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Rosália Estelita Gregória Diogo CONCEIÇÃO EVARISTO E PAULINA CHIZIANE: escritas de resistência Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa. Linha de Pesquisa: Identidade e alteridade na literatura Orientadora: Profa. Dra. Terezinha Taborda Moreira Belo Horizonte 2013 1

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Rosália Estelita Gregória Diogo

CONCEIÇÃO EVARISTO E PAULINA CHIZIANE:

escritas de resistência

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa.

Linha de Pesquisa: Identidade e alteridade na literatura

Orientadora: Profa. Dra. Terezinha Taborda Moreira

Belo Horizonte 2013

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Rosália Estelita Gregória Diogo

CONCEIÇÃO EVARISTO E PAULINA CHIZIANE:

escritas de resistência

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa.

______________________________________________________________

Profa. Dra. Terezinha Taborda Moreira (Orientadora) – PUCMinas

______________________________________________________________

Profa. Dra. Laura Cavalcante Padilha – UFF

______________________________________________________________

Profa. Dra. Leda Maria Martins - UFMG

______________________________________________________________

Profa. Dra.Constância Lima Duarte – UFMG

Profa. Dra. Maria Nazareth Soares Fonseca – PUCMinas

Belo Horizonte, 02 de maio de 2013

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*À minha mãe e à Yansã, pelas boas vibrações, sempre!

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AGRADECIMENTOS

À CAPES, que favoreceu meus estudos, financiando-os por todo o período.

À CAPES/CNPQ, que me concedeu a bolsa sanduíche para a pesquisa em

Moçambique.

Ao Prof. Lourenço do Rosário, reitor da Universidade A Politécnica, que me recebeu em

Moçambique para a co-orientação da pesquisa.

A todos (as) os (as) professores (as) do curso, que me ensinaram várias formas de ler

as letras, e, em especial, à Profa. Nazareth Soares Fonseca, minha primeira referência

para o conhecimento sobre literaturas africanas e afro-brasileiras.

Aos funcionários da Secretaria, em especial, Berenice, Rosária e Vera. Sempre

atenciosas e prestativas conosco.

À Profa. Terezinha Taborda Moreira, que, ao orientar, o fez com muita sabedoria,

cumplicidade, paciência, incentivo e escuta.

Aos meus irmãos e sobrinhos, pela confiança e carinho.

Às companheiras e aos companheiros de intensa luta e combate ao racismo e ao

sexismo.

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[...] A escrita carece de leitores e de interlocutores. Os lugares de enunciação do escritor e os sujeitos de recepção da escrita, a maior ou menor mobilidade social e econômica de brancos, mestiços e negros, na sociedade em geral e nos meios letrados em particular; o acesso à formação escolar e aos meios de produção, os preconceitos, discriminações e exclusões do sistema são alguns dos fatores que não podem ser relevados quando analisamos, diacronicamente, a produção literária afro-brasileira [...] (MARTINS, 2010, p. 109).

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RESUMO

Fizemos uma análise comparada das obras Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, e

O alegre canto da perdiz, de Paulina Chiziane, com vistas a identificar a forma como

as duas escritoras tratam as relações de gênero, étnico-raciais e socioculturais no

Brasil e em Moçambique. Partimos da hipótese de que a escrita literária delas assume

a resistência como posição ideológica. Podemos ler nos romances questionamentos

das personagens e atitudes de insubmissão aos papéis que ambas as sociedades lhes

destinam. Assim, a escolha de suas obras como objeto de estudos deu-se pelo fato de

sua produção ficcionalizar práticas sociais que lhes permitem abordar, com criticidade,

o modo de vida de segmentos sociais marginalizados, no caso das duas obras, as

mulheres negras. Para estudar as questões de gênero e raça na escrita literária de

Evaristo e Chiziane, buscamos os subsídios teóricos da crítica literária feminina,

valendo-nos dos estudos de Nelly Richard (2002),Heloisa Buarque de Hollanda (1994),

Judith Butler (2003), Luiza Lobo (2012) e outros. À luz dos pensamentos desenvolvidos

por Eduardo de Assis Duarte (2006), Stuart Hall (1999), Antônio Sérgio Guimarães

(1999), Frantz Fanon (1983), e outros, fizemos uma imersão nos aspectos relacionados

à temática étnico-racial presente nos dois romances. No que se refere ao tema

memória e identidade, em nosso entendimento as escritoras rasuram o discurso da

memória oficial na medida em que as memórias de mulheres, outrora silenciadas,

emergem no contexto narrativo construído por elas, para afirmar uma identidade

feminina negada e marginalizada, por ser considerada minoritária. Para nos auxiliar nas

abordagens que enfocam as questões relacionadas à memória e identidade, buscamos

os estudos de Maurice Halbwacks (1990), Fernando Catroga (2001), Michel Pollak

(1989), Paul Ricouer (2007), Pierre Nora (1993), entre outros. Nos romances

analisados, as escritoras abalam, por meio das suas escritas, a imposição do grupo

social hegemônico, que sistematicamente orienta as representações literárias: homens

brancos. Ponciá Vicêncio e O alegre canto da perdiz apresentam um Outro que

historicamente era invisibilizado nas construções literárias canônicas: a mulher negra.

Palavras.chave: Literatura. Gênero. Etnicidade. Memória. Identidade

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ABSTRACT

We made a comparative analysis of the works Poncia Vicencio, of Conceição Evaristo

and O alegre canto da perdiz, of Paulina Chiziane, to identifying how the two writers

treat gender relations, ethnic-racial and socioculturals in Brazil and Mozambique. The

assumption is that them literary writing takes strength as ideological position. We read

novels questioning the characters and attitudes of insubordination to the roles that both

societies intended them. Thus, the choice of they works as objects of study occurred

because they production fictionalize social practices that allows them to deal with

criticism, the way of life of marginalized social groups, in the case of the two works,

black women. To study the issues of gender and race in the writing of literary and

Evaristo Chiziane, seek subsidies theorists of literary criticism and feminine gender in

availing of studies of Nelly Richard (2002), Heloisa Buarque (1994), Judith Butler (2003),

Luiza Lobo (2012) and others. In light of the thoughts developed by Eduardo Duarte de

Assis (2006), Stuart Hall (1999), Antonio Sérgio Guimarães (1999), Frantz Fanon (1983)

and others have done an immersion in aspects of ethnic-racial theme present in both

novels . With regard to the theme memory and identity, in our understanding women

writers erase the official discourse of memory in that the memories of women, once

silenced, emerge in the narrative context constructed by them, to affirm an women

identity denied and marginalized, to be considered a minority. To assist us in

approaches that focus on issues related to memory and the study of identity seek

Halbwacks Maurice (1990), Fernando Catroga (2001), Michel Pollak (1989), Paul

Ricoeur (2007), Pierre Nora (1993), among others. In the novels analyzed undermine

women writers, through their writings, the imposition of hegemonic social group, which

systematically guides the literary representations: white men. What we read in Poncia

Vicencio and O alegre canto da perdiz, is Another historically made invisible in

canonical literary constructions: black women.

Keywords: Literature. Gender. Ethnicity. Memory. Identity

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RESUME

Nou avons fait une analyse comparative de obres du Ponciá Vicêncio, du Conceição

Evaristo et O alegre canto da perdiz, du Paulina Chiziane, avec le viste a identififiqué

la forme comment les deux auteurs traitent le relation du genere, ethnique raciele e

socioculture au Brésil et au Moçambique. Nous partons de l'hypothès est que l`ecrit

literaire de deux auteurs suppose la resistênce comme position ideológique. Pouvouns

lire dans le romance questionament des personnages et les attitudes d'insubordination

aux papier qui la societé est destinée. Ainsi a le choix de ses œuvres comme des

objets d'étude donne pour le fate de la production dans le cas de ces deux ouvrages, les

femmes noir. Pour les question d`étude du genre et de la race dans l'écriture de textes

littéraires et Evaristo Chiziane, consulter les théoriciens de subventions critique littéraire

féminine et les études de genre dans la valeur de Nelly Richard (2002), Heloisa

Buarque de Hollande (1994), Judith Butler (2003), Luiza Lobo (2012) et de la lumière

others.The des pensées développées par Eduardo Duarte de Assis (2006), Stuart Hall

(1999), Antonio Sérgio Guimarães (1999), Frantz Fanon (1983 ), et d'autres, a fait une

immersion dans les aspects de la présente thème raciale ethnique dans les deux

romans. En ce qui concerne le thème de la mémoire et de l'identité dans la

compréhension des femmes écrivains de notre rasuram le discours officiel de mémoire

en ce que les souvenirs des femmes, une fois coupé, émergent dans le contexte narratif

construit par eux, d'affirmer une identité niée et les femmes marginalisées, être

considérés comme une minorité. Pour nous aider dans les approches qui mettent

l'accent sur les questions liées à la mémoire et l'étude de l'identité chercher Halbwacks

Maurice (1990), Fernando Catroga (2001), Michel Pollak (1989), Paul Ricoeur (2007),

Pierre Nora (1993), entre autres. Nous avons faite une analyses minent les femmes

écrivains, à travers leurs écrits, l'imposition d'un groupe social hégémonique, qui oriente

systématiquement les représentations littéraires: des hommes blancs. Le

PonciáVicêncio qui lit Le chant joyeux et Partridge est un autre qui a été historiquement

rendu invisible en constructions littéraires canoniques: une femme noire.

Mots-clés: Littérature . Sexe . Origine ethnique. Mémoire. Identité

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

1 LITERATURA E VIVÊNCIAS CULTURAIS 171.1 A escrita literária de Conceição Evaristo e Paulina Chiziane 171.2 A literatura feminizada de Evaristo e Chiziane 321.3 Feminização e resistência 431.4 Mulheres negras na perspectiva da literatura menor 511.5 Nuances do feminino na escrita de Evaristo e Chiziane 56

2 LITERATURA E GÊNERO 722.1 Resistência e fortalecimento da mulher em Ponciá Vicêncio 722.2 Resistência e fortalecimento da mulher em O alegre canto da perdiz 852.3 A reconstrução literária do corpo feminino negro 98

3 LITERATURA E ETNICIDADE 1153.1 Relações étnico-raciais nas literaturas afro-brasileira e moçambicana 1153.2 A tessitura romanesca de Evaristo e a temática étnico-racial no

Brasil 1293.3 A tessitura romanesca de Chiziane e as questões étnico-raciais em

Moçambique 1413.4 A escrita como gesto de criação de uma nova identidade negra 156

4 LITERATURA, MEMÓRIA E IDENTIDADE 1604.1 Investigando o tema 1604.2 Literatura, memória e identidade em Ponciá Vicêncio 1664.3 Literatura, memória e identidade em O alegre canto da perdiz 1834.4 Algumas costuras possíveis sobre o aspecto da memória nas duas

obras. 197

5 Á GUISA DE CONCLUSÃO 201

REFERÊNCIAS 207

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INTRODUÇÃO

Antes de qualquer outro motivo, o que me moveu para esta pesquisa é o fato de eu ser

mulher, negra e professora. Essas condições me instigam para a busca de pesquisas

que possam corroborar com as reflexões cotidianas sobre relações de gênero e étnico-

raciais no Brasil e no mundo. Parto do entendimento de que é possível encontrar, de

maneira contundente, na obra das escritoras negras Conceição Evaristo, do Brasil, e

Paulina Chiziane, de Moçambique, uma maneira peculiar de falar sobre as questões de

gênero e das relações étnico-raciais que permeiam as duas sociedades, bem como a

crítica social às relações de poder e dominação.

Busco me orientar por uma prática de construção pessoal e social. A condição de

mulher negra provoca em mim o desejo de reconstruir um olhar sobre as relações

étnicas a partir desse pertencimento. Vivenciamos no Brasil uma situação tensa em que

as diferenças físicas e culturais dos afro-brasileiros têm levado a situações de embates

que nos permitem experimentar e problematizar sobre racismo, nos termos propostos

por Stuart Hall (1999). Discutimos essa tensão no capítulo 2, de maneira privilegiada,

embora ela permeie o conjunto da nossa escrita.

Este trabalho de investigação propôs uma imersão na produção literária das escritoras

Conceição Evaristo e Paulina Chiziane pelo entendimento de que é contundente, na

obra das duas, a problematização acerca das questões que envolvem gênero, bem

como a presença da crítica social às relações de poder e dominação a que são

submetidos as mulheres e os negros, nos dois continentes.

Para cumprir esse propósito, fizemos uma análise comparada das obras Ponciá

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Vicêncio, de Conceição Evaristo, e O alegre canto da perdiz, de Paulina Chiziane,

com vistas a identificar as problematizações acerca de gênero e das relações étnico-

raciais e socioculturais nelas presentes.

As escritas de Evaristo e Chiziane são marcadas pelos cruzamentos de sentidos,

provocando diálogos relevantes entre a literatura e outros campos de conhecimento. As

áreas que possibilitam detectar com maior veemência esses enlaces são os Estudos

Culturais, especificamente no que se refere às teorias desenvolvidas sobre gênero e

raça advindos dos movimentos feministas e negros, e estudos que permeiam a

Historiografia, a Sociologia e a Filosofia. Para o nosso trabalho de pesquisa, uma parte

significativa da nossa recolha de leituras e diálogos foi feita nessas áreas de

conhecimento.

A escolha do romance de Conceição Evaristo se deu pela maneira como a narrativa

ficcionaliza um momento da realidade sociocultural do Brasil, que nos permite ler a

história nacional sob o prisma de sujeitos que foram pouco escutados ao longo da

história: os afro-brasileiros. A obra conta a trajetória de uma personagem feminina que

evidencia as lembranças dos antepassados em relação à escravização dos negros

trazidos da África para esse propósito. Interessa-nos, então, para os estudos que

propusemos, esse olhar de uma escritora negra, que por meio da personagem-título,

uma mulher negra, descendente de escravizados africanos, permite-nos conhecer as

mazelas e desventuras dos seus antecessores. A história familiar da personagem

Ponciá revela a história sociocultural do Brasil do ponto de vista das relações raciais

que marcaram e marcam a história do país ainda após o regime escravocrata.

O alegre canto da perdiz é uma narrativa literária que nos possibilita interpretar o

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fenômeno do racismo do branco em relação ao negro no período colonial em

Moçambique e o dispositivo da mestiçagem como estratégia de algumas mulheres para

se safarem da opressão e das condições menos confortáveis de vida naquela

sociedade. Acrescenta-se ao motivo da nossa escolha do romance o fato de também

ter sido escrito por uma mulher negra e apresentar, no eixo principal da trama, quatro

personagens femininas que são mulheres negras a nos evidenciarem a perversa

estrutura sócio-racial imposta a esse segmento populacional em Moçambique também

no período da pós-independência.

Defendemos o argumento de que, de certa forma, essa condição narrada na obra,

datada e aparentemente superada, traz elementos que justificam situações de opressão

e submissão da mulher negra naquele país ainda hoje.

A obra de Chiziane escolhida é, entre as escritas até hoje, a que mais encena as

tramas subjacentes em Moçambique sobre as relações raciais estabelecidas naquele

país e que, certamente, são possíveis de serem lidas na atualidade. Somam-se à

abordagem da temática racial profundas reflexões sobre o papel da mulher

moçambicana.

Assim, os dois romances apresentam personagens femininas negras que demonstram

resistência aos processos de exclusão aos quais são submetidas.

No primeiro capítulo desta pesquisa, apontamos o quão as propostas literárias de

Conceição Evaristo e Paulina Chiziane dão visibilidade às experiências culturais de

setores oprimidos das sociedades em que vivem: negros e mulheres. A nosso ver, as

romancistas representam, em sua obra, de maneira crítica, os períodos de

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escravização e pós-escravização no Brasil, e os períodos colonial e pós-colonial em

Moçambique.

No caso do romance de Evaristo, a personagem Ponciá Vicêncio é por nós analisada a

partir das formas de resistência que ela elabora para escapar a um destino que

apresentava-se, para ela, como irreversível: a sua condição de mulher negra num

mundo racista e machista. Em relação à trama de Chiziane, a personagem Delfina é

uma das vozes femininas que reverbera a situação histórico-social vivida por muitas

mulheres negras desde o período colonial até a pós-independência de Moçambique.

Não obstante, a personagem se demonstra lúcida ao reconhecer esse lugar de

imposição de valores, cria estratégias de sobrevivência no campo das relações de

gênero e das relações sociais, ao mesmo tempo em que revela ao leitor um pouco do

universo multicultural moçambicano.

Defendemos que a escrita de Evaristo e Chiziane é do campo da feminização,

conforme argumentos desenvolvidos por Nelly Richard (2002). Em nosso enfoque da

escrita feminizada das autoras, procuramos mostrar como a literatura de ambas é

permeada pelas questões de gênero e raça. Para melhor compreender a maneira como

as escritoras problematizam a questão de gênero, valemo-nos dos estudos de Heloisa

Buarque de Hollanda (1994), Elaine Showalter (1994), Ria Lamaire (1994), Gayatri

Spivak (1994), Nelly Richard (2002), Judith Butler (2003) e Luiza Lobo (2012). As

questões étnico-raciais foram trabalhadas à luz dos pensamentos desenvolvidos por

Eduardo de Assis Duarte (2006), Stuart Hall (1999), Antônio Sérgio Guimarães (1999) e

Frantz Fanon (1983), dentre outros.

No segundo capítulo, trabalhamos a forma como a escrita das duas autoras remetem

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aos estudos acerca de gênero. Avaliamos, a partir dessa premissa, que as vozes de

muitas mulheres, historicamente marginalizadas e oprimidas pelo sistema de poder

patriarcal e racista no qual vivem, podem ser ouvidas na medida em que a produção

literária de Conceição Evaristo e Paulina Chiziane repercute essa situação. Por esse

motivo, problematizar o conceito de gênero a partir das obras das duas escritoras

traduz o nosso esforço em direcionar os estudos para lugares e espaços que se

constituem como propícios a um novo olhar em que muitos homens buscam construir

uma nova sociedade. Tal construção deverá permitir que constituições identitárias

sedimentadas e hierarquizadas possam ser rasuradas, com vistas a que as sociedades

possam reformular a existência em direção à emancipação dos sujeitos, independente

de raças e etnias.

No terceiro capítulo, fizemos uma imersão nos aspectos relacionados à temática étnico-

racial presente nos dois romances analisados. Essa imersão nos permitiu vislumbrar o

notório envolvimento das escritoras com as raízes culturais das comunidades nas quais

vivem, bem como perceber as tensões que subjazem às relações étnico-raciais no

Brasil e em Moçambique. Acreditamos que as obras de Conceição Evaristo e Paulina

Chiziane foram propícias para uma leitura das questões étnicas e raciais do ponto de

vista de grupos culturais que, em um passado próximo, tinham as suas vozes

silenciadas no circuito eurocêntrico. Conceição Evaristo e Paulina Chiziane, no modo

de construir a sua literatura, direcionam para uma representação positiva das

comunidades negras brasileira e moçambicana, na medida em que ficcionalizam, em

seus romances, histórias que demonstram o imbricamento dos embates relacionados

ao racismo na vida desses sujeitos. Elas ficcionalizam ainda a forma de reação e

enfrentamento desses sujeitos negros diante das variadas situações de subalternidade 15

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por eles vividos, e a sua busca por emancipação.

Desenvolvemos, no capítulo 4, uma abordagem relativa a aspectos da memória e da

identidade. Consideramos que as duas escritoras usaram a memória para nos mostrar

como determinadas tradições permanecem preservadas por seus povos. As

lembranças, as memórias das personagens, entrelaçam os fios dos romances com

vistas a reatualizarem valores que são estruturantes para os contextos brasileiro e

moçambicano e que têm sido silenciados pelos discursos hegemônicos. Assim, uma

das perspectivas que adotamos para esse estudo é a de Pierre Nora (1993), que

analisa os discursos sobre memória social, história e memória de povos que foram

subjugados. Tendo como referência as análises desse autor, ao estudarmos essas

obras, podemos notar que as tradições que se apresentam nos dois romances são

relembradas como forma de reafirmação de valores identitários para um determinado

povo.

No que se refere à identidade, as nossas leituras para entender a trama das obras

analisadas deram-se, entre outras, a partir da perspectiva defendida por Hall (2003).

Ele aponta que são as transformações nas sociedades modernas do século XX que

estão deslocando ou descentrando o sujeito do seu espaço na sociedade e de si

mesmo, gerando uma crise de identidade para os indivíduos. O rememorar, que

permeia a vida das personagens dos dois romances, é uma das formas de dizer da

necessidade de recuperação e reconstituição dos laços familiares que foram

esgarçados pelos dominadores, das situações de desconforto das personagens, da

busca identitária delas, inconformadas com o subjugo do sujeito masculino branco.

São por essas e outras perspectivas construídas nos romances estudados que

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defendemos o argumento segundo o qual as escritoras assumem a resistência como

posição ideológica, conforme procuraremos demonstrar ao longo do estudo.

1. LITERATURA E VIVÊNCIAS CULTURAIS

1.1 A escrita literária de Conceição Evaristo e Paulina Chiziane

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Conceição Evaristo e Paulina Chiziane são escritoras de origem humilde que

escolheram a literatura como suporte coletivo para afirmarem as suas condições de

mulheres negras e os conflitos decorrentes das relações de gênero e raça que

perpassam as sociedades em que vivem.

Essas características das autoras levam-nos a considerar a escrita de Evaristo e

Chiziane como feminina, de resistência e negra, como apontaremos mais à frente. Para

isso, consideramos ser fundamental localizar os contextos sócio-histórico-culturais

vividos no Brasil e em Moçambique.

A escritora Conceição Evaristo nasceu em Belo Horizonte, em 1946, numa favela no

alto da Avenida Afonso Pena. Formou-se professora no antigo curso Normal, em 1971,

e depois mudou-se para o Rio de Janeiro, onde foi aprovada em um concurso municipal

para magistério e, posteriormente, no curso de Letras da Universidade Federal daquele

Estado. Na década de noventa, Evaristo ingressou no curso de Mestrado em Letras da

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, defendendo, em 1996, a dissertação

intitulada Literatura negra: uma poética de nossa afrobrasilidade. Doutorou-se em

Letras pela Universidade Federal Fluminense, no ano de 2011, sob a orientação da

profa. Dra. Laura Cavalcante Padilha. A sua pesquisa teve como foco as relações entre

a literatura afro-brasileira e as literaturas africanas de Língua Portuguesa. Desde 1990,

a autora publica poemas e contos na coletânea Cadernos negros1, do Grupo

Quilombhoje – formado, em 1978, por escritores afrodescendentes – e é convidada

para palestras e congressos em todo o Brasil e no exterior. Nesses eventos, aborda as

1 Cf. Quilombhoje. Disponível em: www.Quilombhoje.com.br. Acesso em 28 de junho de 2010.18

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questões de gênero e etnia na literatura brasileira. Ponciá Vicêncio (2003) é o primeiro

romance de Conceição Evaristo e vem sendo tema de artigos, pesquisas de

dissertações de mestrado e teses de doutorado, além de discussões no meio

acadêmico desde sua publicação. Foi indicado ao vestibular 2008 da Universidade

Federal de Minas Gerais – UFMG – e traduzido recentemente para o inglês pela Editora

Host Publications, sediada no Texas, nos Estados Unidos da América. Além dessa

obra, publicou Becos da memória (2006), Poemas da recordação e outros

movimentos (2008) e Insubmissas lágrimas de mulheres (2011).

Paulina Chiziane nasceu em 1944, em Manjacaze, província de Gaza, sul de

Moçambique. Escreveu alguns contos e estreou no romance com a obra Balada de

amor ao vento (1990). Publicou ainda Ventos do Apocalipse (1995), O sétimo

juramento (1999), Niketche: uma história de poligamia (2004), O alegre canto da

perdiz (2008) e, no ano de 2012, Na mão de Deus. Foi a primeira mulher

moçambicana a publicar um romance. Dessa forma, a escritora desafiou e desafia

críticas e resistências sociais e culturais no seu país e no continente africano. Uma

parte da nossa pesquisa foi realizada em Moçambique. Essa estratégia, no percurso da

investigação, possibilitou uma melhor compreensão sobre a obra de Paulina Chiziane,

bem como das relações literárias, de gênero, classe e raça que permeiam aquela

sociedade.

O poema abaixo é uma demonstração de como a escritora Conceição Evaristo retoma,

em sua obra, histórias de vida de sujeitos anônimos, que constituem o grupo de

excluídos composto pelos afrodescendentes no Brasil.

Vozes-mulheres

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A voz de minha bisavó ecooucriançanos porões do navio.Ecoou lamentos De uma infância perdida.

A voz de minha avóecoou obediênciaaos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãeecoou baixinho revoltaNo fundo das cozinhas alheiasdebaixo das trouxasroupagens sujas dos brancospelo caminho empoeirado rumo à favela.

A minha voz aindaecoa versos perplexoscom rimas de sanguee fome.

A voz de minha filha recolhe todas as nossas vozesrecolhe em sias vozes mudas caladasengasgadas nas gargantas.

A voz de minha filharecolhe em sia fala e o ato.O ontem – o hoje – o agora.Na voz de minha filhase fará ouvir a ressonânciao eco da vida-liberdade.

(EVARISTO, 1990, p. 32-33)

Evaristo traz para o cenário da literatura, por meio do poema “Vozes- Mulheres”,

lamentos, queixas e denúncias da situação de opressão vivida pelas mulheres em

decorrência do processo de escravidão, mas também aponta para um novo tempo, em

que uma nova mulher se propõe alterar a sofrida saga de suas ancestrais. Acreditamos

que essas características da escrita de Conceição Evaristo nos permitem inseri-la na

perspectiva dos estudos que abordam as questões étnico-raciais e de gênero, advindas

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dos Estudos Culturais, e ainda na perspectiva dos estudos que se voltam para as

relações entre a literatura e a sociedade.

Paulina Chiziane, por sua vez, questiona-se: “há uma interrogação que paira na minha

mente: será que escrevendo cada dia mais livros, estou a contribuir para o

desenvolvimento da mulher e da sociedade?” (CHIZIANE, 1994, p. 18).

Responderíamos positivamente à indagação da escritora moçambicana, reafirmando

ser a sua escrita uma valorosa contribuição para compreendermos as nuances do

universo feminino em Moçambique.

