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Contos Selvagens de Solomon Kane

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IN MEMORIAM

A súbita e inesperada morte a 11 de Junho (1936) de Robert ErvinHoward, autor de fantásticos contos de uma vivacidade incomparável,representa a maior perda da ficção desde o falecimento de Henry S.Whitehead há quatro anos atrás.O Sr. Howard nasceu em Peaster,Texas, a 22 de Janeiro de 1906, com idade suficiente para ter assistidoà ultima fase dos pioneiros do sudoeste - o colonizar das grandesplanícies e do vele do Rio Grande, e a espectacular ascensão da in-dústria do petróleo e o "boom" das cidades. O pai dele, que viveu paraver a morte do filho, era um dos pioneiros, um médico da região. A suafamília viveu no Sul, Este, e Oeste do Texas, e no Oeste de Oklahoma;nos últimos anos em Cross Plains, perto de Brownwood, Texas. Criadono ambiente da fronteira, o Sr. Howard cedo se tornou um adepto dassuas tradições homéricas viris. O seu conhecimento da sua história edas tradições do povo eram profundas, e as descrições e reminiscên-cias contidas nas suas cartas particulares ilustram a eloquência e opoder com que continuaria a sua escrita se tivesse tido uma vida maislonga.

O Sr. Howard vinha de uma família de plantadores do Sul - de origemEscocesa-Irlandesa, a maioria dos seus antecessores viviam na Geór-gia e Carolina do Norte no século XVIII.Começando a escrever aosquinze anos, o Sr. Howard publicou a sua primeira história três anosmais tarde quando era estudante no Howard Payne College emBrownwood. Esta história "Lança e Presa", foi publicada no WeirdTales em Julho de 1925. Obteve uma maior notoriedade com a novela"Wolfshead" na mesma revista em Abril de 1926. Em Agosto de 1928,começou os contos de "Salomão Kane", um Puritano inglês de

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impiedosos duelos cujas aventuras o levaram aos lugares mais invul-gares do mundo - incluindo as desconhecidas e assombrosas ruínas decidades dos primórdios em selvas africanas.

Com estes contos o Sr. Howard atingiu o que provou ser um dos seusfeitos mais eficazes - a descrição de cidades megalíticas do mundo an-tigo, sob cujos labirintos e torres negras se escondia uma áurea demedo pré-humano e necromancia que nenhum outro escritor poderiaimitar. Estes contos também marcaram o desenvolvimento dessa ha-bilidade do Sr. Howard e o gosto pelo conflito sanguinário que setornou tão típico do seu trabalho. Salomão Kane, como outros heróisdo escritor, fora concebido enquanto jovem, muito antes da sua incor-poração em qualquer história.Sempre um estudante entusiasta da an-tiguidade celta e de outras fazes da história remota, o Sr. Howardcomeçou em 1929 - com "The Shadow Kingdom", em Agosto no WeirdTales - a sucessão de histórias do pré-histórico mundo pelo qual rapi-damente se tornou famoso. Os primeiros contos descreviam uma eramuito antiga na historia da humanidade - quando Atlântida, Lemúria,e Mú estavam acima do nível do mar, e quando as sombras dos pré-humanos homens-répteis, apareciam em cena. Entre estes, a figuracentral era o Rei Kull da Valúsia. No Weird Tales de Dezembro de1932, saiu o "The Phoenix on the Sword" - o primeiro dos contos doRei Conan, o cimério, que apresentou um mundo pré-histórico masem data posterior; há cerca de 15.000 anos, precisamente antes dosprimeiros leves vestígios de história registados.

O extenso conteúdo e a consistência com que o Sr. Howard desen-volveu este mundo de Conan nas suas histórias posteriores é bem con-hecido de todos os fãs da fantasia. Para sua própria orientação, ele

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preparou um esboço "quasi-histórico" de infinita inteligência e ima-ginação fértil - agora uma série publicada no The Phantagraph con-hecida pelo nome de "Era Hiboriana". Entretanto o Sr. Howard tinhaescrito muitos contos pictos e celtas, incluindo uma notável série decontos há cerca do chefe Bran Mak Morn. Poucos leitores alguma vezesquecerão o hediondo e contagiante poder da macabra obra "Wormsof the Earth", publicado no Weird Tales de Novembro de 1932. Outrospoderosos contos de ficção não estão incluídos em nenhuma série -entre eles o memorável "Skull Face", e uns poucos contos distintospassados no tempo moderno, tais como o recente "Black Canaan", como seu cenário regional genuíno e a sua contagiante imagem de horrorque acompanha todos os recantos sombrios, penumbras amaldiçoa-das, e os pântanos repletos de serpentes do longínquo sul daAmérica.Fora do campo da fantasia o Sr. Howard era surpreendente-mente prolífero e versátil.

O seu intenso interesse pelo desporto - algo que está provavelmente li-gado ao seu amor pelo conflito primitivo e pela força - levou-o a criar opremiado herói "Sailor Steve Costigan", cujas aventuras em distantes ecuriosos lugares, maravilharam os leitores de muitas revistas. As suasnovelas de cariz oriental revelaram ao extremo a sua mestria nasromânticas aventuras de capa-e-espada, enquanto os seus frequentescontos da vida no Oeste - tais como as séries "Breckenridge Elkins" -revelavam a sua crescente habilidade e inclinação para reflectir oscenários com que estava directamente familiarizado.A poesia do Sr.Howard - misteriosa, guerreira, e aventurosa - não era menos notáveldo que a sua prosa. Tinha o verdadeiro espírito da balada e do épico, eera marcada por um pulsante ritmo e potente imaginário de uma qual-idade extremamente distinta. Muita da poesia, em forma de supostascitações de escritas antigas, servia para encabeçar os capítulos dassuas novelas. É pena que nenhuma colecção tenha sido publicada, e

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apenas podemos esperar que tal coisa possa ser postumamente edit-ada e contextualizada. O carácter e os feitos do Sr. Howard foram úni-cos. Ele era, acima de tudo, um amante da simplicidade do mundo an-tigo, da barbárie e dos pioneiros, quando a coragem e a força tomavamo lugar da subtileza e dos estratagemas, e quando uma dura edestemida raça batalhou e sangrou sem pedir nada à hostil natureza.Todas as suas histórias reflectem esta filosofia, e dela extraem uma vi-talidade que se pode encontrar em poucos escritores da sua época.

Ninguém escrevia mais convincentemente sobre violência e sanguederramado, e as suas descrições de batalhas revelavam uma aptidãoinstintiva para tácticas militares que lhe trariam distinções em temposde guerra. Os seus verdadeiros dons eram ainda superiores ao que osseus leitores poderiam supor, e se tivesse vivido teria sido mais fácil dedeixar a sua marca na literatura séria com algum épico do seu amadoSudoeste.É difícil descrever exactamente o que fez com que os contosdo Sr. Howard se destacassem de forma tão pronunciada; mas o ver-dadeiro segredo é que ele próprio se encontrava em todos eles, querfossem ostensivamente comerciais ou não.

Ele era mais do que qualquer politica lucrativa que pudesse adoptar -pois mesmo quando aparentemente fazia cedências a críticos e ed-itores de estilo Mammon, ele tinha uma força interior e sinceridadeque quebrava a superfície e impunha o seu cunho pessoal em tudo oque escrevia. Raramente, se é que alguma vez o fez, criou uma person-agem vazia ou mesmo uma situação, e depois os deixou dessa forma.Depois de concluir, tinham sempre mais um tom de vitalidade e real-idade do que uma política editorial popular - bebia sempre em algo dasua experiência pessoal e conhecimento da vida em vez de

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superficialidades estéreis. Não só sobressaía em imagens de luta e car-nificina, como também estava praticamente sozinho na sua habilidadede criar emoções reais de medos espectrais e suspense. Nenhum autor- mesmo nos mais humildes campos da literatura - pode verdadeira-mente sobressair a menos que leve o seu trabalho muito a sério; e o Sr.Howard levava, mesmo nos casos em que conscientemente achava quenão o fazia.

Tal artista genuíno, falecer enquanto centenas de copiadores desones-tos continuam a forjar falsos fantasmas e vampiros e naves espaciais edetectives do oculto, é uma triste ironia cósmica. O Sr. Howard, famili-arizado com muitas facetas da cultura do Sudoeste, vivia com os seuspais numa vila semi-rural de Cross Plains, Texas. A escrita era a suaúnica profissão. Os seus gostos na escrita eram abrangentes, e in-cluíam pesquisa histórica de notável profundeza em campos tão dis-tintos como o Sudoeste Americano, a Grã-bretanha e a Irlanda préhistóricas, e o mundo pré-histórico Oriental e Africano. Em literaturapreferia o viril ao subtil, e repudiava o modernismo completamente.Jack London era um dos seus ídolos. Era um liberal na política, e umadversário amargo de qualquer tipo de injustiça social. Os seus pas-satempos favoritos eram o desporto e as viagens - a última davasempre azo a maravilhosas cartas descritivas repletas de reflexõeshistóricas.

O humor não era a sua especialidade, embora tivesse por um lado umapurado sentido de ironia, e por outro um bom coração, cordialidade,e sociabilidade. Apesar de ter numerosos amigos, o Sr. Howard nãopertencia a nenhum grupo literário e considerava aberrantes todos oscultos de afectação "artística". A sua admiração era dedicada à força de

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carácter e força física mais do que à proeza escolástica. Com os seuscompanheiros escritores no campo da fantasia ele correspondia-se in-tensamente e interessantemente, mas nunca conheceu mais do queum pessoalmente: o talentoso E. Hoffmann Price, cujos variados feitoso impressionaram profundamente.

O Sr. Howard tinha quase um metro e oitenta de altura, com uma es-trutura massiva de um lutador nato. Ele era, salvo os seus olhos azuisceltas, de aparência morena; e nos anos mais tardios pesava cerca denoventa quilos. Sempre um discípulo da impetuosidade e vida enér-gica, alvitrava mais do que a sua personagem mais famosa - o in-trépido guerreiro, aventureiro, conquistador de tronos, Conan, ocimério. A sua perda com a idade de trinta anos é uma tragédia deprimeira magnitude, e um forte golpe do qual a ficção fantástica nãovai recuperar tão cedo. A biblioteca do Sr. Howard foi doada ao colégioHoward Payne, onde formará o núcleo da Colecção Memorial de liv-ros, manuscritos e cartas de Robert E. Howard.

Por H. P. Lovecraft

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As Caveiras nas Estrelas

E dos assassinos que erram De Caim sobo tormento, Com rubra turbação no olhar Eígneos de pensamento: Do sangue que lhesdeixou n'alma Eterno laivo cruento.

—HooD

CAPÍTULO PRIMEIRO

SÃO DUAS, AS ESTRADAS que levam a Torker-town. O caminho mais curto e directo per-corre uma charneca alta, e o outro, bastantemais comprido, serpenteia tortuosamentepor entre os cabeços e atoleiros dospântanos, na orla dos montes baixos paraoriente. Trata-se de um carreiro perigoso e

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enfadonho; de modo que Salomão Kane sedeteve, estupefato, quando um rapaz esba-forido, vindo da aldeia que acabara de deixarpara trás, o alcançou e lhe rogou por amor deDeus que tomasse o caminho do pântano.

— O caminho do pântano! — Kane olhouespantado para o rapaz.

Era um homem alto e magro, este Sa-lomão Kane, de uma palidez ensombrada eolhos fundos melancólicos que o pesadotrajo de puritano tornava ainda maissombrios.

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— Sim, senhor, é muito mais seguro — re-spondeu o rapazito.

— Satanás em pessoa deve assombrar aestrada da charneca, então, que os teus com-padres me avisaram para não viajar pelaoutra.

— É por causa dos atoleiros que podeisnão ver no escuro. É melhor que volteis àaldeia e prossigais viagem de manhã, senhor.

— Pelo caminho do pântano?— Sim, senhor.Kane encolheu os ombros e abanou a

cabeça.— A lua irá nascer mal o sol se ponha. Se

for pela charneca ao luar, estarei em Torker-town numa questão de horas.

— O senhor é melhor não ir. Ninguém vaipor aí. Não há casas nenhumas na charneca,enquanto no pântano sempre há a casa dovelho Ezra, que vive lá sozinho desde que omaluco do primo, o Gideon, fugiu e morreuno pântano e nunca foi encontrado; e o Ezra,

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apesar de avarento, não vos recusaria al-bergue se quisésseis descansar até de mad-rugada. Se tendes mesmo que ir, ide pelocaminho do pântano.

Kane lançou um olhar penetrante aorapaz, que se mostrou atrapalhado e arrastouos pés pelo chão.

— Se a charneca é tão inclemente paracom os viajantes — respondeu o puritano, —para quê tanto segredo em vez de me con-tardes toda a história?

— As pessoas não gostam de falar disso.Tínhamos esperança que fosseis pelo cam-inho do pântano, como os homens aconsel-haram, mas quando fomos espreitar e vimosque o senhor não tinha virado na bifurcação,mandaram-me correr atrás de vós para vospedir que mudásseis de ideias.

— Com mil diabos! — exclamou Kanebruscamente. A imprecação pouco habitualrevelava a sua irritação. — É o pântano, é acharneca: que há ali de tão ameaçador que

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me obrigue a fazer um desvio de quilómet-ros, para me arriscar pelo lodo e pela lama?

— Vede bem, senhor — disse o rapaz,baixando a voz e aproximando-se, — somosgente simples que não gosta de falar destascoisas, não advenha daí má sorte, mas a es-trada da charneca é um caminho maldito,que há mais de um ano não é percorrido porpessoas do campo. Andar pelos montes ànoite é a morte certa, e já boas dúzias de des-graçados a encontraram. A estrada está as-sombrada por uma aberração qualquer quedevora todos os homens.

— E que aberração é essa?— Ninguém sabe. Ninguém que a tivesse

visto sobreviveu para contar, mas quem sai ànoite ouve gargalhadas terríveis vindas dalezíria e há quem tenha ouvido os gritos dassuas vítimas. Senhor, rogo-vos por Deus, vol-tai para a aldeia e passai lá a noite, para quetomeis amanhã o carreiro através dopântano.

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Uma luz cintilante surgiu no fundo dosolhos melancólicos de Kane, como uma velade feiticeira nas profundezas de um glaciarcinéreo. O sangue avivou-se. Aventura! Ofascínio do risco e da batalha! O frémito deloucas e perigosas emoções! Não que Kanereconhecesse estas sensações como tal.

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Acreditava sinceramente dar voz a sentimen-tos genuínos quando afirmou:

— Estes são actos de uma potência ma-ligna. Os senhores das trevas amaldiçoaramo campo. É preciso um homem de firmezapara defrontar Satanás e as suas forças. Porisso, irei lá eu, que tantas vezes o desafiei.

— Senhor — começou o rapaz, masfechou a boca ao aperceber-se de que era in-útil discutir. Limitou-se a acrescentar: — Oscadáveres das vítimas são pisados edesfeitos.

Deixou-se ali ficar, na encruzilhada, asuspirar de arrependimento, enquanto

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observou a magra figura subir o caminho nadirecção da charneca.

Era pôr-do-sol quando Kane alcançou ocume do monte baixo que desembocava nalezíria. Enorme e vermelho de sangue, o solafundou-se no horizonte lúgubre dacharneca, parecendo atear fogo à erva viçosa;por um instante, o observador teve a im-pressão de contemplar um oceano de sangue.As sombras pardas deslizaram então doleste, e o fogo no poente esmoreceu, e Sa-lomão Kane caminhou resoluto pela noitedentro.

O carreiro encontrava-se diminuído pelafalta de uso, mas ainda assim bem definido.Kane avançou depressa mas com cautela,mantendo a espada e as pistolas à mão. Asestrelas apagaram-se e vendavais noturnossussurraram por entre a erva como espectrosnum pranto. A lua, seca e macilenta, subiunos céus como uma caveira entre as estrelas.

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Kane deteve-se subitamente. Algures àsua frente soou um eco estranho e sinistro,ou algo que se assemelhava a um eco. E denovo, agora mais alto. Kane recomeçou acaminhar. Traíam-no, os sentidos? Não!

Ao longe, repicou o sussurro de uma ris-ada medonha. E outra vez, agora mais perto.Nenhum ser humano jamais se rira assim:sem alegria, apenas ódio e aversão e ummedo de arrasar a alma. Kane deteve-se. Nãosentia medo, mas por um segundo quaseperdera o alento. A trespassar aquelas gar-galhadas assustadoras, surgiu então o somde um grito indubitavelmente humano. Kaneprecipitou-se para a frente, acelerando opasso. Amaldiçoou as luzes ilusórias e assombras vacilantes que encobriam acharneca ao nascer da lua e lhe atraiçoavama vista. As gargalhadas persistiram, cada vezmais ruidosas, tal como os gritos. Ouviu-seentão, vagamente, o rufar frenético de péshumanos. Kane lançou-se numa corrida.

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Um ser humano fugia da morte naquelalezíria, perseguido só Deus sabia por que es-pécie de aberração. O som de passos em cor-rida cessou abruptamente e a gritariatornou-se insuportável, entrecortada porsons outros, abomináveis e hediondos. Ohomem fora evidentemente ultrapassado, eKane, percorrido por um arrepio, imaginouum monstruoso demônio das trevasagachado sobre a vítima, dilacerando-a.

O silêncio insondável da lezíria deu entãolugar ao som de um curto e terrível rebuliço,e as passadas voltaram a ouvir-se, porém

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vacilantes e desiguais. A gritaria continuava,mas com um gorgolejar ofegante. O suorgelou na testa e no corpo de Kane. O medoadensava-se de uma forma intolerável.

Meu Deus, dai-me um instante de clarid-ade! O drama aterrador encenava-se a muitocurta distância, a julgar pela facilidade comque os sons chegavam aos ouvidos de Kane.Mas o infernal lusco-fusco cobria tudo desombras inconstantes, de modo que acharneca se mostrava numa névoa de ilusõesesbatidas, por entre a qual as árvores e ar-bustos raquíticos se assemelhavam agigantes.

Kane deu um berro, esforçando-se poracelerar o passo. Os gritos do desconhecidotransformaram-se num hediondo guinchoestridente; e, de novo, o som de contenda, edas sombras da erva alta cambaleou algo,algo que antes fora um homem, espavorido ecoberto de sangue, que caiu aos pés de Kane,e se contorceu e rojou no pó, e levantou a

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cara desfigurada para a lua, balbuciandolamúrias, e de novo tombou, morto numapoça do seu próprio sangue.

A lua estava agora alta no céu e a luz eramelhor. Kane inclinou-se sobre o cadáver,que jazia rígido e abominavelmente mutil-ado, e estremeceu de medo: um aconteci-mento raro para quem testemunhara os fei-tos da Inquisição Espanhola e dos caçadoresde bruxas.

Um viajante qualquer, supôs. E, como seuma mão gelada lhe tivesse percorrido aespinha, apercebeu-se nessa altura de quenão estava só. Levantou o olhar frio e penet-rou com ele as sombras de onde o mortotinha cambaleado. Não viu nada, mas sabia— sentia — que outros olhos lhe retribuíam ofito, olhos terríveis que não deste mundo.Levantou-se e puxou da pistola, expectante.O luar espalhou-se como um lago de sanguepálido sobre a charneca, e as árvores e a ervaretomaram as suas devidas proporções.

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As sombras dissiparam-se, e Kane pôdeentão ver! A princípio, julgou tratar-se apen-as de uma sombra de nevoeiro, um farrapode neblina que pairava na erva alta à suafrente. Olhou-a atentamente. Mais umailusão, pensou. Vaga e indistinta, a sombracomeçou então a ganhar forma. Dois olhoshediondos inflamaram-se: olhos que contin-ham em si o mais puro e absoluto doshorrores, herança humana da terrívelalvorada dos tempos; olhos medonhos edoentes, com uma insanidade que tran-scendia qualquer loucura terrena. O seu as-pecto era vago e enevoado, uma imitaçãogrotesca e enlouquecedora da figura hu-mana; semelhante, mas ao mesmo tempo ab-ominavelmente desigual. A erva e arbustospara lá do espectro mostravam-se nítidos at-ravés deste.

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Kane sentiu o sangue latejar-lhe nas têm-poras, porém permaneceu frio como o gelo.Não conseguia perceber como é que um sertão instável como o que vacilava à sua frentepodia agredir fisicamente um homem, porémo horror vermelho a seus pés era testemunhosilencioso de que o demónio podia agir comterríveis efeitos materiais.

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De uma coisa Kane estava certo: não seriaperseguido pela charneca desolada, nemgritaria e fugiria apenas para ser apanhadouma e outra vez. Se tivesse que morrer, mor-reria de pé, com as feridas no peito.

Escancarou-se então uma boca medonhae indistinta, e as gargalhadas demoníacasvoltaram a chirriar, tão próximas que lhe es-tremeceram a alma. E no meio daquelaameaça de morte, Kane apontou cuida-dosamente o seu pistolão e disparou. Em res-posta ao estoiro, veio um grito frenético deraiva e de escárnio, e a criatura atirou-se aKane como uma parede de fumo, com a

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sombra dos longos braços preparada para oagarrar.

Kane, deslocando-se à velocidade de umlobo esfaimado, disparou a segunda pistolacom o mesmo mau resultado, desembainhouo comprido florete e lançou uma estocada aocoração do seu atacante nebuloso. A lâminazumbiu ao atravessá-lo sem encontrarqualquer resistência, e Kane sentiu dedosgélidos prenderem-lhe os membros, e garrasbrutais rasgarem-lhe a roupa e a pele pordebaixo.

Largou a espada, inútil, e procuroudebater-se com o adversário. Era como se lu-tasse contra um nevoeiro flutuante, umasombra voadora, armada de garras que maispareciam punhais. Kane esmurrou o ar comoum selvagem, e os seus braços magros epossantes, em cujo aperto já vários homenstinham morrido, apenas alcançaram e agar-raram o vazio. Nada era sólido ou real, à ex-cepção daqueles dedos simiescos, que o

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esfolavam com as suas garras retorcidas, edo olhar enlouquecido que lhe consumia asprofundezas trémulas da alma.

Kane tomou consciência de que se encon-trava, de facto, numa situação desesperada.As suas roupas pendiam em farrapos e san-grava de uma dúzia de cortes profundos.Ainda assim, não vacilou, nem a ideia de sepôr em fuga lhe passou pela cabeça.

Nunca antes fugira de um adversário, eteria corado de vergonha se tal pensamentolhe ocorresse.

Kane já não via remédio para a situação,mas não o assustava pensar que o seu corpoacabaria ali caído, ao lado dos pedaços daoutra vítima. Desejava apenas dar boa contade si mesmo antes do fim e, se possível, infli-gir algum dano ao seu adversário impossível.

Ali, sobre o cadáver retalhado do homemmorto, defrontou demônio à pálida luz dalua, com todas as vantagens para o demónio,salvo uma. E essa era suficiente para

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compensar todas as outras. Pois se o ódio ab-stracto podia conferir substância material aum ser fantasmagórico, porque não podia acoragem, igualmente abstracta, formar umaarma concreta para combater esse fantasma?

Kane lutou com armas, pés e mãos, con-sciente por fim de que o fantasma começavaa retroceder, que o riso temível se tinhatransformado em gritos de fúria estupefata.Pois a única arma do homem é a coragemque não hesita, nem mesmo diante dasportas do Inferno, e contra a qual nem se-quer as legiões do demônio se podeminterpor.

Kane ignorava tudo isto; sabia apenasque as garras que lhe laceravam a carnepareciam enfraquecer e vacilar, que uma luzdesenfreada se acendia naqueles olhos horrí-veis. Tonto e ofegante, lançou-se sobre odemónio, agarrou-o finalmente, e atirou-o aoar; e enquanto rebolavam pela charneca, e oespectro se contorcia e lhe envolvia os

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membros como uma serpente de fumo, oscabelos de Kane eriçaram-se e uma sensaçãode formigueiro percorreu-lhe a pele, poiscomeçava a perceber a algaraviada domonstro.

Não a ouvia nem compreendia como al-guém que ouve e compreende a fala de umhomem, mas os segredos assustadores quelhe eram comunicados, em lamentos e sus-surros e silêncios gritantes, cravaram-lhe de-dos de gelo e fogo na alma, e desta formaficou a saber.

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Capítulo Segundo

A CABANA DO VELHO EZRA avarento erguia-se no meio do pântano, junto ao carreiro,parcialmente encoberta pelas árvores mel-ancólicas que cresciam em redor. As paredesestavam podres, o tecto ameaçava desabar, egrandes monstros fungosos, pálidos e verdes,cresciam por toda a parte e enrolavam-se emvolta das portas e das janelas, como que à es-preita. As árvores, com os seus ramos cin-zentos entrelaçados, inclinavam-se sobre ahabitação, fazendo-a parecer um anão mon-struoso agachado na sombra de uma mul-tidão de ogres perversos.

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O carreiro que serpenteava pelo pântano,por entre tocos podres, cabeços repugnantese charcos espumosos infestados de cobras,vagueava para lá da cabana. Muitos pas-savam por ali hoje em dia, mas poucos viamo velho Ezra, salvo um vislumbre de umacara amarelada, qual cogumelo disforme, aespreitar das janelas cobertas de fungos.

O velho Ezra avarento possuía muitas dascaracterísticas do pântano, uma vez que opróprio era rugoso, arqueado e taciturno; osseus dedos pareciam trepadeiras parasitas eas madeixas caíam como musgo sobre os ol-hos habituados ao escuro dos pântanos.Estes olhos eram como os de um morto, em-bora sugerissem profundezas abissais e

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repugnantes, comparáveis apenas às dos la-gos inertes dos pântanos.

Olhos que brilhavam agora para ohomem parado defronte da cabana. Ohomem era alto, magro e moreno, de facesmacilentas e arranhadas, e com faixas nosbraços e nas pernas. Um pouco mais atrás,encontrava-se um grupo de aldeões.

— Sois Ezra do caminho do pântano?— Sou, que quer vossemecê?— Onde está vosso primo Gideon, o

jovem louco que reside convosco?— Gideon?— Sim.— Fugiu para o pântano e nunca mais

voltou. De certezaque se perdeu e foi atacado por lobos, ou

morreu num atoleiro, ou foi picado por umavíbora.

— Há quanto tempo?— Há mais de um ano.

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— Sim. Escutai, ó Ezra avaro. Pouco apóso desaparecimento do vosso primo, umhomem do campo, retornando a casa pelacharneca, foi assaltado por um demôniodesconhecido que o fez em pedaços. Desdeentão, percorrer aquela charneca passou asignificar morte certa. Primeiro foram os ho-mens do campo, e depois os estranhos queerravam pela lezíria, a cair nas garras domonstro. Muitos têm morrido desde então.

— Ontem à noite, atravessava eu acharneca, quando ouvi mais uma vítima emfuga, um estranho ignorante do mal que as-sombra aquele lugar. Ó Ezra avaro, foi umacoisa medonha, pois o pobre diabo, ferido demorte, escapou duas vezes ao monstro e, decada vez, o demônio apanhou-o e atirou-onovamente ao chão. Até que, por fim, caiumorto a meus pés, abatido com umacrueldade capaz de gelar a estátua dumsanto.

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Os aldeões agitaram-se e trocaram mur-múrios receosos, enquanto o velho Ezralançou olhares furtivos em redor. No ent-anto, a expressão sombria de Salomão Kanenão se alterou, e o seu olhar de condor pare-ceu trespassar o avaro.

— Sim, sim! — resmungou apressada-mente o velho Ezra. — Uma coisa terrível,uma coisa terrível! Mas porque ma contais?

— Sim, é triste. Mas continuai a ouvir,Ezra. O demónio lançou-se das sombras e eudefrontei-o, por cima do cadáver da vítima. Éverdade que não faço ideia de como o venci,já que a batalha foi árdua e demorada, masas forças do bem e da luz estavam do meulado, e estas são mais poderosas do que asforças do Inferno.

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— Finalmente derrotado, o demónioafastou-se de mim e fugiu, ao que o segui,em vão. Porém, antes de escapar, sussurrou-me a terrível das verdades.

O velho Ezra sobressaltou-se, com um ol-har assustado, e pareceu encolher.

— Mas porque me contais isto? —resmungou.

— Regressei à aldeia e contei a minhahistória — disse Kane, — pois sabia ter agorao poder de livrar a lezíria da sua maldiçãopara todo o sempre. Ezra, vinde connosco!

— Onde? — perguntou o avaro, emsobressalto.

— Ao carvalho apodrecido na charneca.

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Ezra cambaleou como se tivesse levadouma pancada; deu um berro incoerente evirou-se para fugir.

Nesse mesmo instante, Kane gritou umaordem, e dois aldeões corpulentosprecipitaram-se da multidão para agarrar oavaro. Arrancaram-lhe o punhal da mão at-rofiada e manietaram-lhe os braços,arrepiando-se quando os seus dedos se en-contraram com a pele pegajosa do velho.

Kane deu indicação para que o seguisseme, dando meia volta, subiu o carreiro,seguido pelos aldeões, que se viram em apur-os para arrastar o prisioneiro consigo. E

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assim atravessaram o pântano, tomando umcaminho pouco utilizado, que conduzia porcima dos pequenos montes até à lezíria.

O sol deslizava pelo horizonte abaixo e ovelho Ezra observou-o intensamente, de ol-hos esbugalhados, como se não pudesse ver osuficiente. Ao longe, na lezíria, erguia-se oenorme carvalho, como uma forca, agora nãomais do que uma casca apodrecida. SalomãoKane deteve-se aí.

O velho Ezra contorceu-se nas mãos dosseus captores e fez ruídos indistintos.

— Há um ano, — disse Salomão Kane, —vós, temendo que o vosso primo loucoGideon contasse aos homens das vossascrueldades para com ele, levaste-o dopântano pelo mesmo caminho que hoje per-corremos, e assassinaste-o aqui durante anoite.

Ezra encolheu-se e rosnou.— Não podeis provar tal mentira!

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Kane trocou algumas palavras com umaldeão mais ágil. O jovem trepou o troncoapodrecido da árvore e, de uma fenda lá noalto, puxou algo que caiu com grande es-trépito aos pés do avaro. Ezra deixou-se caircom um guincho terrível.

O objecto era o esqueleto de um homemcom a caveira rachada.

— Vós... como podíeis vós saber? SoisSatanás! — gaguejou o velho Ezra.

Kane cruzou os braços.— O ser que combati ontem à noite

contou-me tudo enquanto nos

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digladiávamos, e eu segui-o até esta árvore.Isto porque o demônio é o fantasma deGideon.

Ezra voltou a guinchar e debateu-sedesenfreadamente.

— Vós sabíeis, — continuou Kane, mel-ancólico, — sabíeis quem cometia estes actos.Receáveis o fantasma do louco furioso, e porisso decidistes deixar o seu cadáver nacharneca em vez de o esconder no pântano.Pois sabíeis que o fantasma assombraria olugar da sua morte. Um louco em vida, foi,em morte, incapaz de encontrar o seu assas-sino; caso contrário teria visitado a vossacabana. Gideon não odeia mais ninguém ex-cepto vós, porém o seu espírito confuso nãodistingue um homem de outro, e por issomata-os todos, não vá o seu assassino es-capar. Todavia, irá reconhecer-vos, e poderádescansar em paz para todo o sempre. O ódiofez do seu fantasma um objecto sólido, capazde lacerar e matar, e ainda que vos tenha

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temido em vida, agora não sente qualquermedo.

Kane parou. Lançou um olhar rápido nadirecção do sol.

— Sei de tudo isto pelo fantasma deGideon, através dos seus lamentos e sussur-ros e silêncios gritantes. Nada, a não ser avossa morte, trará paz a este fantasma.

Num silêncio ofegante, Ezra ouviu Kaneproferir as palavras da sua perdição.

— É deveras complicado — continuouKane, melancólico, — condenar um homem àmorte, a sangue frio e da maneira que tenhopensada, mas tereis que morrer para queoutros vivam, e Deus sabe que mereceis amorte.

— Não será pela forca, nem pela bala,nem pela espada, mas pelas garras daqueleque matastes, pois nada mais o saciará.

Com estas palavras, a mente de Ezra per-deu o equilíbrio, os joelhos cederam e ovelho caiu de rastos, a gritar pela morte, a

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implorar para que o condenassem à fogueira,para que o esfolassem vivo. O rosto de Kanepermaneceu rígido como a morte, e osaldeões, cujo medo lhes alimentava acrueldade, amarraram o desgraçado aos gri-tos ao carvalho. Um deles propôs-lhe que sereconciliasse com Deus. Mas Ezra não re-spondeu, continuando a guinchar com umamonotonia insuportável. O aldeão teria es-pancado o avaro, não fosse Kane tê-lo detido.

— Deixai-o reconciliar-se com o Diabo,que é quem ele irá encontrar — respondeu opuritano num tom severo. — O pôr-do-solestá aí. Folguem as cordas para que ele sepossa soltar durante a noite, antes que morraem liberdade do que amarrado como numsacrifício.

Mal lhe viraram as costas, o velho Ezraresmungou numa algaraviada de sons de-sumanos e depois ficou mudo, observando osol com uma intensidade terrível.

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A multidão afastou-se pela charneca, eKane lançou um derradeiro olhar à figuragrotesca amarrada à árvore, mais se pare-cendo, à luz incerta, com um fungo enorme acrescer do tronco. E, de súbito, o avarosoltou um grito hediondo:

— A Morte! A Morte! Há caveiras nasestrelas!

— Apesar de retorcido, grosseiro e mal-doso, teve uma boa vida — suspirou Kane. —Quiçá Deus reserve um lugar para almas des-tas, onde o fogo e o sacrifício as limpem dasescórias, da mesma maneira que o fogolimpa a floresta dos fungos. Todavia, pesa-me o coração.

— Mas, senhor — falou um dos aldeões.— Não mais fizestes que a vontade de Deus, esó o bem advirá do ato desta noite.

Não — respondeu Kane, pesaroso. — Nãosei, não sei.

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O sol tinha-se posto e a noite espalhara-se com uma velocidade assombrosa, como segrandes sombras se tivessem lançado devazios desconhecidos para envolver o mundona confusão das trevas. Da noite densa veioum estranho eco, e os homens pararam paraolhar para trás, para o sítio de onde vieram.

Não se podia ver nada. A lezíria era umoceano de sombras e a erva alta em redorcurvava-se em grandes ondas na aragem,quebrando o silêncio de morte com mur-múrios ofegantes.

A lua elevou-se então, ao longe, sobre acharneca e, por um instante, recortou-se noseu disco vermelho uma silhueta sinistra.Uma figura cruzou a face da lua: arqueada egrotesca, com pés que mal pareciam tocar ochão; e, logo atrás, uma sombra esvoaçante:uma abominação sem forma nem nome.

As duas formas aceleradas sobressaíramcontra a lua por um instante; e logo se fun-diram numa massa sem forma nem nome,

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para de imediato desaparecerem nassombras.

E ao longe, na lezíria, ecoou o grito deuma única e terrível gargalhada.

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A Mão Direita do Destino

— E ELE MORRE DE MADRUGADA! Ho! Ho!O homem que falou deu uma sonora

palmada na coxa e riu com uma voz aguda eirritante. Lançou uma olhadela gaba- rola

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aos seus ouvintes e bebeu um gole do vinhoque tinha junto ao cotovelo. O fogo saltou etremeluziu na lareira da taberna e ninguémlhe respondeu.

— Roger Simeon, o necromante! — es-carneceu a voz irritante. — Um negociantenas artes diabólicas e um fazedor de magianegra! Pois bem, todo o seu sujo poder foi in-capaz de salvá-lo quando os soldados do reilhe cercaram a caverna e o levaram pri-sioneiro. Fugiu quando o povo começou aatirar calhaus às suas janelas e tentouesconder-se e escapar-se para França. Ho!Ho! A sua fuga estará na ponta de umacorda. Um bom dia de trabalho, digo eu!

Atirou para cima da mesa um pequenosaco que retiniu musicalmente.

— O preço da vida de um mágico! —vangloriou-se.

— Que dizeis, meu amargo amigo?Esta pergunta foi dirigida a um homem

alto e silencioso, sentado perto do fogo. Este,

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descarnado, poderoso e trajado de escuro,virou a sua face lívida e sombria para ohomem que falava e fixou-o com um par deolhos profundos e gelados.

— Digo — disse, numa voz grave e poder-osa — que hoje haveis feito um acto miser-ável. O vosso necromante talvez fosse dignode morte, mas confiava em vós,considerando-vos o seu único amigo, etraíste-lo por um punhado de moedas sujas.Tenho para mim que o encontrareis no In-ferno, um dia.

O primeiro a falar, um homem baixo, en-troncado e com maldade no rosto, abriu aboca como se fosse lançar uma respostazangada, mas hesitou. Os olhos de gelo dooutro fixaram-se nos seus por um instante, edepois o homem alto ergueu-se com um mo-vimento fluido de gato e saiu da sala com umandar largo e flexível.

— Quem é aquele? — perguntou ogabarola com ressentimento. — Quem é ele

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para defender mágicos contra homens hon-estos? Por Deus, ele tem sorte em trocar pa-lavras com John Redly e continuar com ocoração vivo no peito!

O taberneiro inclinou-se para a frente afim de obter uma brasa para o seu cachimbode haste longa e respondeu, secamente:

— E tu tens também sorte, John, porqueficaste com essa boca fechada. Aquele é Sa-lomão Kane, o Puritano, um home' maisperigoso que um lobo.

Redly soltou um resmungo, murmurouuma praga e devolveu, carrancudo, o saco dedinheiro ao cinto.

— Ficas cá, 'sta noite?

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— Fico — respondeu Redly, sombria-mente. — Queria ficar para ver Simeon serenforcado amanhã em Torkertown, mastenho de sair para Londres de madrugada.

O taberneiro encheu as taças.— Esta é pia alma de Simeon, Deus tenha

piedade do patife, e que ele falhe na vingançaque jurou contra ti.

John Redly sobressaltou-se, largou umpalavrão e depois riu com temerária fanfar-ronice. O riso ergueu-se, vazio, e quebrou-senuma nota falsa.

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Salomão Kane acordou de repente esentou-se na cama. Tinha o sono leve, comoqualquer homem que tenha o hábito de car-regar a vida nas mãos. Algures na casa soaraum ruído que o despertara. Escutou. Lá fora,pelo que distinguia através dos postigos, omundo clareava com as primeiras cores daaurora.

Subitamente, o som reapareceu, baixo.Era como se um gato usasse as garras parasubir a parede, lá fora. Kane escutou, e entãochegou-lhe um som que sugeria que alguémestava a esgravatar nas portadas. O Puritanoergueu-se e, de espada na mão, atravessourapidamente o quarto e abriu-as com violên-cia. O mundo que viu dormia. Uma lua tardiapairava sobre o horizonte ocidental. Nenhumsaqueador se escondia junto da sua janela.Inclinou-se para fora, perscrutando a janelado aposento ao lado do seu. As portadas es-tavam abertas.

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Kane fechou as suas portadas e atraves-sou o quarto em direção da porta, saindo de-pois para o corredor. Agia por impulso, comoera seu hábito. Viviam-se tempos selvagens.Esta taberna ficava a algumas milhas da vilamais próxima—Torkertown. Os bandidoseram comuns. Algo ou alguém entrara noquarto ao lado do seu, e quem lá dormia po-dia estar em perigo. Kane não parou parapesar os prós e os contras: foi directamenteaté à porta do outro quarto e abriu-a.

A janela estava escancarada e a luz quedela jorrava iluminava o aposento, mas noentanto fazia com que ele parecesse mergul-hado numa névoa fantasmagórica. Umhomem baixo com traços maldososressonava na cama, e nele Kane reconheceuJohn Redly, o homem que traíra o necro-mante aos soldados.

Então, o seu olhar foi atraído para ajanela. No parapeito agachava-se o que pare-cia ser uma gigantesca aranha que, sob os

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olhos de Kane, se deixou cair para o chão ecomeçou a arrastar-se em direção à cama. Acoisa era larga, peluda e escura, e Kanenotou que ela deixara uma mancha noparapeito da janela. Movia-se sobre cincopernas espessas e curiosamente articuladas etinha em geral uma aparência tão estranhaque Kane ficou enfeitiçado a olhá-la. A coisaatingira a cama de Redly e trepava pelacabeceira de uma forma estranha edesajeitada.

Agora, agarrava-se à cabeceira da camadiretamente por cima do homem adorme-cido, e Kane saltou em frente com um gritode aviso. Nesse instante, Redly acordou e ol-hou para cima. Os seus olhos flamejaram,muito abertos, um terrível grito rompeuentre os seus lábios e, ao mesmo tempo, acoisa deixou-se cair em cheio sobre o seupescoço. No preciso momento em que Kaneatingiu a cama viu as pernas de John Redlyesticarem-se e ouviu os ossos do pescoço do

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homem a estilhaçarem-se. Depois, ficouhirto e imóvel, a cabeça grotescamente do-brada, de pescoço partido. E a coisa caiu decima dele e aterrou, flácida, na cama.

Kane debruçou-se sobre o sinistro es-petáculo, com dificuldade em acreditar nosseus olhos. Pois a coisa que abrira as porta-das, rastejara pelo chão e assassinara JohnRedly na sua cama era uma mão humana!

Agora jazia flácida e sem vida. Kaneatravessou-a cuidadosamente com a pontado florete e levantou-a à altura dos olhos.Aparentemente, a mão pertencia a umhomem gigantesco, pois era larga e espessacom dedos pesados e quase coberta por umtapete emaranhado de pelos semelhantes aosde um macaco. Fora cortada pelo pulso, e aferida estava fechada por sangue coagulado.Via-se um estreito anel de prata no segundodedo, um ornamento curioso, com a formade uma serpente enrolada.

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Kane ficou a olhar para a hediondarelíquia até que o taberneiro entrou, enro-lado na sua camisa de dormir, de vela numamão e bacamarte na outra.

— Que é isto? — rugiu quando os seus ol-hos deram com o cadáver na cama.

E então viu o que Kane trazia espetado naponta da espada e a sua face fez-se branca.Como se arrastado por um impulsoirresistível, aproximou-se — e os seus olhossaíram das órbitas. Depois recuou, cam-baleando, e afundou-se numa cadeira, tãopálido que Kane pensou que ele ia desfalecer.

— Nome de Deus, senhor — arquejou. —Que essa coisa não viva! Há um fogo acesona taberna, senhor!

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Kane chegou a Torkertown antes do de-clinar da manhã. Nos arredores da aldeia,encontrou um jovem falador que o saudou.

— Senhor, como todos os homens hones-tos, tereis prazer em saber que RogerSimeon, o mago negro, foi enforcado estamadrugada, justamente ao nascer do sol.

— E foi a sua morte viril? — perguntouKane sombriamente.

— Foi sim, senhor. Ele não vacilou, masque estranho acto aquele foi. Vede bem, sen-hor: Roger Simeon subiu ao patíbulo comdois braços mas uma só mão.

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— E como veio isso a acontecer?— Ontem à noite, senhor, estava ele sen-

tado na cela como uma grande aranha negra,chamou um dos guardas e, pedindo um úl-timo favor, disse ao soldado para lhe cortar amão direita! O homem, a princípio, nãoqueria fazê-lo, mas temeu a maldição de Ro-ger e, por fim, ergueu a espada e decepou amão pelo pulso. Então, Simeon, com a mãoesquerda, atirou a outra para longe atravésdas barras da janela da sua cela, pronun-ciando muitas palavras mágicas, estranhas eimpuras. Os guardas sofriam intenso temor,mas Roger prometeu não lhes fazer mal,dizendo que odiava apenas John Redly, queo traíra.

"Ligou o toco do braço para parar osangramento e todo o resto da noitemanteve-se sentado como um homem emtranse, e por vezes murmurava para si comoum homem que, sem se dar conta, fala

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sozinho. Sussurrava "Para a direita" e"Aguenta, para a esquerda!" e "Em frente,em frente!"

"Oh, senhor, dizem que era terrível ouvi-lo e vê-lo inclinado sobre o sangrento toco dobraço! Quando a madrugada se pôs cinzenta,eles vieram buscá-lo e levaram-no para ocadafalso, e no momento em que lhe pas-saram o laço pelo pescoço, subitamentecontorceu-se e endireitou-se, como se devidoa um esforço, e os músculos no seu braçodireito, aquele a que faltava a mão,intumesceram-se e rangeram como se est-ivesse a quebrar o pescoço de algum mortal!"

