Considerações Gerais Acerca Da Idéia de Individuação

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    5O Caminho da Individuao e a Sua Dimenso Religiosa

    We may think that there is a safe road.But that would be the road of death.Then nothing happens any longer-at any rate, not the right things.Anyone who takes the safe road is as good as death.

    Jung

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    5.1Consideraes gerais acerca da idia de individuao

    A princpio no parece simples dedicar um captulo especfico ao assunto da

    individuao ou formao da personalidade,1j que este fenmeno no representa um

    evento isolado, e sim, constitui na maior parte das vezes o pano de fundo quando

    analisamos os diversos conceitos pertencentes psicologia analtica. O prprio Jung

    alerta para esse fato em sua autobiografia:

    A minha vida foi permeada e unificada por uma idia e um objetivo: penetrar nosegredo da personalidade. Tudo pode ser explicado a partir deste ponto central e todaminha obra se refere a este tema singular.2

    Jung apud Jacobi, op. cit.: 80

    Por minha parte, finalizo o presente trabalho com uma reflexo a respeito da

    individuao, pois acredito que este assunto inclui de forma mais ampla tudo o que

    foi discutido at o presente momento e requer simultaneamente uma compreenso

    prvia de algumas noes bsicas do pensamento junguiano.

    Samuels et. al. (1986) aponta que Jung se reporta a Schopenhauer como

    tambm ao alquimista Gerard Dorn (sculo XVI) quando adota o termo individuao.

    Ambos falam doprincipium individuationis e Jung aplica este conceito psicologia.

    O termo processo de individuao aparece pela primeira vez em sua obra Tipos

    Psicolgicos, composta a partir de 1913 e publicada primeiramente em 1921. Neste

    livro ele descreve a individuao como um processo de formao e particularizao

    do ser individual... o desenvolvimento do indivduo psicolgico como ser distinto doconjunto, da psicologia coletiva ([1921] 1991a: 853). Tratar-se-ia de um processo de

    diferenciao que visa o desenvolvimento da personalidade individual, inteira e

    1Jung identifica freqentemente a individuao com o processo de desenvolvimento da personalidade,fato este que se torna evidente principalmente em seu ensaio Da formao da personalidade([1934]1994), no qual o autor utiliza as expresses individuao e personalidade como se fossemintercambiveis.2My life has been permeated and held together by one idea and one goal: namely, to penetrate into thesecret of the personality. Everything can be explained from this one theme.

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    indivisvel. A prpria etimologia do termo em questo sublinha a idia de totalidade,

    o aspecto unificador deste processo: Individuao provm do latim individuum,que

    indica aquilo que no pode ser dividido, isto , uma unidade indivisvel, um todo

    (Duden, 2001).

    Jung ([1952] 1992: par. 460) considera a individuao um processo natural,

    uma expresso do desenvolvimento biolgico, atravs do qual todos seres vivos

    tornam-se aquilo que desde princpio foram destinados a ser. No que tange ao ser

    humano este processo se expressaria tanto num nvel somtico quanto psquico.

    Trata-se, portanto, de uma lei universal da vida3 (Jacobi, op. cit.: 60), um padro

    arquetpico, um germe que se desenvolve ao decorrer da vida adulta e que requer opreenchimento das mais diversas condies. A idia de universalidade e naturalidade,

    porm, no est inteiramente clara no pensamento de Jung. De fato, se em alguns

    momentos a individuao aparece como um fenmeno que se configura

    espontaneamente na vida de qualquer ser humano, em outros momentos o autor

    questiona tal fato.

    Em seu ensaio Da formao da personalidade ([1934] 1994), Jung aponta

    para a complexidade do processo em questo. Tratar-se-ia do melhor desdobramento

    possvel da totalidade a partir de um ser individual. Uma tarefa rdua que envolve

    aspectos biolgicos, sociais e psquicos. A individuao consistiria em um ato de

    coragem, uma afirmao absoluta diante daquilo que se encontra de individual e

    peculiar dentro de cada um e ao mesmo tempo uma adaptao eficaz ao que dado

    universalmente. A plena realizao da totalidade de nosso ser constituiria sempre um

    ideal inalcanvel, pois ideais no so nada alm de guias e jamais um fim 4(Jung,

    op. cit.: par. 291). As grandes questes da vida, diz Jung ([1931] 1995c: par. 771),

    nunca se resolvem por inteiro. A finalidade e o sentido de um problema no estariamem sua soluo e sim no constante trabalho e dedicao frente ao mesmo. Partindo

    deste tipo de reflexo, Jung ([1934] 1994: par. 294) afirma: O ditado muitos so

    predestinados e poucos so escolhidos vale aqui como em nenhum lugar.5 Neste

    sentido, o desenvolvimento da personalidade, a individuao, seria simultaneamente

    3An universal law of life.4...denn Ideale sind nichts als Wegweiser und niemals Ziele5Das Wort: Viele sind berufen, und wenige sind auserwhlt, gilt hier wie nirgends

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    carisma e maldio [Charisma und Fluch] (id. ibid.). O homem teria que se isolar

    conscientemente do rebanho [Herde] (id. ibid.), marcado pela indiferenciao e

    inconscincia, oque muitas vezes acarreta desamparo e solido. Nenhuma adequao,

    por mais eficaz que seja, ao meio circundante, famlia, s normas sociais, impedir

    tal fato. O autor (op. cit.: par. 298) afirma que a individuao representa uma faanha

    pouco popular, uma atitude que a massa receberia com antipatia. Seria

    compreensvel que desde os tempos mais remotos, s alguns poucos tenham se

    lanado nessa estranha aventura6 (id. ibid.). Tratar-se-ia de heris legendrios da

    humanidade cujos nomes jamais sero esquecidos. Este tipo de abordagem

    possivelmente leva a crer que Jung formula, pelo menos neste momento, um conceitoum tanto elitista a respeito das possibilidades de crescimento e desenvolvimento

    pessoal do ser humano.

