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CONTOS POPULARES DO TIBETE
OS MAIS BELOS DIÁLOGOS NA LITERATURA BUDISTA
O ESPÍRITO E A NATUREZA
MENSAGEM DE SUA SANTIDADE O XIV DALAI LAMA
http://br.groups.yahoo.com/group/digital_source/
Título: CONTOS POPULARES DO TIBETE
Seleção: Jayang Rinpoche
Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida
Capa: Camila Mesquita
Editor: Antônio Daniel Abreu; Produção Gráfica: Kleber Kohn
ÍNDICE
O Espírito e a Natureza
Mensagem de Sua Santidade o XIV Dalai Lama
O Tibete e o Budismo
A Criação
Opame, Chenrezik y Dolma
O Primeiro Rei do Tibete
Padmasambhava e a Echarpe da Felicidade
De como Asanga chegou a ver o Buda Futuro
O Castelo do Lago
O Moço que se Negava a Matar
O Homem Bom
O Transformador do Tempo
O Tesouro Perdido
A Oração que foi Escutada
A Árvore-Sombrinha
Os Amantes
A Rã
O ESPÍRITO E A NATUREZA
MENSAGEM DE SUA SANTIDADE O XIV DALAI LAMA
Creio que viestes aqui com algum tipo de expectativa, porém, no essencial,
nada tenho a oferecer-vos. Tentarei, simplesmente, compartilhar com vocês algumas
das minhas experiências e visões.
Cuidar do Planeta não exige nada de especial ou sagrado, é como cuidar da
nossa própria casa. Não temos outro Planeta como casa depois deste. Apesar de
existirem aqui uma série de problemas e desequilíbrios, esta é a nossa única
alternativa, não podemos ir para outro Planeta. Tomemos como exemplo a Lua; desde
os tempos antigos, seu aspecto é belo, porém, se alguém vai instalar-se lá para viver,
pode ser horrível. Esta é a minha opinião. Nosso Planeta azul é muito melhor e muito
mais atrativo. Portanto, devemos cuidar do lugar onde vivemos, nossa casa, o
Planeta.
Apesar de tudo, o ser humano é um animal social. Com muita freqüência
costumo repetir junto aos meus amigos, que eles não têm necessidade de estudar
filosofia, esses temas complicados e acadêmicos. Simplesmente, ao observar com
freqüência estes inocentes animais, como os insetos, formigas, abelhas, etc, em geral,
tenho um certo tipo de respeito para com eles. Por quê? Eles não têm nenhuma
religião, constituição, força política, nada. No entanto, vivem em harmonia com a lei da
existência, as leis da natureza.
O que sucede com os seres humanos? Temos grande capacidade de
inteligência e sabedoria porém, com freqüência, a utilizamos de forma incorreta. Como
conseqüência realizamos ações que vão contra a natureza básica humana.
Analisada de um certo ponto de vista, a religião é um luxo. Se dispomos de
uma religião, pode ser positivo, porém, se ficarmos sem ela, podemos sobreviver mas,
sem o afeto humano, somos incapazes de viver.
Se, o bem, o mal e o ódio tal como o amor e a compaixão fazem parte da
mente, continuo acreditando que a força dominante da nossa mente é a compaixão e
o afeto humano. Por essa razão normalmente chamo a essas qualidades de
"espiritualidade", não no sentido religioso. A ciência e a tecnologia junto com o afeto
humano é construtiva. A ciência e a tecnologia a serviço do ódio, é destrutiva.
Quando se pratica uma religião de forma genuína, esta não é algo que passa
a estar no exterior mas sim no nosso coração. A essência de toda e qualquer religião é
a bondade de coração aberto. Às vezes refiro-me ao amor e à compaixão, como uma
religião universal. Esta é a minha religião. As filosofias complicadas, com freqüência
trazem mais problemas e contradições. Se essas complicadas filosofias são úteis para
desenvolver um coração bondoso, então usemo-las plenamente; se, pelo contrário, se
convertem num obstáculo para gerar essa bondade de coração, o melhor é
abandoná-las. Isto é o que sinto.
Se observarmos a natureza humana com detalhe, o afeto é a chave para a
bondade. A mãe natureza, em minha opinião, é um símbolo de compaixão. Todos
temos uma semente de energia bondosa dentro de nós. Realizar a compaixão
depende unicamente de cuidar dela ou não.
Discurso de Sua Santidade o Dalai Lama em Middlebury sobre o tema:
Espírito e Natureza, em 14 de setembro de 1990.
O TIBETE E O BUDISMO
Durante o período que compreendeu, mais ou menos, o último quartel do
século passado e a primeira metade do atual, o Tibete exerceu, sobre muitos espíritos
ocidentais, uma considerável fascinação. Fascinação de dupla natureza, diríamos: a
que se vinculava a seu epíteto de "país das neves"¹, por uma parte, e a que respondia
à sua condição de "país de monges"², por outra, acentuadas ambas pelo difícil acesso
ao Tibete — fator que o envolvia — ainda mais, numa aura de mistério.
Assim, pois, cedendo a essa dupla fascinação, a busca do exótico, de um
lado, e a busca do espiritual, do outro, se orientaram, em certa ocasião, para um
objetivo comum; e, além disso, ambas apareceram, muito freqüentemente,
combinadas de forma mais ou menos inextricável. As conotações particulares, com as
quais o Tibete aparecia mostrado aos olhos do Ocidente que, intrigado, o ia
descobrindo, convertiam-no no ponto de convergência de uma nostalgia sentida e
expressada de diferentes maneiras, mas que, fundamentalmente, se pode reputar
como única: a nostalgia das origens, a nostalgia daquele "Pardes", no Éden, ao
Oriente, à qual, talvez, muito além da simples alegoria, o Tibete estivesse, realmente,
em condições de corresponder.
E, para um Ocidente excêntrico, submerso nas sucessivas ondas da
modernidade, o Tibete representava de forma eminente o outro prato da balança,
intrigante e incômodo ao mesmo tempo, atraente e problemático. Intrigante, porque o
Tibete nos fazia pressentir "o que nós somos", e incômodo, porque nos obrigava a
abandonar aquilo "que queríamos ser". Ante o avanço e o estabelecimento das
democracias, o Tibete oferecia uma teocracia incontestada; ante o progressismo, uma
total fidelidade à tradição; ante a extensão a todas as ordens de uma visão secular
das coisas, a impregnação do sagrado em todas elas.
Assim, a questão do Tibete, como quer que fosse abordada, devia pôr
sempre em discussão a alternativa modernidade-tradição e tudo o que ela comporta.
Só que, tal alternativa, contrariamente ao que se possa pensar, é algo mais do que o
resultado de uma opção por qualquer uma das duas ordens de valores, à vontade
intercambiáveis. Na realidade, ela traduz o contraste entre a não-escolha e a escolha,
mas ao contrário do que hoje se pretende. Pode-se afirmar — e nisto deve-se ver algo
mais do que um uso arbitrário de palavras — que não se escolhe a modernidade, mas
se cede a ela, enquanto que se escolhe, sim, a tradição, se opta por ela. O "povo
escolhido" é, da mesma maneira, o povo "que elege". Uma comunidade tradicional é,
metafisicamente, uma matriz que se tem preparado para acolher uma semente
espiritual concreta e para dar-lhe forma.
O Ocidente se encontrava, pois, ante um dilema que não era capaz de
resolver e no qual constantemente haveria de tropeçar. O Tibete, dissemos antes, era
sentido obscuramente como um anseio, e, ao mesmo tempo, representava um
problema difícil. Mas o Ocidente, finalmente, acabou encontrando uma solução para
as duas alternativas. Por meio de caminhos sutis, mais misteriosos "que o caminho
que o peixe segue sob as águas", o Ocidente viu-se livre do problema transmitindo a
outros a sua resolução. Com a "sacrílega invasão do Tibete" (Marco Polo), o implícito
denunciador da modernidade passava a ser integrado nolens volens ao mundo
moderno, ou, mais precisamente, ao lado mais sinistro deste. E, com a diáspora que
veio depois, o Ocidente passou a dispor, e nos marcos de sua própria cultura, dos
elementos nos quais acreditava se cifrasse aquele anseio. Assim, hoje, o personagem
com o qual Somerset Maugham quis desenhar a atração do Ocidente pelo Tibete
poderia encontrar a este em sua própria cidade, "vantagem" esta de duplo "fio".
O Ocidente cria fórmulas, vive delas e eventualmente as exporta. Dessa
maneira, acredita que, se o Comunismo ou o "American way of life" são exportáveis e
implantáveis em solos vários, também o tibetano pode ser uma semente que dê frutos
em outras culturas. Mas, esta conceptualização é artificial, e abstrair "o tibetano" do
seu contexto original é desconhecer sua autêntica natureza. Uma realidade espiritual
como a que o Tibete expressava se acha misteriosa e indecifravelmente unida a um
marco humano e geográfico determinado, fora do qual os elementos que a integram
correm o risco de perder a força de coesão que os aglutina e lhes dá a sua eficácia³.
Assim, pois, entendemos que, a um nível global, o Ocidente tem saído
igualmente perdendo com a nova situação criada a partir de 1959, e achamos que a
única atitude de seguros frutos para o próprio Ocidente, atitude tão nobre quanto
utópica, verdade seja dita, dadas as circunstâncias, seria a de tentar que "o tibetano"
fosse restituído ao Tibete.
Foi dito antes que uma comunidade tradicional era uma matriz preparada
para acolher uma semente espiritual concreta. O Tibete o foi para o budismo, e, mais
particularmente, para o budismo tântrico, que nele achou o receptáculo privilegiado
para a sua melhor floração. Não obstante, a equação Tibete = budismo tântrico não é
absoluta em nenhum dos dois sentidos. Nem a realidade do Tibete se reduz à de ser
uma expressão da essência dessa via espiritual, nem a realidade desta se esgota, por
sua vez, na expressão que recebeu do Tibete.
Dentro das fronteiras do Mahâyâna, foi-se desenvolvendo uma corrente
particular que, integrando diversos elementos que se encontram igualmente no seio
do hinduísmo, chegou a se constituir numa "terceira via", numa terceira "colocação em
movimento da roda do Dharma", e ofereceu um caminho rápido, um atalho, para
chegar ao objetivo final perseguido por todas as escolas budistas. Se o Mahâyâna se
baseia nos sütras, que recolhem os sermões dos últimos anos da vida do Buda
Sâkya-muni — nos quais aparece de forma explícita a dimensão misericordiosa e
esotérica do Dharma —, o budismo tântrico se baseia nos tantras. Os tantras são
textos para os quais não se reivindica uma filiação determinada e cuja função consiste
em indicar os meios "técnicos" a serem utilizados para alcançar o fim proposto. Meios
entre os quais poderíamos distinguir: os relacionados mais especificamente com a
Ioga, os que se enquadram no Dhyâna (meditação), e aqueles que podem ser
denominados "alquímicos", isto é, aptos para trans-mudar as disposições "naturais" da
alma, para espiritualizá-las, de acordo com a perspectiva geral do tantrismo, para o
qual as paixões não são más em si mesmas, e não devem, portanto, ser destruídas,
mas sim, "convertidas", ou seja, reconduzidas à Verdade, da qual, em determinadas
ocasiões, não são senão expressões aberrantes.
O conjunto destes meios se integra num esquema tríplice, que corresponde
ao "Tríplice Mistério do Corpo, da Palavra e da Mente": por uma parte, os "ritos de
consagração" (ou iniciações: abhiseka); por outra, as invocações de mantras; e,
finalmente, as práticas de meditação. Conhece-se esta via como Mantrayâna ou,
sobretudo, como Vajrayâna ("Veículo diamantino"), o qual é reconhecido pelo símbolo
que o distingue em especial: o vajra. Este, originariamente, representava o raio, como
atributo do deus hindu Indra, um equivalente do Zeus grego; metafisicamente,
simboliza o princípio masculino da manifestação universal. A idéia subjacente a esta
palavra, não obstante, é a de imutabilidade e indestrutibilidade; assim, na perspectiva
budista, se a entende como aplicada à "senhora das pedras" (isto é o que exatamente
quer dizer a sua tradução tibetana: dorje I rdo I rje I): o diamante. Serve para
simbolizar o método espiritual (upâya; tibetano, thabs), a força invencível e pura que
opera o milagre de que "cheguemos a ser o que somos". O vajra se concretiza num
objeto ritual à maneira de cetro, o qual é o distintivo específico do lamaísmo, a forma
tibetana do budismo tântrico.
O budismo tântrico, entretanto, como foi dito anteriormente, não esgota a sua
realidade na do lamaísmo. Nascido na índia e cultivado em centros tão prestigiosos
como a Universidade de Nâlandâ, um dos centros máximos da irradiação do budismo
mahâyâna, o budismo tântrico teve, certamente, no Tibete um depositário providencial,
que, fazendo-o seu, o preservou de uma possível extinção. As devastações efetuadas
nos séculos XI e XII pelos invasores islâmicos haviam causado um dano irreparável
aos centros budistas da índia e transferido ipso facto ao Tibete a condição de centro
do budismo mahâyâna. De qualquer maneira, paralelamente à implantação do
budismo tântrico no Tibete, ocorreu também a sua implantação no Japão,
fundamentalmente por parte daquele que fora um dos expoentes máximos da
espiritualidade budista: Kükai, conhecido por seu título póstumo de Kôbô Daishi. Este
criou, no início do século IX, a escola que é, provavelmente, a forma mais
quinta-essenciada do budismo tântrico: o shingon, escola que continua, hoje,
plenamente florescente no Japão. O que nos parece mais interessante destacar a este
respeito é o fato de Kükai ter recebido este ensinamento de mestres chineses, os
quais, por sua vez, haviam-no recebido diretamente de mestres hindus de Nâlandâ.
Por outro lado, essa particular amálgama do budismo tântrico com formas
mágico-chamânicas ancestrais, amálgama que caracteriza o lamaísmo e lhe dá o seu
timbre peculiar, tampouco é exclusiva deste, pois aparece igualmente no shingon
japonês. Isto parece indicar que essa amálgama responderia mais a uma íntima
solidariedade, possível de se encontrar na própria natureza das coisas, do que a uma
mera integração circunstancial de elementos presentes em determinadas condições
de tempo e de lugar.
De qualquer maneira, a "originalidade" do Tibete estaria no fato de ele ter-se
identificado majoritariamente como povo com essa forma espiritual concreta, e de ter
extravasado nela todo o seu "gênio", produzindo uma síntese única e exemplar, de
uma riqueza, sob todos os aspectos, extraordinária.
Na consciência tibetana, distinguem-se duas ordens: a que depende de uma
Lei divina (Lha-chos) e a baseada numa tradição humana (mi-chos). Na primeira
categoria entram, na história tibetana, não apenas os últimos mil e duzentos anos,
regidos pelo Dharma (chos), em tibetano búdico, mas, também, o período
indeterminado anterior, regido pelo que se conhece como religião Bon. Tudo o que faz
referência a esta permanece ainda muito pouco esclarecido, e acaba sendo muito
difícil distinguir, particularmente, o que ela poderia ter sido em sua fase pré-budista, e
o que hoje ela é. Para os seus praticantes, a Bon atual é a mesma que em suas
origens, as quais coincidiriam com as do Tibete como povo; para os budistas,
entretanto, o que hoje se conhece como Bon não é mais do que uma heterodoxia
budista, surgida como reação ao triunfo do budismo no Tibete — e este é, certamente,
o aspecto sob o qual o budismo tibetano, em geral, tem sido apresentado pelos
estudiosos ocidentais que dele se têm ocupado. De todo modo, parece existir, sim,
uma vinculação entre o Bon pré-budista e as origens do povo tibetano como tal, pois
este último procederia concretamente do que hoje é o Tibete ocidental,
particularmente a região do Monte Kailas, que continua sendo hoje a região Bon por
excelência.
Além disso, não é possível estabelecer uma categorização rígida em torno
das duas noções de lha-chos e de mi-chos, pois, em função dos elementos de que se
dispõe, sua linha de demarcação é imprecisa. Por um lado, parece que somente o
budismo poderia reivindicar o primeiro qualificativo; mas, por outro lado, é provável
que o budismo tenha chegado a gozar do mesmo apenas por extensão, pois este
corresponderia por definição ao Bon. Entretanto, caberia, ainda, distinguir entre um
"Bon do céu" (gnam-Bon), primordial e atemporal, e o "Bon da esvástica" (g-yung
drung Bon), de origens históricas. De qualquer forma, mesmo o primeiro destes não
teria uma vinculação exclusiva com as origens míticas do Tibete, as quais estariam
representadas, de igual maneira, pelos dois elementos básicos que compõem o
mi-chos: os "contos míticos" (sgrung) e as lendas ou "enigmas" (Ide 'u). Assim, um
texto tibetano nos diz que, durante a vida do primeiro soberano mítico do Tibete,
apareceram conjuntamente o lha-chos, os sgrung e os lde'u, entendendo-se pelo
primeiro o "Bon do céu". Mas, e para aumentar a confusão, no relato sobre esse
primeiro rei mítico do Tibete contido na presente coleção, vê-se que, ao chegar esse
personagem ao Tibete, já havia neste "sacerdotes da antiga religião".
Em todo caso — e este é justamente o dado que nos interessava destacar
em especial —, o que sempre aparece designado como michos (que poderíamos
traduzir como "sabedoria popular"4) são esses sgrung e lde'u vinculados a um
passado mítico, assim como a instituição que tem como missão conservá-los e
transmiti-los: a dos bardos (sgrung-mkham). Parece-nos particularmente significativo
o fato de estudiosos ocidentais terem designado com o nome de "bardos" os cantores
tibetanos de contos míticos, pois as analogias que estes apresentam com os bardos
celtas são notáveis. Estes últimos, transmissores dos ensinamentos dos druidas —
que prolongavam, de certo modo, a própria função destes como sacerdócio não
vinculado a uma religião histórica, mas a uma sabedoria primordial — encontram um
fiel reflexo nos sgrung-mkham tibetanos. Estes continuaram a existir depois da
instauração definitiva do budismo no Tibete, e, assim, a situação deste parece-nos
insinuantemente análoga à que se encontra na Idade Média em certos povos celtas
cristianizados, nos quais os vestígios da antiga ordem permeavam ainda todas as
camadas da tradição.
E a este respeito, parece-nos particularmente digno de nota o fato de o tema
por excelência dos bardos tibetanos ser o da saga do rei Gesar de Ling, personagem
equivalente ao Artur céltico; saga onde, quanto ao mais, aparecem muitos elementos
perfeitamente homologáveis aos que nos oferece o ciclo do Graal.
A narração dos contos possuía, no Tibete, o caráter de rito e devia ser
praticada respeitando uma série de requisitos. Quem a ela se dedicava devia possuir
uma série de condições também especiais, pois sua função era de grande
responsabilidade, da qual dependia, em grande parte, a preservação do que hoje
chamaríamos de indícios da identidade de um povo. O bardo tibetano, que se vestia
com um estranho chapéu, de caráter marcadamente simbólico e parecido ao dos
bufões das cortes medievais, não somente era poeta, cantor e músico, de memória
perfeitamente treinada, mas era também um chama, que, como os famosos oráculos
(chos-skyong) lamaicos, recebia sua inspiração em estados de transe.
Entretanto, nessa tarefa de transmitir a informação tradicional, os bardos não
estavam sozinhos: monges errantes, narradores ambulantes manipa e os próprios
peregrinos participavam dessa incumbência.5 Por outro lado, o próprio povo, dotado
dessa magnífica e quase prodigiosa memória que somente se dá nas culturas de
tradição oral, mantinha vivas e enriquecia, sem com isto desvirtuá-las, as narrações
tradicionais. Tem-se dito que a narração de contos foi o equivalente, no Tibete, da
nossa televisão. Isto, muito mais do que um chiste, vem revelar uma autêntica
analogia, pois ambas — narração de contos e televisão — vieram para cumprir, com
efeito, o mesmo encargo: transmitir os mitos de uma cultura. Só que, no caso dos
contos tibetanos, os mitos informavam autenticamente sobre a realidade das coisas, e
a sua narração se ajustava também a esta realidade, razão pela qual se podia dizer
que no Tibete "o Céu escutava os contos".6
Queríamos referir-nos agora ao Tibete em sua condição de pátria de eleição
do budismo tântrico. Nesta dimensão, deve incluir-se não somente o Tibete estrito,
mas, também, as demais zonas de população tibetana situadas ao longo dos
Himalaias (como Ladakh, Zaskar, Lahul, a oeste; Mustang, no centro; e Bhután,
Darjeeling e Sikkim, a este, entre outras) e a Mongólia, que recebeu o budismo
tântrico do Tibete mais tardiamente.
O budismo tibetano, o lamaísmo, é, fundamentalmente, como havíamos dito
antes, uma amálgama do budismo tântrico hindu com a religião e as crenças
populares autóctonas, de tipo mágico-chamânicas. Reconhece-se o lamaísmo pela
função primordial que nele desempenha a figura do lama (blama), quem, em rigor, é o
mestre espiritual; entretanto, o mesmo título é também aplicado ao que chamaríamos
de "dignidades eclesiásticas". Embora o lamaísmo constitua um corpo homogêneo,
comporta, no entanto, urna diversidade interna, fruto basicamente da maior ou menor
importância dada aos distintos elementos que o integram. Estruturado, na maior parte
— embora não de forma exclusiva — em torno do modelo de vida monástica essa
diversidade se traduz na existência de distintas ordens: quatro, fundamentalmente,
que são as que assumem a função ativa, poderíamos dizer, com respeito à custódia e
à prática da doutrina budista. O povo simples participa disso de uma forma adaptada
às suas possibilidades, dado o caráter propriamente iniciático dessa via; mas o seu
"gênio" tem posto a marca peculiar que possuem as manifestações exteriores da
mesma, as quais dão forma à imagem que dela se possui no Ocidente.7
No entanto, por ser o resultado da inteiração recíproca do substrato religioso
e cultural com a doutrina budista, é difícil determinar, por este motivo, o que
corresponde, no lamaísmo, a desenvolvimentos próprios da doutrina budista, e o que
corresponde a contribuições do substrato religioso e cultural. Da mesma forma,
inversamente, acaba sendo difícil decidir até que ponto esse substrato foi modificado
pelo budismo, ou está apenas recoberto de uma roupagem búdica ao ser expressado.
Esta dificuldade é melhor apreciada, mais precisamente, nos relatos da presente
coleção, nos quais se observa como temas ancestrais estão expressos em termos
budistas ou receberam uma orientação budista.