"Então, quando os guardas já saltavampara agarrá-lo, ele parou e começou a rir. E oseu riso rugiu, terrível e hediondo, até que acorda o quebrou e ele pendeu, negro e silen-cioso contra o olho vermelho do solnascente."

Salomão Kane ficou em silêncio,pensando no terror que deformara as feições

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de John Redly nesse último e fugaz momentode despertar e de vida, antes de ser atingidopelo destino. E uma imagem indistintasurgiu-lhe na mente — a de uma mãocortada e peluda, rastejando sobre os dedoscomo uma grande aranha, cegamente, at-ravés das escuras florestas nocturnas, paraescalar uma parede e abrir desajeitadamenteum par de persianas de um quarto dedormir. Aqui, a sua visão parou, recuandoperante a continuação daquele drama negroe sangrento. Que terríveis chamas de ódiotinham inflamado a alma do necromantecondenado e que hediondos poderes tinhamsido os seus para enviar assim aquela mãosangrenta às apalpadelas, na sua missão,guiada pela magia e vontade daquele cérebroardente!

No entanto, para certificar-se, Salomãoperguntou:

— E a mão, foi encontrada?

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— Não, senhor. Os homens encontraramo local onde caiu depois de ser atirada dacela, mas a mão não estava lá, e um rasto desangue levava à floresta. Sem dúvida, foi de-vorada por um lobo.

— Sem dúvida — respondeu SalomãoKane. — E eram as mãos de Simeon grandese peludas, com um anel no segundo dedo damão direita?

Sim, senhor. Um anel de prata, enroladocomo uma serpente.

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O Chocalhar de Ossos

— Ó DA CASA! — O grito quebrou o silêncioe reverberou através da negra florestaproduzindo ecos sinistros.

— Tenho para mim que este lugar temum aspecto ameaçador.

Dois homens estavam em frente da es-talagem da floresta. O edifício era baixo,longo e irregular, feito de troncos pesados.

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As suas janelas pequenas tinham barrasgrossas e a porta estava fechada. Por cima daporta, entrevia-se o agoirento símbolo da es-talagem: um crânio fendido.

A porta abriu-se lentamente e uma facebarbada espreitou para fora. O dono daquelerosto deu um passo para trás e gesticuloupara que os hóspedes entrassem; um gestode má vontade, pareceu-lhes. Uma vela bril-hava sobre uma mesa; uma chama fumegavana lareira.

— Os vossos nomes?

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— Salomão Kane — disse o homem maisalto com brevidade.

— Gaston l'Armon — disse o outro, con-cisamente. — Mas qual o vosso interessenisso?

— Há poucos estranhos na Floresta Negra— grunhiu o estalajadeiro — e muitosbandidos. Sentai-vos naquela mesa, que vostrarei comida.

Os dois homens sentaram-se, com o portede quem viajou longe. Um era um homemalto e sem carnes, com um chapéu sem penasna cabeça e tristes vestes negras querealçavam a palidez sombria do seu rosto. Ooutro pertencia a um tipo inteiramente di-verso, adornado com laços e plumas, emboraesses ornamentos estivessem algo mancha-dos da viagem. Era bem parecido de ummodo vigoroso, e os olhos inquietos salti-tavam por todos os lados sem pararem porum instante.

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O estalajadeiro trouxe vinho e alimentospara a mesa toscamente talhada e depois re-cuou para a escuridão, ficando de pé comoum retrato sombrio. Os seus traços, ora ret-rocedendo para a imprecisão das sombras,ora gravados lugubremente a fogo quando aschamas na lareira saltavam e estremeciam,eram mascarados por uma barba que pareciaquase animal na sua espessura. Sobre estabarba, curvava-se um grande nariz, e doispequenos olhos vermelhos fixavam-se sempiscar nos seus hóspedes.

— Quem sois vós? — perguntou de súbitoo homem mais novo.

— Sou o dono da Estalagem do CrânioFendido — respondeu o outro, soturna-mente. O tom que usou parecia desafiar oseu questionador a prosseguir as perguntas.

— Tendes muitos hóspedes? — continuoul'Armon.

— Poucos vêm duas vezes — grunhiu o es-talajadeiro. Kane sobressaltou-se e olhou

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directamente para os pequenos olhos ver-melhos do homem, como se procurasse nelesalgum significado que as palavras não rev-elassem. Os olhos chamejantes pareceramdilatar-se, e depois baixaram, soturnos, per-ante o olhar frio do inglês.

— Vou para a cama — disse Kane ab-ruptamente, pondo fim na refeição. — Devoretomar a viagem antes do nascer do sol.

— Eu também — acrescentou o francês. —Estalajadeiro, mostrai-nos os nossosquartos.

Sombras negras oscilaram nas paredesenquanto os dois homens seguiam o seu si-lencioso anfitrião ao longo de um átrio com-prido e escuro. O corpo entroncado e amplodo guia parecia crescer e expandir-se à luz dapequena vela que transportava, lançando at-rás de si uma sombra longa e ameaçadora.

Parou em frente de uma certa porta, in-dicando que eles iriam dormir ali. Entraram;o estalajadeiro acendeu uma vela com a que

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trouxera, e depois afastou-se, balançando,por onde viera.

No quarto, os dois homens olharambrevemente um para o outro. A únicamobília do aposento era composta por umpar de tarimbas, uma ou duas cadeiras e umamesa pesada.

— Vejamos se existe algum modo de se-gurar a porta — disse Kane. — Não meagrada a aparência do estalajadeiro.

— Há encaixes na porta e na soleira paraum ferrolho —disse Gaston. — Mas não háferrolho.

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— Podíamos quebrar a mesa e usar aspeças como ferrolho —devaneou Kane.

— Mon Dieu — disse l'Armon — estais re-ceoso, m'sieu.

Kane franziu o sobrolho.— Não aprecio ser assassinado enquanto

durmo — respondeu com brusquidão.— Por minha fé! — riu o francês. —

Encontrámo-nos por acaso; até eu vos ter al-cançado na estrada da floresta nunca nos tín-hamos visto.

—Julgo haver-vos visto antes em algumlugar — disse Kane — embora não seja agoracapaz de recordar onde. Quanto ao outro, as-sumo que todos os homens são honestos atéque me mostrem patifarias; além do mais,tenho o sono leve e durmo com uma pistola àmão.

O francês riu-se de novo.— Perguntava a mim próprio como o

m'sieu iria conseguir dormir no mesmoquarto de um estranho! Ha! Ha! Está bem,

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m'sieu inglês, adiante, procuremos um fer-rolho num dos outros quartos.

Levando a vela consigo, saíram para ocorredor. Reinava o máximo silêncio, e apequena vela cintilava, vermelha e maligna,na escuridão espessa.

— O nosso anfitrião não tem hóspedesnem servos — murmurou Salomão Kane. —Estranho albergue, este! Qual é mesmo onome? Estas palavras estranhas não me lem-bram com facilidade; o Crânio Fendido? Umnome deveras sangrento!

Experimentaram os quartos ao lado doseu, mas a busca não foi recompensada comnenhum ferrolho. Por fim, chegaram ao úl-timo quarto no fim do corredor. Entraram.Estava mobilado como os outros, mas aporta estava provida de uma pequena aber-tura com barras e trancada pelo lado de foracom uma pesada lingueta, presa de um doslados à soleira da porta. Ergueram a linguetae olharam para dentro.

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— Devia haver uma janela exterior, masnão há — murmurou Kane. — Vede!

O chão estava manchado de escuro. Asparedes e a única tarimba tinham sinais degolpes e grandes lascas tinham-lhes sidoarrancadas.

— Homens morreram aqui — disse Kanesombriamente.— Aquilo ali preso à paredenão é um ferrolho?

— É, mas está bem seguro — disse ofrancês, puxando-o com força. — O...

Uma secção da parede rodou para trás eGaston soltou uma breve exclamação. Umapequena sala secreta foi revelada, e os doishomens inclinaram-se sobre o objectomacabra que jazia no chão.

— O esqueleto de um homem! — disseGaston. — E observai como a sua perna os-suda está agrilhoada ao soalho! Ele foi aquifeito prisioneiro e sucumbiu.

— Não — disse Kane — o crânio estáfendido; parece que o estalajadeiro teve um

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motivo cruel para o nome da sua estalagem.Este homem, como nós, foi sem dúvida umviajante que caiu nas mãos daquele demónio.

— É possível — disse Gaston sem in-teresse; tentava afastar o grande anel deferro dos ossos da perna do esqueleto. Comofalhasse, tomou a espada e, numa notável ex-ibição de força, cortou a corrente que unia oanel da perna a outro anel profundamentecravado ao chão de madeira.

— Por que motivo agrilhoaria ele um es-queleto ao chão?

— perguntou o francês a si próprio. —Monbleu! É um desperdício de boas cor-rentes. Bem, m'sieu — disse com ironia paraa branca pilha de ossos — libertei-vos e po-deis ir para onde vos aprouver!

— Parai! — a voz de Kane era profunda.— Não virá nenhum bem de troçar dosmortos.

— Os mortos deviam defender-se — riud'Armon. — Eu arranjarei algum modo de

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acabar com o homem que me mate, mesmoque o meu cadáver tenha de subir quarentabraças de oceano para fazê-lo.

Kane virou-se para a porta exterior,fechando, atrás de si a porta do aposentosecreto. Não gostava • desta conversa comlaivos de bruxaria e feitiçaria; , e tinha pressade confrontar o estalajadeiro com a acusaçãodas suas culpas.

Quando se virou, voltando as costas aofrancês, sentiu o toque de aço frio contra opescoço e compreendeu que a boca de umapistola estava encostada a um ponto situadopouco abaixo da base do seu cérebro.

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— Estai quieto, m'sieu! — A voz era baixae sedosa.

— Estai quieto, ou eu espalharei os vossospoucos miolos por todo o quarto.

O Puritano, intimamente enraivecido,permaneceu quieto, com as mãos no ar, en-quanto l'Armon retirava as suas pistolas e es-pada das respectivas bainhas.

— Agora já podeis virar-vos — disse Ga-ston, dando um passo para trás.

Kane dirigiu um olhar ameaçador ao jan-ota, que descobrira a cabeça e seguravanuma mão o chapéu e com a outra lhe apon-tava a sua longa pistola.

— Gaston, o Carniceiro! — disse o inglêssombriamente.

— Que tolo fui por confiar num francês!Andais por longe, assassino! Lembro-me devós, agora que tirastes esse maldito chapéu;vi-vos em Calais há alguns anos.

— Com efeito... e agora nunca mais mevereis. Que foi aquilo?

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— Ratazanas explorando o vosso esquel-eto—disse Kane, vigiando o bandido comoum falcão, à espera da primeira hesitação daboca negra daquela arma. — O som foi de os-sos a chocalhar.

— Tanto me basta — retorquiu o outro. —Ora bem, m'sieu Kane, sei que transportaisconvosco uma quantidade considerável dedinheiro. Tinha pensado esperar até que ad-ormecêsseis para vos matar de seguida, masa oportunidade apresentou-se e eu resolviaproveitá-la. Sois fáceis de enganar.

— Não pensei que devesse temer umhomem com o qual tinha partilhado pão —disse Kane, um timbre profundo de lentafúria soando-lhe na voz.

O bandido riu cinicamente. Os seus olhosestreitaram-se ao mesmo tempo quecomeçou a recuar lentamente em direção àporta exterior. Os tendões de Kane puseram-se involuntariamente tensos, e ele acumulouforças como um lobo gigantesco prestes a

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lançar-se num salto de morte, mas a mão deGaston era firme como uma rocha e a pistolanunca estremeceu.

— Não haverá mergulhos de morte depoisdo tiro — disse Gaston. — Parai, m'sieu; já vihomens serem mortos por moribundos edesejo pôr suficiente distância entre nós paraexcluir essa possibilidade. Por minha fé... eudispararei, vós rugireis e atacareis, mas mor-rereis antes de me atingirdes com as vossasmãos vazias. E o estalajadeiro terá outro es-queleto no seu nicho secreto. Isto é, se eunão resolver matá-lo também. O tolo não meconhece, nem eu a ele, e além disso...

O francês estava agora à soleira da porta,e olhava para Kane ao longo do cano da pis-tola. A vela, que fora enfiada num nicho naparede, fornecia uma estranha luztremeluzente que não ia além da porta. Ecom a qualidade súbita da morte, da escur-idão por trás das costas de Gaston ergueu-seuma forma vaga e larga e uma lâmina

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reluzente precipitou-se para baixo. O francêscaiu sobre os joelhos como um touroacabado de matar, com os miolos a escorrerdo seu crânio fendido. Por cima dele erguia-se a figura do estalajadeiro, um espectáculoselvagem e terrível, ainda segurando o gan-cho com que assassinara o bandido.

— Ho! ho! — rugiu. — Para trás!Kane saltara em frente quando Gaston

caíra, mas o estalajadeiro apontara-lhe àcara uma longa pistola que trazia na mãoesquerda.

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— Para trás! — repetiu num rugido detigre, e Kane afastou-se da arma ameaçadorae da insanidade patente nos olhosvermelhos.

O inglês ficou em silêncio, com a carnecoberta de formigueiros, ao sentir umaameaça mais profunda e hedionda que

a que o francês constituíra. Havia algo deinumano neste homem, que agora oscilavade um lado para o outro como um grande an-imal da floresta, enquanto as suas gargalha-das vazias de alegria ressoavam de novo.

— Gaston, o Carniceiro! — gritou, pon-tapeando o cadáver caído a seus pés. — Ho!ho! O meu belo salteador não voltará a caçar!Tinha ouvido falar deste tolo, que deambu-lava pela Floresta Negra; ele desejava ouro eencontrou a morte! O vosso ouro será agorameu; e mais do que o ouro: a vingança!

— Não sou vosso inimigo — disse Kanecalmamente.

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— Todos os homens são meus inimigos!Vede: as marcas nos meus pulsos! Olhai paraas marcas nos meus tornozelos! E no fundodas minhas costas o beijo do látego! E nofundo do meu cérebro, as feridas causadaspelos anos passados em celas frias e silencio-sas, como punição por um crime que nãocometi! — A voz quebrou-se num grotesco ehediondo soluço.

Kane não respondeu. Este homem nãoera o primeiro que vira com o cérebro des-pedaçado pelos horrores das terríveis prisõescontinentais.

— Mas eu fugi! — o grito ergueu-se, triun-fante — E aqui faço guerra a todos os ho-mens... Que foi aquilo?

Teria Kane visto um clarão de medonaqueles terríveis olhos?

— O feiticeiro chocalha os seus ossos! —sussurrou o estalajadeiro, e depois riu selvat-icamente. — Ao morrer, jurou que os seus os-sos iriam tecer uma teia de morte para mim.

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Agrilhoei o seu cadáver ao chão, e agora, nasprofundezas da noite, ouço o seu esqueletodescarnado ressoar e chocalhar enquantotenta libertar-se, e eu rio, rio! Ho! ho! Comoele anseia erguer- se e avançar furtivamentepor estes corredores escuros, como a velhaRainha Morte, para me roubar a vida en-quanto durmo na minha cama!

Subitamente, os loucos olhos brilharamhorrivelmente:

— Estivestes no compartimento secreto,vós e este estúpido morto! Ele falouconvosco?

Kane estremeceu involuntariamente. Ser-ia loucura, ou estaria realmente a ouvir umleve chocalhar de ossos, como se o esqueleto

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se tivesse movido um pouco? Kane encolheuos ombros; as ratazanas até ossos poeirentostentariam roer.

O estalajadeiro ria de novo. RodeouKane, mantendo sempre o inglês na mira dapistola, e com a mão livre abriu a porta. Den-tro, tudo era negrume, de tal modo que Kanenem era capaz de entrever os ossos no chão.

Todos os homens são meus inimigos! —murmurou o estalajadeiro, ao modo incoer-ente dos loucos. — Porque havia de poupar avida a algum? Quem ergueu uma mão emmeu auxílio durante os anos que permanecinas vis masmorras de Karlsruhe, e por umato nunca provado? Algo aconteceu então aomeu cérebro. Tornei-me como um lobo,irmão desses da Floresta Negra, onde meescondi quando fugi..

“Regalaram-se, os meus irmãos, com acarne de todos os que pernoitaram na minhaestalagem, todos excepto este que agorachocalha os seus ossos, este mago da Rússia.

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Para que ele não regresse pelas sombrasnegras a fim de me dar caça quando a noiteestá sobre o mundo, e me mate, pois quempode assassinar os mortos?... Limpei decarne os seus ossos e acorrentei-o. Os seusfeitiços não foram suficientemente poder-osos para salvá-lo de mim, mas todos os ho-mens sabem que um mago morto é mais ma-ligno do que um mago vivo. Não vos moveis,inglês! Deixarei os vossos ossos neste quartosecreto, ao lado destes, a fim de..."

O louco estava agora parcialmente dentrodo aposento secreto, com a arma ainda aameaçar Kane. De súbito, pareceu cair paratrás e desapareceu na escuridão; e no mesmoinstante uma caprichosa rajada de vento var-reu o corredor exterior e fechou com es-trondo a porta atrás dele. A vela na paredeestremeceu e apagou-se. Às apalpadelas, asmãos de Kane percorreram o chão, encon-traram uma pistola, e ele ergueu-se, defrente para a porta por onde o louco

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desaparecera. Estava na mais profunda es-curidão, com o sangue congelado nas veias,enquanto terríveis gritos abafados vinhamdo quarto secreto, entrecortados

pelo chocalhar seco e macabro de ossossem carne. Então, caiu o silêncio.

Kane encontrou pederneira e fuzil eacendeu a vela. Depois, segurando-a numamão e a pistola na outra, abriu a portasecreta.

— Deus do céu! — murmurou enquantono seu corpo se formava um suor frio. — Estacoisa está para além de toda a razão, e no en-tanto é com os meus próprios olhos que avejo! Dois votos foram aqui cumpridos, poisGaston, o Carniceiro, jurou que mesmo namorte vingaria o seu assassínio, e foi sua amão que libertou este monstro sem carne. Eele...

O dono do Crânio Fendido jazia sem vidano chão do quarto secreto, o seu animalescorosto coberto com as marcas de um terrível

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pavor; e profundamente cravados no seupescoço partido estavam os dedos sem carnedo esqueleto do feiticeiro.

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Hawk de Basti (Fragmento)

- Solomon Kane!

Os galhos entrelaçados das grandesárvores se erguiam em enormes arcos, váriasdezenas de metros acima da terra coberta de

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musgo, dando uma meia-luz gótica por entreos troncos gigantes. Seria isto magia negra?Quem, nesta terra pagã e esquecida, de mis-térios sombrios, quebrou o silêncio meditat-ivo para gritar o nome de um estranhoandarilho?

Os olhos frios de Kane perambularamentre as árvores; uma esguia mão de ferro sefechou sobre o bastão entalhado, de pontaafiada, que ele carregava; a outra pairoupróximo às longas pistolas de pederneira queusava.

Então, uma figura bizarra saiu das som-bras. Os olhos de Kane se arregalaram leve-mente. Era um homem branco e estran-hamente vestido. Uma tanga de seda era suaúnica roupa, e ele usava sandálias estranhasnos pés. Braceletes de ouro, e uma pesada

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corrente dourada ao redor de seu pescoço,aumentavam a barbaridade de sua aparên-cia, bem como as argolas em forma de arconas suas orelhas. Mas, embora os outros or-namentos fossem de feitio curioso e não-fa-miliar, as argolas eram como as que Kanehavia visto centenas de vezes nas orelhas demarinheiros europeus.

O homem estava arranhado e machu-cado, como se houvesse corrido temeraria-mente através de florestas espessas; haviacortes superficiais nos seus membros ecorpo, os quais nenhum espinho ou sarça po-deria ter feito. Em sua mão direita, ele se-gurava uma curta espada curva, tingida comum vermelho sinistro.

- Solomon Kane, pelos uivantes cães-de-caça do inferno! – exclamou este homem,

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arregalando os olhos em espanto, enquantose aproximava do inglês que o encarava –Passe-me por baixo da quilha da embarcaçãode Satã, mas você me assustou! Pensei queeu fosse o único homem branco por milmilhas!

- Eu havia pensado o mesmo de mim. –respondeu Kane – Mas não lhe conheço.

O outro riu asperamente.

- Não me espanto por esse motivo. – eledisse – Talvez eu mal me reconhecesse se,subitamente, encontrasse a mim mesmo.Bem, Solomon, meu sóbrio cortador de gar-gantas, já faz muitos anos desde que olheipara esse seu rosto sombrio, mas eu o recon-heceria até em Hades. Vamos, você já

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esqueceu os bravos e velhos dias, quando pil-hamos os nobres espanhóis, dos Açores atéDarien, e depois novamente, em sentido con-trário? Sabre de abordagem e carnificina!Pelos ossos dos santos, que profissão san-grenta a nossa! Você não esqueceu JeremyHawk!

O reconhecimento brilhou nos olhos friosde Kane, como uma sombra que passa pelasuperfície de um lago congelado.

- Eu me lembro, embora não houvésse-mos navegado no mesmo navio. Eu estavacom Sir Richard Grenville. Você navegavacom John Bellefonte.

- Sim! – gritou Hawk com uma praga –Eu daria a coroa que perdi, para viver

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aqueles dias novamente! Mas Sir Richard es-tá no fundo do mar, e Bellefonte no inferno;e muitos dos nossos destemidos camaradasestão acorrentados, ou alimentando ospeixes com boa carne inglesa. Diga-me, meuassassino melancólico, a boa Rainha Bessainda governa a velha Inglaterra?

- Já faz muitas luas desde que deixeinossas praias nativas. – respondeu Kane –Ela se sentava firmemente em seu trono,quando naveguei.

Ele falava de forma ríspida, e Hawk o en-carava curiosamente:

- Você nunca amou os Tudors, hein,Solomon?

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- A irmã dela perseguiu minha gentecomo se fossem animais de caça. – Kane re-spondeu asperamente – Ela própria tam-bém; enganou e traiu o povo de minha confi-ança... mas isso não importa agora. O que fazaqui?

Kane percebeu que Hawk, de vez emquando, virava a cabeça e olhava para trás,na direção da qual havia chegado, numa atit-ude de escuta atenta, como se na expectativade uma perseguição.

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- É uma longa história. – ele respondeu –Contarei brevemente... você sabe que não háboas palavras entre Bellefonte e outros doscapitães ingleses...

- Ouvi dizer que ele não se tornou maisque um pirata comum. – disse Kanerudemente.

Hawk abriu um perverso sorriso largo.

- Ora, é o que dizem. De qualquer modo,navegamos para o alto-mar e, pelos olhos deSatã, vivemos como reis entre as ilhas, pil-hando o ouro e prata dos navios e os tesour-os dos galeões. Então, veio um navio espan-hol de guerra e nos perseguiu violentamente.Uma terrível bala de canhão mandou Belle-fonte para seu amo, o Diabo; e eu, o primeiro

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imediato, me tornei capitão. Foi um velhacofrancês, chamado La Costa, que se opôs amim... bom, eu enforquei La Costa no mastroprincipal, e navegamos para o sul. Final-mente escapamos do navio de guerra e nosdirigimos para a Costa dos Escravos, até umcarregamento de marfim negro. Mas nossasorte foi embora com Bellefonte. Encal-hamos num banco de areia e, quando as né-voas clarearam, 100 canoas de guerra, cheiasde demônios nus e uivantes, estavam seaglomerando ao nosso redor.

“Lutamos durante a metade de um dia e,quando os expulsamos, estávamos com met-ade de nossos homens mortos, e o naviopronto para sair do banco de areia onde en-calhou e afundar sob nossos pés. Só haviaduas coisas a serem feitas: irmos ao mar embotes despedaçados, ou irmos para a praia. Esó havia um bote, ao qual os bombardeios do

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navio de guerra não haviam destruído. Al-guns da tripulação se aglomeraram dentrodele e, da última vez que os vimos, eles re-mavam para oeste. O resto de nós chegou àpraia em jangadas.

“Pelos deuses de Hades! Era loucura...mas o que mais poderíamos fazer? As selvasestavam apinhadas de selvagens sedentos desangue. Marchamos para norte, na esper-ança de acharmos algum barracão de escra-vos, mas eles nos expulsaram e fomos força-dos a virarmos diretamente para leste.Lutávamos por cada passo de nosso cam-inho; nosso bando se desfez, como névoa di-ante do sol. Lanças, animais selvagens e ser-pentes venenosas cobraram seu pedágiomedonho. Por fim, enfrentei sozinho a selvaque havia engolido todos os meus homens.Escapei dos nativos. Por meses, viajei soz-inho, porém armado, nesta terra hostil.

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Finalmente, alcancei as margens de umgrande lago, e vi os muros e torres de umgrande reino que se erguia diante de mim”.

Hawk riu ferozmente:

- Pelos ossos dos santos! Isto soa comoum conto de Sir John Mandeville! Encontreium povo estranho sobre as ilhas... e umaraça curiosa e perversa que as governava.

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Eles nunca antes tinham visto um homembranco... em minha juventude, eu perambu-lei ao redor de um bando de ladrões que dis-farçavam sua verdadeira natureza através deprestidigitações e malabarismos. Pela eficá-cia da minha habilidade em prestidigitar aomeu alcance, impressionei o povo. Eles meviram como um deus... todos, menos o velhoAgara, sacerdote deles... e ele não conseguiaexplicar minha pele branca.

“Fizeram de mim um talismã, e o velhoAgara se ofereceu para fazer de mim um altosacerdote. Eu pareci me submeter e aprendimuitos de seus segredos. Temi o velhoabutre, a princípio, pois ele era capaz de

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fazer uma magia que faria a minha prestidi-gitação parecer infantil... mas o povo estavatotalmente encantado por mim.

“O lago se chama Nyayna; as ilhas sobreele são chamadas as Ilhas de Ra, e a ilhaprincipal é chamada de Basti. A classe dom-inante se chama khabasti, e os escravos sãochamados de masutos.

“A vida destes últimos é deveras infeliz.Não têm vontade própria, exceto os desejosde seus amos cruéis. São mais brutalmentetratados que os índios de Darlen pelos es-panhóis. Já vi mulheres chicoteadas até amorte, e homens crucificados pela mais levedas faltas. O culto dos khabastis é obscuro esombrio, trazido com eles de alguma terrarepugnante da qual vieram. No grande altardo templo da Lua, a cada semana, uma

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vítima uivante morre sob a adaga do velhoAgara... sempre o sacrifício de um masuto,um jovem forte ou uma virgem. Isso nem é opior... antes da adaga aliviar o sofrimento, avítima é aleijada de formas horrendas de semencionar. A Santa Inquisição empalidecediante das torturas infligidas pelos sacer-dotes de Basti; mas a arte deles é tão in-fernal, que a criatura sem língua, decepada,cega e esfolada vive até a estocada final daadaga mandá- lo – ou mandá-la – para alémdo alcance dos demônios torturantes”.

O olhar dissimulado de Hawk mostrou aele que intensos fogos vulcânicos começavama arder friamente nos olhos estranhos deKane. Sua expressão ficou mais sombria-mente pensativa do que nunca, quando ges-ticulou para que o bucaneiro continuasse.

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- Nenhum inglês é capaz de assistir àsagonias diárias e impiedosas dos pobresinfelizes. Tornei-me defensor deles assimque aprendi sua linguagem, e tomei partidodos masutos. Então, o velho Agara teria mematado, mas os escravos se rebelaram emataram o demônio que ocupava o trono.Então, eles me suplicaram para ficar egoverná-los. Eu o fiz. Sob meu governo, Bastiprosperou... tanto os masutos quanto oskhabastis. Mas o velho Agara, que havia es-capulido para algum esconderijo, estava tra-balhando nas sombras. Ele conspirou contramim e, finalmente, chegou até a jogar muitosdos masutos contra seu libertador. Pobrestolos! Ontem, ele saiu em local aberto e,numa batalha pesada, as ruas da antiga Bastificaram vermelhas. Mas o velho Agara triun-fou com sua magia maligna, e muitos dosmeus partidários foram mortos. Nós fugimosem canoas para uma das ilhas menores, e láeles caíram sobre nós, e novamente

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perdemos a luta. Todos os meus adeptos fo-ram mortos ou levados... e Deus ajude aosque foram levados vivos!... só eu escapei.Eles têm me caçado como lobos desde então.Agora mesmo, eles continuam meperseguindo. Não irão descansar até mematarem, se eles tiverem primeiro que meseguir através do continente.

- Então, não deveríamos perder tempoconversando. – disse Kane, mas Hawk sorriufriamente.

- Não... no momento em que lhe vislum-brei através das árvores, e percebi que por al-gum estranho capricho do Destino eu haviaencontrado um homem de minha própriaraça, vi que mais uma vez devo usar o dia-dema dourado e incrustado de jóias, que é a

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coroa de Basti. Deixe-os chegarem... iremosencontrá-los.

“Ouça, meu corajoso puritano: o que eufiz antes, eu fiz desarmado, por simples arti-manha improvisada. Se eu tivesse uma armade fogo, eu seria governante de Basti nestemomento. Eles nunca ouviram falar empólvora. Você tem duas pistolas... é o sufi-ciente para fazer de nós reis por mais dozevezes... mas, bem que você poderia ter ummosquete”.

Kane encolheu os ombros. Era desne-cessário contar a Hawk sobre a batalha de-moníaca na qual seu mosquete fora desped-açado; naquele momento, ele se perguntavase aquele episódio medonho não havia sidouma visão de delírio.

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- Tenho armas – ele disse –, embora meusuprimento de pólvora e bala esteja limitado.

- Três tiros nos colocarão no trono deBasti. – disse Hawk – Então, meu bravoamigo, vai se arriscar com um velhocamarada?

- Vou lhe ajudar em tudo que estiver aomeu alcance. – Kane respondeu sombria-mente – Mas não desejo nenhum trono ter-reno de orgulho e futilidade. Se trouxermospaz a uma raça sofredora e punirmos ho-mens perversos por sua crueldade, é o sufi-ciente para mim.

Eles dois formavam um estranho contras-te, de pé na penumbra da grande floresta

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tropical. Jeremy Hawk era tão alto quantoSolomon Kane; e, como ele, era forte e demembros longos... de aço duro e flexívelcomo ossos de baleia. Mas onde Solomon eramoreno, Jeremy Hawk era loiro. Agora eleestava levemente bronzeado pelo sol, e seusemaranhados cachos amarelos lhe caíamsobre sua testa alta e estreita. Seu maxilar,coberto por uma barba amarela, curta eáspera, era magro e agressivo; o fino talho desua boca era cruel. Seus olhos cinzas erambrilhantes e inquietos, cheios de cintilaçõesferozes e luzes mutáveis. Seu nariz era fino eaquilino, e todo o rosto parecia o de uma avede rapina. Ele se erguia levemente curvadopara a frente, em sua atitude habitual de im-paciência feroz, quase nu e segurando firm-emente a espada ensanguentada.

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Encarando-o, estava Solomon Kane,igualmente alto e forte, com suas botas des-gastadas, roupas esfarrapadas e desalinhadochapéu sem pluma, cingido com pistolas,uma espada estreita de dois gumes e uma ad-aga; e com sua bolsa de pólvora e balas pen-durada ao cinto. Não havia qualquer insinu-ação de semelhança entre o selvagem e in-diferente rosto de falcão do bucaneiro e asfeições sombrias do puritano, cuja sombriapalidez tornava seu rosto quase cadavérico.Mas percebia-se a mesma qualidade na flex-ibilidade de tigre do pirata e na aparência

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lupina de Kane. Estes dois homens nasceramnômades e matadores, amaldiçoados comum impulso paranoico de viagens, que osqueimava como fogo inapagável e nunca lhesdava descanso.

- Dê-me uma de suas pistolas – exclamouHawk –, e metade de sua pólvora e balas.Eles logo estarão sobre nós... por Judas, nãoiremos esperá-los! Vamos ao encontro deles!Deixe tudo comigo... um tiro, e eles cairão enos adorarão. Venha! E, enquanto andamos,me conte como chegou até aqui.

Perambulei por muitas luas. – disseKane, meio relutante – Por que estou aqui,não sei... mas a selva me chamava através demuitas léguas de mar azul, e eu vim. Semdúvida, a mesma Providência que tem meguiado os passos por todos os meus anos, me

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trouxe para cá pelo mesmo propósito, aoqual meus olhos fracos ainda nãoenxergaram.

- Você carrega um bastão estranho. –disse Hawk, enquanto eles caminhavam apassos largos e balouçantes sob os enormesarcos.

Os olhos de Kane vagaram até o bastãoem sua mão direita. Era tão longo quantouma espada, duro como ferro e afiado na ex-tremidade menor. A outra extremidade eraesculpida na forma de uma cabeça de gato, etodo o bastão tinha estranhas linhas ondula-das e estranhos entalhes.

- Não duvido que seja apenas mais umobjeto de magia negra e feitiçaria. – disseKane sombriamente – Mas, no passado, tri-unfou poderosamente contra seres das

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trevas, e é uma arma agradável. Foi dadapara mim por uma estranha criatura...N’Longa, um feiticeiro da Costa dos Escra-vos, a quem eu vi realizar façanhas semnome e não religiosas. Mas, por baixo de suaselvagem pele enrugada, bate o coração deum homem de verdade, não tenho dúvidas.Ouça!

Hawk parou, subitamente enrijecido. Àfrente deles, soava o caminhar de muitos péscalçados em sandálias – fraco como umvento nos topos das árvores, embora, comouvidos tão aguçados quanto os de cães decaça, tanto ele quanto seu companheiro oouvissem e interpretassem.

- Há uma clareira logo adiante. – disseHawk, sorrindo selvagemente

– Vamos esperá-los lá...

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E assim, Kane e o ex-rei de Basti ficaramplenamente visíveis em um dos lados daclareira, quando 100 homens surgiram ab-ruptamente do outro lado, como um bandode lobos sobre rastros recentes. Elespararam, assombrados e repentinamentesem fala, ao verem aquele que estava fugindopor sua vida, e que agora os encarava comum sorriso cruel e zombeteiro – e ao veremseu companheiro silencioso.

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Quanto a Kane, ele os encarava, surpreso.Metade deles eram negros, atarracados e ro-bustos, com os peitos cilíndricos e pernascurtas de homens que passavam a maiorparte de suas vidas em canoas. Estavam nuse armados com lanças pesadas. Foram osoutros que prenderam a atenção do inglês.Eram homens altos e bem formados, cujasfeições regulares e lisos cabelos negrosmostravam pouco traço de sangue negroide.A cor deles era um marrom acobreado, vari-ando de um bege avermelhado claro até umbronze intenso. Seus rostos eram francos enão eram desagradáveis. Suas vestes consis-tiam apenas em tangas de seda e sandálias.Em suas cabeças, muitos usavam um tipo deelmo feito de bronze, e cada um trazia nobraço esquerdo um pequeno escudo redondode madeira, reforçado com couro endurecidoe pregos de bronze. Suas armas eram espa-das curvas, semelhantes à usada por Hawk,

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maças de madeira polida e leves machadosde batalha. Alguns carregavam arcos pesad-os, de poder evidente, e aljavas com longasflechas farpadas.

E ocorreu violentamente a Solomon Kanea idéia de que já tinha visto homens muitosparecidos com estes, ou desenhos de homenscomo eles. Mas ele não sabia dizer. Elespararam no meio da clareira, para olharemincertos para os dois brancos.

- Bom – disse Hawk, zombeteiramente –,vocês encontraram seu rei... esqueceram

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seus deveres para com seu governante?Ajoelhem- se, cães!

Um jovem e bem constituído guerreiro, àfrente dos homens, falou irascivelmente, en-quanto Kane se sobressaltava ao perceberque entendia a linguagem. Era muito semel-hante aos numerosos dialetos bantus, muitosdos quais Kane havia aprendido em suas via-gens, embora algumas das palavras lhefossem ininteligíveis e tivessem um travo deestranha antiguidade.

- Assassino de mãos ensanguentadas! –exclamou o jovem, com as bochechas escurasse ruborizando de ódio – Você ousa zombarde nós? Não sei quem é este homem, masnossa contenda não é com ele. É a sua cabeçaque nós levaremos conosco para Agara.Peguem- no...

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Sua própria mão recuou, junto com a aza-gaia que trazia, e naquele instante, Hawkapontou cuidadosamente e atirou. A pistolade pesado calibre fez um estrondo ensur-decedor, e na fumaça, Kane viu o jovemguerreiro cair como um cão. O efeito sobre osrestantes era exatamente o que Kane haviavisto em selvagens de muitas outras terras.Suas armas escorregaram de mãos imóveis, eeles ficaram congelados, de boca abertacomo crianças assustadas. Alguns dos guer-reiros gritaram e caíram de joelhos, ouestirados sobre os rostos.

Os olhos arregalados de todos foram pux-ados, como que por um ímã, para o silen-cioso cadáver. A curta distância, a balapesada havia literalmente despedaçado ocrânio do jovem e lhe explodido os miolos. E,

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enquanto os camaradas deles ficavam comoovelhas, Hawk golpeou enquanto o ferroainda estava em brasa.

- Desçam, cães! – ele gritou, de forma es-tridente, batendo nos joelhos de um guer-reiro com um tapa – Será que devo soltar ostrovões da morte sobre todos vocês, ou irãome receber novamente como seu legítimorei?

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Aturdidos e com as mentes entorpecidas,os guerreiros caíram ajoelhados; alguns seretorceram, prostrados sobre as barrigas, echoramingaram. Hawk pôs o calcanhar sobreo pescoço do guerreiro mais próximo, e sor-riu selvagem e triunfantemente para Kane.

- Levantem-se. – disse ele com um chutedesdenhoso – Mas ninguém esqueça que eusou o rei! Retornareis para Basti e lutareispor mim, ou morrereis todos aqui?

- Lutaremos por você, mestre. – respon-deram em coro. Hawk sorriu novamente.

- Retomar o trono é mais fácil do que eumesmo pensei. – disse ele – Levantem-seagora... e deixem esta carniça no lugar ondecaiu. Sou o rei de vocês, e este é SolomonKane, meu camarada. Ele é um terrível

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feiticeiro, e se tentarem me matar... eu, quesou imortal... ele apagará todos daexistência.

Homens são como ovelhas, pensou So-lomon, ao ver os guerreiros de ambas asfacções se arrumando pacificamente, deacordo com as ordens de Hawk. Formavamfilas curtas, com três lado a lado, e no centrocaminhavam Kane e Hawk.

- Não tema uma lança nas costas. – disseo bucaneiro para Kane – Eles estão intimida-dos... vê o olhar atordoado deles? Mas fiquede guarda.

Então, chamando um homem que tinha aaparência de um chefe, ordenou para queeste andasse entre ele e Kane.

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A Lua das Caveiras

1) Um Homem Vem Procurando

Uma grande sombra negra jazia pelaterra, dividindo a chama vermelha do rubropôr-do-sol. Para o homem que subia pen-osamente a trilha na selva, ela avultava comoum símbolo de morte e horror, uma ameaçameditativa e terrível, como a sombra de um

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assassino furtivo sobre uma parede ilumin-ada a vela.

Mas, era apenas a sombra do grande pen-hasco que se erguia diante dele; o primeiroposto avançado dos sombrios contrafortes,os quais eram sua meta. Ele parou por ummomento ao pé do penhasco, olhando para oalto, onde ele se erguia sombriamentedestacado contra o sol poente. Ele era capazde jurar ter percebido a insinuação de ummovimento no topo, enquanto olhava com amão lhe protegendo os olhos. Mas o clarãomoribundo o ofuscou, e ele não pôde ter cer-teza. Era um homem que corria para a cober-tura? Um homem, ou...?

Ele encolheu os ombros e se pôs a exam-inar a trilha áspera, que guiava para o alto esobre a beirada do penhasco. À primeiravista, parecia que apenas um cabrito montêsseria capaz de subi-la, mas um exame mais

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de perto mostrava vários pontos de apoiopara os dedos, perfurados na rocha sólida.Seria um trabalho testar suas forças até o ex-tremo, mas ele não havia percorrido 1600km para agora dar as costas.

Ele deixou cair a grande bolsa que usavasobre o ombro, e deitou o tosco mosquete,ficando apenas com sua longa espada es-treita de dois gumes, a adaga e uma de suaspistolas, as quais prendera atrás de si, e, semolhar para trás em direção à trilha na qual vi-era, ele começou a longa subida. Era umhomem alto, de braços longos e músculos deaço, embora várias vezes ele fosse forçado aparar em sua escalada e descansar por ummomento, agarrando-se feito uma formiga àsuperfície íngreme do despenhadeiro. Anoite caiu rapidamente, e o penhasco acimadele era uma mancha ensombrecida, na qualera forçado a cravar os dedos cegamente, em

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busca de orifícios que lhe servissem comouma precária escada de mão.

Abaixo dele, irrompiam os ruídosnoturnos da selva tropical; mas lhe pareciaque mesmo estes sons eram abrandados ecalados, como se as grandes colinas negras,que avultavam no alto, lançassem um feitiçode silêncio e medo, até mesmo sobre as cri-aturas da Selva.

Ele continuou se esforçando para o alto, eagora, para dificultar ainda mais seu cam-inho, o despenhadeiro tinha uma saliência

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próxima ao cume, e o esforço de nervos emúsculos se tornou angustiante. Mais deuma vez, ele escorregou de um orifício, e es-capou por um fio. Mas cada fibra de seu es-guio corpo firme tinha perfeita coordenação,e seus dedos eram como garras de aço com oaperto de um torno. Seu avanço ficou maislento, mas ele prosseguiu, até que finalmenteviu a beirada rochosa dividindo as estrelas, aapenas 6 metros acima dele.

E, enquanto ele olhava, um vago vultoficou visível, desabou na beirada e caiu emsua direção, com um grande movimento dear ao redor. Com a pele se arrepiando, ele secomprimiu contra a superfície do penhasco esentiu um baque pesado contra seu ombro –apenas um baque de raspão, mas mesmo as-sim, ele quase lhe tirou o equilíbrio e, en-quanto lutava desesperadamente para se en-direitar, ouviu um estrondo ecoar por entreas rochas lá embaixo. Com suor frio lhe

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escorrendo da testa, ele olhou para cima.Quem – ou o quê – havia empurrado aquelematacão por sobre a beirada do despen-hadeiro? Ele era bravo, como os ossos emmuitos campos de batalha poderiam de-clarar, mas o pensamento de morrer comoum carneiro – indefeso e sem chance de resi-stir – lhe gelava o sangue.

Então, uma onda de fúria lhe suplantou omedo e ele renovou sua escalada com velo-cidade temerária. O esperado segundomatacão não veio, no entanto, e ele não viunenhuma coisa viva enquanto subia pelabeirada e se erguia de um pulo, com a espadarecém- desembainhada brilhando.

Ele estava numa espécie de planalto, quedesembocava numa região de colinas irregu-lares, uns 800 metros a oeste. O penhasco, oqual ele acabara de subir, se sobressaía do

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restante das elevações como um taciturnopromontório, avultando acima do mar de fol-hagem ondulante lá embaixo, agora escuro emisterioso na noite tropical.

O silencio reinava em absoluta suprema-cia. Nenhuma brisa agitava as profundezassombrias lá embaixo, e nenhum passo sus-surrava entre as moitas raquíticas que en-cobriam a chapada; mas aquele matacão, quequase lançara o escalador para a morte, nãohavia caído por acaso. Quais criaturas semoviam por entre estas colinas sombrias? Aescuridão tropical caía sobre o aventureirosolitário como um pesado véu, através doqual as estradas amarelas piscavam maligna-mente. Os vapores da vegetação podre daselva se erguiam até ele, tão tangíveis quantouma névoa espessa; e, fazendo uma careta denojo, ele se afastou do despenhadeiro e

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caminhou corajosamente pelo planalto, coma espada numa mão e a pistola na outra.

Havia uma sensação desconfortável deestar sendo observado no próprio ar. O silên-cio permanecia inquebrável, exceto pelosuave zunir que marcava o caminhar felinodo forasteiro, através da alta grama no ter-reno elevado; mas o homem sentia quecoisas vivas deslizavam à sua frente e atrás, ede cada lado. Se algum homem ou animal orasteava, ele não sabia, nem se importavamuito, pois ele estava preparado para en-frentar qualquer homem ou demônio que lhebarrasse o caminho. Ocasionalmente, eleparava e olhava desafiadoramente ao redor,mas nada via, exceto os arbustos que seagachavam como baixos fantasmas escurosao redor de seu caminho, se fundindo e fic-ando indistintos na espessa e quente

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escuridão, através da qual as próprias es-trelas pareciam se esforçar, vermelhas.