    O ensaio A Individuao (Jung, [1928] 1997) talvez possibilite uma

    compreenso mais ampla do posicionamento do autor diante da problemtica da

    individuao. Neste escrito Jung sublinha a diferena entre individuao e

    individualismo. O individualismo consistiria em uma nfase intencional em uma

    suposta singularidade ou particularidade que se ope a tudo que concerne

    coletividade. A individuao, por sua vez, visaria preencher melhor as determinaes

    coletivas do ser humano. A singularidade do indivduo no deve ser compreendida

    como algo estranho e hostil coletividade, e sim como um processo gradativo de

    diferenciao de funes e capacidades que a princpio so universais. A

    considerao da particularidade de cada um possibilitaria inclusive um melhor

    desempenho social do que quando esta negligenciada ou reprimida. Jung (op. cit.:

    60) descreve o indivduo como uma unidade viva composta por diversos fatores

    universais. Neste sentido, este ...seria totalmente coletivo e no em oposio coletividade... a individuao... visa uma viva cooperao de todos fatores7 (id.

    ibid.).

    Nos momentos em que contrape individuao e coletividade, Jung no nega

    a importncia central desta ltima, mas critica a submisso e adaptao pouco

    6...dass von jeher nur die Wenigen auf diese sonderbare Aventure verfallen sind.7 ...vllig kollektiv und daher in keinerlei Gegensatz zur Kollektivitt... Die Individuation... erstrebteben gerade eine lebendige Zusammenwirkung aller Faktoren.

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    consciente quilo que dado universalmente. Individuao requer conscincia, a

    escolha livre e prpria de um caminho. O desenvolvimento da personalidade

    geralmente impulsionado por um determinado motivo, um acontecimento decisivo,

    por necessidade, mas dever envolver simultaneamente uma deciso moral. A

    individuao jamais ser impelida somente a partir de uma resoluo consciente, pois

    neste caso tratar-se-ia de uma simples acrobacia da vontade [Willensakrobatik]

    (Jung [1934] 1994: par. 296). Um processo movido exclusivamente por mecanismos

    inconscientes conduziria, porm, estagnao. Nesse sentido uma deciso moral que

    opta por um determinado caminho se torna imprescindvel.

    Pieri (op. cit.: 328) aponta que Jung diferencia entre uma moralidade geral pblica ou tradicional e outra privada, que se refere lei moral do indivduo. O

    homem que adere sem muita reflexo a uma moral preestabelecida e coletiva se ope

    a uma forma de existncia mais repleta, que exige a capacidade de individuar-se: Por

    trs do homem no se encontra nem a opinio pblica nem o cdigo moral, e sim

    aquela personalidade da qual ele ainda inconsciente8(Jung [1942] 1992: par. 390).

    Neste sentido, no seria o superego9freudiano e sim um princpio de individuao

    inato que compele o ser humano a fazer determinadas avaliaes e opes morais

    quando se trata de sua prpria vida. Samuels et. al. (op. cit.: 209) aponta que Jung

    critica a noo de superego, equiparando-a moralidade coletiva, apoiada pela

    tradio. Jung expe reflexes acerca de uma moralidade inata, a partir da qual a

    pessoa ter que elaborar o seu prprio sistema de valores no contexto da moral

    coletiva:

    A moral... constitui uma funo da alma humana, to antiga quanto a prpria

    humanidade. A moral no nos imposta de fora, ns a temos definitivamente dentrode ns mesmos, a priori; no a lei, mas o ser moral, sem o que seria impossvel

    conviver na sociedade humana.

    Jung. [1943] 1993: par. 30

    8 Hinter dem Menschen stehen weder die ffentliche Meinung noch der allgemeine Sittenkodex,sondern jene Persnlichkeit, die ihm noch unbewusst ist.9A traduo brasileira das obras de Jung, da editora Vozes, traduz o termo Ichpor eu, mas opta aomesmo tempo por manter o termo psicanalticosuperego, proveniente da traduo inglesa.

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    A individuao envolve um confronto do eu e com as exigncias sobre-

    ordenadas do si-mesmo. Tratar-se-ia de uma renncia de uma determinada posio do

    eu, o que exige bem mais do que uma adaptao ocasional e, a princpio, no traz

    nenhuma satisfao pessoal imediata. Segundo Samuels et. al. (op. cit.: 192) o

    indivduo sacrificaria conscientemente uma determinada postura, em favor de outra,

    que confere mais significado e sentido a sua vida. Desta forma Jung ([1921] 1995b:

    par. 856) associa a moralidade coletiva, o conformismo moral e o moralismo que da

    sucede imoralidade de cada um de ns. Uma vida orientada exclusivamente

    segundo normas coletivas acabaria com a prpria moralidade: Quanto maior a

    regulamentao coletiva do homem, maior a sua imoralidade individual (Jung,[1921] 1991a: par. 856).