Vários estudos já foram realizados acerca das obras das escritoras Conceição Evaristo

e Paulina Chiziane. Pesquisamos algumas dissertações e teses elaboradas no Brasil e

uma tese de uma pesquisadora brasileira que estuda na Inglaterra. Dentre essas

dissertações e teses, duas privilegiam exclusivamente a escrita de Evaristo e uma

relaciona a escrita de Conceição Evaristo, Paulina Chiziane e Carolina Maria de Jesus;

duas pesquisas referem-se somente à escrita de Chiziane; um trabalho faz uma

correlação entre obras da escritora estadunidense Alice Walker e de Conceição

Evaristo, e uma última análise trata da escrita de Conceição Evaristo, Tony Morrison e

Paulina Chiziane. Durante a estadia em Moçambique foi possível dialogar com

professores universitários, pesquisadores e outros escritores que nos forneceram

análises críticas acerca da literatura de Paulina Chiziane.

A leitura crítica das dissertações e teses, além dos diálogos ocorridos em Moçambique,

foram fulcrais no processo de pesquisa que estamos construindo. Em todas as

incursões que fizemos pela fortuna crítica das autoras, encontramos, dentre outras

análises, o tratamento da questão de gênero como um ponto comum de sua escrita.

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Da pesquisa de Arruda (2007), para além da abordagem sobre literatura negra,

apuramos como possibilidade de estreitamento com o nosso trabalho as reflexões

sobre a construção identitária que permeiam os estudos da categoria gênero. O

trabalho investigativo de Costa (2007) contribui sobremaneira com os debates que

empreendemos acerca da diáspora negra feminina ao abordar a contribuição literária

de três escritoras de três países diferentes, Brasil, Estados Unidos e Moçambique,

munindo-nos de informações preciosas sobre as tensões que envolvem as relações

raciais em cada um desses lugares, embora cada um guarde as suas especificidades.

Com a imersão de Souza (2008) acerca do universo que envolve as escritoras

Conceição Evaristo e Alice Walker, percebemos que as relações de gênero e raça nos

Estados Unidos e no Brasil adquirem o caráter de similaridade em vários pontos,

embora as diferenças culturais entre esses espaços devam ser demarcadas.

Com a pesquisa de Nascimento (2008), enveredamos no universo das relações de

gênero e raça no Brasil, por meio da escolha de duas escritoras brasileiras, Carolina

Maria de Jesus e Conceição Evaristo, as quais, com percursos e contextos geracionais

diferentes, permitem-nos apreender melhor a perenidade em que estão inseridas as

relações desiguais de gênero e raça no Brasil.

As pesquisas de Mendes (2009) e Chaves (2010) acerca das obras e do contexto

sócio-histórico da escritora Paulina Chiziane contribuem para a nossa compreensão e

proposições sobre o universo moçambicano no que tange às relações de gênero e

raça, bem como os embates que permeiam as relações sociais vividas naquela

sociedade.

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Ao final do estudo dessas pesquisas, temos clareza de que são distintos os processos

de construção identitária das duas escritoras, o que nos levou a olhar, de maneira

diferenciada, as relações de gênero em suas obras. A questão racial também não pode

ser tratada de maneira similar nas duas sociedades. O nosso esforço ao realizar essas

leituras foi o de fazer uma imersão na fortuna crítica sobre as obras analisadas e em

algumas teorias que cotejam com as nossas reflexões acerca dos conceitos presentes

nas mesmas.

Tal movimento tem, como intenção, uma compreensão que parte do pressuposto de

que, em Ponciá Vicêncio, a ênfase nos dilemas identitários se dá com destaque maior

pela relação racial, sem perder de vista que se trata de uma protagonista negra que se

utiliza de variadas estratégias para evidenciar a memória cultural brasileira, ao recontar

uma história que dialoga com a diáspora e com as situações de opressão presentes

em um sistema patriarcal e racista.

No que se refere à trama ficcional de O alegre canto da perdiz, a questão que

privilegiamos para ser estudada são as relações de gênero na sociedade

moçambicana. A senhora mais velha, esposa do régulo, muitas vezes dá o tom para

que possamos compreender essa nuance presente no romance quando, referindo-se

às diferenças entre os sexos, afirma: “A história desta marcha não começa nesta data.

A guerra dos sexos é muito, muito antiga. Tudo começou nos tempos sem memória.”

(CHIZIANE, 2008, p. 300).

A partir dessas investigações realizadas, das várias leituras que fizemos das obras de

Evaristo e Chiziane, passamos a cotejar a ficção a reflexões desenvolvidas no âmbito

de algumas formulações teóricas advindas dos Estudos Culturais, tais como a crítica da

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cultura feminista, em especial, a literária, dos estudos sobre literatura e sociedade, e,

ainda, das teorias raciais.

Os Estudos Culturais aproximam-se do vasto campo das práticas sociais e dos

processos históricos que abrangem os espaços não canônicos da sociedade, além de

se preocuparem com os produtos da cultura popular. Foram pensados, desde o início,

como um empreendimento interdisciplinar. Segundo Johnson (2000), a partir da crítica

estabelecida à forma elitista de produção e de consumo da literatura na Inglaterra,

Richard Hoggart idealizou os Estudos Culturais em três partes: histórica ou filosófica,

sociológica e crítico-literária, sendo essa última considerada a mais importante.

Por essa perspectiva, no poema Vozes-mulheres, apresentado acima, Conceição

Evaristo faz uma releitura de uma prática social que mantém as mulheres negras em

uma condição de subalternidade. Para isso, representa, de maneira crítico-literária, a

trajetória ancestral das mulheres negras brasileiras, descendentes de escravizados.

Destacamos que os versos finais da releitura crítica proposta pela escritora denotam o

caráter de resistência dessas mulheres e apontam para uma insurreição delas na

contemporaneidade, em busca de sua liberdade.

Norma Schulman (2000) cita a conferência de abertura dos trabalhos do Center for

Contemporany Cultural Studies, intitulada “Schools of english and contemporary

society”, em que Hoggart, ao criticar o modo restrito como a literatura estava sendo

estudada na Inglaterra, apresentou novas possibilidades para sua abordagem, a qual

nomeou de “Literatura e Estudos Culturais Contemporâneos”. Para Hoggart, o novo

movimento permitiria retirar a literatura de um espaço redutor e lançar um olhar

diferenciado sobre os escritores, a fim de se perceber:

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De onde eles vêm? Como eles se tornam o que são? Quais são as suas recompensas financeiras? Quais são os públicos para as diferentes formas e quais são os públicos para diferentes níveis de abordagem? Que expectativas eles têm e que conhecimento prévio eles trazem? ... O que se pode dizer da organização da palavra escrita e falada? ...finalmente, quão pouco sabemos sobre todos os tipos de inter-relações: as inter-relações entre escritores, políticos, poder, classe e dinheiro. (HOGGART apud SCHULMAN, 2000, p. 185)

Na avaliação de Schulman, o projeto dos Estudos Culturais esteve direcionado para um

conceito neomarxista, com vistas a uma consciência de classe, raça e gênero, e

considerou esses temas para além de um viés estritamente sociológico. Afirma ainda

que as proposições teóricas dos Estudos Culturais vinculavam-se ao movimento

intitulado Nova Esquerda, um movimento político do período que se destacava por lutas

anti-capitalistas contra o imperialismo e o racismo. Segundo Schulman, a perspectiva

dos Estudos Culturais foi adotada por meio de um olhar de baixo para cima, ao atribuir

poder aos sujeitos e aos grupos políticos e aos grupos subculturais, de maneira que

pudessem, eventualmente, intervir nos sistemas políticos e nos sistemas de

significação, com vistas a propor alterações em seu funcionamento.

De acordo com a autora, os primeiros anos do Centro formaram, em sua maioria,

estudantes na área de estudos literários e tiveram o firme propósito de acompanhar as

reivindicações dos movimentos feministas e negros. Essas temáticas eram abordadas

de maneira ampla em dissertações de mestrado e teses de doutorado. As abordagens

procuravam compreender os significados da experiência humana, já que se efetivavam

na linguagem e em outras práticas significativas que estruturam a sociedade.

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Ainda consoante Schulman (2000), entre os insigths que as reflexões do Centro

proporcionaram aos estudos da época, merecem destaque as contribuições e os

questionamentos sobre a forma como raça e gênero são culturalmente definidos para

colocar em desvantagem, ou marginalizar, as mulheres e os grupos minoritários. A

autora informa-nos que, em 1974, foi formado, no Center for Contemporany Cultural

Studies, um Grupo de Estudos de Mulher, para observar os ditos gêneros femininos,

tais como telenovelas e revistas de moda, abordados nos meios de comunicação. Tal

grupo tinha, como expectativa, entender quais necessidades sociais e pessoais das

mulheres eram atendidas, como os públicos femininos respondiam aos conteúdos

veiculados, além de teorizar sobre o papel do trabalho doméstico e tentar resgatar do

esquecimento a literatura feita por mulheres escritoras. Esse grupo apontou algumas

críticas ao trabalho do Centro, que foram cruciais para os resultados alcançados ao

longo do tempo.

As obras de Conceição Evaristo e Paulina Chiziane, que ora estudamos, apresentam o

que consideramos como ressonância das preocupações feministas acima

mencionadas. Em Conceição Evaristo, a personagem Ponciá se rebela diante da

situação de subalternidade e exclusão em que vive e decide deslocar-se daquele

ambiente em busca de melhores oportunidades para si e seus parentes.

A decisão de Ponciá Vicêncio de sair do povoado onde nascera chegou forte e repentina. Ela estava cansada de tudo ali, principalmente de trabalhar o barro com a mãe, numa rotina constante de trabalho nas terras dos brancos, retornando sempre de mãos vazias. Revoltada em ver a terra dos negros cobertas de plantações, cultivadas pelas mulheres e crianças, uma vez que os homens gastavam a vida trabalhando nas terras dos senhores, para que depois a maior parte das colheitas fossem entregues aos coronéis. Entediada dessa batalha

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insana, sem êxito, em que todos estavam acostumados a amanhecer cada dia mais pobres, enquanto outros conseguiam enriquecer-se a todo dia. Ponciá acreditava que poderia traçar outros caminhos, construir uma vida nova. (EVARISTO, 2003, p. 45).

Chiziane também apresenta, no romance estudado, possibilidades para que possamos

vincular a sua escrita ao movimento de ruptura com os padrões que imputavam

submissão às mulheres negras tanto no período colonial quanto na pós-independência

moçambicana. Como exemplo, temos o momento em que a personagem Delfina

revolta-se com a situação de subalternidade vivida pelas mulheres negras no período

colonial e afirma para a mãe: “um dia vou mudar o meu destino, a mãe vai ver. Esses

pobres pretos ver-me-ão a surgir das cinzas coroada de ouro. Com o mundo na palma

da minha mão, cravejado de diamantes. A mãe verá esse dia, eu juro.” (CHIZIANE,

2008, p. 82).

Segundo o grupo de mulheres reunidas no Center for Contemporany Cultural Studies ,

os pressupostos patriarcais lá desenvolvidos distorciam os resultados das pesquisas,

impedindo que elas alcançasse um cunho cultural. Para as mulheres desse grupo, a

tendência dos estudos era relegar a metade feminina da raça humana a uma relativa

obscuridade. Dessa forma, a crítica feminista elaborada por elas contribuiu para que

alterações fossem realizadas na maneira como a identidade, a subjetividade e o gênero

eram construídos no período. De acordo com Schulman (2000), a preocupação

feminista com a diversidade também estava aliada ao trabalho sobre racismo,

desenvolvido no Centro.

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Norma Schulman faz várias observações sobre os dilemas do Center for Contemporany

Cultural Studies para incorporar os debates sobre raça e gênero às análises de classe

do marxismo. Citando as preocupações de Hall nessa direção, a autora afirma:

Não existe qualquer consenso neste momento – nem mesmo entre feministas brancas e mulheres negras, as quais estão inclinadas a discordar sobre a forma como a raça e o gênero se intersecionam para constituir formas de opressão. De fato, o legado dos estudos de raça e gênero consiste em complicar a equação (“reducionista”) marxista de uma forma bastante fértil, para introduzir, nas palavras de Paul Gilroy, uma visão da formação de classe como um efeito de lutas heterogêneas, baseadas, talvez, em diferentes fatores comuns – linguísticos, sexuais, regionais, ecológicos e raciais. (HALL apud SCHULMAN, 2000, p. 215).

Para Stuart Hall (2003), a grande relevância dos Estudos Culturais se dá pelo fato de

terem trazido severas rupturas em relação a conceitos epistemológicos de velhas

correntes de pensamento e, no lugar delas, apontarem para trabalhos intelectuais

comprometidos com verdadeiras transformações históricas.

As obras em estudo corroboram com o desenvolvimento dessa ideia. No romance

Ponciá Vicêncio, por exemplo, esse debate aparece no momento em que o pai de

Ponciá questiona o avô dela sobre o legado da escravidão no contexto da pós-abolição:

Se eram livres, por que continuavam ali? Por que, então, tantos e tantas negras na senzala? Por que todos não se arribavam à procura de outros lugares e trabalhos? Um dia perguntou isto ao pai, com jeito, muito jeito. Tinha medo dos ataques dele. [...] Perguntou e a resposta do pai foi uma gargalhada rouca de meio riso e de meio pranto. O homem não encarou o menino. Olhou o tempo como se buscasse no passado, no presente e

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no futuro uma resposta precisa, mas que estava a lhe fugir sempre. (EVARISTO, 2003, p. 17-18).

Na passagem acima, a voz da narradora traduz o questionamento da personagem pai

de Ponciá Vicêncio em relação à manutenção da situação de desigualdade entre

homens brancos e negros que caracterizou a histórica supremacia dos primeiros em

relação aos segundos. Traduz também o desespero da personagem avô de Ponciá

Vicêncio diante da impossibilidade de encontrar respostas para a manutenção dessa

condição histórica num presente em que ela não deveria mais existir. Com isso, a

enunciação narrativa de Conceição Evaristo se coloca como uma ruptura em relação a

correntes de pensamento que reiteram práticas sociais advindas de uma concepção

hegemônica de cultura e de raça.

No romance O alegre canto da perdiz, é possível também observarmos como as

personagens sentem necessidade de pacificação entre as etnias branca e negra.

Chiziane aponta, por meio de sua ficção, para uma reflexão sobre o fim do acirramento

das disputas entre os povos. Mostra ainda que os atos criminosos, empreendidos de

um grupo para o outro, sempre foram punidos, de uma forma ou de outra:

O assassino encarna o espírito da sua vítima. O preto que matou o branco partirá de joelhos para a terra do branco. Para pagar a dívida de sangue na árvore dos antepassados do morto. Os brancos que mataram voltarão. Para se ajoelharem e pedir o perdão dos nossos antepassados. E serão recebidos nas nossas palhotas como irmãos. O sangue derramado irmana, faz um nó, e nem a morte pode separar. (CHIZIANE, 2008, p. 57)

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Essa reflexão da narradora relativiza a pretensa hegemonia da cultura branca sobre a

cultura negra moçambicana quando lê as relações entre brancos e negros a partir do

cruzamento de signos da metafísica cristã com signos da ancestralidade africana para

preconizar um ideal de pacificação que possa eliminar diferenças que a História oficial

do Ocidente engendrou e ainda sustenta.

A partir da ampliação do significado de cultura, de textos e representações para

práticas vividas, os Estudos Culturais procuraram desviar o foco da cultura de sua

tradição elitista e deslocá-la para as práticas cotidianas. Por isso, uma grande

importância que Hall (2003) atribui aos Estudos Culturais refere-se à tese de que a

palavra cultura abriga diferentes possibilidades de se pensarem as mudanças históricas

que as transformações na indústria, na democracia e nas classes sociais

representaram de maneira própria, e ainda, à resposta que a arte dá a essas

mudanças.

Dessa maneira, a definição de cultura sublinhada por Hall (2003) é aquela em que ela

é, em si mesma, socializada e democratizada, não consistindo na soma do melhor que

foi pensado e dito e, portanto, no ápice de uma civilização que se pensa realizada,

perfeita. O teórico conceitua a cultura como algo em que se imbricam todas as práticas

consideradas atividades humanas comuns e com as quais homens e mulheres fazem

história.

Hall sublinha que ocorreram ao menos três interrupções no curso do Center for

Contemporary Cultural Studies. A primeira delas relaciona-se ao feminismo. A

intervenção do feminismo foi específica e fulcral para os Estudos Culturais e outros

estudos teóricos, na época, por inaugurar uma ruptura que reorganizou o campo de

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modo bem concreto. O autor refere-se à proposição de se tratar o pessoal como

político, interferindo na mudança de objeto dos Estudos Culturais. A importância da

ruptura que os estudos feministas provocaram dentro dos Estudos Culturais em relação

a pontos de vista hegemônicos é detalhada por Stuart Hall:

Dada a importância crescente do trabalho intelectual feminista, bem como dos primórdios do movimento feminista no início da década de 70, muitos de nós no Centro – na maioria homens, é claro – pensamos que fosse o momento de introduzir trabalho feminista de qualidade nos Estudos Culturais. E tentamos realmente atraí-lo, importá-lo, fazendo boas propostas a intelectuais feministas de peso. Como seria de esperar, muitas das mulheres nos Estudos Culturais não estavam interessadas neste projeto “magnânimo”. Abríamos a porta aos estudos feministas, como bons homens transformados. E, mesmo assim, quando o feminismo arrombou a janela, todas as resistências, por mais insuspeitas que fossem, vieram à tona – o poder patriarcal plenamente instalado, que acreditara ter-se desautorizado a si próprio. (HALL, 2003, p. 209 ).

A segunda ruptura que se observou foi a radical expansão da noção de poder, que até

aquele momento era tratada como da ordem do público, do domínio público. Percebeu-

se que essa noção era cara aos interesses hegemônicos e não aos interessados nos

debates sobre culturas populares. Ao mesmo tempo, as questões de gênero e

sexualidade assumiram centralidade para que se compreendessem melhor as relações

de poder. Além disso, outras questões que se acreditava estarem resolvidas no campo

da subjetividade e do sujeito retornaram para a arena de debate dos Estudos Culturais

como prática teórica, o que reabriu a fronteira fechada entre a teoria social e a teoria

psicanalítica sobre o inconsciente.

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A terceira ruptura se refere à questão racial. O autor revela que, para fazer com que os

Estudos Culturais colocassem na ordem do dia as questões de raça, a resistência ao

racismo e a crítica da política cultural, foi travado um longo debate teórico. Não

obstante, para Hall, essa vertente de estudos causou uma virada decisiva em seu

trabalho intelectual e teórico, bem como nos trabalhos do Centro. Ele esclarece que a

obra The empire strikes back (1982) teve imensa dificuldade em criar, no Centro, o

espaço teórico e político necessário que lhe permitisse debruçar-se sobre a temática

racial. (HALL, 2003). Um dos teóricos que assinam essa obra é Paul Gilroy.

As ideias desenvolvidas por Hall, a partir das reflexões apontadas por Williams, são

fulcrais pelo fato de creditarmos à produção literária de Evaristo e Chiziane a condição

de retratos da vida de mulheres negras do Brasil e de Moçambique. Diz o autor que as

descrições fortemente sublimes e refinadas das obras literárias constituem, de algum

modo, parte do processo geral que cria convenções e instituições e essas permeiam os

significados valorizados pela comunidade. Sendo assim, conclui-se em relação às

descrições sobre as obras literárias: “Não existe nenhum modo pelo qual esse processo

pode ser desvinculado, distinguido ou isolado de outras práticas que formam o

processo histórico”. (HALL, 2003, p. 135).

1.2 A literatura feminizada de Evaristo e Chiziane

Outros nomes e sentidos me vieram à mente. Um deles insiste: resistência, resistência, resistência... Escrevo. Deponho. Um depoimento em que as imagens se confundem, um eu agora a puxar um eu-menina

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pelas ruas de Belo Horizonte. E como a escrita e o viver se con(fundem), sigo eu nessa escrevivência a lembrar de algo que escrevi recentemente: “O olho do sol batia sobre as roupas estendidas no varal e mamãe sorria feliz. Gotículas de água aspergindo a minha vida-menina balançavam ao vento. Pequenas lágrimas dos lençóis. Pedrinhas azuis, pedaços de anil, fiapos de nuvens solitárias caídas do céu eram encontradas ao redor das bacias e tinas das lavagens de roupa. Tudo me causava uma comoção maior. A poesia me visitava e eu nem sabia.” ( EVARISTO, 2011)

As pessoas ficaram chocadas, pois não esperavam que uma mulher entrasse em grandes temas e eu ia cada vez mais fundo. Houve pessoas que pensaram que tive sucesso por acaso. Alguns escritores consideraram que eu estava escrevendo sobre o feminino porque era moda. (CHIZIANE apud DIOGO, 2010, p. 174)

Verticalizando as reflexões acerca de gênero, cujas leituras iniciamos por meio dos

Estudos Culturais, as pesquisas de Judith Butler (2003) desconstroem o entendimento

segundo o qual muitos consideram natural o que é o masculino e o feminino, e aliam

essa naturalidade meramente a aspectos biológicos. A verticalidade da abordagem

teórica de Butler indaga, sistematicamente, acerca de como se constroem os gêneros e

as identidades, que para ela ainda estão alicerçados em duas formas de organização

social das relações: falocentrismo e heterossexualidade compulsória.

Butler retoma o conceito de genealogia apresentados por Nietzsche e Foucault para

dizer da necessidade que devemos ter de explicar as categorias fundacionais de

desejo, gênero e sexo como parte das relações de poder estabelecidas na sociedade. A

teórica reapresenta esse conceito no sentido de nos fazer pensar sobre o fato de que

as noções de feminino e de mulher não dão mais conta de se sustentarem como termos

relacionados, devendo, portanto, serem problematizadas.

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Heloísa Buarque de Hollanda (1994) procura relacionar o pensamento feminista à

necessidade de uma abordagem metodológica e teórica em que os temas das mulheres

sejam particularizados, especificados e localizados historicamente, assim como as

demais questões de interesse coletivo. Hollanda alia as suas reflexões às de estudiosas

como Ria Lemaire (1994), para quem a história literária tem sido, de maneira geral,

basicamente etnocêntrica e viricêntrica. Com isso, Lemaire nos faz perceber que a

história da literatura tem sido apresentada de maneira única e contínua, em um modelo

canônico, dando a entender que se trata originalmente de uma cultura ancestral e

distante. Nessa perspectiva, cabe a uma elite intelectual masculina divulgá-la e, dessa

forma, assistimos às tradições orais, às culturas populares nativas e das mulheres

permanecerem excluídas da historiografia cultural.

Gayatri Spivak (1994), ao indagar sobre quem reivindica alteridade, apropria-se da sua

condição de pós-colonial hindu e marxista para dizer que teve acesso à cultura do

imperialismo, ainda que esse acesso tenha sido parcial. Um aspecto que nos interessa

nas formulações de Spivak é o argumento segundo o qual as palavras-chave do

imperialismo, envolvidas na descolonização da Índia, e penso que pode servir para

pensarmos os processos de descolonização e opressão de maneira geral, são:

nacionalismo, internacionalismo, secularismo e culturalismo. Segundo Spivak, é

necessário, nesses percursos, que se leia como os sujeitos marcados como

pertencentes a uma história alternativa estão escritos verdadeiramente, e não ler a sua

máscara como uma verdade histórica. Ela aponta que são necessários quatro

instrumentos para se desenvolverem histórias alternativas: gênero, raça, etnicidade e

classe. São esses elementos que buscamos ao analisar a obra de Evaristo e Chiziane.

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Para isso, as reflexões de Nelly Richard (2002) acerca da temática relacionada a

gênero são fulcrais para os nossos estudos. Ela discute a questão da apropriação das

teorias dos ditos países do centro pelos que são considerados de periferia. Para a

teórica, os códigos que são criados pelas práticas consideradas subalternas

reinterpretam e criticam hibridamente, em seu interior, os signos da cultura dominante.

A autora contesta os argumentos das feministas dos países do norte, pelo fato de essas

entenderem que há uma divisão entre a teoria produzida por elas e a experiência

compartilhada pelas latino-americanas, sendo que, no entendimento do primeiro grupo,

as teorias dos países do norte são as que melhor englobam os interesses da maioria.

Já Luiza Lobo (2012), problematizando a escrita de autoria feminina, bem como as

bases estabelecidas por ela para que se tornassem autônomas na América Latina,

atesta que percebe nela uma forma didática e distanciada de tratamento do tema

feminino, que não considera a subjetividade e a identidade da mulher, não sendo,

portanto, caixa de ressonância para pontos de vistas necessariamente feministas. Na

avaliação dessa pesquisadora, as personagens centrais dos romances recentes de

autoria feminina “ainda não são modelos totalmente autônomos de mulheres, mas tais

modelos deverão aparecer com maior frequência, na medida em que se estabeleça

uma sociedade menos patriarcal na América do Sul”. (LOBO, 2012).

Outro ponto tratado por Richard (2002) que nos interessa é a crítica que ela faz aos que

consideram que a linguagem e a escrita são indiferentes à diferença genérico-sexual.

Para a pesquisadora, esse raciocínio reforça as estruturas de poder em curso e, assim,

valida o discurso que se alimenta da masculinidade para dizer que fala do neutro, do

universal. É a partir das reflexões de Richard que consideramos as escritas de

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Conceição Evaristo e Paulina Chiziane como integrantes do processo denominado

pela crítica como de feminização da escrita.

Pensamos que a escrita literária de Conceição Evaristo e Paulina Chiziane, nas obras

Ponciá Vicêncio e O alegre canto da perdiz, representa a vida de personagens que

não têm, costumeiramente, a oportunidade de expressarem a sua vivência, sobretudo

se se trata de mulheres negras, tal como temos proposto nas obras e neste estudo.

A escrita das duas autoras é por nós entendida como tributária do campo da

feminização, conforme argumentos desenvolvidos por Nelly Richard (2002), em relação

ao que ela chama de “feminização da escrita”.

Nelly Richard não vê a correspondência entre a marca biológica (ser mulher) e a

identidade cultural (escrever como mulher). Para a crítica, a feminização da escrita se

refere à capacidade de a narrativa transpor o discurso canônico instituído nas

sociedades e

se produz a cada vez que uma poética, ou uma erótica do signo, extravasa o marco de retenção/contenção da significação masculina com seus excedentes rebeldes (corpo, libido, gozo, heterogeneidade, multiplicidade), para desregular a tese do discurso majoritário. Qualquer literatura que se pratique como dissidência da identidade, a respeito do formato regulamentar da cultura masculino-paterna, assim como qualquer escrita que se faça cúmplice da ritmicidade transgressora do feminino-pulsátil, levaria o coeficiente minoritário e subversivo (contradominante) do “feminino”. (RICHARD, 2002, p. 133)

Essa definição de Richard foi por nós escolhida pelo fato de traduzir a ideia de que,

considerando as problematizações sobre a temática gênero, e com ela,as reflexões

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sobre os papéis do feminino e do masculino, encontramos um ponto de equilíbrio que

aponta que tanto homens quanto mulheres podem rasurar ortodoxias patriarcais de

escrita, não obstante o destaque seja para o fato de que ela se preocupa em lançar

luzes para um discurso de um grupo social que está inserido de maneira desfavorável

nas estruturas culturais e sociais: as mulheres.

