que ele se torna sujeito desejante. Mas, qual o seu

    desejo? Kannitverstan. Eu no compreendo, o que significa eu no sei, s sei que algo

    falta, por isso eu desejo. Como afirma Prasse,

    [a] condio [do] desejo que se no o compreenda. Quando se ocompreende, ele esbarra necessariamente na mortalidade de cada um,na qual a diferena entre os sujeitos verdadeiramente anulada, eleesbarra na indiferena, na qual ele se apaga.[...] para ns, essa histria de kannitverstan pode passar por umfragmento de anlise bem sucedida, um no compreendo que leva osujeito descoberta da falta no Outro um acidente feliz no muro dalinguagem (1988, p.65).

    Prasse afirma, com muita propriedade, o xito desse acidente (como os nossos

    entrevistados)o encontro com uma lngua estrangeira que fez o arteso se deparar

    com um significante que pe o sujeito diante de seu desejo e, sobretudo, diante da falta

    que inexoravelmente o constitui. Tal como o arteso, buscamos o tamponamento do

    desejo, atravs da interpretao moralizante, por vezes, religiosa, de um aspecto cultural

    que fecha a interpretao em um sentido nico, verdadeiro.

    O equvoco da personagem da pequena histria foi, certamente, vivenciado por

    todo aquele que, como nossos participantes de pesquisa, se debrua sobre o outro, sobre

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    a lngua-cultura outra, que o atrai e o trai. Lembro-me de quantas vezes me surpreendi

    diante de uma palavra que ou no tinha o sentido que eu lhe atribua ou no se escrevia

    tal como eu pensava. Ocorre-me, neste momento, a lembrana de alguns desses

    equvocos: a palavrapourtant(no entanto) que eu entendi tantas vezes como portanto,

    forando o contexto a ter sentido a partir da palavra, semelhante, da minha lngua dita

    materna.Il ny a que a, frase que eu ouvia [yaksa], sem conseguir discernir as palavras

    constituintes; eu apenas buscava o efeito de sentido pelo contexto. Ou ainda: Jai failli

    tomber, tantas vezes ouvida no metr de Paris, significaria eu ca, eu tive que cair? Ou

    eu precisei cair? Demorou muito tempo para compreender que faillir, nessa frase,

    significava quase(ca): foi quando ouvijai failli mourirque me dei conta de que no

    podia ser tive que morrer, porque o enunciador estava vivo... O mesmo ocorreu com afrase Si jamais tu le vois, dis-lui quil me manque8, em que jamaisno poderia ter o

    sentido de nunca, mas, ento, que sentido teria? O fato que o equvoco (TODOROV,

    1981) no constitui fato isolado nem aponta para certo grau de conhecimento da lngua,

    como querem crer alguns especialistas, que postulam a interlngua (LICERAS, 1991;

    HOLTZER, 1998; BLANCO PICADO, 2002) como um dizer que mescla lngua

    materna e lngua estrangeira, um dizer que no corresponde nem a uma nem a outra ou

    mais primeira, que serve de parmetro, do que segunda, fase de aprendizagem a serultrapassada. O equvoco constitui a prpria lngua, que se abre multiplicidade de

    sentidos, deixando, assim, abertos buracos, que permitem que a subjetividade de cada

    um possa neles (ad)entrar para, ilusoriamente, tampon-los (ou fech-los). Entretanto,

    se postularmos com Derrida (1967) que o sentido final, o tamponamento sempre

    adiado, que o lugar do sentido est entre significantes que o fazem deslizar, escorregar,

    modificando-o incessantemente no tempo e no espao, ento, o falante (que falo e

    faltante, parltre, em Lacan (2007)), ser que fala qualquer lngua e, em especial umalngua dita estrangeira, vive e, portanto, se v no lugar tenso, sem fronteiras

    precisas, do entre: entre ele e o outro, entre uma lngua e outra(s), entre um sentido e

    outro(s), entre isto e aquilo. o que explica a mistura entre as lnguas, fato to comum

    no dia a dia de qualquer falante.

    8Em portugus: Se por acaso voc o vir, diga-lhe que tenho saudades dele.