    Aps uma reflexo a respeito da universalidade ou naturalidade do

    desenvolvimento da personalidade e da problemtica em torno da dicotomia

    individuao-individualismo, considero importante analisar de que forma Jung atribui

    uma dimenso religiosa ao processo em questo. Para tal, basear-me-ei

    principalmente no ensaioDa formao da personalidade,no qual Jung ([1934] 1994:

    par. 299) afirma que, em ltima instncia, nem a necessidade nem a deciso moral

    seriam determinantes para a individuao. Estes dois fatores nos conduziriam grande

    parte das vezes a uma adaptao s normas coletivas, convenes de natureza moral,

    social, filosfica ou religiosa que, neste caso, representam uma real tbua de

    salvao. O que nos impeliria de forma to inexorvel a optarmos por um caminho

    que se afasta do bvio, da conveno e que, a princpio, no promete qualquer

    satisfao pessoal seria o que Jung chama de designao [Bestimmung], ...um fator

    irracional, traado pelo destino, que impele a se emancipar da massa gregria e de

    seus caminhos desgastados pelo uso ([1934] 1998: par 300). O indivduo que aceitaesta designao seria fiel a sua prpria lei (Jung, [1934] 1994: par. 295). Jung utiliza

    a palavra fidelidade no sentido da expresso grega pistis. Este termo seria

    freqentemente traduzido, erroneamente, por f. Uma traduo mais adequada seria

    confiana, lealdade repleta de confiana (Jung, [1934] 1998: par. 296), pois

    ...fidelidade prpria lei significa confiar nessa lei, perseverar com lealdade e

    esperar com confiana... (id. ibid.).Tratar-se-ia, desta forma, da mesma atitude que

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    uma pessoa religiosa deveria assumir perante Deus. O ser humano compreenderia a

    designao como se fosse uma lei divina, da qual no possvel esquivar-se. Jung

    ([1934] 1994: par. 303) associa essa experincia com o momento no qual entramos

    em contato com os contedos inconscientes de nossa psique. O psiquismo constituiria

    em grande parte um fato inconsciente, duro e pesado como granito ...10 (Jung, op.

    cit.: par. 302), viso que aponta para o carter objetivo e incondicional do

    inconsciente. Quando este se apresenta conscincia na forma de uma experincia

    interior, lhe diz com voz audvel: assim ser e assim deve ser ([1934] 1998: par.

    303). Jung compara esta voz a um daimon, que nos insufla caminhos novos e

    estranhos como aquelas figuras que aparecem freqentemente em mitos, em lendase na literatura para aconselhar o homem. Chevalier & Gheerbrant (1998: 329)

    apresentam uma definio que se ajustaa este sentido:

    Um gnio estava ligado a todo homem e desempenhava o papel de conselheirosecreto, agindo por intuies sbitas mais do que por raciocnio. Eram como que asua inspirao interior.

    Jung alerta, contudo, que o significado da voz interior jamais unvoco.

    Acham-se misturados nela ...o mais baixo e o mais alto, o melhor e o pior, o maisverdadeiro e o mais fictcio, o que produz um abismo de confuso, iluso e

    desespero (Jung, op. cit.: par. 319). Nesse sentido, o carter da voz seria

    luciferino,11 pois confronta o homem com decises morais significativas,

    imprescindveis para o processo de conscientizao e individuao:

    A formao da personalidade sempre um risco, e trgico que justamente odemnio da voz interior signifique simultaneamente o perigo mximo e o auxlio

    indispensvel Jung, op. cit.: 321

    A voz interior nos conduz por caminhos tortuosos, nos aproxima de nossa

    sombra, em um nvel pessoal e coletivo. Os aspectos obscuros, representados por esta

    no podem mais ser evitados, o mal se apresenta de maneira tentadora e convincente.

    10...hart und schwer wie der Granit.11 A raiz etimolgica de Lucifer seria lux - luz e ferre - trazer, portar (Duden, 2001: 498). Nestesentido,Lucifer seria aquele que porta a luz.

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    Precisamos sucumbir pelo menos parcialmente aos poderes desta voz, caso

    contrrio no haver transformao, nem renovao:

    Se o eu sucumbir apenas em parte e puder salvar-se de ser totalmente devorado,fazendo uso da auto-afirmao, ento poder assimilar a voz; e deste modo seesclarece que o mal era apenas uma aparncia de mal, sendo na realidade o portadorda salvao e da iluminao.

    Jung, op. cit.: 319

    A linguagem utilizada pelo autor certamente sublinha a dimenso religiosa

    que ele atribui ao processo da individuao. Por outro lado, o tradutor da verso

    brasileira do ensaioDa formao da Personalidade,Frei Valdemar do Amaral (1998:

    301*) aponta que a opo pela palavra Bestimmung [designao] indica

    possivelmente que Jung quis usar uma palavra mais neutra, que no evocasse

    automaticamente a idia de religio, em um sentido mais convencional. Jung ([1934]

    1994: par. 301) afirma que o sentido original de Bestimmung se refere a uma voz

    que se dirige pessoa12. Stimme em alemo significa voz,Bestimmung,por sua vez,

    designao feita pela voz. Amaral(op. cit.: 301*) indica que o autor emprega a

    palavra alem em um sentido especfico pois, de acordo com os dicionrios, este

    termo pode ser traduzido de forma mais ampla por fixao, determinao,

    designao, destinao, destino, deciso, resoluo, estabelecimento, limitao,

    definio etc. No entanto, se Jung quisesse exprimir abertamente que se trata de um

    chamamento feito por Deus, ele teria usado a expresso Berufung [chamamento/

    vocao]. O dicionrio etimolgico de lngua alemDuden(2001: 90)nos indica que:

    O sentido original do verbo bestimmmen era nomear pela voz, determinar pelavoz...A partir disso desenvolveu-se o significado ordenar. O uso no sentido de

    delimitar segundo determinadas caractersticas, definir provm da linguagemfilosfica do sculo 18...13

    12...von einer Stimme angesprochen sein.13 Die Grundbedeutung des Verbs bestimmen war mit der Stimme benennen, durch die Stimmefestsetzen...Daraus entwickelte sich schon frh die Bedeutung anordnen. Die Verwendung im Sinnevon nach Merkmalen abgrenzen, definieren stammt aus der philosoph. Fachsprache des 18 Jh.s.

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    O verbo berufen, por sua vez, ...significa a princpio chamar para junto de si,

    chamar para algo14 (Duden, op. cit: 82). Lutero utiliza este termo na bblia, no

    sentido da palavra latina vocatio:trata-se do chamado de Deus em relao ao homem.