Finalmente, ele chegou ao lugar onde oplanalto irrompia em inclinações mais altas,e lá viu um amontoado de árvores, delinea-das solidamente nas sombras menores.Aproximou-se cautelosamente, e logo parouao ver, ficando um pouco acostumado à es-curidão e distinguiu uma forma vaga porentre os troncos, a qual não era parte deles.Ele hesitou. A figura não avançava nem fu-gia. Uma forma indistinta de ameaça silen-ciosa, ela se ocultava como que em espera.Um horror pensativo pairava sobre aqueleimóvel aglomerado de árvores.

O forasteiro avançou cautelosamente,com a lâmina estendida. Mais perto,forçando os olhos em busca de alguma

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insinuação de movimento ameaçador, ele ju-lgou que a figura fosse humana, mas estavaconfuso com sua falta de movimento. Entãoo motivo ficou evidente – era o corpo de umhomem negro que se encontrava entre asárvores, mantido em pé por lanças atravessa-das em seu corpo e pregando-o aos troncosdas árvores. Um dos braços estava estendidoem frente a ele, preso ao longo de um grandegalho por uma adaga enfiada em seu pulso, odedo indicador estirado como se o corpoapontasse rigidamente – de volta ao cam-inho pelo qual o estrangeiro havia chegado.O significado era óbvio: aquele mudo e som-brio poste indicador não tinha outro... amorte está depois dali. O homem que estavaolhando para aquele aviso raramente ria,mas agora ele se permitia o luxo de um sor-riso sardônico. Mil e seiscentos quilômetrosde terra e mar – viagem pelo oceano e pelaselva –, e agora esperavam fazê-lo voltar

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atrás com tal pantomima – quem quer quefossem.

Ele resistiu à tentação de saudar o corpo,como uma ação desejada de decoro, eprosseguiu ousadamente pelo arvoredo,meio na expectativa de um ataque por trásou uma armadilha. Nada do tipo aconteceu,entretanto; e, saindo das árvores, ele se en-controu ao pé de uma inclinação áspera, aprimeira de uma série de declives. Ele cam-inhou imperturbavelmente para cima nanoite, e nem sequer parou para refletir oquão incomuns suas ações deveriam parecerpara um homem sensível. O homem comum

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teria acampado ao pé do penhasco e esper-ado pelo amanhecer, antes mesmo de tentarescalar os penhascos. Mas este não era umhomem comum. Uma vez com um objetivoem vista, ele seguia a linha mais reta até omesmo, sem pensar em obstáculos, fosse diaou noite. O que era para ser feito, tinha queser feito. Ele havia alcançado os postosavançados do reino do medo e da escuridão,e invadir seus abrigos mais internos à noiteparecia seguir o objetivo de curso.

Enquanto ele subia as inclinaçõessalpicadas por matacões, a lua se ergueu,emprestando seu ar de ilusão; e, à sua luz, ascolinas irregulares à frente avultavam comoas espirais negras de castelos de feiticeiros.Ele manteve os olhos fixos na vaga trilha queestava seguindo, pois ele não sabia quandooutro matacão poderia ser arremessadopelas inclinações. Esperava algum tipo de

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ataque e, naturalmente, foi o inesperado querealmente aconteceu.

Súbito, um homem saiu de trás de umagrande rocha; um gigante de ébano sob opálido luar, com uma longa lâmina de lançabrilhando como prata em sua mão, seu cocarde plumas de avestruz flutuando acima delecomo uma nuvem branca. Ele ergueu a lançaem enfadonha saudação, e falou num dialetodas tribos do rio:

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- Esta não é terra do homem branco.Quem é meu irmão branco em seu própriocurral, e por que ele adentrou a Terra dasCaveiras?

- Meu nome é Solomon Kane. – o brancorespondeu na mesma língua

– Procuro a rainha vampira de Negari.- Poucos procuram. Pouquíssimos encon-

tram. Ninguém retorna. – o outro respondeuenigmaticamente.

- Vai me levar até ela?- Você carrega uma longa adaga em sua

mão direita. Não há leões aqui.- Uma serpente desalojou um matacão.

Achei que eu fosse encontrar cobras nasmoitas.

O gigante reconheceu esta troca desutilezas com um sorriso sombrio, e caiu embreve silêncio.

Sua vida – disse, logo depois, o negro –está na minha mão. Kane sorriu levemente:

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- Eu carrego as vidas de muitos guerreir-os em minha mão.

O olhar do negro percorreu, incerto, ocomprimento tremeluzente da espada doinglês. Então, ele encolheu os ombros poder-osos e deixou a ponta de sua lança afundarno chão.

- Você não carrega presentes – ele disse–; mas siga-me, e eu lhe guiarei à Terrível, àSenhora do Destino, à Mulher Vermelha,Nakari, que governa a terra de Negari.

Ele deu um passo para o lado e gesticuloupara que Kane andasse à sua frente, mas oinglês, com a estocada de uma lança nopensamento, sacudiu a cabeça:

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- Quem sou eu para andar à frente domeu irmão? Somos dois chefes... vamos an-dar lado a lado.

Em seu coração, Kane detestou serforçado a usar tal desagradável diplomaciacom um guerreiro selvagem, mas nãodemonstrou. O gigante se curvou com certamajestade bárbara, e juntos eles subiram atrilha da colina, sem se falarem.

Kane estava consciente de que havia ho-mens saindo de esconderijos e ficando atrásdeles; e um olhar furtivo sobre o ombromostrou a ele uns 40 guerreiros,

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caminhando atrás deles em duas linhas emforma de cunha. O luar cintilava sobre cor-pos lustrosos, cocares ondulantes, e longas ecruéis lâminas de lanças.

- Meus irmãos são como leopardos –disse cortesmente Kane –; eles se deitam nasmoitas baixas e nenhum olho os vê; eles an-dam furtivamente através da grama alta, enenhum homem lhes ouve a chegada.

O chefe negro agradeceu o elogio comuma inclinação cortês de sua cabeça leonina,a qual fez as plumas sussurrarem.

- O leopardo da montanha é nosso irmão,ó chefe. Nossos pés são como a fumaça as-cendente, mas nossos braços são como aço.Quando golpeiam, o sangue pinga vermelhoe homens morrem.

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Kane sentiu uma corrente oculta deameaça no tom. Não havia verdadeira in-sinuação de ameaça onde ele baseava suassuspeitas, mas o sinistro tom menor estavalá. Ele não falou mais nada por um tempo, eo estranho bando caminhou silenciosamentepara cima sob o luar, como uma cavalgada deespectros. A trilha ficou mais íngreme erochosa, serpenteando para os lados entrepenhascos e gigantescos matacões. Súbito,uma enorme fenda apareceu diante deles, at-ravessada por uma ponte natural de pedra,ao pé da qual o líder parou.

Kane olhou curiosamente para o abismo.Tinha uns 12 metros de largura e, olhandopara baixo, seu olhar foi engolido pela escur-idão impenetrável, a muitas dezenas de met-ros, ele sabia. Do outro lado, se erguiam pen-hascos escuros e proibidos.

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- Aqui – disse o chefe – começam as ver-dadeiras fronteiras do reino de Nakari.

Kane percebia que os guerreiros se aprox-imavam casualmente dele. Seus dedos sefirmaram ao redor do cabo da espada, a qualele não havia embainhado. O ar estava subit-amente sobrecarregado de tensão.

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- Aqui também – o chefe disse breve-mente –, aqueles que não trazem presentespara Nakari... morrem!

A última palavra foi um guincho, como seo pensamento houvesse transformado quemfalou num maníaco; e, quando ele gritou, ogrande braço foi para trás e em seguida paraa frente, com uma ondulação de músculospoderosos, e a longa lança saltou em direçãoao peito de Kane.

Somente um lutador nato conseguiriaevitar a estocada. A ação instintiva de Kanelhe salvou a vida... a grande lâmina lhe roçouas costelas, quando ele se inclinou para olado e devolveu o golpe com uma estocadalampejante, a qual matou um guerreiro quese esbarrou entre ele e o chefe naqueleinstante.

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Lanças brilhavam ao luar, e Kane, desvi-ando uma e se curvando sob a estocada deoutra, pulou para fora sobre a ponte estreita,onde apenas um de cada vez poderia atacá-lo.

Ninguém se interessou em ser o primeiro.Permaneceram sobre a beirada e estocaramem sua direção, avançando como um sóquando ele recuava e recuando quando ele ospressionava. Suas lanças eram mais longasque a espada dele, mas ele compensavabastante a diferença e a grande inferioridade,com sua habilidade brilhante e a fria ferocid-ade de seu ataque.

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Eles oscilaram para trás e para a frente; eentão, subitamente, um gigante saltoudentre seus companheiros e atacou sobre aponte como um búfalo selvagem, os ombrosencurvados, a lança baixa e os olhos lampe-jando com um olhar que não era totalmentesão. Kane pulou para trás, diante do furiosoataque, e saltou novamente para trás,esforçando-se para evitar aquela lança cort-ante e achar uma brecha para enfiar a es-pada. Deu um pulo para o lado e se viu cam-baleando na beirada da ponte, com a etern-idade abrindo a boca sob ele. Os guerreirosgritaram em selvagem exultação, quando eleoscilou e lutou pelo seu equilíbrio, e o gi-gante na ponte rugiu e pulou em direção aoseu inimigo cambaleante.

Kane aparou o golpe com toda sua força– uma proeza que poucos espadachins con-seguiriam realizar fora do equilíbrio, comoele estava –, viu a cruel lâmina da lança

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lampejar por sua bochecha... e se sentiucaindo para trás, no abismo. Com um esforçodesesperado, ele agarrou o cabo da lança, seendireitou e atravessou o corpo do lanceiro.A grande caverna vermelha, que era a bocado gigante, esguichou sangue e, com um es-forço moribundo, ele se lançou cegamentecontra seu inimigo. Kane, com os calcan-hares sobre a beira da ponte, foi incapaz deevitá-lo, e os dois caíram juntos, para desa-parecerem silenciosamente dentro das pro-fundezas abaixo.

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Tudo acontecera tão rapidamente, que osguerreiros ficaram aturdidos. O rugido detriunfo do gigante mal havia morrido emseus lábios, antes que os dois caíssem na es-curidão. Agora o restante dos nativos subiaaté a ponte para olharem curiosos parabaixo; mas nenhum som se erguia do vazioescuro.

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2) O Povo da Morte que Espreita

Quando Kane caiu, seguiu seu instinto deluta, se contorcendo no meio da queda, paraque, quando se espatifasse – fosse a três ou a300 metros abaixo –, aterrissasse sobre ohomem que caiu com ele.

O final veio subitamente – bem mais re-pentino do que o inglês havia pensado. Eleficou meio atordoado por um instante, e en-tão, olhando para cima, viu vagamente aponte estreita enfaixando o céu acima de si, eas figuras dos guerreiros, delineadas ao luare grotescamente escorçadas ao se curvaremsobre a beirada. Ficou imóvel, sabendo que

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os raios da lua não penetravam as profun-dezas nas quais estava escondido, e que eleestava invisível para aqueles observadores.Então, quando eles sumiram de vista, elecomeçou a examinar sua situação atual. Seuoponente estava morto e, se não fosse o fatode seu cadáver lhe amortecer a queda, Kanetambém estaria morto, pois haviam caído deuma altura considerável. Apesar disso, oinglês estava rígido e com contusões.

Ele puxou sua espada do corpo do nativo,grato por ela não ter se quebrado, e começoua tatear no escuro. Sua mão encontrou abeirada do que parecia ser um penhasco. Ele

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pensara que estava no fundo do abismo, eque a impressão de uma grande profundid-ade fosse uma ilusão, mas ele agora percebeuque havia caído numa saliência que era partedo caminho para baixo. Ele deixou cair umapequena pedra sobre o lado e, após o quepareceu ser um tempo muito longo, ouviu osom distante de sua queda lá embaixo.

Meio sem saber o que fazer, ele puxou pe-derneira e aço de seu cinto e os bateu emcerto estojo, protegendo cautelosamente aluz com as mãos. A luz fraca mostrou umavasta beirada se sobressaindo do lado dopenhasco, o lado próximo às colinas, o qualele tentara cruzar. Ele caíra próximo àbeirada, e foi graças à extremidade mais es-treita que ele escapara de escorregar parafora dela, sem saber onde se encontrava.

Agachando-se ali, com os olhos tentandose acostumar à escuridão abismal, ele

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reconheceu o que parecia ser uma sombramais escura entre as sombras da parede.Num exame mais atento, ele percebeu seruma abertura, grande o bastante para per-mitir que seu corpo ficasse ereto. Uma cav-erna, ele percebeu, e embora seu aspectofosse escuro e extremamente desagradável,ele entrou, tateando seu caminho quando oestojo se apagou.

Para onde levava, ele naturalmente nãotinha idéia, mas qualquer ação era preferívela ficar parado, até que os abutres dasmontanhas roessem seus ossos. Por umlongo caminho, o chão da caverna se in-clinava para cima – rocha sólida sob seus pés–, e Kane subiu com certa dificuldade o cam-inho mais inclinado, escorregando de vez emquando. A caverna parecia grande, pois emnenhum momento após entrar, ele con-seguira tocar o teto, nem pôde, com a mãonuma parede, alcançar a outra.

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Finalmente o chão ficou plano, e Kanepercebeu que a caverna era muito maior ali.O ar parecia melhor, embora a escuridãofosse impenetrável no momento. De repente,ele parou. De algum lugar à sua frente, veioum estranho e indefinível farfalhar. Semaviso, alguma coisa golpeou seu rosto eaçoitou selvagemente. Tudo ao seu redorfazia soar os lúgubres murmúrios de muitasasas pequenas, e repentinamente Kane sor-riu de forma falsa, divertida, aliviada e hu-milhada. Morcegos, é claro. A caverna estavaapinhada deles. Mesmo assim, foi uma ex-periência estremecedora e, enquanto eleprosseguia e as asas farfalhavam pelavastidão desolada da grande caverna, amente de Kane encontrou lugar para umbizarro pensamento: estaria ele se aventur-ando dentro do Inferno, de alguma estranhamaneira, e eram aquilo morcegos de

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verdade, ou almas perdidas voando atravésda noite eterna? Então, pensou SolomonKane, eu logo me defrontarei com o próprioSatã. E, enquanto pensava isso, suas narinasforam atacadas por um horrendo cheiro,fétido e repelente. O cheiro aumentou, en-quanto ele prosseguia devagar, e Kanepraguejou em voz baixa, embora não fosseum homem profano. Ele percebeu que o odorera sinal de alguma ameaça oculta, algumamalevolência invisível, inumana e mortífera,e sua mente sombria tirou conclusõessobrenaturais. Contudo, ele tinha perfeitaconfiança em sua habilidade para enfrentarqualquer demônio, blindado como ele era nainabalável confiança em sua fé e no conheci-mento da retidão de sua causa.

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O que se seguiu aconteceu repentina-mente. Ele tateava ao longo do caminho,quando, diante dele, dois estreitos olhos am-arelos pularam para o alto na escuridão – ol-hos frios e inexpressivos, muito horrivel-mente próximos um do outro para serem hu-manos, e muito altos para qualquer animalde quatro patas. Que horror se erguiadaquele modo, à frente?

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Este é Satã, pensou Kane, enquantoaqueles olhos oscilavam sobre ele, e no in-stante seguinte ele estava lutando pela pró-pria vida contra a escuridão, que parecia tertomado uma forma tangível, e se lançado aoredor de seu corpo e membros em grandesespirais lodosas. Aquelas espirais se enro-scavam em seu braço da espada,imobilizando-o. Com a outra mão, ele tateouem busca da adaga ou da pistola, com suapele arrepiada, enquanto seus dedos escor-regavam das escamas lisas, ao mesmo tempoem que o assobio do monstro preenchia acaverna com terror.

Lá, na negra escuridão que acompanharao bater das asas dos morcegos, Kane lutoucomo um rato nas presas de uma serpente, eele pôde sentir suas costelas cedendo e suarespiração se esvaindo, antes que sua furiosamão esquerda agarrasse o cabo de sua adaga.

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Então, com uma vulcânica contorção eum puxão violento dos músculos de aço deseu corpo, ele soltou parcialmente o braçoesquerdo, e mergulhou várias vezes a lâminaafiada, até o cabo, no sinuoso terror contor-cido que o envolvera, até finalmente sentir astrêmulas espirais afrouxarem e escorregaremde seus membros, para caírem a seus péscomo enormes cabos.

A poderosa serpente se sacudiu selvage-mente em seus estertores de morte, e Kane,evitando suas pancadas capazes de quebrarossos, cambaleou na escuridão, esforçando-se para respirar. Se seu antagonista não era opróprio Satã, era seu mais próximo satéliteterrestre, pensou Solomon, esperando sin-ceramente não ter de enfrentar outronaquela escuridão.

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Ele se sentia como se houvesse camin-hado pelo escuro durante eras, e começou ase questionar se havia algum final na cav-erna, quando um vislumbre de luz perfurouas trevas. Ele imaginou ser uma entrada ex-terna para um grande caminho lá fora, ecomeçou a avançar rapidamente; mas, paraseu espanto, ele se deparou bruscamentecontra uma parede lisa após dar uns poucospassos.

Então, ele percebeu que a luz vinha deuma estreita fenda na parede, e notou queesta parede encontrada era de um materialdiferente daquele do resto da caverna, con-sistindo aparentemente de blocos regularesde pedra, ligados por algum tipo de ar-gamassa – indubitavelmente, uma paredefeita pela mão do homem. A luz fluía entreduas daquelas pedras, onde a argamassa sefizera em migalhas. Kane correu as mãossobre a superfície com um interesse maior

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que suas necessidades presentes. O trabalhoparecia muito antigo e bastante superior aoque se poderia esperar de uma tribo deselvagens ignorantes. Ele sentiu a emoção doexplorador e descobridor. Certamente, nen-hum homem branco tinha visto este lugar evivido pra contá-lo, pois quando desembar-cara na úmida Costa Oeste alguns mesesantes, se preparando para mergulhar no con-tinente, ele não ouvira alusão alguma sobreum país como aquele. Os poucos brancos queconheciam qualquer coisa em toda África,com os quais ele conversara, nunca haviamsequer mencionado a “Terra das Caveiras”,ou a demônia que a governava.

Kane pressionou cautelosamente o muro.A estrutura parecia enfraquecida pelo tempo– com um vigoroso empurrão, ela cederiaperceptivelmente. Ele se arremessou contraa mesma, usando todo o seu peso, e umaparte inteira da parede cedeu com um

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estrondo, precipitando-o para dentro de umcorredor mal-iluminado, entre uma pilha depedras, poeira e argamassa.

Ele pulou para cima e olhou ao redor, es-perando que o barulho trouxesse uma hordade lanceiros selvagens. Reinava o mais com-pleto silêncio. O corredor onde ele estavaagora mais parecia uma longa caverna es-treita, exceto por ter sido feito pela mão dohomem. Ela tinha vários pés de largura, e oteto estava a muitos pés sobre sua cabeça. Apoeira no chão chegava à altura do tornozelo,como se nenhum pé houvesse pisado lá porincontáveis séculos; e a luz fraca, Kane per-cebeu, era filtrada de alguma forma peloteto, pois em nenhum lugar ele viu qualquerporta ou janela. Pelo menos, ele percebeuque a origem era o próprio teto, que tinhauma peculiar qualidade fosforescente.

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Ele desceu o corredor, se sentindodesconfortável como um fantasma cinza,caminhando ao longo das paredes cinzentasda morte e da decadência. A evidente anti-guidade do ambiente o deprimia, fazendo- osentir vagamente a efêmera a fútil existênciada humanidade. Ele acreditava estar sobre aterra, uma vez que entrava algum tipo de luz,mas onde, ele não podia sequer oferecer umaconjectura. Esta era uma terra de bruxaria –uma terra de horror e medonhos mistérios,diziam a selva e os nativos do rio; e eleouvira insinuações sussurradas a respeito deseus terrores, desde que deixou a Costa dosEscravos e se aventurou sozinho no interior.De vez em quando, ele ouvia um murmúrio

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baixo e indistinto que parecia vir de uma dasparedes, e ele finalmente chegou à conclusãode que cambaleava e tropeçava numa pas-sagem secreta em algum castelo ou casa. Osnativos que ousavam lhe falar sobre Negari,sussurravam sobre uma cidade juju feita depedra, situada bem no meio dos sombriospenhascos negros das colinas mágicas.

Então, pensou Kane, talvez eu tenha meenganado sobre o que estava realmente pro-curando, e eu esteja no meio daquela cidadede terror. Ele parou e, escolhendo um lugarao acaso, começou a soltar a argamassa comsua adaga. Enquanto trabalhava, ouviu nova-mente o murmúrio baixo, agora crescendoem volume enquanto ele perfurava a parede,e dali a pouco, abriu um furo; e, olhando pelaabertura, ele viu uma cena estranha efantástica.

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Ele estava olhando para uma grande câ-mara, cujas paredes e piso eram de pedra, ecujo enorme teto era sustentado por gi-gantescas colunas de pedra, estranhamenteentalhadas. Fileiras de emplumados guer-reiros negros guarneciam as paredes, e umadupla fileira deles permanecia como estátuasdiante de um trono, situado entre doisdragões de pedra, os quais eram maiores queelefantes. Ele reconheceu aqueles homens,por seu porte e aparência geral, como sendohomens tribais dos guerreiros que enfrentarano precipício.

Mas seu olhar foi irresistivelmente at-raído para o grande trono, fantasticamenteornamentado. Lá, sobrepujada pelo maciçoesplendor a seu redor, uma mulher se

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reclinava. Era uma mulher negra, jovem ecom a beleza de uma tigresa. Estava nua, ex-ceto por um elmo emplumado, braceletes,tornozeleiras e uma cinta com coloridas pen-as de avestruz; e ela se esparramava sobre asalmofadas de seda, com seus membroslançados ao redor delas em voluptuoso aban-dono. Mesmo àquela distância, Kane pôdeperceber que os traços dela eram régios, em-bora bárbaros; altivos e autoritários, emborasensuais, e com um toque de impiedosacrueldade no franzir de seus lábios cheios evermelhos. Kane sentiu o pulso acelerar.Esta não podia ser outra, senão aquela cujoscrimes se tornaram quase míticos: Nakari deNegari, rainha demoníaca de uma cidade di-abólica, cuja ânsia monstruosa por sanguepunha meio continente para tremer. Aomenos, ela parecia suficientemente humana.As narrativas das apavoradas tribos fluviaisemprestavam a ela um aspecto sobrenatural.Kane quase esperava ver um repugnante

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monstro semi-humano de alguma de-moníaca era passada.

O inglês olhava fixamente, fascinadoapesar de repugnado. Nem mesmo nas cor-tes da Europa, ele tinha visto tamanha gran-deza. A câmara e todos os seus equipamen-tos, das serpentes gêmeas esculpidas aoredor das bases dos pilares aos dragões mal-divisados das sombras do teto, estavammoldados numa escala gigantesca. O esplen-dor era pavoroso – elefantino –, inumana-mente gigantesco e quase paralisante para amente que tentasse medir e compreender amagnitude daquilo. Para Kane, parecia que

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aquilo havia sido mais trabalho de deusesque de homens, pois esta única câmarasobrepujaria grandemente a maioria doscastelos que ele conhecera na Europa.

Os guerreiros que apinhavam aquelaenorme sala pareciam grotescamente em de-sacordo. Eles não eram os arquitetos daquelelugar antigo. Enquanto Kane percebia isto, aimportância sinistra da Rainha Nakari di-minuía. Esparramada naquele tronomajestoso em meio à terrível gloria de outraera, ela parecia assumir suas verdadeirasproporções: uma criança mimada e petu-lante, empenhada num jogo de faz-de-conta,e usando para seu divertimento um brin-quedo descartado pelos seus antecessores. E,ao mesmo tempo, um pensamento entroupela mente de Kane: quem eram estes ante-cessores? Mesmo assim, a criança poderia setornar mortífera, como o inglês logo viu. Umguerreiro alto e imponente saiu das fileiras

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em frente ao trono, e após ter se prostradoquatro vezes diante deste, permaneceu dejoelhos, evidentemente esperando permissãopara falar. O ar de preguiçosa indolência darainha caiu dela, e ela se endireitou com ummovimento rápido e flexível, o qual lembroua Kane um leopardo se erguendo. Ela falou, eas palavras chegaram fracas até ele, en-quanto ele se esforçava para ouvir. Ela con-versava numa linguagem muito similar à dastribos do rio.

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- Fale!

- Grande e Terrível – disse o guerreiroajoelhado, e Kane o reconheceu como o chefeque primeiro se dirigira a ele no planalto... ochefe dos guardas nos penhascos –, nãodeixe o fogo de sua fúria consumir seuescravo.

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Os olhos da jovem mulher se estreitarammaldosamente:

- Você sabe por que foi convocado, filhode um abutre?

- Fogo de Beleza, o forasteiro chamadoKane não trouxe nenhum presente.

- Nenhum presente? – ela cuspiu as pa-lavras – O que eu tenho a ver com presentes?

O chefe hesitou, agora sabendo que haviaalguma importância especial nesteestrangeiro.

- Gazela de Negari, ele veio subindo ospenhascos à noite, como um assassino, comuma adaga do tamanho do braço de umhomem na mão. O bloco que lançamos não oatingiu, o encontramos sobre o planalto e olevamos à Ponte-Através-do-Céu, onde,

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como é o costume, pensamos em matá-lo;pois era sua informação, de que estavacansada de homens que viessem cortejá-la.

- Idiota! – ela rosnou – Idiota!

- Seu escravo não sabia, Rainha deBeleza. O estranho lutava como um leopardoda montanha. Ele matou dois homens, caiuno abismo com o último, e assim morreu,Estrela de Negari.

- Sim. – o tom de voz da rainha era ven-enoso – O primeiro grande homem que já

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chegou até Negari! Aquele que poderia ter...levante- se, idiota!

O homem ficou de pé:

- Poderosa Leoa, ele não poderia estarprocurando...

A frase nunca foi completada. Enquantoele se erguia, Nakari fez um gesto rápido coma mão. Dois guerreiros saltaram das fileirassilenciosas, e duas lanças se cruzaram dentrodo corpo do chefe tribal, antes que elepudesse se virar. Um grito gorgolejante lhesaiu dos lábios, o sangue esguichou alto noar e o corpo caiu estirado no chão do grandetrono.

As fileiras não recuaram, mas Kane per-cebeu o brilho enviesado de olhos estran-hamente vermelhos, e o umedecer involun-tário de lábios grossos. Nakari estava meio

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erguida quando as lanças se moveram, eagora ela se deitava de volta, com uma ex-pressão de cruel satisfação em seu belo rostoe um estranho brilho meditativo em seus ol-hos cintilantes.

Um gesticular indiferente de sua mão, e ocadáver foi arrastado dali pelos calcanhares,os braços mortos se arrastando flácidos nalarga marcha de sangue, deixada pela pas-sagem do corpo. Kane pôde ver outras man-chas largas cruzadas sobre o chão de pedra,algumas quase indistintas, outras menosfracas. Quantas cenas selvagens de sangue ecruel frenesi, os grandes dragões de pedra dotrono tinham visto com seus olhosesculpidos?

Agora ele não duvidava das histórias con-tadas a ele pelas tribos do rio. Aquele povohavia sido criado em rapina e horror. Suabravura lhes havia arrebentado os cérebros.

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Eles viviam, como uma terrível fera, só paradestruir. Havia estranhos brilhos por trás deseus olhos, que às vezes iluminavam aquelesmesmos olhos com fogos ascendentes e som-bras do Inferno. O que as tribos do riohaviam dito sobre aquele povo montanhês,que os havia devastado por incontáveisséculos?

“Que eram partidários da morte, a qualespreitava entre eles, e à qual cultuavam”.Mas o pensamento ainda pairava na mentede Kane, enquanto ele olhava: quem constru-iu este lugar, e por que este povo estava evid-entemente no poder? Guerreiros como eleseram, jamais conseguiriam alcançar a cul-tura evidenciada por aqueles entalhes. Masas tribos do rio não falaram de outros ho-mens, senão daqueles aos quais eleobservava.

O inglês se livrou, com esforço, dofascínio da cena bárbara. Ele não tinha

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tempo a perder; enquanto o tivessem comomorto, mais chance ele tinha de burlar possí-veis guardas e procurar o que veio achar. Eledeu a volta e caminhou pelo corredor fosco.Nenhum plano de ação lhe apareceu namente, e uma direção era tão boa quantooutra. A passagem não seguia em linha reta;ela fazia curvas e serpenteava, seguindo alinha das paredes; Kane supôs, e achoutempo para se perguntar sobre a evidente eenorme grossura daquelas paredes. Esperavaencontrar, a qualquer momento, algumguarda ou escravo; mas, à medida que oscorredores continuavam a se estenderemvazios diante dele, com os chãos poeirentossem nenhuma pegada, concluiu que, ou aspassagens eram desconhecidas ao povo deNegari, ou, por algum motivo, nunca foramusadas.

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Ele procurou atentamente por portassecretas, e finalmente achou uma, embutidano lado mais interno, com uma tranca enfer-rujada encaixada num sulco na parede. Ele amanipulou cuidadosamente e, dentro empouco, com um rangido que parecia terrivel-mente alto no silêncio, a porta se abriu paradentro. Olhando ao redor, ele não viu nin-guém e, atravessando cautelosamente aabertura, ele puxou a porta atrás de si, not-ando que esta fazia parte de uma fantásticagravura pintada na parede. Ele fez um riscocom sua adaga, no ponto onde acreditavaque a porta escondida dava para o lado defora, pois não sabia quando poderia ter deusar a passagem novamente.

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Ele estava num grande salão, através doqual corria um labirinto de pilares gigantes,muito semelhantes àqueles da câmara dotrono. Por entre eles, ele se sentia como umacriança numa grande floresta, mas elas lhedavam uma leve sensação de segurança, vezque acreditava que, deslizando entre elascomo um fantasma através de uma selva, elepoderia iludir os guerreiros apesar da astúciadestes.

Ele se moveu, escolhendo sua direção aoacaso e andando cuidadosamente. Por ummomento, ele ouviu um murmúrio de vozes

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e, saltando para a base de uma coluna,agarrou-se ali enquanto duas mulheres pas-savam logo abaixo dele. Mas, além delas, elenão encontrou ninguém. Era uma sensaçãosobrenatural, passar através deste vastosalão que parecia desprovido de vida hu-mana – mas em outro lugar, conhecido porKane, poderia haver multidões escondidasda visão pelos pilares.

Finalmente, após o que parecia umaeternidade seguindo estes labirintos mon-struosos, ele se deparou com uma enormeparede, que parecia ser um lado do salão ouuma parede divisória, e, continuando aolongo desta, viu à sua frente uma entrada, di-ante da qual dois lanceiros se postavamcomo estátuas negras.

Kane, espiando ao redor do lado da basede uma coluna, percebeu duas janelas no altoda parede, uma de cada lado, e ao notar os

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entalhes enfeitados que cobriam as paredes,se determinou a fazer um plano desesper-ado. Ele achou obrigatório ver o que ficavadentro daquele compartimento. O fato de serguardado sugeria que a sala atrás da portaera uma câmara de tesouro ou um calabouço,e se sentiu convicto de que sua tentativa irre-vogável provaria que ali era um calabouço.

Kane recuou até um ponto fora da vistados guardas, e começou a escalar a parede,usando os entalhes profundos como apoiospara as mãos e os pés. Verificou-se ser bemmais fácil do que ele havia esperado, e tendogalgado até um ponto do mesmo nível que asjanelas, ele rastejou cautelosamente ao longode uma linha horizontal, sentindo-se comouma formiga numa parede. Os guardas láembaixo nunca olhavam para cima, e ele fi-nalmente alcançou a janela mais próxima eficou sobre o batente. Baixou o olhar parauma grande sala vazia, mas equipada de

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maneira sensual e bárbara. Leitos de seda etravesseiros de veludo se espalhavam pro-fusamente pelo chão, e tapeçarias carregadasde acabamento dourado pendiam dasparedes de ladrilho. O teto também era tra-balhado a ouro.

De forma estranhamente incongruente,bugigangas rudes de marfim e pau-ferro, in-confundivelmente selvagens no feitio, tam-bém se espalhavam pelo local, bastante

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simbólicas deste estranho reino onde sinaisde barbarismo competiam com uma es-tranha cultura. A porta externa estavafechada e, na parede oposta, havia outraporta, também fechada.

Kane desceu da janela, deslizando parabaixo pela beirada da tapeçaria, como ummarinheiro faz na corda de uma vela, e at-ravessou a sala. Seus pés afundaram silen-ciosamente no espesso tecido do tapetefelpudo que cobria o chão, e que, como todasas outras mobílias, parecia antigo a ponto deestar em decadência.

Ele hesitou ao chegar à porta. Caminharpara dentro da próxima sala poderia ser algodesesperadamente perigoso a ser feito; se es-tivesse cheia de guerreiros, sua fuga seriabarrada pelos lanceiros do lado de fora daporta externa. Mesmo assim, ele estava acos-tumado a correr todos os tipos de riscos

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violentos, e agora, de espada em punho, eleabriu violentamente a porta, com umasubitaneidade que visava paralisar de sur-presa, por um instante, qualquer inimigo quepudesse estar no outro lado.

Kane deu um passo rápido para dentro,pronto para qualquer coisa... logo, ele parousubitamente, mudo e imóvel por um se-gundo. Ele havia chegado procurando algopor milhares de quilômetros, e lá estava, di-ante dele, o objeto de sua busca.

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3) Lilith

Havia um leito no meio da sala e, na suasuperfície de seda, jazia uma mulher – umamulher cuja pele era branca, e cujo cabelo deouro avermelhado. Ela agora se erguia de umpulo, o medo lhe inundando os belos olhoscinzas, os lábios abertos para soltarem umgrito, o qual ela repentinamente conteve.

- Você! – ela exclamou – Como foi quevocê...?

Solomon Kane fechou a porta atrás dele ecaminhou em direção a ela, com um rarosorriso no rosto moreno.

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- Você lembra-se de mim, não, Marylin?

O medo já havia desaparecido dos olhosdela, antes que ele falasse, para ser sub-stituído por um olhar de incrível admiração edeslumbrada perplexidade:

- Capitão Kane! Não consigo entender...parecia que ninguém iria aparecer...

Cansada, ela passou a pequena mão pelatesta, cambaleando subitamente.

Kane a pegou nos braços – ela era apenasuma criança – e colocou-a gentilmente sobreo leito. Lá, esfregando-lhe gentilmente ospulsos, ele falou numa voz monótona, baixa eapressada, vigiando a porta o tempo todo –aquela porta, por sinal, parecia ser a única

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entrada ou saída da sala. Enquanto falava,ele mecanicamente deu uma olhada nosaposentos, notando que era quase uma du-plicata da sala externa, no que se refere àscortinas e à mobília em geral.

- Primeiro – ele disse –, antes que en-tremos em quaisquer outros assuntos, diga-me: você está sendo rigorosamente vigiada?

- Muito rigorosamente, senhor. – elamurmurou indefesa – Não sei como vocêchegou aqui, mas nunca conseguiremosescapar.

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- Deixe-me contar rapidamente comocheguei até aqui, e talvez você fique mais es-perançosa quando eu lhe falar das di-ficuldades já vencidas. Acalme-se agora,Marylin, e vou lhe contar como vim embusca de uma herdeira inglesa na cidade di-abólica de Negari.

“Matei Sir John Taferel num duelo.Quanto ao motivo, não vem ao caso, mas hádifamação e uma negra mentira por trásdisso. Antes de morrer, ele confessou tercometido um crime sórdido alguns anosantes. Você se lembra, é claro, da afeiçãodada a você por seu primo, o velho LordeHildred Taferal, tio de Sir John? Sir Johntemia que o velho lorde, morrendo sem des-cendentes, pudesse deixar as grandes pro-priedades dos Taferal para você.

“Anos atrás, você desapareceu, e Sir Johnespalhou o boato de que você teria se

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afogado. Mas, enquanto morria com minhaespada atravessada no corpo, ele ofegou quehavia lhe raptado e vendido a um pirata ber-bere, ao qual deu um nome – um pirata san-grento, cujo nome não era desconhecido nascostas da Inglaterra antes. Desse modo, vimlhe procurar, e foi uma trilha longa e cans-ativa, que se estendeu por longas léguas eanos amargos.

“Primeiro, naveguei os mares em buscade El Gar, o pirata berbere mencionado porSir John. Eu o encontrei no estrondo e ru-gido de uma batalha no oceano; ele morreu,mas enquanto morria, me contou que havialhe vendido a um comerciante vindo de Ist-ambul. Então, fui ao Levante e lá, por acaso,me deparei com um marinheiro grego, aquem os mouros haviam crucificado na praiapor pirataria. Eu o libertei e fiz a ele a mesmapergunta que havia feito a todos os homens:se ele havia, em suas perambulações, visto

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uma menina inglesa cativa, de cachos am-arelos. Eu soube que ele havia pertencido àtripulação de mercadores de Istambul, e queela havia, em sua viagem para casa, sido cap-turada por um escravista português, eafundado – esse renegado grego e a criançaestavam entre os poucos que foram levados abordo pelo escravista.

“Então, este escravista, navegando para osul em busca de mármore negro, fora em-boscado numa pequena baía na Costa Oeste

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africana, e o grego nada sabia de seu destinoposterior, pois ele havia escapado do mas-sacre total e, seguindo para o mar num barcoaberto, fora capturado por um navio depiratas genoveses.

“Então, cheguei à Costa Oeste, na remotachance de que você ainda vivia, e lá, ouvi porentre os nativos que, alguns anos atrás, umacriança branca havia sido levada por um

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navio, cuja tripulação havia sido assassinada,e mandada terra adentro como parte do trib-uto que as tribos do litoral pagavam aoschefes do rio de cima.

“Depois, todos os rastros sumiram. Dur-ante meses, perambulei sem nenhuma pistade seu paradeiro; não, nem sequer uma in-sinuação de que você estivesse viva. Depois,ouvi por acaso, entre as tribos do rio, sobre acidade demoníaca de Negari e a rainha ma-ligna que mantinha uma mulher estrangeiracomo escrava. Vim para cá”.

O tom prático de Kane, sua narração semlustre, não davam qualquer insinuação dototal significado daquela história... o quehavia por trás daquelas palavras calmas emedidas... as lutas no mar e em terra... osanos de privação e dolorosa labuta, o perigoincessante, a constante perambulação at-ravés de terras hostis e desconhecidas; o

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trabalho tedioso e enfraquecedor de invest-igar a informação que desejava de selvagensignorantes, taciturnos e hostis.

- Vim para cá. – disse Kane com simpli-cidade, mas que mundo de coragem e esforçoera simbolizado por aquela frase! Uma longatrilha vermelha, sombras negras e escarlatesentrelaçando uma dança de demônios... mar-cada por espadas faiscantes e pela fumaça dabatalha... pelas palavras balbuciadas, caindocomo gotas de sangue dos lábios de homensmoribundos.

Solomon Kane certamente não era umhomem conscientemente dramático. Ele con-tou sua história da mesma forma como haviavencido terríveis obstáculos – fria e breve-mente, sem poemas épicos.

- Como vê, Marylin – ele concluiubrandamente –, eu não teria percorrido esta

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distância e feito tudo isto, para agora con-hecer a derrota. Coragem, criança. Encon-traremos um caminho para fora deste lugarterrível.

- Sir John me levou na sela de seu cavalo.– a garota disse deslumbrada e falando de-vagar, como se sua linguagem nativa lhefosse estranha, devido a anos de desuso, en-quanto expressava, em palavrasclaudicantes, um anoitecer inglês de muitotempo atrás: – Ele me carregou até o litoralmarinho, onde o bote de uma galé esperava,cheio de homens ferozes, morenos, usandobigodes, cimitarras e grandes anéis nos de-dos. O capitão, um muçulmano com rosto degavião, me pegou, enquanto eu chorava demedo, e me levou para sua galé. Mas ele foibondoso comigo, ao modo dele; eu era poucomais que uma criancinha, e finalmente mevendeu a um mercador turco, como ele lhecontou. Ele encontrou esse mercador na

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costa sul da França, após muitos dias deviagem no mar.

“Este homem não fez mau uso de mim,mas eu o temia, pois ele era um homem derosto cruel, e me fez entender que eu seriavendida a um sultão negro dos mouros. En-tretanto, nos Portões de Hércules, sua em-barcação foi atacada por um navio negreirode Cadiz, e as coisas aconteceram quasecomo você havia dito.

“O capitão do navio negreiro acreditavaque eu fosse filha de alguma família inglesa

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rica, e pretendia me segurar em busca de umresgate; mas, numa baía sombria da costaafricana, ele morreu com todos os seus ho-mens, exceto o grego que você havia men-cionado, e fui capturada por um selvagemchefe tribal.

“Eu estava terrivelmente assustada, epensei que ele fosse me matar, mas ele nãome fez mal e me enviou para fora dali comuma escolta, a qual também carregava muitapilhagem tirada do navio. Esta pilhagem,junto comigo, era, como você sabe, destinadaa um poderoso rei dos povos do rio. Mas elanunca o alcançou, pois um bando nômade denegaris caiu sobre os guerreiros litorâneos ematou todos eles. Então, fui trazida até estacidade e, tendo sido sobrevivente, me torneiescrava da Rainha Nakari.

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“Como vivi através de todas aquelas terrí-veis cenas de batalha, crueldade e assas-sinato, eu não sei”.

- Uma providência divina cuidou de você,criança – disse Kane –; o poder que real-mente cuida de mulheres fracas e criançasindefesas; que me guiou até você, apesar detodos os obstáculos, e que ainda há de nosguiar para fora deste lugar, se Deus quiser.

- Meu povo! – ela exclamou subitamente,como quem acorda de um sonho – Como es-tá ele?

- Todos em boa saúde e fortuna, criança,exceto pelo fato de que lamentaram por vocêatravés de longos anos. Não, o velho Sir Mil-dred tem certa enfermidade e jura, por essemotivo, que eu tema por sua alma às vezes.Mas me parece que, se ele lhe ver, pequenaMarylin, ele irá se consertar.

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- Mesmo assim, Capitão Kane – disse amenina –, não consigo entender por que vo-cê veio só.

- Seus irmãos viriam comigo, menina,mas não havia a certeza de que você vivia, eeu não queria que nenhum outro Taferalmorresse numa terra distante do bom soloinglês. Eu percorri a região de um Taferalmaligno... ninguém, senão eu, deveria trazerde volta ao seu lugar uma boa Taferal, se,nesse caso, ainda estivesse viva... eu, esomente eu.

O próprio Kane acreditava nesta ex-plicação. Ele nunca procurou analisar seusmotivos, e nunca hesitava uma vez que to-masse uma decisão. Embora sempre agissepor impulso, acreditava firmemente que to-das as suas ações eram governadas porrazões frias e lógicas. Era um homem

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nascido fora de seu tempo – uma mistura depuritano com cavaleiro, com um toque doantigo filósofo, e com mais que um toque dopagão, embora esta última afirmação odeixasse chocado e mudo. Ele era um atav-ista dos tempos da cavalaria cega, um ca-valeiro errante nas cúpulas sombrias dofanático. Uma fome em sua alma o impeliasem parar, um impulso de corrigir todos osmales, proteger todas as coisas fracas, vingartodos os crimes contra o direito e a justiça.Errante e inquieto como o vento, ele era con-stante em apenas um aspecto: era fiel aosseus ideais de justiça. Assim era SolomonKane.

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- Marylin – ele agora diziabondosamente, pegando-lhe as pequenasmãos em seus dedos calejados pela espada –,parece-me que você mudou muito com opassar dos anos. Você era uma mocinha ros-ada e roliça, quando eu costumava lhe em-balar em meu joelho, na velha Inglaterra.Agora você parece ter o rosto contraído epálido, embora seja tão bonita quanto as nin-fas dos livros pagãos. Há fantasmas assom-brando seus olhos. Eles lhe maltratam aqui?