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    Entre ele/eu e o outro, pois, como afirmam Bakhtin/Voloshinov (1977), Foucault

    (1984), Derrida (1996) e Lacan (1998), cada qual sua maneira, eu me vejo pelo olhar

    do outro9, eu me constituo pelo e no outro (je est un autre10, frase de Rimbaud). Alis,

    s posso falar de identidade graas ao outro que me diz quem e como sou, ainda que,

    aos poucos, o sujeito possa e deva promover um corte com a alteridade, que o torna

    alienado, para que possa realizar o seu desejo e se assumir como sujeito. Habitar uma

    lngua, seja ela qual for, implica em ser e estar entre lnguas (CORACINI, 2011c), o que

    significa entre culturas. No h uma lngua-cultura una, que no seja atravessada por

    outras; basta, para reconhecer, lanar um olhar atento histria de cada lngua-cultura.

    Alguns alinhavos...

    Os recortes aqui trazidos permitem afirmar que se pode adentrar na lngua-

    cultura do outro via aprendizagem formal (instituio escolar) ou via aprendizagem

    informal, tambm denominada natural (por meio da internet, de cursos baixados de

    vdeos, filmes, msicas etc.), como o fazem os participantes de pesquisa. Mas, como j

    apontamos, sem o desejo, nada acontece! claro que o desejo - que se manifesta como

    amor da e pela lngua (MILNER, 1978) - pode (e deve!) ser provocado pelo(a)

    professor(a), pelo pai (no caso de Jonas, cujo pai sabia o alemo), pela me em outros

    casos (CORACINI, 2011d), pelo namorado (no caso de Regina que se interessou pelo

    catalo porque achava lindo ouvir seu namorado falar essa lngua, conforme ela mesma

    explicita: Conheci o catalo por causa do meu ex-namorado. Ouvi ele falando, li

    algumas coisas e achei a lngua maravilhosa. Me apaixonei e resolvi estudar por minha

    conta): paixo que se desdobra no namorado e na lngua, na leitura e na audio, na de-

    ciso, que corte, impossvel e necessria, ao mesmo tempo. Esses casos indiciam que

    o desejo sempre o desejo do outro, o que pode ser lido, pelo menos, de duas maneiras:

    o desejo que o sujeito dirige ao outro e que vem do outro. , ainda, o desejo do outro

    que explica, segundo Revuz (1998), o desejo das lnguas, que pode ser infindvel,

    9Tal como na fase do espelho, eu me vejo pelo olhar do outro, o que significa que as representaes ouimagens de mim como ser inteiro, que constituem minha identidade, sempre de forma ilusria, vm dooutro (LACAN, 1998).

    10Em portugus: eu um outro.

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    porque se dirige a um nmero grande de lnguas, como ocorre com Jonas, que, alm de

    ingls e alemo, tentou aprender latim, grego, francs, italiano, e com outros

    participantes de outras pesquisas (CORACINI, 2011c), de forma obsessiva.

    Assim, como falar do binmio aprender/adquirir uma ou mais lngua(s)? Os

    recortes resultantes da anlise elaborada constituem indcio de que se apre(e)nde uma

    lngua no espaamento temporal ou na temporalidade espacial da diffrance

    (DERRIDA, 1972), isto , no entre (ou no hfen ouno e) que une e, ao mesmo tempo,

    desune os opostos, apagando, no os opostos, mas a polaridade que os hierarquiza na

    epistemologia ocidental, marcada pelo pensamento dicotmico, logocntrico.

    Apre(e)nde-se uma lngua no entre da aprendizagem, que remete a mtodos, abordagens

    ou estratgias formais, escolares, e da aquisio, que remete a recursos espontneos,como ocorre com a lngua materna, cuja gramtica s se vai aprender bem mais tarde,

    quando j se fala e se entende muito bem a lngua que primeiro nos constituiu enquanto

    sujeitos.

    Esses momentos espontneos so pouco ou nada lembrados. Em geral, os

    entrevistados parecem ignorar ou no se do conta (talvez porque seja inconsciente) de

    tudo o que ocorre no espao intervalar das palavras quando se l um livro, dos sons de

    uma msica, da musicalidade da lngua, das imagens de um filme ou de um vdeo: aindaque afirmemos ou pensemos que no entendemos nada, ou, como na histria do arteso,

    ainda que inventemos um sentido para tamponar o que falta, algo nos captura, nos

    engancha11. Na verdade, como afirma Holtzer (1998, p.141), ignoramos ainda muitas

    coisas sobre a aquisio. Saber o que fazem realmente os aprendizes com o material

    oferecido em cursos de lngua [em contextos formais ou informais] permanece um

    mistrio12. E eu acrescentaria: permanece um mistrio e sempre permanecer dada a

    impossibilidade de compreenso do que afeta o sujeito, de forma inconsciente, do queest em jogo na paixo pela lngua que estuda.