    Na lngua alem encontramos tambm a derivao Beruf que atualmente significa

    principalmente profisso. Originalmente, porm, Lutero a empregava em relao

    posio e ofcio do homem no mundo, que Mestre Eckhart j reconheceu como

    misso divina15 (Duden, op. cit.: 83). Desta forma, concordo com o tradutor do

    ensaio em questo: se Jung quisesse definir claramente a natureza da voz interior que

    nos chama para a individuao como divina, quem sabe at em um sentido teolgico,

    ele teria optado pela palavraBerufung.

    14herbei-, zusammenrufen, zu etwas rufen.15 ...fr Stand und Amt des Menschen in der Welt, die schon Meister Eckhart als gttlichen Auftragerkannt hatte.

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    5.2Estgios do processo de individuao

    Conforme vimos, a individuao consiste em um real confronto da

    conscincia com o inconsciente. Analisando os diferentes aspectos que esta dinmica

    envolve, salta aos olhos que este processo demanda uma atitude religiosa: considera-

    se cuidadosamente um poder irracional que transcende a conscincia, o eu submete-se

    a este, acolhendo os riscos e desafios que tal ato envolve. Ocorre assim um confronto

    gradativo com o inconsciente, que se manifesta a partir de uma multiplicidade de

    smbolos. Enquanto em um primeiro momento o eu e o inconsciente formam uma

    totalidade indiferenciada, deparamo-nos agora com a possibilidade de uma unificao

    mais consciente das partes em um todo. Examinamos os contedos inconscientes, que

    freqentemente vivenciamos como numinosos, procuramos compreend-los, os re-

    lemos, no sentido de religere que significa, conforme vimos, considerar

    cuidadosamente, examinar de novo, refletir bem.

    A individuao segue um certo curso, cujo pice seria o surgimento do si-mesmo na estrutura psicolgica e na conscincia (Stein, op. cit.: 153). O si-mesmo

    precisa ser integrado na vida, o que no significa que a conscincia incorporar mais

    que uma pequena parte desta totalidade:

    No existe esperana de tornarmos o si-mesmo ao menos aproximadamenteconsciente... existir sempre uma quantidade indefinida e indefinvel de materialinconsciente que pertence totalidade do si-mesmo.16

    Jung [1928] 1997: 63

    Jacobi (op. cit.: 96) aponta que a parte inconsciente do psiquismo jamais ser

    esvaziada, fato este que se deve principalmente existncia do inconsciente

    coletivo: Tudo que no vivido, solucionado, experenciado, que obscuro e

    16Es besteht auch keine Hoffnung, dass wir je auch nur eine annherende Bewusstheit des Selbsterreichen,...immer wird noch eine unbestimmte und unbestimmbare Menge von Unbewusstenvorhanden sein, welches mit zur Totalitt des Selbst gehrt.

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    misterioso, permanecer e formar a matriz para germes de novas possibilidades17

    (id. ibid.). O caminho da individuao se desenrola durante uma vida inteira e jamais

    completado.

    Vrios autores junguianos, entre eles Jacobi (1967) e Stein (1998), sugerem,

    possivelmente tambm por razes didticas, que o desenvolvimento da personalidade

    segue diverso estgios. Esta dinmica, porm, no se d de forma linear. Segundo

    Jacobi (op. cit.: 34), trata-se de um processo que apresenta alternadamente progresso

    e regresso, fluxo e estagnao, uma espiral onde os mesmo problemas e temas

    ocorrem repetidamente em nveis diferentes.

    Jung por sua vez confere especial ateno a uma diferenciao entre aprimeira e a segunda metade da vida. O autor ([1934] 1994: par. 284) critica

    abordagens tericas que supervalorizam a infncia e relacionam o estado psicolgico

    do homem adulto prioritariamente com esta. Desta forma, a infncia seria

    transformada em um estgio determinante para vida e destino, enquanto o significado

    e as possibilidades criativas da vida adulta esmaeceriam. O autor (id. ibid.) fala em

    um alargamento e uma expanso sem medida do jardim de infncia18, o que se

    chocaria com o ponto de vista que concebe a personalidade uma ...totalidade

    psquica determinada, resistente e dotada de fora, um ideal adulto...19 (Jung, op.

    cit.: par. 286, grifos do autor). A personalidade j existe como germe na criana, mas

    s se desenvolver aos poucos por meio da vida e no decurso da vida ([1934] 1998:

    par. 288). No caso do homem adulto, a infncia deveria ser tratada de forma menos

    literal. Deveramos sim estar atentos ... criana eterna, em constante formao...

    (id. ibid., grifos do autor) que existe dentro de cada um e representa aquela parte da

    personalidade que deseja se desenvolver em direo totalidade.

    Em seus escritos, Jung valoriza a segunda fase da vida, a tarde da vida[Lebensnachmittag] ([1931] 1995c: par. 787), que freqentemente negligenciada:

    O ser humano no chegaria aos setenta ou oitenta anos, se esta longevidade notivesse um significado para sua espcie. Por isto, a tarde da vida humana deve ter

    17Everything that is unlived, unsolved, unexperienced, obscure and mysterious will remain behind andform the matrix for germs of new possibilities.18...Erweiterung und Ausbreitung des Kindergartens...19eine bestimmte, widerstandsfhige und kraftbegabte seelische Ganzheit, ...ein erwachsenes Ideal...

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    tambm um significado e uma finalidade prprios, e no pode ser apenas umlastimoso apndice da manh da vida.

    [1931] 1991b: par. 787

    Enquanto o jovem necessita erradicar-se principalmente no mundo exterior

    com todos os seus desafios, o homem que envelhece inicia um processo de

    interiorizao, no sendo mais a sua existncia regida pelos princpios de outrora.