O budismo não penetrou no Tibete, foi convidado para ele — ponto este que
estimamos da maior significação. Estabelecido o budismo, havia já muito tempo, em
Cachemira, na China e nas zonas da Ásia Central em contato com o Tibete, este
permaneceu à margem de sua irradiação até meados do século VII da nossa era. Foi,
então, quando o rei do Tibete, Song-tsen Gampo (Srong-brstan-sgampo), que por este
motivo passou a ser considerado o primeiro chosrgyal (Dharma-raja, em sânscrito),
deu os primeiros passos para a introdução do budismo no Tibete. Esta iniciativa veio a
ser propiciada, ao que parece, pela condição de budistas de duas de suas esposas:
uma princesa chinesa, Wen-ch'eng, e uma princesa nepalesa, Bhrikutim, as quais
teriam convencido o rei nesse sentido. Tudo isto, entretanto, não é mais que o
translado de uma realidade espiritual: tradicionalmente, as duas princesas são
consideradas como sendo a encarnação de Târâ, à qual nos referiremos a seguir, e ao
próprio rei como a encarnação de Avalokitesvara.8
Târâ, divindade menor do hinduísmo, passou a ter um papel destacado no
budismo tântrico. Neste, Târâ é, fundamentalmente, uma personificação do aspecto
feminino da Misericórdia9. Não obstante, é comum que apareça representada, na
iconografia tibetana, sob vinte e um aspectos agrupados ao redor de um único
aspecto central,10 no qual se considera o mentor de Vairocana (ou Amoghasiddhi,
segundo as escolas), a personificação da "budeidade" universal. Além disso, faz-se,
com freqüência, a distinção entre a Târâ branca (sita-Târâ); tibetano, sgrol-dkar) e a
Târâ verde (syma-Târâ; tibetano, sgrol-ljang), as quais são, respectivamente, a
padroeira da Mongólia e a padroeira do Tibete. E teriam sido justamente estes dois
aspectos os que se encarnaram, respectivamente, na princesa chinesa e na princesa
nepalesa, fazendo com que Târâ se tornasse a "responsável" pela introdução do
budismo no Tibete. Vejamos como isto pode ser explicado:
Târâ é, também, assimilada a outra divindade, Prajnãâpâramitâ
personificação de Prajnâ — a beatitude e a misericórdia inerentes à Sabedoria, ou à
sabedoria do coração, cujo equivalente poderíamos encontrar na designação da
Virgem Maria como Sedes Sapientiae. E, dos dois pólos — entre os quais se articula
toda a doutrina do budismo mahyâ-na — prajnâ é o pólo feminino; o outro, o pólo
masculino, é upâya. Cada um deles se baseia naquilo que são, respectivamente, os
autênticos fundamentos dessa via: o Vazio (sünyatâ)u e a compaixão ativa (karuná).
Prajnâ, expressão do Vazio, representa a femi-nidade do princípio, a
receptividade primordial, que se abre à ação do upâya (que, neste caso, poderíamos
assimilar ao logos spermatikós) a fim de que, com a união de ambos, seja alcançada a
iluminação espiritual. E assim, pois, fazendo de Târâ a sua padroeira, o Tibete a faz,
poderíamos dizer, o seu epônimo — a expressão da sua própria disponibilidade para
acolher o upâya búdico. Em tibetano, Târâ é conhecida como Dolma ("Salvadora"), ou,
mais especificamente, como a "fiel Dolma" (damtshig sgrol-ma). Pois bem, darn-tshig
(sânscrito, samaya, o voto de fidelidade) representa (diz-nos o Lama Anagarika
Govinda) a "consagração ao Buda em seu próprio coração", e designa a atitude de
devoção popular como na meditação iniciática. Assim, a Târâ verde, como padroeira
do Tibete, simboliza, acreditamos, a própria consagração deste ao budismo, o seu
"convite" para o mesmo.
Voltando ao plano histórico, diríamos que a implantação do budismo no
Tibete ainda demoraria muito a se tornar definitiva, e teria de sofrer numerosas
vicissitudes. Vamos nos restringir a dizer, unicamente, que, entre as figuras principais
na consecução dessa implantação, destaca-se a de Pad-masambhava,12 a quem,
geralmente, se considera como o autêntico responsável pela mesma; e que uma das
figuras mais exemplares foi o famoso asceta Milarepa, que passou a assumir, de certo
modo, a condição de modelo da espiritualidade tibetana. Mais recentemente, uma das
figuras decisivas na história do lamaísmo foi Tsong-kha-pa (1357-1419), o grande
reformador ortodoxo do budismo monástico. Criador da ordem Gelugpa (Dge-lugs-pa),
ou ordem dos "bonés amarelos", como é comumente conhecida, Tsong-kha-pa insistiu
no celibato dos monges e estabeleceu, de forma geral, uma maior disciplina
monástica. A partir de 157, o chefe da ordem Gelugpa passou a ostentar o título de
Dalai-Lama e a soberania do Tibete, por concessão do soberano mongol Altai-Khan,
situação que perdurou até que os comunistas chineses se apoderassem do Tibete.
Outro particular ao qual gostaríamos de nos referir é o de que,
concomitantemente a essa primeira iniciativa a favor da adoção do budismo, o rei
Song-tsen Gampo mandara a Cachemira um de seus ministros, Thonmi Sambhota, a
fim de que trouxesse a escrita e a gramática hindus. Com a adoção e a adaptação
destas,13 criou-se o tibetano literário (que permanece intacto até hoje), o qual haveria
de servir, fundamentalmente, para a magna tarefa de verter ao tibetano todos os
textos budistas que se pudessem obter. Com isso, criou-se o cânone budista tibetano,
dividido em dois corpus: o Kanjur (Bka-gyur), que recolhe os ensinamentos de Buda e
que se compõe tradicionalmente de 108 volumes; e o Tanjur (Bstan-gyur), o qual
contém os comentários e consta de mais de 300 volumes. Entre os dois, estão
compilados quase 5.000 textos, que não incluem, entretanto, tudo o que ainda pode
ser encontrado de inspiração búdica na tradição tibetana: hagiografia, teatro, contos,
poemas, máximas etc.
* * *
Na seleção dos relatos que compõem este livro, oferece-se um mostruário
básico dos campos cobertos pelos relatos populares tibetanos. Desde os mitos
cosmogônicos até as fábulas de animais, passando pelas lendas e pelas histórias
edificantes, estes relatos nos oferecem, além disso, um breve mosaico do povo
tibetano, das suas formas de vida e das suas crenças. Mas nos falam, sobretudo, da
sua fidelidade à Verdade, fidelidade que tem levado milhares de tibetanos a um exílio
voluntário, acompanhando a sua cabeça visível. Se a Shekhinah acompanhou o povo
de Israel em seu exílio, sem dúvida a "fiel Dolma" acompanha o fiel Tibete no seu.
Notas
1. A designação de "País das neves do Norte" (kha-bacanj, aplicada ao Tibete,
assim como a de "Teto do mundo" (que divide com o Pamir, devem ser entendidas
primordialmente como designações simbólicas, e não como expressão de uma
simples contingência. Além disso, o Tibete não é particularmente rico em neves.
Constituído em sua maior parte por uma árida meseta, conta com precipitações muito
escassas.
2. Ou "Nação dos santos", qualificativo não só exagerado, mas absurdo, que
também chegou a circular. Nem o Tibete era um imenso Athos como se parecia
acreditar, nem tampouco era literalmente o Paraíso, único lugar que poderia justificar a
segunda designação. O Tibete era uma nação de homens que se regiam conformes
com a Verdade e que viviam compenetrados da consciência da transitoriedade das
coisas — e isto é muito mais do que se pode conseguir nas condições atuais da
humanidade.
3. É semelhante ao que ocorre com o Japão. O Ocidente "ocidentalizou” este
país e depois quis tirar proveito de elementos isolados de sua cultura tradicional,
desde o Zen ao Ikebana, para dar dois exemplos.
4. Mas não no sentido banal que hoje pode ser atribuído a esta expressão,
mas no de uma sabedoria vinculada à essência de um povo como tal. Metafisicamente,
toda coisa existente é um "saber", ou melhor, a expressão de um modo de
conhecimento, e isto vale igualmente para um ente coletivo.
Inclinamo-nos mais a ver no mi-chos tibetano uma ordem baseada numa
sabedoria atemporal e, poderíamos dizer, inertes; e não uma ordem profana, baseada
numa "lei" que o povo se dá a si mesmo. Do mesmo modo, tampouco o associaríamos
a um estado de "paganismo", como o da Arábia pré-islâmica, por exemplo.
5. Devemos citar igualmente, neste contexto, os mistérios sacramentais
(a-che-lha-mo, em tibetano), forma de teatro de uma importância extraordinária no
Tibete.
6. Para todo o relativo ao parágrafo que acabamos de tratar, seria de grande
proveito consultar a importante obra de R. A. Stein, Recherches sur 1'epopée et le
barde au Tibet, P.U.F. "Bibliothéque de 1'Institut des Hautes Études Chinoises", vol.
XIII, Paris, 1959.
7. Estas manifestações, desde as bandeirolas de preces até as danças de
máscara (Cham), passando pelas decorações dos santuários domésticos,
caracterizavam a "paisagem budista do Tibete, tanto quanto as manifestações
estritamente monásticas.
8. A propósito deste, veja-se a nota 1 do segundo relato deste livro.
9. Veja-se, igualmente, a este respeito, o segundo relato.
10. Neste, sempre se a representa com a cor verde, enquanto que, nos
outros vinte e um, recebe as cores branca, vermelha e amarela.
11. Veja-se nota 1 do primeiro relato.
12. Veja-se a seu respeito o quarto relato, particularmente a nota 1.
13. Atualmente, existe uma diferença considerável entre a pronúncia do
tibetano coloquial e a ortografia que se fixou para o tibetano literário com este modelo.
Daí, as duas formas com que correntemente aparecem transcritos os nomes
tibetanos: uma, que representa a pronúncia real, e outra, que é uma transliteração da
sua forma escrita.
A CRIAÇÃO
No princípio era a Vacuidade¹, um imenso vazio sem causa e sem fim. Deste
grande vazio, levantaram-se suaves redemoinhos de ar, que, depois de incontáveis
eons, tornaram-se mais densos e pesados, e formaram o poderoso cetro duplo do raio
— o Dorje Gyatram².
O Dorje Gyatram criou as nuvens; estas, por sua vez, criaram a chuva. A
chuva caiu durante muitos anos, até formar o oceano primogênio, o Gyatso.3 Depois,
tudo ficou calmo, tranqüilo e silencioso, e o oceano ficou límpido como um espelho.
Pouco a pouco, os ventos voltaram a soprar, agitando suavemente as águas
do oceano, batendo-as continuamente, até que uma leve espuma apareceu na sua
superfície. Assim como se bate a nata para fazer manteiga do mesmo modo as águas
do Gyatso foram batidas pelo movimento rítmico dos ventos para transformá-las em
terra.
A terra emergiu como uma montanha, e ao redor de seus picos o vento
sussurrava incansável, formando uma nuvem atrás da outra. Das nuvens caiu mais
chuva, mas, desta vez, mais forte ainda e carregada de sal; daí se originaram os
grandes oceanos do universo.
O centro do universo é o Rirap Lhunpo (Sumeru),4 a grande montanha de
quatro caras, feita de pedras preciosas e cheia de coisas maravilhosas. Existe rios e
arroios no Rirap Lhunpo, e muitas espécies de árvores, frutos e plantas, pois o Rirap
Lhunpo é especial: é a morada dos deuses e dos semi-deuses.
Rodeando o Rirap Lhunpo, há um grande lago, e, em volta deste, um círculo
de montanhas de ouro. Depois do círculo de montanhas de ouro, existe outro lago,
também cercado de montanhas de ouro, e, assim, sucessivamente, até se
completarem lagos e sete círculos de montanhas de ouro.5 E, mais além do último
círculo de montanhas, está o lago Chi Cyatso.
No Chi Cyatso se encontram os quatro mundos, cada um deles semelhante a
uma ilha, com sua forma particular e seus diferentes habitantes.
O mundo do Este é o Lu Phak, que tem a forma de meia-lua. As pessoas do
Lu Phak vivem quinhentos anos e são pacíficas; não há contendas no Lu Phak. Seus
habitantes têm corpos gigantescos e caras em forma de meia-lua. Entretanto, não são
tão felizes como nós, pois não têm nenhuma religião para poder seguir.
O mundo do Oeste se chama Balang Cho e sua forma é a do sol. As pessoas
do Balang Cho são, como as do Lu Phak, de grande estatura e vivem quinhentos anos.
Suas caras têm também a forma do sol. Dedicam-se à criação de diversas espécies
de gado.
A terra do Norte tem a forma quadrada e se chama Dra Mi Nyen. As pessoas
de Dra Mi Nyen são de caras quadradas e vivem mil anos ou mais. Em Dra Mi Nyen, a
comida e a riqueza são abundantes. Tudo o que um homem necessita nos seus mil
anos de vida é obtido sem esforço ou padecimento. Vivem com luxo, sem precisar de
nada. Mas, durante os sete últimos dias de sua vida, a dor e o tormento anímicos
acometem os seres de Dra Mi Nyen; e é, então, que recebeu um sinal de que estão
para morrer. Visita-os uma voz — uma voz terrível — que lhes sussurra como vão
morrer e que monstruosos sofrimentos terão de suportar nos infernos, depois da morte.
Em seus últimos sete dias de vida, todas as suas riquezas e posses diminuem, e eles
experimentam um sofrimento maior do que o nosso numa vida inteira. Dra Mi Nyen é
conhecida como a "Terra da Voz Pavorosa".
O nosso próprio mundo fica ao sul e se chama Dzambu Ling.6 No começo,
ele foi habitado por deuses de Rirap Lhunpo. Não havia dor nem enfermidades, e os
deuses nunca necessitavam de comida. Viviam a contento, passando seus dias em
profunda meditação. Não havia necessidade de luz em Dzambu Ling, pois os deuses
emitiam uma luz pura de seus próprios corpos.
Certo dia, porém, um dos deuses reparou que na superfície da terra havia
uma substância cremosa; provando-a, sentiu que era deliciosa ao paladar; por isso,
animou os outros deuses a que a experimentassem também. Todos os deuses
gostaram tanto da substância cremosa, que não quiseram mais saber de comer outra
coisa. Sucedeu, porém, que quanto mais comiam, mais se reduziam os seus poderes.
E já não foram mais capazes de permanecer sentados em profunda meditação. A luz,
que antes brotava resplandecente de seus corpos, começou, a pouco, a se extinguir,
até que, por fim, desapareceu por completo. O mundo ficou submerso em trevas e os
grandes deuses do Rirap Lhunpo se converteram em seres humanos.
Foi, então, que, na escuridão da noite, apareceu, no céu, o sol. E, quando o
sol se apagava, a lua e as estrelas iluminavam o céu e davam luz ao mundo. O sol, a
lua e as estrelas surgiram devido às boas ações passadas dos deuses, e são, para
nós, a lembrança permanente de que o nosso mundo foi, um dia, um lugar lindo e
tranqüilo, sem cobiças, sofrimentos e dor.
Quando o povo de Dzambu Ling esgotou a provisão da substância cremosa,
começou a comer os frutos da planta nyugu. Cada um tinha a sua própria planta, que
produzia um fruto semelhante ao das messes. E todo dia, quando o fruto já havia sido
comido, aparecia outro — um por dia — e isto bastava para satisfazer a fome dos
seres de Dzambu Ling.
Certa manhã, um homem despertou e descobriu que a sua planta, em vez de
produzir um único fruto, havia dado dois. Tomado de avidez, o homem comeu os dois
frutos. No dia seguinte, porém, a sua planta estava vazia. Necessitando satisfazer a
fome, o homem roubou o fruto da planta de outro homem; e assim foram fazendo
todos, pois um teve que roubar o outro para poder comer. Com o roubo, chegou a
cobiça, e todos, temendo não ter o que comer, começaram a cultivar mais e mais
plantas nyugu. Com isso, tiveram de trabalhar cada vez mais, a fim de se
assegurarem de que haveria o suficiente para comer.
Coisas estranhas começaram a ocorrer em Dzambu Ling. O que antes havia
sido uma tranqüila morada de deuses do Rirap Lhunpo, estava agora cheio de
homens que conheciam o roubo e a cobiça. Um dia houve em que um homem
começou a sentir certo mal-estar nos órgãos genitais e, por isso, os cortou:
converteu-se, assim, numa mulher. Essa mulher manteve contato com homens e logo
teve filhos, os quais, por sua vez tiveram mais filhos. Em pouco tempo, Dzambu se
encheu de gente, e essa gente teve que se procurar comida e um lugar para viver.
Juntas, as pessoas de Dzambu Ling não conseguiam viver em paz. Havia
brigas e roubos, e os homens do nosso mundo começaram e experimentar um
sofrimento autêntico profundo, que nascia do estado de insatisfação em que se
encontravam. O povo percebeu que, para sobreviver, tinha que se organizar. Todos se
reuniram e decidiram eleger um chefe, a quem chamaram de Mang Kur — que
significa "muita gente o tornou rei". Mang Kur ensinou o povo a viver numa relativa
harmonia, com uma terra própria onde construir uma casa e cultivar alimentos.
E assim foi como o nosso mundo veio a existir: como, de deuses, nos
convertemos em seres humanos, sujeitos à enfermidade, à velhice e à morte.7
Quando contemplamos o céu, de noite, ou recebemos o cálido brilho do sol,
deveríamos recordar que, se não fossem as boas ações dos deuses da preciosa
montanha de Rirap Lhunpo, viveríamos numa total escuridão; e, se não fosse a cobiça
de uma pessoa, nosso mundo não conheceria o sofrimento que hoje experimenta.
Notas
1. Sünyatâ, em sânscrito, e stong-pa-nyd, em tibetano. Noção capita! da
doutrina budista, que concebe o Princípio supremo, a Realidade última, não de modo
objetivo, a partir de seus reflexos na manifestação (porque estes reflexos incluem
também, embora por desvio, o nosso pensamento e o nosso ego, que são
precisamente os escolhos a serem transpostos); mas, de modo subjetivo, a partir da
experiência dessa Realidade no interior de nós mesmos. Assim, a Realidade última se
identifica com esse mistério de infinitude que se descobre no íntimo das coisas, com
esse mar de bem-aventurança onde a sede (trhnâ) de existir se aplaca
definitivamente; e que, ao permitir a saída da falsa plenitude da existência, se mostra
como um "vazio" (sânya). Partindo do ensinamento inicial da não-permanência das
coisas, e de sua ausência de realidade própria (anâtman; páli, anattâ), chegou-se, na
metafísica do Mahâyâna, a este postulado essencial da "Vacuidade", como
fundamento de tudo o que existe, postulado que constitui um dos dois pólos desta
forma de budismo, sendo o outro o da compaixão (karunâ) do bodhisattva em relação
a todos os seres.
Esta doutrina foi formalizada por Nâgârjuna, no século II, e constitui o sistema
chamado "Do caminho médio" (Mâdhyamika), ou, também, Sünyavâda, em virtude do
seu princípio básico.
2. O vajra duplo (visva-vajra, também chamado karma-vajra) é, como a
svastika, um símbolo da ação do Princípio com respeito ao mundo manifesto. Está
formado pela união de dois vajra-s dispostos em cruz.
No budismo mahâyâna, que, de acordo com a sua perspectiva, "inverte",
poderíamos dizer, a orientação, o vajra duplo é o emblema do Dhyâni Buddha
Amoghasiddhi; este expressa a plenitude e a realização completa do caminho do
bodhisativa, e é, igualmente, o Senhor do elemento "ar" ou "vento" (vâyu), o qual não
é senão o "spiritus" que "adejava sobre a superfície das águas" no Gênesis.
3. Poderíamos assinalar, a título de informação, que esta palavra tibetana
Gyatso (rGya-mtsho), que significa grande oceano, serve de apelativo para o que, no
Ocidente, é conhecido como Dalai Lama, pois "Dalai" não é senão uma forma
inglesada do mongol "tale", que significa a mesma coisa. Assim, pois, o nome do atual
Dalai Lama é, em tibetano, Tenzin Gyatso (Bstan-dzin-rgymtsho).
4. É o monte Mêru da tradição hindu, a montanha "polar", o eixo do mundo, o
ponto fixo ao redor do qual se efetua a rotação do mundo. Como centro do mundo,
corresponde ao Paraíso terrestre do atual ciclo da humanidade (Manyantara).
Identifica-se com o monte Kailas (Kailâsa), em tibetano Gang Tisé, situado no
Tibete ocidental e centro de peregrinações, tanto para os hindus como para os
budistas.
5. São igualmente os sete dyípas da tradição hindu, que emergem
sucessivamente no transcurso de determinados períodos cíclicos, tendo todos por
centro o monte Mêru.
6. O Jambu dyípa da tradição hindu. Identificado popularmente com a índia,
por estar esta, geograficamente, justo ao sul do monte Kailas, corresponde, na
verdade, ao nosso mundo terreno, em seu conjunto e em seu estado atual.
7. É praticamente a mesma explicação das origens do homem e da sua
queda que oferece um texto budista páli — o Agganna-Sutta —, cuja síntese, de
Frithjof Schuon (lmages de VEsprit, Paris, 1982, pp. 102-103. n. 48), consideramos
interessante citar: "A materializaçao progressiva do homem e do seu contorno se deve
ao fato de que os homens primordiais e "pré-materiais" — que brilhavam como astros
com luz própria, moviam-se nos ares e alimentavam-se de Beatitude — se puseram a
comer a terra, quando a superfície terrestre emergiu das águas. Esta terra primordial
era colorida, perfumada e doce, mas os homens, alimentando-se dela, perderam sua
irradiação; foi, então, que apareceram o sol e a lua, o dia e a noite... Mais tarde, a terra
deixou de ser comestível e se limitou apenas a produzir plantas comestíveis. E, mais
tarde ainda, somente se pôde comer um número reduzido de vegetais. Daí ter tido o
homem de se alimentar a preço de duras fadigas. As paixões e os vícios, e, com eles,
as adversidades, haviam entrado, progressivamente, no mundo".
E o mesmo autor menciona, em outro lugar (Tour d'horizon d'anthropologie
intégrale, "Connaissance des Religions", vol. l/n." 4, Mars 1.986, p. 159): "O homem
original não foi um ser simiesco, quase incapaz de falar e de se manter em pé. Foi um
ser quase imaterial, encerrado numa aura ainda celeste, mas colocada na terra, e que
se parecia à 'carroça de fogo' de Elias e à nuvem que envolveu a Cristo em sua
ascensão."
Enquanto respire um único ser vivo,
onde quer que ele esteja,
aí, compadecido,
o Buda aparecerá,
encarnado.
NGON TOK GYEN
OPAME, CHENREZIK Y DOLMA
O Buda celeste Opame (Amithâba), olhando para baixo desde a sua Terra
Pura, contemplou o mundo e viu o sofrimento de todos os seres. Opame sentiu uma
grande compaixão por eles. Deste sentimento de compaixão nasceu Chenrezik
(valakiteshvara), a encarnação da compaixão, o Senhor da Compaixão.1 As
montanhas se abriram e a água saiu em torrentes, cobriu a terra e correu até o
Oceano Índico. Chenrezik apareceu numa ilha no centro de Lhasa, e, vendo o
sofrimento dos seres, fez o voto de ajudá-los a alcançarem o Nirvana, a realidade
última, a paz. Chenrezik fez o voto de não abandonar este mundo sem que todos, até
mesmo a última fibra de erva, alcançassem a paz.