Ela se deitou no leito, e o sangue lhe fugiulentamente do rosto já pálido, até ficar comuma brancura semelhante à morte. Kane securvou assustado sobre ela. A voz dela veionum sussurro:

- Não me pergunte. Há atos que são mel-hores se escondidos na escuridão da noite edo esquecimento. Há visões que arruínam os

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olhos, e deixam para sempre sua marca ar-dente no cérebro. Os muros de cidades anti-gas, negligenciadas pelos homens, testemun-ham cenas que não devem ser faladas, nemmesmo em sussurros.

Os olhos dela se fecharam cansados, e ospreocupados olhos sombrios de Kane incon-scientemente percorreram as linhas azuisdas veias dela, proeminentes contra abrancura não-natural de sua pele.

- Há alguma coisa demoníaca aqui. – elemurmurou – Um mistério...

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- Sim – murmurou a garota –; um mis-tério que era velho quando o Egito erajovem! Um mal sem nome, mais antigo que aobscura Babilônia... o qual se proliferou emterríveis cidades negras, quando o mundoera jovem e estranho.

Kane franziu a testa, preocupado. Diantedas estranhas palavras da menina, ele sentiuum medo estranho e arrepiante no fundo deseu cérebro, como se obscuras memórias ra-ciais se agitassem nos golfos das profundezasde eras, evocando sombrias visões caóticas,ilusórias e de pesadelo.

Súbito, Marylin se sentou ereta, os olhosse arregalando de medo. Kane ouviu umaporta se abrir em algum lugar.

- Nakari! – a garota sussurrou de formaurgente.

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- Rápido! Ela não pode lhe encontraraqui. Esconda-se rápido, e – enquanto Kanese virava – fique em silêncio, aconteça o queacontecer!

Ela se deitou no leito, fingindo dormir,enquanto Kane atravessava a sala e se escon-dia atrás de algumas tapeçarias que, pen-dendo sobre a parede, ocultavam um nichoque outrora deveria conter algum tipo deestátua.

Ele mal havia feito isso, quando a únicaporta da sala se abriu, e uma estranha figurabárbara se destacou nela. Nakari, rainha deNegari, havia chegado em busca de suaescrava.

A negra estava vestida como havia estadoquando ele a vira no trono, e os braceletes etornozeleiras coloridas retiniram quando ela

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fechou a porta atrás de si, e adentrou a sala.Ela se movia com a desembaraçada sinuosid-ade de um leopardo e, apesar de si mesmo, oobservador foi tomado de admiração por suabeleza flexível. Mas, ao mesmo tempo, umestremecimento de repulsa o sacudiu, pois osolhos dela brilhavam com ódio vibrante emagnético, mais velho que o mundo.

“Lilith!”, pensou Kane. “Ela é bela e ter-rível como o Purgatório. Ela é Lilith – aquelamulher repugnante e amável da antigalenda”.

Nakari parou próxima ao leito, ficou ol-hando para baixo, em direção à prisioneira, eentão, com um sorriso enigmático, se curvoue a sacudiu. Marylin abriu os olhos, sentou-se e então deslizou de seu leito e se ajoelhoudiante de sua selvagem senhora – um atoque fez Kane praguejar em voz baixa. Arainha riu, e, sentando-se sobre o leito,

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gesticulou para que a garota se levantasse, elogo lhe pôs um braço ao redor da cintura esentou-a no colo. Kane olhava perplexo, en-quanto Nakari acariciava a garota demaneira preguiçosa e divertida. Isto poderiaser afeição, mas para Kane mais parecia umleopardo sentado, caçoando de sua vítima.Havia um ar de zombaria e zelosa crueldadenaquilo tudo.

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- Você é tão delicada e linda, Mara –Nakari murmurou languidamente –; muitomais linda que as outras jovens que meservem. A hora de suas núpcias se aproxima,pequena. E uma noiva mais bela nunca foilevada para as Escadas Negras.

Marylin começou a tremer, e Kane achouque ela iria desmaiar. Os olhos de Nakaribrilhavam estranhamente sob as longas pest-anas curvadas de suas pálpebras, e seus lá-bios carnudos e vermelhos se curvavam numleve sorriso atormentador. Cada ação delaparecia carregada de algum significado sinis-tro. Kane começou a suar profusamente.

- Mara – disse a rainha negra –; você émais honrada que todas as outras garotas, e,no entanto, não está contente. Pense noquanto as garotas de Negari irão invejá-la,

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Mara, quando os sacerdotes cantarem a can-ção nupcial e a Lua das Caveiras olhar sobrea crista negra da Torre da Morte. Pense,pequena noiva do Mestre, quantas garotas jáderam suas vidas para serem noivas dele!

E Nakari riu ao seu modo odioso e music-al, como se de uma rara piada. Então, elasubitamente parou. Seus olhos se estreit-aram até parecerem fendas, enquanto per-scrutavam a sala, e seu corpo inteiro ficoutenso. Sua mão dirigiu-se ao cinto, e delesaiu com uma longa e fina adaga. Kane apon-tou o cano de sua pistola, o dedo no gatilho.Apenas uma hesitação natural contra atirarnuma mulher o deteve de mandar a mortepara dentro do selvagem coração de Nakari,pois ele acreditava que ela estava prestes aassassinar a garota.

Então, com um movimento flexível e fe-lino, ela ergueu a garota de um puxão e

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pulou de volta para o outro lado da sala, seusolhos fixos com intensidade ardente natapeçaria atrás da qual Kane se encontrava.Será que aqueles olhos agudos o descobri-ram? Ele logo soube.

- Quem está aí? – ela disse, de forma ab-rupta e feroz – Quem se esconde atrás dessascortinas? Não lhe vejo nem ouço, mas sei quehá alguém aí!

Kane continuou em silêncio. O instintode fera selvagem de Nakari o havia traído, eele estava incerto sobre qual rumo tomar.Suas próximas ações dependeriam da rainha.

- Mara! – a voz de Nakari estalou feitoum chicote – Quem está atrás dessascortinas? Responda-me! Será que devo lhedar novamente o sabor do chicote?

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A garota parecia incapaz de falar. Ela seencolheu no lugar onde havia caído, seus be-los olhos cheios de terror. Nakari, cujo olharardente nunca hesitava, dirigiu a mão livreatrás dela e agarrou uma corda de cortina, naparede.

Ela puxou perversamente. Kane sentiu astapeçarias recuarem a ambos os lados dele, efoi revelado. Por um momento, o estranhoquadro vivo se manteve: o aventureiromagro em roupas ensanguentadas e esfar-rapadas, a longa pistola segura em sua mãodireita; do outro lado da sala, a rainha negra

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em seus adereços bárbaros; a garota apri-sionada, se encolhendo no chão. Então, Kanefalou:

- Fique em silêncio, Nakari, ou vocêmorre!

A rainha parecia paralisada e muda pelasúbita aparição. Kane saiu de entre astapeçarias, e lentamente se aproximou dela.

- Você! – ela finalmente encontrou suavoz – Você deve ser aquele de quem os guar-das falaram! Não há dois homens brancosem Negari! Disseram que você caiu para suamorte! Então, como...

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- Silêncio! – a voz de Kane lhe inter-rompeu os balbucios espantados; ele sabiaque a pistola nada significava para ela, masela sentia a ameaça daquela longa lâmina emsua mão esquerda – Marylin – ainda falandoinconscientemente na linguagem das tribosdo rio –, pegue cordas das cortinas e amarre-a... – Ele estava quase no meio do quartoagora. O rosto de Nakari havia perdidomuito de sua perplexidade indefesa, e dentrode seus olhos ardentes, se movia furtiva-mente um brilho ardiloso. Ela deliberada-mente deixou sua adaga cair, como em sinalde rendição; e, subitamente, suas mãos dis-pararam acima de sua cabeça e agarraramoutra corda grossa.

Kane ouviu Marylin gritar, mas antes queele pudesse puxar o gatilho, ou até mesmopensar, o chão lhe caiu sob os pés e ele des-pencou em negrura abismal. Ele não caiumuito e aterrissou de pé; mas a força daqueda o colocou de joelhos e, enquanto caía,

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sentindo uma presença na escuridão ao seulado, algo se espatifou contra seu crânio, eele caiu no abismo ainda mais negro dainconsciência.

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4) Sonhos de Império

Lentamente, Kane saiu dos reinos ob-scuros para onde o invisível porrete doagressor o havia lançado. Algo o impedia demover as mãos, e houve um ruído metálicoquando ele tentou erguê-las até sua cabeçadolorida e palpitante. Ele estava em total es-curidão, mas não conseguia ter certeza se eraa ausência de luz, ou se ele ainda estava cegopelo golpe. Aturdido, ele reuniu suas fac-uldades dispersas, e percebeu que jazia num

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úmido chão de pedra, algemado pelos pulsose tornozelos com pesadas correntes de ferro,as quais eram ásperas e enferrujadas aotoque.

Por quanto tempo ficou lá, ele nuncasoube. O silêncio era quebrado apenas pelopulsar de tambor de sua própria cabeça dol-orida, e pela correria e chiado de ratos. Porfim, um brilho vermelho apareceu na escur-idão e cresceu diante de seus olhos.Destacado contra a medonha radiação, se er-gueu o rosto sinistro e sardônico de Nakari.Kane sacudiu a cabeça, esforçando-se para selivrar da ilusão. Mas a luz cresceu e, quandoseus olhos se acostumaram a ela, ele viu quea mesma era proveniente de uma tocha namão da rainha.

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Na iluminação, ele não viu que jazianuma pequena cela úmida, cujas paredes,teto e chão eram de pedra. As pesadas cor-rentes que o prendiam estavam ligadas a an-éis de metal cravados profundamente naparede. Só havia uma porta, a qual era apar-entemente de bronze.

Nakari encaixou a tocha num nicho próx-imo à porta, e caminhando para a frente, seergueu sobre seu cativo, descendo o olharpara ele, de uma forma mais especulativaque zombeteira.

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- Você é aquele que enfrentou os homensnos penhascos. – A observação era mais umaafirmação do que uma pergunta – Disseramque você caiu dentro do abismo... elesmentiram? Você os subornou para que men-tissem? Você é um mago, ou voou até ofundo do precipício, e de lá para meu palá-cio? Fale!

Kane continuou em silêncio. Nakaripraguejou.

- Fale, ou arrancarei seus olhos! Dece-parei os dedos de suas mãos e queimareiseus pés! – Ela o chutou maldosamente, masKane ficou em silêncio, até o brilho feroz de-saparecer dos olhos dela para ser substituídopor um ávido interesse e admiração.

Ela se sentou num banco de pedra, des-cansando os cotovelos nos joelhos, e o queixonas mãos.

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- Nunca vi um homem branco antes. – eladisse – Será que todos os homens brancossão como você? Bah! Não pode ser. Quase to-dos os homens são tolos, sejam negros oubrancos. Sei que os brancos não são deuses,como as tribos do rio dizem... são apenas ho-mens. Eu, que conheço todos os mistériosantigos, digo que são apenas homens.

“Mas os homens brancos têm mistériosestranhos também, eles dizem – os aven-tureiros das tribos do rio e Mara. Eles têmporretes de guerra, que fazem um barulhosemelhante ao trovão e matam à distância –aquilo que você segurava em sua mão direitaera um daqueles porretes?”.

Kane se permitiu um sorriso sombrio:

- Nakari, se você conhece todos os mis-térios, como posso lhe falar de algo que vocêjá não conhece?

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- Como seus olhos são profundos, frios eestranhos! – a rainha disse, como se ele nãotivesse falado – Como sua aparência é com-pletamente estranha... e você tem o porte deum rei! Você não tem medo de mim... Nuncaencontrei um homem que não me amassenem temesse. Você jamais me temeria, maspoderia aprender a me amar. Olhe para mim,homem destemido... não sou bonita?

- Você é bonita. – respondeu Kane.Nakari sorriu, e logo franziu a testa:

- Da maneira como você diz, não é elogio.Você me odeia, não?

- Como um homem odeia uma serpente.– Kane respondeu rudemente.

Os olhos de Nakari queimaram numafúria quase insana. Suas mãos se fecharamaté suas unhas longas lhe afundarem nas

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palmas das mãos; logo, tão repentinamentequanto sua fúria havia surgido, eladesapareceu.

- Você tem o coração de um rei – ela dissecalmamente –; ou, do contrário, me temeria.Você é um rei em sua terra?

- Sou apenas um andarilho sem terra.

- Você poderia ser um rei aqui. – Nakaridisse lentamente. Kane riu de formasombria:

- Você me oferece minha vida?

- Ofereço-lhe mais do que isso!

Os olhos de Kane se estreitaram quando arainha se curvou sobre ele, vibrante de excit-ação oculta:

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- Kane, o que você quer mais do quequalquer outra coisa no mundo?

Pegar a garota branca que você chama deMara, e partir.

Nakari recuou, com uma exclamaçãoimpaciente:

- Você não pode tê-la; ela é a noiva pro-metida do Mestre. Nem mesmo eu possosalvá-la; nem que eu quisesse. Esqueça-a.Vou lhe ajudar a esquecê-la. Ouça, ouça aspalavras de Nakari, rainha de Negari! Vocêdiz ser um homem sem terra... farei de vocêum rei! Darei-lhe o mundo como brinquedo!Não, não; fique em silêncio até eu terminar!– ela prosseguiu apressadamente, suas pa-lavras tropeçando umas nas outras em suaânsia. Seus olhos ardiam, e todo o seu corpotremia com intensidade dinâmica: – Já con-versei com viajantes, cativos e escravos, ho-mens de países distantes. Sei que esta terrade montanhas, rios e selva não é o mundo

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inteiro. Há nações e cidades bem distantes, ereis e rainhas para serem esmagados ederrotados.

“Negari está desaparecendo e seu poderestá se desagregando, mas um homem forteao lado de sua rainha pode reconstruí-la...pode restaurar toda a sua glória que está de-saparecendo. Ouça, Kane! Sente-se ao meulado no trono de Negari! Peça os porretes detrovão ao seu povo, para armar meus guer-reiros! Minha nação ainda é senhora daÁfrica central. Juntos, uniremos as tribosconquistadas – traremos de volta os dias emque o reino da antiga Negari atravessava aterra de mar a mar! Subjugaremos todas astribos do rio, da planície e do litoral mar-inho, e, ao invés de matarmos a todos, fare-mos deles um poderoso exército! E depois,quando toda a África estiver sob nossodomínio, avançaremos sobre o mundo como

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um leão faminto, para dilacerar, rasgar edestruir!”.

O cérebro de Solomon vacilava. Talvezfosse a feroz personalidade magnética damulher, e o poder dinâmico que ela vertia emsuas palavras ardentes; mas, naquele mo-mento, seu plano não parecia nada desvair-ado nem impossível. Visões sinistras e caót-icas flamejavam pela mente do puritano... aEuropa rasgada por conflitos civis e reli-giosos, dividida contra si mesma, traída porseus governantes, cambaleando... sim, aEuropa estava em situações desesperada-mente difíceis agora, e poderia ser uma ví-tima fácil para uma forte raça selvagem deconquistadores. Qual homem pode dizer sin-ceramente que, em seu coração, não seesconde um anseio por poder e conquista?

Por um momento, o Demônio inflamada-mente tentou Solomon Kane. Logo, diante

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dos olhos de sua mente, apareceu o rosto an-sioso e triste de Marylin Taferal, e Solomonpraguejou:

- Para trás, filha de Satã! Vai-te! Acasosou uma fera da floresta, para liderar seusdemônios selvagens contra meu própriopovo? Não, nenhuma fera já fez isso. Vai-te!

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Se deseja minha amizade, liberte- me edeixe-me ir com a garota.

Nakari se ergueu de um pulo, como umtigre, seus olhos agora queimando com fúriaardente. Uma adaga lhe brilhou na mão, eela a ergueu acima do peito de Kane com umgrito felino de ódio. Por um momento, elapairou como uma sombra de morte acima;então, seu braço desabou e ela riu:

- Liberdade? Ela encontrará liberdade,quando a Lua das Caveiras olhar para o altarnegro. Quanto a você, irá apodrecer nestecalabouço. Você é um idiota; a maior rainha

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da África lhe ofereceu seu amor e o impériodo mundo... e você a insulta! Você ama ajovem escrava, talvez? Até a Lua das Caveir-as, ela é minha, e eu lhe deixo pensar sobreisto: que ela será castigada como eu a cas-tiguei antes... pendurada pelos pulsos, nua echicoteada até desmaiar!

Nakari riu enquanto Kane puxavaselvagemente seus grilhões. Ela se dirigiu àporta, a abriu e então hesitou e voltou paradizer mais alguma coisa:

- Este é um lugar desagradável, carodestemido; e talvez você me odeie mais aindapor lhe acorrentar aqui. Talvez, na bela salado trono de Nakari, com riqueza e luxúria es-palhadas diante de você, você a olhe commais aprovação. Muito em breve, mandareilhe buscar, mas primeiro vou deixá-lo aqui

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por algum tempo, para refletir. Lembre-se...ame Nakari, e o reino do mundo será seu;odeie-a... e esta cela será seu reino.

A porta de bronze se fechou com um tin-ido sombrio, mas, mais odiosa para o apri-sionado inglês era a risada venenosa eprateada de Nakari.

O tempo passou devagar na escuridão.Após o que pareceu ser um longo tempo, aporta se abriu novamente; desta vez, paraentrar um enorme guerreiro, que trouxecomida e uma espécie de vinho aguado. Kanecomeu e bebeu avidamente, e depois dormiu.O esforço dos últimos poucos dias o haviacansado bastante – mental e fisicamente –,mas quando ele acordou, sentiu-se revigor-ado e fortalecido.

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A porta se abriu novamente, e doisgrandes guerreiros selvagens entraram. À luzdas tochas que carregavam, Kane viu queeram gigantes, vestidos com tangas e cocaresde plumas de avestruz, e segurando longaslanças em suas mãos.

- Nakari deseja que você vá até ela,homem branco. – foi tudo o que disseram,enquanto lhe tiravam as correntes. Ele se er-gueu, exultante em sua breve liberdade, seucérebro agudo trabalhando ferozmente embusca de um meio de escapar.

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Evidentemente, a fama de sua bravurahavia se espalhado, pois os dois guerreirosmostravam grande respeito por ele. Gesticu-laram para que ficasse à frente deles, e cam-inharam cautelosamente atrás dele, as pon-tas de suas lanças lhe espetando as costas.Embora fossem dois contra um e ele est-ivesse desarmado, eles não se arriscavam. Osolhares que dirigiam para ele eram cheios detemor respeitoso e suspeita.

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Seguiram através de um corredor longo eescuro, seus captores o guiando com as levespontas de suas lanças, para uma estreita eserpenteante escada ascendente, através deoutro corredor, para subir outra escada, e fi-nalmente chegaram ao vasto labirinto de pil-ares gigantescos pelo qual Kane haviachegado inicialmente. Quando se moverampor este enorme salão, os olhos de Kanepousaram subitamente numa figura estranhae fantástica, pintada na parede à sua frente.Seu coração deu um pulo repentino, aoreconhecê-la. Estava a alguma distância dele,e ele imperceptivelmente se moveu aos pou-cos em direção à parede, até que ele e osguardas caminhassem de forma paralela ebem próxima a ela. Agora ele estava quaselado a lado com a figura, e podia até percebera marca que sua adaga havia feito sobre ela.

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Os guerreiros que seguiam Kane ficaramespantados, ao ouvi-lo ofegar subitamente,como um homem golpeado por uma lança.Ele hesitou em seus passos e começou aagarrar o ar, em busca de apoio.

Eles olhavam duvidosos um para o outro,e o cutucaram com as pontas das lanças, masele gritou como um homem moribundo e seamarrotou lentamente ao chão, onde ficounuma posição estranha e não-natural, umaperna dobrada para trás sob ele e um dosbraços lhe apoiando o corpo deitado.

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Os guardas olharam temerosos para ele.Tudo indicava que estava morrendo, masnão havia ferimentos sobre ele. Eles oameaçaram com suas lanças, mas ele nãodeu atenção. Então, eles abaixaram suasarmas, incertos, e um dos guardas se curvousobre ele.

Então aconteceu. No instante em que oguarda se abaixou, Kane avançou como umamola de aço libertada. Seu punho direito,seguindo-lhe o movimento, curvou-se paracima, vindo do quadril, num sibilantesemicírculo, e se espatifou contra o maxilardo guerreiro. Desferido com toda a força dobraço e ombro, e impulsionado pelo levantarde suas poderosas pernas quando Kane seergueu, o golpe foi como o tiro de umafunda. O guarda despencou ao chão, incon-sciente antes que seus joelhos dobrassem.

O outro guerreiro saltou para diante comum bramido, mas enquanto sua vítima caía,

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Kane se retorceu para o lado, sua mãofrenética encontrou a mola secreta na pin-tura e a pressionou.

Tudo aconteceu num instante. Embora oguerreiro fosse rápido, Kane era mais ainda,pois ele se movia com a dinâmica rapidez deum lobo faminto. Por um instante, o corpocadente do guarda sem sentidos impediu aarremetida do outro guerreiro; e, naquele in-stante, Kane sentiu a porta oculta se abrir.Com o canto do olho, ele viu um longo brilhode aço disparar em busca de seu coração. Elese virou e retorceu, e lançou-se contra aporta, desaparecendo atrás dela, enquanto alança perfurante lhe cortava a pele doombro.

Para o guerreiro aturdido e desorientado,que se erguia lá com a arma levantada paraoutra arremetida, parecia que o prisioneirohavia simplesmente desaparecido através de

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uma parede sólida, pois somente uma figurafantástica foi vista por ele, e esta não cedeuaos seus esforços.

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5) “Durante Mil Anos...”

Kane fechou, com um estrondo, a portasecreta atrás dele, apertou a mola e, por uminstante, se inclinou sobre ela, com todos osmúsculos tensos, na expectativa de segurá-lacontra os esforços de uma horda de lanceir-os. Mas não aconteceu nada do tipo. Eleouviu seu guarda remexendo algo atrapalha-damente por um tempo; depois, aquele somtambém parou. Parecia impossível aquelepovo ter vivido neste palácio por tantotempo, sem descobrir as portas e passagenssecretas, mas era uma conclusão que seforçou sobre a mente de Kane. Finalmente,ele reconheceu que estava a salvo deperseguição por enquanto e, dando a volta,

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pôs-se a caminhar pelo longo corredor es-treito, com sua poeira de eons de idade e suafosca luz cinza. Ele se sentiu frustrado efurioso, embora estivesse livre dos grilhõesde Nakari. Ele não tinha idéia de quantotempo havia ficado no palácio; pareciameras. Deveria ser dia agora, pois havia luznos salões externos, e ele não tinha vistotochas depois que eles haviam deixado asmasmorras subterrâneas. Ele se perguntavase Nakari havia cumprido a ameaça devingança contra a garota indefesa. Livre porenquanto, sim; mas desarmado e caçado poreste palácio infernal, feito um rato. Como elepoderia ajudar a si mesmo ou a Marylin?Mas sua confiança nunca vacilava. Ele estavacom a razão, e alguma solução seapresentaria.

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Súbito, uma escadaria estreita se rami-ficou do corredor principal, e ele subiu porela, a luz ficando cada vez maior, até ele seencontrar em pleno fulgor da luz solar afric-ana. A escada terminava numa espécie depequeno patamar, diante do qual havia umapequena janela, fortemente gradeada.Através desta, ele viu o céu azul com matizesdourados da ardente luz do sol; a visão eracomo vinho para ele, e ele respirou pro-fundamente o ar fresco e puro, como se paralivrar seus pulmões da aura de pó e esplen-dor decadente pela qual estava passando.

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Ele olhava para fora, sobre uma paisagemfantástica e bizarra. De longe, à direita e à es-querda, avultavam grandes penhascosnegros e, sob eles, se erguiam castelos etorres de pedra, de estranha arquitetura –era como se gigantes de algum outro planetativessem erguido-os numa selvagem e caót-ica orgia de criação. Estas construções eramsolidamente apoiadas contra os rochedos, eKane sabia que o palácio de Nakari tambémdevia estar construído dentro da parede dopenhasco que se erguia atrás. Ele parecia es-tar na frente daquele palácio, num tipo deminarete construído na parede externa. Mashavia apenas uma janela nele, e sua visão es-tava limitada.

Bem abaixo dele, por entre as sinuosasruas estreitas daquela estranha cidade,enxames humanos circulavam,assemelhando-se a formigas negras para oobservador lá no alto. A leste, norte e sul, os

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rochedos formavam uma muralha natural;apenas a oeste havia um muro artificial.

O sol afundava a oeste. Relutante, Kanedeu as costas à janela e desceu as escadas devolta. Novamente, ele atravessou o corredorestreito e cinza, sem rumo nem planos, peloque pareciam ser milhas e milhas. Ele desciacada vez mais por passagens que ficavam sobpassagens. A luz ficou mais obscura, e umlodo úmido apareceu nas paredes. Logo,Kane parou; um som fraco, atrás da parede,lhe prendia a atenção. O que era isso? Umchocalhar fraco... o chocalhar de correntes.

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Kane se curvou perto da parede, e nasemi-escuridão, sua mão encontrou umamola enferrujada. Ele a manuseou caute-losamente, e logo sentiu uma porta oculta àqual ela anunciava se mover para dentro. Eleolhou cautelosamente para fora.

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Estava olhando para dentro de uma cela,duplicata da outra na qual havia sido con-finado. Uma tocha ardente estava enfiadanum nicho da parede e, através de sua luzavermelhada e palpitante, ele percebeu umaforma no chão, acorrentada pelos pulsos etornozelos como ele havia sido.

Um homem; a princípio, Kane pensouque fosse um nativo, mas uma segunda ol-hada o fez duvidar. Sua pele era escura, massuas feições eram finamente entalhadas, elepossuía uma testa alta e magnífica, olhosfirmes e vibrantes, e lisos cabelos escuros.

O homem falou num dialeto não-familiar,o qual era estranhamente distinto e bem-definido, em contraste com o jargão guturaldos nativos, com os quais Kane estava famili-arizado. O inglês falou em sua própria lín-gua, e depois na linguagem das tribos do rio.

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- Você, que veio através da porta antiga –disse o outro, neste último dialeto –, quem évocê? Você não é um selvagem... a princípio,pensei que você fosse alguém da Velha Raça,mas agora vejo que não é como eles. De ondevocê veio?

- Eu sou Solomon Kane – disse o purit-ano –, um prisioneiro nesta cidade diabólica.Vim do outro lado do salgado mar azul.

Os olhos do homem se iluminaram dianteda palavra:

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- O mar! O antigo e eterno! O mar, que eununca vi, mas que foi o berço da glória demeus ancestrais! Diga-me, estranho, você jánavegou, como eles, de um lado a outro dopeito do grande monstro azul, e seus olhos jáviram os pináculos dourados da Atlântida eos muros escarlates de Mu?

- Realmente – Solomon respondeu in-certo –, já naveguei pelos mares, até o In-dostão e Cathay, mas nada sei dos países quevocê mencionou.

- Não – o outro suspirou –; eu sonho... eusonho. A sombra da grande noite já cai sobremeu cérebro, e minhas palavras devaneiam.Estranho, houve épocas em que estasparedes e este chão frio pareciam se dissiparem profundezas verdes e ondulantes, eminha alma era preenchida com o profundobramido do mar eterno. Eu, que nunca vi omar!

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Kane estremeceu involuntariamente. Estehomem, com certeza, era insano. Súbito, ooutro estendeu uma mão murcha e em formade garra, e lhe segurou o braço, apesar dascorrentes que o prendiam.

- Você, cuja pele é tão estranhamenteclara... Você já viu Nakari, a demônia quegoverna esta cidade em decadência?

- Eu já a vi – disse Kane sombriamente –,e agora fujo dos assassinos dela, como umrato caçado.

- Você a odeia! – o outro gritou – Há, eusei! Você procura Mara, a garota branca queé escrava dela?

- Sim.

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- Ouça... – o homem acorrentado faloucom estranha solenidade – Estou morrendo.O cavalete de tortura de Nakari fez seu tra-balho. Eu morro, e comigo morre a sombrada glória que pertenceu à minha nação. Poiseu sou o último de minha raça. Em todo omundo, não há ninguém como eu. Ouçaagora a voz de uma raça moribunda.

E Kane, se inclinando ali, na trêmulapenumbra da cela, ouviu a história mais es-tranha já ouvida por qualquer homem,trazida da bruma das eras obscuras doamanhecer pelos lábios do delírio. Claras edistintas, as palavras caíam do moribundo, eKane alternadamente ardia e congelava, en-quanto vista após gigantesca vista de tempoe espaço se movia diante dele.

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- Longos eons atrás... eras, eras atrás... oimpério de minha raça se erguia orgul-hosamente sobre as ondas. Há tanto tempo,que nenhum homem se lembra de um ances-tral que o lembrasse. Numa grande terra aoeste, se erguiam nossas cidades. Nossastorres douradas arranhavam as estrelas;nossas galés de proas púrpuras rompiam asondas ao redor do mundo, pilhando os te-souros do sol poente e as riquezas donascente.

“Nossas legiões avançavam para o norte eo sul, oeste e leste; e ninguém era capaz de

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resistir a elas. Nossas cidades uniram omundo; espalhamos nossas colônias por to-das as terras para subjugar todos osselvagens, vermelhos, brancos ou negros, eescravizá-los. Eles trabalharam para nós nasminas e nos remos das galés. Por todo omundo, o povo marrom da Atlântida reinousupremo. Éramos um povo marinho, e in-vestigávamos as profundezas de todos osoceanos. Os mistérios nos eram conhecidos,e as coisas secretas da terra, do mar e do céu.Nós líamos as estrelas e éramos sábios. Fil-hos do mar, nós o exaltávamos acima detudo.

“Adorávamos Valka, Hotah, Honen eGolgor. Muitas virgens, muitos jovens fortes,morreram em seus altares e a fumaça de seussantuários ocultava o sol. Então, o mar se er-gueu e sacudiu. Ele trovejou de seu abismo, eos tronos do mundo caíram diante dele!Novas terras se ergueram das profundezas, e

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Atlântida e Mu foram engolidas pelo abismo.O mar verde rugiu pelos templos e castelos, eas ondas do mar se incrustaram nas cúpulasdouradas e torres de topázio. O império daAtlântida desapareceu e foi esquecido, sub-mergindo no abismo eterno do tempo e doesquecimento. Da mesma forma, as cidadescoloniais em terras bárbaras, isoladas de seureino materno, pereceram. Os selvagensnegros e brancos se insurgiram, queimarame destruíram, até que, no mundo todo,somente a cidade colonial de Negari per-maneceu como símbolo do império perdido.

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“Aqui, meus ancestrais governaram comoreis, e os ancestrais de Nakari – a felina – seajoelharam como seus escravos. Anos se pas-saram, se transformando em séculos. O im-pério de Negari decaiu. Tribo após tribo serevoltou e arrebentou os grilhões, empur-rando as fronteiras de volta, desde o mar, atéque finalmente os filhos da Atlântida recuar-am completamente e se retiraram pra dentroda própria cidade – a última fortaleza daraça. Não eram mais conquistadores, es-tavam encurralados por tribos ferozes, em-bora eles tenham mantido aquelas tribosacuadas durante mil anos. Negari era in-vencível: suas paredes se mantiveram firmes;mas influências malignas internastrabalhavam.

“Os filhos da Atlântida haviam trazidoseus escravos com eles para dentro da cid-ade. Os governantes eram guerreiros, erudi-tos, sacerdotes e artesãos; eles não faziam

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trabalhos subalternos. Para isso, eles de-pendiam dos escravos. Havia mais destes es-cravos do que senhores. E eles cresciam, en-quanto o povo marrom diminuía.

“Eles se miscigenavam uns com os outroscada vez mais, enquanto a raça se degen-erava, até que finalmente, só os sacerdotesestavam livres da mácula de sangueselvagem. Governantes que possuíam poucodo sangue da Atlântida, se sentaram notrono de Negari, e permitiram cada vez maisque selvagens homens tribais entrassem nacidade como servos, mercenários e amigos.

“Então, veio um dia em que estes escra-vos ferozes se revoltaram e mataram todosos que tinham um traço de sangue marrom,exceto os sacerdotes e suas famílias. A estes,eles aprisionaram como ‘povo- talismã’. Dur-ante mil anos, selvagens têm governadoNegari, com seus reis orientados pelos

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sacerdotes cativos, que embora prisioneiros,ainda eram mestres dos reis”.

Kane ouvia, fascinado. Para sua menteimaginativa, a história queimava viva comoestranho fogo do tempo e espaço cósmicos.

- Depois que todos os filhos da Atlântida,exceto os sacerdotes, foram mortos, subiuum grande rei ao trono profanado da antigaNegari. Ele era um tigre, e seus guerreiroseram como leopardos. Eles se auto- intitu-lavam negaris, arrebatando até mesmo onome de seus antigos mestres, e ninguémconseguia resistir a eles. Eles varreram aterra de mar a mar, e a fumaça da destruiçãoapagou as estrelas. O grande rio correu ver-melho, e os novos lordes de Negari camin-haram sobre os cadáveres de seus inimigostribais. Depois, o grande rei morreu e o im-pério se esmigalhou, exatamente como ocor-rera com o reino atlante de Negari.

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“Eles eram habilidosos na guerra. Os fil-hos mortos da Atlântida, seus primeirosmestres, haviam treinado-os bem na arte dabatalha, e contra os selvagens homens dastribos eles eram invencíveis. Mas eles sóhaviam aprendido a guerrear, e o império foidilacerado em guerras internas. Assassinatoe intriga espreitavam, com as mãos en-sanguentadas, pelos palácios e ruas, e asfronteiras do império foram minguando cadavez mais. O tempo todo, reis selvagens commentes furiosas e sanguinárias sentavam notrono, e atrás das cortinas, não-vistos, masgrandemente temidos, os sacerdotes mar-rons guiavam a nação, mantendo-a unida epreservando-a da absoluta destruição.

“Nós éramos prisioneiros na cidade, poisnão tínhamos lugar algum no mundo praonde ir. Caminhávamos como fantasmaspelas passagens secretas e sob a terra,

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espionando as intrigas e fazendo magiassecretas. Nós apoiamos a causa da famíliareal – os descendentes daquele rei-tigre demuito tempo atrás – contra todos os líderesconspiradores, e sombrias são as históriasque estas paredes silenciosas poderiamcontar.

“Estes selvagens não são como os outrosnativos da região. Uma insanidade latente seesconde nos cérebros de todos. Eles pro-varam tão intensamente, e por tanto tempo,a matança e a vitória, que eles são como leo-pardos humanos, com eterna sede de sangue.Com seus milhares de escravos infelizes, elessaciaram todas as luxúrias e desejos, até setornarem sórdidas e terríveis bestas, sempreprocurando por alguma nova sensação,sempre saciando suas temíveis sedes emsangue.

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“Como um leão, eles espreitaram porestes penhascos durante mil anos, para selançarem à frente e destruírem a selva e opovo do rio, escravizando e devastando. Elesainda são invencíveis por quem venha defora, embora seus domínios tenham se re-duzido às próprias muralhas da cidade, eseus primeiros grandes conquistadores e inv-asores houvessem se restringido a ataquesem busca de escravos.

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“Mas, enquanto eles definhavam, tam-bém definhavam seus mestres secretos, ossacerdotes marrons. Um a um, eles mor-reram, até restar apenas eu. No últimoséculo, eles também se miscigenaram comseus senhores e escravos, e agora – oh, quevergonha sobre mim! – eu, o último filho daAtlântida, carrego em minhas veias a máculado sangue bárbaro. Eles morreram; restei eu,fazendo magia e guiando os reis selvagens;eu, o último sacerdote de Negari. Então, sur-giu a demônia Nakari”.

Kane se curvou para a frente, com in-teresse reanimado. Uma nova vida roloudentro da história, quando esta lhe tocou suaprópria época.

- Nakari! – o nome foi cuspido, como osibilar de uma cobra – Escrava e filha de umescravo! Mas ela triunfou, quando chegousua hora, e toda a família real morreu.

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“E a mim, o último filho da Atlântida, amim ela aprisionou e acorrentou. Ela nãotemia os silenciosos sacerdotes atlantes, poisera filha de um Satélite – um dos sacerdotesnativos menores. Eram homens que faziam otrabalho servil dos amos – realizando os sac-rifícios menores, fazendo adivinhações comfígados de galinhas e serpentes, e mantendoos fogos sagrados eternamente acesos. Elaconhecia muito sobre nós e nossos meios, eambição maligna ardeu nela.

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“Quando criança, ela dançava na Marchada Lua Nova, e na adolescência, era uma das

Donzelas das Estrelas 1. Muitos dos mistériosmenores eram conhecidos por ela, e elaaprendeu mais, espionando os ritos secretosdos sacerdotes, os quais encenavam rituaisocultos, que eram velhos quando a terra erajovem.

“Pois os remanescentes da Atlântida,secretamente, mantiveram vivos os velhoscultos de Valka, Hotah, Honen e Golgor, hámuito esquecidos e que não eram para serementendidos por este povo selvagem, cujos an-cestrais morreram gritando em seus altares.De todos os negaris negros, somente ela nãonos temia, e ela não apenas derrubou o rei ese sentou no trono, mas também dominou ossacerdotes – os Satélites e os poucos amosatlantes que foram deixados. Todos estes úl-timos, exceto eu, morreram sob as adagas deseus assassinos, ou nas mesas de tortura

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dela. Somente ela, de todos os milharesselvagens que viveram e morreram entre es-tas paredes, conhecia as passagens secretas ecorredores subterrâneos – segredos que nós,sacerdotes, havíamos escondido zelosamentedo povo durante mil anos.

“Há, há! Idiotas cegos e selvagens! Pas-sarem uma era eterna nesta cidade, semnunca saberem os segredos dela! Macacos...idiotas! Nem sequer os sacerdotes menoressabem dos longos corredores cinzas, ilu-minados por tetos fosforescentes, através dosquais estranhas formas deslizaram silen-ciosamente, em eras passadas. Pois nossos

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ancestrais construíram Negari como con-struíram a Atlântida, numa escala poderosa,e com uma arte desconhecida. Nós a con-struímos não apenas para homens, mas paraos deuses que se moviam invisíveis entrenós. E estas antigas muralhas guardam pro-fundamente os segredos!

“A tortura não conseguiria arrancar estessegredos de nossos lábios; mas, acorrentadosnos calabouços dela, não mais poderíamoscaminhar nos nossos corredores ocultos.Durante anos, o pó se acumulou ali, intocadopor pés humanos, enquanto nós, e final-mente apenas eu, ficamos acorrentados nes-tas celas repugnantes. E, por entre os tem-plos e os escuros e misteriosos relicários detempos antigos, se movem vis Satélites, el-evados por Nakari para glórias que outroraforam minhas – pois eu sou o último sumo-sacerdote atlante.

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“A perdição deles é certa, e vermelha serásua ruína. Valka e Golgor, deuses perdidos eesquecidos, cuja lembrança morrerá comigo,derrubem seus muros e os humilhem ao pó!Quebrem os altares de seus cegos deusespagãos...”. Kane percebeu que o homem es-tava delirando. O cérebro agudo estava final-mente começando a se desintegrar.

- Diga-me – ele falou –; você mencionoua garota branca Mara. O que sabe dela?

- Ela foi trazida para Negari, anos atráspor incursores – respondeu o outro –, apen-as uns poucos anos após a ascensão darainha selvagem, da qual é escrava. Pouco seisobre ela, pois logo após sua chegada, Nakarise voltou contra mim... e os anos posteriorestêm sido sombrios e escuros, avermelhadospela tortura e agonia. Aqui estou, tolhido porminhas correntes da fuga, a qual fica naquelaporta através da qual você entrou... e por

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cujo conhecimento, Nakari me dilacerou nasmesas de tortura e me suspendeu sobrefogueiras.

Kane estremeceu:

- Você não sabe se maltrataram a garotabranca? Os olhos dela estão assombrados, eela debilitada.

- Ela dançou com as Donzelas dasEstrelas, sob o comando de Nakari, e assistiuaos sangrentos e terríveis ritos do TemploNegro. Ela tem vivido, durante anos, entre

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um povo para o qual o sangue é mais baratoque água; que se deleita em matança e re-pugnante tortura, e tais visões às quais elapresenciou arruinariam os olhos e murchari-am a carne de homens fortes. Ela tem vistoas vítimas de Nakura morrerem entre horrí-veis tormentos, e a visão é gravada a fogopara sempre no cérebro do espectador. Os ri-tos dos atlantes foram tomados pelosselvagens, para honrarem seus própriosdeuses toscos e, embora a essência daquelesritos esteja perdida nos anos de desperdício,embora os lacaios de Nakari os realizem, elesnão são inabaláveis, como os homensimaginam.

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Kane estava pensando: “Um belo dia parao mundo, quando esta Atlântida afundou,pois é quase certo que ela gerou uma raça deestranha e desconhecida maldade”. Em vozalta, ele disse:

- Quem é este Mestre, do qual Nakarifalou, e o que ela quis dizer ao chamar Marade noiva dele?

- Nakura... Nakura. A caveira do mal, osímbolo de Morte que eles cultuam. O quesabem estes selvagens sobre os deuses daAtlântida cercada pelo mar? O que sabemeles sobre os deuses terríveis e invisíveis aosquais seus senhores cultuavam com ritosmajestosos e misteriosos? Eles nada enten-dem da essência oculta, a divindade invisívelque reina no ar e nos elementos; eles precis-am cultuar um objeto material, dotado deforma humana. Nakura foi o último grande

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mago da Negari atlante. Ele era um renegadomarrom, que conspirou contra seu própriopovo e ajudou a revolta das feras negras. Eleso seguiram quando vivo, e o deificaram de-pois de morto. No alto da Torre da Morte, seencontra sua caveira sem carne, e daquelacaveira dependem os cérebros de todo opovo de Negari.

“Não, nós da Atlântida cultuávamos aMorte, mas cultuávamos igualmente a Vida.Esta gente cultua apenas a Morte e seautodenomina Filhos da Morte. E a caveirade Nakura tem sido, para eles, durante milanos, o símbolo do poder deles, a evidênciade suas grandezas”.

- Você quer dizer – Kane interrompeuimpacientemente estes ribombos – que vãosacrificar a garota ao deus deles?

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- Na Lua das Caveiras, ela irá morrer noAltar Negro.

- O que é esta Lua das Caveiras, em nomede Deus? – Kane gritou furioso.

- A lua cheia. A cada lua cheia, à qualchamamos de Lua das Caveiras, uma virgemmorre no Altar Negro, diante da Torre daMorte, na qual, séculos atrás, virgens morri-am em honra a Golgor, o deus da Atlântida.Agora, da frente da torre que outrora ab-rigava a glória de Golgor, mira para baixo acaveira do sacerdote renegado, e o povoacredita que seu cérebro ainda vive lá dentropara guiar a estrela da cidade. Pois vejas, es-trangeiro, quando a cheia brilha sobre aborda da torre e o canto dos sacerdotes silen-cia, então a caveira de Nakura troveja umagrande voz, despertada num antigocântico atlante, e o povo se prostra sobre osrostos diante dela.

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“Mas escute: há um caminho secreto,uma escada que sobe para um nicho ocultoatrás da caveira, e lá um sacerdote seesconde e canta. Em dias passados, os filhosda Atlântida tinham este ofício, e por todosos direitos dos homens e deuses, este diadeveria ser meu. Pois, embora nós, filhos daAtlântida, cultuássemos nossos deuses anti-gos em segredo, estes selvagens não tinhamnenhum para eles. Para mantermos nossopoder, éramos devotos de seus deuses repug-nantes, e cantávamos e sacrificávamos paraaquele cuja memória amaldiçoávamos.

“Mas Nakari descobriu o segredo, outroraapenas conhecido pelos sacerdotes atlantes,e agora um de seus Satélites sobe a escadaoculta e entoa o estanho e terrível cântico, oqual não passa de tagarelice sem sentidopara ele, assim como para aqueles que o

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ouvem. Eu, e apenas eu, conheço seu signi-ficado sombrio e medonho”.

O cérebro de Kane rodopiava, em seus es-forços para formular algum plano de ação.Pela primeira vez, durante toda a busca pelagarota, ele se sentiu numa parede sem porta.O palácio era um labirinto, um emaranhado,no qual ele não conseguia decidir umadireção. Os corredores pareciam correr semplano nem propósito; e como ele conseguiriaencontrar Marilyn, prisioneira como ela semdúvida era, num desses milhares de quartosou celas? Ou teria ela já cruzado a fronteirada vida, ou sucumbido ao brutal desejo detortura de Nakari?

Ele mal ouvia os delírios e murmúrios domoribundo.