    Jung sugere a imagem do sol poente como metfora do processo de envelhecimento:

    Aps ter esbanjado sua luz sobre o mundo, o sol recolhe os seus raios para iluminar-

    se a si-mesmo20([1931] 1995c: par. 785).

    A primeira parte da vida consiste principalmente no surgimento da

    conscincia. O eu infantil se separa da matriz inconsciente interna. medida que o eu

    entra em contato com o mundo circundante, forma-se uma persona adequada, ou,

    segundo Jacobi (op. cit.: 37), uma fachada relativamente estvel que viabiliza a

    adaptao s demandas cotidianas. A persona consiste na unio entre um ideal do eu,

    aquilo que ele imagina ser, e as expectativas do mundo circundante: Exagerando um

    pouco, poderamos at dizer que a persona o que no se realmente, mas sim aquilo

    que os outros e a prpria pessoa acham que se (Jung, [1940] 1991b: par. 221).

    Existiria, portanto, o perigo de uma identificao com tal mscara, o que ocorre

    quando a persona assume feies pouco flexveis. No caso de uma total ausncia da

    mesma, contudo, instala-se um estado de desproteo e exposio diante do mundo.

    O desenvolvimento do eu e da persona marcado por uma certa

    unilateralidade do psiquismo, que neste estgio ainda necessria. O mbito da

    conscincia mais restrito, e, desta forma, constitui-se a sombra, que representa,

    conforme vimos, aspectos concebidos a princpio como inaceitveis. Tratar-se-ia,

    segundo Jacobi (op. cit.: 38), da soma de todas as qualidades desprezadas enquanto oeu se estrutura. medida que este cresce, a sombra tambm aumenta. Composta por

    contedos psquicos reprimidos e excludos da vida consciente por razes morais,

    sociais e educacionais, ela funcionaria como uma imagem especular [mirror image]

    (Jacobi, id. ibid.) do eu. A tarefa da primeira fase da vida consistiria na cristalizao

    20Die Sonne zieht ihre Strahlen ein, um sich selber zu erleuchten, nachdem sie ihr Licht auf eine Weltverschwendet hat.

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    do eu21, enquanto a segunda exigiria que este restabelecesse o contato com o

    inconsciente, de forma mais profunda e consciente. Tratar-se-ia, segundo Jacobi (op.

    cit.: 65), de uma descida ao reino obscuro do inconsciente22, da qual o eu retorna

    vitalizado em funo do contato com as suas origens. Quando o eu se confronta com

    contedos inconscientes de ordem pessoal e coletiva, a influencia dominante destes

    diminui. O material que pertence, por exemplo, esfera coletiva do inconsciente,

    imagens e idias que se repetem de alguma forma nos diversos seres humanos e que

    remetem condio humana como um todo, precisa se aproximar da conscincia.

    Caso contrrio, o homem permanece psiquicamente indiferenciado, misturado com

    outros homens e no individuado. Toda mistura ou indiferenciao exerce umacoero que impossibilita o ser humano de agir conforme deseja, entrando em

    conflito com as suas aes, e sentindo-se incapaz de assumir qualquer

    responsabilidade sobre as mesmas. Experimenta assim um estado de privao de

    liberdade, dignidade e de qualquer tica mais pessoal.

    Uma das tarefas fundamentais da segunda etapa da individuao seria o

    confronto do eu com os aspectos femininos inconscientes do homem e a

    masculinidade no consciente da mulher. Trata-se dos arqutipos da anima e do

    animus, personificaes do inconsciente de uma individualidade, respectivamente

    masculina ou feminina. Estes dois termos designam a atitude que o sujeito assume em

    relao aos processos psquicos interiores, portanto em relao a si mesmo como

    objeto interno. Anima e animus possuem as caractersticas das quais a persona carece,

    compensando assim o modo de ser estabelecido por esta. Da que Jung tambm os

    relacione com a idia de sombra e alma.23 Na primeira metade da vida, anima e

    animus se manifestam a partir de projees. Os seus representantes seriam

    primeiramente os pais e mais adiante os parceiros amorosos do sexo oposto. Em umsegundo momento, porm, estas projees so recolhidas. As duas figuras

    21Nem todos os autores compartilham deste ponto de vista. Samuels (op. cit.: 111), por ex., afirma quea questo sobre se a integrao do eu deve necessariamente preceder a individuao est em aberto.Um eu mais fortalecido certamente lidar melhor com os desafios da individuao. Por outro lado,teramos o exemplo de grandes artistas como Van Gogh ou Mozart que no apresentavam um eumuito estruturado. A partir do ponto de vista de seu desempenho artstico, o desabrochar edesenvolvimento de seu talento, porm, no podemos negar que estas personalidades estariammergulhadas plenamente em um processo de individuao.22...a descent into the dark realm of the unconscious.

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    intrapsquicas possibilitam agora a relao entre conscincia e inconsciente, a

    diferenciao e a integrao das partes fundamentais da psique.

    Por fim analisarei a dinmica que se estabelece entre o eu e o arqutipo do si-

    mesmo. Por se tratar a princpio do pice do processo da individuao, farei uma

    exposio mais detalhada deste evento. Vale ressaltar que o si-mesmo no surge

    apenas neste ltimo estgio, mas emerge pouco a pouco atravs das numerosas etapas

    da individuao. Conforme mencionamos, no se trata de uma evoluo linear, e sim

    de uma circumambulao (Jacobi, op. cit.: 42) do si-mesmo. Pieri (op. cit.: 84)

    aponta que o termo circumambulao indica o percurso de uma dana ritual que

    assume forma circular e, deste modo, distingue entre um espao sagrado, interno, eoutro profano, externo. s vezes o movimento da dana esboa uma espiral que

    ensaia uma aproximao entre elementos perifricos e um determinado ponto central,

    que transcende as partes singulares. Segundo a psicologia analtica, ambos os

    procedimentos concedem, por um lado, uma determinada autonomia e possibilidade

    de diferenciao aos diversos elementos envolvidos, e, por outro, a conjuno destes

    em um todo complexo: o si-mesmo.