Havia no lago muitos seres e todos eles clamavam por um corpo. Ouvindo
suas vozes, Chenrezik deu-lhes os corpos que pediam. Mas os corpos eram todos
iguais, e, por isso, os seres suplicaram por se diferenciarem uns dos outros. Chenrezik
deu, então, a cada um dos seres um corpo distinto, cada um deles característico e
diferente dos demais.
Chenrezik, o Senhor da compaixão, pregou o Dharma, o ensinamento de
todos os Budas, a fim de que todos os seres do lago, em número incontável,
pudessem alcançar o Nirvana. Muitos seres o alcançaram. Mas, cada vez que
Chenrezik voltava ao lago, havia muitos mais seres, muitos e muitos mais que os que
já havia podido ajudar. De novo, Chenrezik pregou o Dharma, e, de novo, muitos
alcançaram o Nirvana.
Quando Chenrezik contemplou o lago pela terceira vez e tornou a ver tantos
seres necessitando ajuda, encheu-se de desespero. E compreendendo a
impossibilidade da tarefa que se havia imposto, clamou ao Buda celeste Opame para
que revogasse o seu voto, pois agora considerava a tarefa demasiado grande para
que ele, sozinho, pudesse realizá-la. Em seu desespero e compaixão, o corpo de
Chenrezik se fragmentou em inumeráveis pedaços.
Vendo a sua situação, Opame reconstruiu o seu corpo, dando-lhe ainda mais
poder para ajudar a todos os seres vivos. Chenrezik tinha agora onze cabeças,
coroadas pela cabeça do próprio Opame, e mil braços, e ainda um olho onividente na
palma de cada mão.2
Mas, mesmo assim, inclusive com os mil braços e com as onze cabeças,
Chenrezik considerou impossível a realização da sua tarefa. Os seres eram
incontáveis e suas mentes estavam completamente toldadas por pensamentos
impuros. Chenrezik chorou. E, de uma lágrima cristalina de sua face, nasceu Dolma
(Târâ), para ser-lhe sua ajuda.3
Assim, pois, não existe um só ser, por insignificante que seja, cujo sofrimento
não chegue a ser visto por Chenrezik ou por Dolma, e que não possa ser atingido por
sua compaixão.
Notas
1. Amithâba ("luz infinita"), em tibetano Opame (Od-d pag-med), é um dos
chamados Chyâni Buddas no budismo tântrico. Estes são aspectos universais,
arquetípicos da "bu-deidade", tal como se mostram o espírito em meditação (dhyâna).
A Terra Pura é o chamado Paraíso Sukhâvati ou. Ocidental, no qual reside
Amithâba, e que tem dado nome a uma via espiritual centrada na invocação do nome
deste, via particularmente florescente no Japão.
Avalokitesvara é como uma extensão de Amithâba, uma emanação sua. Seu
nome significa "o senhor que olha para baixo com compaixão", e é, pois, a
personificação deste ato de Amithâba.
É a figura mais popular do panteão budista tibetano, e seu mantra (fórmula de
invocação) é a oração por excelência de todo tibetano; está presente por igual na
devoção popular e nas práticas iniciáticas.
Avalokitesvara, em tibetano Chenrezig (Spv-an-ras gzigs), é igualmente uma
figura de primeira ordem em todas as áreas do budismo mahâyâna, como a China e o
Japão, onde, na iconografia, assume um aspecto semifeminino algumas vezes, e
abertamente feminino em outras, em virtude da doçura misericordiosa que encarna.
Na China, é conhecido como Kuan-Yin, e, no Japão, como Kannon.
É um bodhisattva ao qual se atribuem diversas encarnações, e não apenas
no mundo dos homens, pois sua compaixão abarca todos os mundos. Em particular,
considera-se o Dalai Lama como uma manifestação terrenal sua.
E uma das figuras mais representadas na iconografia budista, principalmente
com esta forma (à qual nos aludiremos mais adiante, em nosso relato), de onze
cabeças e mil braços, na qual recebe o nome Ekadasmukha.
2. Traduzimos dessa maneira "all-seeing eye". A propósito desta designação
e de seu simbolismo, pode ser consultado R. Guénon, Símbolos fundamentais da
ciência sagrada, cap. LXXXII, "O olho que a tudo vê", pp. 384-386, Buenos Aires,
1960.
3. Esta é uma das diferentes versões que existem sobre o nascimento de
Dolma, a respeito de quem pedimos a remissão do leitor ao que foi dito em nossa
Introdução.
O PRIMEIRO REI DO TIBETE
Na época em que os tibetanos eram governados por doze chefes sem
importância, havia muito descontentamento e muitas contendas, pois eles não tinham
um chefe único e eram uma nação dividida. Foi durante esse período que o rei de
Vatsa, na índia, teve um filho. A criança, porém, não era um menino normal, pois havia
nascido com sobrancelhas de cor turquesa, pálpebras salientes e mãos espalmadas.
O rei estava muito aflito e toda a corte se mostrava assustada com o estranho
menino. Assim foi que, querendo livrar-se dele, o rei ordenou que o colocassem numa
caixa de cobre e que o lançassem ao Rio Ganges. Quando isto se efetivou, o rei e a
rainha, assim como todos os do palácio, suspiraram aliviados por se verem livres,
finalmente, daquele embaraçoso engendro da natureza.
O menino, entretanto, não morreu, pois foi achado por um camponês. Este,
ao abrir a caixa e encontrar dentro dela a estranha criancinha, encheu-se de amor por
ela e a levou para a sua casa, a fim de que vivesse como alguém de sua família.
Dessa maneira, o menino passou uma infância feliz, amado e cuidado pelo camponês
e por sua mulher.
Quando o menino se tornou moço, o camponês achou que já era hora de que
conhecesse as suas estranhas origens. Contou-lhe, então, a história de como ele
havia sido encontrado numa caixa de chumbo às margens do wanges. E, para que o
rapaz não tivesse a impressão de que havia sido abandonado, o camponês tratou de
convencê-lo de que ele era alguém muito especial: na verdade, um "poderoso",
nascido de berço rico. O moço, entretanto, se entristeceu muito ao ouvir a história do
camponês, pois sempre havia acreditado que fazia parte da família deste, a quem
considerava como pai. Em sua aflição, o rapaz fugiu em direção aos Himalaias e
cruzou a fronteira do Tibete, onde passou dias e dias sozinho, ao abrigo das
montanhas.
Nesse lugar, o moço acabou encontrando alguns sacerdotes tibetanos da
antiga religião. Estes, ao verem o estranho jovem, tomaram-no por um deus, pois, ao
lhe perguntarem quem era, ele respondera, simplesmente: "Um poderoso".1 E quando
lhe pediram para dizer de onde havia vindo, o rapaz indicara a direção da índia, do
outro lado das montanhas — e os sacerdotes acreditaram que estivesse indicando os
céus. Devido ao obstáculo da língua, os sacerdotes abandonaram os esforços para
comunicar-se com ele; apenas fizeram com que o moço fosse colocado numa cadeira
de madeira, que quatro homens carregaram às costas. E os sacerdotes declararam:
"Vamos constituí-lo em senhor nosso".
E assim foi como ficou sendo conhecido "o poderoso da cadeira de mãos" e
como o Tibete teve constituído o seu primeiro rei.2
Notas
1. Este epíteto (em tibetano btsan-po) passou a ser aplicado a todos os reis
do Tibete.
2. Este personagem lendário é conhecido em tibetano como Nyakhri Tsampo
(Nyag-khri btsan-po).
Toda "felicidade que existe no mundo nasceu inteiramente do desejo do bem
aos outros.
Toda a infelicidade que existe nasceu do egoísmo.
PRECEITOS BUDISTAS
PADMASAMBHAVA E A ECHARPE DA FELICIDADE
Esta é uma história que se conta de Padmasambhava, o famoso mestre
hindu, a quem se deve, mais que a nenhum outro, a introdução do budismo no Tibete,
há mais de 1.200 anos.1
Conta-se que o rei do Tibete, que não era budista, andava muito ressentido
com o respeito e a veneração que o povo do Tibete mostrava para com o grande
mestre hindu Padmasambhava. Parecia-lhe, na verdade, que reverenciavam mais a
Padmasambhava do que a ele mesmo. Assim, o rei decidiu assegurar-se de que,
quando o grande mestre o visitasse, todos os chefes do país veriam aquele a quem
tanto honravam render homenagem a seu rei.
No dia da visita de Padmasambhava, todos os cortesãos foram congregados
para vê-lo render homenagem ao rei; este, com ansiedade, também esperava para
conhecer o grande mestre. O altivo rei mal pôde ocultar o seu grande prazer quando
Padmasambhava levantou os braços como que para prostrar-se diante do trono real;
mas, ao invés disso, das mãos de Padmasambhava saíram chamas que alcançaram
as roupas do rei, queimando-as em segundos. Enquanto os cortesãos tratavam de
apagar as chamas a golpes, o rei, sufocado pela fumaça que subia das pregas de sua
echarpe cerimonial, retirou-a dos ombros. Comprovando o grande poder do mestre, o
rei lançou-se aos pés de Padmasambhava em submissão, e lhe ofereceu a echarpe
em sinal de humildade. Padmasambhava aceitou a echarpe, mas logo a devolveu ao
rei, colocando-a ao redor do seu pescoço, como um signo da bênção e da vitória da
autoridade sacerdotal sobre o poder temporal.
E assim, diz-se no Tibete, terra de poucas flores, que Padmasambhava
estabeleceu o oferecimento de katas, ou echarpes de felicidade, como demonstração
de respeito.2
Notas
1. Padmasambhava (o "nascido do loto"; em tibetano, Padma Jungna
(Padma 'byung-gnas), conhecido popularmente como Guru Rimpoché, é um dos
nomes fundamentais do budismo tibetano.
Considerado uma encarnação de Amithâba e tido por alguns como outro
Buda terrenal — chegando, inclusive, a eclipsar o Buda Sâkya-muni, foi um mestre
tântrico hindu convidado ao Tibete, a meados do século VII, pelo rei Khri-srong Lde
brstan, para combater os demônios hostis ao budismo, aos quais, efetivamente,
Padmasambhava subjugou e pôs a serviço do budismo como divindades protetoras.
A tradição o considera um dos 84 mahâsiddhas (em tibetaro, dub-tob
Gru-Thob ou iogues "perfeitos", aqueles que obtiveram a "potência maravilhosa"
(siddhi), força de transmutação alquímica. São figuras semilegendárias, que se
encontram já no hinduísmo, e cujo número, simbólico, expressa plenitude, totalidade.
Suas biografias, escritas numa linguagem chis (o sandhyâ-bliâsâjs&e conservaram na
tradição tibetana melhor que na hindu.
Tem-se por lugar de seu nascimento Uddiyâna (a atual Swat, no Paquistão,
mas igualmente nome de uma região simbólica). Uma das histórias que falam a seu
respeito é a de que, aos oito anos, apareceu sentado sobre um loto, no centro do lago
Riwalsar (em tibetano, Pedma-mtsho), no Estado hindu de Himachal Pradesh.
Padmasambhava fundou no Tibete, no ano 787, o mosteiro de Samye
(bSan-yas), e dirigiu uma equipe de tradutores. Os Nying-mapa (os "antigos"), a
primeira ordem budista do Tibete, consideram-se seus sucessores diretos.
2. A kata (kha-ntags) é urna tira comprida de tecido, geralmente branca, uma
espécie de longa echarpe, que pode ser confeccionada com diferentes tipos de tecido,
desde seda até gaze atesada com pó de arroz. Literalmente, significa "tecido que une"
e simboliza o laço que se estabelece entre aquele que a oferece e o que a recebe. Era
tradicional no Tibete o oferecimento de katas nas mais variadas circunstâncias e
comemorações. Colocavam-se katas nos altares, ao redor das imagens, dos tankas
etc, e ofereciam-nas como demonstração de respeito aos superiores, e também entre
iguais, como expressão do desejo de estabelecer uma relação autêntica ou de
comprometer-se reciprocamente com algum tipo de obrigação. Eqüivaleria, neste
sentido, ao aperto de mão ocidental, o qual, antes de se haver trivializado, tinha um
profundo valor humano. De certo modo, também no Tibete o oferecimento de katas se
havia trivializado, porquanto eram entregues, por exemplo, a ganhadores de provas
esportivas, e mais como uma demonstração de cortesia, de etiqueta social, do que
como um gesto autenticamente espiritual.
Quando se oferece uma kata a um lama, este pode devolvê-la e pô-la em
volta do pescoço daquele que a oferece, como sinal de bênção (tal como faz
Padmasambhava no nosso relato), e, ao mesmo tempo, de laço espiritual entre
ambos.
Assim, pois, poder-se-ia dizer que a kata simboliza, entendida num sentido
amplo, a idéia de religião, assim como também a que expressa a palavra árabe
barakah.
O que você escreve com tinta,
com pequenas letras negras,
pode perder-se inteiramente
pela ação de uma única
gota de água.
Mas o que está escrito
no seu coração estará aí
por toda a eternidade.
TSANGYANG CYATSO
* Tshangs-dbyangs-rgya-mtsho, sexto Dalai-lama (1683-1706).
DE COMO ASANGA CHEGOU A VER O BUDA FUTURO
Asanga, o douto filósofo, de todo o coração decidido a realizar a sabedoria
interior, meditou em solidão durante muitos anos. O objeto de sua meditação era
Champa (Maitreya), o Buda do futuro, que reside no céu Tushita aguardando a sua
descida à terra. Asanga sempre fora perseverante em seus esforços, mas, depois de
tantos anos de fervorosa meditação, ele mesmo já começava a sentir-se frustrado em
seu empenho por alcançar a sabedoria a que aspirava.
Certo dia, quando passeava pelo exterior de sua caverna, Asanga se fixou
nuns quantos pássaros que pousavam numa rocha proeminente que ficava próxima.
Justamente onde as asas dos pássaros, ao pousarem, roçavam a rocha, Asanga
notou uma profunda fenda. Isto o levou a refletir sobre os incontáveis anos que
deveriam ter sido necessários para que, pelo único efeito do roçar suave das asas dos
pássaros, se produzisse uma cavidade como aquela.
Ao voltar à sua cova, Asanga, com os sentidos aguçados pela meditação
profunda, ouviu o brando gotejar da água sobre a pedra. Examinando-o mais de perto,
percebeu um pequenino regato que seguia rocha adentro: com os anos, o delicado
gotejar da água havia aberto uma profunda passagem na rocha. "Se as asas dos
pássaros e o gotejar da água podem perfurar a rocha — pensou Asanga —, então
também eu, com a meditação, posso perfurar as distintas camadas da consciência, e
alcançar, dessa maneira, a sabedoria."
E assim, Asanga continuou meditando, mas meditando sem resultado algum.
Parecia-lhe que, quanto mais ardentemente buscava obter a sabedoria, e quanto mais
apaixonadamente tratava de invocar a Champa, mais impossível isso se tornava.
Um dia, Asanga deixou sua caverna para ir à busca de comida. No caminho,
encontrou um homem que esfregava uma barra de ferro maciço com um pedacinho de
algodão. Asanga perguntou-lhe o que estava pretendendo obter com aquilo, e ele
respondeu que ia fazer uma agulha. Asanga se surpreendeu muito por achar possível
fazer uma agulha apenas esfregando uma grossa barra de ferro com um pouquinho
de algodão macio; mas, quando expressou isso ao homem, este respondeu:
"Se alguém está realmente resolvido a fazer uma coisa, não fracassará em
seu empenho, mesmo quando a tarefa possa parecer impossível."
Asanga recobrou novas forças, ao considerar que a sua tarefa não era mais
difícil do que a daquele homem, e voltou à sua caverna animado a continuar a sua
meditação.
Depois de haver estado meditando durante doze anos, Asanga decidiu-se,
finalmente, a abandonar seu retiro e deixar de meditar sobre Champa, pois este não
se lhe apresentara nunca, nem mesmo depois de tanto tempo de esforços.
Ao deixar seu retiro, Asanga encontrou um cachorro ganindo de dor por
causa de uma ferida no dorso — um dorso infestado de vermes. Asanga sentiu uma
grande compaixão pelo cachorro e desejou aliviar-lhe os sofrimentos. Sabia, porém,
que se lhe tirasse os vermes, estes iriam morrer, pois não teriam de onde comer. Para
salvar o cão, Asanga decidiu tirar-lhe os vermes, e, quanto a estes, iria colocá-los em
sua própria carne, para que pudessem continuar vivendo. Asanga já se dispunha a
retirar os vermes com a mão, mas deteve-se e pensou: "Se os tirar com os dedos,
poderia esmagá-los". De modo que, fechando os olhos, inclinou-se para retirar os
vermes lambendo a ferida. No mesmo instante em que a sua língua tocava o cachorro,
este desapareceu, e, em seu lugar submerso numa bolsa de deslumbrante luz,
apareceu Champa, o Buda futuro.
Tomado de emoção, Asanga assim falou a Champa:
— Durante tantos anos e de tantas formas, tentei vê-lo, sem que o senhor se
mostrasse a mim, e agora, quando meu anseio desapareceu, por que se mostra
diante de mim?
Champa respondeu:
— Porque somente agora é que, através do seu grande ato de compaixão, a
sua mente está realmente pura e, portanto, apta para ver-me. Na verdade, eu sempre
estive aqui.
Então, Champa ordenou a Asanga que o levasse sobre os ombros até a
cidade para que outras pessoas pudessem vê-lo. Assim o fez Asanga, mas o povo,
com a consciência obscurecida por pensamentos impuros, não pôde ver a Champa, e
acreditou que Asanga estivesse louco quando proclamava que levava Champa sobre
seus ombros. Mas uma anciã conseguiu ver um cachorrinho sobre as costas de
Asanga, e foi imediatamente acumulada de riquezas. E um pobre carroceiro de mulas
chegou a entrever os dedos do pé de Champa, e, desde aquele momento, teve poder
e paz interior.
Champa levou, então, a Asanga ao céu Tushita, onde pôde receber o
ensinamento e obter a sabedoria que, durante tantos anos, o havia evitado.1
Nota
1. Asanga natural de Purusapura (a atual Peshawâr, no Paquistão), não
tibetano, pois, mas hindu, é um dos maiores filósofos do budismo. É considerado o
criador, junto com seu irmão Vasudandhu, do sistema Vijnânavâda ou Vijnâptimâtra,
base doutrinai da escola Yogâcâra (Hossô, no Japão); e, também, junto com o sistema
Mâdhyamika, de todo o budismo mahâyâna.
Tradicionalmente, o seu ensinamento é considerado como sendo "o samadhi
(a meditação criativa) de Maitreya", e assim, seu suposto irmão, Maitreyanâtha
("nâtha" significa "senhor"), não seria senão o próprio Buda futuro, como fica claro em
nosso relato.
Maitreya, em tibetano Champa (Byams-pa), é o nome que recebe o
bodhisattva que aparecerá, um dia, como o novo Buda em nosso mundo, e que, da
mesma forma que Sâkyamuni, "fará girar a roda do Dharma, quando esta se houver
detido".
É considerado uma emanação do Dhyâni Budda Amoghasiddhi, e seu nome
deriva de maitrí, que significa a simpatia universal para com todos, a infinita
benevolência e o amor.
O CASTELO DO LAGO
Na terra do Tibete havia um belo lago rodeado de colinas e montanhas. Era
tão belo e de águas tão claras, que os que passavam perto dele ficavam boquiabertos
de admiração. Alguns diziam que, quando o sol estava alto e projetava sobre a
tranqüila massa de água as sombras dos picos das montanhas, parecia como se
houvesse um castelo no lago, um castelo de proporções tão enormes que tomava
toda a água. Assim, pois, o lago passou a ser conhecido como "o lago do castelo".
Criaram-se muitas histórias sobre o lago e seu castelo. Às vezes se dizia que,
quando a lua tremeluzia e as estrelas refulgiam como diamantes na água, se podia ver
uma estranha gente sair do lago, gente com olhos de fogo e cabelos soltos que caíam
como folhas molhadas ao redor de seus rostos. Ou, então, dizia-se, também,
apareciam ferozes cães, que estraçalhavam as carnes dos viajantes solitários que
caminhavam incautamente por suas praias.
Mas, como costuma ocorrer com as lendas, o pai conta à filha e a mãe ao
filho, e, assim, durante gerações e gerações, até que as histórias se ampliam cada
vez mais e mais, e acabam por dizer muito mais do que pretendeu quem as contou
pela primeira vez. E aconteceu que, logo, foi aceito por todos que havia, mesmo, um
castelo no lago, e que o castelo tinha um rei. Este rei, dizia-se, possuía muitos
servidores, homens que, por alguma desgraça, haviam caído no lago, ou que haviam
sido capturados enquanto caminhavam sozinhos por suas margens, e que depois,
foram obrigados a permanecer a serviço do rei.
Certo dia, um jovem pastor estava guardando seus iaques no lado oriental do
lago, quando sentiu vontade de comer algo; por isso, deixou o seu rebanho e desceu
até a margem do lago. Depois de ter molhado o rosto com água fresca, sentou-se
apoiado contra uma grande rocha; tirou um queijo e um pão de cevada do surrão,
acendeu um pequeno fogo para esquentar seu chá com manteiga, e se pôs a comer.
Enquanto comia, Rinchen — que assim se chamava, o pastor começou a
pensar em sua vida. Sua mãe era uma mulher cruel, que sempre o havia forçado a
trabalhar muito, a fim de que ela pudesse comprar vestidos novos e comer bem. E,
quanto a ele, tinha de contentar-se com uns poucos farrapos e com as sobras de
comida que a mãe não queria mais. Considerando a vida que levava, Rinchen se pôs
a chorar. As lágrimas lhe escorriam pela face e os soluços agitavam todo o seu corpo.
Não conseguiria trabalhar mais do que já vinha fazendo, e, entretanto, sua mãe
continuaria a querer mais e mais.
O jovem pastor já começava a guardar as suas coisas, quando, ao levantar
os olhos, viu um homem de pé junto à margem do lago. Era um homem alto e vestia
uma chuba1 negra da qual jorrava água — o que dava a impressão de que havia
acabado de sair do lago. Recordando as histórias que tinha ouvido sobre o lago do
castelo e os servidores do rei, Rinchen se sentiu tomado de pânico, e já se ia embora
correndo, quando o homem falou:
— Por que você estava chorando daquele modo?