Defendemos, à luz das argumentações dessa teórica, que as duas escritoras em

estudo optam por extravasarem a forma redutora como a escrita masculina trata o

corpo feminino, ou o papel da mulher, na maioria das vezes. Entendemos que as vozes

de várias mulheres, secularmente marginalizadas e oprimidas pelo sistema de poder

patriarcal e racista nos quais vivem, sejam ouvidas por meio da produção literária das

escritoras Evaristo e Chiziane.

É segundo essa perspectiva que creditamos as produções literárias de Conceição

Evaristo e Paulina Chiziane como modos de feminização da escrita, sobretudo no que

se refere aos papéis estabelecidos para as personagens femininas e negras nas obras

Ponciá Vicêncio e O alegre canto da perdiz.

Dessa forma, problematizar os conceitos de gênero e raça a partir das obras dessas

autoras significa caminhar na direção de lugares e espaços que se constituem como

propícios a uma configuração societária mais crítica em relação a modelos identitários

fixos, hierárquicos e hegemônicos.

O termo gênero foi elaborado para indicar os fenômenos catalogados de acordo com

concepções de masculino e feminino, o que indica a aceitação, por parte de algumas

pesquisadoras, da pressuposta existência de dados biológicos reais que promovem a

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diferença entre homens e mulheres. Por essa perspectiva, é possível perceber que

certos aspectos da base biológica relacionados à natureza da mulher, que outrora eram

suplantados quando se usava a denominação sexo, agora podem ser erigidos,

permitindo que se teçam reflexões específicas sobre gênero.

Concordamos com Judith Butler (2003), com vistas à análise das obras em questão,

que o sentido de ampliar a representação de sujeitos femininos deve ser considerado

na perspectiva de redefinir pressupostos teóricos desses sujeitos em atenção para a

pluralidade identitária nos variados contextos socioculturais em que as mulheres

manifestam as suas indagações. Dessa forma, segundo a pesquisadora, será possível

mobilizar determinados objetivos políticos que permitam reconhecer de quais lugares

falam esses sujeitos femininos.

Hollanda (1994) entende que a recente retomada dos estudos sobre a construção da

subjetividade feminina nos países periféricos, como o Brasil, pode ser considerada

como uma possibilidade para a revitalização das teorias críticas feministas

contemporâneas. A seu ver, por essas vias é que estamos assistindo à inclusão, nesse

debate, de temas como racismo, anti-semitismo, imperialismo, colonialismo e a análise

das lutas de classe.

São três as indagações básicas feitas por Lemaire (citada por Holanda,1994) sobre a

história literária, com vistas a contribuir com a pesquisa feminista:

O que aconteceu na história da cultura ocidental que provocou o desaparecimento das ricas tradições feministas? Como foi possível para os homens, cujas culturas orais tradicionais eram menos variadas que

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as das mulheres, estabelecer um monopólio que não possuíam nas culturas orais tradicionais da Europa? Como os homens puderam impor os mitos de sua paternidade cultural exclusiva, na qual, até muito recentemente, todos acreditávamos? (LEMAIRE apud HOLLANDA, 1994, p. 64).

A estudiosa problematiza essas questões para chegar à conclusão de que o discurso

masculino tem alcançado maior visibilidade nas sociedades pelo fato de imperar o

sistema patriarcal em todos os tipos de culturas. Por fim, ela diz que a historiografia

literária feminista traz uma contribuição importante para o cenário contemporâneo na

medida em que traz à baila a discussão de que a história literária tem se apresentado

como um discurso norteador das desigualdades entre os sexos. Lemaire entende que

mudanças culturais, que presumidamente seriam favoráveis a todos, normalmente são

proveitosas para os homens e não para as mulheres.

Dessa forma, ela propõe que o discurso da história literária seja analisado, em princípio,

a partir da condição de ser um sistema de relações de gênero, relacionado diretamente

às estruturas de poder. Essa é a premissa com a qual analisamos as obras de Evaristo

e Chiziane, ou seja, considerando que a análise não pode prescindir do nosso

entendimento de que essas produções se realizam em um território permeado pelas

relações de poder. Estamos falando de um sistema patriarcal, sob o qual a escrita

feminina está tentando dar visibilidade também ao seu discurso, ao mesmo tempo em

que está fazendo contrapontos com ele.

Elaine Showalter (1994), em seus estudos, procura perceber as formas pelas quais

homens e mulheres usam a linguagem. Ela informa que o conceito de uma linguagem

das mulheres é antigo e aparece muitas vezes no folclore e no mito. No caso dos mitos,

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a essência da linguagem das mulheres é o tempero, na medida em que o que se

descreve, na verdade, é “a fantasia masculina da natureza enigmática do feminino”.

(SHOWALTER,1994. p. 36). Ela cita, como exemplo, uma narrativa de Heródoto, que,

ao contar sobre as amazonas, escreveu que elas eram hábeis linguistas e que

“dominavam facilmente as línguas de seus adversários machos, apesar de os homens

nunca terem conseguido aprender a língua das mulheres” (SHOWALTER ,1994. p. 36).

A partir dessas premissas, a pensadora aponta como tarefa para a crítica feminista

dedicar-se em rever o acesso das mulheres à língua, do ponto de vista lexical,

considerando que as palavras podem ser escolhidas em um contexto ideológico e

cultural. Por fim, a teórica considera que a língua é, sim, suficiente para expressar a

consciência das mulheres, e que a possibilidade do seu uso em sua totalidade lhes foi

negada ao longo da história. Estamos convencidas de que a escrita das autoras aqui

analisadas passa, hoje, pela tentativa de superação desse processo de silenciamento e

manipulação do masculino em relação à escrita das mulheres.

A nossa análise de Ponciá Vicêncio e O alegre canto da perdiz se pauta pelo

entendimento de que as narrativas tratam de segmentos populacionais pertencentes a

uma classe que está na base da pirâmide societária, na medida em que está sob

regime de opressão econômica, além da opressão racial e de gênero. Assim,

concordamos com Spivak (1994) quando ela considera que as mulheres que vivem em

espaços descolonizados ainda não estão emancipadas e que a sua relação, no interior

das produções acadêmicas, são complexas, já que elas aparecem como sujeitos

imaginados no cenário da literatura. Para a teórica, é, no entanto, a partir desse olhar

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elitista que “reivindica-se a subjetividade de uma história alternativa, como se ela ainda

não estivesse legível”. (SPIVAK, 1994, p. 191).

São as reflexões apontadas por essas estudiosas que nos levam a insistir que a

produção literária de Conceição Evaristo e Paulina Chiziane são escritas de resistência,

que rasuram os valores canônicos e, dessa forma, falam da história de opressão vivida

secularmente pelas mulheres negras. Ao realizarem esse trabalho, ambas dialogam

com as argumentações de Edward Said sobre a necessidade de as narrativas

proporem uma reflexão ampla que inclua as histórias dos povos marginalizados:

“testemunhar uma história de opressão é necessário, mas não suficiente, a não ser que

essa história seja direcionada para o processo intelectual e universalizada para incluir

os sofredores”. (SAID, 2003, p. 187-188).

Corroborando as ideias de Said, Lobo, ao falar sobre o conceito de escrita de autoria

feminina, defende o que chama de um discurso de alteridade política que, para nós,

caracteriza as obras em estudo. Para a crítica, esse discurso se faz presente “na

medida em que seus representantes se assumam e se declarem como tal, isto é, como

negros, negras, africanos, africanas, ou seja, como parte de uma etnia não prestigiada,

ou como mulheres”. (LOBO, 2012).

Na epígrafe deste tópico, enquanto Conceição Evaristo enfatiza o eu-menina que se

descobre com a vocação para a escrita, Paulina Chiziane confessa que as temáticas

que ela aborda em suas produções incomodam ao público leitor moçambicano pelo fato

de ela ser mulher. Dessa forma, podemos notar que a escrita das duas autoras

apresenta aos leitores os embates vividos pelas mulheres nos dois continentes, e, ao

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fazê-lo, desconstrói uma posição canônica de escrita advinda do campo masculino e

branco.

A ensaísta e escritora Conceição Evaristo dá o seu contributo para que possamos

melhor compreender esse fenômeno:

Observando que o imaginário sobre a mulher na cultura ocidental constrói-se na dialética do bem e do mal, do anjo e do demônio, cujas figuras símbolos são Eva e Maria; e que o corpo da mulher se salva pela maternidade, a ausência de tal representação para a mulher negra acaba por fixá-la no lugar de um mal redimido. [...] O que se argumenta aqui é o que essa falta de representação materna para a mulher negra na literatura brasileira pode significar. Estaria a literatura, assim como a história, produzindo um apagamento ou destacando determinados aspectos em detrimento de outros, e assim ocultando os sentidos de uma matriz africana na sociedade brasileira? (EVARISTO apud MOREIRA e SCHNEIDER, 2005, p. 202).

Os apontamentos da escritora direcionam para o seu empenho em reescrever

criticamente temas que aludem ao universo das mulheres negras. Coadunando com

Evaristo e adensando outros pensamentos, Eduardo de Assis Duarte (2010) acentua

que a obra dela é marcada pela visão interna da mulher afro-brasileira, o que coloca em

xeque o lado feminino da exclusão, como feito secularmente na história da literatura

brasileira. O estudioso assim caracteriza as personagens das escritoras afro-brasileiras:

Nelas encontramos o redirecionamento da voz narrativa que, sem descartar a sexualidade, está empenhada em figurar a mulher não a partir de seus dotes físicos, mas pelas atitudes de luta e resistência, e de sua afirmação enquanto sujeitos. (DUARTE, 2010, p. 34).

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Do ponto de vista da escrita de Paulina Chiziane, buscamos a voz dela para nos

informar que o fato de ser mulher e negra constitui dificuldade para que se afirme como

escritora em seu país:

[...] eu faço a minha luta a partir da condição do feminino, da condição de ser negra. Tem algo que insisto em dizer depois de tanto trabalho – o fato de ser mulher e negra assume um estatuto diferenciado nessa sociedade. Se eu fosse homem, e branco, meu estatuto seria muito alto. Os problemas que eu enfrentei, para me afirmar como escritora, as mulheres mulatas não enfrentaram, os homens brancos muito menos. Daí, eu venho de um histórico de muita luta. O pouco que eu tenho em termos de reconhecimento, embora tenha muito trabalho, é pouco. (CHIZIANE apud DIOGO, 2010, p. 176).

O escritor moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa (2010) endossa o viés da literatura de

Chiziane como sendo do campo do feminino e diz que ela é de extrema importância

para o seu país. Ele reitera o quão as pessoas se assustam com a forma de escrever

de Paulina Chiziane, que lida com assuntos polêmicos, mas não menos importantes

para o entendimento da cultura moçambicana:

A Paulina aparece com uma força que eu acho extraordinária e admiro a garra com a qual ela vive nesse universo feminino. Por vezes nós, na construção literária, pegamos o feminino como personagem, ele tem o seu valor, mas em Paulina ganha uma dimensão que as mentalidades bem conservadoras ficam às vezes meio chocadas. Mas ela entrou num universo literário moçambicano com uma força de certo modo por haver em todos nós uma realidade que nos é comum. (BA KA KHOSA apud DIOGO, 2010, p. 186).

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As reflexões de intelectuais e escritores, bem como o próprio testemunho das duas

escritoras estudadas, são ilustrativas de uma escrita feminizada e permitem-nos

inscrevê-las no rol das escritoras que praticam essa escrita. As perspectivas a partir

das quais elas romanceiam o universo das mulheres brasileira e moçambicana e das

sociedades em que elas vivem, de maneira mais ampla, colaboram para a nossa

percepção dessas mulheres e desses espaços.

1.3 Feminização e resistência

Salientamos uma estratégia literária usada pelas duas escritoras, que é usar como

mecanismo de resistência a loucura das personagens centrais dos dois romances. Em

nossa análise, tal mecanismo de organização textual revela a intenção de denotar o

caráter de resistência dessas personagens femininas, tal qual temos defendido ao

propor esta pesquisa.

No caso da personagem Ponciá, assistimos à aparente loucura dela quando, após anos

vivendo na cidade grande, outrora vislumbrada como um lugar em que se viabilizaria a

mobilidade social para si e para a família, tem seus sonhos frustrados. A mulher não

encontra condições favoráveis para a sua ascensão, ao contrário, é absorvida pelo

processo de desigualdade social no qual os pobres viviam naquela cidade. Trabalha

como empregada doméstica e mora em uma favela. Dessa forma, as condições em que

ela vive são precárias e revelam o processo de exclusão pelo qual passa como afro-

brasileira no período que sucede imediatamente à abolição da escravatura no Brasil.

Essas condições adversas parecem ser o que leva a personagem a se alienar daquela

realidade opressora.

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A relação marital que Ponciá estabelece nos diz também muito do quanto a aparente

loucura ou afastamento da realidade em que se encontra confere a ela um caráter de

resistência em relação aos papéis sociais pré-estabelecidos para a mulher. A postura

alheia da personagem parece nos dizer da sua não aceitação do patriarcalismo e do

machismo. Ponciá não exercia a contento as tarefas domésticas, como cuidar do

marido e da casa, como era esperado dela e das mulheres, de modo geral.

As suas reflexões demonstram ainda a preocupação com a situação estrutural de

desvantagem para o segmento populacional afro-brasileiro representado por ela própria

e o marido:

Nas manhãs, quando o homem de Ponciá saía para a lida diária, ela olhava para ele descendo o morro e seu coração doía. Não, ele também não estava feliz. Pensava, então, em amenizar o sofrimento dele um pouco. Poderia pelo menos tornar a casinha dos dois um lugar prazeroso de viver. Mas que prazer, onde morava o prazer? Às vezes ficava matutando para quem a vida se tornava mais difícil. Para a mulher ou para o homem? (EVARISTO, 2003, p. 55)

Por outro lado, a aparente loucura da personagem Maria das Dores, evidenciada no

fato de ela se abrigar em um tempo mítico, marca a relutância da mulher em aceitar

passivamente o processo de dominação ao qual estava submetida pelo sistema

colonial; pela assimilação, à qual a mãe Defina se submetera, que a fizera excluir a filha

do convívio familiar; e pelo machismo do marido ao qual fora entregue por meio de um

casamento forçado. A personagem, por meio da atitude aparentemente insana pela

qual é retratada, instituiu chaves de leitura para que possamos compreender que ela

resistiu todo o tempo e buscou se desvencilhar das amarras impostas pelo sistema que

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a submetera. As suas reflexões dão conta de esclarecer o papel da mulher que surge

nua, em um local destinado aos homens. Por sua vez, a sua atitude revela um

contraponto em relação à situação de opressão outrora vivido por imposição da sua

mãe. Ao ser insistentemente indagada pela comunidade sobre a sua identidade, a

personagem problematiza:

Quem sou eu? Uma estátua de barro, no meio da chuva. Odeio as roupas que me limitam o voo. Odeio as paredes das casas que não me deixam escutar a música do vento. Eu sou a Maria das Dores. Aquela que desafia a vida e a morte a busca do seu tesouro. Eu sou a Maria das Dores, e sei que o choro de uma mulher tema força de uma nascente. Sei com quantos passos de mulher se percorre o perímetro do mundo. Com quantas dores se faz uma vida, com quantos espinhos se faz uma ferida. Mas não tenho nome. (CHIZIANE, 2008, p. 18).

Podemos extrair, ao analisar esse trecho, o caráter de inconformismo com eventuais

sistemas de subjugo ou dependência, a propalação da liberdade e também a afirmação

da mulher como símbolo da possibilidade para romper, pela sua força, com situações

de amarras. A postura de aparente insanidade mental dessa mulher pode bem ser

entendida como estranhamento de um ambiente opressivo e, também, sinalização de

saída encontrada para o sistema de exclusão.

As reflexões do psiquiatra antilhano Frantz Fanon (1983) sobre o lugar do negro

subalternizado que deseja assumir o lugar do Outro, que é branco e colonizador, são de

fundamental importância para os nossos estudos. O autor, além de analisar o

comportamento dos seus pacientes e narrar as suas interpretações sobre o sofrimento

deles, fala de si também, homem negro que teve dificuldade em construir uma

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identidade após o processo de colonização. Os conceitos de identidade negra e

identidade branca são problematizados por Fanon, que afirma ainda que a colonização

e suas consequências levaram várias sociedades ao adoecimento.

No entanto, a despeito dos estudos empreendidos por Fanon, não creditamos à loucura

patológica o afastamento da realidade encenado na literatura de Evaristo e Chiziane,

por meio das personagens Ponciá e Maria das Dores. A nosso ver, esse distanciamento

é consequência do processo de resistência criado por elas. Pensamos que se trata de

uma fuga das personagens, ou de sua negação a enquadrar-se numa ordem social que

tenta subalternizar o segmento social ao qual elas pertencem.

Antônio Sérgio Alfredo Guimarães (1999) considera que a identificação do sujeito a

uma pertença racial, em todos os lugares, desde há muito tempo, está relacionada, por

um lado, a um desejo de ascensão social e, por outro, à estigmatização ou identificação

feita por Outros. Para o sociólogo, o racismo é uma forma de naturalizar a vida social,

ou de explicar diferenças pessoais, sociais e culturais tendo como referência as

diferenças que são consideradas naturais. Segundo Guimarães, essa forma de

racismo, baseado na naturalização do olhar para justificar as práticas de

subalternização do Outro, devem ser consideradas nas análises sobre a opressão e

subalternização do negro em relação a outras etnias.

Stuart Hall (2003) tem desenvolvido significativas contribuições para que possamos

compreender as relações étnico-raciais nas sociedades. Segundo ele, encontramos um

terreno fértil para a elaboração das diferenças referentes ao afrodescendente até

mesmo nas expressões mais deformadas, transformadas e não autênticas de

representação da cultura negra, por segmentos de outras etnias e por alguns negros. O

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pensador se refere à musicalidade, à oralidade e à fala, entre outras manifestações

culturais, desse segmento populacional, que para ele se apresentam de forma

diferenciada da maneira com a qual a elite tenta formatar/universalizar as relações

sociais. Não obstante, ele argumenta que ainda que haja resistência da cultura negra,

de maneira contestatória, em relação a essa tentativa de formatação, o ser negro ainda

é contraditório para muitos. Talvez possamos ler essas reflexões feitas por Hall mais de

perto na obra de Paulina Chiziane, a partir dos dilemas vividos por personagens como

Serafina e Delfina, que se identificam como negras, mas sentem a necessidade de

terem um modo de vida que os brancos têm.

Consideramos que as literaturas de Conceição Evaristo e Paulina Chiziane se inserem

nessa perspectiva de escritas que visam dar visibilidade às histórias de vida ou às

histórias culturais dos segmentos compostos por mulheres negras no Brasil e em

Moçambique. O trecho abaixo destacado encena a inquietação da menina Ponciá em

relação à manutenção do esquema de posse dos negros pelos senhores que foram

donos de escravos, mesmo com o fim do período escravocrata,

O tempo passou deixando a marca daqueles que se fizeram donos das terras e dos homens. E Ponciá? De onde teria surgido Ponciá? Por quê? Em que memória do tempo estaria escrito o significado do nome dela? Ponciá Vicêncio era para ela um nome que não tinha dono. (EVARISTO, 2003, p.27).

Por sua vez, Chiziane, em O alegre canto da perdiz, critica a dominação colonial

portuguesa em relação aos negros e descreve a resistência dos grupos oprimidos:

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Terra em lágrimas. Gente em debandada, apanhada, acorrentada. Bastonadas de sipaios. Gritos lancinantes de filhos desaparecendo no mapa do tempo. Corpos caindo como fruta madura. Os muzambezi resistindo, avançando, matando e morrendo aos gritos: pátria ou morte, mas nunca a escravatura! (CHIZIANE, 2008, p. 94)

Acreditamos que a escrita de Conceição Evaristo representa o segmento afro-brasileiro

e destacamos a importância de ela ser mulher e negra, o que, para nós, contribui para a

proposição de percursos diferenciados para o caminho da produção da escrita e da

recepção da sua literatura na contemporaneidade. Caminho esse que aponta para

possibilidades de leitura sobre um segmento populacional marginalizado ao longo da

história brasileira, retratado de maneira distorcida pela literatura canônica. Evaristo

aponta que

escrever pressupõe um dinamismo próprio do sujeito da escrita, proporcionando-lhe a sua auto-inscrição no interior do mundo. E, em se tratando de um ato empreendido por mulheres negras, que historicamente transitam por espaços culturais diferenciados dos lugares ocupados pela cultura das elites, escrever adquire um sentido de insubordinação. (EVARISTO, apud ALEXANDRE, 2007, p. 20-21).

Cuti (2010) afirma que a participação do negro como personagem, autor e leitor, na

literatura brasileira, revezava entre a sua representação pitoresca no romantismo e sua

abordagem folclórica no modernismo. Segundo Cuti, o negro só inicia a sua condição

de protagonista das obras escritas no século XX, precisamente, nas últimas décadas,

sobretudo a partir das lutas e reivindicações de movimentos sociais e intelectuais contra

o racismo. Para esse autor, a escrita diferenciada de escritores e poetas negros ou

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comprometidos com a escrita que desvele elementos culturais de origem africana tem

buscado o resgate da dignidade dos afro-brasileiros.

Acrescenta-se a esses dados que caracterizam a escritora brasileira o fato de ser

mulher em uma sociedade cujas referências são de masculinização da produção do

conhecimento e das representações sociais de maneira ampla.

Paulina Chiziane apresenta significativa contribuição para o entendimento da

resistência à sua escrita em Moçambique:

Ainda hoje, a sociedade moderna considera os artistas como seus membros marginais. Ser mulher e ser artista torna-se um verdadeiro escândalo. Escândalo que tive que arriscar e suportar. Nesta sociedade a mulher só pode falar de amor e sexo com outras mulheres e também em segredo. Falar em voz alta é tabu, é imoral, é feio. No meu livro falo da vida, do amor e sexo. Com as minhas mãos acionei uma bomba sobre a minha cabeça. (CHIZIANE, 1994, p. 16).

Lourenço do Rosário (2010) auxilia-nos a compreender a direção da escrita de

Chiziane, que é decerto na linha do comprometimento com os processos socio-

históricos vividos em seu país. Para esse teórico, a escritora integra a geração pós-

independência, que opta por testemunhar a realidade sociocultural, econômica e

histórica vivida. No entendimento dele, Paulina Chiziane testemunha, como escritora, a

realidade do seu país, “apresentando o seu próprio ponto de vista, na busca de

elementos que pudessem contribuir para uma melhor compreensão da nossa

moçambicanidade”. (ROSÁRIO, 2010, p. 129).

A escrita das duas escritoras, como procuramos demonstrar ao longo desta análise,

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aponta diferentes perspectiva para as mulheres. A representação do olhar feminino,

mote primeiro do nosso trabalho, é visto pelas mãos de mulheres negras, oriundas de

lares humildes e de situações de opressão. Dessa forma, a escrita de ambas evidencia

tensas situações estruturais pelas quais passam as mulheres negras no Brasil e em

Moçambique. Por isso, classificamos a sua escrita como de resistência, conforme as

reflexões de Thomaz Bonnici:

No caso da literatura, parece que a tarefa dos escritores oriundos das sociedades pós-coloniais consiste em teorizar extensivamente a problemática do poder e do estado pós-independência. A literatura descolonizada passa a ser polifônica em lugar de monocêntrica, híbrida no lugar de pura, carnavalesca em lugar de persuasiva. Caracteriza-se pela narrativa fragmentária, pelos incidentes duplicantes, pelos comentários metaficcionais, pela cronologia interrompida, pelos gêneros mistos. Além disso, existe um problema que poderia ser chamado “existencial”. (BONNICI, 2009, p. 274 ).

O teórico contribui com os nossos estudos sobre a produção literária das duas

escritoras na medida em que, ao analisar o modo de escrever de escritores inseridos

nas sociedades pós-coloniais, destaca o caráter delas de rasurar a forma de escrita

canônica, apresentando textos fragmentados e comentários metaficcionais que permite

ao leitor compreender melhor as fissuras contidas nas estruturas hegemônicas de

poder.

1.4 Mulheres negras na perspectiva da literatura menor

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Defendemos, nesta pesquisa, o argumento segundo o qual as escritas de Conceição

Evaristo e Paulina Chiziane resultam de um processo emancipatório do conhecimento e

da arte. Por isso, fazem parte do processo de resistência ao modelo opressor que

vigorou, por alguns séculos, nas sociedades. O que outrora era pensado como unidade

cultural engendrada no conceito de nação e das línguas pátrias, tem sido alterado a

cada dia e a literatura dessas escritoras constitui exemplo desse cenário de mudanças.

(LIMA, 2002).

A existência de múltiplas culturas, dispersas em países, cidades, regiões, comunidades

e bairros, condiciona uma necessidade de que haja alteração nos esquemas de

representação em vários campos de conhecimento, inclusive o dos estudos literários.

As escritas de Conceição Evaristo e Paulina Chiziane, dentre tantas outras escritas

contemporâneas, integram-se na ordem das abordagens que não se enquadram nos

recursos formais da literatura canônica, e, ao contrário disso, procuram dialogar

diretamente com aspectos relacionados à vida social, sem desprezar a dimensão

estética, com um viés nitidamente politizado, como propõem Gilles Deleuze e Félix

Guattari (2002) acerca da literatura menor.

Para Deleuze e Guattari, a literatura menor é aquela em que todas as manifestações

são políticas, ao contrário das grandes literaturas, nas quais a abordagem é feita sob

uma perspectiva individual. No universo da literatura menor, o espaço é exíguo,

permitindo que todas as questões individuais vinculem-se à política e à história. Os

estudiosos propõem que, nessa literatura, as questões familiares imbricam-se com as

questões comerciais, econômicas, burocráticas, jurídicas, o que é determinante para

valorá-las.

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Deleuze e Guattari definem a literatura menor a partir de três eixos: não se trata de uma

literatura escrita em uma língua menor, e sim da literatura que uma minoria constrói

dentro do sistema de uma língua maior, articulando necessariamente uma ação de

desterritorialização. Nessa direção, as ações provocadas pela intensidade poética de

Conceição Evaristo e Paulina Chiziane em seus romances, ao desenraizarem,

deslocarem situações das realidades sociopolíticas das sociedades em que vivem para

o plano literário, levam-nos a aproximá-las cada vez mais do campo da literatura menor.