    Assim, justamente no (no) dito de um livro, de um vdeo, de uma msica que

    fala sem falar, porque, de incio, ouvimos apenas rudos, sons sem sentido,

    11Esse termo foi usado por Patrick Anderson durante o curso sobre Aprendizagem de Lngua Estrangeira,por ele ministrado na Unicamp, mais especificamente no Instituto de Estudos da Linguagem(Departamento de Lingustica Aplicada), em maio de 2010.

    12

    Traduo minha. Em francs: Nous ignorons encore beaucoup de choses sur lacquisition. Savoir ceque font rellement les apprenants du matriel offert en cours de langue reste un mystre.

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    deixando marcas no silncio do inconsciente, que somos capturados pela musicalidade

    da lngua tal como ocorre com a lngua-me (que traz consigo aconchego, calma,

    gozo) , pelos ecos, e-vocaes e in-vocaes, pelo que h de mais prprio a essa

    lngua, que muitos denominam idioma. Lngua que corpo e simblico; idioma, que

    significa o que prprio a ou de, idioma que nos faz de idiotascomo nas experincias

    pessoais que aqui trouxemos e nos captura, pela diferena, pelo estranhamento,

    tornando-nos singulares num mar heterogneo. Essa singularidade afeta, com certeza,

    no apenas nosso imaginrio (nossa identidade), mas o Real do inconsciente, lugar sem

    lugar do sem sentido, do impossvel, do inexplicvel.

    Nessa linha de pensamento, como falar de lngua materna (da me, do

    aconchego, do gozo que castrado pelo pai simblico, pela lei, pela (auto)censura), emoposio a lngua estrangeira, lnguacultura do estranhamento, do estranho, do

    diferente, to difcil de ser compreendido, de ser aceito, de ser vivido? Se a lngua dita

    estrangeira a lngua do desejo, tal como a lngua dita materna13, ela gozo,

    fal(t)ante, ela falo e, como tal, ela constitui a subjetividade de todo aquele que se v

    capturado, apre(e)ndido, preso por ela e nela.

    Pensamos que entendemos o que ouvimos e vemos, tal como o arteso da

    historieta. Mas quando, de fato, entendemos o que dizemos e o que nos dito? SegundoTyszler (2010, p.162), apenas

    quando fazemos parte do que nos dito. o que Lacan denomina oacontecimento do dizer: um dizer, o seu, faz acontecimento. [...] nss vemos esse claro14 se aceitarmos entrar na tempestade, istosignifica aqui, seguir o psictico ao p da letra. Sem buscarcompreender, psicologizar, ou interpretar.

    Difcil no interpretar: o que fazemos todos os dias, a cada momento,racionalizando o que vemos, lemos e ouvimos, mas, adentrar nas discursividades de uma

    13Sobre a reflexo em torno da lngua materna e da lngua estrangeira, consultar Coracini (2011c).

    14Traduo minha. Em francs: Ce nest pas lordinaire de nos vies.Nous entendons loccasion quandnous faisons partie de ce qui nous est dit. Cest ce que Lacan appelle un vnement du dire: un dire, lesien, fait vnement. [] nous ne voyons nous-mmes cet clair que si nous acceptons dentrer danslorage, cest--dire ici, suivre le psychotique la lettre, sans chercher comprendre, psychologiser ou interprter.

    NT. clair pode tambm ser traduzido por raio.

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    22 Bakhtiniana, So Paulo, 9 (2): 4-24, Ago./Dez. 2014.

    lngua-cultura outra pressupe deixar-se constituir por ela, lanar-se na aventura, sem volta

    e sem fim, do (im)possvel, do (in)explicvel, da (trans)formao.

    REFERNCIAS

    AUTHIER-REVUZ, J. Palavras Incertas: as no coincidncias do dizer. Trad. de ClaudiaR. Castellanos Pfeiffer et al. Campinas: Editora da Unicamp, 1998.

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    Recebido em 26/07/2014

    Aprovado em 11/11/2014