Rinchen se voltou para o homem e percebeu que ele possuía uma expressão
bondosa e afável. A sua voz era doce e melodiosa. Todo o medo que o pastor sentira
antes pareceu abandoná-lo, e ele se aproximou do homem alto, de chuba negra, que
estava na margem do lago. Este repetiu a pergunta. Rinchen contou-lhe, então, sobre
sua mãe e sobre como esta o obrigava a trabalhar cada vez mais para mantê-la e
seus gostos exigentes.
— Entre comigo no lago — disse o homem —, pois o rei é um homem bom e
talvez possa ajudá-lo a resolver o seu problema.
O jovem pastor sentiu que o medo lhe voltava, pois estava certo de que se
entrasse no lago jamais poderia sair dele. O homem alto percebeu o medo do rapaz e,
num tom suave, que era como música para os ouvidos, convenceu-o de que não havia
nada a temer.
— Sou um dos servidores do rei — disse o homem. Eu vou levá-lo diante do
rei e cuidarei para que aqui volte são e salvo.
O jovem pastor pensou por um momento: "Que posso eu perder? Minha mãe
é tão cruel, que até a morte me seria melhor do que passar o resto da minha vida
como o seu escravo". E, assim, afastando o medo, Rinchen seguiu o servidor do rei e
entrou no lago.
A água era morna e acolhedora, e o rapaz se surpreendeu de que pudesse
respirar com a mais completa liberdade. O servidor do rei pediu-lhe que fechasse os
olhos enquanto o conduzia pela água até o castelo. Quando pararam e Rinchen abriu
os olhos, viu que se encontrava numa grande sala, primorosamente enfeitada com
ouro, prata reluzente e madrepérola. No fundo da sala havia um trono, e, neste, estava
um homem: o rei.
O rei fez sinal ao jovem pastor para que se aproximasse. Ao fazê-lo, Rinchen
percebeu que não estava sozinho, na sala, com o servidor e o rei, mas que a cada
lado do trono havia mais servidores, todos eles vestidos com chubas negras como a
do homem alto que lhe havia falado à beira do lago. Quando chegou aos pés do trono
do rei, um dos servidores se aproximou e colocou um tamborete baixo diante do trono,
para que o rapaz se sentasse nele. Timidamente, Rinchen se sentou e ficou
observando os lacrimejantes olhos azuis do rei.
— Por que você está aqui? perguntou o rei com uma voz profunda que mais
parecia o distante reboar de um trovão. O pastor contou, então, a sua história, tal
como a relatara ao servidor, à beira do lago.
O rei foi escutando o que o jovem lhe contava e, quando Rinchen terminou o
seu relato, voltou-se para o seu corpo de servidores e fez sinal a um deles para que se
aproximasse. O servidor se aproximou do rei e se inclinou diante dele, enquanto este
lhe sussurrava algumas instruções. O jovem pastor aguçou o ouvido, mas não pôde
ouvir o que o rei dizia. O servidor abandonou a sala e voltou depois de alguns minutos
trazendo um cão.
— Tome este cão — disse o rei ao pastor —, mas cuide para sempre dar-lhe
de comer antes que você mesmo o faça. Isto é muito importante.
Rinchen pegou o cão e, com os olhos fechados, deixou-se conduzir até a
beira do lago. Quando abriu os olhos, estava sozinho com o animal.
O jovem pastor foi embora para casa e com ele seguiu o cão. A partir daquele
dia, tudo o que Rinchen desejava sempre aparecia diante dele. Ao despertar pela
manhã, descobria que havia posto cevada na caixa da cevada, manteiga na caixa da
manteiga, e dinheiro na caixa do dinheiro. Inclusive, apareciam roupas novas em seu
guarda-roupa. Era muito feliz e sempre cuidava muito bem do cão, seguindo as
instruções do rei de dar de comer ao animal antes que ele mesmo comesse.
A mãe de Rinchen, que andava muito intrigada com a súbita e inexplicável
riqueza do filho resolveu, um dia, sair ela mesma com o rebanho de iaques, para ver
se podia descobrir a fonte de tanta fartura. E enquanto a mãe se achava fora, o jovem
pastor decidiu observar o cão, pois também estava curioso por saber como o animal
conseguia obter o dinheiro e a comida. Escondendo-se na casa, observou o cão: este
entrou, aproximou-se da lareira e, depois, se pôs a sacudir-se violentamente.
Imediatamente, a pele do cão caiu ao chão, deixando a descoberto uma
formosa mulher a quem Rinchen jamais havia visto. Ela andou até a caixa da cevada,
levantou a tampa e pôs dentro a cevada, que não se via de onde saía. Depois, fez o
mesmo com a gaveta da manteiga, a do chá e a do dinheiro, tirando do nada tudo o
que o rapaz e a mãe necessitavam.
Rinchen não se pôde conter. Agarrou a pele do cão e a lançou ao fogo. A
formosa mulher tentou impedir que o fizesse, mas já era tarde, pois a pele ardeu
rapidamente e logo não foi mais do que um grande monte de cinzas.
Temeroso de que o filho do chefe visse a mulher e a quisesse por esposa,
para ocultar a sua beleza, Rinchen cobriu o rosto dela com fuligem e a reteve em casa,
longe dos olhares do povo.
Em pouco tempo, o jovem pastor tornou-se muito rico, e a sua riqueza foi-o
deixando excessivamente ousado. "Por que me preocupo? — perguntou-se. Tenho
muito dinheiro, e o filho do chefe não se atreverá a roubar-me esta mulher, pois posso
pagar-me armas e homens". Pensando desse modo, Rinchen limpou a fuligem do
rosto da bela mulher e a levou à cidade para mostrá-la ao povo, pois se orgulhava da
sua beleza.
O filho do chefe estava na cidade e viu a mulher. Cativado por ela, tomou a
firme determinação de fazê-la sua esposa e enviou homens para buscá-la. Muito aflito,
o jovem pastor pediu ajuda aos homens da cidade, mas nem um só quis atendê-lo.
Muito triste, Rinchen foi à margem do lago, sentou-se junto à grande rocha e
se pôs a chorar. Como na vez anterior, apareceu o servidor do rei.
— Por que está chorando desta vez? — perguntou.
— Porque perdi a minha mulher —, respondeu o rapaz. E contou ao servidor
toda a história de como havia lançado ao fogo a pele do cão e mantido escondida dos
olhares do povo a formosura da mulher.
Contou, também, que, por se ter tornado imprudente e demasiado seguro,
havia lavado o rosto da jovem, descobrindo-lhe, assim, a beleza para o filho do chefe;
e, com isso, a havia perdido para sempre.
O servidor pediu a Rinchen que o seguisse de novo ao lago, pois o rei tinha
de conhecer essa história.
— Talvez o rei possa ajudá-lo outra vez, disse ao jovem pastor, e este logo se
encontrou ante o trono e aos pés do rei do lago.
Depois de escutar a história de como Rinchen havia perdido a bela mulher, o
rei estendeu-lhe uma caixinha e disse:
— Leve esta caixa — e o pastor a pegou. Agora, vá ao alto de uma colina e
chame à guerra o filho do chefe. Quando este tiver congregado as suas tropas na
base da colina, abra a caixa e grite: A luta!
Assim fez o pastor. E quando abriu a caixa e gritou:
— À luta! —, milhares de homens saíram dela e avançaram sobre os
soldados do filho do chefe e os derrotaram.
Rinchen recuperou sua bela mulher e a tomou por esposa. Enriqueceu ainda
mais com a metade das terras do chefe e se converteu num chefe rico e benévolo. O
jovem pastor devolveu a caixa ao rei do lago, agradecendo-lhe, e viveu em proveitoso
contato com ele pelo resto de sua vida.
Nota
1. A chuba, palavra da mesma origem que as espanholas "juba", "jubón" ou
"chupa" (e o francês "jupe" recebidas do árabe, é a roupa típica dos povos tibetanos. É
um roupão de lã, como uma espécie de túnica ou toda cruzada, de cor
ver-melho-escura, que se amarra na cintura, formando uma bolsa (ambac) sobre o
peito, na qual se transportam os objetos mínimos necessários aos deslocamentos de
lugares. As mangas da chuba, quando não são levadas recolhidas, ultrapassam as
mãos pelo menos um palmo.
O MOÇO QUE SE NEGAVA A MATAR
Era uma vez um moço que se chamava Tashi. Tashi não era capaz de se
ajustar aos costumes do mundo. Por mais que seu pai se esforçasse, jamais havia
conseguido que o moço caçasse para obter comida. Tashi se negava a tirar a vida de
quem quer que fosse, e tampouco comia a carne que seu pobre pai levava para casa
para a panela familiar.
Tashi tinha três irmãs, que se haviam casado com homens ricos. Amiúde
seus pais se lamentavam da má sorte que haviam tido por terem ficado sozinhos com
um filho que não seria capaz de sustentá-los em sua velhice, um filho que não queria
caçar, e que era, por natureza, muito dócil e pacífico.
— Deveria ter-se tornado monge — dizia a mãe —, porque, de que nos serve
este nosso filho? Quando formos velhos, teremos que mendigar às nossas filhas e aos
nossos vizinhos para não morrermos de fome.
Esta era a queixa constante dos pais de Tashi, mas, mesmo assim, o moço se
negava a tirar uma vida.
— Toda vida é sagrada — dizia; não posso matar outro ser.
Certo dia, o pai de Tashi insistiu para que o rapaz saísse com ele para
caçarem juntos. Caminharam durante muitos quilômetros e o pai já estava muito
cansado. Havia sido um dia bastante ruim, pois tudo o que havia conseguido pegar
tinha sido um coelhinho. E o pai pensou: "É este meu filho, ele me da azar".
O moço estava sentado numa rocha, e enquanto comia sua pobre ração de
fruta e queijo, ia gravando a oração de Chenrezik — OM MANI PADME HUM — numa
rocha que havia ao lado. Ao largo do caminho, havia outras rochas, nas quais os
viajantes também tinham gravado esta oração, pois o caminho conduzia a um
santuário muito visitado pelos que passavam por ali.1
Chenrezik, a divindade tutelar e padroeira do Tibete, o Senhor da Compaixão,
recebia uma grande devoção da parte do povo.
Quando o pai de Tashi viu o que seu filho estava fazendo, também se pôs a
articular em silêncio a poderosa oração, e o fez repetidas vezes, enquanto desfiava,
em suas mãos, as contas já gastas do seu rosário. Tirar a vida de alguém era uma
coisa contrária às suas crenças como budista, mas ele precisava conseguir comida
para a sua mulher; por isso, tratava de matar os animais o mais humanamente
possível, rogando por eles ao fazê-lo. Mas era evidente para o pai que nunca iria
conseguir que seu filho raciocinasse como ele. O rapaz jamais tiraria uma vida, por
mais fome que passassem, e o pai não via saída alguma para esta situação.
Pai e filho seguiram caminhando ainda um pouco mais, sempre atento, o
primeiro, para ver se conseguia descobrir algum animalzinho ou ave. De repente, por
entre as árvores, viu algo que lhe fez conter a respiração. Ali, no campo que beirava o
caminho, estava uma enorme lebre. Era realmente a melhor oportunidade que se
havia apresentado para ele, desde há muitas semanas; por isso, decidiu não deixá-la
escapar de maneira alguma. Pegando a sua funda, arrastou-se entre as árvores para
ter uma perspectiva melhor do animal. A lebre corria em direção a eles, e suas pernas
traseiras davam-lhe tal velocidade, que era impossível ao pai fazer bem a pontaria.
De repente, a lebre se deteve, como que percebendo que havia perigo.
Mexeu nervosamente o nariz, olhou para um lado e para o outro e aguçou o ouvido.
Estava tão perto que o rapaz podia vê-la perfeitamente. O mesmo acontecia com o pai,
que já estava prestes a atirar uma grande pedra com a sua funda. Mas Tashi se
levantou e gritou: "Não, pai, não! Não a mate!" E a lebre, dando um grande salto no ar,
desapareceu num segundo e se escondeu de seu irritado agressor num campo de
cevada.
O pai ficou como que atônito durante uns minutos. Sua cara estava pálida e
lufadas de cólera subiam-lhe desde dentro. "Por quê?, perguntou ao filho. Por que
você fez aquilo?". Tashi ficou perturbado, pois viu que seu pai estava mais irado do
que nunca e que, provavelmente, a maior surra da sua vida já estava esperando por
ele.
O pai não pôde dominar-se por mais tempo. Apanhando uma grande rocha,
avançou em direção ao filho. "Eu vou matar você" — disse —, eu vou matar você,
você, meu único filho". Dizendo isto, o pai se dispôs a lançar a pedra na cabeça de
Tashi, mas este retrocedeu assustado, rogando ao pai que lhe poupasse a vida. Bem
ao lado do caminho, havia uma encosta rochosa, e, ao lado desta, se abria uma
pequena caverna. A abertura era somente uma estreita rachadura, mas o rapaz se
enfiou por ela e conseguiu escorregar até o seu interior, antes que o pai lhe atirasse
violentamente a pedra na cabeça. A pedra atingiu Tashi na perna e o moço gritou de
dor.
Uma vez dentro da caverna, Tashi viu que estava a salvo, pois a abertura era
demasiado pequena para que seu pai pudesse passar por ela. Tashi não podia fazer
idéia das dimensões do seu cárcere de rocha, pois estava escuro e era muito difícil
enxergar dentro dele. Avançando palmo a palmo, ao longo de uma das pontiagudas
paredes, chegou ao fundo da caverna, que estava apenas a uns metros da entrada.
AJi, com a perna sangrando, se estendeu no solo e... perdeu a consciência.
Muitas horas depois, Tashi voltou a si ao ouvir o ruído de passos, e se
levantou. A dor o fez recordar tudo o que o havia levado até ali. O ruído de passos se
tornava mais forte. Quis gritar pedindo ajuda, mas sua voz estava muito fraca e
somente um leve murmúrio saiu dos seus lábios. Algum tempo depois, reunindo todas
as forças que pôde, Tashi gritou, e desta vez mais alto. Os passos se detiveram e ele
pôde escutar vozes que falavam em voz-baixa desde o exterior da caverna.
De repente, apareceu uma cabeça na abertura, dois olhos procuraram
caverna adentro e uma voz gritou para que saísse.
— Não posso mover-me — disse Tashi, estou ferido, e me é difícil caminhar
os poucos metros que me separam da entrada da caverna.
A cabeça desapareceu e logo foi substituída por outra. Depois, um pequeno
corpo vestido com um hábito passou pela abertura e avançou de rastros pela caverna
até Tashi. Este pôde ver que se tratava de um monge, que avançava até ele com os
braços estendidos para levantá-lo e levá-lo a um lugar seguro. Uma vez fora da
caverna, Tashi viu que eram três monges. Eles viajavam juntos em peregrinação aos
lugares santos.
Os monges o levaram a um matagal de plantas delicadas, puseram-no no
solo e cuidaram da sua perna. Depois de repartirem com ele a sua comida, os monges
pediram a Tashi que lhes contasse a sua história, como havia chegado àquela
situação tão penosa. O moço contou-lhes tudo, referindo-se à sua recusa a caçar, e
dizendo-lhes como, no fim, seu pai, desesperado, havia pensado em matar a seu
único filho.
Os monges escutaram em silêncio. Depois, o monge principal convidou o
moço a acompanhá-los em suas viagens. E Tashi assim o fez, vestido com o hábito de
um monge mendicante.
Ao fim de alguns dias, os peregrinos chegaram à casa da irmã mais velha de
Tashi. O monge principal se aproximou da casa, chamou à porta e, quando apareceu a
moça, pediu-lhe uma esmola. Depois de dar comida aos monges errantes, quando
estes já se preparavam para partir, a moça perguntou se não teriam encontrado, por
seu caminho, seu irmão desaparecido. Disse-lhes que estava desaparecido há muitos
dias e que a família estava muito preocupada. O monge principal respondeu-lhe que
não o haviam visto, mas que, se isso viesse a acontecer, logo tratariam de dar alguma
notícia aos familiares.
A irmã mais velha de Tashi não reconhecera o irmão com o hábito de monge.
Pouco depois, chegaram à casa da segunda irmã do rapaz. De novo, o
monge principal se aproximou da casa e pediu uma esmola. Esta lhes foi dada. E
foi-lhes perguntado, também, se haviam encontrado o irmão desaparecido. O monge
principal respondeu que não e seguiram seu caminho.
Quando chegaram à casa da irmã menor de Tashi para pedir uma esmola; ela
reconheceu imediatamente o irmão desaparecido e o estreitou em seus braços,
pedindo-lhe que permanecesse com os que lhe queriam bem.
As três irmãs se reuniram na casa da irmã menor e fizeram um banquete para
celebrar a volta de Tashi. Os monges foram muito obsequiados pelos parentes do
rapaz, os quais lhe pediram que permanecessem como convidados todo o tempo que
quisessem. Os monges, entretanto, agradeceram o convite e deixaram a casa da irmã
mais nova de Tashi para prosseguirem a sua viagem.
Tashi agradeceu às irmãs por toda a sua ajuda e por todo o seu interesse,
mas pediu-lhes que o abençoassem, pois desejava partir e levar a sua própria vida. As
irmãs se entristeceram ao ver seu único irmão sair para enfrentar o mundo e
deram-lhe, como presente, um cavalo mágico que falava.2 Tashi pegou o cavalo e se
dirigiu para as regiões mais remotas do país.
Ainda não havia ido muito longe, quando alcançou uma vasta planície. O
cavalo lhe disse, então: — Mate-me. Estenda a minha pele sobre a planície e espalhe
as minhas cerdas por todas as partes, para que o vento as leve aos confins desta
planície.
O rapaz ficou horrorizado e negou-se a matar o cavalo. Em lugar disso,
depositou seu fardo no chão, comeu o que suas irmãs lhe haviam dado e se dispôs a
passar a noite ali. Mas, durante a noite, enquanto Tashi dormia, o cavalo lançou-se de
um precipício escarpado e matou-se.
Quando Tashi se levantou, pela manhã, procurou o cavalo, mas não o
encontrou em parte alguma. Explorando toda a planície, o rapaz chegou ao precipício
e, olhando para baixo, viu o corpo destroçado do cavalo. Sentindo invadir-lhe uma
tristeza enorme e pensando na conversa na noite anterior, Tashi decidiu fazer o que o
cavalo lhe havia pedido. Pegou a pele, estendeu-a no centro da planície, e depois
espalhou as cerdas do cavalo por todas as partes, lançando-as ao ar para que o vento
as levasse até os confins mais distantes da planície.
Imediatamente, a pele do cavalo se converteu numa grande mansão e as
cerdas se converteram em ovelhas e iaques, que pastaram pela planície até se
perderem de vista. O cavalo tornou a aparecer a Tashi e assim lhe falou:
— Você tem mostrado uma grande compaixão para com todos. Esta é a sua
recompensa.
Dizendo estas palavras, o cavalo partiu a galope e desapareceu ao longe. E
Tashi notou que no chão, por onde os cascos do cavalo haviam tocado, haviam
aparecido montinhos de ouro.
Inspecionando a sua nova casa, Tashi pensou nos pais e se perguntou como
estariam se arranjando para sobreviver. Decidiu-se a ir vê-los e a trazê-los para
viverem com ele na mansão. "Meus pais nunca hão de precisar buscar por comida,
nunca mais", disse a si mesmo.
E assim pensando, o moço se vestiu novamente com o hábito de monge, pois
não queria que seus pais soubessem de sua recém-adquirida fortuna. Depois,
apanhou duas tortas e se dirigiu à casa dos pais. Ao chegar a esta, encarapitou-se no
telhado, espiou por uma pequena janela e viu os pais acocorados diante do fogo.
Tashi deixou cair uma das tortas. Sua mãe a agarrou, dizendo: "É um presente dos
deuses!" Mas o pai, esfaimado, arrancou a torta das mãos da mãe, e se pôs a comê-la
com avidez. Tashi deixou cair, então, a outra torta para a mãe. Depois, desceu do
telhado e chamou à porta. Sua mãe abriu-a e, imediatamente, reconheceu o filho.
Estreitou-o nos braços e pediu-lhe que não voltasse a deixá-los. O pai, embargado de
emoção, pediu perdão a Tashi.
Tashi contou-lhes sobre sua nova casa e sobre sua riqueza, e os levou a viver
com ele, na planície. Ali, colocou a mãe num trono de ouro puríssimo; fez o pai
sentar-se num trono de prata puríssima. E quanto a ele, o único filho varão, sentou-se
num trono de madrepérola puríssima, também.
Notas
1. A propósito do mantra de Avalokitesvara (Chenrezik), a fórmula sagrada
por excelência do budismo tibetano, gostaríamos de citar as palavras do Lama
Anagarika Govinda: "Está nos lábios de todos os peregrinos, na reza dos moribundos,
na confiança dos vivos. É a melodia eterna do Tibete, que o homem religioso percebe
no murmúrio dos regatos, no rumor das cascatas ou no fragor das tempestades; e que
saúda o ser humano desde os rochedos e desde as pedras-mam, que o acompanham
por todas as partes, ao largo dos caminhos e dos escarpados desfiladeiros".
(Fundamentos da Mística tibetana, Madri, 1975, p. 29). É numa dessas "pedras-mani"
que grava Tashi em nosso relato; existem em grande número no Tibete e nas regiões
limítrofes, Podem tratar-se de pedras isoladas ou de pequenos muros, e quando um
budista passa junto a uma delas, deve contorná-la no sentido das agulhas do relógio,
deixando-a sempre à sua direita, como se faz com os chôrten e outros símbolos
sagrados. Para uma boa ilustração de uma pedra-mani, consulte-se Javier Gómez
Rea e Dedvan Sen: Himalaia, os mosteiros dos auras. Coleção "O Universo do
Espírito", n." 1, Madri, 1985, pp. 20-21.
2. O tema do "cavalo que fala" é muito freqüente nas lendas tibetanas, e se
encontra vinculado, em particular, à figura do rei Gesar de Ling e ao mito de
Sambhala.
O HOMEM BOM
Era uma vez um homem muito bom e generoso. Suas obras faziam-no
querido e admirado por todos. Certo dia, chegou a seu povoado um lama muito
famoso. O homem pediu para falar com o famoso lama, e quando este desejo lhe foi
concedido, prostrou-se aos pés do santo homem e lhe falou assim:
— Queria chegar a ser um iluminado, cheio de compaixão e sabedoria, para
poder ajudar a todos os seres vivos e dedicar a minha vida ao ensinamento de Buda.
Que devo fazer?
O lama viu que o homem era sincero em suas intenções. Recomendou-lhe,
então, que fosse às montanhas e que passasse a sua vida orando e meditando. Deu
ao bom homem uma oração especial para invocar e lhe explicou que se assim
procedesse continuamente e com grande devoção, então, poderia estar certo de que
se converteria num iluminado, capaz de ajudar a todos os demais com sua sabedoria
e compaixão.
O homem fez tal como o lama lhe havia recomendado. Partiu para as
montanhas que rodeavam o povoado, entrou numa caverna e se pôs a meditar com o
maior fervor. Durante muitos anos, foi perseverante, mas, apesar disso, não obteve a
iluminação.