- Estranho, você é realmente um vivo, ounão mais do que um dos fantasmas que têm

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me assombrado ultimamente, deslizandopela escuridão de minha cela? Não, você é decarne e osso... mas você é um selvagem, as-sim como a raça de Nakari é de selvagensnegros. Eons atrás, quando seus antepassad-os defendiam suas cavernas contra o tigre e omamute, com toscas lanças de sílex, ospináculos de ouro do meu povo alcançavamas estrelas. Eles se foram e estão esquecidos,e o mundo é uma desolação de bárbaros.Deixe-me partir também, como um sonhoque é esquecido nas névoas das eras...

Kane se ergueu e caminhou pela cela.Seus dedos se fechavam, como garras de açonum cabo de espada, e uma cega onda ver-melha de fúria rolou através de seu cérebro.Oh, Deus! Ter seus inimigos diante dalâmina afiada que lhe fora tomada – enfrent-ar a cidade inteira; um homem contra todoseles...

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Kane pressionou as mãos contra astêmporas.

- A lua estava quase cheia, na última vezem que a vi. Mas não sei há quanto tempo foiisso. Não sei por quanto tempo estive nestemaldito palácio, nem por quanto tempofiquei naquele calabouço onde Nakari melançou. O momento da lua cheia pode já terpassado e... ó Deus misericordioso!... Mar-ilyn pode já estar morta.

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- Esta noite é a Lua das Caveiras – mur-murou o outro –; ouvi um de meus carcereir-os falar dela.

Kane agarrou o ombro do moribundo,com força involuntária:

- Se você odeia Nakari ou ama a human-idade... em nome de Deus, me diga como sal-var a criança.

- Amar a humanidade? – o sacerdote riuinsanamente – O que um filho da Atlântida esacerdote do esquecido Golgor tem a ver comamor? O que são os mortais, senão comidapara a boca dos deuses? Garotas mais del-icadas que a sua Mara morreram gritandosob estas mãos, e meu coração era comoferro para seus gritos. Mas o ódio... – os ol-hos estranhos arderam com luz medonha –pelo ódio, lhe contarei o que quer saber!

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“Vá até a Torre da Morte, ao erguer dalua. Mate o falso sacerdote que se escondeatrás da caveira de Nakura, e então, quandoo canto dos adoradores lá embaixo cessar e omatador mascarado ao lado do Altar Negroerguer a adaga sacrificial, fale em voz altapara que o povo possa entender, ordenando-lhes que libertem a vítima e ofereçam, nolugar dela, Nakari, rainha de Negari!

“Quanto ao resto, você depois deve confi-ar em sua astúcia e bravura, caso se liberte”.

Kane o sacudiu:

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- Rápido! Diga-me como alcançar essatorre!

- Volte pela porta por onde você veio. – Ohomem estava esmorecendo rapidamente,suas palavras declinando em sussurros –Vire à esquerda e avance cem passos. Suba aescadaria pela qual você veio, até chegar aotopo. No corredor onde ela pára, siga diretomais cem passos, e quando você chegar aoque parece ser uma parede sem porta, apalpeaté encontrar uma mola se projetando.Pressione-a e entre pela porta que se abrirá.Você logo estará fora do palácio e nos roche-dos contra os quais ele é construído, e noúnico dos corredores secretos conhecido pelopovo de Negari. Vire à sua direita e sigadiretamente pela passagem por 500 passos.Lá, você chegará a uma escadaria, a qualsobe até o nicho atrás da caveira. A Torre da

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Morte está construída dentro do penhasco ese projeta acima dele. Há duas escadarias...

Súbito, a voz se arrastou. Kane se curvoupara a frente e sacudiu o homem, e o sacer-dote se ergueu subitamente com um grandeesforço. Seus olhos ardiam com uma luzselvagem e sobrenatural, e ele lançou osbraços acorrentados para os lados.

- O mar! – ele gritou, numa voz intensa –Os pináculos dourados da Atlântida e o solsobre as profundas águas azuis! Estouchegando!

E, quando Kane se aproximou para deitá-lo novamente, ele despencou para trás,morto.

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6) O Despedaçar da Caveira

Kane limpou o suor frio de sua testa pál-ida, enquanto se apressava pela passagemsombreada. Do lado de fora deste terrívelpalácio, deveria ser noite. Agora mesmo, alua cheia – a sombria Lua das Caveiras –deveria estar se erguendo no horizonte. Elecaminhou cem passos e chegou à escadariaque o sacerdote moribundo havia mencion-ado. Ele a galgou e, adentrando o corredoracima, mediu outros cem passos e se de-parou com o que parecia ser uma parede semporta. Pareceu ter se passado uma era, antesque seus dedos frenéticos achassem um ped-aço de metal se projetando. Houve umranger de dobradiças enferrujadas, quando a

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porta escondida se abriu e Kane olhou paradentro de um corredor, mais escuro do queaquele no qual estava.

Ele entrou, e quando a porta se fechou at-rás dele, virou à direita e tateou seu caminhopor 500 passos. Lá, o corredor estava maisclaro; a luz se infiltrava de fora, e Kane dis-tinguiu uma escadaria. Ele a subiu por váriosdegraus, e logo parou, frustrado. Numa es-pécie de patamar, a escadaria se tornavaduas, uma conduzindo à esquerda e a outrapara a direita. Kane praguejou. Ele sentiuque não poderia se dar ao luxo de cometerum erro – o tempo era muito precioso –, mascomo saber qual delas o levaria até o nichoonde o sacerdote se escondia?

O atlante estava prestes a lhe falar sobreestas escadarias, quando foi atacado pelodelírio que precede a morte, e Kane desejou

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ardorosamente que ele vivesse apenas algunsmomentos a mais.

De qualquer forma, ele não tinha tempo aperder; certo ou errado, deveria arriscar. Eleescolheu a escadaria do lado direito e a subiurapidamente. Não havia tempo para cautelaagora.

Sentiu instantaneamente que a hora dosacrifício estava prestes a chegar. Ele aden-trou outra passagem e distinguiu, pelamudança na alvenaria, que estava nova-mente fora dos penhascos e em alguma con-strução – presumivelmente a Torre daMorte. Esperava, a qualquer momento, subiroutra escadaria; e, subitamente, suas expect-ativas foram realizadas – mas, ao invés de irpara cima, ela descia. De algum lugar à suafrente, Kane ouviu um murmúrio vago e rít-mico, e uma mão fria lhe agarrou o coração.

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O canto dos adoradores diante... do AltarNegro!

Ele correu temerariamente para diante,deu uma volta no corredor, deparou-se comuma porta e olhou através de pequena aber-tura. Seu coração afundou. Ele escolhera aescadaria errada e havia perambulado pordentro de alguma outra construção, adja-cente à Torre da Morte.

Ele olhava para baixo, em direção a umacena sombria e terrível. Num largo espaçoaberto, diante de uma grande torre negracujo pináculo se erguia acima dos penhascosatrás dela, duas longas fileiras de dançarinosselvagens oscilavam e se contorciam. Suasvozes se erguiam num estranho cântico semsignificado, e eles não saíam de seus lugares.

De seus joelhos para cima, seus corpososcilavam em fantásticos movimentos

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rítmicos; e, em suas mãos, tochas se sacu-diam e rodopiavam, espalhando uma sinistrae móvel luz vermelha sobre o cenário. Atrásdeles, se enfileirava uma vasta multidão, aqual se mantinha silenciosa.

A luz dançante das tochas brilhava nummar de olhos brilhantes e rostos ansiosos.Diante dos dançarinos, se erguia a Torre daMorte – gigantescamente alta, negra e ater-radora. Nenhuma porta ou janela se abriaem sua superfície, mas no alto, numa espéciede estrutura ornamentada, mirava um sím-bolo medonho de morte e decadência. A ca-veira de Nakura! Um brilho fraco e lúgubre acercava, iluminada, de alguma forma, dedentro da torre, Kane sabia, e se perguntava:através de qual arte mística, os sacerdoteshaviam preservado a caveira da decadência edissolução por tanto tempo?

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Mas não foi nem a caveira, nem a torre,que atraiu e prendeu o olhar aterrorizado dopuritano. Entre as linhas convergentes deadoradores que gritavam e oscilavam,erguia-se um grande altar negro. Neste altar,jazia uma forma esguia e branca.

Marylin! – a palavra irrompeu dos lábiosde Kane, num grande soluço.

Por um momento, ele ficou congelado, in-defeso e confuso. Não havia tempo agorapara voltar pelo mesmo caminho, e encon-trar o nicho onde a caveira do sacerdote seescondia.

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Agora mesmo, um brilho fraco apareciaatrás do pináculo da torre, destacando essepináculo obscuramente contra o céu. A luahavia se erguido. O canto dos sacerdotes seergueu até um som de frenesi e, dos silen-ciosos observadores atrás deles, começou umsinistro e baixo ribombar de tambores. Paraa mente atordoada de Kane, parecia que eledescia o olhar para alguma orgia vermelhade um Inferno mais baixo.

Que horrível culto de eons passados estesritos pervertidos e degenerados simboliza-vam? Kane sabia que esta gente imitava osrituais de seus amos anteriores em sua formatosca; e, mesmo em seu desespero, ele achoutempo para estremecer diante dopensamento de como aqueles ritos originaisdeveriam ser.

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Agora, uma forma medonha se erguia aolado do altar onde jazia a garota silenciosa.Uma figura alta e totalmente nua, exceto poruma horrenda máscara pintada no rosto eum grande cocar de plumas ondulantes. Ozumbido do cântico ficou baixo por um in-stante, e logo se ergueu novamente até altur-as desvairadas. Foram as vibrações de suacanção que fizeram o chão vibrar sob os pésde Kane?

Kane, com os dedos trêmulos, começou adestrancar a porta. Nada mais podia ser feitoagora, exceto correr desarmado para fora emorrer ao lado da garota que não pôde sal-var. Então, sua visão foi bloqueada por umaforma gigante, que abriu caminho com o om-bro diante da porta. Um homem enorme –um chefe, a julgar pelo seu porte e traje – serecostou ociosamente contra a parede, en-quanto assistia aos procedimentos. O cor-ação de Kane deu um grande pulo. Isto era

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bom demais para ser verdade! Enfiada nocinto do chefe, estava a pistola que elepróprio havia carregado! Ele sabia que suasarmas devem ter sido divididas entre seuscaptores. A pistola nada significava para ochefe tribal, mas ele deve tê-la pegado porcausa de sua estranha forma, e a carregavacomo os selvagens fazem com bugigangassem uso. Ou talvez ele pensasse que ela fosseuma espécie de porrete de guerra. Dequalquer forma, lá estava ela. E, mais umavez, o chão e a construção pareceram tremer.

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Kane puxou a porta silenciosamente paradentro, e se agachou nas sombras atrás desua vítima, como um grande tigre pensativo.

Seu cérebro trabalhou rapidamente, eformulou seu plano de ação. Havia uma ad-aga no cinto ao lado da pistola. As costas dochefe estavam viradas diretamente para ele,

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e ele deveria atacar da esquerda, para al-cançar o coração e silenciá-lo rapidamente.Tudo isso passou pelo cérebro de Solomonnum clarão, enquanto se agachava.

O chefe não sabia da presença de seu in-imigo, até a magra mão direita de Kane lhedisparar através do ombro e apertar a boca,puxando-o para trás. No mesmo instante, amão esquerda do puritano arrancou a adagado cinto e, num mergulho desesperado,afundou a lâmina afiada.

O guerreiro caiu silenciosamente e, numinstante, a pistola de Kane estava na mão deseu dono. Uma segunda investigaçãomostrou que ela ainda estava carregada ecom a pederneira ainda no lugar. Ninguémtinha visto o rápido assassinato. Aquelespoucos que estavam próximos à portada, es-tavam todos encarando o Altar Negro, en-volvidos no drama, o qual ainda iria se

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desenrolar. Enquanto Kane pulava ocadáver, o cântico dos dançarinos cessou ab-ruptamente. No instante de silêncio que seseguiu, Kane ouviu, acima do latejar dopróprio pulso, o vento da noite sussurrar nasplumas, semelhantes à morte, do horrormascarado ao lado do altar. Uma aba da luabrilhava acima do pináculo. Então, lá do alto,na superfície da Torre da Morte, uma vozprofunda ribombou num estranho cântico.Talvez o sacerdote, que falava atrás da ca-veira, não soubesse o que suas palavras sig-nificavam, mas Kane acreditava que ele pelomenos imitava a própria entoação dos hámuito mortos acólitos atlantes. Profunda,mística e ressonante, a voz soava como ofluir incessante de longas marés nos largosgalhos brancos. O mascarado ao lado do altarse estirou em toda a sua grande altura, e er-gueu uma longa lâmina reluzente. Kane re-conheceu sua própria espada, mesmo en-quanto apontava sua pistola e atirava – não

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no sacerdote mascarado, mas bem na caveiraque brilhava na superfície da torre. Pois,num clarão cegante de intuição, ele se lem-brou das palavras do atlante moribundo: “Oscérebros deles dependem da caveira deNakura!”.

Simultaneamente com o disparar da pis-tola, veio um estrondo de abalar os nervos; acaveira seca se partiu em mil pedaços e desa-pareceu, e atrás dela, o cântico se quebrousubitamente num guincho de morte. A longaespada estreita caiu da mão do sacerdotemascarado, e muitos dos dançarinos caíramao chão enquanto os outros paravam de re-pente, enfeitiçados. Através do silêncio mor-tal que reinou por um instante, Kane correuem direção ao altar; logo, todo o Inferno selibertou.

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Um tumulto de gritos bestiais se ergueuaté as estrelas trêmulas. Durante séculos,apenas a fé no falecido Nakura havia man-tido juntos os cérebros manchados de sanguedos negaris selvagens. Agora, o símbolo deleshavia desaparecido, fora desfeito em nada di-ante de seus olhos. Para eles, era como seseus céus tivessem se partido, a lua caído e omundo terminado. Todas as visões vermel-has, que se escondiam na parte de trás deseus cérebros corroídos, despertaram emvida terrível; toda a insanidade latente, queera a herança deles, se ergueu para reclamar

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sua posse, e Kane presenciou uma nação in-teira se transformar em loucos queberravam.

Gritando e rugindo, eles se voltaram unspara os outros – homens e mulheres –,rasgando com unhas desvairadas, cortandocom lanças e adagas, e batendo uns nos out-ros com as tochas flamejantes, enquanto,acima de tudo, se erguia o rugido de desvair-adas feras humanas. Usando a pistola comoporrete, Kane abria seu caminho através dooceano de carne, que rolava e se contorcia,até o pé das escadas do altar. Unhas o pro-curavam, facas o arranhavam, tochas lhechamuscavam as roupas, mas ele nãoprestava atenção.

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Então, enquanto ele alcançava o altar,uma figura terrível irrompeu da massa quese debatia, e o atacou. Nakari, rainha deNegari, enlouquecida como qualquer um deseus súditos, correu em direção ao inglês,com a adaga desembainhada e os olhos hor-rivelmente flamejantes.

- Você não vai escapar desta vez! – elagritava; mas, antes que o alcançasse, umgrande guerreiro, pingando sangue e cegodevido a um corte nos olhos, cambaleou nocaminho dela e em direção a ela. Ela gritoucomo um gato ferido e enfiou a adaga nele, eentão, as mãos tateantes se fecharam nela. O

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gigante cego a girou no alto com um esforçomoribundo, e o último grito dela apunhalouo estrépito da batalha quando Nakari, rainhade Negari, se espatifou contra as pedras doaltar e caiu, despedaçada e morta, aos pés deKane.

Kane subiu aos pulos os degraus negros,desgastados pelos pés de milhares de sacer-dotes e vítimas, e quando ele chegou, a figuramascarada, que ficara como que petrificada,voltou subitamente à vida. Ele se curvou rap-idamente, pegou a espada à qual deixara caire estocou selvagemente em direção ao inglêsque atacava. Mas a rapidez dinâmica de So-lomon Kane era tal, que poucos homens con-seguiam igualar. Com uma contorção e in-clinação de seu corpo de aço, ele estava den-tro da estocada e, enquanto a lâminadeslizou inofensiva entre o braço e o peito,ele desceu o cano da pesada pistola entre as

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plumas ondulantes, destruindo cocar, más-cara e crânio num só golpe.

Então, antes que se voltasse para a garotadesfalecida que jazia amarrada sobre o altar,ele lançou a pistola destroçada para o lado eagarrou avidamente sua espada roubada damão insensível que ainda a agarrava, sen-tindo uma feroz vibração de confiança ren-ovada diante da sensação familiar do cabo.Marylin jazia pálida e silenciosa, seu rostocadavérico voltado cegamente para a luz dalua, qual brilhava calma sobre o cenáriodesesperado. A princípio, Kane pensou queela estivesse morta, mas seus dedos

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investigadores detectaram um fraco palpitarde pulsação. Ele cortou- lhe as amarras eergueu-a delicadamente... só para deixá-lacair de novo e girar rapidamente, quandouma horrenda e ensanguentada figura de in-sanidade veio pulando e grulhando pelos de-graus acima. A criatura correu bem emdireção à lâmina apontada de Kane, e des-abou para trás, em direção ao turbilhão ver-melho lá embaixo, agarrando seu ferimentomortal como um animal. Então, sob os pésde Kane, o altar tremeu; um súbito tremor olançou de joelhos, e seus olhos horrorizadosviram a Torre da Morte balançar de um ladoa outro. Algum horror da Natureza estavaacontecendo, e este fato apunhalou oscérebros em decadência dos demônios quelutavam e gritavam lá embaixo. Um novoelemento se adicionou aos seus gritosagudos, e então a Torre da Morte balançoucom uma terrível e aterradora majestade, sedesprendeu dos penhascos balouçantes e

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cedeu com um trovejar de mundos a se des-pedaçarem. Grandes pedras e pedaços dealvenaria caíram como chuva, trazendomorte e destruição para milhares de hu-manos que gritavam lá embaixo. Uma destaspedras se espatifou em pedaços sobre o altarao lado de Kane, borrifando-o com poeira.

- Terremoto! – ele arfou; e, tomado poreste novo terror, ele ergueu a garota incon-sciente e saltou temerariamente para baixo,em direção aos degraus que se quebravam,cortando e apunhalando seu caminho at-ravés dos redemoinhos escarlates de human-idade bestial que ainda rasgavam erapinavam.

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O resto era um pesadelo vermelho, doqual o cérebro atordoado de Kane se recus-ava a lembrar de todos os horrores. Pareciaque, durante estridentes séculos escarlates,ele cambaleava através de estreitas ruassinuosas, onde berrantes demônios a guin-charem lutavam e morriam, entre paredestitânicas e colunas negras que tremiam con-tra o céu e se espatifavam para quebrarem aoseu redor, enquanto a terra se erguia e

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tremia sob seus pés vacilantes, e o trovejarde torres se despedaçando preenchia omundo.

Demônios grulhantes em forma humanatentavam agarrá-lo, para morrerem diantede sua espada, e pedras cadentes o machu-cavam e golpeavam repetidamente. Ele seagachava ao cambalear pelo caminho,cobrindo a garota com o próprio corpo omelhor que podia, protegendo-a tanto depedra cega quanto de humanos ainda maiscegos.

Finalmente, quando a resistência mortalhavia alcançado seu limite, ele viu a grande enegra muralha externa da cidade avultar àsua frente, arrancada da terra – o parapeitocaído e a muralha a ponto de desabar. Ele selançou através de uma fenda e, usando todaa sua força, fez uma última corrida. Ele malestava fora de alcance, quando o muro

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desabou, caindo para dentro como umagrande onda negra.

O vento da noite estava em seu rosto e,atrás de si, erguia-se o clamor da cidade con-denada, enquanto Kane cambaleava pelatrilha da colina, que tremia sob seus pés.

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7) A Fé de Solomon

A aurora jazia como uma refrescante mãobranca sobre a testa de Solomon Kane. Ospesadelos lhe desapareceram da alma, en-quanto ele inspirava profundamente o ventoda manhã, o qual soprava desde a selva láembaixo de seus pés – um vento carregadocom o almíscar de vegetação deteriorada.Mas era como o hálito de vida para ele, poisos cheiros eram os da limpa desintegraçãonatural de coisas do campo, e não a aura re-pugnante de antiguidade decadente que seesconde nas paredes de cidades com eons deidade... Kane estremeceu involuntariamente.

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Ele se curvou sobre a garota adormecidaque jazia aos seus pés, arrumada o mais con-fortavelmente possível com os poucos galhosmacios de árvore, que ele havia conseguidoencontrar para fazer a cama dela. Agora, elaabria os olhos e olhava a esmo ao redor, porum instante; então, quando seu olhar encon-trou o rosto de Kane, iluminado por um deseus raros sorrisos, ela soltou um pequenosoluço de gratidão e se agarrou a ele.

Oh, Capitão Kane! Será que escapamosrealmente daquela cidade medonha? Agora,tudo parece um sonho... após você cair pelaporta secreta, em meu quarto, Nakari se

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dirigiu mais tarde ao seu calabouço, comoela havia me dito... e retornou em péssimohumor. Ela disse que você era um idiota, poisela lhe oferecera o reino do mundo, e você sófez insultá-la. Ela gritou, delirou e praguejoucomo uma insana, e jurou que ainda iria,sozinha, construir um grande império deNegari.

“Então, ela se voltou para mim e me in-juriou, dizendo que você me tinha – uma es-crava – em maior estima do que uma rainhae toda a sua glória. E, apesar de minhassúplicas, ela me arrastou de joelhos e mechicoteou até eu desmaiar.

“Depois, jazi meio sem sentidos por umlongo tempo, e só estava vagamente con-sciente de que homens foram até Nakari edisseram que você havia escapado. Disseramque você era um feiticeiro, pois havia desa-parecido através de uma parede sólida, comoum fantasma. Mas Nakari matou os homens

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que haviam lhe trazido da cela e, durantehoras, ela parecia uma besta selvagem.

“Quanto tempo jazi desde então, eu nãosei. Naquelas terríveis salas e corredores,onde a luz natural do sol não entrava, al-guém perde qualquer sinal de tempo. Mas,entre a hora em que você foi capturado porNakari e a hora em que eu fui posta no altar,pelo menos um dia, uma noite e outro diadevem ter passado. Faltavam apenas poucashoras para o sacrifício, quando chegou anotícia de que você havia escapado.

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“Nakari e suas Donzelas das Estrelas vi-eram me preparar para o rito”. Diante dalembrança desnudada daquela medonhaprovação, ela chorou e escondeu o rosto nasmãos. “Eu devo ter sido drogada. Só sei queme vestiram com o robe branco do sacrifícioe me carregaram para dentro de uma grandecâmara negra, preenchida com estátuashorrendas.

“Eu fiquei lá por um tempo, como alguémem transe, enquanto as mulheres realizavamvários ritos estranhos e vergonhosos, deacordo com sua religião sombria. Então, caísem sentidos e, quando acordei, jazia sobre oAltar Negro – as tochas se agitavam e os de-votos cantavam; atrás da Torre da Morte, alua ascendente estava começando a brilhar –tudo isto eu sabia vagamente, como numsonho profundo. E, como num sonho, vi acaveira brilhante lá no alto da torre – e o sa-cerdote magro e nu, segurando uma espada

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acima de meu coração; depois, não me lem-bro de mais nada. O que aconteceu?”.

- Por volta daquele momento – Kane re-spondeu –, saí de uma construção, dentro daqual havia perambulado por engano, e des-pedacei a caveira infernal deles com umabala de pistola. Depois disso, toda essa gente,amaldiçoada por demônios desde o nasci-mento e estando igualmente possuída pordemônios, começou a matar umas às outras;no meio do tumulto, aconteceu um terre-moto, que sacudiu e derrubou os muros.Então, eu lhe peguei e, correndo ao acaso,saltei uma fenda na muralha externa e assim

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escapei, carregando você, que pareciadesmaiada.

“Somente agora você acordou, após eu tercruzado a Ponte Através do Céu, como opovo de Negari a chamava, a qual estava des-moronando sob nossos pés devido ao terre-moto. Depois, cheguei até estes penhascos,mas não ousei descê-los na escuridão, a luaestando perto de se pôr naquela hora; vocêacordou, gritou e se agarrou a mim, eu logolhe acalmei o melhor que pude e, após umtempo, você caiu num sono natural”.

- E agora, o quê...? – perguntou a garota.

- Inglaterra! – os olhos intensos de So-lomon se iluminaram com a palavra – Achodifícil permanecer em minha terra natal pormais de um mês; embora eu estejaamaldiçoado pelo desejo de perambular, este

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é um nome que sempre desperta uma paixãoem meu peito. E quanto a você, criança?

- Oh, céus! – ela gritou, entrelaçandosuas pequenas mãos – Meu lar! Algo comque nunca sonhei... e que eu temia nunca al-cançar. Oh, Capitão Kane, como vamos at-ravessar todas as vastas léguas de selva queficam entre este lugar e a costa?

Marylin – ele disse gentilmente,afagando-lhe o cabelo cacheado –, parece-me que lhe falta um pouco de fé, tanto naProvidência quanto em mim. Não, eu soz-inho sou uma criatura fraca, sem força nempoder; mas, em tempos passados, Deus fezde mim um grande navio de ira e uma es-pada de libertação. E, eu acredito, o faránovamente.

“Veja, pequena Marylin: nas últimas pou-cas horas passadas, vimos o fim de uma raçamaligna e a queda de um império

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repugnante. Homens morreram às centenasao nosso redor, e a terra se ergueu sob nos-sos pés, derrubando torres que arranhavamos céus; sim, a morte caiu ao nosso redornuma chuva vermelha, mas escapamosilesos.

“Há nisso... mais do que a mão dohomem! Não, um Poder... o Poder maior!Aquele que me guiou através do mundo,direto a esta cidade do demônio... que meguiou até seu quarto... que me ajudou a es-capar novamente e me guiou ao únicohomem, em toda a cidade, que me daria a in-formação que devo ter – o estranho e

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maligno sacerdote de uma raça antiga, o qualjazia moribundo numa cela subterrânea –; eque me guiou para o muro externo, enquantoeu corria cegamente e ao acaso... pois se eutivesse vindo sob os penhascos que form-avam o resto do muro, certamente teríamosmorrido. O mesmo Poder nos trouxe a salvopara fora da cidade moribunda, e a salvo pelaponte que tremia – a qual se despedaçava,partia e caía para dentro do precipício, noexato momento em que meus pés tocavam aterra firme!

“Você acha que, tendo me guiado por estadistância e realizado tais maravilhas, o Poderirá nos derrubar agora? Não! O mal florescee governa nas cidades dos homens, e noslugares desolados do mundo, mas logo ogrande gigante, que é Deus, se ergue e cas-tiga em favor dos justos, e eles continuamfiéis a Ele.

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“Eu digo isto: desceremos este penhascoem segurança, atravessaremos aquela selvaúmida também em segurança e, na velhaDevon, seu povo lhe abraçará novamente nopeito, tão certo quanto você está aqui”.

E agora, pela primeira vez, Marylin sor-ria, com a rápida ânsia de uma garota nor-mal, e Kane suspirava aliviado. Os fantasmasjá lhe desapareciam dos olhos assombrados,e Kane esperava pelo dia em que suas horrí-veis experiências seriam como um sonho ob-scurecido. Ele lançou um olhar atrás de si,

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onde, além das colinas carrancudas, a cidadede Negari jazia despedaçada e silenciosa,entre as ruínas de suas próprias muralhas eos penhascos caídos que a mantiveram in-vencível por tanto tempo, mas quefinalmente traíram-na para sua condenação.

Uma angústia momentânea o atacou,quando ele pensou nas milhares de formas,esmagadas e inertes, que jaziam entreaquelas ruínas; logo, a lembrança explosivade seus crimes malignos rolou sobre ele, eseus olhos endureceram:

- E assim será, que aquele que escapar dogrito do medo cairá no fosso; e aquele quesaiu da névoa da fossa será preso na ar-madilha; pois as janelas no alto estão aber-tas, e as fundações da terra realmentetremem.

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“Pois Tu fizeste de uma cidade uma pilha;de uma cidade defendida, uma ruína; umpalácio de estranhos já não é mais cidade; elajamais será construída.

“Além disso, a multidão será para Ticomo pó, e a multidão dos terríveis serácomo pequena palha, que subitamente se foi;sim, será num instante súbito.

“Parem e se assombrem; chorem egritem; eles estão bêbados, mas não devinho; eles cambaleiam, mas não com bebidaforte.

“Na verdade, Marylin”, disse Kane, comum suspiro, “eu vi, com meus próprios olhos,as profecias de Isaías acontecerem. Estavambêbados, mas não de vinho. Não, o sangueera a bebida deles, e naquela inundação ver-melha, eles mergulharam profunda eterrivelmente”.

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Então, pegando a garota pela mão, ele sedirigiu para a beirada do penhasco. Nestemesmo ponto, ele havia subido na noite – háquanto tempo isso parecia ter acontecido!

As roupas de Kane pendiam em frangal-hos ao seu redor. Ele estava rasgado, arran-hado e machucado. Mas, em seus olhos, bril-hava a clara luz calma da serenidade, en-quanto o sol nascia, inundando penhascos eselva com uma luz dourada, que era comouma promessa de contentamento e alegria.

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Os Filhos de Assur

CAPÍTULO PRIMEIRO

Solomon Kane começou a se mover noescuro, tentando agarrar as armas quejaziam na pilha de peles, a qual lhe servia decatre. Não era o louco tamborilar da chuvatropical, nas folhas do teto da cabana, que ohavia acordado, nem o bramir do trovão.Eram gritos de agonia humana; o estrondodo aço que atravessava o barulho da tem-pestade tropical. Algum tipo de luta estavaacontecendo na aldeia nativa na qual ele

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buscara se refugiar, e soava como umataque-surpresa em grande escala. QuandoSolomon tateou por sua espada, ele se per-guntou que homens do mato atacariam umaaldeia à noite e numa tempestade como esta.Suas pistolas estavam ao lado de sua espada,mas ele não as tirou do chão, sabendo queseriam inúteis em tamanha torrente dechuva – uma chuva que molharia instant-aneamente suas armas de fogo.Ele se deitara completamente vestido, excetopor seu chapéu desleixado e manto, e, semparar para pegá-los, correu até a porta dacabana. Uma linha irregular de relâmpago, aqual parecia abrir o céu, mostrou a ele umvislumbre caótico de figuras se movendo nosespaços entre as cabanas, com o reflexo dobrilho ofuscante vindo do aço que faiscava.Acima da tempestade, ele ouviu os gritos es-tridentes do povo negro e gritos, em tomprofundo, numa linguagem que não lhe erafamiliar. Saltando para fora da cabana, ele

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sentiu a presença de alguém à sua frente; en-tão, outra explosão trovejante de fogo cortouo céu, clareando tudo numa fantástica luzazul. Naquele instante luminoso, Solomondeu uma estocada selvagem, sentiu a lâminadobrar em sua mão, e viu uma pesada espadabalançando em direção à sua cabeça. Umaexplosão de faíscas, mais brilhante que oclarão, estourou diante de seus olhos; logo,uma escuridão maior que a noite da selva oenvolveu.A aurora se espalhava palidamente sobre asextensões de selva gotejante, quando So-lomon Kane se moveu e sentou na lama di-ante da cabana. O sangue havia se empas-tado em seu couro cabeludo, e sua cabeçadoía levemente. Livrando-se de uma levefraqueza, ele se ergueu. A chuva cessara hámuito, e os céus estavam claros. O silênciojazia sobre toda a aldeia, e Kane viu que erana verdade uma aldeia de mortos. Cadáveresde homens, mulheres e crianças se

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espalhavam por toda a parte... nas ruas, nasportas das cabanas, dentro das cabanas; al-guns deles haviam sido literalmenterasgados em pedaços, fosse em busca de víti-mas escondidas, ou em mera lascívia dedestruição. Não haviam levado prisioneiros,Solomon percebeu, quem quer que fossem osincursores desconhecidos. Nem haviamlevado as lanças, machados, panelas e ca-pacetes emplumados de suas vítimas – estefato parecia demonstrar um ataque de umaraça superior em cultura e artesanato aosrudes aldeões. Mas haviam levado todo omarfim que puderam encontrar, e haviamlevado – Kane descobriu – sua longa e finaespada de dois gumes, e seu punhal, pistolase bolsas de pólvora e munição. E haviamlevado seu bastão, de ponta afiada, estran-hamente entalhado e com cabeça de gato, oqual seu amigo, N’Longa, o feiticeiro daCosta Oeste, havia lhe dado, assim como oseu chapéu e manto.

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Kane se encontrava no centro da aldeia des-olada, meditando sobre o assunto – estran-has especulações lhe percorrendo a mente aoacaso. Sua conversa com os nativos daaldeia, à qual havia adentrado na noite an-terior, fora da selva castigada pela tempest-ade, não lhe dera pista sobre a natureza dosatacantes. Os próprios nativos pouco sabiamsobre a terra na qual entraram apenas re-centemente, expulsos para uma longa jor-nada por uma tribo rival e mais poderosa.Eles eram um povo simples, de boa natureza,o qual lhe tinha dado boa acolhida para den-tro de suas cabanas e o houvera dado seusbenefícios simples. O coração de Kane ardiade fúria contra seus desconhecidos destruid-ores, mas, mais profundamente que isso, ar-dia sua insaciável curiosidade – a maldiçãodo homem inteligente.

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Pois Kane havia sido espectador de um mis-tério à noite. E a tempestade – aquela fortechama do relâmpago – o havia mostrado,gravado momentaneamente em seu brilho,um rosto feroz e de barba negra – o rosto deum homem branco. Embora, de acordo coma razão, ali não pudesse haver homens bran-cos – nem mesmo saqueadores árabes – porcentenas e centenas de milhas. Kane nãohavia tido tempo para observar a roupa dohomem, mas ele tinha a vaga impressão deque a figura se vestia bizarramente. E aquelaespada que, golpeando rente, o havia der-rubado... certamente não era uma toscaarma nativa.

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Kane olhou para o rude muro de barro quecercava a aldeia, para os portões de bambuque agora jaziam em ruínas... cortadas empedaços pelos atacantes. A tempestade haviaaparentemente diminuído quando os invas-ores marcharam para diante, pois ele perce-beu uma larga trilha pisada por pés, a quallevava para fora do portão quebrado e paradentro da selva.Kane apanhou um tosco machado nativo,que jazia próximo. Se alguns dos matadoresdesconhecidos haviam caído em batalha,seus corpos foram carregados por seus com-panheiros. Folhas emendadas juntas lhe ser-viram de chapéu temporário, para lhe pro-teger a cabeça da força do sol. Logo, So-lomon Kane saía pelo portão quebrado, paraadentrar a selva gotejante, seguindo a trilhado desconhecido.Sob as árvores gigantes, as pegadas ficarammais nítidas, e Kane percebeu que muitasdelas eram de sandálias – um tipo de

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sandália que também lhe era estranho. Aspegadas restantes eram de pés nus, indic-ando que alguns prisioneiros haviam sidolevados. Aparentemente haviam partido hámuito, pois, embora ele viajasse sem pausa,caminhando incansavelmente sobre suaspernas nômades, não avistou a colunanaquela marcha de um dia.Alimentou-se com a comida que haviatrazido da aldeia em ruínas, e avançou semparar, consumido pela raiva e com o desejode desvendar o mistério daquele rosto delin-eado pelo relâmpago. E mais: os atacanteshaviam lhe levado as armas e, naquela terrasombria, as armas de um homem eram suavida. O dia foi passando. Quando o sol sepôs, a selva deu lugar à terra de florestas e,ao crepúsculo, Kane saiu numa planíciecoberta de capim e pontilhada de árvores, eviu, na outra extremidade dela, um humildeagrupamento de colinas. As pegadas levavamdiretamente para o outro lado da planície, e

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Kane acreditou que o destino dos incursoresfosse aquelas colinas baixas e lisas.Ele hesitou; de um lado a outro da pastagem,chegavam os rugidos trovejantes de leões,ecoando e retumbando de uns vinte pontosdiferentes. Os grandes gatos estavamcomeçando a espreitar sua presa, e seria sui-cídio se aventurar pelo vasto espaço aberto,armado apenas com um machado. Kane en-controu uma árvore gigante e, escalando-a,se acomodou numa bifurcação tão con-fortavelmente quanto pôde. Lá fora, do outrolado da planície, ele viu um ponto de luztremeluzindo entre as colinas. Logo, naplanície, se aproximando das colinas, viuoutras luzes: a tremeluzente linha serpentinade fogo que se movia em direção às colinas,agora mal visíveis contra as estrelas ao longodo horizonte. Era a coluna de atacantes comseus cativos, ele percebeu. Seguravam tochase viajavam rapidamente. As tochas eram,sem dúvida, para manterem os leões à

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distância, e Kane imaginou que o destinodeles devia estar bastante próximo, vez queeles arriscavam uma marcha noturnanaqueles pastos freqüentados porcarnívoros.Enquanto observava, via os tremeluzentespontos de fogo se moverem para cima e, porpouco tempo, cintilarem por entre as colinas;logo, não viu mais nada. Especulando sobreo mistério de tudo isso, Kane dormiu, en-quanto os ventos noturnos sussurravam mis-térios obscuros da antiga África por entre asfolhas, e os leões rugiam sob sua árvore,açoitando suas caudas peludas enquantomiravam para o alto com olhos famintos.

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A aurora mais uma vez iluminou o dia comrosa e ouro, Solomon desceu de seu poleiro econtinuou sua jornada. Comeu o restante doalimento que havia trazido, bebeu de umregato que parecia completamente puro e re-fletiu sobre a chance de encontrar comidapor entre as colinas. Se não achasse, poderiaestar numa situação precária, mas Kane jáhavia passado fome antes – sim, já estiverafaminto, passando frio e cansado. Sua estru-tura longilínea, de ombros largos, era duracomo ferro e flexível como aço.Assim, ele caminhou corajosamente pelassavanas, cautelosamente atento para leões àespreita, mas sem relaxar o passo. O solsubiu ao zênite e mergulhou a oeste. Quandose aproximou da cordilheira baixa, estacomeçou a ficar mais nítida. Ele viu que, aoinvés de colinas ásperas, se aproximava deum baixo planalto que se erguia abrupta-mente da planície que o cercava, e pareciaser plano e nivelado. Viu árvores e alta

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grama nas bordas, mas os penhascos pare-ciam áridos e rugosos. Contudo, não tinhammais do que vinte e poucos metros de altura,até onde ele podia ver, e não imaginougrande dificuldade em galgá-los.Aproximando-se deles, ele viu que eramquase rocha sólida, embora coberta por umacamada bastante espessa de terra. Haviamatacões caídos em vários lugares, e ele viuque um homem ativo era capaz de escalar ospenhascos em várias partes. Mas ele viu algomais: uma larga estrada que serpenteavapara o alto da íngreme inclinação do despen-hadeiro, e para o alto levavam as pegadasque ele estava seguindo.Kane se aproximou do caminho, notando aqualidade do trabalho da estrada – certa-mente, não se tratava de um mero caminhopara animais, ou mesmo uma trilha nativa. Aestrada havia sido talhada dentro do pen-hasco com perfeita habilidade, e era

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pavimentada com blocos polidamente corta-dos de pedra.Cauteloso como um lobo, ele evitou a es-trada; mais adiante, achou uma inclinaçãomenos íngreme, à qual subiu. Não era umpiso seguro; e os matacões, que pareciam seequilibrar no declive, ameaçavam rolar emsua direção; mas ele concluiu a tarefa semmuito perigo, e chegou à beira do penhasco.Kane se encontrava sobre uma inclinaçãoáspera e salpicada de matacões, a qual se er-guia de forma íngreme sobre uma vastidãoplana. De onde se encontrava, ele viu o largoplanalto se espalhar sob seus pés, atapetadocom luxuriante grama verde. E no meio... elepiscou os olhos e sacudiu a cabeça, pensandoque olhava para alguma miragem ou alucin-ação. Não! Ainda estava lá: uma imponentecidade murada, se erguendo na planície gra-mada. Viu as ameias, as torres além, compequenas figuras se movendo ao redor delas.Do outro lado da cidade, percebeu um

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pequeno lago, sobre cujas margens se esten-diam jardins e campos luxuriantes, evastidões de campinas ocupadas por gadoque pastava.

O espanto diante da visão congelou o purit-ano por um instante; logo, o tinido de umcalcanhar de aço numa pedra o colocou rapi-damente quase encarando o homem, quehavia chegado por entre os matacões. Estehomem era forte e de constituição larga,quase tão alto quanto Kane e mais pesado.Seus braços nus tinham os músculos sali-entes, e suas pernas eram como pilares

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nodosos de ferro. Seu rosto era uma du-plicata daquele que Kane tinha visto noclarão do relâmpago... feroz, de barba negra;o rosto de um homem branco com olhos ar-rogantes e predatório nariz em forma de gan-cho. Do pescoço taurino aos joelhos, ele ves-tia um corselete de escamas de ferro, e nacabeça havia um elmo de ferro. Um escudode madeira de lei e couro, reforçado commetal, se encontrava em seu braço esquerdo,uma adaga no cinto e uma curta, porémpesada, maça de ferro na mão.

Tudo isso Kane viu num relance, quando ohomem rugiu e deu um salto. O inglês

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percebeu, naquele momento, que não haver-ia algo como uma discussão, e que seria umaluta até a morte. Como um tigre, ele saltouao encontro do guerreiro, arremetendo omachado com toda a força de sua constitu-ição longilínea. O guerreiro aparou o golpeno escudo. O gume do machado se dobrou, ocabo se estilhaçou na mão de Kane e o es-cudo se despedaçou.Levado pelo movimento de sua investidaselvagem, o corpo de Kane colidiu contra seurival, o qual deixou cair o escudo inutilizadoe, cambaleando, se engalfinhou com o inglês.Fazendo força e ofegando, eles cambaleavamsobre pés bem firmados, e Kane rosnavafeito um lobo ao sentir toda a força do ad-versário. A armadura dificultava o inglês, e oguerreiro diminuíra o aperto na maça deferro e se esforçava ferozmente – paraespatifá-la na cabeça desprotegida de Kane.

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O inglês se esforçava para prender o braçodo guerreiro, mas seus dedos que agarravamfalharam, e a maça colidiu repugnantementecontra sua cabeça nua. Novamente, ela caiu,enquanto uma bruma de fogo obscurecia avisão de Kane, mas sua violenta torção in-stintiva a evitou, embora ela houvesse meioamortecido o ombro dele, rasgando a pele demodo que o sangue brotou em pingos.Enlouquecido, Kane investiu ferozmentecontra o corpo robusto daquele que brandiaa maça, e uma mão a agarrar cegamente sefechou no cabo da adaga, no cinto doguerreiro. Puxando-a, esfaqueou cega eselvagemente.

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Engalfinhados, os lutadores cambalearampara trás, um esfaqueado em silêncio venen-oso, e o outro se esforçando para libertar obraço de modo que pudesse acertar um golpedestruidor. Os golpes curtos e meio estorva-dos do guerreiro resvalavam na cabeça e om-bro de Kane, rasgando a pele e derramandosangue. Lanças vermelhas de agonia per-furavam o cérebro nublado do inglês. E, si-lenciosamente, a adaga em sua mão a estocarresvalava nas escamas de aço que protegiamo corpo de seu rival.

Ofuscado, atordoado e lutando instintiva-mente e sozinho como um lobo, Kane afun-dou os dentes, feito presas, no grande

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pescoço taurino de seu inimigo. A carnerasgada e um jorro abundante de sangue ar-rancaram um grito angustiado daquele corpopoderoso. A maça que açoitava cambaleou, eo guerreiro recuou. Eles cambalearam nabeira de um precipício baixo e caíram, rolan-do rapidamente e agarrados. Chegaram ao péda inclinação, e Kane mais acima. A adagaem sua mão cintilou acima de sua cabeça ereluziu para baixo, afundando até o cabo nagarganta do guerreiro. O corpo de Kane bal-ançou para a frente com o golpe, e ele jazeuinconsciente sobre seu inimigo morto.Jaziam num poço largo de sangue. No céu,apareceram pequenos pontos, negros contrao azul, girando, circulando e mergulhandocada vez mais para baixo. Logo, de dentrodos desfiladeiros, apareceram homens, simil-ares em trajes e aparência ao que jazia mortosob o corpo inconsciente de Kane. Haviamsido atraídos pelos ruídos da luta, e agora es-tavam próximos, discutindo o assunto em

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tons ásperos e guturais. Havia escravos umpouco distantes deles em total silêncio.Eles arrastaram os corpos dali e descobriramque um estava morto, e o outro provavel-mente morrendo. Então, após alguma dis-cussão, fizeram uma padiola com suas lançase suspensórios de couro para bainhas de es-padas, e ordenaram a seus escravos queerguessem os corpos e os carregassem. Ogrupo partiu em direção à cidade, que luziaestranhamente no meio da planície gramada.