    23Vide a seo do captulo trs que analisa a diferena entre alma e psique.

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    5.3A relao entre o Eu e o Si-mesmo

    Jung ([1921] 1995b: par. 730) define o eu como um complexo de

    representaes [Komplex von Vorstellungen] que constitui o centro da conscincia.

    O eu seria no apenas contedo, mas condio da conscincia, na medida em que um

    elemento psquico somente se torna consciente a partir do momento em que

    estabelece uma relao com este complexo. Pieri (op. cit.: 101) nos indica que Jung

    usa o termo complexo no sentido de uma estrutura psquica mnima dotada ... de

    forte carga afetiva, que liga entre si representaes, pensamentos e lembranas.

    Nesse sentido o complexo do eu corresponderia s representaes conscientes do

    indivduo, pois rene todas as caractersticas da personalidade que o sujeito

    reconhece como suas, principalmente em funo do fato de estas no se chocarem

    com os seus valores pessoais e com os docontexto social em que se insere. Apesar de

    o eu ocupar posio central em relao conscincia, ele no idntico psique em

    sua totalidade, representada pelo arqutipo dosi-mesmo:

    O eu o sujeito apenas de minha conscincia, mas o si-mesmo o sujeito do meutodo, tambm da psique inconsciente. Neste sentido, o si-mesmo seria uma grandeza(ideal) que encerraria dentro dele o eu.

    Jung, [1921] 1991a: par. 796

    Concebe-se um si-mesmo que seria, assim como o inconsciente, o existente a

    priori [das a priori Vorhandene] ([1942] 1995b: par. 391), a partir do qual o eu se

    origina. Jung (id. ibid.) ilustra a idia de predeterminao do eu a partir da seguintefrase: No sou eu que me crio; mas sou eu que aconteo a mim mesmo24(grifos do

    autor). O prprio autor alerta, porm, que esta concepo, quando levada s ltimas

    conseqncias, conduz a um determinismo que relega o homem condio de mera

    criatura que no goza de liberdade e cuja conscincia no teria razo de ser. A partir

    de um ponto de vista psicolgico, no entanto, o homem possuiria, apesar de sua

    24Nicht ich schaffe mich selbst, ich geschehe vielmehr mir selber.

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    predeterminao, um certo grau de liberdade, que pode ser identificado com a

    autonomia da conscincia:

    Deve-se concordar de fato que uma conscincia absolutamente predeterminada e umeu completamente dependente seriam um espetculo intil, pois ento, tudo sepassaria de modo igualmente ou ainda mais inconsciente.

    Jung, [1942] 1979b: par. 391

    O eu constitui uma funo dinmica, um processo em pleno desenvolvimento;

    ele emerge da constante relao e troca entre o inconsciente e o meio externo e, nesse

    sentido, no podemos conceb-lo como uma estrutura imutvel.

    Conforme a viso da psicologia analtica, a relao entre eu e si-mesmoconstitui um processo incessante. Os dois grandes sistemas psquicos necessitam um

    do outro(Samuels et. al., op. cit.: 67). Jacobi (op. cit.: 53) cita Neumann, que

    descreve esta relao a partir de um eixo eu/ si-mesmo. Este eixo no apenas

    responsvel pelo surgimento do eu e da conscincia, mas auxilia toda e qualquer

    mudana psquica. Analisarei, por agora, a partir de que formas o complexo do eu e o

    arqutipo do si-mesmo interagem.

    Devido ao conflito entre conscincia e inconsciente, somos impelidos a um

    processo de conscientizao. Este envolve a assimilao de elementos inconscientes

    de natureza pessoal e coletiva. Dependendo da quantidade e da importncia dos

    contedos assimilados pela conscincia, ocorrer uma crescente aproximao entre eu

    e si-mesmo, o que acarreta riscos significativos. medida que a distncia entre estas

    duas instncias diminui, aumenta a possibilidade de ocorrer o que Jung ([1951]

    1995e: par. 44) denomina de inflao do eu,25ou seja, a relevncia do eu aumenta

    significativamente em funo de este se deparar com o inconsciente sem assumir uma

    postura relativamente crtica. Ele corre o perigo de se identificar com as figuras do

    inconsciente. Jung (op. cit.: par. 46) considera o enraizamento do eu no mundo da

    conscincia de suma importncia. Quando a imagem da totalidade no integrada de

    forma consciente, o eu participa em demasia da natureza arcaica do inconsciente. O

    eu absorvido pelo si-mesmo e a sua adaptao s exigncias da vida consciente

    perturbada.

    25Inflation des Ich.

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    A autonomia e a realidade psquica das figuras do inconsciente como o si-

    mesmo, a sombra, a anima, o animus e outras, porm, no podem ser negadas. Caso

    contrrio ocorrer igualmente uma inflao do eu. Neste caso, contudo, trata-se de

    uma absoro do si-mesmo por parte do eu. O acento sobre a conscincia necessita

    agora ser diludo em benefcio da realidade inconsciente: o eu enraizado e adaptado

    precisa afrouxar os seus laos com o mundo consciente, caso contrrio instala-se uma

    situao de desequilbrio psquico:

    No primeiro caso, ser preciso defender a realidade contra um estado onrico arcaico,eterno e ubquo; no segundo...deve-se, ao invs, dar espao ao sonho, em

    detrimento do mundo da conscincia. Jung, [1951] 1990: par. 47

    De que forma o complexo do eu e o arqutipo do si-mesmo podem estabelecer

    uma relao que no se defina segundo um estado de descompensao, onde ora o

    inconsciente se apodera do eu, ora o eu desvaloriza a realidade deste ltimo?