Passados vinte anos, o famoso lama visitou novamente o povoado. O homem
bom soube da sua chegada e desceu da sua caverna nas montanhas para obter uma
audiência com ele.
Teve de esperar muitos dias, pois muita gente fazia fila para ver o famoso
lama e obter a sua bênção. Finalmente, lhe foi concedido ver o santo homem. Depois
de lhe ter rendido homenagem prostrando-se três vezes aos seus pés, e de ter-lhe
oferecido uma echarpe branca, o bom homem contou ao lama a sua situação:
— Tenho estado há vinte anos orando e meditando como o senhor me
recomendou — disse —, mas ainda não obtive a iluminação. Devo estar fazendo algo
errado. O lama adotou um porte solene e perguntou ao homem:
— O que eu lhe disse que fizesse?
O homem bom contou-lhe tudo o que havia estado fazendo durante os vinte
anos.
— Oh! — disse o lama — temo que isso não tenha servido para nada. Foi
errado o que eu lhe disse, e agora nunca mais obterá a iluminação.
O homem bom ficou desesperado, e, lançando-se aos pés do lama, chorou.
— Sinto muito, disse o lama, mas não posso fazer nada por você.
O homem bom, que já estava muito velho, sentiu que havia perdido vinte
anos de sua vida. De volta à sua caverna, perguntava-se: "Que vou fazer? Durante
todos estes anos, acreditei que poderia obter a iluminação e agora devo abandonar
toda a esperança de alcançar esse objetivo.
Sentou-se sobre a laje que, durante vinte anos, tinha sido seu travesseiro,
sua cama e sua mesa, cruzou as pernas, fechou os olhos e pensou: "Vou continuar
com a minha oração e com a minha meditação, porque, que outra coisa, se não isso,
poderia fazer agora?"
Assim, pois, sem nenhuma esperança de obter a iluminação, pôs-se a
meditar e a invocar as orações que se haviam tornado tão familiares a ele, durante
todo aquele seu longo retiro. E, imediatamente, obteve a iluminação. Viu o mundo em
toda a sua realidade. Tudo estava claro. Compreendeu, por fim, que havia sido
apenas a sua ânsia por obter a iluminação que o impedira de alcançá-la. Agora,
poderia ajudar a todos os seres vivos a encontrarem a paz, graças a sua sabedoria e
sua compaixão. Agora, abandonaria a sua caverna e voltaria ao mundo para espalhar
os ensinamentos de Buda.
Saiu da sua caverna e contemplou o povo lá embaixo. Tantas vezes o havia
visto antes, mas nunca com tanta claridade como agora. Por um momento, acreditou
ouvir o doce riso do famoso lama, enquanto levantava os olhos para o céu e
contemplava o imenso arco-íris que se estendia sobre os picos nevados.1
Nota
1. Neste relato vemos um exemplo da colocação de prática, por parte do lama,
de uma das virtudes (ou perfeições: paramitâ-s) do bodhisattva: a upâya-kausalva ou
"habilidade nos meios".
O TRANSFORMADOR DO TEMPO
Era uma vez um homem sábio. Viajava por toda a vasta terra do Tibete, e se
detinha nos povoados e cidades onde quer que se requeressem seus serviços. Podia
predizer o futuro, podia vaticinar a uma família os dias mais favoráveis para viajar ou
comerciar, e podia, inclusive, mudar o tempo. O homem sábio era muito admirado e as
pessoas lhe pagavam muito bem os seus serviços.
A julgar por seu aspecto, dever-se-ia desculpar a quem pensasse que era
pobre. Os que o conheciam sabiam muito bem que não era assim. Ouvindo-o falar,
podia-se tomá-lo facilmente por um homem de cabeça louca, mas aqueles que iam lhe
pedir ajuda, tinham, sem dúvida, outra idéia. Esse homem estranho, com sua chuba
andrajosa, um tamboril duplo e uma conca feita de um crânio pendurados no
cinturão,1 não era nem pobre nem estúpido. Possuía, segundo diziam alguns,
poderes mágicos. Ele usava estes poderes para o bem de todos os seres, mas — e
isto era o essencial do caso — se alguém ousasse criar-lhe dificuldades, ele podia
desviar seus poderes mágicos para outros usos, e acabar, assim, com qualquer
oposição. Era conhecido por todo o mundo como o "transformador do tempo".
Se alguém tivesse podido ver, por acaso, o que continham a chuba e o surrão
do transformador do tempo, teria descoberto muitos tesouros, pois, ao não ter
residência fixa, ele viajava com todos os seus pertences de um povoado a outro. Vê-lo
celebrar uma cerimônia era algo que ensinava muito, e o povo se congregava para
observar quando o transformador do tempo parecia entrar num estado de transe,
golpeando o seu tambor com ritmos sempre cambiantes e fazendo gestos com a mão
livre2 para invocar o poder dos deuses. Sentava-se horas cantando em oração com
uma voz grave e profunda que parecia provir das próprias entranhas da terra, pedindo
aos deuses que derramassem seu poder e sua bênção sobre os que assistiam à
cerimônia. O sorriso do transformador do tempo era como o sol. Todo o seu rosto se
iluminava e seus olhos refletiam um calor que ninguém podia deixar de perceber.
Certo dia, depois de terminar uma cerimônia de bênçãos sobre uma família, o
transformador do tempo apanhou os obséquios de comida que a família lhe ofereceu e
se dispôs a dirigir-se para outro povoado situado a várias jornadas de marcha.
Enquanto isso acontecia, o transformador do tempo era observado por uma lebre
muito grande, a qual, com os olhos cheios de avidez e o estômago protestando de
fome, contemplava o homem e a sua comida com inveja.
"Vou encontrar um modo — pensou — de roubar a comida desse trapaceiro
esfarrapado". E, assim, com a cabeça ocupada em elaborar um plano, a lebre seguiu
o transformador do tempo em sua viagem.
Não haviam chegado muito longe ainda, quando a lebre ouviu um bater de
asas e sentiu umas delicadas patas pousarem-se nas suas costas. Era uma urraca.
— Olá, lebre, disse a urraca. Você tem podido achar comida?
— Não, respondeu a lebre, e estou fraca e faminta. A comida anda muito
escassa.
— Sei disso muito bem, minha amiga — disse a urraca. Vamos viajar juntas;
quem sabe, assim, a nossa sorte muda.
Dito isso, a urraca levantou vôo e seguiu a lebre em sua viagem.
No dia seguinte, a lebre e a urraca se encontraram com um raposo. A urraca
se perturbou e ficou subindo e baixando pelo ar.
— Este raposo me está parecendo muito fraco — disse a urraca à lebre. Se
ele morrer, poderemos nos dar um banquete de carne de raposo.
— Olá, raposo! — disse a lebre. Aonde você vai?
O raposo levantou a cabeça e falou assim à lebre:
— Tenho muita fome e meus filhos também.
Ando buscando comida.
— Venha conosco — disse a lebre —, se formos juntos a situação pode
melhorar.
E assim, a lebre, a urraca e o raposo caminharam juntos, mas somente a
lebre sabia que estavam seguindo os passos do transformador do tempo.
Por fim, chegaram a um bosque, cuja sombra das árvores foi um alívio para
os três animais. A urraca se deteve para pegar algumas bagas de um arbusto, mas
estas não foram do agrado da lebre e do raposo, que afastaram seus focinhos com
repugnância.
Foi aí que, atrás de uma grande árvore, enxergaram a imponente figura de
um lobo. Petrificados de terror, a lebre e o raposo permaneceram totalmente imóveis;
quanto à urraca, guinchando atemorizada, levantou vôo e foi pousar-se no ramo mais
alto de uma árvore. O lobo, perturbado pelo barulho da urraca, virou-se e ficou diante
do olhar assustado dos outros dois animais.
— Não se assustem — grunhiu o lobo —, sou demasiado velho para caçar.
A lebre avançou cautelosamente, pouco a pouco:
— Como você come se não pode caçar?, perguntou.
— Esse é o problema — respondeu o lobo —, pois tenho filhotes para
alimentar. E baixando os olhos tristemente, acrescentou: Já não sou tão forte e veloz
como era.
— Venha conosco — disse a lebre, com seus grandes olhos brilhando de
emoção —, tenho um plano que pode ser de ajuda para todos nós.
— E qual é o plano? — perguntou a urraca, que tinha abandonado seu lugar
seguro para participar da conversa.
— Vocês vão ver — disse a lebre. Na nossa frente está indo um
transformador do tempo.
— Um transformador do tempo! — repetiram em coro os demais animais. E
de que modo ele pode ser de ajuda para nós?
— O transformador do tempo não é um homem pobre — prosseguiu a lebre.
Já o tenho visto guardar muita comida nas suas bolsas.
Ao ouvirem isto, os demais animais experimentaram um súbito interesse.
— Pois bem, o que eu sugiro é que você, amigo — disse indicando o raposo
—, se deite numa vala e finja estar morto. A urraca fará ruído para atrair o
transformador do tempo para você. Quando ele deixar suas coisas para ir ver você, o
lobo e eu, que somos os mais fortes, lhe tiraremos as coisas e escaparemos.
— Mas, que acontecerá se ele me apanhar e me matar? — perguntou o
raposo, que preferia não ser quem iria ficar na vala.
— Ele não vai apanhar — piou a urraca. Você pode saltar por cima das suas
costas e escapar.
De má vontade, o raposo concordou com o plano:
— Mas, primeiro, disse, temos que alcançar o transformador do tempo, e
nenhum de nós está podendo ir tão depressa, devido à nossa fraqueza por falta de
comida.
A lebre esteve um momento pensativa e logo disse:
— O transformador do tempo se dirige a um povoado próximo. Pois bem, se
formos pelo rio, o alcançaremos antes que ele chegue ali.
Os animais se dirigiram ao rio e, por sorte, encontram um grande tronco que
boiava perto da margem. A lebre, o raposo e o lobo subiram ao tronco e logo
deslizaram pela água em velocidade crescente, enquanto a urraca voava sobre suas
cabeças, pronta para avisá-los quando divisasse o transformador do tempo.
Quando a urraca viu que já haviam passado na frente do transformador do
tempo um trecho considerável, fez sinal aos animais para que descessem à terra. Isto
não foi nada fácil, pois se viram obrigados a abandonai" o tronco e a alcançar,
nadando à margem — uma experiência da qual a lebre poderia muito bem ter-se
poupado.
Tal como a lebre havia planejado, o transformador do tempo, ao ouvir os
gritos da urraca e ao vê-la voando sobre uma vala, deixou suas coisas e se aproximou
para investigar. Quando viu o raposo esticado no fundo da vala, pensou que devia
estar morto. "Tem um bonito pêlo — pensou o transformador do tempo —, vou
esfolá-lo". Mas, justo no instante em que introduzia a mão em sua chuba para pegar a
faca, o raposo, incapaz de permanecer quieto um minuto mais, saltou fora da vala e
escapou.
E, quando o transformador do tempo, surpreso, se virou para ver o raposo
fugindo, pôde ver, também, rapidamente, o lobo e a lebre que desapareciam ao longe,
levando as coisas dele, e eram seguidos nisso pelo raposo e pela urraca, afogueados.
Quando os animais se sentiram seguros, detive-ram-se para repartir os
pertencentes do transformador do tempo. A astuta lebre se encarregou dos trâmites. À
urraca deu o chapéu do transformador do tempo. Ao lobo deu as botas; e ao raposo, o
grande tambor ritual. Para si mesma, deu-se toda a comida.
Os animais ficaram tão contentes com suas novas posses, que nem
perceberam que haviam sido enganados pela astuta lebre, e todos partiram alegres,
cada qual segurando firmemente seus mal-ad-quiridos lucros.
Mas, nem tudo saiu bem para os animais. O lobo, com suas botas novas, saiu
para caçar ovelhas. Mas, impossibilitado por seu pesado calçado de correr ligeiro,
tropeçou, e quase acaba morto ao ser pisoteado pelas ovelhas.
A urraca, com o enorme chapéu que quase lhe cobria o corpo inteiro,
sentou-se embaixo de um iaque. Este lhe soltou um "bolo" enorme em cima do chapéu,
apanhando a urraca e causando-lhe quase a morte por asfixia.
O raposo foi para a sua casa a reunir-se com a família, que esperava
ansiosamente o seu regresso. Sua mulher e seus filhos se encontravam numa ponte
que passava por cima de um impetuoso rio, esperando para dar-lhe boas-vindas. Ao
aproximar-se da ponte e ver a família esperando-o ali, o raposo se pôs a golpear o seu
tambor ritual tão fortemente, que seus filhos, assustados, se atiraram ao rio e se
afogaram.
Pouco tempo depois, todos os animais voltaram a se reunir. O raposo, a
urraca e o lobo contaram seus infortúnios, mas a lebre permanecia sentada em
silêncio, à sombra de uma grande árvore. Depois que os animais contaram suas
histórias, todos eles se voltaram com ansiedade para a lebre. Esta falou assim:
— Amigos meus, cometemos um erro grave. O transformador do tempo tem
poderes mágicos e, ao roubarmos seus pertences, atraímos a desgraça sobre nossas
próprias cabeças. Vocês todos pensaram que saíram prejudicados, mas, olhem só
para mim. E, dizendo isto, a lebre saiu da sombra da árvore que a havia mantido
oculta até então. Também eu saí prejudicada, disse, pois. enquanto comia a comida
do transformador do tempo, parti o lábio.
Os animais ficaram sem fala ao verem a rachadura no lábio da lebre, que
chegava até o nariz. E a lebre continuou:
— Assim, todos os seres, humanos ou animais, quando me virem, saberão
que fazer o mal somente traz sofrimentos para aquele que o faz.
E até hoje, passadas tantas gerações, a lebre leva ainda no lábio o sinal
herdado de sua astuta antepassada.
Notas
1. Trata-se, respectivamente, do damaru (palavra da mesma origem que
"tambor", e o kapâla (aparentada com o grego kephalé, "cabeça"). O primeiro é um
objeto ritual, que reproduz o "som da imortalidade". O kapâla (tibetano, thod pá) é o
crânio de libações que contém a água da vida, objeto simbólico que vemos, na
iconografia tibetana, acompanhando figuras como Padmasambhava ou Naropa, o
mestre de Marpa, ou divindades terroríficas como Mahâkâla ou Cakra-samvara. 2.
Trata-se de mudrás (tibetano, phyag-rgya), gestos rituais executados com as mãos. O
sentido literal desta palavra é o de "carimbo", e, por analogia, designa uma atitude
interior conformada a uma realidade arquetípica. Encontramos estes gestos nas
íóguicas, na dança e na iconografia hindus, cuja essência, comum às três, foi
"transvasada" ao budismo, onde encontrou uma plasmação quase sacramentai na
imagem de Buda.
O TESOURO PERDIDO
O sol poente se afundava detrás dos picos gelados das montanhas,
tornando-os vermelhos como brasas. Nos terraços das casas de Lhasa, os meninos
faziam subir seus papagaios de vivas cores, presos a fios polvilhados de pó de vidro.
Corriam e saltavam, entrecruzando-se — e os papagaios iam seguindo seus
movimentos —, e riam, em alvoroço, tentando cortarem-se, uns dos outros, os fios dos
papagaios. Um menino de uns seis anos estava sentado junto ao tio, um monge
vestido de hábito marrom. Observavam o papagaio do menino subindo cada vez mais
no céu. Mantido pelo vento, estava tão alto, que parecia que não se movia. Sem
deixar de olhar o papagaio, o menino disse:
— Me conte um conto, tio.
O monge sorriu ternamente.
— Uma história antiga, vamos!
E o monge começou, então:
"Um pai disse a seu filho:
— Vou morrer logo, meu filho. Leve o meu ouro para a sua casa. É seu. Mas
lembre-se de que não deve confiar em ninguém. Nem sequer na sua esposa.
O pai acreditava que o filho — cujo nome era Sonam — soubesse seguir seu
conselho e que compreendesse como acontecem as coisas no mundo.
Sonam tinha um grande amigo, de nome Tamchu. Quando crianças, tinham
ido junto à escola, e, todas as tardes, brincavam do jogo de volante com o pé. Tamchu
vivia na aldeia próxima, com a mulher e dois filhos pequenos.
Certo dia, Sonam decidiu sair em peregrinação ao mosteiro santo. Antes de
partir, lembrou-se de que, quando vivo, o pai lhe havia dito que não confiasse em
ninguém. Mas, ao pensar no amigo Tamchu, não pôde admitir que as palavras do pai
devessem ser aplicadas também a este. Não, a Tamchu, não. E assim, levou suas
duas bolsas de pepitas de ouro à casa do amigo e lhe disse:
— Tamchu, por favor, guarde-me o ouro enquanto eu estiver fora. Este é o
ouro que meu pai me deixou, ao morrer.
Tamchu respondeu:
— Oh, sim, naturalmente. Guardarei o seu ouro com muito cuidado, e,
quando voltar de sua peregrinação, você aqui o encontrará. Você não tem por que se
preocupar. Somos bons amigos, não somos?
— E assim — continuou o monge —, passou-se um ano e Sonam voltou da
sua peregrinação. Foi à casa de Tamchu e pediu ao amigo:
— Você pode me devolver o ouro, Tamchu?
— Oh, eu sinto tanto, Sonam! Aconteceu uma desgraça, uma grande
desgraça! O ouro se converteu em areia! — respondeu Tamchu, olhando o amigo com
cara de quem estava desesperado.
Mas, Sonam, enquanto o amigo lhe contava o estranho acontecimento, não
pareceu surpreso e, depois de alguns minutos de silêncio, disse:
— Está bem, Tamchu, não se preocupe. Você fez tudo o que pôde para vigiar
o meu ouro.
E os dois amigos comeram juntos em paz, como se a perda do ouro tivesse
sido esquecida por completo. Ao entardecer, Sonam disse ao amigo:
— Tamchu, eu gostaria de cuidar dos seus filhos durante uns meses, já que
não tenho minha própria família. Gostaria de dar-lhes boa comida e boa roupa. Eles
seriam muito felizes em minha casa.
— Muito boa idéia, Sonam!, disse Tamchu, pensando:
"Embora ele tenha perdido todo o seu ouro nas minhas mãos, ainda quer
cuidar de meus filhos. Sem dúvida, é uma ótima pessoa". E, assim, acrescentou:
Naturalmente, Sonam. Você pode levar meus filhos pelo tempo que quiser.
Sonam levou as crianças para a sua casa e tratou deles muito bem. Mas
comprou dois macaquinhos e pôs neles os nomes dos meninos. Durante os dias que
se seguiram, adestrou os monos para que, quando ele chamasse: "Tendzin, venha
aqui!", o macaquinho maior corresse para ele; e, quando chamasse: "Thupten, venha
aqui!", o macaquinho menor também fosse em direção a ele. Os macaquinhos
entenderam muito bem e aprenderam muito rapidamente.
Passado o tempo, quando Tamchu foi buscar os filhos, Sonam mostrou uma
cara muito triste ao amigo:
— Oh, eu sinto tanto, Tamchu — disse. Aconteceu uma desgraça, uma
grande desgraça! Seus filhos se converteram em macacos!
Tamchu ficou muito triste e chamou os filhos por seus nomes. Imediatamente,
apareceram os dois macaquinhos e correram para ele. Tomaram a mão de Tamchu e
dançaram à sua volta, como se fossem menininhos. Tamchu ficou desolado e
perguntou ao amigo:
— Sonam, que podemos fazer? Como podemos fazer com que estes
macacos se convertam de novo em meus filhos?
Sonam mostrou-se pensativo por uns instantes e depois respondeu:
— Isso é fácil, meu amigo, mas vamos precisar de muito ouro,
— De quanto? — perguntou Tamchu.
— De umas duas bolsas de pepitas de ouro, pelo menos,
— Tão logo possa, trarei as bolsas de ouro — disse Tamchu, e saiu correndo
para sua casa.
Mais tarde, voltou e deu o ouro ao amigo. Sonam o pegou e disse a Tamchu
que esperasse enquanto ele subia ao andar de cima.. No fim de alguns momentos,
desceu.
— Aqui estão, Tamchu.. Transformei os macacos em sereshumanos de novo,
em seus filhos..
Tamchu ficou encantado por recobrar seus filhos, mas olhou com vergonha
para Somam. Logo depois, porem, os dois amigos caíram no riso.'"
Ao terminar a história, o próprio monge começou a rir, ao ver como o fio do
papagaio de seu sobrinho havia sido cortado enquanto escutava o relato. Ambos
contemplaram o papagaio que flutuava sobre o vale e voava para os dourados
telhados de Potala
CUIDADO COM O MEL QUE É OFERECIDO SOBRE UMA FACA AFIADA!
Você há de saber que esta vida é
o minúsculo borrifar
de uma gota de água.
Uma bela criatura que desaparece
no mesmo instante
em que começa a existir.
Portanto, marque você mesmo a sua meta,
e aproveite ao máximo cada dia
e cada noite para alcançá-la.
TSONG-KHAPA
A ORAÇÃO QUE FOI ESCUTADA
O pequeno cômodo brilhava à luz das lamparinas de gordura colocadas com
esmo sobre a mesinha baixa diante do altar. Neste, podiam-se distinguir os objetos
sagrados: os livros santos envolvidos num pano, a imagem de Buda, um retrato
emoldurado do Dalai lama, xícaras de ofertório de prata; e, na parede do fundo, com a
fumaça do incenso enroscando-se à sua volta, o tanka1 que reproduzia a divindade
tutelar e padroeira do Tibete: Chenrezik, o bodhisattva da compaixão, com onze
cabeças e mil braços. Pelas outras paredes do pequeno cômodo, havia quadros de
outras divindades, todas elas objeto de devoção para o povo do Tibete. Havia uma
representando Dolma, o aspecto feminino da compaixão, e Jamyang (Manjushri), o
bodhisattva da sabedoria.2
Esse cômodo, o oratório, era o mais rico da pequenina vivenda. O povo do
Tibete era muito religioso, e suas vidas giravam em torno dos ensinamentos de Buda,
tal como estes haviam sido explicados pelos grandes mestres e santos que tinham
alcançado o estado final de iluminação. As pessoas acreditavam que os grandes
santos, embora tendo chegado ao estado de iluminação, ainda se preocupavam pelo
bem de todos os seres, e que aqui permaneciam para protegê-los e guiá-los em seu
caminho por esta e por suas outras vidas futuras.
Assim o acreditava também uma velhinha que estava sentada num canto da
capela, a desfiar nos dedos as contas do seu rosário e a repetir, lentamente, a oração
de Chenrezik: OM MANI PADME HUM. Uma e outra vez, a poderosa oração brotava
dos seus lábios. A anciã vivia preocupada, pois era uma viúva sem dinheiro nem
terras: tudo o que possuía no mundo era a sua única filha.. E ela achava que, sem um
dote pata oferecer, a moça jamais iria ser pretendida pelos homens ricos da região, e,
portanto. iria viver a vida inteira na miséria. Não era por sua própria vida que ela se
preocupava, pois a sua vida quase já se havia consumido, mas desejava, de todo o
coração que a vida de sua filha pudesse ser próspera e feliz. Por isto é que rezava.