Chiziane, no romance em análise, corrobora com esse entendimento quando insere, na

voz da narradora, a seguinte afirmação: “a beleza da história depende da tonalidade da

voz, dos gestos da contadora. Contar uma história significa levar as mentes no voo da

imaginação e trazê-las de volta ao mundo da reflexão”. (CHIZIANE, 2008, p. 22).

Deleuze e Guattari ainda definem a literatura menor como aquela que necessariamente

enreda os conflitos domésticos às questões políticas que permeiam as relações

societárias. E arrolam, como outra característica da literatura menor, o sentido de

coletivo que permeia os escritos. Prevê-se que não existem uns sujeitos iluminados

escrevendo acerca de assuntos distanciados da vida real para que outros fiquem

impressionados, e sim uma enunciação coletiva. A literatura menor, nessa ótica, é

considerada revolucionária e “o enunciado não aponta para um sujeito de enunciação

que constitui a causa, nem para um sujeito do enunciado que seja o efeito” (DELEUZE

E GUATTARI, 2003, p. 40).

As escritas literárias de Conceição Evaristo e Paulina Chiziane são permeadas por suas

condições de mulheres, negras, historicamente alijadas de partilhar espaços destinados

a pessoas/homens brancas(os) e/ou bem letradas(os). Isso permite que elas sejam

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incluídas na categoria de intelectuais que interrogam a literatura canônica, dão voz aos

setores não privilegiados da sociedade e reafirmam os seus compromissos de não se

aliarem aos interesses elitistas de manutenção da supremacia de determinados valores

socioculturais. São as próprias escritoras que corroboram para a solidificação das

nossas assertivas. O trecho abaixo descreve uma parte da infância pobre de Evaristo,

então moradora de favela, no convívio com a vizinhança:

Na origem da minha escrita, ouço os gritos, os chamados das vizinhas debruçadas sobre as janelas, ou nos vãos das portas contando em voz alta uma para as outras as suas mazelas, assim como as suas alegrias. Como ouvi conversas de mulheres! Falar e ouvir entre nós era talvez a única defesa, o único remédio que possuíamos. Venho de uma família em que as mulheres, mesmo não estando totalmente livres de uma dominação machista, primeira a dos patrões, depois a dos homens, seus familiares, raramente se permitiam fragilizar (EVARISTO apud ALEXANDRE, 2007, p. 19- 20).

A escritora aponta, dessa forma, a maneira como se aproximou da consolidação de

uma escrita marcada pelo feminino e pela necessidade de retratar o universo das

mulheres negras excluídas de melhores oportunidades na sociedade brasileira.

Como representante da literatura feminina moçambicana, Chiziane afirma que apenas

registra as experiências que vivencia no dia-a-dia e no seu trabalho como assistente

social. A escritora explica-nos o porquê da centralidade da sua escrita relacionada às

questões do feminino:

Os homens e as mulheres têm participação diferentes na sociedade e, por isso, é diferente também a escrita do homem e da mulher. As

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pessoas falam em uma literatura “neutra”, mas eu não acredito. Acho que a maneira de ver e de sentir é diferente, entre homens e mulheres. E os homens escrevem há muito mais tempo. Na Bíblia, por exemplo, as mulheres não estavam presentes. Eu toco em alguns aspectos - a sexualidade, o nu - do ponto de vista das mulheres. É como se eu estivesse contando aqueles segredos que as mulheres falam umas nos ouvidos das outras. (CHIZIANE, 1994, p.15)

Qualquer sociedade possui valores e constrói visões ordenadas de suas experiências,

com as quais os sistemas de organização constituem uma relação dialética, incompleta,

com abertura para a incorporação de novos valores. Pelo que se depreende do estudo

das produções literárias de Evaristo e Chiziane, a escrita das duas apresenta uma forte

resistência aos marcos teóricos canônicos defendidos pelas elites brancas, além de se

apresentar como uma proposição que converge para o reconhecimento das

individualidades, das diferenças.

As imagens de mulher figuradas nas personagens de Ponciá Vicêncio, de Conceição

Evaristo, e pelas personagens Serafina, Maria das Dores, Maria Jacinta e Delfina, da

obra O alegre canto da perdiz, de Paulina Chiziane, sugerem a ideia de sujeitos

femininos negros que lutam cotidianamente pela sua sobrevivência. Para além da luta

pela sobrevivência individual, elas criticam e denunciam o viés opressor das sociedades

brasileira e moçambicana. Cada uma dessas personagens cumpre esse papel a seu

modo e de acordo com seu tempo e contexto social.

As duas escritoras suscitam elucubrações e provocam o curso da literatura atual para a

busca de um equilíbrio entre a alta cultura e as culturas minoritárias no campo dos

estudos literários. Essa perspectiva prevê que as identidades individuais devam se

conformar no encontro com os interesses coletivos dos que buscam reconhecimento e

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valorização para as suas manifestações culturais e suas tradições. O pressuposto,

nesse caso, é o de que a literatura permite ao indivíduo adquirir um sistema de valores

e de regras de conduta que possa situá-lo no mundo, de tal modo a lhe permitir avaliar

seu lugar nele.

Assim, as histórias de vida de afro-brasileiros e moçambicanos são encenadas nos dois

romances em estudo, de modo a permitir ao leitor uma melhor compreensão das duas

sociedades, no que se refere às tensões étnico-raciais e de gênero presentes nelas.

São romances fulcrais para a construção que propomos nesta tese, pois, como

literatura menor, constituem-se como espaços discursivos que permitem repensar o

Brasil pós-escravocrata e Moçambique pós-independência, possibilitando a

recuperação de vozes e histórias do passado obliteradas ao longo de um tempo de

opressão.

1.5 Nuances do feminino na escrita de Evaristo e Chiziane

Decerto há uma preocupação sociológica no tratamento da literatura, embora não se trate de uma visão determinista do fenômeno literário. Este não se subordina à história de uma sociedade, sendo dotado de uma especificidade própria que lhe permite transcender os saberes ditos científicos, uma vez que seu universo é simbólico. Entretanto, justamente por não ser o “social” a sua principal meta mas sim o estético, a literatura é capaz de expressar agudamente os anseios, angústias, ideologias de toda uma sociedade. É capaz também de desvelar eloquentemente seus silêncios, revelando aquilo que a sociedade, ou o escritor, não ousa dizer. (GOMES, 1988, p.4 )

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Segundo Lucien Goldman (1967, 1973), a obra literária deve ser analisada a partir do

grupo social em que foi criada e não do indivíduo que a criou. Ele considera ainda que a

escrita deve ser lida e entendida a partir das influências que o escritor recebe do

contexto social no qual está inserido, pois elas se refletem na criação artística. Como já

dissemos, os romances de Conceição Evaristo e Paulina Chiziane traduzem as

vivências experimentadas por elas e suas comunidades de pertencimento. Acreditamos

que as escritoras observam a sociedade, estando no seu interior, e fazem importantes

reflexões críticas acerca da sua estrutura. Pensamos que as obras ficcionais

elaboradas pelas duas escritoras possibilitam ao grupo ao qual elas se referem

entender melhor as suas próprias ideias, cultura, pensamentos e sentimentos.

O nosso esforço, nesta tese, é perceber como determinados fenômenos que formam a

complexidade das sociedades brasileira e moçambicana estão sendo encenados na

produção literária de Conceição Evaristo e Paulina Chiziane. Ou seja, compreender a

relação entre sociedade e literatura nos termos propostos por Lima, entendendo que as

produções literárias “não são a imagem da sociedade, mas apenas também a contém”

(LIMA, 2002, p. 674).

Antonio Candido (1976) considera que a literatura contribui com a possibilidade de que

possamos formar uma consciência nacional.

Também o nosso olhar, ao analisar a literatura das escritoras nesta pesquisa, acredita

que a sua escrita se constrói a partir da percepção de que a literatura pode contribuir

para a tomada de consciência nacional. Por conseguinte, aliamo-nos ainda às reflexões

trazidas por Maria Nazareth Soares Fonseca, quando afirma que:

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A literatura, mesmo que legislada por outras ordens, pode ser uma estratégia capaz de desfazer as máscaras da exclusão construídas pela sociedade. Valendo-se desta estratégia, as escritoras negras almejam explorar outras potencialidades que, por vezes, são desestimuladas nas pessoas que precisam enfrentar as armadilhas da exclusão a elas impostas. (FONSECA, 2009, p. 312).

Na obra Ponciá Vicêncio, a história centra-se inicialmente em torno da personagem Vô

Vicêncio e de sua família, que foram mantidos escravizados, assim como muitos negros

e negras da região em que moravam, enriquecendo o Coronel, quando deveriam estar

construindo suas vidas de maneira autônoma. A personagem-narradora manifesta a

sua indignação com a situação em que a família encontrava-se e demonstra a

necessidade de manter a veia do inconformismo em relação a uma história de opressão

que atravessa os tempos e persiste até o presente. Por isso questiona:

De que valeria o padecimento de todos aqueles que ficaram para trás? De que adiantara a coragem de muitos em escolher a fuga, de viverem o ideal quilombola? De que valera o desespero de Vô Vicêncio? Ele, num ato de coragem-covardia, se rebelara, matara uns dos seus e quisera se matar também. O que adiantara? A vida escrava continuava até os dias de hoje. Sim, ela era escrava também. Escrava de uma condição de vida que se repetia. Escrava do desespero, da falta de esperança, da impossibilidade de travar novas batalhas, de organizar novos quilombos, de inventar outra nova vida (EVARISTO, 2003, p. 84).

Assim, o que lemos na obra de Evaristo é a figuração de uma mulher negra que tenta

burlar a dinâmica do ciclo de violência e exclusão social no qual sua história foi inscrita.

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A protagonista busca a alfabetização como possibilidade de redefinir o rumo da sua

vida e de sua família, e para tanto tem o apoio da mãe: “Era melhor deixar a menina

aprender a ler. Quem sabe, a estrada da menina seria outra.” (EVARISTO, 2003, p. 25).

Ponciá Vicêncio persegue o ideal de ascensão social, que é uma marca de resistência

que detectamos na obra, e também de busca da liberdade, de livrar-se de uma vida

miserável, marcada pela situação desumana de exploração material e psicológica em

que vive.

É patente no romance a luta de uma mulher negra que, com ousadia, rompe os

parâmetros racistas e patriarcais que marcam a sociedade brasileira. Embora envolvida

em um contexto sociocultural que acentua a perenização de um sistema que submete

negras e negros a uma condição subalterna, a protagonista busca a insurreição em

relação a esse lugar de desvantagem. Ponciá Vicêncio tenta atravessar uma linha

imaginária que persiste em remetê-la ao lugar de exclusão reservado às mulheres

negras. Dessa forma, ela simboliza a resistência às formas de opressão que se

manifestam por meio da exploração de gênero, raça e classe. Portanto, a narrativa

permite-nos acreditar na possibilidade de articulação desse sujeito feminino,

protagonista, com a perspectiva histórica e memorialística que marca a sua

representação.

Ao assumir o lugar de crítica literária, além de escritora, Conceição Evaristo informa-

nos que

Ciente de que a literatura não pode ser considerada como um fiel retrato da sociedade em que é produzida, não se pode afirmar, entretanto, que

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o discurso literário nasce e circula imune e impune ao meio em que foi criado. No ato criativo de “imitação da vida”, movimento de discordância e/ou de concordância com a existência que lhe é consentida, ou com aquela que a sua percepção lhe permite alcançar, o sujeito autoral acaba por colocar no texto sinais reveladores da constituição de uma sociedade em determinado momento histórico. (EVARISTO apud RUFFATO, 2009, p. 19 ).

Conceição Evaristo afirma ainda que, entre as funções da literatura, em seu poder de

articulação e de imposição de um certo discurso, está o desvendamento das

representações literárias, que não estão disponíveis somente para as classes

hegemônicas, e o exercício do poder de representar o Outro. Para a autora, uma

maneira ingênua ou pouco crítica de enxergar a produção literária pode ser a causa de

não se perceber que determinadas representações literárias funcionam como

mecanismo de exclusão de certos indivíduos ou grupos. Dessa forma, Evaristo acentua

as últimas décadas do século XX como o período em que se ampliam as escritas sobre

o negro e/ou do negro, e ainda, as escritas sobre e da mulher negra. Tal movimento é

descrito por Conceição Evaristo ao apontar que

como um campo simbólico por excelência, cuja materialização se dá pela linguagem com todos os seus sistemas sígnicos e ideológicos, a literatura nos oferece a oportunidade de apreensão de um imaginário construído acerca do sujeito negro na sociedade brasileira. Mesmo como fenômeno específico, percebemos um discurso literário que, coincidentemente, ao construir seus personagens negros, o faz sob a mesma ótica do pensamento e das relações raciais brasileiras, do Brasil colônia à contemporaneidade. (EVARISTO apud RUFFATO, 2009, p. 20)(EEE

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Passado mais de um século em relação à localização dos problemas relacionados à

literatura que tem como enfoque o negro, a escrita de Conceição Evaristo contribui para

a nossa compreensão acerca das tramas subjacentes às relações societárias no

tocante às mulheres negras.

Constância Lima Duarte (2009) aponta que a obra de Conceição Evaristo colabora para

o nosso conhecimento acerca do binômio gênero e violência no que se refere a

mulheres no Brasil. Para a pesquisadora, Evaristo pontua poeticamente até mesmo as

passagens mais grotescas pelas quais passam as personagens pertencentes a um

grupo social oprimido e transporta ao leitor a ideia de que a cor da pele das

personagens envolvidos nas tramas revela o seu processo de exclusão.

Na perspectiva da teórica, a escritora em questão acentua as mazelas impingidas às

pessoas oriundas da classe considerada menos favorecida, independente da posição

que ocupa, - empregada doméstica, mulher de bandido, dona-de-casa ou criança - são

representadas literariamente com a expressão de injustiça permeando toda a escrita.

Para Duarte (2009), na tríade gênero, classe, e etnia observam-se as bases para a

leitura e compreensão da escrita de Evaristo como uma literatura “assumidamente

negra, ao mesmo tempo projeto político e social, testemunho e ficção, que inscreve-se

de forma definitiva na literatura nacional” (DUARTE, 2009, p.322).

A obra literária de Conceição Evaristo é marcada pela ressignificação e pelas

enunciações negras. Em seus escritos, os afro-brasileiros são o mote de sua marca de

resistência e contestação em relação à subalternidade e opressão vividas por esse

segmento social no passado. Suas palavras, permeadas por memórias, possibilitam-

nos repensar os lugares de representação aos quais os sujeitos negros são relegados

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em nossas sociedades. Evaristo, indubitavelmente, além de criar uma escrita negra,

elabora elucubrações sobre mulheres negras, o que é de crucial importância para os

propósitos da nossa pesquisa.

Fonseca (2009), ao analisar o poema “Vozes- mulheres”, de Conceição Evaristo,

publicado nos Cadernos Negros 13, que apresentamos na introdução do capítulo,

informa-nos que “ele recupera a trajetória de várias gerações de mulheres negras, nas

quais se encena a subserviência imposta e vivida pela bisavó e pela avó”. (FONSECA,

2009, p. 301). Ao demonstrar a resistência de mulheres afro-brasileiras, o poema

encena literariamente a possibilidade de transmutar a situação de opressão de outrora,

vivida pelos escravos, que foram trazidos em um porão de navio da África para o Brasil.

Eduardo de Assis Duarte (2007) verticaliza essa leitura feita por Fonseca em relação à

encenação de personagens negras. Desta feita, ele focaliza os romances produzidos

por escritoras negras. O autor sinaliza que Evaristo tem, como forte herança, uma

linhagem memorialística presente na literatura afro-brasileira e uma fala diaspórica de

“condenados da terra” como Maria Firmina dos Reis e Carolina Maria de Jesus,

escritoras negras do passado com as quais Evaristo dialoga de forma sinergética,

descolada do espírito de nacionalidade que marca uma parte significativa da literatura

canônica. Para Duarte, o romance Poncia Vicêncio é um bom exemplo de que a

literatura de afrodescendentes não se restringe ao conto e à poesia. O autor conclui

que o romance em questão trata de

tema vinculado à presença desse segmento nas relações sociais vividas no país, a partir de uma perspectiva identificada politicamente com as

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demandas e com o universo cultural afro-brasileiro e destacando ainda o protagonismo negro nas ações, em especial aquelas em que defronta com o poder e com seus donos, não há dúvida de que Ponciá Vicêncio não só preenche tais requisitos, como ocupa o lugar supostamente vazio do romance afro-brasileiro. (DUARTE, 2007, p. 27).

Para o crítico, a narrativa de Evaristo é o reflexo de uma costura que envolve história

não-oficial, memória individual e coletiva com invenção literária, tal como fez a escritora

Maria Firmina dos Reis com o romance Úrsula, de 1859. Segundo Eduardo de Assis

Duarte, a obra de Conceição Evaristo releva por apresentar o universo feminino

específico, marcado pela etnicidade, que provém da sua afrodescendência. Mas

também, afirma Duarte, a escrita dessa autora é tocada pela condição de ser “mulher

negra num país que faz dela vítima de olhares e ofensas nascidas do preconceito”

(DUARTE, 2007, p. 28). O autor conclui que Evaristo apresenta, em seu romance

Ponciá Vicêncio, marcas indeléveis do gênero feminino, descrito em forma de

testemunho, mas que também supera a condição de vítima pela elaboração da ficção.

Evaristo conduz a personagem principal, que dá nome ao livro, desde a sua infância até

a idade adulta. A obra revela-nos situações permeadas por exclusão racial, de gênero e

de classe. Pensamos que a personagem Ponciá dá voz aos vencidos, que encontram

na literatura um dos poucos caminhos possíveis para a construção de um mundo seu,

onde os compassos que dão vida a esse universo foram delineados a partir de suas

próprias experiências. Na narrativa, Ponciá reclama por suas origens e por sua história,

silenciada por quem apenas registrou acontecimentos em que, na maioria das vezes, a

elite branca masculina esteve presente.

Ponciá vive, quando criança, junto com os pais e um irmão mais velho, na propriedade

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rural que sempre pertencera ao Coronel Vicêncio, cujo sobrenome não só indica que

ele é o dono das terras, mas também das pessoas que vivem naquele espaço. A marca

do sobrenome do Coronel nos nomes dos descendentes dos antigos escravos da

fazenda substitui a antiga tatuagem feita a ferro nos seus corpos. Em sua marca de

resistência à herança escravocrata, Ponciá rebela-se desde cedo em relação a essa

condição de subalternidade. A menina não gostava do nome que recebera em batismo,

o que revela seu desejo de romper com uma história opressiva.

O sistema opressor é apresentado não só por seu incômodo em relação ao nome que

lhe foi imposto, mas também por sua decisão de mudar-se para a capital em busca de

melhores oportunidades e de rompimento e libertação no que se refere à condição de

subserviência em que viviam Ponciá e seus familiares na relação com o Coronel

Vicêncio. É possível perceber no romance o desejo da personagem de transformar sua

realidade e a ousadia de uma mulher negra rompendo com referenciais racistas e

patriarcais constitutivos da sociedade:

Apesar do desconforto, da fome, da broa de fubá que acabara ainda no primeiro dia, do café ralo guardado na garrafinha, dos pedaços de rapadura que apenas lambia, sem ao menos chupar, para que eles durassem até o final do trajeto, ela trazia a esperança como bilhete de passagem. Haveria sim, de traçar o seu destino. (EVARISTO, 2003, p. 36).

Ponciá consegue um emprego de doméstica, adequando-se ao padrão imposto para as

mulheres negras, pobres, sem escolarização, que vivem na cidade. Mora em uma

favela, em um barraco comprado às custas de muito suor, mas é envolvida por um forte

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sentimento de ausência e de busca de liberdade em relação à situação de exclusão

social. Esse sentimento permanece ao longo de toda a narrativa.

Outra situação que denota o caráter de resistência do romance é a explicação

apresentada para o braço partido de Vô Vicêncio. O fato de o avô de Ponciá ter sido

mantido nas terras do Coronel, que era o proprietário dele, como mão-de-obra para o

canavial, da mesma forma como ocorria no regime escravocrata, causava ao velho

profunda revolta. Agravava essa situação a venda de três filhos de Vô Vicêncio pelo

dono das terras, que desconsiderou o benefício a que eles tinham direito, conforme a

Lei do Ventre Livre. Em um surto de ira e revolta contra essa opressão, Vô Vicêncio

mata a companheira com uma foice e decepa a própria mão, objetivando suicidar-se, o

que não consegue por intervenção dos vizinhos. O inconformismo diante da condição

de opressão é a principal marca dessa personagem. A reação ao sistema é de tal

ordem que leva o avô de Ponciá ao descontrole emocional e psicológico.

A loucura do avô e, por herança, a de Ponciá, talvez possa ser considerada como uma

ausência, um vazio de sentido diante da situação imposta. No caso do avô, pela

manutenção de si e de seus filhos na condição de trabalhadores escravos nas terras do

Coronel. Em relação a Ponciá, pensamos ser possível considerar a perda de

consciência como resistência a um destino que, de início, apresentava-se irreversível: a

sua condição de mulher negra num mundo racista e machista.

Nas primeiras vezes que Ponciá Vicêncio sentiu o vazio na cabeça, quando voltou a si, ficou atordoada. O que havia acontecido? Quanto tempo tinha ficado naquele estado? Tentou relembrar os fatos e não sabia como tudo se dera. Sabia apenas que, de uma hora para outra,

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era como se um buraco abrisse em si própria, formando uma grande fenda, dentro e fora dela, um vácuo com o qual ela se confundia. Mas continuava, entretanto, consciente de tudo ao seu redor. (EVARISTO, 2003, p. 45).

Paulina Chiziane, escritora e ativista, descreve, por meio de uma entrevista concedida

ao Jornal Notícias (2011), um pouco das limitações da mulher daquele país para

construir seu processo de escrita. Segundo a autora, essas limitações impõem

desenvolver a capacidade de adquirir e superar o domínio da língua, da bibliografia, a

despeito dos elementos pouco acessíveis que condicionam a presença da mulher na

literatura, e que torna de início o homem o único indivíduo credenciado para escrever.

(CHIZIANE, 2011). A escritora atesta que escrever um livro é uma aventura, pois nunca

se sabe o que irá acontecer em termos de recepção, e isso, sem dúvida, faz imperar o

mito do medo.

Ela lembra o período histórico de Moçambique em que escritores que são suas

referências para a escrita questionadora, como Noémia de Sousa, Rui Nogar, José

Craveirinha e Albino Magaia, foram reprimidos pelo governo colonial. Relativamente à

sua experiência de pós-publicação, Paulina Chiziane afirma que, nos dias atuais, não

ocorrem prisões motivadas por publicação de obras, mas existem as reações negativas,

que podem desmotivar quem publica.

Quando lancei O sétimo juramento fui criticada e conotada com coisas que se calhar nem pratico, mas porque mergulhei no assunto, com profundidade, conotaram-me com elas. Chamaram-me inclusive promotora de obscurantismo, aquilo que se pretende combater. Com o livro Balada de amor ao vento aconteceu a mesma coisa. Houve gente

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que tentou dizer que eu teria escrito a minha própria história e muito mais coisas. (CHIZIANE, 2011, p. 4).

Lourenço do Rosário (2010) mostra-se surpreendido com o nível de feminismo presente

na escrita literária de Chiziane e confessa não acreditar que essa forte marca resulte do

fato de a escritora povoar o cenário literário com personagens femininos. O teórico

argumenta que Chiziane apresenta um corte com a predominância dos cenários

habituais de leitura com a qual os moçambicanos estão vinculados no terreno da

escrita, sobretudo no que se refere ao ordenamento no campo social, familiar e mental.

Em suas reflexões, Rosário informa-nos que quem normalmente dá o tom, nos cenários

público e privado, sociais e familiares, é um grupo elitista e que, na maioria das vezes,

essa elite é masculina. Sendo assim, embora o país esteja assistindo a vários

movimentos de resistência, a escrita no feminino permanece, de maneira geral,

silenciada. Nesse sentido, a escrita de Chiziane rasura tal status ao apresentar, do

ponto de vista da escrita feminina, uma visão do mundo que interroga a ordem das

coisas substanciadas em justificações de natureza histórico-cultural.

A esse respeito, o escritor Mia Couto (2010) afirma que Paulina Chiziane enfrentou

grandes dificuldades, até mesmo uma “guerra”, por escrever em uma sociedade

extremamente machista e preconceituosa, em que os pilares da tradição possuem

grande peso. Couto afirma ainda que ela foi hostilizada em várias ocasiões, tratada com

desdém e foi objeto de uma campanha que fez com que ela se retirasse

estrategicamente para outra província, saísse da capital para tentar se fortalecer e se

distanciar dos ataques em relação à sua postura literária de escrever sobre o universo

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feminino e sua ousadia de se afirmar no campo da literatura, sendo mulher. (COUTO

apud Diogo, 2010).

Mia Couto considera que a saída de Chiziane da capital Maputo em direção ao norte do

país foi favorável, pois possibilitou que ela fizesse uma imersão em experiências

culturais diferenciadas e que não alcançam visibilidade no sul do país. A obra O alegre

canto da perdiz, por exemplo, é fruto do mergulho de Chiziane no universo das

mulheres da região onde ela permaneceu por um tempo, como estratégia para recuar

dos ataques à sua escrita. As tradições do país são mantidas, na maioria das vezes,

nas áreas rurais, nos campos, onde se encontra inclusive a prática da poligamia. Sendo

assim, a escritora, segundo Couto, obteve um fértil campo para elucubrações que,

posteriormente, foram engendradas em sua escrita.

Em relação à obra O alegre canto da perdiz, objeto de nosso estudo, Nataniel

Ngomane (2008) considera que

assuntos polêmicos e controversos como o racismo e a assimilação, muito caros aos povos africanos e à humanidade, são aqui postos em discussão e colocados em confronto de forma destemida a partir de um olhar interno, africano, que traz à baila questões que tem escapado à historiografia africana e à pena dos seus escritores. O casamento prematuro, de mistura com a prostituição infantil, cruzam-se com conflitos conjugais e de gerações, surgindo como fenômenos que sustentam jogos de interesses de progenitores preocupados apenas com a sua ascensão social ou com o pagamento de dívidas contraídas a credores poderosos, sendo igualmente dissecados com a ousadia que caracteriza a Paulina do Niketche. (NGOMANE, apud CHIZIANE, 2008, p. 340).

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Nataniel Ngomane (2008) lembra que Paulina Chiziane, autointitulada contadora de

histórias, permite-se sair da roda à volta da fogueira e apresenta-se como romancista

analisando, observando, captando e estudando as complexidades densas de

Moçambique e nos deleitando com a oportunidade de compreender melhor o universo

feminino dentro daquele país.