CAPÍTULO SEGUNDO

Solomon Kane recuperou a consciência.Estava deitado num leito coberto com pelesfinamente ornamentadas, num quarto

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espaçoso, cujo chão, paredes e teto eram depedra. Havia uma janela, fortementetrancada, e uma única porta. Do lado de fora,havia um guerreiro robusto, muito parecidocom o homem que ele havia matado.Então, Kane descobriu outra coisa: haviacorrentes douradas em seus pulsos, pescoçoe tornozelos. Estavam unidas num padrãointrincado, e amarradas a um aro fixo naparede com uma forte tranca de prata.Kane descobriu que seus ferimentos haviamsido enfaixados, e ponderou sobre sua situ-ação de escravo, acolhido com comida e umtipo de vinho púrpura. O inglês não deuatenção à conversa e bebeu intensamente. Ovinho estava drogado e ele logo caiu no sono.Várias horas depois, ele acordou, e percebeuque as ataduras haviam sido trocadas. Umguarda diferente se encontrava do lado defora da porta... um homem do mesmo as-pecto do soldado anterior, contudo: muscu-loso, de barba negra e vestido em armadura.

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Desta vez em que acordou, ele se sentiu fortee revigorado. Kane rapidamente decidiu que,quando o escravo retornasse, ele procurariaaprender algo dos curiosos arredores no qualcaíra. O barulho de sandálias de couro nosazulejos anunciou a chegada de alguém, eKane se ergueu sentado em seu leito quandoa figura adentrou o quarto.No fundo, se movia furtivamente o escravoque havia trazido a comida de Kane. Diantedele, um bando de homens se reunia numpequeno grupo: vestidos com túnicas, in-escrutáveis, com rostos barbeados e cabeçasraspadas. E, um pouco afastado deles, haviaum homem cujo aspecto dominava todo ocenário. Era alto, com roupas de seda presaspor um cinto de escamas douradas. Seu ca-belo e barba preto-azulados eram curi-osamente encaracolados; e seu rosto eraaquilino, cruel e predatório. A arrogância dosolhos, a qual Kane percebeu como caracter-ística da raça desconhecida, estava muito

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mais evidente neste homem do que nos out-ros. Em sua cabeça havia um aro de ourocuriosamente entalhado, e em sua mão umbastão dourado. A atitude dos outros em re-lação a ele era de extrema subserviência, eKane acreditou que estava olhando para orei, ou para o sumo-sacerdote da cidade.Ao lado desta pessoa, havia um homem maisbaixo e gordo, de rosto e cabeça raspados,vestido em túnicas iguais às usadas pelaspessoas menos importantes no fundo, masmuito mais suntuosas. Na mão, ele levavaum chicote composto de seis tiras de couro,amarradas a um cabo incrustado de jóias. Astiras terminavam em puas triangulares demetal, e o todo representava o instrumentomais cruel de castigo que Kane já havia visto.O homem que o segurava tinha olhospequenos, astutos e ardilosos, e toda a suaatitude era uma mistura de bajuladora sub-serviência ao homem com o cetro, e de intol-erante tirania para com os seres inferiores.

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Kane lhes devolveu o olhar, tentando recon-hecer um indefinível senso de familiaridade.Havia algo nas feições desse povo que suger-ia vagamente os árabes – embora fossem es-tranhamente diferentes de qualquer árabeque ele tivesse visto. Falavam simultanea-mente, e sua linguagem tinha, às vezes, umsom de alguma forma familiar. Mas ele nãoconseguia definir estes vagos lampejos demeia-lembrança.

Por fim, o homem alto com o cetro se virou ecaminhou majestosamente para a frente,seguido pelos seus companheiros submissos.Kane foi deixado sozinho. Após algum

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tempo, o gordo segundo-em-comando re-tornou, com meia-dúzia de soldados e acóli-tos. Entre eles, estava o jovem escravo quetrouxe a comida de Kane, e uma figura alta esombria, usando apenas uma tanga, e quetrazia uma chave grande no cinto. Os solda-dos cercaram Kane, com as lanças prepara-das, enquanto este homem soltava as cor-rentes do aro na parede. Eles o cercaram e,agarrando-lhe as correntes, indicaram paraque ele os seguisse. Rodeado por seuscaptores, Kane saiu do quarto para o queparecia ser uma série de largas galerias, ser-penteando ao redor da vasta estrutura. Pisoapós piso, eles subiram e finalmente aden-traram um compartimento muito semel-hante ao que haviam deixado e com mobíliasemelhante. As correntes de Kane foram pre-sas a um aro, na parede de pedra próxima àúnica janela. Ele podia ficar de pé, deitadoou sentado no leito coberto de peles, mas nãoconseguia dar meia dúzia de passos em

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qualquer direção. Vinho e comida foramcolocados à sua disposição.Seus captores o deixaram, e Kane percebeuque a porta não estava trancada e que nãohavia nenhum guarda colocado diante dela.Ele imaginou que eles achavam suas cor-rentes suficientes para contê-lo, e, apóstestá-las, percebeu que estavam certos. Docontrário, não haveria outra razão para aaparente negligência deles, como haviapercebido.O inglês olhou para fora da porta, a qual eramaior que a outra, e não tão obstruída.Estava olhando para baixo, em direção à cid-ade, desde uma altura considerável. Abaixodele, havia ruas estreitas, largas avenidasflanqueadas pelo que pareciam seremcolunas e leões de pedra entalhada, e acima,grandes extensões de casas com tetos planos.Muitas das construções eram de pedra, e asoutras, de tijolos secos ao sol. Havia uma im-ponência vagamente desagradável ao redor

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desta arquitetura – um tema sombrio epesado, que parecia sugerir um caráter tacit-urno e levemente inumano dos construtores.

Um muro que cercava a cidade era alto egrosso, com torres espaçadas a intervalosregulares. Ele viu figuras com armaduras semoverem como sentinelas ao longo da mur-alha, e meditou sobre o aspecto guerreirodeste povo. As ruas e mercados abaixo deleapresentavam um labirinto colorido,

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enquanto o povo ricamente vestido se movianum panorama sempre mutável.Quanto à construção que lhe servia deprisão, Kane pouco conseguiu imaginar desua natureza. Contudo, abaixo de si, ele viuuma série de andares sólidos descendo comodegraus gigantes. Deveria ser, ele achou comuma sensação bastante desagradável, con-struída como a fabulosa Torre de Babel: umacamada sobre outra.Kane voltou sua atenção ao quarto. Os muroseram ricos em decorações murais, entalhespintados em várias cores, bem-matizadas ecombinadas. De fato, a arte era de umpadrão tão elevado quanto qualquer uma queo inglês havia visto na Ásia ou Europa.Muitas das cenas eram de guerra ou de caça– homens fortes, com barbas negras queeram freqüentemente encaracoladas, em ar-maduras, matando leões ou expulsando out-ros guerreiros diante deles. Alguns dos

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guerreiros perseguidos eram negros nus;outros lembravam bastante seusperseguidores.As figuras humanas não eram tão bem re-tratadas quanto as das feras; eram conven-cionadas a um ponto que freqüentementedava a elas um aspecto um tanto rígido. Masos leões eram retratados com vívido real-ismo. Algumas das cenas mostravam osmatadores de barbas negras em carruagens,puxadas por cavalos de respiração ardente, eKane teve novamente aquela estranhasensação de familiaridade, como se jáhouvesse visto estas cenas – ou cenas semel-hantes – antes. As carruagens e cavalos, elepercebeu, eram inferiores aos leões emaparência de vida. A imperfeição não estavana estilização, mas na ignorância do artistaem relação ao tema, Kane percebeu, notandoerros que pareciam inadequados,considerando-se a habilidade com a qualhaviam sido retratados.

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O tempo passou rapidamente, enquanto elerefletia sobre os entalhes. No momentoseguinte, o escravo silencioso entrou comcomida e vinho.Quando ele serviu os alimentos, Kane faloucom ele num dialeto das tribos do mato, auma das quais ele acreditou que o homempertencia, pois notara certas cicatrizes emsuas feições. O rosto obtuso brilhou leve-mente, e o homem respondeu numa línguasimilar o bastante para Kane entendê-lo.

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- Que cidade é esta?- Ninn, mestre.- Quem é esta gente?O escravo bronco sacudiu a cabeça, emdúvida:- Eles ser povo muito antigo, mestre. Têmmorado aqui há muito tempo.- Foi o rei deles que veio ao meu quarto comos homens dele?- Sim, mestre. Aquele ser Rei Asshur-ras-arab.- E o homem com o chicote?- Yamen, o sacerdote, mestre persa.- Por que me chama assim? – perguntouKane, embaraçado.- Os amos lhe nomearam assim, mestre...O escravo recuou e sua pele ficou pálida,quando a sombra de uma figura alta atraves-sou o vão da porta. Um gigante seminu, decabeça raspada, entrou, e o escravo caiu dejoelhos, lamentando o próprio terror. Dedospoderosos se fecharam ao redor do pescoço

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apavorado, e Kane viu os olhos do infeliz es-cravo se sobressaindo e sua língua saindorapidamente da boca aberta. Seu corpo secontorcia e agitava em vão; mãos se agar-ravam cada vez mais fracamente em pulsosde ferro. Logo, ele amoleceu nas mãos de seumatador. Quando o guerreiro de cabeçaraspada o soltou, o cadáver despencou flá-cido ao chão. O guerreiro bateu palmas, e umpar de escravos entrou. Seus rostos ficarampálidos diante da visão do corpo de seu com-panheiro, mas com um gesto, eles indifer-entemente agarraram os pés do homemmorto e lhe arrastaram o corpo.O guerreiro se virou para a porta, e seus ol-hos escuros e implacáveis encontraram o ol-har de Kane, como que em aviso. O ódio late-jou nas têmporas de Kane, e foram os olhossombrios que caíram diante da fúria fria doolhar feroz do inglês. O homem partiu silen-ciosamente, deixando Kane com suasmeditações.

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Quando a comida foi novamente trazida paraKane, ela foi levada por um jovem escravo,de membros longos e esguios, e aparênciabenévola e inteligente. Kane não tentou falarcom ele; aparentemente, os amos não dese-javam que seu cativo aprendesse qualquercoisa sobre eles por algum motivo ou outro.Por quantos dias Kane ficou no quarto alto,ele nunca soube. Cada dia era exatamentecomo o anterior, e ele perdeu a conta dotempo. Às vezes, o sacerdote Yamen apareciae o observava com um ar satisfeito, que faziaos olhos de Kane se avermelharem com odesejo de matar; às vezes, o gigante assas-sino aparecia silenciosamente, para desa-parecer também silenciosamente.

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Os olhos de Kane se firmavam na chave quependia do cinto do gigante silencioso. Se elepudesse por apenas um momento alcançar...Mas seu captor tinha o cuidado de ficar forado alcance, exceto quando Kane era cercadopor guerreiros com azagaias prontas.Então, uma noite naquele quarto, chegou osacerdote Yamen, com o gigante silenciosochamado Shem e uns 50 acólitos e soldados.Foi Shem quem destrancou as correntes deKane da parede e, entre duas colunas desoldados e sacerdotes, o inglês foi escoltadoao longo dos corredores serpenteantes, queeram iluminados por tochas

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resplandecentes, fixas nos nichos ao longodas paredes, e seguras nas mãos dossacerdotes.Naquela luz, Kane observou novamente asfiguras entalhadas, que avançavam inter-minavelmente ao redor das paredes maciçasdos corredores. Muitas delas estavam emtamanho natural; algumas obscurecidas eum tanto desfiguradas como se pela idade.Muitas delas, Kane notou, retratavam ho-mens em carruagens puxadas por cavalos, eele concluiu que as figuras posteriores e im-perfeitas, de montarias e carruagens, haviamsido copiadas destes entalhes mais velhos.Aparentemente, não havia mais cavalos oucarruagens na cidade. Várias diferenças raci-ais eram evidentes nas figuras humanas – osnarizes curvos e negras barbas encaracoladasda raça dominante se mostravam claramentedistintos. Seus oponentes eram, às vezes, ho-mens negros; às vezes, homens como eles; eocasionalmente, homens altos, de membros

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longos, com feições inconfundivelmenteárabes. Era surpreendente notar que, em al-gumas das cenas mais antigas, os homensdesenhados tinham aparência e feições total-mente diferentes das dos ninnitas. Estes es-tranhos eram sempre retratados em cenas debatalhas e de forma significativa, Kanenotou; mas nem sempre em retratos. Fre-qüentemente, pareciam estar ganhando aluta, e em nenhum lugar o inglês conseguiuencontrá-los retratados como escravos. Maso que o interessava era a familiaridade:aquelas feições entalhadas eram como afisionomia de um amigo, numa terra es-tranha ao aventureiro. Apesar de suas armase roupas estranhas e bárbaras, poderiam seringleses, com suas feições européias e cachosamarelos.Em algum lugar, há muito, muito tempo,Kane sabia, os ancestrais dos homens deNinn haviam guerreado contra homens apar-entados com os próprios ancestrais dele.

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Mas, em que era, e em qual terra? Certa-mente, as cenas não estavam postas no paísque agora era a terra dos ninnitas, pois estascenas mostravam planícies férteis, colinascobertas de grama e rios largos. Sim, egrandes cidades como Ninn, mas estran-hamente diferentes.E, subitamente, Kane se lembrou onde tinhavisto entalhes semelhantes, onde reis comnegras barbas encaracoladas matavam leões,desde as carruagens. Ele os vira em pedaçosdesagregados de alvenaria, que marcavam olocal de uma cidade há muito esquecida daMesopotâmia, e os homens haviam lhe ditoque aquelas ruínas eram tudo e que restavade Nínive a Sangrenta, a amaldiçoada porDeus.O inglês e seus captores haviam alcançado acamada térrea do grande templo, e passarampor entre colunas enormes, atarracadas e es-culpidas como as paredes. Finalmente,chegaram a um vasto espaço circular, entre a

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parede maciça e os pilares que flanqueavam.Esculpido da pedra da enorme parede, haviaum ídolo colossal – feições entalhadas, tãodesprovidas da fraqueza e bondade humanaquanto o rosto de um monstro da Idade daPedra.Diante do ídolo, num trono de pedra na som-bra dos pilares, sentava-se o Rei Asshur-ras-arab. A luz da fogueira salpicava-lhe o rostofortemente esculpido, de modo que Kane, aprincípio, pensou que fosse um ídolo que sesentasse no trono.Diante do deus e de frente para o trono dorei, havia um trono menor. Um braseiro,num tripé dourado, se encontrava diantedeste; carvões ardiam no braseiro, e a fu-maça se encaracolava indolentemente paracima.

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Uma graciosa túnica, de tremeluzente sedaverde, foi posta sobre Kane, escondendo suasroupas esfarrapadas e manchadas, e as cor-rentes douradas. Ele foi levado a se sentar notrono diante do braseiro, e o fez silen-ciosamente. Então, seus calcanhares e pulsosforam habilmente presos ao trono, escon-didos pelas dobras da túnica de seda.Os sacerdotes menores e os soldados foramembora, deixando apenas Kane, o sacerdoteYamen e o rei sobre seu trono. Atrás dassombras, por entre as colunas em forma deárvores, se vislumbrava ocasionalmente um

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brilho de metal, como vagalumes no escuro.Guerreiros ainda estavam à espreita lá, forada luz. Ele sentiu que algum tipo de cena ser-ia estabelecido. Kane percebeu uma sugestãode charlatanismo em todo o procedimento.Agora, Asshur-ras-arab erguia um bastãodourado e batia uma vez sobre um gongo quependia próximo ao seu trono. Uma notacheia e doce, como um carrilhão distante,ecoou entre as extensões obscuras do templosombreado. Ao longo da avenida escura porentre as colunas, veio um grupo de homens,os quais Kane imaginou serem os nobresdaquela cidade fantástica. Eram homens al-tos, de barbas negras e modos soberbos,vestidos em seda tremeluzente e ouro lampe-jante. E, entre eles, caminhava alguém presopor correntes douradas: um jovem, cuja atit-ude parecia uma mistura de apreensão edesafio.O grupo se ajoelhou diante do rei, curvandosuas cabeças até o chão. A uma palavra dele,

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eles se levantaram, e encararam o inglês e odeus atrás dele. Agora Yamen – com a luz dafogueira reluzindo em sua cabeça raspada edentro de seus olhos malignos, de modo queparecia um demônio barrigudo – gritou al-gum tipo de canto sobrenatural e lançou umpunhado de pó dentro do braseiro. Instant-aneamente, uma fumaça esverdeada se en-capelou para o alto, ocultando parcialmenteo rosto de Kane. O inglês teve ânsias devômito; o cheiro e sabor eram extremamentedesagradáveis. Ele se sentiu embriagado edrogado. Seu cérebro ficou tonto, como o deum bêbado, e ele puxou violentamente suascorrentes. Apenas semi-consciente do quedizia, pragas fora do comum explodiram deseus lábios.Ele estava fracamente consciente de que Ya-men bradou ferozmente diante de suas pra-gas, o sacerdote se curvando para a frenteem atitude de escuta. Então, o pó se apagou,

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a fumaça diminuiu e Kane ficou embriagadoe desnorteado sobre o trono.Yamen se virou em direção ao rei e se curvouprofundamente. Endireitou-se e, com osbraços estendidos, falou num tom sonoro. Orei solenemente repetiu suas palavras e Kaneviu o rosto do nobre prisioneiro ficar branco.Então, seus captores lhe agarraram osbraços, e o grupo se afastou devagar, seuspassos voltando medonhamente pelavastidão sombreada.Como fantasmas silenciosos, os soldadossaíram das sombras e o desacorrentaram.Novamente, eles se agruparam ao redor deKane e o levaram cada vez mais para cima,através dos corredores obscuros, até seuquarto, onde Shem novamente lhe prendeuas correntes à parede. Kane se sentou em seuleito, com a mão no queixo, tentando acharalguma razão em todas as ações bizarras quehavia testemunhado. E, dali a pouco, ele

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percebeu que havia uma agitação exageradanas ruas abaixo.

O inglês olhou, curioso, para fora de suajanela. Grandes fogos brilhavam na praça domercado e silhuetas de homens, curi-osamente destacadas, iam e vinham. Pare-ciam estar se ocupando ao redor de umafigura no centro do mercado, mas se reuniamtão densamente ao redor dela, que ele não

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conseguiu entender nada daquilo. Um cír-culo de soldados rodeava o grupo; a luz dasfogueiras se refletia em suas armaduras. Aoredor deles, gritava uma multidão desorde-nada e turbulenta, berrando e bradando.Súbito, um grito de agonia medonha atraves-sou a algazarra, e os gritos se apagaram porum instante, para serem renovados commais força que antes. A maior parte do clam-or soou como protesto, Kane pensou, em-bora, misturado com ele, houvesse o som deescárnios, uivos zombeteiros e risada di-abólica. E, durante toda a tagarelice, soaramaqueles guinchos horríveis e insuportáveis.Um rápido ruído de pés descalços soou nosladrilhos, e o jovem escravo chamado Sulacorreu para dentro e enfiou a cabeça najanela, ofegando de agitação. A luz dasfogueiras lá de fora brilhava em seu rostocontorcido.- O povo luta com os lanceiros. – ele exclam-ou, esquecendo, em sua agitação, a ordem de

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não conversar com o forasteiro cativo – Amaioria do povo amava muito o jovemPríncipe Bel-lardath... ó, mestre, não haviaperversidade nele! Por que você ordenou queo rei o esfolasse vivo?- Eu?!! – exclamou Kane, surpreendido e as-sombrado – Não falei nada! Nem sequerconheço este príncipe! Nunca o vi.Sula virou a cabeça e olhou diretamente parao rosto de Kane.- Agora sei o que eu havia pensado secreta-mente, mestre. – ele disse na língua Bantuque Kane entendia – Você não é deus, nemporta-voz de um deus, mas um homem comoeu havia visto, antes que os homens de Ninnme capturassem. Outrora, quando eu erapequeno, vi homens fundidos em seu molde,os quais vieram com seus servos nativos emataram nossos guerreiros com armas quefalavam com fogo e trovão.- De fato, sou apenas um homem. – re-spondeu Kane, atordoado – Mas, o que... Eu

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não entendo. O que estão fazendo lá na praçado mercado?- Estão esfolando vivo o Príncipe Bel-lardath– respondeu Sula – Foi dito livremente entreos mercados que o rei e Yamen odiavam opríncipe, que é do sangue de Abdulai. Masele tinha muitos seguidores entre o povo, es-pecialmente entre os Arbii, e nem mesmo orei ousava condená-lo à morte. Mas quandovocê foi trazido para dentro do templo,secretamente, sem que ninguém na cidade osoubesse, Yamen disse que você era porta-voz dos deuses. E disse que Baal havia reve-lado a ele que o Príncipe Bel-lardath haviadespertado a fúria dos deuses. Assim, lhetrouxeram para diante do oráculo dosdeuses...Kane praguejou nauseado. Que coisa in-crível... e horrível... pensar que suas fortesblasfêmias em Inglês haviam condenado umhomem a uma morte horrível. Sim... o astutoYamen havia traduzido suas palavras

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impensadas ao seu próprio modo. E assim, opríncipe, a quem Kane nunca tinha vistoantes, se contorcia diante das facas es-foladoras de seus executores na praça domercado lá embaixo, onde a multidão guin-chava ou escarnecia.

- Sula – ele disse –, como se chama estepovo?- Assírios, mestre. – respondeu o escravo,desatento, olhando com horrorizado fascíniopara a cena pavorosa abaixo.CAPÍTULO TERCEIRO

Nos dias seguintes, Sula encontrava opor-tunidades, de tempos em tempos, para

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conversar com Kane. Ele pouco podia dizerao inglês sobre as origens dos homens deNinn. Só sabia que eles tinham vindo doleste há muito, muito tempo, e construídosua imponente cidade no planalto. Apenas aslendas obscuras de sua tribo falavam dele.Seu povo vivia nas planícies onduladas bemao sul, e havia guerreado contra o povo dacidade por eras incalculáveis. Sua tribo erachamada de Sulas, e eles eram fortes e guer-reiros, ele disse. De tempos em tempos,faziam ataques-surpresa aos ninnitas, e oca-sionalmente os ninnitas retribuíam a in-cursão, mas não se aventuravam freqüente-mente para longe do planalto. Num daquelesataques-surpresa, Sula havia sido capturado.Ultimamente, os ninnitas haviam sido força-dos a irem mais longe, em busca de escravos,quando as tribos evitavam o planalto som-brio, e geração a geração, voltavam cada vezmais para dentro da selva.

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A vida de um escravo em Ninn era dura,disse Sula, e Kane acreditava nele ao ver asmarcas de chicote, cavalete e ferro quente nocorpo do jovem. O passar das eras não haviasuavizado o espírito dos assírios, nem lhesmodificado a violência... uma máxima noLeste antigo.Kane tinha muita curiosidade diante dapresença deste povo antigo nesta terradesconhecida, mas Sula não tinha mais nadapara dizê-lo. Vieram do Leste, há muito,muito tempo – era tudo o que Sula sabia.Agora o inglês sabia por que suas feições elinguagem haviam parecido remotamente fa-miliares. Suas feições eram os traços ori-ginais semitas, agora modificados nos habit-antes modernos da Mesopotâmia, e muitasde suas palavras tinham uma inconfundívelsemelhança com certas palavras e fraseshebraicas.Kane soube, através de Sula, que nem todosos habitantes eram de um só sangue. Eles

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não se miscigenavam com seus escravos; ou,se o faziam, o filho de tal união era instant-aneamente morto. A raça dominante, Sulahavia aprendido, era assíria; mas havia algu-mas pessoas do povo, tanto plebeus quantonobres, que eram chamadas “Arbii”. Eramcomo os assírios, embora um pouco difer-entes. Outro grupo eram os “Kaldii” –feiticeiros e adivinhos, que não eram gran-demente estimados pelos verdadeiros assíri-os. Shem, disse Sula, e a classe dele, eraelamita, e Kane se sobressaltou diante dotermo bíblico. Não havia muitos deles, maseles eram os instrumentos dos sacerdotes –matadores e autores de feitos estranhos e de-sumanos. Sula havia sofrido nas mãos deShem, como todos os outros escravos dotemplo.

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E era neste mesmo Shem em quem Kaneconcentrava os olhos ansiosos. No seu cintopendia a chave dourada que significava liber-dade. Mas, com que lendo a expressão nosolhos frios do inglês, Shem andava com cuid-ado – um lúgubre gigante escuro, com umsombrio rosto entalhado. Ele não chegava aoalcance dos longos braços de aço do cativo,

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exceto quando acompanhado por guardasarmados.Não passou um dia sem que Kane ouvisse obater do açoite, os gritos de escravos agoniz-antes sob o ferro quente, o chicote ou a facade esfolar. Ninn era um verdadeiro Inferno,ele refletiu, governado pelo demoníacoAsshur-ras-arab e seu ardiloso e lascivo sub-alterno, o sacerdote Yamen. O rei tambémera sumo-sacerdote, como haviam sido seusancestrais da realeza na antiga Nínive. EKane percebeu por que eles o chamavam depersa, vendo em si próprio uma semelhançacom aqueles selvagens e antigos homenstribais arianos, que haviam cavalgado desuas montanhas para varrerem o império as-sírio da terra. Certamente, foi fugindodaqueles conquistadores loiros que o povo deNinn havia adentrado a África.

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Os dias passaram, e Kane permaneceu pri-sioneiro na cidade de Ninn. Mas ele não foimais ao templo como oráculo.Um dia, houve confusão na cidade. Kaneouviu as trombetas soando sobre o muro, e orufar de timbales. O aço retiniu nas ruas e osom de homens marchando se ergueu até seuninho. Olhando para fora, além do muro e deum lado a outro do planalto, ele viu umahorda de desnudos homens negros se aproxi-mar da cidade em formação livre. Suaslanças cintilavam ao sol, seus capacetes deplumas de avestruz esvoaçavam na brisa, eseus gritos chegavam levemente até ele.

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Sula entrou correndo, com os olhosbrilhando.- Meu povo! – ele exclamou – Eles vêm con-tra os homens de Ninn. Meu povo é de guer-reiros! Bogaga é chefe de guerra... Katayo é orei. Os chefes de guerra dos Sulas defendemsuas honras pela força de suas mãos, poisqualquer homem forte o bastante para matá-lo com as mãos nuas se torna chefe de guerraem seu lugar. Assim, Bogaga ganhou o cargode chefe, mas demorarão muitos dias antesque alguém o mate, pois ele é o mais fortechefe de guerra deles todos!A janela de Kane fornecia uma visão melhorpor cima do muro do que qualquer outra,pois seu quarto estava no andar mais alto dotemplo de Baal. Yamen veio ao seu quarto,com seus guardas sombrios, Shem e outroelamita sombrio. Estavam fora do alcance deKane, olhando através de uma das janelas.Os enormes portões se abriram: os assíriosestavam marchando para fora, para

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encontrarem seus inimigos. Kane calculouque ali havia 1500 guerreiros armados; aindahavia 300 na cidade, a guarda pessoal do rei,as sentinelas e tropas residenciais dos váriosnobres. A hoste, Kane notou, estava divididaem quatro partes. A central, que consistia em600 homens, enquanto cada flanco ou alaera composto de 300. Os 300 restantesmarchavam em formação compacta atrás dacentral, entre as alas. Como representadopor esta figura:

Os guerreiros estavam armados com azagai-as, espadas, maças e pesados arcos curtos.Em suas costas, havia aljavas eriçadas deflechas.Os ninnitas saíram em marcha para aplanície em perfeita formação e tomaramsuas posições, aparentemente aguardando o

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ataque. Este não demoraria a acontecer.Kane estimou que os atacantes fossem pelomenos 3000 guerreiros, e mesmo àquela dis-tância, ele pôde apreciar sua esplêndida es-tatura e coragem. Mas eles não tinham sis-tema ou formação para a guerra. Era numagrande, irregular e desordenada horda queeles corriam para a frente, para serem en-contrados por uma fulminante chuva de fle-chas que lhes atravessava os escudos de pelede touro, como se fossem feitos de papel.

Os assírios haviam suspendido seus escudosao redor dos pescoços, e estavam puxando eatirando metodicamente, não em rajadas

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regulares, como os arqueiros de Crécy eAzincourt fariam, mas firmemente e sempausa. Com coragem indiferente, os Sulas searremessavam para a frente, para dentro dosdentes da terrível saraivada. Kane viu linhasinteiras se dissiparem, e a planície ficarcoberta de mortos. Mas os invasoresavançavam, desperdiçando suas vidas comoágua. Kane se maravilhava diante da perfeitadisciplina dos soldados semitas, que atraves-savam seus movimentos como se estivessemna área de exercícios. As alas haviam semovido para a frente, suas pontas frontais seunindo ao fim da fila central e apresentandouma frente intacta. Os homens na compan-hia entre as alas mantinham suas posições,imóveis, não tendo ainda tido qualquer par-ticipação na batalha.A horda invasora foi quebrada, cambaleandopara trás sob os disparos mortíferos, contraos quais carne e sangue eram incapazes deresistir. A grande crescente desorganizada

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foi partida em pedaços e os Sulas estavamcaindo desordenadamente, devido aos dis-paros do flanco direito e central, perseguidospelas linhas de tiro das setas dos guerreirosninnitas. Mas, no flanco direito, uma turbaespumante de talvez 400 lutadores selvagenshavia irrompido através da temível barrageme, gritando feito demônios, se chocaram con-tra a ala assíria. Mas, antes que as lanças secolidissem, Kane viu a subdivisão da reservaentre as alas girar e marchar aceleradamentepara apoiar a ala ameaçada. Contra essa du-pla muralha de 600 guerreiros encouraça-dos, o furioso ataque cambaleou, se quebroue oscilou para trás.Espadas lampejavam por entre as lanças, eKane viu os guerreiros nus caindo como trigodiante da foice e as azagaias dos assíriosdizimando-os. Nem todos os cadáveres nosolo sangrento eram dos atacantes, mas ondejazia um assírio morto ou ferido, dez Sulashaviam morrido.

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Agora, os atacantes estavam em fuga totalpela planície, e as fileiras de ferro se moviampara a frente em passo rápido, porém organ-izado, disparando a cada passo, caçando osvencidos de um lado a outro do planalto ebrandindo a adaga nos feridos. Não levaramprisioneiros. Os Sulas não eram bons escra-vos, como Solomon acabava de ver.No quarto de Kane, os espectadores estavamaglomerados nas janelas, com os olhosgrudados de fascínio diante da cenaselvagem e sangrenta. O peito de Sulaofegava de fúria; seus olhos resplandeciamcom a sede de sangue do selvagem, à medidaque os gritos, a matança e as lanças dos ho-mens de sua tribo inflamavam toda a fero-cidade dormente em sua alma de guerreiroCom o grito de uma pantera louca porsangue, ele se lançou às costas de seus amos.Antes que qualquer um pudesse erguer amão, ele se apoderou da adaga no cinto deShem e enfiou-a até o cabo entre as espáduas

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de Yamen. O sacerdote guinchou como umamulher ferida e caiu de joelhos, com osangue jorrando, e os elamitas se aproxim-aram do escravo furioso. Shem tentou lheagarrar o pulso, mas o outro elamita e Sulagiraram rapidamente para um abraço mortí-fero, brandindo suas facas, as quais ficaraminstantaneamente vermelhas até o cabo.Com os olhos resplandecendo e espuma emseus lábios, eles rolaram e se revolveram, tal-hando e apunhalando. Shem, tentando agar-rar o pulso de Sula, foi atingido pelos corposque colidiam, sendo lançado violentamentepara o lado. Ele escorregou e se estateloucontra o leito de Kane.Antes que ele pudesse se mover, o inglêsacorrentado estava sobre ele, como umgrande gato. Finalmente, havia chegado omomento pelo qual esperava! Shem estavaao seu alcance e, quando tentou se erguer, ojoelho de Kane lhe golpeou o peito,quebrando-lhe as costelas. Os dedos de ferro

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de Kane se fecharam na sua... garganta. So-lomon mal percebia os terríveis esforços deanimal selvagem do elamita, que procuravaem vão se livrar daquele aperto. Uma brumavermelha cobria a visão do inglês e, atravésdela, ele viu o horror crescendo nos olhos in-umanos de Shem... viu aqueles olhos sedilatando e ficando injetados de sangue... viua boca escancarar e a língua sair, quando acabeça raspada foi curvada para trás numângulo horrível; logo, o pescoço de Shem sequebrou como um galho grosso, e o corporetesado ficou mole nas mãos de Kane.O inglês se apoderou da chave no cinto domorto e, no instante seguinte, se ergueulivre, sentindo uma onda selvagem de alegriacair sobre ele enquanto flexionava os mem-bros tolhidos. Olhou ao redor do quarto. Ya-men perdia a vida entre golfadas sobre osladrilhos, e Sula e o outro elamita jaziammortos, agarrados aos braços férreos uns dosoutros, literalmente cortados em pedaços.

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Kane correu rapidamente do quarto. Nãotinha nenhum plano, exceto escapar do tem-plo ao qual passara a odiar como um homemodeia o Inferno. Desceu correndo as escadassinuosas, sem se deparar com ninguém.Evidentemente, os criados do templo est-iveram amontoados nos muros, assistindo àbatalha. Mas, no andar mais baixo, ele ficoucara a cara com um dos guardas do templo.O homem ficou estupidamente boquiabertodiante dele... e o punho de Kane se espatifou

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contra seu queixo barbudo, deixando-o in-consciente ao chão. Kane se apoderou de suapesada azagaia. Veio-lhe o pensamento deque talvez as ruas estivessem desertas en-quanto o povo assistia à batalha, e ele podiaatravessar a cidade e escalar o muro, no ladopróximo ao lago.Correu através do templo arborizado porcolunas e para fora do enorme portal. Haviaum grupo disperso de pessoas, que guin-charam e fugiram à visão da estranha figuraque saía do templo sombrio. Kane desceuapressadamente a rua, em direção ao portãooposto, não vendo mais que umas poucaspessoas. Logo, ao virar para uma rua lateral,pensando em cortar caminho, ele ouviu umrugido trovejante.À sua frente, ele viu quatro escravos car-regando uma liteira ricamente ornamentada,como as que os nobres usam para passear. Oocupante era uma jovem, cujas roupas en-feitadas de jóias mostravam sua importância

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e riqueza. E agora, ao redor da esquina,vinha rugindo uma grande forma castanho-amarelada. Um leão, solto nas ruas dacidade!Os escravos largaram a liteira e fugiram,guinchando, enquanto as pessoas no alto dascasas gritavam. A garota deu um só grito, searrastando para cima no próprio caminho domonstro que atacava. Ela ficou encarando-o,congelada de terror.Solomon Kane, ao primeiro urro da fera, ex-perimentou uma feroz satisfação. Ninn setornara tão odiável para ele, que opensamento de um animal selvagem, ru-gindo por entre suas ruas e devorando seuscruéis habitantes, tinha dado ao puritanouma indiscutível satisfação. Mas agora, aover a figura lastimosa da jovem encarando odevorador de homens, ele sentiu um tor-mento de piedade por ela, e agiu.Quando o leão se lançou no ar, Kane ar-remessou a azagaia com toda a força de sua

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constituição férrea. Ela atingiu bem atrás dagrande espádua, trespassando o corpocastanho-amarelado. Um urro ensurdecedorirrompeu da fera, que girou a uma grandedistância para o lado, como se houvesse de-parado com uma parede sólida; e, ao invésde garras dilacerantes, foi o pesado ombropeludo que bateu na figura frágil de suavítima, arremessando-a para o lado en-quanto a grande fera se espatifava na terra.

Kane, esquecido de sua própria situação, selançou para a frente e ergueu a garota,

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tentando verificar se ela estava ferida. Estafoi uma tarefa fácil, vez que a roupa dela, as-sim como a da maioria das mulheres nobresassírias, era tão escassa a ponto de consistirmais em ornamentos que em revestimento.Kane se certificou de que ela estava apenasmachucada e muito assustada.Ele ajudou-a a se levantar, ciente de que umamultidão de espectadores curiosos o cercava.Passou por entre eles, que não fizeramqualquer tentativa de pará-lo. Súbito, um sa-cerdote apareceu e gritou algo, apontandopara ele. O povo instantaneamente recuou,mas meia dúzia de soldados em armadura seadiantou, com as azagaias prontas. Kane en-carou o sacerdote, a fúria lhe fervendo naalma. Estava pronto para saltar no meiodeles e fazer o maior estrago possível, com asmãos nuas, antes de morrer... quando decima das pedras da rua, soou o caminhar dehomens em marcha. Um grupo de guerreiros

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apareceu, com as lanças vermelhas pela lutarecente.A garota gritou e correu para a frente, paralançar os braços ao redor do pescoço robustodo jovem oficial no comando. Seguiu-se umrápido ardor de conversa, a qual Kane natur-almente não conseguiu entender. Então, ooficial falou laconicamente com os guardas,os quais se afastaram. Ele avançou emdireção a Kane, com as mãos vazias estendi-das e um sorriso nos lábios.Sua atitude era extremamente amigável, e oinglês percebeu que ele estava tentando ex-pressar sua gratidão pelo salvamento da ga-rota, a qual era sem dúvida sua irmã ounamorada. O sacerdote espumou e prague-jou, mas o jovem nobre lhe respondeu empoucas palavras e fez sinais para Kaneacompanhá-lo. Então, quando o inglês hesit-ou, desconfiado, ele puxou a própria espadae a ofereceu para Kane, com o cabo emdireção a este. Kane pegou a arma; poderia

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ser uma forma de cortesia tê-la recusado,mas Kane estava pouco disposto a arriscar-se, e sentiu muito mais seguro com umaarma na mão.

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As Colinas dos Mortos

1) Vodu

Os pequenos galhos que N’Longa lançouao fogo se quebraram e crepitaram. N’Longa,feiticeiro vodu da Costa dos Escravos, eramuito velho. Sua estrutura encarquilhada eretorcida era curvada e frágil, seu rosto mar-cado por centenas de rugas. A luz vermelhada fogueira brilhava nos ossos, de dedos demãos humanas, que compunham seu colar.

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O outro era um inglês, e seu nome era So-lomon Kane. Ele era alto, de ombros largos, evestia roupas negras e fechadas, a vestimentado puritano. Seu implume chapéu desalin-hado estava puxado sobre sua fronte pesada,sombreando seu rosto misteriosamentepálido. Seus frios olhos profundos med-itavam na luz do fogo.

- Você vem novamente, irmão. – disse ofeiticeiro em voz monótona, falando no jar-gão que era usado como língua comum entrenegros e brancos na Costa Oeste – Muitas

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luas brilharam e morreram, desde que fize-mos conversação de sangue. Você vai ao solpoente, mas você volta!

- Sim. – a voz de Kane era profunda equase fantasmagórica – É uma terra sombriaa sua, N’Longa; uma terra vermelha, ob-struída com a negra escuridão do horror e assombras sangrentas da morte. No entanto,eu retornei.

N’Longa atiçou a fogueira, sem dizernada, e após uma pausa, Kane continuou:

- Lá, na imensidão desconhecida – seulongo dedo apontou a Selva silenciosa, quemeditava além da luz do fogo –, lá existemistério, aventura e terror sem nome. Umavez, eu desafiei a selva e ela quase reclamou

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meus ossos. Alguma coisa entrou no meusangue, alguma coisa adentrou minha alma,como um sussurro de pecado inominável. Aselva! Escura e pensativa... a muitas léguasdo salgado mar azul, ela havia me puxado, eao amanhecer eu busco o coração dela.Talvez eu encontre curiosa aventura... talvezmeu destino me encontre. Mas é melhor amorte do que o eterno anseio, o fogo quevem queimando minhas veias com amargodesejo.

- Ela chamar. – sussurrou N’Longa – Ànoite, ela se enrosca feito serpente ao redorde minha cabana e me sussurra coisas es-tranhas. Sim! A selva chamar. Nós serirmãos de sangue, você e eu. Mim, N’Longa,poderoso artífice de mágica sem nome! Vocêvai à selva como vão todos os homens queouvem seu chamado. Talvez você viva, ou

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mais provavelmente morra. Você acreditaem meus feitiços?

- Eu não os compreendo – disse Kanesombriamente –, mas eu já lhe vi enviar suaalma, de seu corpo para um cadáver.

- Sim! Mim, N’Longa, sacerdote do DeusNegro. Agora observe, eu fazer mágica.

Kane encarou o velho feiticeiro vodu quese curvava sobre a fogueira, fazendo movi-mentos alinhados com as mãos e murmur-ando encantamentos. Kane observava, e eleparecia estar ficando sonolento. Uma brumaondulava diante dele, e através dela, ele viuvagamente a forma de N’Longa, desenhadade forma escura contra as chamas. Então,desapareceu.

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Kane acordou sobressaltado, com a mãose precipitando em direção à pistola em seucinto. N’Longa sorriu para ele através dofogo, e houve um cheiro de início de aman-hecer no ar. O feiticeiro pegou um longobastão de madeira negra em suas mãos. Estebastão estava entalhado de forma estranha, euma das extremidades se adelgaçava numaponta afiada.

- Isto, bastão vodu. – disse N’Longa,colocando-o na mão do inglês – Onde suaspistolas e sua longa faca falharem, isto salvarvocê. Quando você me quiser, ponha isto em

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seu peito, entrelace suas mãos nele e durma.Eu chegar a você em seus sonhos.

Kane pesou o objeto em sua mão, alta-mente desconfiado de magia negra. Ele nãoera pesado, mas parecia tão duro quantoferro. Uma boa arma, pelo menos, percebeuele. A aurora estava justamente começando ase aproximar da floresta e do rio.

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2) Olhos Vermelhos

Solomon Kane ergueu o mosquete de seuombro e deixou a coronha cair por terra. Osilêncio o cercava como um nevoeiro. O rostoriscado de Kane e sua roupa esfarrapadamostravam o resultado de longa viagem pelomatagal. Ele olhou os arredores.

A alguma distância atrás dele, aparecia aselva verde e enfileirada. Pouca distância àsua frente, se erguia a primeira de uma ca-deia de nuas colinas sombrias, alastradas dematacões, tremeluzindo sob o impiedoso cal-or do sol. Entre as colinas e a selva, haviauma larga extensão de capim áspero e irreg-ular, pontilhado aqui e ali por moitasespinhosas.

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Um silêncio completo pairava pela região.Os únicos sinais de vida eram uns poucosabutres, batendo pesadamente as asas at-ravés das colinas distantes. Pelos últimospoucos dias, Kane foi informado sobre ocrescente número destes pássaros repug-nantes. O sol tremeluzia a oeste, mas seu cal-or não fora abrandado de forma alguma.

Arrastando seu mosquete, ele começou aavançar lentamente. Ele não tinha objetivoem vista. Esta era uma região totalmentedesconhecida, e uma direção era tão boaquanto outra. Várias semanas atrás, ele haviamergulhado na selva com a convicção nas-cida da coragem e da ignorância. Tendo, poralgum milagre, sobrevivido nas primeiraspoucas semanas, ele estava ficando duro efortalecido, capaz de defender-se dos som-brios habitantes com a sua rapidez e ousadia.

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À medida que avançava, ele percebia orastro ocasional de um leão, mas parecia nãohaver animais nas pastagens – nenhumque deixasse algum tipo de pista. Os abutrespareciam negras imagens de ninhadas em al-gumas árvores raquíticas, e subitamente eleviu uma atividade entre eles a uma certa dis-tância. Vários dos pássaros escuros giravamem torno de uma massa de capim alto, mer-gulhando e depois se erguendo novamente.Algum animal de rapina estava defendendosua caça contra eles, pensou Kane, e ele sesurpreendeu com a falta dos rosnados e ru-gidos, que normalmente acompanham taiscenas. Sua curiosidade foi despertada, e elevoltou seus passos naquela direção.