E sucedeu que um homem pobre, de uma aldeia vizinha, tinha ouvido falar da
filha da anciã, e, quando a vira, ficara tão impressionado com a sua beleza, que
determinou faze-la sua esposa. Ele sabia que não seria fácil que a mãe da moça
consentisse no casamento da filha com um homem de uma condição tão humilde
quanto a sua. Por isso, tramou fazer com que a mãe acreditasse que era um homem
próspero e rico.
Escondendo-se na capela da casa da velhinha, ele esperou que ela entrasse,
fizesse as suas oferendas de alimentos e se sentasse num canto a rezar. A anciã
rezava e rezava com fervor, pedindo aos deuses que mandassem um rico marido para
tomar sua filha em casamento. O pobre homem ficou escutando até que ela
terminasse o pedido. E, no exato momento em que ela se dispunha a deixar a capela,
ele falou:
A velhinha se assustou ao ouvir a voz. E, como não visse ninguém mais no
local, acreditou que fosse a voz dos deuses. Ouviu a voz dizer-lhe que, no dia
seguinte num cavalo branco, apareceria um homem rico para pedir-lhe a filha em
casamento.
A anciã não cabia em si de contentamento. Ela e a filha limparam a casa
inteirinha, a fim de deixá-la preparada para receber o homem rico que os deuses iam
enviar para marido da moça. Depois de preparar a comida, a velhinha foi dizer aos
vizinhos que ficassem prevenidos para a grande festa do dia seguinte, pois que a sua
única filha ia se casar com um homem rico.
E, no outro dia, a anciã e a filha se levantaram bem cedo. Os pássaros
cantavam e o azul do céu contrastava com o vermelho dos picos das montanhas,
banhados pela luz do sol que nascia A velhinha e a moça estavam emocionadas e
contentes. Sentaram-se na parte de fora da pequena casa e ficaram esperando a
chegada do homem do cavalo.
Não muito tempo depois, ele apareceu no horizonte. E, enquanto o homem
se aproximava a cavalo da casa, a filha ia sentindo a angústia cansada pelos súbitos
pressentimentos que a dominavam. Perguntava-se como seria ele, se elegante e bom;
se a sua vida de casada iria ser tranqüila e feliz como ela sempre havia desejado; e
perguntas como estas lhe vinham a mente. Mas depois lembrou que este homem era
uma dádiva dos deuses, de modo que ela não deveria sentir temor algum.
Até que, enfim, homem pobre, vestido com roupas que os vizinhos lhe
haviam emprestado e montado no cavalo branco que era o único que possuía parou
diante da casinha da anciã. Desmontou, sorriu para a moça e tomou a mão dela entre
as suas. Contendo a emoção com muita dificuldade, a velhinha pediu ao homem que
entrasse na casa e descansasse um pouco. Ele assim o fez. E, depois de terem
conversado por algum tempo, ele pediu à anciã a mão de sua filha em casamento.
O regozijo foi grande. Celebrou-se a festa e todos os vizinhos e amigos
vieram para desejar ao casal a maior felicidade, pois dava para se perceber que
aquele casamento havia sido mesmo determinado pelo céu.
O homem pobre chamou a moça e, colocadas as poucas coisas que
pertenciam a ela num baú, os dois partiram rumo à humilde casa dele, numa aldeia
vizinha. Durante a viagem, o homem começou a se inquietar pela impostura que havia
praticado. Tinha medo que a moça gritasse e berrasse quando soubesse que ele não
era, em absoluto, um homem rico, mas, sim, um camponês muito humilde; temia,
também, que ela fugisse e ele a perdesse para sempre.
Preocupado por esses pensamentos, o homem pobre concebeu um plano.
Tirou as coisas da moça do baú e as enterrou. Depois, disse a ela que se enfiasse no
baú, pois iria fazer-lhe uma surpresa quando chegassem à casa. Quando a moça já
estava dentro do baú, o homem o fechou à chave e o colocou numa valeta que havia
num caminho da floresta. Depois, se dirigiu à sua casa.
Chegando lá, o homem pobre foi correndo aos vizinhos mais próximos, e,
contando-lhes que trazia para casa uma recém-casada, logicamente nervosa,
preveniu-os de que, se ouvissem gritos e berros durante a noite, não se
preocupassem. Depois, pôs ferrolhos novos e fortes na casa, a fim de que a moça não
pudesse escapar.
Enquanto o homem pobre estava em sua casa, um homem rico e de
influência foi dar justo no lugar onde a moça estava fechada no baú, esperando a volta
do marido. O homem rico e influente ordenou a seus servidores que abrissem o baú, e,
quando viu a moça dentro, ficou tão impressionado com a sua rara e delicada beleza,
que a levou com ele. Dentro do baú, no lugar da moça, deixou um urso feroz.
O homem pobre voltou em busca da esposa; amarrou uma corda em volta do
baú e o arrastou até a sua casa. Já dentro desta, abriu o baú e... ficou aterrado diante
do urso feroz — de uma ferocidade que, naturalmente, se havia exacerbado durante o
trajeto dentro do baú e pela violência do tratamento. O homem pobre gritou e berrou a
mais não poder, pedindo ajuda, enquanto o urso o atacava, mas os vizinhos não
fizeram caso do barulho, pois o próprio homem os havia prevenido a respeito.
E assim, o homem pobre, que havia tramado todo aquele embuste com a
pretensão de ser um deus, acabou morrendo nas garras de um urso selvagem. E a
moça viveu para sempre mais feliz do que nunca, como esposa de um homem rico e
influente. As orações da anciã haviam sido escutadas.
Notas
1. Um tanka (thang-sku, "algo que se enrola") é uma pintura sobre tela
geralmente de algodão, que num dos bordos, ou em ambos, leva uma ripa ou uma
vara de bambu que permite possa ser enrolada. Quase sempre a pintura é
emoldurada com um brocado de seda.
A confecção de um lanka está sujeita a regras precisas, transmitidas pela
tradição, e nada deve à improvisação ou ao subjetivismo. Os lankas, no geral, são de
tema sagrado e constituem, rigorosamente, da mesma forma que os ícones cristãos,
suportes de medição. Não obstante, os narradores ambulantes também levavam
lankas com representações de caráter épico e narrativo, que ilustravam lendas
populares e acontecimentos.
2. Manjusrí (em tibetano, 'Jam-d pai) é um bodhisattva que personifica a
Sabedoria da mente completamente iluminada. Aparece sempre, na iconografia
tibetana, brandindo na mão direita uma espada flamígera, a qual corta a raiz da igno-
A ÁRVORE-SOMBRINHA
Havia uma vez um homem chamado Palden. Era um grande viajante.
Percorrera o mundo inteiro e vira coisas magníficas e maravilhosas. Um dia, quando
atravessava a sua terra natal — o Tibete —, encontrou um grande bosque, em cujo
centro, numa clareira, se levantava uma árvore enorme. Era belíssima, de folhas
verde-escuras e se estendia como uma sombrinha por sobre toda a terra à sua volta.
Sentindo-se cansado, Palden decidiu deitar-se sob a árvore-sombrinha.1
Acomodando-se entre as raízes salientes, logo adormeceu. De repente, despertou
sobressaltado. Era noite fechada e havia um grande alvoroço. Sem fazer nenhum
ruído, mudou de posição para poder observar melhor e ficou escondido detrás do
enorme tronco da árvore-sombrinha. O que viu o assustou muito: ali, na escuridão da
noite, como estrelas do firmamento, brilhavam centenas de olhinhos: os olhos de
muitos animais, das mais variadas espécies.
Sigilosamente, Palden se levantou e, com muito cuidado, para não espantar
os animais, subiu pelos galhos da árvore-sombrinha e, desde ali, ficou espiando o que
se passava embaixo. Um enorme leão das neves emergiu da escuridão, e foi
sentar-se sob a árvore, seguido logo de um lobo, um urso, um macaco, aves e muitos
outros animais. Todos os animais que viviam nos arredores do grande bosque tinham
enviado um representante à reunião.
O leão das neves, que era sem dúvida o chefe,2 passou os olhos pela vasta
assembléia e disse:
— Boa-noite a todos!
E, como resposta, todos os animais saudaram o leão e se cumprimentaram
uns aos outros, com suas vozes e gorjeios.
Palden ficou tão pasmo com o que viu, que quase caiu dos galhos da árvore
quando o leão falou. Segurando-se firmemente num galho forte, foi contemplando —
olhos desorbitados — a reunião dos animais.
— Digam-me — disse o leão —, que tal foi o dia de hoje para vocês?
— Eu sinto muita fome, respondeu um lobo.
Caminhei muitos quilômetros, hoje, e não consegui comida suficiente.
— Já eu tive sorte — disse a tartaruga —, passei um dia ótimo, nadando e
brincando entre as ramagens.
Todos os animais contaram o seu dia e, enquanto o faziam, o leão
acrescentava os seus comentários, confirmava com a cabeça ou a balançava em sinal
de desgosto; de vez em quando, dava algum conselho ao animal que o precisava.
Passado algum tempo, já se ia fazendo silêncio e todos os animais se
preparavam para voltar aos seus territórios, quando se escutou um surdo rouquido:
— Perdão, disse uma voz baixa. Tratava-se de um macaco muito velho e
enrugado, que se levantou e se dirigiu para o auditório:
— Tenho um relato triste para contar a vocês, hoje. Está relacionado com a
estupidez dos humanos.
— Conte-nos, então — disse o leão. Que foi que fizeram, hoje, os humanos?
O macaco continuou:
— Bem, para falar a verdade, o que eu gostaria mesmo é de ser humano
também — disse, pois, se o fosse, poderia fazer muito mais pela felicidade dos outros.
Mas, sendo as coisas como são, eles, os humanos, jamais escutam os chios de um
velho macaco.
— Vamos logo com essa história — disse o raposo com impaciência, e um
rumor de descontentamento se levantou dentre a multidão.
O leão das neves levantou uma das garras para impor silêncio:
— Deixem que o macaco conte o seu relato, disse.
— Bem — disse o macaco —, há uma família que vive junto do rio. Eles têm
uma filha, uma única filha, que está muito doente. Já faz três meses que ela sofreu um
ferimento na perna, e seus pais não sabem como curá-lo. Pois bem, se eu fosse
humano — continuou —, lhes diria como curar a perna da menina.
Todos os animais concordaram com a cabeça, pois todos conheciam muito
bem a estupidez dos humanos. E o macaco prosseguiu:
— Diante da casa, há uma grande rocha sob a qual vive uma rã. A rã está
muito doente e não pode se mover por falta de água. Pois bem, se os pais da menina
recolhessem essa rã, a colocassem num pratinho de ouro do santuário doméstico e a
levassem ao rio, a perna de sua filha sararia rapidamente.
— É certo, falou o leão das neves. O macaco conhece o meio de curar a
perna ferida da menina.
Mas, das outras vezes que tentamos falar com os humanos, eles não nos
quiseram escutar, aliás, nunca nos escutam. Por isso, agora, que se arranjem
sozinhos!
Depois que todos os animais se foram, Palden desceu da árvore-sombrinha.
Estava muito pensativo e se perguntava o que devia fazer.
— Os animais me ensinaram o caminho a seguir — pensou. Devo encontrar
essa família e ajudá-los a curar a perna de sua filha.
Quando Palden chegou à casa, o sol já havia aparecido no céu e a manhã ia
avançando. Foi até a porta e chamou. Seu chamado foi logo atendido pelo pai da
menina, que o olhou intrigado e perguntou o que queria.
— Sou médico — disse Palden. — Vim ajudar à sua filha.
O pai se afastou para deixar Palden entrar na casa e o conduziu até o leito
onde jazia a filha, pálida e enferma, à beira já da morte. Palden se ajoelhou junto ao
leito e tomou a mão da menina entre as suas.
— Vou fazer com que você fique boa de novo, sussurrou-lhe. Mas a menina
não o ouvia. Palden viu que tinha que se apressar se quisesse salvar-lhe a vida.
Dirigindo-se ao exterior da casa, Palden encontrou a pedra grande. Afastou-a,
com jeito, uns centímetros, e ali estava a rã, desidratada e morrendo por falta de água.
Palden pediu ao pai da menina que lhe trouxesse uma echarpe branca limpa sobre um
pratinho de ouro do santuário doméstico. Então, com muito cuidado, apanhou a rã e a
colocou no pratinho, tal como o macaco havia mencionado.
Passando o pratinho ao pai da menina, Palden lhe disse que levasse a rã ao
rio e que a colocasse no fundo:
— Se o senhor assim o fizer e se a rã se recuperar, a sua filha se salvará.
O pai não compreendia a medicina que o estranho doutor lhe aconselhava,
mas, como havia experimentado de tudo para curar a menina, e sem resultado,
procedeu tal como aquele homem lhe pedia.
Ao voltar do rio, o pai não coube em si de contentamento, ao ver que sua filha
tinha se levantado da cama e já ajudava à sua mãe na cozinha. Voltando-se para
Palden, o pai disse:
— Tudo o que tenho de valor é seu, é só dizer o que quer, pois o senhor
salvou da morte a nossa única filha, e todo o ouro do mundo não seria suficiente para
pagar-lhe o bem que nos fez.
— Eu não quero nada, disse Palden, a não ser trazer felicidade às pessoas.
O pai insistiu para que Palden ficasse e que comesse com eles, pelo menos.
Prepararam uma grande festa em sua honra. Todos os vizinhos vieram e, nessa tarde,
houve grande alegria no bosque, pois todos acreditaram que se houvesse realizado
um milagre.
Ao cair da noite, Palden se despediu da família e, levando consigo os
presentes com que o haviam acumulado, dirigiu-se novamente ao centro do bosque, à
clareira na qual se erguia a árvore-sombri-nha. Quando chegou à árvore, a reunião já
havia começado. Todos os animais estavam congregados e contavam ao leão das
neves as suas histórias. Lentamente e sem fazer ruído, Palden se encarapitou na
árvore e subiu pelos galhos até ficar escondido da vista de quem quer que fosse.
Dessa vez, foi um tigre que falou dos humanos, contando sobre uma família
que vivia no outro lado do bosque, longe do rio.
— São tão ignorantes — disse o tigre —, que todos os dias percorrem
quilômetros e quilômetros até o rio, para se abastecerem de água.
Uma vez mais, os animais concordaram com a cabeça e soltaram grunhidos
de compreensão, enquanto o tigre continuava o seu relato:
— Pois bem, se eu estivesse em seu lugar, arrancaria o grande toco de
árvore que há junto à casa deles, cavaria até um metro de profundidade, e dali tiraria
toda a água que necessitasse.
Palden escutava. Quando os animais terminaram, desceu da árvore e
adormeceu profundamente. Contudo, ao despertar, recordou perfeitamente o relato do
tigre, na noite anterior. "Foi um sonho?", perguntava-se; mas, quando levantou os
olhos na direção dos galhos da árvore-sombrinha, persuadiu-se de que o que havia
ouvido era absolutamente real, e de que tinha de encontrar a família que necessitava
de água tão desesperadamente.
Palden chegou à casa da família no mesmo momento em que o sol se
escondia detrás do horizonte, mas ainda havia luz suficiente para ver o grande toco.
Aproximou-se do mesmo para inspecioná-lo e viu que estava profundamente fincado
ao solo. "Será preciso a força de uns cinqüenta homens para arrancar este toco —
pensou —, pois ele está com as raízes enterradas fundo no solo. Sentou-se junto ao
toco, tirou um pouco de comida da sua chuba, comeu, e logo voltou a dormir.
Raiou a aurora. Os pássaros do bosque cantavam e alguns sinais de
movimento dentro da casa indicavam que a família já se havia levantado e se
preparava para a jornada. Palden foi até a porta de entrada da casa e chamou,
pedindo aos de dentro que o deixassem entrar.
Quando a mulher da casa respondeu ao seu chamado, Palden lhe pediu um
pouco de água, mas ela disse que a que tinham já não era suficiente sequer para eles
mesmos; e, sendo assim, não podia dar nem uma gota a estranhos.
— Temos que andar muitos quilômetros todos os dias —disse —, pois
vivemos longe do rio e não temos outra fonte perto de casa.
— Talvez eu possa ajudá-los — disse Palden —, pois sou perito nestas
questões.
— E o que o senhor vai querer por isso? — perguntou a mulher. — Se nos
ajudar a encontrar água, tudo o que temos será seu.
— Tudo o que eu quero — disse Palden — são vinte e cinco metros de corda
e doze iaques. Com isso proporcionarei a vocês toda a água que possam necessitar.
A mulher chamou o resto da família e, juntos, pegaram os iaques e a corda.
Palden tomou a corda, amarrou-a ao toco de árvore, e depois a prendeu aos doze
iaques. Conduzindo os iaques, fez com que eles puxassem e puxassem, até que,
finalmente, o toco foi arrancado do chão. Então, pediu à mulher que chamasse todos
os vizinhos mais próximos e que lhes dissesse que trouxessem pás para cavar.
Todos se juntaram e se revezaram para cavar o buraco deixado pelo toco. Em
pouco tempo, a água apareceu. Água de fonte, água de manancial, clara e fresca, que
encheu o buraco e jorrou abundante pelo solo.
Todos gritavam, riam, saltavam de contentamento, abraçando-se uns aos
outros, cheios de felicidade. De repente, uma voz gritou dentre a multidão: "Silêncio!"
Fez-se silêncio entre todos, pois o ancião que havia lançado a ordem era
sábio e muito reverenciado por seu povo.
— Durante sessenta e cinco anos — disse, dirigindo-se a Palden —, tratei de
ajudar a essa gente.
Vi crescerem seus filhos e os filhos de seus filhos.
Vi morrer muita gente. Entretanto, nem eu nem nenhum outro foi capaz de
fazer o que você fez.
Você é alguém muito especial — continuou. Deve ser, então, o chefe do
nosso povo, pois trouxe muita alegria a seus corações e, mesmo assim, não está
pedindo nada para si mesmo.
Palden respondeu:
— Darei o melhor de mim para conduzir o povo do bosque e fazer a todos
felizes. Agradeço-lhes por me pedirem isso. Na verdade, eu sou apenas um pobre
homem.
Assim que disse isto, a multidão levantou Palden e o levou aos ombros por
todo o bosque, proclamando-o seu novo chefe.
Passaram alguns anos. Palden vivia feliz entre o seu povo. Sucedeu, então,
que um velho amigo seu, inteirado da sua sorte, decidiu fazer-lhe uma visita, no
bosque, para investigar como Palden havia chegado a ser tão famoso e querido.
Palden deu boas-vindas ao amigo, recebendo-o de braços abertos.
— O que o trouxe aqui, Kunjo? — perguntou.
— Desejo saber — respondeu Kunjo — o que fez você para ter tanta sorte.
— Oh! foi tudo muito simples — disse Palden.
E contou ao amigo tudo sobre a história da árvore-sombrinha e as reuniões
dos animais.
Kunjo escutou atentamente o relato de Palden e, considerando o quanto
gostaria de ser, também, chefe de um povo, decidiu encontrar a árvore-som-brinha e
escutar os animais em seu colóquio. "Isso vai me fazer muito rico e famoso — pensou
Kunjo; — terei todo o ouro e a prata que desejar".
E assim, nessa mesma tarde, despedindo-se de Palden, dirigiu-se à clareira
do centro do bosque e subiu aos galhos da árvore-sombrinha para esperar a chegada
dos animais.
Pouco tempo depois, dentro da noite iluminada apenas pelos tênues raios de
lua que se filtravam entre os galhos das árvores, chegaram os animais.
Bem no momento em que iam começar a reunião, ouviu-se um estalido nos
galhos da árvore-sombrinha. O leão das neves olhou para cima justo no instante em
que Kunjo caía aos pés de um urso enorme.
— Pois vejam só! — disse o urso. Com que então, temos alguém para
escutar a nossa reunião!
E, estreitando o homem em seus poderosos braços, espremeu-o tanto e tanto,
que o último alento escapou do corpo de Kunjo e este morreu.
As aves e todos os (outros) animais banquetearam-se, naquela noite. E,
quando o sol saiu, tudo o que restava do pobre Kunjo eram uns poucos ossos, que as
aves carniceiras, com seus bicos, se encarregaram de deixar limpinhos.
Notas
1. Em inglês, conhece-se com o nome de "Umbrella Tree" ("árvore
guarda-chuva" ou "árvore-sombrinha") uma árvore americana do gênero das
magnólias (Magnolia tiipetala), bastante alta e de folhas muito grandes, que oferecem
um magnífico abrigo contra a chuva. Mas esta classificação se estende, igualmente, a
outras árvores de características parecidas. Assim, pois, e dado que em nosso conto
não se podia tratar desta árvore, pois o refúgio que oferece ao seu protagonista não é
tanto da chuva, mas do sol, preferimos traduzi-la como "Árvore-sombrinha".
2. Não existem leões no Tibete, e desde o ponto de vista zoológico, esta
designação de "leão das neves" poderia ser aplicada, talvez, ao írbis, conhecido como
"pantera das neves", que é própria desta região da Ásia Central. De qualquer maneira,
no Tibete o leão ocupa um lugar destacado como animal simbólico, de acordo, quanto
aos demais, com a significação especial que tem o leão no budismo. E a presença do
leão como animal simbólico na tradição popular tibetana era muito ampla; em algumas
festas, como a do Ano Novo, celebrava-se a "Dança do Leão". Pois bem, a figura
realmente importante nessa tradição era a da "Leoa branca das neves", ou "dos
geleiros", que era considerada a personificação destes últimos. E a água que escorria
deles, reputada como medicinal, era conhecida como o "leite da leoa branca dos
geleiros".
OS AMANTES
Era uma vez o jovem filho de uma família pobre. Tratava de ganhar a vida
arrancando o que podia do terreno ao redor da casa e guardando o pequeno rebanho
de iaques que sua família possuía.
Pelo fato de viver no lado sul, onde a grama crescia pobre e rala,
freqüentemente o rapaz tinha de percorrer um longo caminho pelo rio, até o lado norte,
onde a grama era verde e viçosa, e onde havia montanhas e vales nos quais o seu
rebanho podia se apascentar. A viagem levava muitos quilômetros, e o moço tinha que
alcançar um baixio do rio, a fim de poder cruzá-lo sem perigo.