    Conforme vimos, o processo de conscientizao se configura como pea-chave para

    tal empreendimento. Jung ([1942] 1992) compara este processo a um ato sacrificial.

    Somente quando experimentada desta forma, a conscientizao evita a inflao do eu.

    O autor desenvolve a noo de sacrifcio em seu ensaio O smbolo da transformao

    da missa ([1942] 1992). Segundo a acepo de Jung, a ao sacrificial envolveria

    basicamente a doao de algo que me pertence:26 Tudo o que me pertence traz a

    marca de meu, isto , traz a marca de uma identificao sutil com o meu eu (Jung,

    [1942] 1979b: par. 389).

    Jung ([1942] 1992) faz uso do conceito de participation mystique

    [participao mstica], formulado por Lvy-Bruhl, para caracterizar a indiferenciao

    psquica entre sujeito e objeto. Tratar-se-ia de uma unicidade apriorstica (Jung

    [1921] 1991a: par. 871) entre os dois. Este tipo de identidade irracional constituiria o

    resduo de um estado inconsciente primordial, presente principalmente nas

    sociedades primitivas. O homem civilizado, porm, por vezes tambm se

    26Samuels (op. cit.: p. 192) aponta que normalmente atribuem-se dois significados palavra sacrifcio:abster-se ou renunciar. Segundo um ponto de vista psicolgico, estas duas acepes so relevantes

    para a idia de sacrifcio. Samuels, porm, ressalta que eles no do conta do significado original dapalavra, que santificar, tornar sagrado.

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    encontraria em tal estado, ainda que no com a mesma intensidade. Neste caso a

    identidade ocorre principalmente entre pessoas, e mais raramente entre uma pessoa e

    uma coisa. Na medida em que o sujeito no se submete a um processo de

    conscientizao, ele no se diferencia em maior escala do inconsciente,

    permanecendo assim em um estado de identidade com o objeto. Jung ([1955] 1992:

    par. 817, nota 32) considera o termo mstica apropriado para descrever a qualidade

    desta identidade inconsciente, que freqentemente traz a marca do numinoso. A

    participao mstica descreve um estado onde o objeto obtm influncia absoluta

    sobre o sujeito. Esta influncia geralmente percebida como mgica.

    A identidade irracional presente na participao mstica se deve ao fato de oobjeto constituir simultaneamente um smbolo. Enquanto inconscientes, os nossos

    contedos psquicos aparecem mediante projees, so projetados em tudo que traz a

    marca do meu. Tratar-se-ia no somente de objetos inanimados, como tambm de

    animais ou pessoas. Estes objetos passam a ter mais valor e a desempenhar funes

    que se estendem para alm daquilo que realmente so. Justamente pelo fato de seus

    sentidos no serem unvocos, constituem um smbolo. Da mesma maneira que a

    psique humana engloba contedos inconscientes, todo objeto possui sempre aspectos

    desconhecidos, no sendo jamais compreendido em sua totalidade. Jung ([1942]

    1992: par. 389)afirma que quando o desconhecido no homem e o desconhecido no

    objeto se confundem surge uma identidade psquica, que, s vezes, assume formas

    grotescas. Passamos a defender ansiosamente o que julgamos ser de nossa

    propriedade, no sentido de evitar qualquer tipo de aproximao alheia.

    Voltando questo do sacrifcio, Jung (op. cit.: par. 390) afirma, que devido

    ao fato de no existir conscincia a respeito do aspecto simblico ou polivalente do

    objeto oferecido, este permanece preso ao eu. Nesse sentido, a oferenda noconstituiria um sacrifcio, pois envolve uma pretenso de ordem pessoal:

    Queiramos ou no, trata-se sempre de um do ut des[dou para que me ds]. Odonativo significa, portanto, um propsito pessoal, pois o simples dar, em si, aindano um sacrifcio.27

    id. ibid.

    27Ob man es will oder nicht, es ist stets ein do ut des. Die Gabe bedeutet darum eine persnlicheAbsicht, denn an sich ist das blosse Geben keinegswegs ein Opfer.

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    O sacrifcio exige uma renncia pretenso de se receber algo em troca. O

    que sacrificado precisa ser entregue integralmente, como se fosse aniquilado. Oautor aponta que, em alguns rituais de carter religioso, a oferenda destruda pela

    queima, lanada na gua ou em precipcios, representando a dissoluo de uma

    atitude egosta. Caso contrrio, o oferecimento possuiria, indefectivelmente, um

    carter de ao mgica propiciatria, com o objetivo incofessado e a tcita esperana

    de conquistar a benevolncia de Deus (Jung, [1942] 1979b: par. 390).

    A identidade que existe entre o eu e a oferenda precisa tornar-se consciente.

    Reconhece-se assim em que medida uma real doao sempre envolve um auto-sacrifcio, pois, desta forma nasce a possibilidade de se optar conscientemente por

    doar parte de si-mesmo sem esperar recompensa alguma. O sacrifcio significa uma

    perda, a capacidade de se auto-sacrificar, porm, indica que possumos a ns mesmos.

    A perda total seria simultaneamente um ganho, pois ningum pode dar o que no

    tem (id. ibid.).