O crítico considera que a escritora escolheu o caminho de enfocar e privilegiar, em sua

obra, a interação contraditória das classes e agremiações sociais e mostra os

mecanismos internos de exploração, de coerção e dominação presentes no país, além

de dar visibilidade aos conflitos concernentes ao choque de múltiplos interesses e

desvelar as realidades concretas de Moçambique.

Por essa escolha, atesta Ngomane que o romance O alegre canto da perdiz leva o

leitor a se deparar com os mais variados mitos de origem matriarcal africanos, as

perversas relações entre dominados e dominadores, os choques de interesses, as

relações de coerção e exploração, os conflitos intra e interrétnicos, por meio da criação

de personagens femininas nas quais é possível detectar alegrias, tristezas, prazeres,

sonhos da alma feminina, mas, sobretudo, nas quais é possível vislumbrar o mito de

origem matriarcal e, a partir dele, concluir que do seu útero partiram pelo mundo

diversos grupos étnicos que compõem o planeta. Ngomane conclui que

ao revisitar os mitos de origem matriarcal, seja do ponto de vista das personagens como unidades narrativas individuais seja mesmo como unidades colectivas, Paulina parece sugerir, pois, uma necessária actualização dessa componente fundamental da História da África, isto é, do seu continente como berço da humanidade,e, de um modo mais particular, da realidade de algumas sociedades africanas como a zambeziana, por exemplo, e outras do Norte de Moçambique -, no que

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toca à sua organização social, considerada a sua base matriarcal/matrilenear. (NGOMANE apud CHIZIANE, 2008, p. 341-342).

Por meio das personagens negras Maria das Dores, Maria Jacinta, Serafina e Delfina,

Paulina Chiziane permite-nos reflexões acerca da sociedade moçambicana com base

nas figurações do universo feminino e de situações antropológicas e sociológicas que

denotam o imaginário social e cultural de Moçambique. Assim, o romance atende ao

propósito da autora de, por meio da literatura, exprimir o quadro de dilemas e situações

de opressão pelos quais passam as mulheres negras moçambicanas.

A personagem Delfina é uma voz feminina que reverbera a situação histórico-social

vivida por muitas mulheres negras desde o período colonial até a pós-independência e

demonstra que a prática feminina, na sociedade moçambicana, é marcada pela

submissão a uma estrutura de poder masculino, seja ele do homem branco colonizador

ou do homem negro. Não obstante, a personagem se demonstra lúcida ao reconhecer

esse lugar de imposição de valores, cria estratégias de sobrevivência no campo das

relações homem-mulher e também do social, ao mesmo tempo em que revela ao leitor

um pouco do universo multicultural moçambicano:

Sou das que hibernam de dia, para cantar com os morcegos a sinfonia da noite, sou feiticeira. Tive todos os homens do mundo. Dois maridos, muitos amantes, quatro filhos, um prostíbulo e muito dinheiro. O José, teu pai negro, foi a instituição conjugal com que afirmei aos olhos da sociedade. O Soares, teu padrasto branco, foi a minha instituição financeira. O Simba, esse belo negro, foi a minha instituição sexual, o meu outro eu de grandezas imaginárias, que me deixou para ser teu marido. (CHIZIANE, 2008, p. 44).

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É perceptível o jogo de interesses construído pela personagem Delfina, que escolhe,

dentro dos limites impostos para uma mulher, com qual homem se deitará, e ainda, se o

fará por amor, por afinidade sexual ou por interesse econômico. Em todas essas

escolhas está presente o caráter de resistência e demonstração de não passividade de

uma parcela da mulher negra moçambicana - ou mais especificamente da mulher da

região da Zambézia, se considerarmos que, no romance Niketche: uma história de

poligamia, Paulina Chiziane mostra como as mulheres da Zambézia são menos

submissas do que as da região Sul de Moçambique. Esses são esquemas de

representação que nos permitem compreender o universo das mulheres no contexto

colonial e pós-colonial daquele país, sobretudo na região da Zambézia, província no

centro de Moçambique, onde a escritora se refugiou em busca de recolha das vivências

femininas para a sua escrita.

Nessa perspectiva, o comportamento da personagem Delfina acena para uma

constante revisão dos olhares da sociedade sobre a tradição, especialmente no que se

refere à mulher. A personagem que aparenta, inicialmente e em alguns momentos, ser

um sujeito passivo à tradição, interroga-se e busca a sua reconstrução individual por

caminhos nem sempre ortodoxos.

É importante ressaltar, na construção dessa personagem, a consciência do espaço

ocupado por mulheres negras oprimidas e a não aceitação do lugar de vítima, de

subalternizada ou de inferiorizada em que são comumente colocadas as mulheres da

Zambézia e, quiçá, de todo o país.

2. LITERATURA E GÊNERO

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2.1 Resistência e fortalecimento da mulher em Ponciá Vicêncio

De mãe

O cuidado de minha poesiaAprendi foi de mãemulher de pôr reparo nas coisase de assuntar a vida.A brandura de minha falaNa violência de meus ditosganhei de mãemulher prenhe de dizeresfecundados na boca do mundo.Foi de mãe todo o meu tesouroveio dela todo o meu ganhomulher sapiência, yabá,do fogo tirava águado pranto criava consolo.Foi de mãe esse meio risodado para esconderalegria inteira e essa fé desconfiada,pois, quando se anda descalçocada dedo olha a estrada.Foi mãe que me descegouPara os cantos milagreiros da vidaapontando-me o fogo disfarçadoem cinzas e a agulha dotempo movendo no palheiro.Foi mãe que me fez sentiras flores amassadasdebaixo das pedrasos corpos vaziosrente às calçadase me ensinou,insisto, foi elaa fazer da palavraartifícioarte e ofíciodo meu cantode minha fala.

(EVARISTO, 2009, p. 32)

Esse poema nos oferece uma dimensão da densidade da escrita de Evaristo no que se

refere à resistência de mulheres afro-brasileiras. O eu-lírico informa que da mãe a filha

fez uma recolha de lamentos ou emudecimentos em relação à situação de opressão. A 72

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palavra escrita, sem cegueira, é usada pela poetisa em prol da superação das agruras

passadas e em busca da construção de um caminho de libertação.

Por seu turno, o romance Ponciá Vicêncio encena e revela a herança memorialística

das mulheres negras em uma sociedade engendrada hierarquicamente por formas que

privilegiam referenciais patriarcais e racistas. A narrativa é protagonizada por mulheres

fortes, que costuram toda a trama e enredam aos seus dilemas a vida de todos em

torno de si. Ainda que Ponciá seja a personagem principal, não podemos perder de

vista o papel fundamental de sua mãe, Maria Vicêncio, e da espécie de entidade divina

representada por Nêngua Kainda, “uma mulher vivida e de palavras certas”.

(EVARISTO, 2003, p.111). Essa personagem parece representar, metonimicamente, a

consciência da família de Ponciá.

Na obra de Evaristo, o discurso feminino aparece em narrativas de angústias, dores,

solidão pelas quais passam as mulheres, embora a fé e a relutância em aceitar

condições subalternas de existência sejam o mote da prosa. Desde o início do

romance, Ponciá demonstra a sua pronta identificação com o fato de ser mulher. O

receio de passar por debaixo do arco-íris e se transformar em homem é grande. Ponciá

é mulher e manifesta o desejo de permanecer como tal:

Quando Ponciá Vicêncio viu o arco-íris no céu, sentiu um calafrio. Recordou o medo que tivera durante toda a sua infância. Diziam que menina que passasse por debaixo do arco-íris virava menino. Ela ia buscar o barro na beira do rio e lá estava a cobra celeste bebendo água. Como passar para o outro lado? Às vezes, ficava horas e horas na beira do rio esperando a colorida cobra do ar desaparecer. Qual nada! O arco-íris era teimoso! Dava uma aflição danada. Sabia que a mãe estava esperando por ela. Juntava, então, as saias entre as pernas tampando o sexo e, num pulo, com o coração aos saltos, passava por debaixo do

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angorô. [...] Naquela época Ponciá gostava de ser menina, gostava de ser ela própria. (EVARISTO, 2003, p. 13).

A mãe de Ponciá percebeu que a filha poderia traçar um caminho mais propício ao

desenvolvimento para si mesma e para sua família:

Quem sabe a menina um dia sairia da roça e iria para a cidade. Então, carecia de aprender a ler. Na roça, não! Outro saber se fazia necessário. O importante na roça era conhecer as fases da lua, o tempo de plantio e de colheita, o tempo das águas e das secas. A garrafada para o mau da pele, do estômago, do intestino e para as excelências das mulheres. Saber que se precisa na roça difere em tudo do da cidade. (EVARISTO, 2003, p. 28).

No entanto, a saída de Ponciá do espaço rural para o urbano foi mais uma

oportunidade para que se deparasse com cenas de desigualdades. O percurso dela,

desde a infância à idade adulta, do meio rural até o urbano, mostra sucessivas perdas,

mas também, e principalmente, a resistência daquela menina-mulher pela vida afora. A

chegada de Ponciá à cidade foi tormentosa. Várias situações negativas foram motivos

de sofrimento para ela, como se vê na seguinte passagem:

[…] a primeira noite de Ponciá Vicêncio na cidade acabou sendo ali mesmo na porta da igreja. Viu o sacristão fechar a porta. O moço também a viu abraçada à trouxa de seus poucos pertences. Quis pedir alguma informação, perguntar pelo padre e pedir a caridade de algum alimento e de um gole d’água, mas não teve coragem. (EVARISTO, 2003, p. 16).

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A protagonista confirma a condição da maioria das mulheres negras, quando, ao chegar

à cidade, decide lutar para conseguir juntar dinheiro, ainda que o faça em decorrência

de muito esforço e muito trabalho: “Estava de coração leve, achava que a vida tinha

uma saída. Trabalharia, juntaria dinheiro, compraria uma casinha e voltaria para buscar

sua mãe e seu irmão. A vida lhe parecia possível e fácil.” (EVARISTO, 2003, p. 42).

No entanto, a realidade foi de desilusão, já que suas conquistas estão sempre abaixo

de suas expectativas: a personagem consegue adquirir uma moradia, porém, essa

moradia é um barraco. Embora tenha ido para o centro urbano em busca de melhor

sorte, da felicidade, ela acabou fixando residência em uma favela. Ponciá se inscreve,

dessa forma, em um meio predestinado aos seus ascendentes, em função do

preconceito e marginalização vividos por ela e seus familiares. As condições do barraco

naquele lugar são abaixo descritas:

Ponciá Vicêncio correu vagarosamente os olhos pelo cômodo onde moravam. O pó avolumava-se por cima do armário velho. Pelos caibros do telhado acumulavam-se teias de aranhas e picumãs. As trouxas de roupas sujas cresciam dias e dias pelos cantinhos do quarto. As folhas de jornal, que forravam as prateleiras do armário, já estavam amareladas pelo tempo e roídas nas pontas pelos ratos e baratas. Toda noite ela contemplava o desleixo da casa, a falta de asseio que lhe incomodava tanto, mas faltava-lhe coragem para mudar aquela ambiência (EVARISTO, 2003, p. 25).

Sendo assim, já mulher, envolvida em tantas tensões, reflexões acerca da vida que ela

e a família levam, Ponciá se recorda do temor de sua infância e pondera sobre os

valores canônicos estabelecidos pela sociedade e nos quais se referenciava.

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Ponciá Vicêncio não queria mais nada com a vida que lhe era apresentada. Ficava olhando sempre um outro lugar de outras vivências. Pouco se dava se fazia sol ou se chovia. Quem era ela? Não sabia dizer. Ficava feliz e ansiosa pelos momentos de sua auto-ausência. Antes gostava de ler. Guardava várias revistas e jornais velhos. Lia e relia tudo. Época houve em que havia decorado notícias assim: “Menino morre afogado na fossa” [...] Pedreiro mata a mulher com quinze facadas” [...] Mulher de deputado presa por atentado ao pudor” [...] Desvio de verba na Prefeitura” [...] um dia Ponciá juntou todas as revistas e jornais e fez uma grande fogueira com tudo. De que valia ler? De que valia ter aprendido a ler? No tempo em que vivia na roça, pensava que, quando viesse para a cidade, a leitura lhe abriria meio mundo ou até o mundo inteiro. Agora nada lhe interessava mais nas notícias: o deputado podia morrer afogado na fossa, a mulher dele poderia dar trinta facadas nas costas do prefeito, o menino podia desviar verbas da prefeitura, o pedreiro podia ficar nu no carro trocando carícias com o outro deputado. O mundo podia virar de cabeça para baixo, que pouca diferença faria, que ela pouco se dava, que ela pouco se dava [..] (EVARISTO, 2003, p. 91).

Cansada da rotina daquela cidade grande com a qual não conseguiu estabelecer uma

relação de pertencimento, Ponciá Vicêncio resolve voltar para a sua cidade em busca

dos seus entes queridos, de um lugar que possa considerar confortável e seguro, em

busca de si mesma. A personagem sente necessidade de fazer o caminho de volta,

percorrer a estrada que a levaria ao encontro das suas raízes e dos seus primeiros

sinais de identificação: “A mãe e o irmão eram sempre matéria de sua memória. Tanto

tempo já tinha se passado. Quantos se encontrariam juntos os três? Parte de sua vida

era o desejo de que isso acontecesse.” (EVARISTO, 2003, p. 92).

Um dia, depois de olhar para o homem como se não o visse, depois de tantos anos recolhida, enterrada morta-viva dentro de casa, Ponciá Vicêncio sorriu, gargalhou, chorou, dizendo que sabia o que devia fazer. Ia tomar o trem, voltar ao povoado, voltar ao rio. Dizendo isso apanhou debaixo do banco a estatueta do homem-barro. Pegou ainda uns panos e com um gesto antigo, com um modo rememorativo de sua mãe, perguntou se não havia folhas de bananeiras secas e palhas de milho

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para embrulhar o barro. Em seguida fez uma pequena trouxa e saiu. (EVARISTO, 2003, p. 120)

A personagem consegue se reabilitar de certa maneira e reencontra, na casa da mãe,

na família, uma possibilidade de ser novamente feliz. Esse é um sinal de reafirmação,

de quem não capitulou aos desafios e às agruras pelas quais passou na cidade:

Na noite em que aconteceu o regresso, Ponciá não dormiu. Viveu o tempo em que era tomada pela ausência e quando retornou a si, ficou apenas deitada, escutando. Escutou na cozinha os passos dos seus. Sentiu o cheiro de café fresco e de broa de fubá, feitos pela mãe. Escutou o barulho do irmão se levantando várias vezes, à noite, e urinando lá fora, perto do galinheiro. Escutou as toadas que o pai cantava. Escutou os galos cantando na madrugada, no galinheiro vazio. Escutou e o que mais escutou, e o que mais profundamente escutou foram os choros-risos do homem-barro que ela havia feito um dia. [...] Durante a noite, ela tivera a certeza de que a casa estava habitada e cheia de vida. (EVARISTO, 2003, p. 57).

A busca de um lugar mais confortável socialmente denota, nesse caso, a indignação da

personagem e a denúncia do sistema escravocrata:

Desde pequena, ouvia dizer também que as terras que o primeiro Coronel Vicêncio tinha dado para os negros como presente de libertação eram muito mais, e que pouco a pouco elas estavam sendo tomadas novamente pelos descendentes dele. Alguns negros, quando o Coronel lhes doou as terras, pediram-lhe que escrevesse o presente no papel e assinasse. Isto foi feito para uns. Estes exibiram aqueles papéis por algum tempo, até que um dia o próprio doador se ofereceu para guardar a assinatura-doação. Ele dizia que, na casa dos negros, o papel poderia rasgar, sumir, não sei mais o quê. [...] Os negros entregaram, alguns desconfiados, outros não. O Coronel guardou os papéis e nunca mais a doação assinada voltou às mãos dos negros. Enquanto isso, as terras voltavam às mãos dos brancos. Brancos que se fizeram donos desde os passados tempos. (EVARISTO, 2003, p.43-44).

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Em função dessa situação, em que os negros haviam sido tão facilmente ludibriados e,

por que não dizer, roubados, Ponciá tinha receio de que os filhos fossem igualmente

massacrados pela vida, e parece que a natureza conspirou com ela para que eles não

tivessem vida longa:

Quando os filhos de Ponciá Vicêncio, sete, nasceram e morreram, nas primeiras perdas ela sofreu muito. Depois, com o correr do tempo, a cada gravidez, a cada parto, ela chegava mesmo a desejar que a criança não sobrevivesse. Valeria a pena pôr um filho no mundo? Lembrava-se de sua infância pobre, muito pobre na roça e temia a repetição de uma mesma vida para os seus filhos. (EVARISTO, 2003, p. 82).

Outra leitura que podemos extrair dessa construção literária na obra advém do alerta da

ensaísta Conceição Evaristo (2005), descrita anteriormente, acerca da maternidade da

mulher negra nos romances brasileiros ao longo dos séculos. Ela questiona se a

ausência da maternidade para essa mulher não seria uma metáfora para

compreendermos o apagamento de uma matriz africana no seio da nossa sociedade.

Duarte (2010) acentua, a propósito dessas reflexões, que os questionamentos de

Evaristo, relacionados a eventuais esterilizações da mulher negra na literatura

brasileira, são fundamentais para se pensar o lugar da mulher negra na sociedade

brasileira. Para o autor, “a fala da escritora negra aponta para o vigor com que a

vertente afro de nossas letras tem questionado ao longo dos anos os lugares pré-

estabelecidos para a visibilidade deste segmento da população.” (DUARTE, 2009, p.

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13). Desse modo, a ausência de maternidade em Ponciá Vicêncio pode ter como

significado uma crítica ao modelo literário canônico, no qual a mulher negra, como

representante de um “mal redimido” (EVARISTO apud MOREIRA e SCHNEIDER, 2005,

p. 202), não gera filhos, antes gera os rebentos que vão perpetuar a escravidão do

negro.

Enquanto nesse modelo a esterilidade se relacionava ao propósito de apresentar uma

mulher disponível para satisfazer o desejo sexual dos homens, sobretudo os brancos, a

perspectiva de Evaristo encena nesse romance as desventuras de uma mulher negra,

descendente de escravizados, que assume várias posturas que denotam a sua

negação em aceitar a visão imposta pelo poder dominante. Assim, até mesmo o fato de

os filhos da protagonista não vingarem pode ser considerado uma metáfora da negação

da continuidade da perversa herança imputada à família dela. Os abortos e a perda dos

filhos na tenra idade parecem indicar que, naquela condição de submissão em que

viviam, não era proveitoso gerar outras vidas.

A situação de descuido social para com a população afro-brasileira é denunciada por

meio da narradora de Ponciá Vicêncio durante toda a narrativa. A situação da mulher

negra pobre lá está contemplada, como não poderia deixar de ser: “[...] um ir e vir para

a casa das patroas. Umas sobras de roupa e de alimento para compensar um salário

que não bastava”. (EVARISTO, 2003, p. 82).

Ao analisar a estratégia textual de escritoras negras brasileiras na série Cadernos

Negros, Eduardo de Assis Duarte esclarece que são escritas de mulheres excluídas do

mercado e do circuito acadêmico. Para ele, o corpo feminino, materializado nas

personagens dessas escritoras, entre elas Conceição Evaristo, inscreve a mulher num

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outro diapasão, no qual o corpo, mais do que nunca, expressa sua condição de vítima

de uma ordem social calcada na exploração e no preconceito. E ainda diz o autor:

Nelas, encontramos o redirecionamento da voz narrativa que, sem descartar a sexualidade, está empenhada em figurar a mulher não a partir de seus dotes físicos, mas pelas atitudes de luta e resistência e de sua afirmação enquanto sujeito. Nessas autoras, o ponto de vista interno à mulher afrodescendente põe em cena o lado feminino da exclusão. Suas personagens são negras e vivem como domésticas, mendigas, faveladas, presidiárias. Mas são sobretudo, mulheres de fibra, lideranças, referências comunitárias. (DUARTE, 2010, p. 76).

Ainda que a história de vida das mulheres negras assuma características semelhantes

nesse período descrito pelo romance, algumas diferenças marcam a vida de Ponciá e

da sua cunhada Bilisa, por quem seu irmão Luandi se apaixonou. Enquanto Ponciá

segue do interior para a cidade em busca de melhor condição social, emprega-se como

doméstica para sobreviver, casa-se com um homem que a agradou, na tentativa de

construir uma nova família e ser feliz, Bilisa encontra o caminho da prostituição sem

culpa. Bilisa se deitava com o filho da patroa, mas esse roubou-lhe as economias, o

que a fez denunciá-lo para a mãe do rapaz, sua patroa:

Moça Bilisa se sabia ardente, deitara algumas vezes com os companheiros de roça e alguns saíam mais e mais desejosos dos encontros com ela. Um dia, um homem enciumado chamou Bilisa de puta. A moça nem ligou. Puta é gostar do prazer? Eu sou. Puta é esconder no mato com quem eu quero? Eu sou. E, agora, novamente era chamada de puta pela patroa, só porque contou de repente que o rapaz dormia com ela. Tinha a impressão que a patroa sabia. Não, ela não devia ter gostado era da história do dinheiro. Bilisa estava cansada. Tinha de começar tudo de novo. Não, não começaria mesmo! A cozinha, a arrumação da casa, o tanque, o ferro de passar roupa... Haveria de ganhar dinheiro mais rapidamente. (EVARISTO, 2003, p. 98).

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Essa passagem descreve a situação de opressão em que Bilisa vivia e, ao mesmo

tempo, sua negação em assumir uma condição de passividade e, ao contrário, sua

decisão de buscar prazer. Ela é terna e diz da resistência dessa personagem. Por isso,

o amor entre ela e o irmão de Ponciá é uma forma de lirismo em meio ao processo de

exploração sexual em que Bilisa vive: “Luandi, contemplando o céu da viagem de volta,

com o olhar fixado na estrela que parecia indicar a rota do trem, pensava com

saudades numa estrela que ele havia conhecido” (EVARISTO, 2003, p. 98).

Quando Luandi conheceu Bilisa, já havia cinco anos ou mais que ela fazia vida na zona e não conseguira juntar ainda dinheiro algum. Ganhava muito, era famosa, mas gastava muito também. O dinheiro era repartido com a dona da casa e com Negro Climério, que era protetor dela e de outras. Ela tinha por hábito também de não receber a paga em certas ocasiões. Se o homem que viesse procurá-la lhe desse algum prazer, fazendo com que ela esquecesse, por momentos, os limites de sua função, de apenas proporcionar o gozo ao outro, ou se ela simpatizasse com ele, se gostasse dele por algum motivo, Bilisa não cobrava. Achava que sentimento não tem preço. E foi assim que ela começou a ser estrela que enfeitava a noite que existia no coração de Luandi. (EVARISTO, 2003, p. 99)

Bilisa intenta, em nome do amor que sente por Luandi, romper com a sua condição de

prostituta e construir com ele uma vida diferente, feliz, livre da dependência financeira

que tem do cafetão e da prestação de serviços a tantos homens:

No dia em que ele falou para Bilisa que gostaria de tirá-la dali, caso ela quisesse, a moça não deu resposta alguma e nem mostrou sinal algum de satisfação. Mas, na outra semana, quando ele voltou, teve uma surpresa. Ela começou a abrir alguns embrulhos: eram panos para fazer lençóis, toalhas, fronhas, tudo o que fosse preciso. Tinha linhas coloridas, agulhas, enfeites. Ela queria preparar tudo, dizia que ia fazer um lindo enxoval entre a chegada e saída dos homens que vinham para visitá-la. Mas, em meio a tanta alegria, Bilisa-estrela revelou um temor.

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Havia uma pendência e ela não sabia como resolver. Negro Climério. O homem era um perigo. (EVARISTO, 2003, p. 112).

O posicionamento dessa personagem, mulher negra, em consonância com os

propósitos das escritoras negras, como é o caso de Evaristo, e descrito acima por

Assis, é reafirmado na medida em que Bilisa expressa os seus sentimentos, a sua

condição de mulher que escolhe amar e ser amada, em oposição à condição de objeto

sexual. Ainda que os caminhos dela e de Ponciá tenham se encontrado por meio de

percursos diferentes, são duas mulheres negras que se distanciam dos papéis e

lugares opressivos imputados a elas pela sociedade.

Ponciá Vicêncio estabelecia, a todo tempo, uma relação de cumplicidade com a mãe.

Embora pertencessem a gerações diferentes, a admiração entre as duas era recíproca.

A filha ousou resistir ao processo de opressão de maneira mais expressiva que a mãe.

Essa leitura é possível pela iniciativa da moça de ir para a cidade. Ainda assim, a

relação matriarcal que a mãe estabelecia com a família era motivo de admiração por

parte da filha:

A mãe nunca reclamava da ausência do homem. Vivia entretida cantando com as suas vasilhinhas de barro. Quando ele chegava, era ela quem determinava o que o homem faria em casa naqueles dias. O que deveria fazer quando regressasse lá para as terras dos brancos. O que deveria dizer para eles. O que deveria trazer da próxima vez que voltasse para casa. Enrolava as vasilhas de barro em folhas de bananeira e palhas secas, apontava as que eram para vender e estipulava o preço. Das que eram para dar de presente, nomeava quem seria o dono. O pai, às vezes, discordava de tudo. Do que iria fazer naqueles dias de estadia em casa, do preço estipulado para as peças e das pessoas que ganhariam os presentes. A mãe repetia o que havia dito anteriormente. O pai fazia ali o que ela havia pedido e saía sem se

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despedir dela e da filha, puxando o filho pela mão. (EVARISTO, 2003, p. 27).

O poder da mãe de Ponciá em sua relação marital acentua a desvinculação da mulher

ao papel de submissão frente ao poder masculino. Dessa forma, opõe-se também aos

padrões de escrita instituídos canonicamente. Essa postura da mãe é admirada pela

personagem Ponciá: “O pai era forte, o irmão quase um homem, a mãe mandava e eles

obedeciam. Era tão bom ser mulher!”. (EVARISTO, 2003, p.27). A atitude da mãe serve

de inspiração para que Ponciá deseje adotar uma postura de insubmissão frente ao

poder masculino de um marido que ela um dia teria: “Um dia também ela teria um

homem, que, mesmo brigando, haveria de fazer tudo que ela quisesse e teria filhos

também”. (EVARISTO, 2003, p. 27).