Foi durante uma dessas freqüentes viagens para o lado norte do rio, que ele
encontrou uma formosa jovem. Também ela guardava o rebanho da família, cujo
número de iaques era muito superior ao dele. Assim, o moço logo soube que ela não
era pobre. Logo, começaram a se falar. Costumavam descansar ao sol, enquanto
seus animais vagavam pelo vale. Falavam de suas vidas, de suas famílias, de seus
sonhos e de suas esperanças para o futuro. Ele se inteirou de que ela tinha três
irmãos e de que se revezava com eles para guardar o rebanho. Toda vez que ele
cruzava o rio, olhava se ela estava ali; algumas vezes, sim, outras, um dos irmãos
estava em seu lugar.
O jovem casal se enamorou. A moça sabia que a mãe iria ter um grande
desgosto quando soubesse dos seus sentimentos, pois desejava que ela se casasse
com o filho de uma família vizinha, e tudo estava quase acertado.
Assim, os dois seguiram vendo-se em segredo. Freqüentemente, o jovem
cantava para ela: eram canções do Tibete, canções de amor, canções sobre o
povoado onde ele vivia. E um dia, o moço tirou um dos longos brincos de turquesa que
usava e, delicadamente, o entrelaçou nos cabelos dela, de forma a que ficasse
escondido. Com isto, os dois se tornavam noivos. Entretanto, quando o rapaz assim
agiu, ela havia experimentado uma grande tristeza, pois sabia que sua mãe jamais iria
consentir na união dos dois.
Um dia, a mãe da menina, que já suspeitava de algo pelo desejo desta de sair
sempre com o rebanho, insistiu para que ela ficasse em casa para tomar banho e
lavar-se o cabelo. Quando a mocinha desatou o cabelo, o brinco de turquesa caiu no
chão e a mãe reparou nele. Pôs-se uma fúria e obrigou a menina a revelar-lhe quem
lhe havia dado o brinco.
No dia seguinte, a mãe disse ao filho mais velho:
— Apanhe esta flecha, e, quando encontrar aquele homem terrível, mate-o.
O filho mais velho pegou a flecha, mas, quando encontrou o rapaz, não pôde
matá-lo. Em vez disso, gritou-lhe:
— Fuja! Eu matarei um corvo e levarei à minha mãe a flecha manchada de
sangue.
E assim o fez. Quando a mãe viu a flecha, disse ao filho que a levasse ao
lama do povoado. O lama devolveu a flecha com o recado de que na ponta da mesma
havia sangue de corvo, e não sangue humano. A mãe se aborreceu muito. Disse,
então, ao segundo filho:
— Apanhe esta flecha e mate-o!
O segundo filho apanhou a flecha, mas, da mesma maneira, quando
encontrou o rapaz, não teve coragem de matá-lo. Em vez disso, gritou-lhe:
— Fuja! Eu matarei um esquilo e levarei à minha mãe a flecha manchada de
sangue.
E assim o fez. Quando a mãe viu a flecha, ordenou ao segundo filho que a
levasse de novo ao lama do povoado. O recado desta vez foi de que o sangue da
ponta da flecha tampouco era sangue humano.
A mãe não conseguia mais conter-se. Seu ódio em relação ao moço era tão
intenso, que não ia descansar enquanto não o visse morto. Procurou o filho mais novo
e lhe disse:
— Se você matar aquele homem com esta flecha, eu o recompensarei com o
ouro que seu pai me deixou. Mas, se você não o fizer, vou tomar a sua vida no lugar
da dele.
O filho mais novo pegou a flecha e, quando encontrou o moço, sentiu-se
muito aflito. Não desejava matá-lo, mas sabia que a sua própria vida estava
dependendo disso. "Se eu levar a flecha com sangue humano — pensou —, tudo
sairá bem: minha mãe pensará que matei o rapaz. Vou disparar a flecha contra a
perna dele apenas para feri-lo". Mas, o que ele não sabia era que a mãe havia
colocado veneno na ponta de flecha antes de entregá-la a ele.
E o filho mais novo correu, tirou a flecha da perna do rapaz e a levou à mãe.
Desta vez, o recado que se recebeu do lama foi de que o sangue da flecha era
humano. A mãe não coube em si de contente.
— Por fim, disse, livrei-me da ameaça.
O rapaz ferido estava sofrendo muito: a perna piorava dia a dia e o veneno
penetrava cada vez mais no seu corpo. Já não podia andar com o seu rebanho, mas
descia à margem do rio e falava aos gritos com a moça, em meio ao ruído das águas
desordenadas.
— Como está a sua perna, hoje? — perguntava-lhe ela.
E ele respondia:
— A dor do meu coração é muito maior do que a estou sentindo em minha
perna.
A mocinha se afligia e a saúde do rapaz piorava. Um dia, ao perguntar-lhe
como estava, ele respondeu:
— Amor meu, logo não estaremos mais juntos nesta vida, pois creio que esta
noite eu vou morrer. Se amanhã, quando você descer à margem do rio, houver um
arco-íris, vai saber, então, que eu morri.
No dia seguinte, ela desceu correndo para a margem, mas, já muito antes de
chegar, viu o arco-íris no céu. Soube, então, que ele estava morto. Sentou-se à
margem do rio e chorou até partir-lhe o coração. De repente, escutou, docemente, a
voz do moço, que não saía de nenhuma parte, mas que a contornava. Cantava assim:
"O rio tem crescido muito e muito, e nada detém a impetuosa canção das
suas águas. Urna vez que nós nos prometemos mutuamente, inimigo algum pode
impedir a nossa união."
A mocinha voltou a casa, onde a mãe a esperava. Lançou-se a seus pés,
chorando. Suplicou que a deixasse ir ao funeral do rapaz, prometendo-lhe que,
quando tudo houvesse terminado, se casaria com o homem que a mãe escolhesse
para ela. A mãe, então, consentiu, e ambas, e mais uma criada, foram ao funeral.
Quando chegaram, o moço jazia numa pira funerária, mas, por mais que a
família o tentasse, não havia conseguido que seu corpo ardesse.
A moça desvestiu, então, a sua túnica, e a jogou sobre o corpo do rapaz.
Imediatamente, se levantou uma chama. A seguir, ela lançou os seus sapatos sobre o
corpo, e a chama subiu mais alto ainda. Depois, voltando-se para a criada, pegou o
azeite de mostarda que tinham trazido com elas e o derramou sobre o seu próprio
corpo. E assim fazendo, entrou na pira funerária que ardia intensamente. E a mãe
pôde contemplar, com horror, como a filha se estendia sobre o corpo em chamas de
seu amante.
Quando as chamas se apagaram, os ossos do casal se haviam fundido entre
si. A mãe da moça e a do rapaz discutiram sobre como separar os restos mortais, para
que os que pertencessem a cada um deles pudessem ser enterrados no lado
respectivo do rio. A mãe da menina perguntou:
— O que era que dava mais medo a seu filho, neste mundo?
E a mãe do rapaz respondeu:
— As serpentes.
— E à minha filha, as rãs, disse a primeira.
Assim, colocaram uma serpente e uma rã sobre os restos mortais dos jovens,
que se separaram, pois os ossos respectivos se deslocaram segundo o medo dos
distintos animais: os do rapaz, para o lado sul, e os da mocinha, para o lado norte.
Logo, em ambos os pontos onde foram enterrados os restos mortais,
cresceram duas árvores, que se tornaram muito grandes. Seus galhos se estenderam
por cima do rio e se entrelaçaram. A mãe da moça mandou que os cortassem. Mas,
pouco tempo depois, nasceram, no lugar das árvores, dois arbustos, e, em cada um
deles, pousava um pássaro. Os pássaros cantavam um para o outro através do rio, e
voavam um em direção ao outro, descendo para brincar nas frescas águas.
A mãe da moça fez matar os dois pássaros e arrancar os dois arbustos pela
raiz. Quando os espíritos dos dois pássaros subiam em direção ao céu, o macho disse
à fêmea:
— Parece-me que não vamos estar juntos nunca.
— Mas é claro que estaremos — respondeu o pássaro fêmea. — Você vai
para as regiões do sal, e eu irei para as regiões do chá.
E assim o fizeram. Deste modo, agora, cada vez que alguém faz chá tibetano
com sal e manteiga, os dois amantes se reúnem.1
Nota
1. O chá tibetano é preparado fervendo-se as folhas do chá, que vão em
pães; passa-se a infusão a uma vasilha e se acrescenta sal e manteiga, batendo-se a
mistura. É consumido, habitualmente, junto com tsampa (rtsan-pa), farinha de cevada
tostada, que é amassada com o chá formando como que umas bolas.
A RÃ
Os raios do sol nascente acendiam os gelados picos das montanhas que
contornavam as onduladas colinas, e estas iam dar num vale todo feito de uma
quantidade imensa de campos das cores mais variadas.
Esta cena se refletia nos enormes olhos negros de uma grande rã, que
permanecia sentada, imobilizada sempre, a não ser por algum pestanejar, de vez em
quando. Seu corpo tinha mais de um palmo de comprimento, e a sua pele sarapintada
de cor ver-de-oliva lhe dava uma camuflagem perfeita por entre as pedras empilhadas
na base de um alto poste de bandeiras de preces. A rã observava atentamente os
movimentos de uma anciã que acendia, com cuidado, um monte de ramos de
zimbro.1
Situada bem diante da porta de sua casinha nas periferias de um povoado, a
anciã fazia orações junto ao fogo de incenso. Seus fatigados lábios se moviam no
rosto curtido e profundamente enrugado. Seu avental indicava que era uma mulher
casada, e estava tão coberto de pó, que suas riscas de diferentes cores já haviam
desbotado e estavam quase desfeitas, como dando a explicação dos seus muitos
anos de viuvez.
Enquanto a anciã contava as invocações com o seu rosário de madeira já
gasto, a rã se aproximou silenciosamente, aos saltos, até onde ela se encontrava. No
começo, a anciã não a viu, mas depois, tendo a sensação de que estava sendo
observada, virou-se e deu com a mirada imperturbável de uma grande rã. Tratava-se,
pensou a anciã, de um exemplar realmente magnífico, com a sua pele lisinha esticada
sobre os membros comprimidos, e com os seus enormes olhos negros quase ocultos
pelas salientes pálpebras. A rã soltou um canto forte, e, depois, devagar, mas muito
claramente, falou:
— Senhora, eu a tenho estado observando.
A anciã ficou atônita. Nunca ouvira dizer que uma rã falasse. E a ficou
olhando assustada.
— Eu me perguntava — prosseguiu a rã — se a senhora consentiria, de bom
grado, em ser minha mãe.
Entre incrédula e nervosa a anciã começou a rir, mas respondeu:
— Como poderia um animal ser filho meu?
A rã inchou, então, o seu saco bucal, coaxou forte muitas vezes, e depois
voltou a dizer:
— Eu estou falando sério. Iria ficar muito agradecida à senhora, se aceitasse
ser minha mãe. E, dizendo isto, deu um salto e veio postar-se bem junto aos pés da
anciã.
A velhinha, agora, estava certa de que se tratava de uma brincadeira. Mesmo
assim, não quis ferir os sentimentos da rã. Respondeu-lhe que, embora fosse uma rã
muito formosa, ela não poderia, de forma alguma, consentir em ser sua mãe.
— Eu sou um ser humano — disse —, você deve buscar também uma rã para
que ela, sim, seja sua mãe.
A rã pestanejou lentamente e continuou com o olhar fixo na anciã — olhos
feitos bolas de mármore negro. A viúva se sentiu perturbada: seus dedos começaram
a desfiar as contas do rosário e seus lábios se moviam numa invocação que pedia
proteção. Sem dúvida, era realmente muito estranho que uma rã fizesse uma proposta
como aquela. Começou a crer, então, que talvez se tratasse de um espírito maligno. A
rã nem se movia. Acomodada aos pés da viúva, e coaxando de vez em quando, não
tirava, nem por um segundo, os olhos do rosto da anciã.
— Vá embora! — disse a viúva. Aqui não é o lugar de uma rã. Estou dizendo
a verdade, é preciso que você se vá!
A viúva notou, então, quão expressivos estavam os olhos da rã, quando esta,
tristemente, voltou a dizer:
— Por favor, senhora, eu lhe peço, seja minha mãe.
A viúva começou a sentir-se invadida por uma grande raiva. Gritou, então, à
rã, que se fosse, que a deixasse em paz; e não a olhava sequer nos olhos, enquanto
falava. E quando, finalmente, se virou de novo para olhá-la, somente pôde perceber a
visão rápida do dorso da rã, enquanto esta se afastava, a grandes saltos, em direção
ao monte de pedras da base do mastro da bandeira de preces, primeiro, e, depois,
para desaparecer ao longe.
Na tarde seguinte, a anciã estava sentada no terraço de sua casa, ocupada
em classificar seus documentos para o cargo que tinha no mercado do povoado. Fez
uma pausa para beber um pouco de chá numa tigela revestida interiormente de prata,
e, quando estava aproximando dos lábios a vasilha de madeira, teve a sensação de
que não estava só. Dois grandes olhos a observavam com descarada intimidade. A
viúva continuou bebendo o seu chá e ia pensando em como poderia safar-se da rã.
Esta estava no beirai do telhado, pendurada pelas longas patas traseiras, e cocava,
indolentemente, a pálpebra esquerda com uma das patas dianteiras.
A viúva fez de conta que não havia notado a presença da rã, mas justo no
momento em que terminava o seu chá, a rã repetiu o seu pedido:
— Senhora, senhora, por favor, seja minha mãe!
— “Demônios! — disse a anciã para si mesma. — Você nunca me deixará em
paz?" E, dirigindo-se à rã, fritou:
— Não! Já lhe disse! Por que está brincando comigo?
— Senhora, disse a grande rã com tom carinhoso —, eu não estou brincando.
Eu quero mesmo que a senhora seja minha mãe.
A viúva balançou a cabeça e ia se dirigindo para os inclinados degraus que
baixavam do terraço, quando, antes que pudesse descer, a rã continuou:
— Poderíamos levar uma vida muito feliz juntas, se a senhora fosse minha
mãe.
Suplicante, a viúva disse a rã:
— Não quero, de modo algum, ter uma rã por filho; por favor, deixe-me em
paz e vá perturbar em outro lugar.
A rã olhou a anciã com tristeza nos olhos. Para surpresa sua, a viúva
descobriu que essa mirada lhe fazia sentir-se culpada. Virando as costas, desceu os
inclinados degraus de madeira, deixando a rã sentada no terraço.
Durante todo o dia seguinte, a anciã esteve tentando tirar a rã da cabeça,
mas a visão dos seus olhos profundos não saía do seu pensamento. "Deve ser uma rã
mágica que está tratando de enfeitiçar-me", pensou.
Ao entardecer, quando a anciã voltava do rio trazendo o seu balde de couro
cheio de água, a rã saltou ao seu lado. E, desta vez, para sua própria surpresa, a
viúva se alegrou ao vê-la.
— Senhora — disse a rã, enquanto seguiam pelo caminho solitário —, será
minha mãe?
A viúva não respondeu imediatamente, mas se perguntou, como o havia feito
muitas vezes, durante o dia, o que poderia fazer, e o que estaria realmente
acontecendo, para que a rã quisesse tão persistentemente que ela fosse sua mãe.
"Por mais que a mandasse embora pensou —, acaba sempre voltando". E o rosto tão
curtido da viúva sorriu, e desenharam-se profundas rugas na sua pele que mais se
assemelhava a um pergaminho. "Como a minha atitude mudou!" dizia-se, e lhe
pareceu, pela expressão dos olhos da rã, que esta, estava sabendo dos seus
sentimentos. Será que a teria realmente enfeitiçado? Não obstante, não sentia temor;
tinha apenas uma sensação de afeto.
E se eu me converter realmente em sua mãe, que vai você fazer como filho2
de uma pobre viúva?
Muitas coisas, senhora; farei muitas coisas pela senhora. Será, então, minha
mãe?
Um pouco preocupada ainda com a situação, a viúva respondeu:
— Muito bem, serei sua mãe.
Ao ouvir isto, a rã reagiu saltando e pulando alegremente à frente da viúva,
até chegarem à casinha desta.
Como anoitecesse, a viúva acendeu as lamparinas de azeite de mostarda
com uma pedra de faísca e perguntou à rã:
— Onde vai querer dormir, meu filho?
— Dormirei muito à vontade na lareira, mãe.
Ao amanhecer, a anciã despertou e olhou para a rã: esta se espreguiçava na
cinza ainda um tanto quente do forninho de argila, e deu a impressão à anciã de estar
muito satisfeita. Isto não deixou de surpreendê-la, pois acreditava que uma rocha
úmida fosse um leito muito mais apropriado a uma rã.
— Bom dia, mãe, a senhora dormiu bem?
— Mais ou menos — respondeu a viúva, enquanto lavava o rosto na água fria
de seu balde de couro. Depois, com o velho fole, avivou o fogo de excrementos de
iaque3 no braseiro de latão, e em cima dele pôs a grande chaleira de cobre para
esquentar. Com uma concha, serviu cevada tostada em duas xícaras grandes
colocadas sobre a mesinha baixa de madeira. Depois, juntou à cevada tostada um
pouco de chá espesso e manteigoso. Enquanto punha a xícara no chão diante da rã, a
viúva pensava em como esta iria fazer para comer, e se preparava para perguntar-lhe
isso, quando viu que a rã já estava de cócoras e amassava a cevada e o chá com
grande destreza.
— Mãe, disse a rã —, necessitamos de queijo.
E de onde eu vou tirar o queijo, meu filho, se não tenho dinheiro para
comprá-lo?
— Não se preocupe, mãe — respondeu a rã (e a viúva teve a impressão de
que a rã sorria) —, eu conseguirei um pouco.
— E como você vai trazê-la? Você é muito pequena.
— Eu me arranjarei.
Falava com tanta confiança em si mesma, que a viúva não pôde evitar o riso.
E, como a rã já estivesse ansiosa por partir, a anciã deu-lhe a sua bênção e disse:
— Pois bem, vá. Que Chenrezik o proteja e que você possa conseguir o
queijo que quer. Depois, a observou desde a soleira da porta, enquanto a rã, com
grandes saltos, se encaminhava para o mercado.
Oculta por um grande arbusto, a rã deu uma olhada no animado mercado.
Logo ficou coberta pelo pó levantado pelas patas dos iaques, das mulas e dos cavalos
dos comerciantes, que carregavam as suas bestas de carga e se dispunham a partir
da estalagem do lugar.
O povo se apinhava em torno das bancas. A rã abandonou a proteção do
arbusto e começou a perambular por ali, até encontrar exatamente o que buscava.
Sem vacilar, saltou diretamente sobre o lombo de uma mula carregada com fardos de
queijo. A mula escoiceou ao sentir a rã sobre o lombo, mas se tranqüilizou a uma
ordem firme desta.
Os aldeãos não podiam crer no que seus olhos estavam vendo, e logo se
ajuntou uma multidão. Mas ninguém tentou fazer nada para tirar a rã do lombo da
mula, e tampouco para deter a mula no seu trote pelo povoado com a rã, a qual,
aparentemente, tinha o total domínio da situação, mantendo-se equilibrada no lombo
da mula. Todos concordavam quanto ao fato de que uma mula montada por uma rã
era realmente um acontecimento demasiado estranho para que alguém quisesse
interferir. Mas, o que os fazia não entrarem de acordo era se aquilo significava um
bom augúrio ou não, e a maioria estava convencida de que se tratava de algum
demônio maligno.
Quando a viúva escutou a mula no lado de fora, precipitou-se para a porta e
viu que a rã, com efeito, havia trazido para casa uma copiosa provisão de queijo.
Inclusive depois de descarregar e armazenar as sacas, e ainda quando já estavam
comendo o queijo, a viúva não podia acreditar:
— Mas, não pode ser que você, sozinho, tenha feito isso! Não acredito!
A rã disse sorrindo:
— E, por acaso, isto é mais surpreendente do que o fato de que eu seja seu
filho?
A viúva, séria, respondeu:
— Você é, de fato, meu filho, e, sendo meu filho, tenho o direito de saber
quem você é.
A rã se limitou a coaxar e a rir baixinho.
— Você não é um ser humano — disse a viúva —; entretanto, não pode ser
uma rã, você é alguma coisa especial. Mas a rã não respondeu; apenas sorriu
melancolicamente. No dia seguinte, depois de terminado o desjejum, a rã comunicou
que havia tido outra idéia. A anciã disse, rindo:
— De que se trata desta vez?
— Mãe, respondeu a rã, o que eu necessito agora é de uma esposa.
Por um momento, a viúva se entristeceu muito, pois não podia imaginar que
alguma fêmea fosse gostar da vida que seu "filho" estava levando; e ela conhecia
muito bem a vida para saber que a rã não poderia negar à sua esposa o tipo de vida
que esta, sem dúvida alguma, quereria levar.
— Está bem, meu filho — disse a viúva sorrindo — faça como quiser, mas
tome cuidado ao escolher a sua esposa. Despedindo-se da mãe, a rã iniciou, então, a
sua aventura: atravessou de um salto a entrada da casa e saiu à luz do sol.
Tendo passado dois dias, a viúva começou a ficar preocupada e se
perguntava se havia feito bem em deixar a rã ir em busca de esposa. Pôs-se a pensar
em todas as coisas que lhe podiam ocorrer, a ela, uma pequena rã, sozinha no mundo,
presa fácil de tantos animais selvagens; podia, inclusive, já estar morta. A viúva
esperou. Passaram-se muitos dias, mas a rã não deu sinal de vida. A anciã se
ocupava de seus trabalhos com tristeza, e foi aí, então, que comprovou quão
profundos já eram seus sentimentos por seu recém-obtido "filho".
A rã, por sua vez, não tinha intenção alguma de se casar com outra rã; por
isso, visitou todas as casas das imediações nas quais sabia haver alguma moça
casadoura. E, depois de julgar cuidadosamente todas as candidatas possíveis, não
teve boa impressão de nenhuma delas. Na manhã do quarto dia, espreitou por uma
janela de papel-arroz o interior de uma bela casa, propriedade de um comerciante. A
rã tinha ouvido falar da formosa filha deste, e, no final dessa manhã, depois de ter
observado a jovem, soube que tinha encontrado aquela a quem tomaria para esposa.
Agora apenas restava fazer os preparativos, e a rã se sentia muito feliz.
Foi em busca do pai da moça e, quando o encontrou, a rã subiu, de um salto,
a um dos assentos tapizados que havia no quarto em que o comerciante estava
trocando a roupa. O habitual aspecto preocupado deste se intensificou ao ver a rã.
"Como teria chegado aqui?" perguntou-se, olhando a rã e calçando as botas
de feltro que lhe chegavam aos joelhos. Para seu espanto, a rã respondeu à pergunta:
Vim saltando e, às vezes, andando.
— Quem é você? — perguntou o comerciante, segurando o punho da espada.
E o que você é?
— Sou apenas uma rã. Vim vê-lo e falar-lhe.
A voz melodiosa da rã tinha um tom tão doce, que o medo e a agressividade
do comerciante desapareceram. Mesmo assim, ele continuava cauteloso e confuso ao
perguntar:
— Quem é você? Deve ser um rei das rãs. E, sem esperar resposta, vestiu
depressa a sua chuba cinza, deixando solta uma das mangas.