    Jung se baseia neste raciocnio quando analisa a possibilidade de uma relativa

    integrao do si-mesmo por parte do eu. O eu abre mo de suas reivindicaes, o que

    a princpio no lhe traz nenhum tipo de satisfao, pois ele se submete a um poder

    que reprime a sua pretenso egosta. Desta forma o si-mesmo integrado, o que

    significa que o estado de participao mstica entre eu e si-mesmo se dissolve. O

    arqutipo da totalidade retirado das projees e passa a ser sentido como um poder

    psquico determinante. medida que certos contedos inconscientes se tornam

    conscientes, nasce uma personalidade mais ampla. O si-mesmo, porm, tambm

    necessita sacrificar as suas reivindicaes em relao ao eu. Ele impele o eu a se

    auto-sacrificar e, desta forma, realiza simultaneamente o ato sacrificial em si prprio.O autor ilustra essa afirmao a partir do exemplo de Abrao, que deve sacrificar por

    uma ordem divina o seu nico filho. Jung suspeita que em tais circunstncias Abrao

    se sente simultaneamente como sacrificador e vtima sacrificada, sofre no prprio

    peito o golpe do cutelo do sacrifcio(Jung, op. cit.: par. 397). Mediante o sacrifcio, o

    eu ganha a si-mesmo e integra o si-mesmo. O arqutipo da totalidade, por sua vez,

    concretiza-se, distingue-se da projeo inconsciente, passa do estado dissoluto do

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    inconsciente para o estado consciente (Jung, op. cit.: par. 389). Nesse sentido

    tornou-se homem, tornou-se o que somos (id. ibid.).

    Jung ([1942] 1992: par. 400) chega a designar a integrao do arqutipo da

    totalidade como uma Menschwerdung des Selbst [processo do si-mesmo tornar-se

    homem]. O autor ([1952] 1992) compara esse evento ao drama da encarnao. Nesse

    sentido, discorda da opinio que Cristo veio ao mundo somente para salv-lo do mal,

    tarefa quepoderia ser realizada pelo prprio Jav. Muito mais relevante que isso seria

    o fato de Deus tornar-se homem. No princpio nos depararamos com o pai a causa

    primeira, o criador, o autor das coisas(Jung [1942] 1979a: par. 199). Tratar-se-ia de

    um estgio em que o homem, a divindade e o mundo formariam um todo nico eacrtico, em estado de absoluta indeterminao. O processo de encarnao por sua

    vez, significaria uma total transformao de Deus, uma objetivao do mesmo, a

    superao de um estado marcado pela inconscincia.

    Conclumos ento que a integrao do si-mesmo envolve a auto-reflexo

    por parte do eu: a concentrao daquilo que se encontra disperso e fora de qualquer

    relao, um confronto consigo mesmo a conscientizao. No se trata, porm, de

    uma tarefa fcil: sentimos receio diante de tal empreendimento; porm, persistimos,

    pois o si-mesmo nos impele ao sacrifcio na medida em que se sacrifica para ns.

    Nesse sentido, o evento da conscientizao representa uma operao consciente e

    voluntria do eu (Jung, [1942] 1979b: par. 400), e, simultaneamente, um

    afloramento espontneo do arqutipo da totalidade, processo em que algo que

    sempre existiu vai surgindo pouco a pouco, tornando-se cada vez mais claro (Jung ,

    op. cit.: 399).

    Jung ([1928] 1997: 104) designa como funo transcendente a mudana ou

    transformao psquica que ocorre em funo do processo de conscientizao. Estafuno representa a unio dos opostos, a conexo entre contedos conscientes e

    inconscientes. O autor ([1916] 1995c) adverte que a expresso funo transcendente

    no indica algo misterioso, sobrenatural ou metafsico, e sim uma funo psicolgica

    comparvel funo matemtica de igual denominao:

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    A funo transcendente representa um vnculo entre dados reais e imaginrios, ouracionais e irracionais, preenchendo assim a lacuna entre a conscincia e oinconsciente.

    Samuels et al., op. cit.: 83

    Ela possibilita o confronto entre tese e anttese em termos iguais, cuja unio

    ocorre sempre a partir de um smbolo ambguo e paradoxal, como, por exemplo, os

    smbolos unificadores do si-mesmo. Estes transcendem o conflito, no participando

    exclusivamente de um ou de outro lado, sendo de alguma forma comum aos dois.

    Devido ao fato de a psique se constituir basicamente a partir de polaridades em

    contradio, ela se encontra em um constante estado de tenso. Jung ([1943] 1993:

    par. 88) considera o problema dos opostos uma etapa a mais no desenvolvimento do

    processo de autoconhecimento, que freqentemente se configura na segunda metade

    da vida. Jacobi (op. cit.: 120) sugere a imagem do Cristo crucificado como expresso

    deste evento: os quatro braos da cruz apontam para direes diferentes, indicando o

    estado de conflito e tormento do homem. O ponto de interseo, o centro da cruz,

    simboliza, contudo, a possibilidade de uma unio de opostos. Jung, por sua vez, alerta

    que toda conjuno ou sntese psquica deve ser entendida como temporria, pois uma

    unificao permanente seria impossvel. Apesar de o fato da funo transcendentefavorecer uma nova atitude da conscincia, isto no significa uma saturao ou

    desautorizao (Pieri, op. cit.: 214) do inconsciente:

    A tendncia do inconsciente e da conscincia so os dois fatores que formam afuno transcendente. chamada transcendente, porque torna possvelorganicamente a passagem de uma atitude para outra, sem perda do inconsciente.

    Jung, [1916] 1991b: 145, grifos do autor

    Geralmente desejamos uma vida que se desenvolva de forma linear, tememos

    ser dilacerados a partir de nossas prprias contradies internas. Totalidade, porm,

    significa:

    ...estar repleto de contradies. Falsificamos o ser humano quando tentamos esboaruma imagem homognea dele. A imagem fiel vida somente quando ambgua eparadoxal.28

    28To be whole means, at the same: to be full of contradictions. We falsify man when we try to sketcha homogeneous picture of him. The picture is true to life, only when it is ambigous and paradoxical.

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