Assim, a vida que Ponciá levava com o marido, considerando os deslocamentos

relacionados ao tempo e ao espaço, no que se refere à vida que a sua mãe levava com

o pai, quando ela era pequena, pode ser considerada também de resistência ao poder

masculino. Ela não conseguia reproduzir a contento as tarefas domésticas socialmente

delegadas à esposa, dentro do papel instituído para a mulher. O comportamento da

protagonista, que denotava essa rebeldia, assume aspecto de um eventual sofrimento

mental que incomodava o marido:

Ultimamente andava muito bravo com ela, por qualquer coisa lhe enchia de socos e pontapés. Vivia a repetir que ela estava ficando louca. Mas de manhã, quando acordava e guardava a marmita, enquanto bebia o gole ralo de café (mesmo se a latinha estivesse quase cheia de pó,a bebida era sempre rala), ele era calmo, quase sempre doce. Ele sentia saudades da outra Ponciá Vicêncio, aquela que ele conhecera um dia. E

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se perguntava, sem entender, o que estava acontecendo com a mulher. Ela que antes era feito uma formiga laboriosa resolvendo tudo. Ela que muitas vezes saía junto com ele na labuta diária do fogão, da limpeza, das trouxas de roupas nas casas das patroas. O que estava acontecendo com Ponciá Vicêncio? (EVARISTO, 2003, p. 55).

O fato de as personagens masculinas não serem nomeadas no romance – o pai é

chamado de “O pai de Ponciá” e o marido, de “O homem de Ponciá” – é um aspecto

que consideramos relevante na obra em análise. “O homem de Ponciá” não recebe um

destaque privilegiado na narrativa, como também não o recebe “o pai de Ponciá”.

Percebe-se que é ela que funciona como guia dos percalços, agruras, encontros e

desencontros que envolvem as personagens da trama, inclusive o marido e o pai.

Pode-se apreender, por mais esse motivo, o fortalecimento das personagens femininas

no romance, tal como evidenciado em: “O homem de Ponciá acabava de entrar em

casa e viu a mulher distraída na janela.” (EVARISTO, 2003, p. 19). “O homem de

Ponciá estava cansado, muito cansado. Sua roupa empoeirada, assim como o seu

corpo, porejava pó.” (EVARISTO, 2003, p. 20).

A solidariedade entre mãe e filha, a reconciliação depois de um tempo de ausência

desta, e a busca de suas raízes identitárias formam outra marca das duas mulheres da

família Vicêncio:

Maria Vicêncio, agora de olhos abertos, contemplava a filha. A menina continuava bela; no rosto sofrente, feições de mulher. Por alguns momentos, outras faces, não só a de Vô Vicêncio, visitaram o rosto de Ponciá. A mãe reconheceu todas, mesmo aquelas que chegavam de um outro tempo-espaço. Lá estava sua menina única e múltipla. Maria Vicêncio se alegrou, o tempo de reconduzir a filha à casa, à beira do rio

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estava acontecendo. Ponciá voltaria ao lugar das águas e lá encontraria a substância, o húmus para o seu viver. (EVARISTO, 2003, p. 129).

Mãe e filha participam de um mesmo universo feminino marcado pela água do rio, pelo

barro, pela arte de argila, mas também pelo lugar que ocupam ou desejam ocupar em

relação a seus companheiros e à sociedade na qual vivem.

2.2 Resistência e fortalecimento da mulher em O alegre canto da perdiz

Na caçada do amor as mulheres sabem que é preciso esperar as noites de frio intenso e sem lareiras acesas. É preciso esperar que a fé decante e o desejo ressurja nítido, com a leveza do azeite no copo de água. É preciso aguardar que o bicho homem se revolte e domine todo o raciocínio. (CHIZIANE, 2008, p.39)

Em O alegre canto da perdiz, Chiziane encena dilemas, embates e conflitos ocorridos

em Moçambique durante o período colonial e também após esse período. Em

perspectiva, o romance apresenta a personagem Delfina em suas idas e vindas,

sinalizando o período em que reagiu às imposições que a mãe lhe fazia para se deitar

com homens brancos; casou-se com um homem negro, por amor, e depois com um

branco, por interesse de ascender socialmente, e, por fim, arrependeu-se de ter cedido

ao sistema colonial tantas vezes, de ter sido fraca, de ter entregado a filha, Maria das

Dores, em troca de ascensão social.

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O romance de Chiziane, assim como o de Evaristo, é narrado em flasback, de modo

que ao leitor surge um mosaico de possibilidades para perceber as nuances

relacionadas aos caminhos construídos pelo povo moçambicano para se livrar da

colonização portuguesa e também à forma como passou a viver no período

imediatamente depois, o pós-independência.

Em relação ao conjunto da obra de Chiziane e o seu viés que tangencia as relações de

gênero, ancoramo-nos nas reflexões de Mata (2006), para quem:

Desde o seu primeiro romance, Balada de amor ao vento, que a autora vem desvelando a responsabilidade da mulher no estado de sua condição. Neste contexto, a obra de Paulina Chiziane atualiza um discurso que inclui o questionamento e a denúncia, dando voz e criando espaço de reflexão ao sujeito que é “silenciado”, tendo como intuito apelar à mulher moçambicana para uma mudança consciencializada. Esta estratégia, que começa a ser formatada em Ventos do Apocalipse, adquire dimensão actancial em O sétimo juramento, quando as mulheres (mulher, amante e mãe de David) se aliam para se salvarem e à família; ou pelas mulheres de Tony, em Niketche, que apanhadas na voragem de uma relação poligâmica feita à medida do polígamo, o obrigam a respeitar a instituição. Para tal, há recorrência à diversidade do legado cultural moçambicano, actualizado em fórmulas, rituais, hábitos, gestos, comportamentos. Por este esquema se elabora um percurso pelas diferenças, semelhanças, desejos, sentimentos e aspirações de diferentes mulheres moçambicanas, nos diferentes âmbitos de intervenção quotidiana, como em Niketche, romance feito de polarizações. (MATA, 2006, p. 437-438).

O alegre canto da perdiz nos apresenta algumas personagens que questionam as

tradições de seu país e se redescobrem, definindo a força do feminino, demonstrando

que a escritora Paulina Chiziane é subversiva em sua escrita, por rasurar os padrões de

subordinação atribuídos à mulher naquela sociedade. Esse é o caso da personagem

Maria das Dores, que foi encontrada nua na beira do rio da cidade, assustando 86

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repentinamente a todos: “Ali está a heroína do dia. Protegida na fortaleza do rio. [...]

Que venceu um exército de mulheres e colocou desordem na moral pública. Que

desafiou os hábitos da terra e conspurcou o santuário dos homens.” ( CHIZIANE, 2008,

p. 16).

A personagem Maria das Dores é a primeira mulher a aparecer na obra, provocando

ira, questionamentos, alterando visões conservadoras do comportamento feminino,

desconstruindo tabus e desmitificando padrões. Ela aparece desgarrada de um

passado, de um tempo em que a opressão colonizadora reinava. Foge de uma situação

limite de opressão e subordinação e surge vinte e cinco anos depois, com o país já

independente e com uma nova cartografia societária. Maria das Dores, no dizer da

sábia personagem anciã, a mulher do régulo, traduz a possibilidade de ruptura para as

mulheres e para o povo daquela comunidade. A personagem aparece nua porque se

desnudou de antigos preceitos e referências impositivas e apresenta novas

possibilidades que podem apontar para um estatuto de liberdade e dignidade para as

mulheres moçambicanas naquele momento histórico do pós-independência: “Uma

mulher nua do lado dos homens? Ó gente, ela veio de um reino antigo para resgatar o

nosso poder usurpado. Trazia de novo o sonho da liberdade. Não a deviam ter

maltratado e nem expulsado à pedrada”. (CHIZIANE, 2008, p. 22).

O lugar mítico em que a personagem se aloca durante parte significativa da narrativa

possibilita um outro entendimento da situação vivida pela mulher na sociedade:

Depois da invasão original, as mulheres ficaram escravas. Lutaram pela libertação. Recuperaram de novo o seu reino e mataram todos os

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homens. Decretaram uma lei: toda a criança que nascer varão deverá ser morta, para exterminar a maldição do masculino. Assim o fizeram. Durante um longo tempo as mulheres viveram num paraíso total, absoluto. Um paraíso pudico, sem emoções, sem sexo, sem partos, sem nexo. Num belo dia nasceu uma criança linda como um anjo. Era varão. As parteiras, hipnotizadas pela beleza da criatura, esconderam a verdade e declararam que era fêmea. Cresceu vestido de mulher e aprendeu a fazer trabalhos domésticos. O tempo passou. A barba surgiu e a voz engrossou. Começou a invadir e a engravidar de novo todas as mulheres do reino, como um galo na capoeira. A rainha ordenou a sua morte, mas as mulheres apaixonadas pela criatura uniram-se, mataram a rainha e proclamaram o homem como o novo rei. Assim surgiu o primeiro harém. As mulheres tornaram-se escravas e tudo voltou a estar como antes. Porque o homem é um bicho indestrutível, ambicioso. A rivalidade entre homens e mulheres agudizou-se. Para solucioná-la, é melhor colocar os homens na terra e as mulheres na lua. Assim, olhar-se-ão com saudade pelo espelho celeste, tal como acontece quando a luz aclara as eternas imagens dos longínquos e distantes habitantes da lua. (CHIZIANE, 2008, p. 260-261).

Esse lugar, ocupado pelas mulheres, antes da inversão de lugares, em que os homens

passam a ditar as regras, dá-nos a dimensão do quanto as mulheres foram e são

importantes para a estruturação das relações sociais entre homem e mulher. Pelo mito,

lemos como as mulheres agem de maneira apaixonada, romântica e crédula. Do outro

lado, assiste-se ao pragmatismo e ambição do masculino. Percebe-se, então, a

necessidade da presença da mulher no seio das relações sociais com vistas a tentar a

harmonia entre os gêneros. Assim, comungamos com a forma de existência que parece

desejar a escritora dessa obra, na qual as relações humanas sejam pensadas sem que

se tome partido entre um gênero ou outro, como tem se apresentado na cultura

ocidental.

A personagem problematiza ainda os dilemas identitários vividos por ela e pelos

negros, tanto na sociedade regida pela colonização como na sociedade pós-colonial,

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como podemos ver na passagem abaixo, em que Maria das Dores rememora sua

trajetória de vida que a levara até as margens do rio Licungo:

Mas como é que tudo começou? Começou ou terminou? Na vida nada é princípio, nada é fim. Tudo é continuidade. Mas tudo começou no dia em que o pai negro partiu para não mais voltar. Tudo começou quando o pai branco amou a sua mãe. Tudo começou quando nasceu a sua irmã mulata. Tudo começou quando a sua mãe vendeu a sua virgindade para melhorar o negócio de pão. Tudo começou com uma relação que envolvia sexo e amargura. Filhos e fuga. Torpor e ausência. Escalada de uma montanha. Soldados brancos na defesa do império de Portugal. Dinheiro e virgindade. Magia. Fortuna. (CHIZIANE, 2008, p. 27)

Assim, Maria das Dores, com a sua aparente loucura, provoca e desestabiliza as

referências do modo de vida que levava em sua existência durante o período colonial,

marcado pela opressão da mãe em decorrência do processo de assimilação ao qual ela

havia se submetido:

Projecções fantásticas das histórias à volta da fogueira, as meninas bonitas, bondosas, obedientes, trabalhadoras, casam-se com príncipes dourados, têm muitos filhos e vivem felizes para sempre. As meninas maldosas, mentirosas, desobedientes e preguiçosas, no final da história são castigadas, não arranjaram marido, nem filhos, vivem solteironas e infelizes para sempre. E acabam enlouquecendo. Crenças. De dádivas e destinos. Pragas. Profecias. Castigos. (CHIZIANE, 2008, p. 19)

Nem menina boa, nem menina má, Maria das Dores é a filha de Delfina que partiu em

busca de novos tempos, deixando a mãe envolta nos padrões de vida que ela própria

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havia definido em função da assimilação, mas que já não respondiam a suas

expectativas:

Eu tinha uma filha. Ou tenho, já não sei. Era uma menina, linda. Nasceu em 1953, mas parece que ainda ontem brincava de manhã cuidando dos irmãos mais novos como bonecas. Partiu em 1974, como uma nuvem, e se esfumou no mesmo palmar, já não a encontro. Procurei-a de palmo a palmo. Conferi as multidões, uma a uma.

- Ah, Maria das Dores, procurei-te. No dorso das ondas. Nas colinas e ilhas celestes vagueando na atmosfera. Nos grãos de areia. Não te encontrei. Foste-me arrebatada pelo bico de uma cegonha, para o alto dos montes, não te encontro. Hoje, véspera do novo século, ainda estou aqui, chamando por ti.

Quero saber de ti. Para onde partiste. Há vinte e cinco anos que sonho contigo e te vejo em toda a gente que passa. Vejo-te a brincar. A crescer. Com fardamento escolar. Lembro-me dos dias em que olhavas para a lua, enquanto penteava os teus cabelos fartos como novelos de seda. (CHIZIANE, 2008, p. 43).

Novos tempos são desvelados a partir da atitude de Maria das Dores. O desespero dos

moradores ao encontrarem aquela mulher é de tal ordem que fazem exaustivos apelos

para que ela se recomponha. Essa postura revela a forma contraditória como aquela

comunidade se comporta, ao insistir em manter a relação patriarcal que estabelece

lugares diferenciados para homens e mulheres. Maria das Dores, com sua nudez, ousa

romper os princípios dessa tradição e desafia os valores e modos de vida

conservadores da comunidade:

- Maria, tens que te vestir. - Para quê? - Para te protegeres e seres igual às outras mulheres.

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A nudez de Maria era o regresso ao estado de pureza. Da transparência. As mulheres ficam escandalizadas, porque o nu de uma se reflecte no corpo da outra. (CHIZIANE, 2008, p. 33 ).

A personagem expõe o corpo e o sexo. O que, talvez, na narrativa, possa representar o

poder para uma determinada mulher que, nua, atrai para si atenção especial na medida

em que a roupa pode ser entendida como uma metáfora que a iguala a todas as outras.

Assim, a personagem Maria das Dores nos ajuda a compreender a perspectiva de

poder relacionada a ela, que se distancia do comportamento das demais, ao permitir se

desnudar:

Será que estou nua, mãe? A nudez que elas viam não é a minha, é a delas. Dizem que não vejo nada e enganam-se. Cegas são elas. Gritam sobre mim a sua própria desgraça e me chamam louca. Mas loucas são elas, prisioneiras, cobertas de mil peças de roupa como cascas de uma cebola. (CHIZIANE, 2008, p. 17).

Maria das Dores se coloca nua frente às demais mulheres e, dessa forma, permite que

elas promovam um outro olhar sobre si. A personagem revela o desnudamento das

diferenças, que podem perfeitamente serem culturais, doravante inscritas em um corpo

que aparenta ser igual ao de todas as mulheres. Ela questiona sobre o que seria a

nudez e problematiza acerca dela. Pensamos que uma das possibilidades para se

refletir sobre a nudez possa aludir à sobrecarga relativa à submissão da mulher:

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Um grito colectivo. Um refrão. Há uma mulher nua nas margens do rio Licungo. Do lado dos homens. - Ah? Há uma mulher na solidão das águas do rio. Parece que escuta o silêncio dos peixes. Uma mulher jovem. Bela e reluzente como uma escultura maconde. De olhos pregados no céu, parece até que guarda algum mistério. - Quem é ela? Uma mulher negra, tão negra como as esculturas de pau-preto. Negra pura, tatuada no ventre, nas coxas, nos ombros. Nua assim completa. Ancas. Cintura. Umbigo. Ventre. Mamilos. Ombros. Tudo à mostra. (CHIZIANE, 2008, p. 11).

A obra enfatiza um aspecto que, tradicionalmente, deveria fragilizar a mulher: seu

corpo. O corpo de Maria das Dores exposto é, para as outras mulheres, um espelho

não bem visto, no qual é possível de se ver refletida uma imagem dos seus corpos que

secularmente foi negada e reprimida. Portanto, o reaparecimento do corpo nu e,

consequentemente, do sexo, incomoda a comunidade, principalmente as mulheres.

Dessa forma, a população se aglomera cada vez mais em torno da personagem,

engrossando a fileira dos que exigem que Maria das Dores vista-se e a paz volte a

reinar no ambiente.

No final do romance, verifica-se o reencontro de Maria das Dores com os seus três

filhos, perdidos durante a fuga para um espaço livre da dominação materna e marital.

Os filhos, passados vinte e cinco anos, encontram-se bem-sucedidos em tempos

auspiciosos após a independência do país:

Maria das Dores procura no padre e no médico todas as marcas de infância, daquelas que só uma mãe conhece. Pequenas manchas, pontos negros, cicatrizes. Semelhanças. Diferenças. Cor da pele. Olhares. Tonalidades da pele.- Serás tu a mãe que procuramos Maria?- Serão os filhos que eu procuro? O meu Benedito tem uma marca de nascença no corpo, na omoplata, redonda, completa, como um ovo de lagarto.

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O padre e o médico estavam habituados à ideia de não ter mãe. Maria estava habituada à ideia de ter perdido os filhos. Aquela verdade era tudo o que desejavam, mas queriam que a verdade viesse gradual e vagarosamente. Que os preparasse psicologicamente. Acenderam muitas velas para que o que está a acontecer acontecesse. Mas que não fosse daquela maneira. Que afinal foi a melhor maneira. Inesperada mas desejada, surpreendente, ansiada.Mãe e filhos emergindo num cenário de fogo e tempestade. O fim e o princípio no mesmo ponto. O milagre da noite acontecera. (CHIZIANE, 2008, p. 307).

Maria das Dores assume o seu lugar de mãe, em um confortável reencontro com os

filhos e o marido. Recupera também o lugar de filha que Delfina lhe negara em seu

processo de assimilação.

Maria das Dores é, por isso, a perdiz mencionada no título da obra. Essa ave,

considerada bela, altiva e sagaz, tem correlação com a beleza feminina, marca dessa

personagem, que é assim referida: “Uma mulher jovem. Bela e reluzente como uma

escultura maconde.” (Chiziane, 2008, p.11). O título do romance tem, também,

correlação com a personagem Delfina, como se vê na seguinte passagem: “era ela a

negra mais bela, mais bem vestida, mais apetecível”. (CHIZIANE, 2008, p. 79). Tanto

Maria das Dores quanto Delfina são mulheres que faziam com que outras mulheres e

os homens as vissem, respeitassem e se curvassem perante elas. Maria das Dores,

quando se furta ao papel de submissão que lhe foi imposto, pelo fato de ser bonita e

passível moeda de troca, dá sinais de sua fortaleza e resistência.

Em algumas passagens da obra, é reforçado o papel de superioridade da

mulher/perdiz, como no trecho em que a narradora fala de um conto em que uma perdiz

cantava à noite, causando estranhamento à comunidade, pois o canto noturno era

comum às corujas. Na verdade, a narradora associa a perdiz à personagem Delfina, 93

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que se gabava diante de todos do fato de estar casada com um homem branco e, por

esse motivo, sentia-se superior aos negros em sua volta: “alguns negros viam a

ascensão de uma jovem negra. Alguns brancos viam as loucuras de um velho colono.

Alguns negros e brancos viam em comum a perversão das suas raças”. (CHIZIANE,

2008, p. 222-223). Diante da levitação da perdiz/Delfina, o pai solicita que ela desça

das alturas e viva com eles a realidade de subalternidade. “Delfina, desce! Não se pode

viver longe da terra, aí no céu não se semeiam couves.” (CHIZIANE, 2008, p.223).

Por fim, o pai, inicialmente desalentado e com receio do futuro da filha desobediente,

considera que ela está agindo com maturidade e com postura masculina, na medida em

que ele a compara a uma perdiz: “– Atravessarás o deserto, minha Delfina, minha

perdiz com penas de pavão!” (CHIZIANE, 2008, p. 224). Lemos, então, o próprio pai de

Delfina reconhecendo a sua força, a sua capacidade de enfrentar os obstáculos, o que

a faz, a despeito de ser uma figura feminina, comportar-se de maneira viril.

Partindo dessa compreensão, fica mais fácil entender a exuberância sedutora da

personagem Delfina e também o posicionamento contestador de Maria das Dores, que

se despe publicamente, causando profundo incômodo à comunidade. No caso de

Delfina, assistimos ao glamour que a faz causar reboliço na imaginação e no

comportamento de homens negros e brancos. São vários os trechos do romance que

permitem a leitura que fazemos da perdiz com o corpo feminino.

- A Delfina! Ela sabe com quantas linhas se cose o amor, e com quantos suspiros se enlouquece o mais forte dos homens. Estão a assediá-la? Tens a certeza? - Vão prostituí-la outra vez. - Ela é o palco e a artista. O teatro inteiro. Sempre foi. (CHIZIANE, 2008, p.167).

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Delfina sabe bem do uso que pode fazer do seu corpo para seduzir e cooptar um

homem. Em outra passagem, a personagem reitera o seu poder perante os homens e

a sua possibilidade de ascensão social pelo uso do poder de sedução:

O que querem eles de mim? Que me levante ao cantar do galo para ir semear arroz? [...] Não! Prefiro oferecer as doçuras do meu corpo aos marinheiros e ganhar moedas para alimentar a ilusão de cada dia. A natureza deu-me um celeiro no fundo do meu corpo. Uma mina de ouro. (CHIZIANE, 2008, p. 81).

O romance propõe situações em que a personagem Delfina representa a sedução, a

provocação e a fatal errância que afeta as mulheres negras no período de colonização,

para nos dizer que há descontentamento com as diferenças de classe e étnico-raciais

impostas pelo regime. Como já afirmamos, é por meio das mulheres que assistimos a

contradições, mudanças, alianças e estratégias da sociedade moçambicana para

alcançar a independência.

O debate entre Serafina e Delfina, por exemplo, permite-nos uma leitura da defesa da

mestiçagem, por parte da filha, como subterfúgio e estratégia para migrar em direção a

uma melhor condição social:

- Porque não me fizeste com um branco, mãe? Felizes são as brancas e as mulatas, que nasceram com diamantes no corpo.

- Para quê essa tortura? És preta e ainda bem. Os marinheiros brancos são excêntricos, são predadores do exótico e tu és linda! Não faltará um branco para morrer de amor por ti, minha filha. (CHIZIANE, 2008, p. 84).

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A insistente investida de Delfina em ascender socialmente, por meio de seu poder de

seduzir vários homens, pode revelar a reificação do corpo feminino. Ela deseja se

tornar instrumento de poder, atendendo aos anseios comuns da maioria naquela

sociedade que se dividia entre os colonizadores, que tudo podiam, e os colonizados,

que ficavam à mercê de melhores possibilidades. Pensamos que Chiziane propõe

revelar as nuances de dois lados constitutivos da mulher negra: a personagem Delfina

rejeita a sua cor de pele, mas vende o corpo, pois ele é também fonte de valor

econômico. Por decorrência, dois dos seus quatro filhos são fruto das relações

interraciais que teve.

A mãe, Serafina, insistia para que ela não se aliasse a um homem negro, pois não

teriam bom futuro nessa união. Serafina, pertencente à geração dos que se

conformavam com o destino dado para os negros pelo regime escravocrata, insiste com

a filha para que, diante da situação, busque a assimilação para alterar sua condição

social. Inicialmente, Delfina rejeita assimilar-se, embora mais tarde aceite os conselhos

da mãe, para que possa, por meio do casamento com um branco, alterar positivamente

a sua condição social.

Delfina comparava os dois maridos. O Soares falava de coisas do mar, dos barcos, das festas e das grandes cidades, coisas belas que a faziam sonhar. O José falava-lhe de chicote, de acampamentos e de plantações. Coisas tristes que a faziam chorar. Ela não falava de coisa nenhuma. Nem da vida nem do trabalho. Sabia sim, de coisas proibidas, do pôr do Sol, de dentro do quarto e das festas dos marinheiros. (CHIZIANE, 2008, p. 225).

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Quanto à personagem Maria das Dores, a sua beleza, revelada a partir da nudez,

também nos permite compará-la a uma perdiz que, de tão bela, encanta e mobiliza as

pessoas:

A multidão vê a mulher nua sentada num trono de barro, na beira do rio. Na posição de lótus, colocando a sua intimidade na frescura do rio. Vê-lhe o interior desabrochado, como um antúrio vermelho com rebordos de barro. Vê-lhe as tatuagens no seu ventre de mulher madura. Vê-lhe o corpo esguio, pequeno, recheado à frente, recheado atrás, esculpido por inspiração divina. Vê-lhe a pele macia, de café torrado. Os lábios gordos como um tutano, cheios de sangue, cheios de carne. Olhos de gata. Vê-lhe o cabelo e sobrancelhas macias e fartas como novelos de seda, com gotas de água escorrendo sobre as costas, como contas de lágrimas, na grinalda de uma noiva. (CHIZIANE, 2008, p.12-13)

Diferentemente do posicionamento da mãe, Delfina, que opta pela assimilação, Maria

das Dores foge à situação de subjugo, enfrenta as críticas de mulheres e homens ao se

posicionar despida de amarras frente a todos. O seu glamour incomoda os olhares

daquela comunidade que fatalmente se curva diante da sua beleza, ao mesmo tempo

em que reclama do seu atrevimento em ocupar um lugar destinado aos homens. O

comportamento da personagem diz da sua rebeldia, do seu descontentamento em

ocupar espaços de segregação e aceitar imposições. Assim, o corpo é mote de

sedução para atrair olhares e desestabilizar certezas sobre o papel da mulher na

sociedade.

2.3 A reconstrução literária do corpo feminino negro

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Tendo sido o corpo negro, durante séculos, violado em sua integridade física, interditado em seu espaço individual e social pelo sistema escravocrata do passado e hoje ainda por políticas segregacionistas existentes em todos, se não em quase todos, os países em que a diáspora africana se acha presente, coube aos descendentes de africanos, espalhados pelo mundo, inventar formas de resistência. Vemos, pois, a literatura buscar modos de enunciação positivos na descrição desse corpo. A identidade vai ser afirmada em cantos de louvor e orgulho étnicos, chocando-se com o olhar negativo e com a estereotipia lançados ao mundo e às coisas negras. (EVARISTO apud PEREIRA, 2010, p. 134).

Os estudos teóricos que versam sobre o feminismo têm indagado sobre o que é ser

mulher. A definição para essa categoria tem tido grandes repercussões e não é

consensuada. Muito se tem discutido sobre o fato de que existe uma tendência a se

pensar em uma mulher universal. A unanimidade em relação ao tema indica a

necessidade de se estabelecer um posicionamento que possa combater o sexismo e o

patriarcado que marcam as sociedades.

Judith Butler (2003) esclarece que a pretensão de unificar o sujeito, como se ele fosse

estável, não contribuiu para o entendimento do que é ser mulher. Chegou-se à

conclusão de que não se encontra uma identidade fixa para as pessoas nas diferentes

culturas e que os mecanismos de opressão sobre as mulheres operam de maneira

diferenciada nelas.