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Por fim, abrindo caminho pela grama quese erguia ao redor de seus ombros, ele viu,como num corredor murado por exuberanteslâminas ondulantes, uma visão medonha. Ocadáver de um homem negro jaziadebruçado, e, enquanto o inglês olhava, umagrande cobra escura se ergueu e deslizoupara dentro do capim, se movendo tão rapi-damente que Kane foi incapaz de distinguirsua natureza. Mas havia uma estranha in-sinuação humana acerca dela.

Kane permaneceu sobre o corpo, per-cebendo que, enquanto os membros jaziamtortos como se quebrados, a carne não estavadilacerada como o faria um leão ou um leo-pardo. Ele olhou para o alto, para os rodopi-antes abutres, e ficou espantado em ver vári-os deles deslizando para perto da terra,seguindo uma ondulação do capim que mar-cava o vôo da coisa que presumivelmente

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matara o negro. Kane perguntou a si mesmoque coisa os pássaros carniceiros, que só co-miam mortos, estariam caçando pelas pasta-gens. Mas a África era cheia de mistériosnunca explicados.

Kane encolheu os ombros e ergueu nova-mente o mosquete. Aventuras ele havia tidoem abundância, desde que deixara N’Longahá algumas luas, mas aquela paranóia semnome ainda insistia e o levava cada vez maisadiante, cada vez mais para dentro daquelescaminhos sem rastros. Kane não conseguiaanalisar este chamado; ele o atribuiria a

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Satã, que atrai os homens para a destruição.Mas não era mais do que o turbulento e in-cansável espírito do aventureiro, do nômade– o mesmo impulso que levou as caravanasciganas ao redor do mundo, que dirigiu asgaleras vikings sobre mares desconhecidos eque guia os vôos dos gansos selvagens.

Kane suspirou. Aqui, nesta terra árida,parecia não haver comida nem água, mas elehavia se cansado da morte do úmido e ex-uberante veneno da selva espessa. Atémesmo uma savana de colinas nuas erapreferível, ao menos por um tempo. Ele ol-hou para elas, que meditavam longamentesob o sol, e começou a avançar novamente.

Ele tinha o bastão mágico de N’Longa emsua mão esquerda e, embora sua consciênciao incomodasse por manter uma coisa denatureza aparentemente tão diabólica, elenunca foi capaz de se decidir em jogá-la fora.

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Agora, enquanto ele ia em direção às coli-nas, uma súbita agitação começou no capimalto à sua frente, o qual era, em algunslugares, mais alto que um homem. Um gritoagudo e alto soou, e a seus pés um rugido defazer a terra tremer. O capim se abriu, e umafigura delgada veio correndo em sua direção,como um pequeno feixe de palha sopradopelo vento – uma garota de pele marrom,vestida apenas com uma peça de roupa emforma de saia. Atrás dela, alguns metros dis-tante mas alcançando-a rapidamente, vinhaum enorme leão.

A garota caiu aos pés de Kane com umpranto e um soluço, e agarrou-se aostornozelos dele. O inglês baixou o bastãovodu, ergueu seu mosquete e olhou fixa-mente para o feroz rosto felino que se aprox-imava dele a cada instante. Crash! A garotasoltou um único grito e caiu subitamente

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sobre o próprio rosto. O enorme gato deu umpulo alto e selvagem, para cair e ficar semmovimento.

Kane recarregou rapidamente a arma,antes de olhar para a silhueta a seus pés. Agarota jazia tão imóvel quanto o leão que eleacabara de matar, mas um rápido examemostrou que ela havia apenas desmaiado.

Ele banhou-lhe o rosto com a água de seucantil, e imediatamente ela abriu os olhos esoergueu-se. O medo inundou sua face, en-quanto olhava seu salvador, e ela deixou dese levantar.

Kane estendeu uma comedida mão, e elase encolheu, trêmula. O rugido de seu pesadomosquete era suficiente para amedrontarqualquer nativo que jamais vira antes umhomem branco, pensou Kane.

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A garota era esbelta e bem-feita de corpo.Seu nariz era reto e fino. Ela tinha uma corprofundamente marrom, talvez com umaforte descendência berbere.

Kane falou com ela num dialeto do rio,uma linguagem simples que ele aprenderadurante suas perambulações, e ela re-spondeu hesitante. A tribo do interiorcomercializava escravos e marfim com opovo do rio, e estava bastante familiarizadacom o jargão deles.

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- Minha aldeia é ali. – respondeu ela àpergunta de Kane, apontando para a selvameridional com um esbelto braço roliço –Meu nome é Zunna. Minha mãe me bateupor eu ter quebrado uma caldeira, e eu fugiporque fiquei com raiva. Estou com medo;me deixe voltar para minha mãe!

- Você pode ir – disse Kane –, mas eu voute levar, menina. Imagine se outro leãoaparece? Você foi muito tola em fugir.

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Ela choramingou um pouco.

- Você não é um deus?

- Não, Zunna. Sou apenas um homem,embora a cor de minha pele não seja como asua. Leve-me agora à sua aldeia.

Ela se ergueu hesitante, olhando-oapreensivamente através do selvagememaranhado do cabelo. Para Kane, ela pare-cia um jovem animal assustado. Ela foi nafrente, e Kane seguiu. Ela mostrou que suavila ficava a sudeste, e o caminho deles os le-vou para bem perto das colinas. O solcomeçou a se pôr, e o rugido dos leões ecoousobre o capim. Kane olhou para o céuocidental; em campo aberto, não havia lugaronde ser pego pela noite. Ele olhou para ascolinas, e viu que elas estavam a poucas cen-tenas de metros. Ele viu o que parecia seruma caverna.

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- Zunna – ele disse hesitante –, nósnunca alcançaremos sua aldeia antes do cairda noite. Se ficarmos aqui, os leões irão nospegar. Lá longe, tem uma caverna onde po-demos passar a noite...

Ela se encolheu e tremeu.

- Nas colinas, não, senhor! – elachoramingou – Melhor enfrentar os leões!

- Bobagem! – seu tom era impaciente; elejá havia se cansado das superstições dos nat-ivos – Vamos passar a noite naquela caverna.

Ela não argumentou mais, e o seguiu.Eles subiram uma curta inclinação echegaram à entrada da caverna: uma coisapequena, com lados de rocha sólida e umchão de areia funda.

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- Arranje um pouco de capim seco, Zunna– ordenou Kane, erguendo seu mosquetecontra a parede na boca da caverna –, masnão vá muito longe, e preste atenção aosleões. Farei uma fogueira aqui, a qual nosmanterá a salvo de feras esta noite. Traga umpouco de capim e gravetos que você possaencontrar, como uma boa menina, e iremoscomer. Eu tenho carne seca em minha bolsa,e água também.

Ela o olhou longa e estranhamente, e en-tão deu meia-volta sem dizer uma só palavra.Kane arrancou a grama próxima, notando oquanto era queimada e quebradiça de sol e,amontoando-a, bateu pederneira e aço. Ofogo acendeu e consumiu o amontoado numinstante. Ele estava imaginando quanto cap-im ele teria que pegar para manter umafogueira por toda a noite, quando percebeuque tinha visitas.

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Kane estava acostumado a visões grotes-cas, mas à primeira vista, ele estremeceu eum leve frio desceu por sua espinha. Doishomens estavam silenciosamente diantedele. Eram altos, magros e estavam total-mente nus. Suas peles eram negras epoeirentas, coloridas com um matiz acin-zentado, como o da morte. Seus rostos eramdiferentes de qualquer um que ele já tivessevisto. As testas eram altas e estreitas, os nar-izes eram grandes e semelhantes a focinhos;seus olhos eram inumanamente grandes evermelhos. Parecia a Kane que só aqueles ol-hos brilhantes tinham vida.

Ele dirigiu-lhes a palavra, mas eles nãoresponderam. Ele os convidou para comer-em, com um gesto de sua mão, e eles silen-ciosamente se acocoraram perto da boca dacaverna, o mais longe possível das brasasmoribundas da fogueira.

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Kane se virou para sua bolsa e começou atirar os pedaços de carne seca que ele trazia.Ele olhou para seus convidados silenciosos:parecia-lhe que eles estavam olhando maispara as brasas incandescentes de suafogueira do que para ele.

O sol estava quase afundando no hori-zonte ocidental. Um brilho vermelho e ferozse espalhava pelo capinzal, como um ondu-lante mar de sangue. Kane se ajoelhou sobrea bolsa e, olhando para o alto, viu Zunnachegar contornando a saliência da colina,com os braços cheios de capim e galhossecos.

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Enquanto ele observava, os olhos dela seacenderam; os galhos caíram-lhe dos braçose seu grito cortou o silêncio, carregado porterrível advertência. Kane girou sobre ojoelho. Duas grandes formas avultaramsobre ele, enquanto ele se erguia com o ágilmovimento de um leopardo saltando. Obastão mágico estava em sua mão, e ele o im-peliu através do corpo do adversário maispróximo, com uma força que fez a ponta afi-ada sobressair entre os ombros do homem.Então, os longos braços magros do outro sefecharam ao seu redor e os dois caíramjuntos.

As unhas em forma de garra do estranhopuxavam-lhe violentamente o rosto, com oshediondos olhos vermelhos encarandoameaçadoramente os dele, enquanto Kane seretorcia; e, desviando- se de suas garras comum braço, puxou uma pistola. Ele pressionou

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a boca da arma contra o lado do selvagem epuxou o gatilho. Com o tiro abafado, o corpodo estranho estremeceu ao impacto dabala, mas os lábios grossos apenas se abri-ram num horrível sorriso largo.

Um braço longo deslizou sob os ombrosde Kane, e a outra mão lhe agarrou o cabelo.O inglês sentiu a cabeça sendo irresistivel-mente forçada para trás. Ele agarrou ospulsos do outro com ambas as mãos, mas acarne sob os dedos furiosos era dura comomadeira. O cérebro de Kane estava ficandotonto; seu pescoço parecia prestes a quebrarsob um pouco mais de pressão. Ele arremes-sou o corpo para trás, com um esforço vul-cânico, desfazendo o abraço mortal. O outroestava sobre ele, e as garras estavam aper-tando novamente. Kane encontrou e ergueua pistola vazia, e sentiu o crânio do homemceder como uma concha, enquanto ele desciao longo cano com toda a sua força. E, mais

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uma vez, os lábios contorcidos se abriram emmedonha zombaria.

E agora, um quase pânico tomava contade Kane. Que tipo de homem era este, queainda lhe ameaçava a vida com dedos cort-antes, após ter sido baleado e mortalmenteespancado? Não era homem, com certeza,mas um dos filhos de Satã! Com estepensamento, Kane se contorceu explosiva-mente, e os combatentes engalfinhadoscaíram no chão, sobre as cinzas ardentes naentrada da caverna. Kane mal sentiu o calor,mas a boca de seu rival se abriu, desta vez

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em aparente agonia. Os terríveis dedosafrouxaram seu aperto, e Kane se libertou.

A criatura selvagem, com seu crânio des-pedaçado, estava se erguendo sobre uma dasmãos e um dos joelhos, quando Kane invest-iu, voltando ao ataque como um lobo magrocontra um bisão faminto. Ele pulou de umlado, indo parar bem nas costas vigorosas,com seus braços de aço procurando e encon-trando um abraço mortal; e, quando os doiscaíram juntos ao chão, ele quebrou o pescoçodo outro, de modo que o hediondo rostomorto ficou olhando para trás sobre um

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ombro. O corpo jazeu imóvel, mas para Kaneparecia que ele não estava morto, mesmonaquele momento, pois os olhos vermelhosainda queimavam com sua luz medonha.

O inglês se virou, para ver a garota seagachando contra a parede da caverna. Eleolhou para o bastão: jazia numa pilha depoeira, em meio à qual havia uns poucos os-sos esfarelados. Ele arregalou os olhos, como cérebro vacilando. Então, em um únicopasso, apanhou o bastão vodu e se voltoupara o homem caído. Seu rosto estavaimóvel em linhas sombrias, enquanto ele o

erguia; e então, ele dirigiu o bastão atravésdo peito do selvagem. E, diante de seus ol-hos, o enorme corpo se esmigalhou, se dis-solvendo em pó, enquanto ele observava,horrorizado, acontecer com o outro o mesmoque com o primeiro oponente, que se esmig-alhara quando Kane havia pela primeira vezenfiado o bastão.

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3) Mágica de Sonho

- Grande Deus! – sussurrou Kane – Oshomens estavam mortos! Vampiros! Isto é,sem dúvida, obra de Satã.

Zunna rastejou de joelhos e se agarrouali.

- São mortos que caminham, senhor. –ela chorou – Eu deveria ter lhe avisado.

- Por que eles não pularam sobre minhascostas, logo que chegaram?

– ele perguntou.

- Eles temiam o fogo. Estavam esperandoas brasas se apagarem completamente.

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- De onde vieram?

- Das colinas. Centenas daquele tipo seaglomeraram entre os matacões e cavernasdaquelas colinas, e vivem da vida humana,dos homens que eles vão matar, devorando-lhes as almas enquanto elas abandonam oscorpos trêmulos. Sim, eles são sugadores dealmas!

“Senhor, no meio daquelas colinas háuma silenciosa cidade de pedra; e, em tem-pos antigos, na época de meus ancestrais,aquela gente viveu lá. Eles eram humanos,mas não como nós, e por isso governaram es-ta terra por eras e eras. Os ancestrais de meupovo guerreavam contra eles e matarammuitos, e seus bruxos deixaram todos osmortos iguais a estes. Por fim, todosmorreram.

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“E, durante eras, eles atormentaram astribos da selva, espreitando do alto das coli-nas à meia-noite e ao pôr-do-sol, para as-sombrar os caminhos da selva, e matar ematar. Homens e feras fogem deles, e só ofogo os destrói”.

- Eis o que irá destruí-los. – disse Kanesombriamente, erguendo o bastão vodu –Magia negra deve lutar contra magia negra.Eu não sei que encanto N’Longa pôs aqui,mas...

- Você é um deus. – disse Zunna em vozalta – Homem nenhum conseguiria vencer

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dois dos mortos que caminham. Senhor, vo-cê não pode tirar esta maldição de minhatribo? Nós não temos para onde fugir, e osmonstros nos matam à vontade, pegandocaminhantes que estejam fora dos muros daaldeia. A morte está nesta terra, e morremossem ajuda!

No interior de Kane, se movia o espíritodo cruzado, o fogo do entusiasta – o fanáticoque dedica sua vida a combater os poderesda escuridão.

- Vamos comer. – disse ele – Depois,faremos uma grande fogueira na entrada da

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caverna. O fogo que afasta feras tambémafastará demônios.

Mais tarde, Kane se sentou bem no meioda caverna, com o queixo apoiado no punhofechado e os olhos fitando despercebida-mente a fogueira. Atrás, nas sombras, Zunnao observava com admiração.

- Deus dos Exércitos – murmurou Kane–, me ajude! Minha mão é a que deve tirar aantiga maldição desta terra escura. Quemsou eu para enfrentar estes demônios mor-tos, que não sucumbem às armas dos mor-tais? O fogo irá destruí-los, um pescoçoquebrado os deixa indefesos, o bastão voduatravessado neles os transforma em pó...mas, de que adianta? Como irei triunfarsobre as centenas, que assombram estas coli-nas, e para os quais a essência da vida hu-mana é Vida? Não há, como diz Zunna, guer-reiros que venham contra eles no passado, só

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para encontrá-los fugidos às suas cidades demuros altos, onde nenhum homem podeenfrentá-los?

A noite foi passando. Zunna dormiu, como rosto apoiado em seu roliço braço juvenil.O rugido dos leões sacudia as colinas, e Kanecontinuava sentado, olhando pensativo parao fogo. Lá fora, a noite estava viva, com sus-surros, farfalhares e suaves passos furtivos.E, às vezes, Kane, despertando de suas med-itações, parecia captar o brilho de grandesolhos vermelhos além da luz trêmula dafogueira.

A aurora cinza estava se aproximando daspastagens, quando Kane sacudiu Zunna paraacordá-la.

- Deus tenha piedade de minha alma, porsondar magia bárbara – ele disse –, mastalvez o mal deva ser combatido com o mal.

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Eu lhe estendo o fogo, e me avise se aconte-cer alguma coisa adiante.

Kane se deitou de costas no chão arenoso,e pôs o bastão vodu sobre o peito, cruzandoas mãos sobre ele. Caiu no sono instantanea-mente. E, dormindo, ele sonhou. Em seusono, ele parecia andar numa névoa espessa,e neste nevoeiro ele encontrou N’Longa. Estefalou, e as palavras eram claras e vívidas, in-cutidas tão profundamente em sua consciên-cia, que pareciam atravessar a brecha entre osono e a vigília.

- Leve esta garota à sua aldeia, logo apóso erguer do sol, quando os leões tiverem idopara suas tocas – disse N’Longa –, e mande-a trazer o amante dela para esta caverna. Lá,faça-o se deitar como que para dormir, agar-rando o bastão vodu.

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O sonho terminou e Kane acordou subita-mente, surpreendido. Quão estranha e vívidafora a visão, e quão estranho ouvir N’Longafalando em Inglês sem dificuldade! Kane en-colheu os ombros. Ele sabia que N’Longaafirmava ter o poder de enviar seu espíritoatravés do espaço, e ele próprio já tinha vistoo feiticeiro vodu animar o cadáver de umhomem. Entretanto...

- Zunna. – disse Kane, deixando o prob-lema de lado – Eu irei com você até amargem da selva, se preciso, e você deveprosseguir até sua aldeia, e voltar para estacaverna com seu amante.

- Kran? – ela perguntou singelamente.

- Não importa o nome. Coma, e depoisvamos.

Mais uma vez, o sol se inclinava paraoeste. Kane sentou-se na caverna, esperando.

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Ele vira a garota ir em segurança até o localonde a selva se misturava com as pastagens,e embora sua consciência lhe ardesse com opensamento sobre os perigos que talvezpudessem fazer frente a ela, ele enviou-a soz-inha e retornou à caverna. Ele agora estavasentado, se perguntando se não seria con-denado ao fogo eterno por trabalhar com amagia de um feiticeiro negro, irmão desangue ou não.

Passos leves soaram, e enquanto Kanebuscava o mosquete, Zunna entrou, acom-panhada por um jovem alto e bem propor-cionado, cuja pele marrom mostrava que eleera da mesma raça que a garota.

Seus suaves olhos sonhadores estavamfixos em Kane, numa espécie de temerosaadoração. Evidentemente, a garota não haviaatenuado esta nova glória divina, em seurelato.

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Ele mandou o jovem se deitar, enquantocolocava o bastão vodu nas mãos do mesmo.Zunna se agachou a um lado, com os olhosbem abertos. Kane deu um passo para trás,meio envergonhado com esta pantomima ese perguntando o que resultaria disso, se res-ultasse. Então, para seu horror, o jovem ar-fou e ficou rígido!

Zunna gritou, levantando-se de um sópulo:

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- Você matou Kran! – ela guinchou,voando em direção ao inglês, que havia per-dido subitamente a fala.

Então, ela parou repentinamente, tremu-lou, passou molemente a mão pela testa eescorregou pra baixo, para deitar-se com osbraços ao redor do corpo inerte do amante.

E este corpo subitamente se moveu, fezmovimentos a esmo com as mãos e os pés, eentão se sentou, soltando-se dos braços dagarota ainda desacordada.

Kran ergueu os olhos para Kane, e sorriu– um sorriso astuto e esperto, que, de algummodo, não combinava com aquele rosto.Kane estremeceu. Aqueles olhos suaveshaviam mudado de expressão, e agora es-tavam duros e cintilantes como os de umaserpente – os olhos de N’Longa!

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- Ai ya. – disse Kran, numa voz grotesca-mente familiar – Irmão de sangue, você nãoter saudação para N’Longa?

Kane estava quieto. Sua pele se arrepiavaem rancor a si mesmo. Kran se ergueu eestirou os braços de forma não-familiar,como se seus membros fossem novos paraele. Ele deu um tapa de aprovação no própriopeito.

- Mim, N’Longa! – ele disse, com o velhomodo fanfarrão – Poderoso homem de ju-ju!Irmão de sangue, não me conhecer?

- Você é Satã. – disse sinceramente Kane– Você é Kran, ou você é N’Longa?

- Mim, N’Longa. – assegurou o outro –Meu corpo dorme em cabana Ju-ju na Costa,muito longe daqui. Eu tomar emprestadocorpo de Kran por algum tempo. Meu

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espírito viaja marcha de dez dias num in-stante; marcha de vinte dias no mesmotempo. Meu espírito sair de meu corpo efazer sair o de Kran.

- E Kran está morto?

- Não, ele não está morto. Eu mandartemporariamente espírito dele para terrasombria. Mandar espírito da garota também,para mantê- lo acompanhado.

- Isto é trabalho do Demônio – disseKane com franqueza –, mas eu já lhe vifazendo coisas mais sórdidas. Devo lhechamar de N’Longa ou Kran?

- Kran... hah! Mim, N’Longa... corpos sãocomo roupas. Mim, N’Longa, aqui, agora! –ele bateu no peito – Kran está vivo por aqui,então ele ser Kran e eu ser N’Longa, domesmo jeito que antes. Kran não vive por

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agora; N’Longa vive por este corpo ca-marada. Irmão de sangue, eu sou N’Longa!

Kane inclinou a cabeça. Esta era mesmouma terra de horror e bruxaria; qualquercoisa era possível, inclusive que a voz fina deN’Longa tivesse que falar para ele, vinda dopeito amplo de Kran, e os olhos serpentinosde N’Longa tivessem que mirá-lo, semicerra-dos, do belo rosto jovem de Kran.

- Esta terra eu conheço há muito tempo.– disse N’Longa, tocando no assunto –Poderosa ju-ju, estas pessoas mortas! Não épreciso desperdiçar um tempo amigo... Eu

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sei... eu falar com você em sonhos. Meuirmão de sangue querer eliminar estes ca-maradas mortos, hein?

- É uma coisa que contraria a natureza. –disse Kane sombriamente – Em minha terra,eles são chamados de vampiros. Eu nuncaesperei atacar de surpresa uma nação inteiradeles.

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4) A Cidade Silenciosa

- Agora, nós encontrar a cidade de pedra.– disse N’Longa.

- É? Por que não envia seu fantasma, paramatar estes vampiros? – perguntou Kanefrivolamente.

- Fantasma tem que ter um corpo ca-marada para trabalhar. – respondeuN’Longa – Agora durma. Amanhã, nóscomeçamos.

O sol havia se posto; o fogo ardia e trem-ulava na boca da caverna. Kane olhou rapi-damente para a garota inerte, que estava

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deitada onde havia caído, e se preparou paradormir.

- Me acorde à meia-noite – ele avisou –, eentão montarei guarda até o amanhecer.

Mas, quando N’Longa finalmentesacudiu-lhe o braço, Kane acordou para ver aprimeira luz do amanhecer avermelhando aterra.

- Hora de começarmos. – disse ofeiticeiro.

- Mas, e a garota... você tem certeza queestá viva?

- Ela vive, irmão de sangue.

- Então, por Deus, nós não podemosdeixá-la aqui, à mercê de qualquer demônio

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vagabundo que possa por acaso encontrá-la.Ou algum leão que possa...

- Nenhum leão chegar. Cheiro de vampiroainda demorar, misturado com cheiro hu-mano. Um camarada leão não gostar decheiro humano, e temer os mortos que an-dam. Nenhum animal chegar, e – levantandoo bastão vodu e deitando-o através da en-trada da caverna – nenhum homem mortochegar aqui agora.

Kane o olhou sombriamente e sementusiasmo.

- Como essa vara irá protegê-la?

- Aquilo, poderosa ju-ju. – disse N’Longa– Você ver como camarada vampiro vira pójunto daquele bastão! Nenhum vampiro seatrever a tocar ou chegar perto dele. Eu o deipara você, porque fora das Colinas dos

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Vampiros, um camarada homem às vezes en-contrar um cadáver andando em selvaquando sombras ficar negras. Nem todos osmortos que andam estar aqui. E todos têmde sugar Vida dos homens... senão apodre-cem como madeira morta.

- Então, faça vários bastões como este, earme o povo com eles.

- Não poder fazer! – a cabeça de N’Longase sacudiu violentamente – Aquela vara ju-juser magia poderosa! Velha, velha! Nenhumhomem vivo hoje pode dizer que idade teraquele bastão ju-ju. Eu fazer meu irmão desangue dormir, e fazer magia com ela paraprotegê-lo, naquela hora que nós conversarna aldeia da Costa. Hoje, nós explorar e cor-rer, não precisa dela. Deixe-a aqui, para pro-teger garota.

Kane encolheu os ombros e seguiu ofeiticeiro, após olhar para trás, em direção à

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silhueta imóvel que estava deitada na cav-erna. Ele jamais concordaria em abandoná-la de forma tão irrefletida, se não acreditassedo fundo do coração que ela estava morta.Ele a havia tocado, e sua carne estava fria.

Eles subiram entre as colinas áridas, en-quanto o sol nascia. Quanto mais subiam,mais a elevação argilosa ficava íngreme, ser-penteando a passagem deles em ravinas eentre grandes matacões. As colinas se esbur-acavam em cavernas escuras e proibidas, epor estas eles passaram cautelosamente, e apele de Kane se arrepiou, enquanto elepensava nos pavorosos ocupantes desseslugares. Então, N’Longa disse:

- Eles vampiros, eles dormir em cavernaso dia todo até o pôr-do-sol. Elas cavernas,elas serem cheias de camaradas mortos.

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O sol se erguia mais alto, retirando-separa os declives nus com um calor intoler-ável. O silêncio meditava como um monstromaligno sobre a terra. Eles não tinham vistonada, mas Kane seria capaz de jurar que àsvezes uma sombra negra era levada pelovento, atrás de um bloco de pedra, enquantoeles se aproximavam.

- Eles vampiros, eles estar escondidos dedia. – disse N’Longa, com uma risada baixa– Eles estar com medo de um camaradaabutre! Não um abutre tolo! Eles conhecermorte quando a vêem! Eles saltar sobre ca-marada homem, e rasgar e comer se ele est-iver deitado ou andando!

Um forte tremor se apossou de seucompanheiro.

- Grande Deus! – gritou Kane, batendocom o chapéu na coxa – Não há fim para os

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horrores nesta terra hedionda? De fato, estaterra é dedicada aos poderes das trevas!

Os olhos de Kane arderam com uma luzperigosa. O terrível calor, a solidão e o con-hecimento dos horrores que espreitavam es-tavam abalando até mesmo seus nervos deaço.

- Mantenha amigo chapéu, irmão desangue. – avisou N’Longa, com um pequenogorgulhar de brincadeira – Aquele camaradasol, ele matar você, melhor tomar cuidado.

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Kane ergueu o mosquete que insistira emtrazer, e não respondeu. Eles finalmentesubiram uma colina, e viram sob eles umaespécie de planalto. E, no meio desteplanalto, havia uma silenciosa cidade depedra cinza e desagregada. Kane foi golpeadopor uma sensação de incrível antiguidade,enquanto olhava. Os muros e as casas eramde grandes blocos de pedra, embora

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estivessem se tornando ruínas. A grama cres-cia no planalto e no alto das ruas daquelacidade morta. Kane não viu movimento al-gum por entre as ruínas.

- Essa é a cidade deles... Por que escol-heram dormir nas cavernas?

- Talvez pedra camarada cair neles doteto e esmagar. Elas, cabanas de pedra, elascair. Talvez eles não gostar de estarem jun-tos... talvez eles comer uns aos outrostambém.

- Silêncio! – sussurrou Kane – Comopaira sobre tudo!

- Eles vampiros, não falam nem berram.Eles dormem nas cavernas, e perambulam aopôr-do-sol e à noite. Talvez tribos-camaradasdo matagal chegarem com lanças, e então

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vampiros ir para pedras e lutar atrás dosmuros.

Kane inclinou a cabeça. Os muros de-sagregados que cercavam a cidade aindaeram altos e sólidos o bastante para resistir-em ao ataque de lanceiros – especialmentequando defendidos por aqueles demônioscom narizes em forma de focinho.

- Irmão de sangue! – disse N’Longa sole-nemente – Eu tenho idéia de poderosa ma-gia! Fique em silêncio um pouco.

Kane se sentou num matacão, e olhoupensativo para os penhascos e encostas nuasque os cercavam. Lá longe, ao sul, ele viu overde oceano de folhas que era a selva. A dis-tância dava um certo encanto à cena. Bemmais perto, avultavam as manchas escurasque eram as bocas das cavernas de horror.

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N’Longa estava acocorado, fazendo umestranho desenho na argila com a ponta deuma adaga. Kane o observava, pensandoquão facilmente eles poderiam ser vítimasdos vampiros, se apenas três ou quatrodaqueles demônios saíssem de suas cav-ernas. E, enquanto o pensava, uma sombranegra e aterradora caiu sobre o feiticeiro.

Kane agiu inconscientemente. Atirou dobloco onde estava sentado, como uma pedraarremessada por uma catapulta, e a reservade seu mosquete espatifou o rosto da coisahorrenda que havia se aproximado deles.Cada vez mais para trás, Kane fazia seu rivalinumano cambalear, nunca lhe dando tempopra parar ou lançar uma ofensiva,espancando-o com a fúria de um tigredesvairado.

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Na própria beirada do penhasco, o vam-piro vacilou e então caiu para trás, de umaaltura de 30 metros, para jazer contorcidonas rochas do planalto abaixo. N’Longa es-tava nas pontas dos pés: as colinas estavamabandonando seus mortos.

Fora das cavernas, estavam se aglomer-ando as terríveis e silenciosas silhuetasnegras; do alto dos declives, eles vinham searremessando e para o alto dos blocos elesvieram escalando. E seus olhos vermelhosestavam todos voltados para os dois hu-manos que se erguiam sobre a cidade

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silenciosa. As cavernas os vomitavam, numprofano juízo final.

N’Longa apontou para um penhasco apouca distância e, com um grito, começou acorrer velozmente em direção ao mesmo.Kane o seguiu. Nos blocos atrás deles, mãosem forma de garras arranhavam em suasdireções, rasgando-lhes as roupas. Eles at-ravessaram cavernas, e monstros mumifica-dos vieram cambaleando da escuridão,tagarelando silenciosamente, para se juntar-em à perseguição.

As mãos mortas estavam quase às suascostas, quando eles subiram a última inclin-ação e se ergueram sobre uma saliência queera o topo do penhasco. Os demôniospararam silenciosamente por um momento,e então vieram subindo atrás deles. Kanebrandiu seu mosquete e despedaçou rostoscom olhos vermelhos, tirando de ação as

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mãos saltitantes. Eles se erguiam como umagrande onda; ele balançava seu mosquetenuma fúria silenciosa que competia com adeles. A onda quebrava e recuava; e avançavanovamente.

Ele não conseguia matá-los! Estas palav-ras batiam em seu cérebro como o martelode uma forja, enquanto ele espatifava carnedura como madeira e ossos mortos, com seusbalanços esmagadores. Ele os derrubava, osarremessava para trás, mas eles se le-vantavam e avançavam novamente. Isto nãopodia demorar – o que, em nome de Deus,N’Longa estava fazendo? Kane dirigiu umrápido e angustiado olhar sobre o ombro. Ofeiticeiro estava na parte mais alta da saliên-cia, com a cabeça virada para trás e os braçoserguidos como que numa invocação.

A visão de Kane se manchou com o movi-mento veloz de rostos hediondos com

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arregalados olhos vermelhos. Os que es-tavam na frente eram agora horríveis de sever, pois seus crânios estavam despedaçados,seus rostos desmoronados e seus membrosquebrados. Mas eles ainda avançavam, e osque estavam atrás estendiam os braços at-ravés de suas costas, para agarrarem ahomem que os desafiava.

Kane estava vermelho, mas o sangue eratodo dele. Das longas veias definhadasdaqueles monstros, nem uma só gota desangue vermelho e quente escorria. Subita-mente, atrás dele, veio uma longa paredeperfurada – N’Longa! Acima do quebrar daveloz coronha do mosquete e do despedaçarde ossos, soou alto e claro – a simples voz seerguia acima daquela luta hedionda.

A onda de vampiros fluía em volta dospés de Kane, arrastando-o para baixo. Gar-ras afiadas puxavam-no violentamente,

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lábios flácidos sugavam-lhe as feridas. Elegirou novamente para cima, desgrenhado eensangüentado, abrindo espaço com umavarredura despedaçadora de seu mosqueteestilhaçado. Então, eles se aproxim-aram novamente, e ele caiu.

“Este é o fim!”, pensou ele; mas mesmonaquele momento, a pressão diminuiu; e océu foi subitamente preenchido pelo bater degrandes asas.

Então, ele estava livre e cambaleou paracima, cega e vertiginosamente, pronto pararecomeçar a luta. Ele parou, petrificado. De-clive abaixo, a horda vampira estava fugindoe, sobre suas cabeças e próximos às suas cos-tas, voavam enormes abutres, que rasgavame dilaceravam avidamente, afundando seusbicos na carne morta e devorando as cri-aturas enquanto estas fugiam.

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Kane riu quase loucamente:

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- Vocês desafiam os homens e a Deus,mas não enganam os abutres, filhos de Satã!Eles sabem se um homem está vivo oumorto!

N’Longa se ergueu como um profeta nopináculo, e os grandes pássaros negrosvoaram e giraram ao seu redor. Seus braçosainda ondulavam, e sua voz ainda pranteavaatravés das colinas. E sobre as linhas do ho-rizonte, eles vinham: hordas sobre hordassem fim – abutres, abutres, abutres! – vin-ham sobre o banquete há muito negado aeles. Eles escureciam o céu com seus númer-os, e eclipsavam o sol; uma estranha escur-idão caiu sobre a terra. Eles se assentavamem longas linhas escuras, mergulhando nascavernas com as asas zunindo e os bicosbatendo ruidosamente. Suas garrasrasgavam os horrores perversos que estascavernas vomitavam.

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Agora todos os vampiros estavam fugindopara a cidade deles. A vingança, contida dur-ante eras, caíra sobre eles, e a última esper-ança que lhes restava eram as grossasparedes que haviam detido os desesperadosinimigos humanos. Sob aqueles tetos de-sagregados, eles poderiam achar abrigo. EN’Longa observou-os fluírem para dentro dacidade, e riu até os penhascos ecoarem.

Agora, todos estavam dentro e os pás-saros se instalavam feito uma nuvem sobre acidade condenada, pousando em sólidasfileiras ao longo dos muros, apontando seusbicos e garras sobre as torres.

E N’Longa bateu pederneira e aço nummolho de folhas secas que ele havia trazido.O molho ardeu instantaneamente emchamas, e ele arrumou e arremessou o objetoem chamas para bem longe dos penhascos.Ele caiu como um meteoro sobre o planalto

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embaixo, espirrando faíscas. A grama alta doplanalto pegou fogo.

Da cidade silenciosa sob eles, o Medofluiu em ondas invisíveis, como uma brumabranca. Kane sorriu impiedosamente.

- O capim está seco e frágil por causa daestiagem. – ele disse – Houve menos chuvaque o normal nesta estação. Ele queimarárapidamente.

Como uma serpente rubra, o fogo correupela alta grama morta. Ele se espalhava e seespalhava, e Kane, se erguendo lá no alto,ainda sentia a intensidade medonha dos ol-hos vermelhos que miravam da cidade depedra.

Agora, a serpente escarlate havia al-cançado os muros e estava se erguendo,como que para se enrolar e contorcer sobre

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eles. Os abutres se ergueram com suas asasbatendo pesadamente, e voaram relutantes.Uma rajada errante de vento fustigou achama ao redor e dirigiu-a numa longa ca-mada vermelha em volta da cidade. Agora, acidade estava cercada por todos os lados, poruma sólida barreira de fogo. O estrépitochegou aos dois homens no alto dopenhasco.

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Faíscas voavam através das paredes. Seacendendo na grama alta das ruas. Umagrande quantidade de chamas saltava e cres-cia com velocidade aterradora. Um véu ver-melho vestia ruas e construções, e atravésdesta bruma escarlate e rodopiante, Kane eN’Longa viram centenas de silhuetas escurascorrerem e se contorcerem, para desaparece-rem subitamente em rubras explosões defogo. Então, se ergueu um cheiro intolerávelde carne podre queimando.

Kane observava, pasmado. Isto eramesmo um inferno na terra. Como numpesadelo, ele olhava para um ruidosocaldeirão vermelho, onde insetos escuroslutavam contra seus destinos e morriam. Aschamas se erguiam a cem metros no ar, esubitamente, acima de seu ruído, soou umgrito bestial e inumano, com um guincho

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vindo de golfos sem nomes com velocidadecósmica, como se um vampiro moribundoquebrasse as correntes do silêncio que o am-arraram por séculos incontáveis. Alto e as-sombroso, ele se ergueu, como o grito damorte de uma raça moribunda.

Então, as chamas abaixaram repentina-mente. O incêndio havia sido um típico fogode palha, breve e feroz. Agora, o planalto exi-bia uma vastidão enegrecida, e a cidade erauma massa queimada e esfumaçada de pedradesagregada. Nenhum corpo foi visto, nemsequer um osso queimado. Acima de tudoaquilo, rodopiavam os bandos escuros deabutres, mas eles também estavamcomeçando a se dispersar.

Kane olhou ansioso para o claro céu azul.Era, para ele, como um forte vento marinho

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clareando uma bruma de horror. De algumlugar, soou o fraco e distante rugido de umleão. Os abutres batiam asas para longe emnegras filas irregulares.

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5) Conferência Estabelecida!

Kane sentou-se na entrada da caverna,onde Zunna jazia, e entregou-se às atadurasdo feiticeiro.

As roupas do puritano estavam completa-mente esfarrapadas; seus membros e peitotinham talhos profundos e contusões escur-as, mas ele não havia tido nenhum ferimentofatal naquela luta mortífera sobre openhasco.

- Homens poderosos, nós ser! – declarouN’Longa com profunda aprovação – Cidadevampira estar silenciosa agora, é bastante

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certo! Nenhum morto andante viver ao longodestas colinas.

- Eu não entendo. – disse Kane, apoiandoo queixo na mão – Me diga, N’Longa, comovocê fez aquelas coisas? Como conversoucomigo em sonhos; como adentrou o corpode Kran, e como convocou os abutres?

- Meu irmão de sangue. – disse N’Longa,descartando o orgulho que tinha de seuInglês insignificante, para falar na linguagemdo rio, entendida por Kane – Eu sou tãovelho, que você me chamaria de mentiroso seeu lhe falasse minha idade. Por toda a vida,trabalhei com magia, primeiro me sentandoaos pés dos poderosos homens de ju-ju dosul e do leste; então, eu fui um escravo paraBuckra e aprendi mais. Meu irmão, irei at-ravessar todos estes anos num momento, efazê-lo entender, com uma só palavra, aquiloque levei um longo tempo para aprender? Eu

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não conseguiria sequer fazê-lo entendercomo estes vampiros pouparam seus corposda decomposição, ao beberem as vidas doshomens.

“Eu durmo, e meu espírito sai sobre asselvas para conversar com os espíritos ad-ormecidos dos meus amigos. Há uma poder-osa magia no bastão vodu que eu lhe dei...uma magia da Velha Terra, que puxa minhaalma para ela, como o ímã do homem brancofaz com metal”.

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Kane escutava em silêncio, vendo pelaprimeira vez, nos olhos cintilantes deN’Longa, algo mais forte e mais profundoque o brilho ávido daquele que trabalha commagia negra. Para Kane, parecia quase comose ele olhasse os místicos olhos de visão dis-tante de um profeta de tempos antigos.

- Eu falei com você em sonhos –prosseguiu N’Longa –, e fiz um sono pro-fundo cair sobre as almas de Kran e Zunna,removendo-as para uma obscura terra dis-tante, da qual eles logo voltarão sem se lem-brarem. Todas as coisas se curvam à magia,irmão de sangue, e feras e pássaros obed-ecem às palavras dos mestres. Eu trabalheicom forte vodu, magia de abutres, e o povoalado do ar se reuniu ao meu chamado.

“Estas coisas eu sei, e sou uma partedelas, mas como irei lhe falar sobre elas?

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Irmão de sangue, você é um poderoso guer-reiro, mas nos caminhos da magia, você écomo uma criança pequena e perdida. O queme levou longos anos para saber, eu nãoposso divulgar para você, pois você não en-tenderia. Meu amigo, você só pensa em mausespíritos, mas minha magia foi sempre má?Eu não deveria tomar este excelente corpojovem, no lugar do meu corpo velho e en-rugado, e preservá-lo? Mas Kran logo teráseu corpo de volta, são e salvo.

“Guarde o bastão vodu, irmão de sangue.Ele tem enorme poder contra todos osfeiticeiros, serpentes e coisas malignas.Agora, eu volto para a aldeia na Costa, ondemeu verdadeiro corpo dorme. E quanto a vo-cê, irmão de sangue?”.

Kane apontou silenciosamente para oleste.

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- O chamado cresce forte. Eu vou.

N’Longa inclinou a cabeça e estendeu amão. Kane segurou-a. A expressão místicadesaparecera do rosto do feiticeiro, e os ol-hos piscaram como os de uma cobra, comuma espécie de regozijo reptiliano.

- Mim ir agora, irmão de sangue. – disseo feiticeiro, voltando ao seu querido jargão,de cujo conhecimento ele tinha mais orgulhoque seus artifícios de invocação – Tomecuidado... esta selva camarada, ela ainda ar-rancar seus ossos! Lembre do bastão vodu,irmão. Ai ya, conferência estabelecida!

Ele caiu para trás, na areia, e Kane viu aexpressão aguda e astuta de N’Longa desa-parecer do rosto de Kran. Sua pele se arrepi-ou novamente. Em algum lugar lá atrás, naCosta dos Escravos, o corpo de N’Longa,definhado e enrugado, estava se levantando,

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como que de um grande sono. Kaneestremeceu.

Kran se sentou, bocejou, se espreguiçou esorriu. Ao seu lado, a garota Zunna se levan-tou, esfregando os olhos.

- Mestre – disse Kran, se desculpando –,acho que dormimos.

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Passos Atrás da Porta

Solomon Kane olhou sombriamente paraa nativa que jazia morta aos seus pés. Erapouco mais que uma garota, mas seus mem-bros devastados e olhos arregaladosmostravam que ela havia sofrido muito,antes que a morte desse a ela um misericor-dioso alívio. Kane notou os ferimentos, feitospor correntes, em seus membros; as pro-fundas queimaduras em suas costas e a

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marca do jugo em seu pescoço. Seus olhosfrios tinham uma estranha intensidade,mostrando brilhos frios e luzes como nuvensque cruzam abismos de gelo.

- Eles chegaram até mesmo a esta terrasolitária. - ele sussurrou - Eu não haviapensado...

Ele ergueu a cabeça e olhou para o leste.Pontos negros giravam contra o azul,traçando círculos.

- Os pássaros marcam sua trilha. - mur-murou o inglês alto - A destruição lhes pre-cede e a morte os segue. Envergonhai-vos,filhos da iniqüidade, pois a ira de Deus estásobre vós. Os cordões foram tirados dospescoços de ferro da matilha do ódio, e oarco da vingança está retesado. Sois orgul-hosos e fortes, e as pessoas choram sob seuspés, mas o castigo vem na negrura da meia-noite e na vermelhidão da aurora.

Ergueu o cinto que segurava suas pesadaspistolas e o punhal afiado, tocou

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instintivamente a longa e estreita espada dedois gumes em seu quadril, e seguiu furtiva,mas rapidamente, para o leste. Uma ira cruelardia em seus olhos intensos, como vulcâni-cos fogos azuis sob léguas de gelo, e a mão,que agarrava seu longo bastão com cabeça degato, se endureceu como ferro.

Após algumas horas de caminhada firme,chegou aos seus ouvidos a fila de escravosque serpenteava seu caminho laborioso at-ravés da selva. Os choros lastimosos dos es-cravos, os gritos e maldições dos condutores,e o estalar do açoite lhe chegaram clara-mente aos ouvidos. Mais uma hora, e ficounivelado com eles; e, deslizando através daselva, em linha paralela ao caminho tomadopelos escravagistas, ele os observou em se-gurança. Kane havia lutado contra índios emDarien, e aprendera muito de sua experiên-cia de vida em florestas.