Então, a rã falou assim:
— Vim — disse com uma voz cheia de firmeza — pedir-lhe a mão de sua filha
em casamento.
O comerciante pegou com raiva seu cinturão trançado e o amarrou à cintura,
arregaçando a chuba, para que lhe ficasse até os joelhos, segundo é costume no
Tibete oriental.
— Não sei o que você é — disse —, se demônio ou espírito; mas, seja o que
for, você não pode se casar com minha filha.
Desesperado, o comerciante se perguntava como poderia fazer chegar uma
mensagem a seu irmão, que era lama, e que saberia como vencer aquele demônio-rã.
A rã viu que o comerciante não ia ser fácil de ser convencido. Por outro lado,
tinha que admitir que a maioria dos pais ia ser igualmente difícil de se convencer
quanto à permissão de casar a filha com uma rã.
Se o senhor não permitir que sua filha se case comigo — disse a rã —, eu
tossirei.
O comerciante pensou que isso não iria constituir ameaça alguma, e lhe
disse:
— Pois que seja. Tussa!
Pareceu ao comerciante que a rã sorria... Logo, esta aspirou ar com um som
agudo, e tossiu, ou fez o que o comerciante pensou que fosse tossir. Mas, do fundo da
garganta da rã, saiu um rugido estrondoso, que derrubou o comerciante no chão e
abalou a casa toda. Cambaleando, o comerciante tirou da espada, com a intenção de
matar a rã. O animal cravou-lhe o olhar com seus olhos negros e voltou a tossir, no
exato momento em que o comerciante ia decepá-lo com um golpe. O rugido encheu o
espaço, o quarto se rachou, os móveis se partiram e a baixela caiu ao chão. A espada
do comerciante se quebrou e a casa ficou devastada.
De súbito, a porta se abriu e entrou a esposa do comerciante, aterrorizada. E
o comerciante respondeu à pergunta de sua esposa antes mesmo que esta a
formulasse:
— Ela tossiu, disse, indicando a rã. E, dirigindo-se a esta: Por favor,
permitiremos que se case com a nossa filha, mas, não tussa mais, eu lhe peço.
A esposa do comerciante começou a chorar ao ouvir as palavras do marido, e,
logo em seguida, ambos viram, horrorizados, que a rã estava aspirando novamente o
ar. Mas, desta vez, o que se ouviu não foi um forte rugido, mas sim um suave suspiro,
como que uma brisa refrescante; e, por um momento, marido e mulher se sentiram
consolados e acariciados.
— Olhe! disse a esposa do comerciante, enquanto tocava a parede que se
havia rachado com a tremenda tosse da rã. Olhe! repetiu, passando a mão pela lisa
superfície.
A fenda se havia fechado como se nunca houvesse existido! O comerciante e
sua esposa notaram, então, que, no momento em que a rã soltara o seu suspiro, tudo
aquilo que havia sido quebrado ou estragado tinha voltado à sua condição anterior.
A esposa do comerciante deixou-se cair pesadamente num dos assentos
baixos tapizados do pequeno quarto. Vestia uma chuba de brocado, com um grande
prendedor de prata com adornos de coral para o tarro pendurado na cintura.
Nervosamente, mexia e remexia o relicário de turquesa em forma de estrela, que
levava à volta do pescoço,4 e discutia com o marido, tratando de convencê-lo, com
súplicas. "Teria ele ficado louco? Como poderia a filha casar-se com uma rã?"
A rã saltou sobre um banco que havia em frente do casal, e falou ao
comerciante e à sua mulher, com uma voz melodiosa e musical, uma voz clara e
precisa, como o ruído de um pedaço de gelo ao se quebrar. Era, com efeito, uma voz
estranha, e eles se sentiram impelidos a escutar.
— Os seres humanos, os animais, as aves, e inclusive as rãs — disse —
participam todos de uma só força espiritual, de modo que vocês não devem se
preocupar.
"E possível — pensou a esposa do comerciante — que os seres divinos e os
santos possam ver que todos nós somos um só". Mas, a seus olhos, ali e naquele
momento, isso distava muito de ser daquela forma, e não podia aceitar a idéia de que,
no fundo, todos os seres fossem uma mesma coisa.5
— Vemos que você é uma rã muito especial — disse o comerciante, mas
você nos pede a nossa única filha. Se você a levar, é possível que nunca mais a
vejamos. Estava de pé, diante da rã, e novamente considerava o curioso encanto que
a envolvia, inclusive quando estava quieta, como naquele momento em que estava
escutando.
— Os senhores não perderão sua filha — disse a rã. —E ela terá tudo o que
desejar.
A mulher do comerciante olhou a rã com olhos suplicantes, e esta pôde ver as
lágrimas que brilhavam nos seus olhos, a ponto de transbordarem e deslizarem pelas
faces.
— Qualquer outra coisa! — exclamou a mulher. — Nós lhe daremos nossa
casa, nossas posses, tudo o que desejar, mas, por favor, nossa preciosa filha única,
não! Mas a rã disse:
— Se não me derem sua filha, chorarei. Parecia tão triste, que a mãe da
moça sentiu que uma onda de compaixão lhe invadia o peito. Quando a rã terminou de
falar, de seus olhos saltaram duas lágrimas, e os pais, horrorizados, viram como as
lágrimas se convertiam numa torrente impetuosa, a qual, num instante, invadiu toda a
casa e as terras circundantes, como se cada lágrima fosse um oceano. O casal saltou
para uma caixa que passava flutuando e, quando esta chegou à escada que levava ao
terraço, saltaram e se agarraram a este, onde já os esperava o resto da casa. A rã os
seguiu, com as lágrimas fluindo ainda dos olhos.
— Por favor, pare de chorar, gritou o comerciante, enquanto seus criados o
olhavam assombrados.
A esposa do comerciante gemia ao ver toda a cevada, a farinha — e suas
melhores roupas — saindo flutuando da casa.
— Por favor, pare de chorar — repetiu o homem.
— Não chore mais e poderá casar com a nossa filha.
A rã coaxou e parou de chorar. Assim que a água se evaporou de sua pele,
toda a água da casa e dos campos circundantes secou. Roupas, farinha e grãos
estavam secos, como se nunca houvessem sido atingidos pelas águas torrenciais. O
comerciante e sua esposa observaram como seus criados recolhiam os móveis e
utensílios, e os restituíam a casa.
A rã notou que numa árvore se haviam refugiado um raposo, uma galinha e
um gato: o medo da água havia criado a harmonia entre estes animais antagônicos
por natureza.
Depois, olhou com expectativa para o comerciante, mas a cara deste
somente refletia inquietação. Sua mulher tratava de fazê-lo ver que não podiam deixar
que a filha se casasse com uma rã. "Nos envergonharíamos — dizia — Como
poderíamos dizer que ela estava casada com uma rã?"
— Não é necessário que se preocupem — disse a rã. — Não vêem que todos
os seres, humanos ou animais, são um só?
Mas não, eles não poderiam pensar dessa maneira! E a rã descobria, em
seus olhos, o que eles não se atreviam a declarar; sabia que pensavam que a rã era
um dos seres mais inferiores, e que nem sequer uma rã tão especial quanto ela teria o
mínimo direito à mão de sua filha.
O comerciante ordenou a um dos seus criados que trouxesse um grande baú
com cobertura metálica.
— Olhe! — disse à rã. E tirou uma grande chave e abriu o baú, pondo à
mostra uma quantidade enorme de peças de prata. Leve tudo isto para você.
A rã olhou o tesouro com desdém.
— Não é o seu tesouro o que eu quero — disse — mas a sua filha. Depois,
coaxou e riu.
Os pais da moça se assustaram, mas disseram:
— Você não pode conseguir a nossa filha e, ainda assim, ri?
A rã riu a gargalhadas e, ao fazê-lo, elevaram-se chamas por toda a casa, as
quais começaram a consumir o prédio. Nenhum dos esforços que os criados faziam
para apagar o fogo tinha o mínimo efeito sobre este.
— Por favor, você está acabando com a nossa casa! — gritaram em uníssono
o comerciante, sua mulher e os criados. A rã riu mais forte ainda, e as chamas
aumentaram em intensidade.
— Você terá a nossa filha — gritaram o comerciante e a mulher. — Você é
realmente uma rã muito especial. Nossa filha será sua mulher.
A rã coaxou e ao deixar de rir, as chamas se extinguiram. Tudo aquilo que
havia estado ardendo com tanta fúria ficou ileso.
Enquanto o comerciante e sua mulher foram comunicar à filha o seu destino,
a rã cantava com o vento que acariciava as bandeiras de preces que ondeavam num
ângulo do telhado. Quando a rã voltou a ver a filha do comerciante, considerou que
era, de fato, uma beldade, com a sua tez branca e as feições delicadas emolduradas
pelo longo cabelo solto, da cor do azeviche. Seus olhos mostravam uma inteligência
viva e sua voz era doce e delicada. Ela sorriu educadamente para a rã, mas sem
nenhuma afeição, e esta compreendeu que o coração da moça estava transbordante
de infelicidade.
— Devemos nos preparar para partir para a minha casa — disse a rã. — Não
fica longe. Creio que você vai gostar.
A moça voltou-se rapidamente para esconder as lágrimas, e a rã continuou:
— Lembre-se do que eu vou lhe dizer e trate de compreender que eu posso
fazê-la feliz, muito feliz. Lembre-se de que somos um só.
Mas a moça não conseguiu dizer nada. Olhou a rã uns instantes e se
perguntou, desesperada, como poderia levar uma vida de casada com uma rã. Por
bonita que fosse, não seria nunca senão uma rã, uma rã!
A rã foi refrescar-se no arroio, nadando feliz entre as plantas aquáticas e
saltando de pedra em pedra. A jovem esposa se preparava para a viagem. A moça
chorava enquanto a mãe a ajudava a pôr as roupas e os objetos em cofres de viagem
de madeira revestidos de latão.
— Escute-me, Shoden-la — disse o pai, puxando-a para um lado e
secando-lhe as lágrimas com o lenço. — Você tem que ser muito corajosa. E lhe
apertou os ombros para incutir-lhe ânimo.
— Sim, Pa-la. Tentarei. Mas... uma rã! Que será de mim? Seus olhos se
encheram de lágrimas de desespero.
— Escute-me, há uma possibilidade. A voz do pai era muito baixa e rápida,
como se temesse que a rã, com seus extraordinários poderes, pudesse ouvi-lo.
— No caminho até a casa dele, você terá uma oportunidade. Choden a
olhava perplexa. Você deve matá-lo. Então ficará livre. A menina balançou a cabeça
energicamente. Deve fazê-lo, minha filha.
Trata-se de uma espécie de demônio, estou convencido. Você deve se livrar
dele.
— Mas como poderia eu matá-lo? Ele logo se daria conta de meus planos —
disse a moça ao pai.
Já viu os poderes que tem.
De um armário decorado com intricados adornos de flores pintadas, o pai
tirou três bolsas de couro, dizendo:
— Você não vai precisar de nenhuma arma para matar a rã...
— Mas, como, Pa-la? perguntou a moça em aflição. O pai deu-lhe as três
bolsas de pele.
— Guarde-as cuidadosamente na chuba — disse. — Uma contém pedaços
de turquesa, outra, pedaços de prata, e a terceira, pedaços de ouro. Durante a viagem,
golpeie a rã na cabeça com um deles. Não serve usar uma pedra comum, não teria
efeito sobre um demônio. Mas uma destas matérias matará a rã e dará liberdade a
você.
— Vou tentar, Pa-la, disse a moça tristemente.
Algumas horas mais tarde, a rã e sua noiva começaram a viagem. A
equipagem de Choden tinha sido amarrada com correias sobre duas bestas de carga,
e a rã conduzia o cavalo da moça.
Esta estava assombrada com a velocidade da rã e com a distância que
venciam. Não parecia cansar-se nunca, embora — considerava a moça — o fato de
andar a saltos devesse ser uma forma muito fatigante de deslocar-se. Durante algum
tempo viajaram em silêncio. Choden ia se tornando cada vez mais consciente do
silêncio, que se acentuava pelo ruído dos cascos do cavalo e das mulas sobre o solo
pedregoso, e por sua respiração, áspera pelo esforço.
Estes eram os únicos ruídos que se percebiam na vasta planície pedregosa
em que haviam penetrado. Muito ao longe, se levantavam picos nevados e,
dominando tudo, abarcando tudo, estava o céu azul-turquesa. Era, pensava a moça, o
silêncio do céu. Sabia que os peregrinos que viajavam aos lugares santos haviam sido
conscientes desse silêncio — um silêncio que podia ser palpado e que era, segundo
alguns, o dos deuses.
Depois de ter viajado muitas horas, Choden compreendeu que tinha de
sobrepujar o medo e matar logo a rã, se queria ver-se livre dela. Já estavam muito
longe da casa de seus pais. E quando o sol se afundava detrás das montanhas e as
sombras se estendiam, pegou, de sua chuba, o maior pedaço de turquesa que estava
na bolsa de pele. Estava muito assustada, mas, com toda a sua força, o atirou na rã,
que se encontrava poucos passos adiante. O pedaço de turquesa foi dar-lhe, na rã,
fortemente na cabeça, mas, para espanto da moça, rebotou, sem nada causar. A rã
pareceu não sentir nada, mas chegou a ver a turquesa e deu um pulo para recolhê-la.
Deu-a, então, à moça, e esta pensou: "Este demônio vai me castigar". Mas, somente
viu uma expressão ri-sonha nos seus olhos.
— Isto deve ter caído de você — disse a rã. — Guarde-o bem.
Choden pegou a turquesa que a rã lhe estendeu, agradeceu-lhe em voz baixa,
e continuaram o caminho. A moça se sentia confusa e assustada.
Outra jornada de viagem passou, antes que Choden pudesse adquirir
suficiente coragem para tentar de novo matar a rã. Desta vez, escolheu um pedaço de
prata. Tinha ouvido dizer que muitos demônios e espíritos haviam sido afugentados
com êxito graças a armas rituais feitas de prata. Mas, desta vez, Choden decidiu não
jogar. Conduzindo o cavalo, aproximou-o com cuidado da rã e, então, com toda a
força, deu-lhe com o pedaço de prata na cabeça. Soou como se houvesse golpeado
algo de ferro, e, com o impacto, a prata saltou-lhe da mão e uma dor intensa
percorreu-lhe o braço. Mas a rã, para espanto da moça, não pareceu sentir o mais
leve golpe. Não houve nem um segundo de vacilação em seus rápidos e regulares
saltos.
A jovem esposa estava agora realmente muito assustada, e, para seu maior
espanto, a rã se deteve de repente, deu uma olhada para trás e viu o pedaço de prata.
Uma vez mais, recolheu com cuidado o tesouro e o devolveu à sua esposa.
— Você pode precisar disso algum dia.
A rã falava sossegadamente, mas a moça não podia olhá-la nos olhos, e se
enrubesceu de perturbação e sentimento de culpa. Chegou à conclusão de que não
havia realmente nada a fazer. Devia é dar-se por muito feliz, uma vez que a rã só lhe
havia respondido com benevolência. "De fato, pensou — é uma pena muito grande
que seja uma rã, pois realmente parece muito boa. Mas, de qualquer maneira, não
passa de uma rã, ainda que, aparentemente, tudo leve a crer que seja uma rã
mágica".
Enquanto viajavam, a moça se perguntava como iria ser a sua vida com esse
seu marido. Onde viveriam? Naturalmente, essa casa da qual a rã falava não podia
estar no mundo dos homens, pois neste não há lugar para uma rã, ainda que seja uma
rã mágica. Tratou de trazer à memória o tipo de casa que tinham as rãs, e somente
pôde pensar em águas sombrias e insalubres. Mas, de algum modo, tinha a
impressão de que, por não ser uma rã comum, era provável que vivesse em algum
dos céus, ou — pensou também — em algum dos infernos. Porém, a moça não
pensava em ir a nenhum dos dois, pois achava o mundo, ainda, um lugar belo e
interessante, e estava certa de ter, ela mesma, muito pouco em comum com os
deuses.
Até que, desesperada, Choden decidiu que devia experimentar o ouro. Não
era este o metal dos deuses, símbolo de tudo o que é sagrado? Assim, pegou da
bolsa o maior pedaço de ouro. Esperou até que o cavalo estivesse bastante perto da
rã, e, então, fechando os olhos, descarregou com as duas mãos o pedaço de ouro
sobre a cabeça dela. "Sem dúvida, desta vez — pensou ela — devo tê-la matado".
Mas o ouro soou como se houvesse golpeado uma nuvem. A rã, imperturbável, seguia
saltando. Choden se pôs a chorar em silêncio. Só então, se deu conta de que seu
cavalo havia parado. Enxugou as lágrimas e olhou a rã.
— Tome, encontrei o que você perdeu — disse esta, estendendo-lhe o
pedaço de ouro. — Você tem que parar de ir perdendo o seu tesouro.
A voz da rã era delicada e a moça sentiu quão digna de amor ela lhe soava.
Sorriu, como resposta, e começou a sentir-se à vontade em sua companhia. Na
verdade, pensando-o bem, suas lágrimas haviam sido lágrimas de desabafo, mais do
que outra coisa, e estava muito contente de não ter causado nenhum dano à rã.
Porque, ferir uma rã com uma natureza tão bondosa não podia ser nada bom. Talvez,
disse a si mesma, a sua vida iria ser muito melhor do que ela havia imaginado.
— Mãe, mãe! Abra a porta, por favor.
A viúva não podia acreditar que a rã houvesse voltado, e chorava de alegria
enquanto abria a porta para dar boas-vindas ao "filho". Ficou atônita ao ver que,
efetivamente, a rã havia tido êxito em sua busca de uma esposa — coisa que não
podia caber na sua mente de anciã. A esposa era formosa e seus olhos — pensou —
estavam inflamados de amor: devia se tratar, sem dúvida, de uma fada.
A casa da rã não era, em absoluto, o que sua esposa havia esperado. Mas,
embora fosse muito mais humilde que a de seus pais, era, contudo, um lugar quente e
acolhedor; e Choden comprovou, para surpresa sua, que era muito feliz. Aquela noite,
os três festejaram e falaram. A rã contou à viúva as suas aventuras e esta lhes
informou, que fazia dias, estavam chegando ao povoado pessoas de todas as partes
da província, inclusive desde os vales mais remotos, para tomarem parte nas corridas
de cavalos. Quase todo o mundo se achava acampado junto ao rio, em tendas de
campanha; e, no dia seguinte, iriam começar as corridas.
Cedo, na manhã seguinte, a rã, sua esposa e sua "mãe" se dispuseram a
assistir ao primeiro dia das corridas. Entretanto, a rã disse que tinha algumas coisas
para fazer, e lhes pediu que fossem na frente, que logo se juntaria a elas. Choden e a
viúva se surpreenderam, mas foram aos festejos, deixando a rã sozinha em casa.
Por um pequeno furo que fez na janela de papel-arroz, a rã as observou até
que se perdessem de vista. Durante alguns minutos, a rã ficou pensativa no centro do
quarto. Depois, inchou seu saco bucal e, num instante, se transformou num elegante
jovem. O único sinal de sua forma anterior era uma pele de rã que estava, enrugada, a
seus pés. Pegou um pouco de sal de uma caixinha e jogou com cuidado sobre a pele;
depois, a pendurou num gancho, num lugar escuro.
Na cavalariça, havia dois cavalos que pertenciam à viúva. Pegou o melhor
deles, com a esperança de que a anciã, com sua vista fraca, não o reconhecesse nas
corridas. Na festa, a pista de corridas estava cercada de tendas enfeitadas, e a maior
parte do dia era passada em cantos, bailes, comi lanças e jogando-se o mah-jong.
Mas, tudo se interrompia quando a corrida estava para começar. No transcurso de
uma destas, os competidores tinham que superar provas de habilidade, como a de
disparar uma flecha num alvo móvel, recolher uma echarpe do chão com os dentes,
ou abrir-se passagem com uma espada diante de um boneco que fazia às vezes de
adversário.
Os dias do festival transcorriam muito agradavelmente e, aos poucos, um
homem foi-se destacando claramente como campeão. Mas esse homem era um
mistério para todos. Ninguém sabia quem era ou de onde procedia, e nunca se o
podia encontrar depois de uma corrida. Era tal a sua destreza e tão denso o mistério
em torno dele, que se murmurava que era um dos deuses. E a esposa da rã tinha a
impressão, cada vez mais forte, de que conhecia o elegante jovem. Em diversos
momentos, durante o festival, a rã havia estado com elas, e algumas vezes a moça lhe
tinha comunicado essa impressão; mas a rã havia se limitado a rir.
No quinto dia do festival, Choden concebeu um plano secreto. O jovem
elegante estava competindo outra vez na corrida, e, antes que esta terminasse, a
moça foi correndo, tão depressa quanto pôde, até a casa da viúva. Como de costume,
a rã havia dito que com o passar do tempo, o amor do jovem pela esposa aumentou
cada vez mais, e ele acabou ficando feliz por permanecer no mundo dos homens.
Sabia que muitos contariam a sua história e aprenderiam, assim, que todas as coisas
se distinguem apenas por sua "pele", por sua "forma", mas que todas as coisas são,
na realidade, de uma única natureza.
Notas
1. A fumaça aromática do zimbro constitui o incenso que se eleva de
incontáveis lugares no Tibete. Esta é outra das práticas que remontam a um passado
ancestral. O zimbro (tibetano, sug-pa) era uma árvore sagrada e queimar os seus
ramos era um sacrifício {bsang).
2. A concordância nos obrigaria aqui a falar de "filha", mas, ainda à custa de
forçar um pouco a expressão, somos obrigados a falar de "filho" pelos motivos que se
tornarão evidentes na continuação do relato.
3. O combustível habitual nas lareiras tibetanas eram os excrementos de
iaque.
4. Era costume muito corrente entre os tibetanos levarem um ou vários
relicários. Seu conteúdo podia ser: diminutas imagens sagradas, minúsculos
moinhozinhos de oração, "conjuros" (fórmulas escritas em papel) etc.
5. Idéia central do budismo tântrico. Todos os seres participam da mesma
natureza essencial de Buda (Tathâgata), e a condição de Buda está contida em germe
(garbha) em cada um deles, germe que faz possível a iluminação. Assim, todos os
seres são uma mesma coisa enquanto Tathâgata-garbha, ou seja, enquanto
portadores todos eles de um mesmo germe de Budeidade.
6. A "rã" de nosso relato se trata, provavelmente, de uma nâga (tibetano, klu).
As nagas são divindades aquáticas que podem adotar a forma humana. Vivem num
reino subterrâneo com palácios resplandecente de pedras preciosas, e são
consideradas guardiãs de tesouros. Geralmente, são representa das como serpentes.
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