Linda Nicholson (2006) nos instiga a pensar em uma desestabilização de um conceito

arraigado acerca do feminino. Para ela, as discussões em torno do que seja mulher

devem ser encaradas como um posicionamento político, realizado de maneira coletiva,

sem perder perspectivas eventualmente criadas por um grupo de mulheres.

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Dadas essas considerações, interessa-nos problematizar sobre a forma de ser mulher

que é encenada pelas personagens femininas de Conceição Evaristo e Paulina

Chiziane, e, ainda em consonância com as ideias das teóricas referidas acima,

interessa-nos também saber, nos romances de Evaristo e Chiziane, de onde falam os

sujeitos do discurso.

A escritora Conceição Evaristo utiliza-se em seus romances de uma enunciação

positiva em relação aos descendentes de africanos e, em especial, das mulheres

negras. Nesse sentido, a escrita de Evaristo se move pelo caminho da contestação do

estereótipo da mulher negra tradicionalmente ficcionalizado na literatura brasileira.

Portanto, como já considerado nesta tese, a escritora ficcionaliza personagens

mulheres negras como protagonistas de histórias, o que, até há pouco tempo, não se

via na cena literária. Ao contrário, cabia a personagens negras, como é o caso de

Ponciá, o papel de coadjuvante, com o seu comportamento reforçando o lugar de

subalternidade, como desejado pela elite. Uma personagem negra com coragem para

enfrentar o sistema não era encenado outrora, como nos é apresentado na passagem

do romance, em que, mesmo dormindo na rua, Ponciá mostra-se capaz de se

solidarizar com os semelhantes:

Ponciá Vicêncio acordou com barulho de portas se abrindo. A casa de fé se abria para acolher os fiéis. Mulheres idosas, ainda com o ar sonolento, entravam rápidas, cada qual parecendo querer ser a primeira a cumprimentar Deus. Os mendigos, que à noite se haviam estendido pelas escadarias, se encolhiam ou se levantavam para dar passagem aos fiéis, que chegavam contritos, para assistirem à primeira missa do dia. Eram 6 horas da manhã. Muitos deles começavam a se dispersar, principalmente as crianças. Os velhos se encostavam por ali mesmo e estendiam os chapéus ou as latinhas (de goiabada vazia) onde, de vez em quando, caíam algumas moedas. Condoída da sorte deles, Ponciá

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catou as suas últimas moedas e ofereceu a alguns. (EVARISTO, 2003, p. 48).

Assim, em Ponciá Vicêncio, lemos a denúncia das condições de subalternidade da

mulher negra em relação a uma sociedade com história de colonização, que, por isso

mesmo, mantém para o negro a situação estrutural de socialmente menos favorecido.

Lemos também a forma como a mulher negra resiste nesta sociedade, lutando não

somente por sua sobrevivência, mas também por sua liberdade.

Paulina Chiziane, em O alegre canto da perdiz, propõe-se encenar vivências das

mulheres da região da Zambézia :

Nesta minha batalha por uma sobrevivência digna vou ganhando mais luz e mais força. Cada dia cresce a minha experiência e mais claras se tornam as minhas reflexões sobre a vida e sobre o mundo. Pretendo revelar um pouco desta experiência sem falsidade nem superficialização, para quebrar o silêncio, para comunicar-me, para apelar à solidariedade e encorajamento das outras mulheres ou homens que acreditem que se pode construir um mundo melhor. (CHIZIANE, 1994, p. 14).

Em O alegre canto da perdiz, a autora faz jus ao seu pensamento e posicionamento

crítico ao escrever sobre assuntos polêmicos, tais como racismo, assimilação e traços

do sistema de colonização que permanecem no país. As tensões relacionadas à

influência das culturas europeias também se fazem presentes no romance. Mas o que

nos interessa mais de perto nessa escrita é a possibilidade de, a cada trecho do

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romance, certificarmo-nos de que ele se trata de uma ficção criada por Chiziane para

denunciar o modo opressor da vida das mulheres moçambicanas.

Ah, as mulheres negras gastam horas e dias a cuidar do cabelo, mas as brancas não são assim, basta passar uma escova no couro-cabeludo. Um toque, dois toques e já está. As negras passam muito tempo na casa de banho a lavar coisas pequenas. As brancas não são assim. (CHIZIANE, 2008, p. 113).

A comparação é feita pela personagem José dos Montes. Ele relaciona a forma de

mulheres negras e brancas lidarem com o cabelo e parece ser uma metáfora para

compreendermos o grau de pressão que as mulheres negras sofrem para

abandonarem seus referenciais etno-culturais e, consequentemente, sua identidade,

para valorizarem os referenciais da cultura branca. No caso da citação, destaca-se a

rejeição das mulheres negras aos cabelos crespos. A fala da personagem remete a que

se pense que as mulheres brancas já têm uma textura capilar valorizada, assim como a

pele e a condição social, necessitando de menos esforço para serem aceitas.

As condições extremadas de exploração, violação de direitos e violência em todos os

aspectos estão presentes nas narrativas dessas escritoras em uma nova escrita que

encena o cenário da situação das mulheres de seus países. No caso da sociedade

brasileira, Miriam Alves (2010) afirma que, ao longo dos tempos, categorias sociais

baseadas em diferenças físicas, ascendência genealógica, sexo (gênero) e cor da pele

foram usadas como estratégias para predeterminar, ou melhor, excluir ou incluir

cidadãos nessa tessitura societária.

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Essa organização opera “gerando esquemas de valoração que acabam influindo no

pensamento cotidiano, na postura intelectual e na representatividade do imaginário nas

artes, em geral, e na literatura, em particular”. (ALVES, 2010, p. 60). Essas reflexões

nos ajudam a compreender o posicionamento crítico presente na ficção de Evaristo.

Para Alves (2010), é fundamental, para compreendermos a escrita das autoras negras,

que se pensem as relações que as mulheres negras estabeleceram com o feminismo

tradicional nas décadas de 1960 e 1970. Naquele momento, o movimento feminista

pretendia ser uma bandeira que intencionava açambarcar o conjunto de ideários das

cidadãs que se reuniam em pautas reivindicativas em torno do gênero. Durante o

percurso das ações, percebeu-se que as especificidades e vivências das mulheres

negras e lésbicas não eram contempladas nesses movimentos.

Ressaltamos que a participação da mulher negra nos movimentos sociais sempre

existiu na história de resistência da população afro-brasileira. As mulheres negras

protagonizaram, por diversas vezes, ações reivindicatórias que as colocassem, e ao

segmento populacional negro, em igualdade de oportunidades no cenário da sociedade

brasileira.

Não é difícil, para o leitor de Ponciá Vicêncio, ter uma visão dessa situação estrutural

que permeia a sociedade brasileira ainda na contemporaneidade. O que nos interessa

mais de perto neste capítulo é demonstrar que várias escritoras negras brasileiras se

envolveram na militância e, como decorrência, as marcas da situação sociopolítica do

país estão imbricadas em seus textos. Assim sinaliza Conceição Evaristo:

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No ato criativo de “imitação da vida”, no movimento de discordância e/ou de concordância com a existência que lhe é consentida, ou com aquela que a sua percepção lhe permite alcançar, o sujeito autoral acaba por colocar no texto sinais reveladores da constituição de uma sociedade em determinado momento histórico. (EVARISTO apud RUFFATO, 2009, p.19).

Além de encenar os dilemas concernentes à mulher negra no período pós-escravocrata

no Brasil, Evaristo, mulher negra escritora, por meio da personagem Ponciá, revela a

realidade de exclusão social da população afro-brasileira. O romance Ponciá Vicêncio

narra a vida de uma mulher negra, nascida no campo, que busca saída para a sua dura

experiência de vida. No contexto narrativo da obra, vemos que não houve uma

mudança na estrutura de poder da sociedade brasileira no que se refere ao período de

escravidão negra e no que se segue ao regime escravocrata.

A obra é permeada por várias situações que demonstram o quão a protagonista busca

uma situação mais confortável para a sua existência, embora encontre fortes entraves

para alcançar tal objetivo. A sonhada tentativa de melhores dias na capital conduz

Ponciá à condição de empregada doméstica e, fatalmente, a uma baixa remuneração.

O texto ficcional de Conceição Evaristo estabelece, assim, uma relação dialógica com a

história, que muitas vezes é silenciada ou relegada à margem do conhecimento crítico.

A figura da mulher nesses escritos incorpora a história da mulher afro-brasileira. Ponciá,

como mulher negra, é protagonista e promove uma recolha dos conflitos e das

situações de exclusão e opressão individual e coletiva desse segmento populacional. A

narrativa em análise permite ao leitor o entendimento da identificação da mulher em

direção a múltiplos lugares de reorientação contextual, além de demonstrar a

resistência dessa mulher, a sua reafirmação identitária e de dar voz ao sujeito feminino 103

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marginalizado na sociedade brasileira pelo poder patriarcal e pelo racismo. Nesse

sentido, é a valentia de Ponciá que lhe permite enfrentar os conflitos relacionados à sua

exclusão e à de sua família:

Quando o trem foi diminuindo a marcha e parou na plataforma, Ponciá Vicêncio apertou contra o peito a pequena trouxa que carregara no colo durante a viagem inteira. Levantou-se aflita e olhou desesperada lá fora à procura de alguém. Não divisou um rosto conhecido, experimentou um profundo pesar, embora soubesse de antemão que não havia ninguém esperando por ela. Não conhecia ninguém, nunca viera até a cidade e todos os seus parentes haviam ficado para trás. Nenhum deles havia ousado tamanha aventura. Estava escurecendo, Ponciá não sabia bem o que fazer. Caminhou rápido e alcançou o lado de fora da estação. Quis olhar pra trás, mas temeu o desejo de recuo... Caminhou firme, sempre em frente... (EVARISTO, 2003, p. 35).

A personagem enfrentou a situação de mulher sozinha, em uma cidade grande para

onde nunca havia ido, agrava-se ainda essa situação o fato de que ela não sabia

minimamente como enfrentar o desconforto e a infelicidade. No entanto, Ponciá

caminhou determinada a melhorar a sua vida e, por conseguinte, a dos seus familiares.

É possível perceber ainda, no romance, que não há nenhuma tentativa de realçar, em

demasia, um conflito de gênero entre marido e mulher, no que se refere à relação entre

Ponciá e o seu homem. Na perspectiva do romance, os dois, na condição de afro-

brasileiros, que até há pouco tempo viviam escravizados, sofriam idênticos processos

de exclusão. “Ele e outros, estavam pondo uma casa, antiga construção, abaixo. Tarefa

difícil, cada hora era um que pegava na marreta e golpeava as paredes que resistiam.”

(EVARISTO, 2003, p. 20). No entanto, isso não evita que a violência permeie os

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espaços privados do casal, e Ponciá, em sua relação marital, muitas vezes é agredida

pelo marido:

Ele se lembrava, a cada esforço, do barraco onde moravam e que flutuava ao vento. Ao ver a mulher tão alheia, teve desejos de trazê-la ao mundo à força. Deu-lhe um violento soco nas costas, gritando-lhe pelo nome. Ela devolveu um olhar de ódio. Pensou em sair dali, ir para o lado de fora, passar por debaixo do arco-íris e virar homem. Levantou-se, porém, amargurada de seu cantinho e foi preparar a janta dele. (EVARISTO, 2003, p. 20)

Porém, a agressividade dele parece não impedir que Ponciá compreenda que a

violência resultava do sofrimento impingido pela sua condição sociorracial. No entanto,

a sabedoria e a solidariedade dela para com ele fazem com que a situação seja

revertida e o homem passe a ser terno com a esposa. O homem de Ponciá, então,

compadece-se com a angústia que a leva a se ausentar da vida, ainda que viva, e ao

seu lado.

Um dia ele chegou cansado, a garganta ardendo por um gole de pinga e sem um centavo para realizar tão pouco desejo. Quando viu Ponciá parada, alheia, morta-viva, longe de tudo, precisou fazê-la doer também e começou a agredi-la. Quando o homem viu o sangue a escorrer-lhe pela boca e pelas narinas, pensou em matá-la, mas caiu em si assustado. Foi ao pote, buscou uma caneca d’água e limpou arrependido e carinhoso o rosto da mulher. [...] Ponciá comia um tiquinho de nada, bebia muita água, porém. Fitava o homem, mas pouco se podia ler em seu olhar. Nem ódio nem carinho. Ele ficou com o remorso guardado no peito. A mulher devia estar doente, devia estar com algum encosto. (EVARISTO, 2003, p.130).

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Ao longo do romance se notam os dilemas vividos pelo casal, decorrentes de suas

condições de afro-brasileiros e da pobreza advinda da estrutura escravocrata que

marcou a sociedade com diferenças sociais e étnico-raciais que ainda prevalecem até

hoje.

Por outro lado, do continente africano Paulina Chiziane nos relata os dilemas de sua

sociedade no que concerne às relações de gênero:

Os problemas da mulher surgem desde o princípio da vida, de acordo com as diversas mitologias sobre a criação do mundo. Na mitologia bantu depois da criação do homem e da mulher, não houve maldição nem pecado original. Mas foi o homem que surgiu primeiro, ganhando deste modo, uma posição hierarquicamente superior, que lhe permite ser governador dos destinos da mulher. Isto significa que a difícil situação da mulher foi criada por Deus e aceite pelos homens no princípio do mundo. As diversas mitologias não são mais do que ideologias ditadas pelo poder sob a máscara da criação divina. (CHIZIANE, 1994, p. 12).

Chiziane descreve ainda outras facetas dos conflitos que envolvem a sociedade

moçambicana que fornecem material para o seu processo de escrita: “Nós mulheres,

somos oprimidas pela condição humana do nosso sexo, pelo meio social, pelas ideias

fatalistas que regem as áreas mais conservadoras da sociedade.” (CHIZIANE, 1994, p.

13). Em seu processo de auscultar os embates societários de seu país que se

relacionam ao fato de ser mulher e promover o seu registro por meio das letras, a

escritora revela:

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Reencontrei na escrita o preenchimento do vazio e incompreensão que se erguia à minha volta. A condição social da mulher inspirou-me e tornou-se meu tema. Coloquei no papel as aspirações da mulher no campo afectivo para que o mundo as veja, as conheça e reflita sobre elas. Se as próprias mulheres não gritam quando algo lhes dá amargura da forma como pensam e sentem, ninguém o fará da forma como elas desejam. (CHIZIANE, 1994, p. 16).

Paulina Chiziane foi uma das fundadoras da Organização das Mulheres Moçambicanas

(OMM), cujo surgimento ocorreu em 1972, ocasião em que o país ainda permanecia

sob o jugo colonial. Essa Organização possibilitou uma significativa representação

ideológica no que se refere aos direitos das mulheres moçambicanas. A partir de então,

o conceito mulher, outrora definido como orientação de contextos sociais e políticos

específicos, viria progressivamente a dar lugar à fixação de um conflito entre

representações ideológicas do feminino diretamente relacionadas ao quotidiano da vida

das mulheres moçambicanas. A nosso ver, a escrita de Chiziane é permeada pelas

reflexões que nortearam a criação da OMM, as quais impulsionam um novo olhar sobre

a representação social da mulher no país.

No entanto, várias questões são ainda desafios a serem enfrentados para que de fato

se possa afirmar a existência de relações equânimes entre homens e mulheres em

Moçambique.

É de se ressaltar o final convergente das duas obras em análise. Nelas, a conclusão é

marcada pelo percurso de volta das personagens centrais ao seio dos seus entes

queridos, simbolizando um novo cenário para todos. O reencontro de Ponciá com a

mãe e o irmão pode ser lido como possibilidade de reconstituição identitária para

aquele grupo familiar que, após tantas desventuras, poderá ser fortalecido. Talvez o

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fechamento do romance possa sinalizar o fim das agruras vividas pelos filhos de Maria

Vicêncio e também por ela mesma, que sofreu em função da ausência dos filhos, tendo

sido impulsionada a sair do seu canto em busca deles e, por decorrência, de uma

situação mais confortável na vida. A mãe então se recorda do passado, do momento

em que um sonho pareceu ser o prenúncio de que a filha que esperava no ventre, no

futuro, buscaria outros lugares para se sentir melhor na vida:

Uma manhã, Maria Vicência acordou ouvindo choro de criança. Apurou os ouvidos. E na atenção da escuta, o susto. O choro vinha de dentro dela. A criança chorava no interior de seu ventre. Alisou a barriga acarinhando a filha que ali cumpria o tempo de ser, sentiu movimentos e soluços. O que fazer? O que fazer? Como aliviar o choro de um rebento ainda guardado, mas tão suplicante, que parecia conhecer as dores infindas do mundo? (EVARISTO, 2003, p. 124)

No que se refere ao romance da moçambicana, o reencontro de Maria das Dores com

os filhos, com o marido e com a mãe parece indicar auspiciosos tempos, já que esse

reencontro acena para o fato de que a personagem já não mais ocupará o lugar de

submissão que motivara sua fuga. Ao contrário, aparentemente sua resistência

possibilitou-lhe alcançar uma condição que lhe permite afirmar uma identidade feminina

que coincide com a imagem de mulher construída socialmente na região da Zambézia:

ela agora será uma filha negra reconhecida e amada pela mãe, uma esposa também

amada pelo marido e uma mãe que poderá assumir seus filhos. Delfina entrega a filha

Maria das Dores e, depois, arrependida, segue em sua busca da menina por um longo

período. Maria das Dores perde os filhos no processo de fuga e tenta recuperá-los

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também. Assim, a narradora do romance nos dá a dimensão da relação de uma mãe

com os filhos:

Mulher nenhuma suspeita o destino do filho que embala nos seus braços. Não sabe se é a estrela que a fará sorrir ou o espinho que fará o seu coração sangrar. Uma mãe desafia todos os perigos e as sombras más e enche a alma de doces canções. Enquanto embala o filho, também se embala. […] O ventre da mãe é o único ponto de partida para todos os caminhos do mundo. (CHIZIANE, 2008, p. 336- 34).

No romance de Chiziane a personagem Maria das Dores reencontra condições que lhe

permitem ser mulher, mãe, esposa, amar e seguir em frente. Acreditamos que, dessa

forma, a dominação e a imposição patriarcal são esgarçadas na obra, permitindo-nos

ler um cenário que aponta para relações de equidade e de valorização do sujeito

feminino.

Com Butler (2003), interpretamos as obras procurando mostrar que as escritoras

revelam os mecanismos de opressão que operam sobre as mulheres em lugares

diferenciados. Nesse caso, em Moçambique e no Brasil. Esses textos se distanciam

das narrativas que secularmente marcaram o cenário literário e que incutiam

preconceitos relacionados a cor, raça e sexo.

Os valores canônicos imperativos na literatura são rasurados por Evaristo ao

romancear Ponciá Vicêncio, mulher valente que conduz os passos da sua família em

direção a um processo libertário. No entendimento de Constância Lima Duarte (2009),

as narrativas de Evaristo parecem apontar para um novo paradigma. Segundo ela, a

competência da escritora, para verticalizar “no pensamento e na ação do oprimido, para 109

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construir sua ficção-verdade, pode ser verificada não apenas nos contos, mas também

nos poemas e romances que publicou”. (DUARTE, 2009, p. 318). A pesquisadora

acentua que a romancista contamina a sua obra de angústia coletiva, testemunha a

banalização do mal e da opressão de classe, etnia e gênero. Duarte destaca o grande

valor da obra de Evaristo na medida em que a escritora “ainda se faz de porta-voz da

esperança de novos tempos”. (DUARTE, 2009, p. 322).

Chiziane também apresenta mulheres insubordinadas que buscam alterar o status de

opressão que insiste em rodeá-las. Nesse sentido, Fonseca esclarece que:

Paulina Chiziane nos revela, em alguns depoimentos, a importância que teve para a produção de seus livros observar o trabalho das mulheres moçambicanas pertencentes às camadas mais pobres e os rituais que se desenvolvem em torno das funções exercidas por elas. Um desses rituais, o da contação de histórias, esteve presente em sua infância, como a tradição das cantigas que acompanham os trabalhos da mulher: lavar roupa, pilar milho, amendoim, plantar a terra. Observou também os cuidados na educação dos filhos, o cumprimento das tradições e os compromissos ditados pelos novos tempos. (FONSECA, 2003, p. 309).

O romance O alegre canto da perdiz, assim como os demais escritos por Paulina

Chiziane, encena o cotidiano das mulheres moçambicanas, o modo de cuidar dos filhos

e da família, o costume da contação de histórias e de outras práticas orais, o cuidado

com a terra, os rituais, os desejos e as frustrações. A escritora aponta igualmente os

desacertos presentes no tecido social moçambicano que teve origem com a

colonização do país. Para além disso, os conflitos entre homem e mulher são

ficcionalizados com o objetivo também de se buscar equidade para as relações entre

os sexos:

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As mulheres sozinhas são rainhas e têm orgulho de existir como no princípio do mundo. Escravizadas, saem à rua, lutam pela liberdade, mas quando estão dentro do quarto imploram de novo pela escravatura e domínio masculino. E os homens, esses heróicos vencedores, são reis apenas quando estão sós. Nos braços das mulheres uivam como crianças. (CHIZIANE, 2008, p. 322-301).

Não poderíamos deixar de mencionar ainda o papel das anciãs que costuram as tramas

romanescas e fazem as personagens conhecerem os lugares instituídos para cada um

nas sociedades em que vivem. É por meio das anciãs que as personagens conseguem

se situar, se orientar para uma nova compreensão e eventuais mudanças de atitudes

diante das alterações históricas que permeiam suas vidas.

No romance de Evaristo, Nêngua Kainda possibilita que Ponciá reencontre a mãe e o

irmão no final da narrativa, embora ela lhes tenha mostrado os caminhos a serem

trilhados várias outras vezes. Como na situação em que Luandi, o irmão de Ponciá,

deposita confiança na ancestral entregando-lhe o endereço onde se encontrava na

cidade: “[…] voltou em Nêngua Kainda, meio sem jeito e com medo de novas

advertências da velha, deixou com ela o endereço de onde morava” (EVARISTO, 2003,

p. 94). Esse foi o instrumento que propiciou o reencontro da família. Foi pelas mãos da

anciã que, ao final da narrativa, o destino da família Vicêncio se cruzou:

E quando a mãe de Ponciá e de Luandi entregou ao soldado Nestor um papelzinho dobrado, quase rasgado pelo tempo e que ela cuidadosamente guardava enrolado num pedacinho de pano, entre os seios, ele sorriu reconhecendo a própria letra. Era como se previamente soubesse de tudo, pois tinha sido justo ele o autor daquela identificação

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que Luandi deixara um dia com Nêngua kainda, para que a velha entregasse a sua mãe. (EVARISTO, 2003, p. 116).

Na ficção de Chiziane é a anciã, esposa do régulo, quem socorre a multidão que se

aflige com a desestabilizadora chegada de Maria das Dores na cidade:

-O que houve? O que vos traz aqui?- A senhora que conhece os segredos deste e de outro mundo, os caminhos do além, os detalhes do mistério do horizonte, acuda-nos.- Porque?- Aquela mulher nua nas margens do rio. Parecia uma deusa, ou um demônio![…]- Calma criaturas. Não houve presságio nenhum na guerra que foi, mas morreu gente. Não houve anúncio na seca que findou, mas houve tormenta. Não houve profecias misteriosas antes da praga de gafanhotos que dizimou os campos e nos matou de fome. (CHIZIANE, 2003, p. 18-20).

A partir dessa situação a velha orienta e explica à comunidade para que essa possa

compreender o destino que lhe está predestinado em função dos embates vividos em

tempos passados e dos enfrentamentos e desafios do período atual. É sob a mediação

da anciã que as pessoas conseguem um alento para conviverem no mesmo espaço em

que a louca, desnuda, anuncia novos tempos.

No que se refere à aparente loucura das personagens Ponciá e Maria das Dores, o

nosso entendimento é o de que, na verdade, o comportamento delas, como dissemos

anteriormente, reflete a resistência de ambas ao sistema patriarcal, escravocrata e

opressor. Nessa direção, compreendemos, com Fanon (1983), o que determinou a

atitude de insubordinação das personagens: 112

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o problema do negro não se limita ao dos Negros que vivem entre os Brancos, mas sim dos Negros explorados, escravizados, humilhados por uma sociedade capitalista, colonialista, acidentalmente branca. (FANON, 1983, p. 164).

A nosso ver, as romancistas, nas suas formas de escrever, conduzindo as personagens

femininas ao processo de insubmissão e protagonismo, fazem-no também a partir dos

pressupostos atribuídos à literatura menor. As situações domésticas vividas pelas

mulheres nos dois romances são, na verdade, realidades vividas por mulheres em

todas as sociedades, de uma forma ou de outra. Não obstante, as escritoras

apresentam os conflitos que subjazem às vivências das mulheres de maneira politizada,

demonstrando que os embates cotidianos entre gêneros são permeados pelas relações

de poder.

Por fim, Evaristo e Chiziane nos permitem compreender os dilemas relacionados a

gênero na sociedade em que vivem, a partir do viés literário. Tal construção se realiza,

como temos acenado, a partir de suas experiências de vida, o que confere aos

romances dessas escritoras o lugar de uma escrita de resistência.

Ao realizarem a construção literária nesses termos, as duas escritoras estão em

consonância com as reflexões sistematizadas por Luiza Lobo (2012). Essa teórica

argumenta que a autoria feminina sofrerá alterações substanciais quando as escritoras

se diferenciarem do trivial modo de escrever que canonicamente tem sido produzido, ou

seja, se elas se enveredarem por uma escrita que relate cenas que não são

consideradas relativas às atividades que sempre foram “consideradas domésticas e

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femininas e ainda de outros estereótipos do feminino herdados pela história, voltando-

se para outros assuntos habitualmente não associados à mulher até hoje”. (LOBO,

2012).

3. LITERATURA E ETNICIDADE

3.1 Relações étnico-raciais nas literaturas afro-brasileira e moçambicana

Espera-se que a mulher negra seja capaz de desempenhar determinadas funções, como cozinhar muito bem, dançar, cantar, mas não escrever. Às vezes me perguntam: você canta? E eu digo: não canto nem danço. (EVARISTO apud FREDERICO, 2011).

O fato é: os portugueses que aqui ficaram no pós-independência mantiveram os seus privilégios e os seus descendentes também, por conta da sua mestiçagem, são filhos de pai branco e daí o seu conceito dentro da sociedade moçambicana é mais elevado. (CHIZIANE apud DIOGO, 2010).

As epígrafes que iniciam este capítulo denotam o envolvimento das escritoras

Conceição Evaristo e Paulina Chiziane com a tematização das tensões subjacentes no

Brasil e em Moçambique acerca das questões de etnia e raça.