Mais de cem nativos - homens e mulheresjovens - cambaleavam ao longo da trilha,

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completamente nus e unidos uns aos outrospor cruéis jugos de madeira. Estes jugos, ás-peros e pesados, se encaixavam sobre seuspescoços e os uniam de dois em dois. Osjugos, por sua vez, estavam unidos, form-ando uma longa cadeia. Dos condutores,quinze eram árabes e uns 70, guerreirosnegros, cujas armas e fantástico vestuáriomostravam que eles pertenciam a algumatribo oriental - uma daquelas tribos subjuga-das, islamizadas e feitas aliadas pelos con-quistadores árabes.

Cinco árabes caminhavam à frente da fila,com uns 30 de seus guerreiros; e outroscinco cobriam a retaguarda com o restantedos guerreiros negros. Os demais

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marchavam ao lado dos escravoscambaleantes, apressando-os para diantecom gritos e maldições, e com longos e cruéischicotes que faziam jorrar sangue em quasecada golpe. Estes escravistas eram tão tolosquanto canalhas, refletiu Kane - menos dametade sobreviveria às privações da viagematé a costa. Ele se espantou com a presençadestes incursores, pois esta região ficavamuito ao sul dos locais que eles normal-mente freqüentavam. Mas a avareza podelevar os homens para longe, como o inglêssabia. Ele há muito havia se relacionado comgente daquela laia. Enquanto observava, vel-has cicatrizes lhe queimaram nas costas - ci-catrizes feitas por chicotes muçulmanosnuma galé turca. E o ódio inapagável deKane ardeu ainda mais profundamente.

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O puritano continuou acompanhandoseus inimigos, como um fantasma; e, à me-dida que deslizava através da selva, pro-curava por algum plano em seu cérebro.Como poderia ele triunfar contraaquela horda? Todos os árabes e muitos deseus aliados usavam armas de fogo - longos epesados pavios, é verdade, mas tambémarmas de fogo, suficientes para assustaremqualquer tribo de nativos que pudesse opor-se a eles. Alguns carregavam, em seus largoscinturões, longas pistolas com desenhosprateados, de feitio mais eficiente...

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espingardas de pederneira, de feitio mouro eturco.

Kane seguia como um fantasma pensat-ivo, e sua raiva e ódio lhe devoravam a almacomo um cancro. Cada estalar dos chicotesera como um golpe sobre seus próprios om-bros. O calor e a crueldade dos trópicosfazem estranhas zombarias. Paixões comunsse tornam coisas monstruosas; a irritaçãocresce até uma fúria berserk; a ira se inflamaaté uma loucura inesperada, e homensmatam numa névoa vermelha de fúria, e de-pois se sentem assombrados e horrorizados.A fúria que Solomon Kane sentia era sufi-ciente, em qualquer momento e lugar, parasacudir um homem até seus alicerces, demodo que Kane tremia como se sentisse umcalafrio; garras de ferro lhe arranhavam océrebro, e ele via os escravos e escravistas at-ravés de uma bruma vermelha. Mas ele nãopoderia colocar sua insanidade, nascida doódio, em ação, se não fosse por um desastre.

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Uma das escravas, uma jovem esguia,subitamente vacilou e caiu ao chão, ar-rastando seu companheiro de jugo com ela.Um árabe alto, de nariz aquilino, gritouselvagemente e a açoitou depravadamente.Cambaleando, o companheiro dela se ergueuem parte, mas a garota continuou prostrada,se retorcendo debilmente sob o chicote, masevidentemente incapaz de se erguer.Choramingava lamentavelmente por entre oslábios ressecados, e outros escravistas caíamsobre a carne trêmula dela, em açoites desangrenta agonia.

Meia hora de descanso e um pouco deágua a teriam revivido, mas os árabes nãotinham tempo livre. Solomon, mordendo opróprio braço até os dentes entrarem nacarne, enquanto lutava para se controlar,agradeceu a Deus pelos açoites teremparado, e se endureceu para suportar orápido reluzir da faca que poria fim ao sofri-mento da menina. Mas os árabes estavam

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dispostos a se divertirem. Já que a garotanão lhes renderia benefício algum na praçado mercado, eles a utilizariam para seupróprio prazer... e o humor deles era dotipo capaz de transformar o sangue dos ho-mens em água gelada.

Um grito do primeiro chicoteador, e osdemais se aglomeraram ao redor, com seusrostos barbudos fendidos em sorrisos dedeleite antecipado, enquanto seus selvagensaliados se agrupavam próximos, com os ol-hos lampejando. Os infelizes escravos

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perceberam as intenções de seus donos, e umcoro de gritos lastimosos se ergueu deles.

Doente de horror, Kane também perce-beu que a morte da garota não seria fácil. Elesabia o que o muçulmano alto pretendiafazer, quando este se abaixou sobre ela comuma adaga afiada, como a que os árabesusavam para esfolar caça. A loucura derrotouo inglês. Dava pouco valor à própria vida; elea arriscaria sem pensar pelo bem de uma cri-ança pagã ou de um pequeno animal. Mesmoassim, não desperdiçaria sua única esper-ança de salvar os infelizes naquela cadeia de

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escravos. Mas ele agiu inconscientemente.Uma pistola fumegou em sua mão, e o car-niceiro alto estava caído sobre a poeira comos miolos escorrendo para fora da cabeça,antes que Kane percebesse o que havia feito.

Ele estava quase tão assombrado quantoos árabes, que ficaram congelados por ummomento e logo estouraram numa misturade gritos. Muitos ergueram suas toscasarmas de pavio e dispararam suas balaspesadas, as quais atravessaram as árvores; eo restante, achando que estavam in-dubitavelmente emboscados, lideraram umtemerário ataque selva adentro. A ousadaprecipitação daquela manobra foi a ruína deKane. Se eles hesitassem por mais um mo-mento, ele teria desaparecido sem ser visto,mas do jeito que ele viu as coisas, não haviaoutra escolha, exceto ir abertamente ao en-contro deles e vender sua vida tão caroquanto pudesse.

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E, de fato, foi com certa fascinação ferozque ele encarou seus atacantes que uivavam.Eles pararam, subitamente assombrados,quando o inglês alto e sombrio saiu de trásde sua árvore; e, naquele instante, um delesfoi morto pela bala restante da pistola deKane no coração. Então, com gritos de fúriaselvagem, se lançaram sobre seu desafiadorsolitário.

Solomon Kane apoiou as costas contrauma enorme árvore, e sua longa espada es-treita desenhou uma roda brilhante ao seuredor. Um árabe, e três dos seus igualmenteferozes aliados, tentaram cortá-lo com suaspesadas lâminas curvas, enquanto o restantefazia redemoinhos ao seu redor, rosnandocomo lobos, enquanto tentavam enfiarlâmina ou bala sem mutilar a um dos seus.

A cintilante espada fina, de dois gumes,desviava as cimitarras sibilantes, e um árabemorreu perfurado por ela, cuja ponta pareciavacilar dentro de seu coração, antes de

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perfurar o cérebro de um guerreiro quebrandia uma espada. Outro atacante deixoua espada cair e saltou para uma luta corpo-a-corpo. Foi estripado pelo punhal na mão es-querda de Kane, e os outros recuaram, subit-amente assustados. Uma bala pesada se es-patifou na árvore, perto da cabeça de Kane, eele contraiu os músculos para saltar e morrerno auge da batalha. Então, o sheik deles osaçoitou com seu longo chicote, e Kane oouviu gritar ferozmente para seus guerreirospegarem o infiel vivo. Kane respondeu à or-dem com um súbito arremesso de seu pun-hal, o qual zumbiu tão próximo à cabeça dosheik, que lhe rasgou o turbante e entroufundo no ombro de alguém atrás dele.

O sheik sacou suas pistolas com desenhosprateados, ameaçando matar seus próprioshomens se eles não pegassem aqueleoponente feroz, e os mesmos atacaramdesesperadamente de novo. Um dos guer-reiros caiu em cheio sobre a espada de Kane,

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e um árabe atrás dele, com impiedosa habil-idade, empurrou subitamente o vociferanteinfeliz para a arma à sua frente,atravessando-lhe o corpo contorcido na es-pada até o cabo, obstruindo a lâmina. Antesque Kane pudesse puxá-la, a matilha selançou sobre ele, com um grito de triunfo, e oderrubou com o simples peso dos números.Enquanto era agarrado por todos os lados, opuritano desejou em vão ainda empunhar aadaga da qual havia se desfeito. Mas, mesmoassim, não foi nada fácil dominá-lo.

Sangue era salpicado, e rostos afundavamsob seus punhos, que estilhavam dentes edespedaçavam ossos. Um guerreiro seafastou cambaleando, inabilitado por umaperversa joelhada na virilha.

Mesmo quando o tiveram completamenteestendido e imobilizado pelo peso dos ho-mens, sem poder golpear com mãos nempés, seus longos dedos delgados afundaramferozmente através de uma barba

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emaranhada, para se fecharem ao redor deuma garganta musculosa, num aperto queprecisou do poder de três homens fortes paradesfazê-lo, e que deixou a vítima arfando ecom o rosto esverdeado.

Por fim, arfando pelo terrível esforço, eleslhe amarraram mãos e pés, e o sheik, enfi-ando suas pistolas de volta no cinto de seda,se aproximou a passos largos e ficou olhandopara seu cativo. Kane ergueu o olhar paraaquela figura alta e esguia, para aquele rostoaquilino de negra barba encaracolada e ar-rogantes olhos castanhos.

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- Sou o sheik Hassim ben Said. - disse oárabe - Quem é você?

- Meu nome é Solomon Kane. - grunhiu opuritano, na mesma linguagem que o sheik -Sou um inglês, seu chacal pagão.

Os olhos escuros do árabe brilharam cominteresse.

- Suleiman Kahani. - disse ele, dando oequivalente árabe do nome inglês - Já ouvifalar em você... você combateu os turcosnuma ocasião, e os corsários berberes já lam-beram as feridas por causa de você.

Kane se dignou a não responder. Hassimencolheu os ombros.

- Você me trará um ótimo preço. - eledisse - Talvez eu lhe leve para Istambul, ondeos xás desejariam um homem como vocêentre os escravos deles. E agora me lembrode um certo Kemal Bey, que tem o rostocruzado por uma profunda cicatriz do seufeitio e que amaldiçoa o nome do inglês. Eleme pagará um alto preço por você. E note, ó

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franco, que lhe concedo a honra de lhe desig-nar uma guarda separada. Você não andaráacorrentado ao jugo, mas livre, exceto porsuas mãos.

Kane não respondeu; e, a um sinal dosheik, foi erguido de pé e suas amarrassoltas, exceto pelas mãos, que foram firm-emente atadas às costas. Um laço forte lhefoi preso ao pescoço, e sua outra extremid-ade foi posta na mão de um enorme guer-reiro, que levava uma grande cimitarra curvana mão livre.

- E agora, o que achas da minha consider-ação com você, franco? - perguntou o sheik.

- Acho - respondeu Kane, num tom lento,profundo e ameaçador - que eu trocaria asalvação de minha alma para enfrentar vocêe sua espada, só e desarmado, e lhe arrancaro coração do peito com meus dedos nus.

Tão concentrado era o ódio em sua in-tensa voz ressoante, e tão primitiva e in-domável a fúria que ardia em seus olhos

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terríveis, que o endurecido e destemido chefeempalideceu e involuntariamente recuou,como se estivesse diante de uma feraenlouquecida.

Logo, Hassim recuperou sua pose e, comuma breve palavra aos seus seguidores,seguiu a passos largos para a frente dacomitiva. Kane notou, agradecido, que atrégua, ocasionada por sua captura, tinhadado, à garota que havia caído, uma chancede descansar e sobreviver. A faca de esfolarnão havia tido tempo de fazer mais do quetocá-la; ela era capaz de seguir cambaleando.A noite não estava longe. Logo, os escravistasseriam forçados a pararem e acamparem.

O inglês foi forçado a continuar a viagem,com seu guarda a poucos passos atrás dele,com uma enorme lâmina sempre pronta.Kane também notou, com um toque de som-bria futilidade, que mais três guerreirosmarchavam próximos a ele, com os mos-quetes preparados e os arcabuzes acesos.

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Haviam lhe experimentado a bravura, e nãoiam se arriscar. As armas dele haviam sidorecuperadas, e Hassim havia prontamente seapropriado de todas, exceto o bastão ju-jucom cabeça de gato. Este havia sido desden-hosamente lançado para um lado por ele, epego por um dos guerreiros selvagens.

O inglês logo percebeu que um delgadoárabe de barba cinza caminhava ao seu lado.Este árabe parecia desejoso em conversar,mas era estranhamente tímido, e a fonte desua timidez parecia ser, de forma bastantecuriosa, o bastão ju-ju que ele havia tomadodo homem que o pegara do chão, e ao qualagora ele virava, incerto, com as mãos.

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- Sou Yussef, o Hadji. - disse subitamenteeste árabe - Nada tenho contra você. Nãoparticipei do ataque contra você, e gostariade ser seu amigo, se você permitir. Diga-me,franco, de onde vem este bastão, e como foique ele chegou às suas mãos?

A primeira vontade de Kane foi de man-dar seu interrogador ao inferno, mas umacerta sinceridade na atitude do velho homemlhe fez mudar de opinião e responder:

- Foi dado a mim por um irmão desangue... um mago da Costa dos Escravos,chamado N'Longa.

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O velho árabe assentiu e murmurou algopara si, e logo mandou que um guerreiro cor-resse para diante, a fim de pedir que Hassimvoltasse. Logo, o sheik alto se aproximou apassos largos, ao longo da lenta coluna, comum retinir de adagas e sabres, e com o pun-hal e pistolas de Kane enfiados no largocinturão.

- Veja, Hassim - o velho árabe mostrou obastão -, você o arremessou para longe semsaber o que fazia!

- E daí? - rosnou o sheik - Não vejo maisdo que um bastão... de ponta afiada e com acabeça de um gato na outra extremidade...um bastão com estranhos entalhes pagãos.

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O mais velho o sacudiu, empolgado:- Este bastão é mais velho que o mundo!

Possui uma magia poderosa! Já li sobre elenos livros encadernados a ferro, e o próprioMaomé... às custas de sua própria paz... fa-lava dele através de alegorias e parábolas!Está vendo a cabeça de gato sobre ele? É acabeça de uma deusa do antigo Egito. Erasatrás, antes dos ensinos de Maomé, antes daexistência de Jerusalém, os sacerdotes deBast seguravam esta vara diante dos inclina-dos adoradores cantantes!

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Com ele, Musa fez maravilhas diante dofaraó e, quando os judeus fugiram do Egito,o levaram com eles. E, durante séculos, foi ocetro de Israel e Judá; e, com ele, Suleimanben Daoud expulsou os prestidigitadores e

magos, e aprisionou os afrits 2 e os gêniosmalignos! Olhe! Mais uma vez, nas mãos deum Suleiman, nós encontramos a antigavara!

O velho Yussef havia discursado num fer-vor quase fanático, mas Hassim simples-mente encolheu os ombros:

- Ele não salvou os judeus da escravidão,nem este Suleiman de nosso cativeiro. - disse- Não dou mais valor a ele do que à longalâmina fina, com a qual liberou as almas detrês de meus melhores espadachins.

Yussef sacudiu a cabeça:- Sua zombaria não lhe trará um bom fim,

Hassim. Algum dia você encontrará umpoder que não se dividirá diante de sua es-pada, nem cairá diante de suas balas.

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Guardarei o bastão comigo, e lhe aviso: nãoabuse do franco. Ele carregava o sagrado eterrível bastão de Suleiman, Musa e osfaraós, e quem sabe qual magia tirou dele?Pois ele é mais velho que o mundo, e con-heceu as mãos terríveis de estranhossacerdotes pré-adamitas, em cidades silen-ciosas sob o mar; e extraiu, de um MundoAncestral, mistério e magia inimaginadospela humanidade. Havia estranhos reis e sa-cerdotes, quando as auroras eram jovens, e omal existia, mesmo em sua época. E, comeste bastão, combateram o mal, que já eraantigo quando o mundo era jovem, há tantosmilhões de anos, que um homem se es-tremeceria ao contá-los.

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Hassim respondeu impacientemente e seafastou a passos largos, com o velho Yussef oseguindo persistentemente e tagarelando emtom queixoso. Kane estremeceu os ombrospoderosos. Com o que sabia dos estranhospoderes daquele estranho bastão, ele não eraninguém para questionar as informaçõesdaquele ancião, por mais fantásticas queparecessem.

Isso ele sabia: que era feito de umamadeira que já não existia em nenhum lugarda terra. Não precisava mais do que a provaproporcionada pela visão e toque, para per-ceber que aquele material havia crescido em

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algum mundo à parte. O delicado feitio dacabeça, de uma era pré-piramidal, e os hier-óglifos, símbolos de uma linguagem que jáera esquecida quando Roma era jovem - isto,Kane sentia, eram adições tão modernas àantiguidade do próprio bastão quanto seriampalavras inglesas entalhadas nos monólitosde pedra de Stonehenge.

Quanto à cabeça de gato... ao olhá-la,Kane tinha às vezes uma sensação peculiarde mudança; uma vaga impressão de queoutrora o punho do bastão foi entalhado comum desenho diferente. O antiqüíssimo egíp-cio, que talhara a cabeça de Bast, havia apen-as alterado a figura original; e o que haviasido essa figura, Kane nunca havia tentadoimaginar. Um exame atencioso naquelebastão sempre despertava uma inquietante equase vertiginosa sugestão de abismos deeons, a qual desestimulava especulaçõesposteriores.

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O dia passou. O sol caía impiedosamente;e logo se abrigava nas grandes árvores, en-quanto se inclinava em direção ao horizonte.Os escravos sofriam ferozmente por falta deágua, e uma lamúria constante se erguia desuas filas, enquanto cambaleavam cega-mente para diante. Alguns caíam e con-tinuavam, meio rastejando, e eram meio ar-rastados por seus cambaleantes companheir-os de cativeiro. Quando todos estavam ver-gados de exaustão, o sol se pôs, a noite caiu euma parada foi ordenada. Foi armado oacampamento e destacados postos deguarda. Os escravos foram escassamente ali-mentados e lhes foi dada água suficientepara mantê-los vivos - mas só isso. Seusgrilhões não foram soltos, mas lhes foi per-mitido se deitarem como pudessem. Comsuas medonhas fomes e sedes tendo sido umpouco aplacadas, agüentaram o desconfortode suas algemas com seu estoicismocaracterístico.

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Kane foi alimentado sem que suas mãosfossem desamarradas, e lhe foi dada toda aágua que ele queria. Os olhos pacientes dosescravos os observavam beber, silen-ciosamente, e ele se sentiu profundamenteenvergonhado em beber sofregamente aquilopelo qual outros sofriam; parou de beber,antes que sua sede fosse totalmente saciada.Uma ampla clareira havia sido escolhida, eem todos os seus lados, se erguiam árvoresgigantescas. Após os árabes terem comido, eenquanto os muçulmanos negros ainda co-zinhavam sua comida, o velho Yussef seaproximou de Kane e começou a falar

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novamente sobre o bastão. Kane respondeusuas perguntas com admirável paciência,considerando o ódio que tinha por toda araça à qual o Hadji pertencia. E, durante aconversa, Hassim se aproximou a passos lar-gos e ficou olhando-os com desdém. Hassim,Kane refletiu, era o próprio símbolo do is-lamismo militante - audaz, temerário, mater-ialista, e sem poupar nem temer a nada, tãoseguro do próprio destino e tão desdenhosocom o direito dos outros quanto o mais po-deroso rei ocidental.

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- Divagando novamente sobre esta vara? -ele zombou - Hadji, você está ficando infantilem sua velhice.

A barba de Yussef tremeu de raiva. Eleagitou o bastão diante de seu sheik, comouma ameaça maligna.

- Seu sarcasmo é pouco adequado ao seuposto, Hassim. - ele disse bruscamente -Estamos no coração de uma terra sombria eassombrada por demônios, para a qual osdemônios da Arábia foram banidos, há muitotempo. Se esse bastão, ao qual qualquer um,exceto um tolo, pode reconhecer que não éuma vara de qualquer mundo conhecido, ex-istiu até os nossos dias, quem sabe quais out-ras coisas, tangíveis ou intangíveis, podemter existido ao longo das eras? Esta própriatrilha que seguimos... você sabe qual a idadedela? Os homens já a seguiam, antes que osseljúcidas viessem do leste, e os romanos, dooeste. Sobre esta mesma trilha, dizem as len-das, veio o grande Suleiman, quando ele

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expulsou os demônios da Ásia para o oeste eos encarcerou em estranhas prisões. E vocêdirá...

Um grito feroz o interrompeu. Das som-bras da selva, um guerreiro saiu correndocomo se fugisse dos cães-de-caça do Destino.Com os braços se agitando selvagemente, osolhos revirados até mostrar as partes bran-cas, e a boca aberta a ponto de todos osdentes brilhantes estarem visíveis, ele rep-resentava uma imagem de total terror, difícil

de ser esquecida. A horda muçulmana seergueu de um pulo, se apoderando de suasarmas, e Hassim praguejou:

- É Ali, a quem enviei para buscar carne...talvez um leão...

Mas nenhum leão seguia o homem quecaiu aos pés de Hassim, vociferando deforma inarticulada e apontando ferozmentepara a selva negra atrás dele, da qual ostensos expectadores esperavam sair algumhorror capaz de abalar o cérebro.

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- Ele diz que encontrou um estranhomausoléu na selva - disse Hassim, franzindoa testa -, mas não consegue dizer o que o as-sustou. Só sabe que um grande horror o in-undou e o fez fugir. Ali, você é um idiota eum canalha.

Ele chutou perversamente o selvagemque se arrastava, mas os outros árabes o cer-caram com certa incerteza. O pânico estavase espalhando por entre os guerreirosnativos.

- Eles fugirão, apesar da nossa presença. -murmurou um árabe barbudo, olhandodesconfortavelmente para os aliados nativos,os quais se moviam em círculos, falavamconfusa e agitadamente, e lançavam olharestemerosos por cima dos ombros - Hassim,seria melhor se andássemos mais algumasmilhas. Afinal, este é um lugar maligno e,apesar deste tolo do Ali ter se assustado comsua própria sombra... ainda assim...

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- Ainda assim - zombou o sheik -, todosvocês se sentirão melhor quando o deixar-mos para trás. Muito bem; para acalmar seusmedos, levantarei acampamento... masprimeiro darei uma olhada nessa coisa.Levantem os escravos; vamos adentrar aselva e passar por esse mausoléu; talvez hajaalgum grande rei enterrado lá. Ninguém terámedo se todos nós formos armados.

Assim, os escravos exaustos foramacordados sob chicotadas e voltaram a andarcambaleando sob os açoites. Os aliados nat-ivos seguiam, silenciosos e nervosos, obed-ecendo relutantemente à vontade implacávelde Hassim, mas apinhados perto dos árabes.A lua havia se erguido - cheia, vermelha e ta-citurna -, e a selva estava banhada num sin-istro brilho prateado que desenhava sombrasnegras nas árvores taciturnas. O trêmulo Aliapontou o caminho, um pouco tranqüilizadopela presença de seu selvagem amo. E assim,atravessaram a selva, até chegarem a uma

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estranha clareira, entre as árvores gigantes-cas - estranha porque nada crescia ali. Asárvores a cercavam de uma maneira in-quietantemente simétrica, e nenhum líquenou musgo crescia na terra, a qual parecia tersido secada e arruinada de forma estranha.E, no meio desta clareira, se erguia omausoléu.

Era uma grande massa melancólica depedra, rica em antiga maldade. Pareciamorta com a morte de cem séculos, masKane percebia que o ar pulsava ao redordela, como se com a lenta respiração inu-mana de algum gigantesco monstro invisível.

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Os aliados nativos dos árabes recuarammurmurando, atacados pela atmosfera ma-ligna do local. Os escravos aguardavam numgrupo paciente e silencioso sob as árvores.Os árabes seguiram em direção à carrancudamassa negra, e Yussef, pegando a corda deKane da mão do guarda, levou o inglês comele como se fosse um ríspido mastim, comoque para se proteger contra o desconhecido.

- Algum poderoso sultão, sem dúvida, jazaqui. - disse Hassim, batendo de leve napedra com a bainha de sua espada.

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- De onde vêm estas pedras? - murmurouYussef, incomodado - São de aspecto obscuroe desagradável. Por que um sultão seria en-terrado em grande pompa, tão longe dequalquer habitação humana? Se houvesseruínas de uma velha cidade por aqui, seriadiferente...

Ele se inclinou, para examinar a pesadaporta de metal e sua enorme fechadura, curi-osamente selada e fundida. Ele sacudiu acabeça, com um mau pressentimento ao per-ceber os antigos caracteres hebraicos ental-hados na porta.

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- Não os consigo ler - ele disse, com voztrêmula -, e talvez seja

melhor que eu não consiga. Sejam quemfor os antigos reis encerrados aqui, não ébom que os homens os perturbem. Hassim,vamos sair daqui. Este lugar está cheio demaldade para os filhos dos homens.

Mas Hassim não lhe deu atenção.- Quem jaz lá dentro não é filho do Islã. -

ele disse - E por que não devemos despojá-lodas jóias e riquezas que, indubitavelmente,foram postas para descansar com ele? Vamosarrombar esta porta.

Alguns dos árabes sacudiram as cabeças,incertos, mas a palavra de Hassim era lei.Chamando para si um enorme guerreiro queempunhava um pesado martelo, lhe ordenouque arrombasse a porta.

Quando o homem ergueu o malho, Kanesoltou uma abrupta exclamação. Estava lou-co? A aparente antiguidade desta massa

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melancólica de pedra era a prova de quehavia permanecido imperturbada por mil-hares de anos. Mas ele poderia jurar terouvido os sons de passos lá dentro! Soavamcalmamente, para a frente e para trás, comose algo andasse compassadamente nos con-fins estreitos daquela prisão medonha, numaeterna monotonia de movimento.

Uma mão fria tocou a espinha de So-lomon Kane. Se os sons eram registrados emseu ouvido consciente, ou em alguma pro-fundeza insondada da alma, ele não con-seguia dizer, mas sabia que, em algum lugarde sua consciência, ressoavam os passospesados de pés monstruosos, desde o interi-or daquele mausoléu medonho.

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- Pare! - ele exclamou - Hassim, eu possoestar louco, mas ouço os passos de algum de-mônio dentro dessa pilha de pedra.

Hassim ergueu a mão e deteve o marteloerguido. Escutou atentamente, e os outrosaguçavam os ouvidos, num silêncio quesubitamente ficou tenso.

- Não ouço nada. - grunhiu um gigantebarbudo.

- Nem eu. - respondeu rapidamente umcoro - O franco está louco!

- Ouves alguma coisa, Yussef? - pergun-tou Hassim sardonicamente. O velho Hadji

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se moveu nervoso. Seu rosto não estavatranqüilo.

- Não, Hassim. Todavia, não...Kane concluiu que deveria estar louco.

Mas, em seu íntimo, sabia que nunca estevetão ajuizado, e sabia, de algum modo, queeste aguçamento oculto dos sentidos maisprofundos, que o colocava à parte dosárabes, vinha de uma longa associação com obastão ju-ju, ao qual Yussef agora seguravaem suas mãos trêmulas.

Hassim riu asperamente e fez um gestopara o guerreiro. O martelo caiu com um es-trondo, que ressoou de forma ensurdecedorae vibrou através da selva negra numa estran-hamente alterada gargalhada convulsiva.Outra vez... outra vez... e outra vez, o martelocaiu, impulsionado por todo o poder de mús-culos em atividade e corpo poderoso. E,entre os golpes, Kane ainda ouvia aquelecaminhar pesado, e ele, que nunca conhecerao medo como os homens conhecem, sentiu a

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mão fria do terror lhe agarrar o coração. Estemedo estava tão à parte do medo terreno oumortal, quanto o som das pisadas estava dospassos de um mortal. O medo de Kane eracomo um vento frio soprando nele, desdereinos exteriores de inimaginada Escuridão,levando a ele o mal e a decadência de umaépoca sobrevivente e de um impronunciávelperíodo antigo. Kane não tinha certeza seouvia aqueles passos, ou se os sentia atravésde um vago instinto. Mas ele estava certo desua realidade. Não era o caminhar de umhomem, nem o de um animal; mas, dentrodaquele negro e espantosamente antigomausoléu, alguma coisa sem nome se movia,sacudindo-se de forma desagradável e compassos de elefante.

O poderoso guerreiro suava e ofegavacom a dificuldade de sua tarefa. Mas, final-mente, sob os pesados golpes, a antiga trancase despedaçou; as dobradiças se partiram e a

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porta se abriu bruscamente para dentro. EYussef gritou.

Daquela negra entrada aberta, não saltounenhuma fera com presas de tigre, nem de-mônio de carne sólida e sangue. Mas umfedor medonho fluiu para fora, aos vagal-hões, em ondas quase tangíveis; e, num en-louquecedor e voraz movimento rápido, peloqual a porta aberta parecia jorrar sangue, oHorror estava sobre eles. Ele envolveuHassim, e o destemido chefe, golpeando emvão aquele terror quase intangível, gritoucom um súbito e desacostumado terror, en-quanto sua cortante cimitarra assobiavaapenas através de uma matéria tão vazia einvulnerável quanto o vento, e ele se sentiuenvolto por espirais de morte e destruição.

Yussef guinchou como uma alma penada,deixou cair o bastão ju-ju e se juntou aosseus companheiros que corriam selva aden-tro em fuga louca, precedidos por seus alia-dos uivantes. Só os escravos não fugiram,

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permanecendo algemados ao seu destino echorando de terror. Como num pesadelo dedelírio, Kane viu Hassim balançando comoum junco ao vento, envolvido por uma gi-gantesca e pulsante Coisa vermelha, a qualnão tinha forma nem substância terrena.Então, quando o estalar de ossos quebradoschegou até ele, e o corpo do sheik se dobroucomo palha sob um casco triturador, o inglêsrompeu suas amarras com um esforço vul-cânico, e pegou o bastão ju-ju.

Hassim estava caído, esmagado e morto,esparramado como um brinquedo quebrado,com os membros destroçados e tortos; e aCoisa vermelha e pulsante cambaleava emdireção a Kane, como uma espessa nuvem desangue no ar, a qual mudava continuamentede forma e contorno; e ainda assim, camin-hava pesadamente, como se estivesse sobreduas pernas monstruosas!

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Kane sentiu os dedos frios do medo lheagarrarem o cérebro, mas ele se firmou e,erguendo o antigo bastão, golpeou com todaa força no centro daquele Horror. E sentiuuma inominável substância imaterial encon-trar e recuar diante do bastão cadente.Então, ele foi quase estrangulado pela ex-plosão nauseante de fedor profano que inun-dou o ar e, em algum lugar, lá no fundo doshorizontes obscuros da consciência de suaalma, ressoou intoleravelmente um disformecataclismo horrendo, o qual ele sabia ser ogrito de morte do monstro. Pois este estavacaído e morrendo aos seus pés, com seu

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escarlate empalidecendo em lentos vagal-hões, como o erguer e recuar de ondas ver-melhas em alguma costa repugnante. E, aoempalidecer, o grito silencioso diminuiu, emdireção a distâncias cósmicas, como se desa-parecesse dentro de alguma esfera distante eafastada, além da percepção humana.

Atordoado e incrédulo, Kane desceu o ol-har para uma massa disforme e incolor -quase invisível - aos seus pés, a qual ele sabiaser o cadáver do Horror, lançado de volta aosreinos escuros do qual viera, por um únicogolpe do bastão de Solomon. Sim, o mesmobastão, Kane sabia, que nas mãos de um po-deroso rei e mago, havia, eras atrás, lançadoo monstro para dentro daquela estranhaprisão, para aguardar até o dia em que mãosignorantes o libertassem novamente sobre omundo.

Então, os velhos contos eram verdade, e oRei Salomão havia realmente expulsado osdemônios para oeste e aprisionado-os em

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estranhos lugares. Por que ele os deixouviver? Seria a magia humana fraca demais,naqueles dias obscuros, para fazer mais doque subjugar os demônios? Kane estremeceuos ombros, assombrado. Ele não entendianada de magia, mas havia matado o que ooutro Solomon só havia aprisionado.

E Solomon Kane estremeceu, pois tinhavisto uma Vida que não era a Vida como eleconhecia, e havia causado e testemunhadouma Morte, que não era a Morte como con-hecia. A compreensão chegou até ele, comohavia feito nos salões empoeirados da Negariatlante, como nas detestáveis Colinas dosMortos, como em Akaana - de que a vida hu-mana era apenas uma entre mil formas deexistência, de que existiam mundos dentrode outros mundos, e que existia mais de umplano de existência. O planeta, ao qual os ho-mens chamam de Terra, girava através deeras incalculáveis - Kane percebia -, e ao gir-ar, produzia Vida, e seres vivos que

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rastejavam ao redor dele, como larvasproduzidas pela podridão e corrupção. Ohomem era agora a larva dominante. Por queele haveria de supor, em seu orgulho, que elee seus auxiliares eram as primeiras larvas, ouas últimas a governarem um planeta anim-ado por vida desconhecida? Ele sacudiu acabeça, olhando com novo assombro para oantigo presente de N'Longa, vendo-o final-mente, não como uma simples ferramenta demagia negra, mas como uma espada debondade e luz eterna contra os poderes domal inumano. E foi sacudido com uma es-tranha reverência por ele, a qual era quasemedo. Logo, se inclinou em direção à Coisaaos seus pés, estremecendo ao sentir-lhe aestranha massa deslizar entre seus dedos,como fragmentos de névoa espessa. Ele em-purrou o bastão sob ela e, de alguma forma,ergueu e empurrou a massa de volta aomausoléu, e fechou a porta.

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Logo, ficou contemplando o corpo estran-hamente mutilado de Hassim, notando comoestava manchado de limo repugnante, ecomo já começava a se decompor. Ele es-tremeceu de novo, e subitamente uma vozbaixa e tímida o despertou de suas medit-ações sombrias. Os cativos estavam ajoelha-dos sob as árvores, e observavam comgrandes olhos pacientes. Com um sobres-salto, se livrou de seu estranho humor.Tirou, do cadáver embolorado, as própriaspistolas, punhal e espada, sacudindo-os paralimpar a sujeira aderente que já estava man-chando o aço com ferrugem. Ele tambémpegou uma porção de pólvora e balas, asquais os árabes haviam deixado cair em suafuga frenética. Sabia que não retornariammais. Talvez morressem em sua fuga, outalvez alcançassem a costa através de léguasintermináveis de selva; mas não voltariampara enfrentar o terror daquela horrívelclareira.

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Kane se aproximou dos escravos desven-turados e, após alguma dificuldade, oslibertou.

- Peguem as armas, as quais os guerreirosdeixaram cair em sua pressa. - ele disse -, evoltem para casa. Este é um lugar maligno.Voltem às suas aldeias e, quando os próxi-mos árabes vierem, prefiram morrer nasruínas de suas cabanas do que seremescravos.

Então, eles estavam prestes a se ajoelhar-em e beijarem seus pés, mas ele, bastanteconfuso, os proibiu asperamente. Logo,quando se preparavam para ir, um deles lhefalou:

- Mestre, o que farás? Não queres retorn-ar conosco? Tu serás nosso rei!

Mas Kane negou com a cabeça.- Vou para o leste. - ele disse.E assim, o povo das tribos se inclinou em

direção a ele, e deu a volta para iniciar olongo caminho de volta ao lar. E Kane lançou

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ao ombro o bastão que havia sido o cetro dosfaraós, de Moisés, de Salomão e dos anônim-os reis atlantes que os precederam; e virou orosto para leste, parando apenas para olharrapidamente para trás, em direção ao grandemausoléu que outro Solomon havia con-struído com estranhas artes, há muito tempoatrás, e que agora avultava escuro e eterna-mente silencioso em direção às estrelas.

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O Regresso a Casa deSalomão Kane

(adaptação livre da ESC 27)

Alvas gaivotas rondavam as rochas

densas escumas açoitavam o ar.

As ondas se erguiam qual chama de tochas

quando Salomão Kane retornou ao lar.

Recluso em silêncio, hirto seu passo

Sondado sondava Devon, sua cidade.

Imerso em Memórias de um

tempo já escasso, ardia em

seu peito sufocante saudade

A taverna abrigou-o em verdade descrente:

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“Seria mesmo Kane, o guerreiro do Senhor

o bravo ser altivo, de pureza evidente,

que honrava aquele teto com seu grande valor ?”

Erguendo sua caneca em brinde a Deus

Saudou Salomão a todos os seus,

E quebrando o silêncio que até agora fizera,

narrou de imediato o que de fato ocorrera:

“Jamais esquecerei o dia terrível...

Liderando sua nau, esquecendo o perigo,

Sir Richard Grenville empreendeu o impossível

No intento absurdo de enfrentar o inimigo ! “

“A cada aurora rubra

que os dias traziam,

nossa luta renhida

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jamais recuava !

Corpos mutilados

o convés recobriam

banhados pelo sangue

que a morte espalhava !”

“ Inevitável então, a tragédia consumada

ornou de destroços a maré agitada.

E mostrando a todos que por fim triunfou,

a morte implacável Sir Grenville arrebatou !”

Partidas as nossas

extenuadas espadas,

sem líder a brava

e fiel tripulação...”

“Extinguiu-se aos poucos a empresa malfadada

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e viu seu fim a portentosa embarcação ! “

“Onde estará Bess ? “, indagou então Kane.

“Como dela lágrimas pude eu arrancar ? “

Pertence ela agora ao frio

cemitério, que qual eremitério

a irá sempre abrigar !”

O vento lá fora uivava

quando então numa pausa

baixou seu olhar

o triste puritano...

“A morte não vê homem,

mulher ou causa …

Esse é o terrível

fado humano ! “

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“Eu vi a magia

negra

em desnudos paragens ...”

“Vi bruxos

evocarem

pavorosas

imagens !”

“Conheci também, um dia,

a imortal soberana

de uma cidade antiga como a morte !

Reinando solitária, com o

demônio, seu consorte,

ocupava ela o altar de

divindade profana !”

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“Seu beijo expelia um negro veneno

ainda que ao paladar lembrasse néctar puro,

E cada vil vassalo do macabro reino escuro

Vivia qual zumbi a adorar o deus obsceno ! “

“Combati formas vampiras

que todos a vida sugavam

E atravessei colinas vazias

onde, à noite, só os mortos vagavam !”

“Contemplei um sem-número

de crânios cortados,

espalhados pela terra.

Tão árida e nua,

e o voo devasso

de demônios alados

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de encontro ao clarão

da pálida lua !”

“ Tenho os pés cansados de vagar.

E o tempo passa, eu bem sei !

Eu poderia em Devon me fixar

e cultivar as raízes que deixei

Nisso, o oceano

rugiu num rompante.

Pôs fim ao devaneio

de Solomon Kane

e Indicou-lhe o destino

que o esperava adiante

Sem titubear, sem mais dizer nada,

erguendo-se, Kane cingiu sua espada.

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Olhando então a noite com austero

semblante,

abriu o puritano caminhos entre a gente

que só o viu caminhar para o negro

horizonte.

Houve mesmo aqueles que

seu vulto esguio

viram caminhando contra

a lua incolor.

Mas com que destinho, por que trilhas seguiu,

homem algum foi capaz de supor...

...embora murmurasse

a brisa agitada:

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“Sua vida será sempre

uma sem-fim caminhada !”

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Agradecimentos

Meu agradecimento a Fabrício Sousa, Fernando Neeser de Aragão,Edilene Brito da Cruz de Aragão, que disponibilizaram estes contostraduzidos no site Crônicas da Ciméria e o pessoal da Saída de Emer-gência (Portugal), tornando possível a edição deste e-book.Estes tradutores e digitadores não participaram diretamente da ediçãodeste livro eletrônico.Ilustrações © 1998 por Gary Gianni

***The Right Hand of Doom © 1968 by Glenn Lord for Red ShadowsRattle of Bones © 1929 by Popular Fiction Publishing Company forWeird Tales, June 1929The Moon of Skulls © 1930 by Popular Fiction Publishing Companyfor Weird Tales, June, July 1930Hawk of Basti © 1968 by Glenn Lord for Red ShadowsSkulls in the Stars © 1928 by Popular Fiction Publishing Company forWeird Tales, January 1929The Hills of the Dead © 1930 by Popular Fiction Publishing Companyfor Weird Tales, August 1930The Children of Asshur © 1968 by Glenn Lord for Red ShadowsThe Footfalls Within © 1931 by Popular Fiction Publishing Companyfor Weird Tales, September 1931Solomon Kane's Homecoming © 1936 by Shepherd and Wollheim forFanciful Tales, Fall 1936

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PEQUENA BIOGRAFIA DEROBERT E. HOWARD

Robert Ervin Howard, criador de densas e vigorosas fantasias, nasceuem 22 de janeiro de 1906, em Peaster, Texas. Leitor insaciável desde ainfância, sentia fascínio inato pela História, o que lhe foi muito útilanos mais tarde. Sua inclinação literária, contudo, parecia algo incoer-ente, principalmente quando comparada ao seu aspecto físico: cercade 1,83 m de altura, pescoço grosso, cintura esguia, enfim, tudo paraser associado, como foi, aos personagens que criou e tornou famosos.

Ainda jovem, Howard fez de tudo um pouco: foi repórter jornalístico,secretário particular numa agência de advocacia, taquígrafo, bal-conista de lanchonete e... ah, sim, até carteiro. Tudo isso sem nuncaperder de vista sua verdadeira vocação de contador de históriasfantásticas.

Sua fértil carreira de ficcionista, propriamente, teve início quando, aos18 anos, sua primeira história foi vendida para a legendária revistaWeird Tales, criando praticamente sozinho o atualmente difundidogênero de magia e aventura, apresentando aos leitores o Rei Kull daValúsia em 1929 e Conan da Ciméria em 1932. Ele também escreveucontos esportivos, bem como histórias orientais e de faroeste para out-ras revistas.

Seu estilo pitoresco, emoldurado por ambientações dramáticas esalpicado de batalhas sangrentas, garantiu-lhe grande sucesso comoautor de aventuras e inveja por parte de seus colegas. Howard também

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aventurou-se na poesia; para citar o poeta H. P. Lovecraft, sua obraera "estranha, vertiginosa, emocionante". Além das obras publicadas,Robert E. Howard manteve volumosa correspondência com personal-idades literárias, como Clark Ashton Smith, Edmond Hamilton, E.Hoffmann Price, Otis Adelbert Kline e o já mencionado H. P.Lovecraft.

De longe sua criação mais conhecida, Conan, tornou-se tão popularentre os leitores da Weird Tales que Howard foi obrigado a abandonarseus outros heróis para dedicar-se exclusivamente às sagas do gigantecimério. Ele esboçou numerosos contos sobre o intrépido bárbaro,mas devotou suas energias na escritura de uma única novela sobre oherói, chamada A Hora do Dragão (The Hour of the Dragon). Com-posta em parte por vários contos recuperados, a novela passou a serimpressa em forma de livro como Conan, o Conquistador (Conan theConqueror).

Howard morava com seus pais no vilarejo de Cross Plains, Texas, e suacarreira ganhou ainda mais notoriedade quando os vizinhos descobri-ram que a renda do autor era maior que a do presidente do banco. Suaúltima história, assim como a primeira, foi vendida para a WeirdTales.

Robert E. Howard suicidou-se em 11 de junho de 1936.

Após sua morte, suas obras pareciam fadadas ao esquecimento, comoocorreu com a produção de autores do mesmo gênero. Na década de40, alguns contos de Howard foram reunidos numa edição limitada decapa dura da Gnome Books. Porém, a verdadeira ressurreição do in-teresse pela obra do escritor só aconteceu nos anos 60, quando ashistórias de Conan voltaram a circular na forma de brochura, e novashistórias foram criadas por L. Sprague de Camp e Lin Carter.

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Em 1970 a Marvel Comics adquiriu os direitos para versão em quad-rinhos de Conan e outros personagens de Robert Howard, dando iní-cio à mais extensa e prolífera das publicações howardianas. Esseprocesso estende-se até hoje, com exceção de um período em que asbrochuras de Conan Canon (Os Cânones de Conan) não eram disponí-veis devido a complicações jurídicas. Nesse período, a premiada sériecolorida em quadrinhos, Conan the barbarian (Conan, o Bárbaro),manteve o público em contato com o herói.

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1) Espécie de astrônoma tribal amadora (Nota do Tradutor). ?

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2) Afrit: Um poderoso espírito do mal, ou gigantesco e mon-struoso demônio, na mitologia árabe (Nota do Tradutor). ?

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