São várias as cenas presentes nas obras que corroboram com as leituras que fazemos,

como o excerto em que a narradora aponta os traços identitários e étnicos que

relacionam Ponciá ao seu passado familiar, o que denota a organização da escrita no

sentido de demonstrar a oposição ao tratamento racista do negro que a neta herda do

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avô:

Desde pequena, Ponciá sabe que seu avô lhe deixara uma enigmática herança. Já nos seus primeiros passos, imitava o jeito peculiar do avô de andar – curvado para frente, com o braço mutilado atrás das costas. A figura do avô foi, também, o primeiro trabalho moldado no barro. Esses eventos já eram um prenúncio da herança anunciada no riso choroso: a loucura e a releitura da tradição. (EVARISTO, 2003, p. 25).

Na retratação das mazelas vividas pela família de Ponciá observa-se a trajetória de

resistência da personagem central à condição de subalternidade em que o negro ainda

se encontra na sociedade, as suas dúvidas e incertezas. Interessa-nos, nesta análise

literária, sobretudo o olhar da protagonista em direção a história dos seus

antepassados, sua vivência em busca da liberdade para si e para os seus entes

próximos. Na trama narrativa do romance, a vida de Ponciá Vicêncio é determinada a

partir de questões que remetem à vertente afro do contexto sócio-histórico brasileiro.

Nessa perspectiva, Eduardo de Assis Duarte (2006) afirma que

[…] irmanado a essa vertente afro, o texto de Ponciá Vicêncio destaca-se também pelo território feminino de onde emana um olhar outro e uma discursividade específica. É desse lugar marcado, sim, pela etnicidade que provém a voz e as vozes-ecos das correntes arrastadas. Vê-se que no romance fala um sujeito étnico, com as marcas da exclusão inscritas na pele, a percorrer nosso passado em contraponto com a história dos vencedores e seus mitos de cordialidade e democracia racial. Mas, também, fala um sujeito gendrado, tocado pela condição de ser mulher e negra num país que faz dela vítima de olhares e ofensas nascidas do preconceito. Esse ser construído pelas relações de gênero se inscreve de forma indelével no romance de Conceição Evaristo, que, sem descartar a necessidade histórica do testemunho, supera-o para torná-lo perene na ficção. (DUARTE, 2006 p. 308 ).

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O romance O alegre canto da perdiz destaca aspectos alusivos à mestiçagem na

sociedade moçambicana, em especial na província da Zambézia, ao destrinçar,

inicialmente, nuances da relação que negros colonizados estabeleceram com os

brancos, seus colonizadores. A narradora nos dá possibilidades para compreender

essa situação no romance por meio da personagem Delfina quando ela expressa seu

desejo de, como mulher negra, querer um filho que não seja negro, por acreditar que,

na sociedade colonial em que vivem, ele “Não precisará de muita labuta para ser gente,

para ter bom emprego, boa casa, boa vida, porque o poder é a sua herança”.

(CHIZIANE, 2008, p. 184).

Percebemos que a escritora problematiza não somente as relações entre as etnias

branca e negra, mas a própria constituição multiétnica que marca o hibridismo cultural

caracterizador do tecido societário moçambicano ao longo de sua formação. Nesse

aspecto, interessa-nos em especial a correlação que o romance estabelece com as

tramas que subjazem à sociedade brasileira. Nesse aspecto, concordamos com

Ngomane (2008) ao afirmar que

entender porque a província de Zambézia é apelidada de Brasil de Moçambique, em alusão ao seu lado mestiço, passa, afinal de contas, pela captação não somente das relações estabelecidas entre o sujeito autóctone e alóctone, o nativo e o estrangeiro, o marinheiro e a prostituta, o sipaio e a administração, o patrão e o empregado(a), etc., mas também das relações que se estabelecem no seio do próprio sujeito autóctone, enquanto grupo social em contacto com outros grupos, tendo como eixo a imponente figura da mulher e a velha crença no mito do “melhoramento da raça” (NOGMANE apud CHIZIANE, 2008, p. 342).

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Assim, as autoras, por meio das narradoras, apresentam-nos personagens que

explicitam ao leitor o pertencimento étnico dos que constituem o enredo, tais como as

posturas, os comportamentos e os hábitos. Tais evidências são fulcrais para o nosso

entendimento acerca da perspectiva a partir da qual cada romance apresenta a

constituição societária dos dois países e, também, das tensões subjacentes neles

encenadas no universo romanesco.

Chiziane, por exemplo, faz com que vejamos como a origem étnica dos moçambicanos,

que muitas vezes é apreendida por meio de certas características e posturas, revela as

questões étnico-raciais características da história da formação híbrida do país. Em

vários momentos do romance, é notório o fato de que as personagens se utilizam de

caricaturas com vistas a evidenciar as características uns dos outros, conforme os

costumes da tradição oral moçambicana. Podemos citar o caso da personagem médico

em relação à tentativa de saber um pouco mais sobre a personagem Maria das Dores:

“esta mulher deve ser de Quelimane, onde as sereias se batem pela posse de um

homem branco para colher o sêmen, gerar um filho e encher o mundo com o colorido

da nova raça.” (CHIZIANE, 2008, p. 53).

Encontramos nos dois romances as tramas que envolvem as diversas problemáticas

sobre as relações étnicas no Brasil e em Moçambique. Na escrita literária de Evaristo,

podemos perceber, por exemplo, alguns aspectos que distinguem a identidade étnico-

racial da família de Ponciá e a da família Vicêncio, o qual deu sobrenome à menina e

aos seus parentes. Tal situação pode ser analisada na passagem em que a mãe de

Ponciá rememora as vivências dos seus entes queridos, demarcando um lugar de

pertença:

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A mãe, com os olhos fechados, revivia outras cenas: a menina, Vô Vicêncio, a passagem dele, a passagem de seu homem, a sapiência de Nêngua Kainda, a terra dos negros, os trabalhos de barro, o filho agora e por enquanto soldado, a voz de mando, a terra dos brancos, a resistência teimosa e muitas vezes silenciosa do negro, travestida de uma falsa obediência ao branco. (EVARISTO, 2003, p. 124).

O romance O alegre canto da perdiz também problematiza questões relativas à

identidade étnico-racial do país. É o que vemos, por exemplo, na reflexão trazida por

meio da personagem mais velha, esposa do régulo, sobre as várias etnias constituídas

a partir da colonização impingida ao continente africano, quando ela faz uma leitura a

respeito da mistura étnica à qual pertencem ela e o povo do lugar.

Temos o sangue dos franceses, brasileiros, indianos de Goa, Damão e DIU, desterrados nos palmares da Zambézia. Viemos da nobreza e da pobreza. Viemos em passos silenciosos dos fugitivos, em passos agressivos de conquistadores. Nascemos diferentes vezes com diferentes formas. Morremos várias vezes, silenciosamente, como os montes na corrosão dos ventos. (CHIZIANE, 2008, p. 24).

Nos dois romances é possível ler, na estrutura social dos grupos envolvidos na trama

narrativa, a influência da cultura do colonizador. Não obstante, as identificações étnico-

raciais das personagens são possíveis por meio da defesa de um modo de vida

comum, da religião e outros fatores culturais.

Para a definição de etnia, valemo-nos neste estudo do conceito apresentado pelo

sociólogo Antônio Sergio Guimarães (1999), para quem etnicidade é:

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A articulação das lutas de classe, das particularidades de gênero, dos processos culturais e históricos. A etnicidade de um povo ou grupo refere-se às diferenças “raciais” que se aproximam por relações múltiplas de língua, religião, história, conhecimento e defesas comuns, constituindo, assim, um campo de comunicação e interação que o distinguirá de outros. Grupos étnicos são os que se supõem ter um comportamento susceptível de mudar. Etnicidade também pode ser definida como uma “identidade social, caracterizada por parentesco metafórico ou fictício”. (GUIMARÃES, 1999, p. 23 ).

Quando falamos em raça estamos nos referindo não ao conceito biologizado,

essencialista, e sim a uma construção social. Essa construção nos tem ajudado a

orquestrar argumentos que possam fortalecer os embates travados nas sociedades que

discriminam grupos de pessoas, sobretudo pelas suas características físicas, em

especial, no nosso caso, pela condição de africanos negros e afro-brasileiros.

Stuart Hall (1999), a partir do entendimento de que as nações aglutinam classes

sociais, grupos étnicos e de gênero diversificados, argumenta que a Inglaterra, no

período vitoriano e imperial, tentou unificar as classes por meio de divisões sociais,

sendo que a unificação delas se daria pela imagem da família da nação. O autor afirma

ainda que as nações ocidentais modernas, também neoimperialistas, exerciam

hegemonia cultural sobre as culturas dos colonizados.

O pensador questiona a insistência das sociedades modernas em tentar unificar as

culturas em um único povo. Nessa perspectiva, a etnia é o termo utilizado comumente

quando essas sociedades referem-se às características culturais – língua, religião,

costume, tradições, sentimento de lugar – atinentes a um povo. Contra essa

argumentação que tenta unificar a cultura de determinados grupos, Hall afirma que

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[…] essa crença acaba, no mundo moderno, por ser um mito. A Europa ocidental não tem qualquer nação que seja composta de apenas um único povo, uma única cultura ou etnia. As nações modernas são, todas, híbridos culturais. (HALL, 1999, p. 62).

Unificar a identidade nacional em torno da raça, segundo ele, é muito mais difícil na

medida em que ela não é uma categoria biológica ou genética do ponto de vista da

ciência, de modo que a diferença genética não pode ser usada para distinguir um povo

do outro. Para Hall,

[…] raça é uma categoria discursiva e não uma categoria biológica. Isto é, ela é a categoria organizadora daquelas formas de falar, daqueles sistemas de representação e práticas sociais (discursos) que utilizam um conjunto frouxo, frequentemente pouco específico, de diferenças em termos de características físicas – cor da pele, textura do cabelo, características físicas e corporais, etc. – como marcas simbólicas, a fim de diferenciar socialmente um grupo de outro. (HALL, 1999, p. 63).

Ainda que se desconsidere o caráter não científico do termo, o modo como a lógica

racial e os quadros de referências raciais são articulados e acionados faz com que as

suas consequências não sejam anuladas. São essas elucubrações de Hall que nos

permitem considerar como pertinentes para nossa análise as suas reflexões críticas

sobre raça e identidade cultural unificada. Ele verticaliza a sua discordância com a

assertiva com a qual nos aliamos ao dizer que “as identidades nacionais não

subordinam todas as outras formas de diferença e não estão livres do jogo de poder, de

divisões e contradições internas, de lealdades e de diferenças sobrepostas”. (HALL,

1999, p. 65).

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As formulações desses estudiosos são fulcrais para que possamos entender melhor as

obras de Conceição Evaristo e Paulina Chiziane. O romance Ponciá Vicêncio mostra a

tentativa das personagens, sobretudo da personagem principal, de reconstruir uma

identidade no mundo antagônico em que vive naquele momento histórico encenado na

obra. Percebe-se todo o movimento de Ponciá e seus parentes em busca dessa

identidade concernente a um novo modo de vida, que se distancie do que foi vivido

quando eram oficialmente escravizados.

A propriedade rural pertencente ao Coronel Vicêncio, onde morava a família de Ponciá,

indicava o dono das terras e também das pessoas que ali viviam. A terra, pertencente a

uma geração de coronéis, foi repartida, no passado, entre os negros recém-libertos, sob

a condição de que eles continuassem ali, trabalhando para os brancos, agora sob um

regime de escravidão repaginado. Ao mesmo tempo, a ida para a cidade não significa

uma mudança significativa para Ponciá, já que, ao migrar do espaço rural para o

espaço urbano, ela se torna empregada doméstica e passa a morar num barraco numa

favela, condição que, de muitas maneiras, estabelece para a personagem um modo de

vida semelhante ao da vida dos escravos. Sendo assim, podemos perceber no romance

a legitimação não somente da prática da escravização pós-abolição, como também da

continuidade do ciclo de opressão e exploração dos negros e negras das futuras

gerações. Por isso, o desenrolar da narrativa nos mostra a tentativa da família de

Ponciá de se safar da perversa violência e exclusão social nas quais estava inserida.

Em consonância com essa busca por liberdade, Ponciá procura superar o aprendizado

do pai, que só sabia reconhecer as letras, mas não lia. A protagonista, então, ingressa

em um curso de alfabetização, promovido por missionários em visita ao povoado onde

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mora. Esse curso não teve continuidade, embora Ponciá já tivesse alcançado a

formação das sílabas. A menina segue obstinada em prol de realizar o seu propósito,

que é aprender a leitura, com muito esforço pessoal e a forte colaboração da mãe. A

leitura aqui é percebida como um instrumento para a conquista da liberdade, uma

chave que abriria melhores oportunidades na busca pela ascensão social:

Da leitura era preciso tirar outra sabedoria. Era preciso autorizar o texto da própria vida, assim como era preciso ajudar a construir a história dos seus. E que era preciso continuar decifrando nos vestígios do tempo os sentidos de tudo que ficara pra trás. E perceber que, por baixo da assinatura do próprio punho, outras letras e marcas havia. A vida era um tempo misturado do antes-agora-depois-e-do-depois-ainda. (EVARISTO, 2003, p. 127).

Reiteramos que o romance de Chiziane, em análise, é a leitura mais significativa do

conflito racial que subjaz à ideia de uma identidade moçambicana, e ainda, dos

resultados dos processos históricos das realidades colonial e pós-colonial daquele país.

A narradora, desde o início do romance, distingue dois processos de discriminação:

racial e de gênero. Destacamos o seguinte trecho que joga luz à nossa compreensão

sobre as relações étnico-raciais em Moçambique apresentadas na obra.

Não era a raça que rejeitava, mas a dor antiga que a magoava. Estava possuída pelos fantasmas dos homens do mar e tentava eliminar, com tinta vermelha, as marcas de uma raça.

– És linda, filha, mereces melhor sorte. És uma negra daquelas que os brancos gostam. Tens lábios gordos com muito tutano, cheios de sangue, cheios de carne, sobrancelhas fartas como novelos de seda. Dentes de marfim e olhos de gata. Tens o peito cheio e um traseiro de rainha, bem modelados e recheados. Vais desperdiçar todo esse

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tesouro nas mãos de um preto? (CHIZIANE, 2008, p. 99).

Trata-se da negação da personagem Serafina à possibilidade de ceder a mão da sua

filha Delfina para se casar com um homem negro. O entendimento da mãe era o de

que, para sair da situação de opressão e subalternidade vivida pela população

moçambicana negra na época colonial, o ideal era que a filha se casasse com um

homem branco. O romance nos impele a conhecer mais sobre os embates relacionados

à temática étnico-racial em Moçambique, sobretudo quando nos aliamos às reflexões

de Frantz Fanon (1983) quando argumenta que a alma negra é uma criação de

brancos, que o branco segue escravizado pela sua brancura e que, igualmente, o negro

fica escravizado pela sua condição de negrura. O psiquiatra entende que o preconceito

de cor constitui-se como um fenômeno superestrutural, sendo consequência direta da

irracionalidade das estruturas societárias que o produzem.

Por essa perspectiva desenvolvida por Fanon, compreendemos os conflitos,

contradições e mutações ocorridos no comportamento das personagens, a partir de

Serafina, mãe de Delfina, que rejeita o seu casamento com um homem negro. Assim,

assistimos, no desenrolar da trama, ao sofrimento do negro escravizado pelo seu

pertencimento racial e em busca da branquitude. Assim, como reflete Fanon, Chiziane

romanceia a situação em que as sociedades se dividem entre colonizadores e

colonizados, sendo que ao primeiro grupo se confere o poder de definir a inferioridade

do segundo grupo.

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Todas essas assertivas nos abrem uma chave de leitura para compreender a

complexidade da temática encenada na obra de Chiziane. A personagem Serafina

recusa, inicialmente de maneira vigorosa, o casamento da sua filha Delfina com o negro

José dos Montes. A justificativa dada é a de que o pertencimento racial dele não

possibilitaria ascensão social para a sua família. Dessa forma, a mãe indicava à filha a

união com homem branco para que as condições de vida dela de fato fossem melhores:

- Melhora a tua raça, minha Delfina! Repete inconscientemente o que ouvia da boca de tantas mães negras. E dos brancos. Casar com um preto? Confirmando que o sexo é uma arma de combate em tempo de guerra. Casar com um preto? Palavras comuns na boca dos marinheiros. Que os próprios negros adoptam como verdades inquestionáveis. As frases ouvidas gravam-se na mente e materializam-se. E as falsidades ganham a forma de verdade. Serafina absorveu a vida inteira as injúrias nos gritos dos marinheiros, que acabaram semeadas na consciência. Na arena da consciência luta contra ti próprio, numa batalha sem vitória. O estigma da raça deixou sementes cancerígenas, que se multiplicam como a raiz de um cancro, e matarão gerações, mesmo depois da partida dos marinheiros. (CHIZIANE, 2008, p. 92)

Nesse trecho, como em vários outros diálogos ou intervenções da narradora, é possível

fazermos uma leitura do quão foi semeado na mente dos colonizados o mito da

superioridade do branco em relação ao negro. A tal ponto foi estabelecida a relação de

discrepância, no sentido de desvalorizar os negros no período colonial, que a

personagem Serafina, buscando a assimilação, incita a filha Delfina a tornar-se

assimilada. A atitude dessas personagens, ao sucumbirem à assimilação, evidencia o

quanto os negros naquele período foram forçados a se assimilarem, e dessa forma, a

cultura dos brancos foi brutalmente imposta a eles.

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Sabemos que a política de assimilação foi uma tentativa do colonialismo português de

destruir a tradição cultural de suas colônias africanas e, através da europeização,

formar uma elite privilegiada por colaborar com os colonizadores. A assimilação

correspondia a um pensamento de que as nações europeias sempre foram capazes de

aculturar outros povos e de que, por meio dessa tradição, ela inclusive teria essa

incumbência. Leis como o estatuto do indígena, promulgada em Portugal em 1921,

dividiam os africanos em indígenas e assimilados. Os assimilados podiam, por

exemplo, adquirir propriedade e não eram obrigados a trabalhar em obras públicas,

porém tinham que prestar o serviço militar, trabalhar para a administração pública,

comprovar bens e manter uma vida cristã. A quantidade de assimilados nas colônias

portugueses era mínima, o que levou Mário Pinto de Andrade a constatar ser o campo

de exercício da colonização gerador de conflitos resultantes da confrontação entre a

minoria alógena e a maioria autóctone. (ANDRADE, 1997).

A marcante presença do colonizador na então colônia moçambicana impunha a

legitimação da ordem hierárquica da cultura dos povos da metrópole sobre a cultura

dos colonizados, considerando essa posição natural. O colonizado que aceitasse essa

condição era premiado com a perspectiva de mobilidade social. Pelo entendimento de

José Luís Cabaço (2002), “para se perpetuar, o colonialismo deve, pois, abrir ao

colonizado a aspiração de poder deixar de ser um excluído e vir a integrar a sociedade

de abundância que está criando com o seu trabalho” (CABAÇO, 2002, p. 362).

A necessidade de se aliar à elite para alcançar mobilidade social surgiu para muitos

moçambicanos no período colonial como tentativa de se sentir menos desdenhado, tal

como a personagem Delfina demonstra quando, em desespero diante da falta de

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alternativas de melhoria social em que vive, busca justificativas para sua futura adesão

ao processo de assimilação:

Eu nada sou, mãe. Nada do que faço tem sentido. Não pude estudar. Não posso sonhar. E quando faço algo para melhorar a vida o mundo inteiro zomba de mim e me trata como uma criminosa. As filhas dos assimilados são tratadas com mais respeito. (CHIZIANE, 2008, p. 82).

Assim como discorre Fanon, o dilema do negro colonizado era tentar ser aceito pelo

colonizador branco. A existência dele estava intimamente relacionada à condição de ser

aceito pelo Outro, cujos preceitos baseavam-se em referências culturais valorizadas,

afinal, esse Outro dizia que Eu, negro, “parasito o mundo, que é preciso que

acompanhe o mais rapidamente possível o mundo do homem branco”. (FANON, 1983,

p. 82).

Os diálogos acima, protagonizados pelas personagens Serafina e Delfina, remetem-nos

também aos estudos desenvolvidos por Albert Memmi (2007). O autor demonstra que o

colonizado é considerado, pelo opressor, como pertencente a um grupo inferior,

medíocre e não capaz de ser inserido de maneira igualitária na sociedade do período

colonial. A rejeição e o desprezo do colonizador alimentam, nesses povos, o sentimento

de colonização, que os impulsionam ao desejo de tentar se igualar àquele que é

referência de elite. Dessa forma, a necessidade de autoafirmação por parte do

colonizado se reveste de um desejo de mudar de pele, de hábitos e de modo de vida,

com vistas a ser aceito pelo branco. Muitos negros, à época colonial, desenvolviam o

ódio por si mesmos. (MEMMI, 2007).

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O romance de Paulina Chiziane aponta criticamente situações de tensão vividas no

período colonial que ilustram as ideias de Fanon (1983) e Memmi (2007), que

destacamos, sobre a imagem de si que o negro constrói, à luz do olhar do branco

opressor. A narradora apresenta os dilemas e as contradições vividos pelas

personagens, sobretudo por Delfina, que intenta migrar da condição de subordinação e

opressão buscando se aliar ao modo de vida, costumes e hábitos dos brancos.

Pensamos que, na contemporaneidade de Moçambique, como de resto de todo mundo,

outras formas de relação entre as etnias devem perpassar a ideia de construção das

nações, assim como sinaliza Carlos Serra (2000): “Afinal, não é a raça que leva ao

racismo, é a produção e a gestão dos recursos de poder que levam à segregação, à

produção social do Outro, categorizado e, em muitos casos, racializado”. (SERRA,

2000, p. 255).

No entender desse pesquisador, Moçambique, por exemplo, é hoje um país

multifacetado, onde se podem ver, além das marcas das heranças históricas, das

políticas econômicas e sociais do final do século XX, as identidades étnicas

funcionarem como fenômenos agregadores. Dessa forma, muitas vezes é possível se

perceberem no país estratégias de gestão social para suprir deficiências sociais

existentes e garantir acesso a serviços básicos por meio de redes primárias de

solidariedade baseadas em identidades étnicas e étnico-religiosas.

Serra, citando Chabal e Daloz, argumenta que

as elites africanas situam-se frequentemente num contexto em que o “moderno e o tradicional” operam em conjunto, e em que o apelo à

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etnicidade pode representar uma re-ancoragem na própria história do país, e talvez uma forma de criar espaço para um enquadramento político que assente numa realidade multiétnica. (CHABAL e DALOZ apud SERRA, 2000, p. 201).

Por outro lado, a pesquisadora e ativista do movimento feminista brasileiro Sueli

Carneiro (2011) informa que a ciência revela, de maneira evidente, a falácia do conceito

de raça do ponto de vista biológico e que essa constatação científica é útil para

esvaziar as reivindicações de políticas específicas para grupos que são discriminados

com referência em sua raça ou cor de pele. Para Carneiro,

As novas pesquisas destroem as bases do racialismo do século XIX, que consagrou a superioridade racial dos brancos em relação a outros grupos humanos, justificando opressões e privilégios, mas elas ainda não tiveram impacto sobre as diversas manifestações de racismo em ascensão no mudo inteiro, e sobre a persistente reprodução de desigualdades que ele gera, o que reafirma o caráter político do conceito de raça, a sua permanência e atualidade, a despeito de ser insustentável do ponto de vista biológico. (CARNEIRO, 2011, p. 69)

Todas essas reflexões que apresentamos acima nos permitem ler melhor as questões

étnico-raciais presentes nos romances Ponciá Vicêncio e O alegre canto da perdiz,

os quais ficcionalizam esses embates vividos no Brasil e em Moçambique.

3.2 A tessitura romanesca de Evaristo e a temática étnico-racial no Brasil

O romance Ponciá Vicêncio retrata a história de uma família de negros outrora

escravizada e que ainda é mantida em uma situação de opressão e exploração. A 128

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situação de escravização, que no presente da narrativa não é mais oficial mas que se

mantém na informalidade, é motivo de questionamento das personagens. De maneira

mais explícita lemos essas conjecturas na voz da personagem Ponciá, mas a

resistência do pai dela é demonstrada também por meio do excerto abaixo, onde se lê

uma manifestação de incômodo com a situação de inferioridade pela qual a sua família

passava e que leva a personagem a questionar sobre a necessidade de buscar

alternativa para aquela condição, e que ela fosse libertária.

[O pai de Ponciá] Era pajem do sinhô-moço. Tinha a obrigação de brincar com ele. Era o cavalo onde o mocinho galopava sonhando conhecer todas as terras do pai. Tinham a mesma idade. Um dia o coronelzinho exigiu que ele abrisse a boca, pois queria mijar dentro. O pajem abriu. A urina do outro caía escorrendo quente por sua goela e pelo canto de sua boca. Sinhô-moço ria, ria. Ele chorava e não sabia o que mais lhe salgava a boca, se o gosto da urina ou se o sabor de suas lágrimas. [...] Se eram livres, porque continuavam ali? Porque, então, tantos e tantas negras na senzala? Por que todos não se arribavam à procura de outros lugares e trabalhos? (EVARISTO, 2003, p.14).

Assim, o romance de Conceição Evaristo nos apresenta um cenário no qual as relações

societárias remetem às tensões raciais vividas pelos negros e afrodescendentes no

Brasil. A persistência da personagem principal em se desvincular da vida subalterna e

escravizada que a sua família negra tinha em relação à vida dos brancos, donos das

terras em que viviam, é acentuada em toda a narrativa:

Quando Ponciá Vicêncio resolveu sair do povoado onde nascera, a decisão chegou forte e repentina. Estava cansada de tudo ali. De trabalhar o barro com a mãe, de ir e vir às terras dos brancos e voltar de

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mãos vazias. De ver a terra dos negros coberta de plantações, cuidadas pelas mulheres e crianças, pois os homens gastavam a vida trabalhando nas terras dos senhores, e depois a maior parte das colheitas ser entregue aos coronéis. Cansada da luta insana, sem glória, a que todos se entregavam para amanhecer cada dia mais pobres, enquanto alguns conseguiam enriquecer-se a todo o dia. Ela acreditava que poderia traçar outros caminhos, inventar uma vida nova. (EVARISTO, 2003, p. 33).

Nesse trecho, mais uma vez notamos o protagonismo da mulher Ponciá, que lidera a

resistência em relação ao modelo opressor que exclui de si e da sua família melhores

oportunidades sociais. Além dessa possibilidade de leitura, a personagem reitera como

são as mulheres e as crianças que alavancavam as poucas condições propícias à

ascensão social dos coronéis, donos da terra em que viviam, na medida em que

cuidavam das plantações deles, enquanto aos homens negros era destinada a tarefa de

manter o lucro dos patrões, já que trabalhavam nas terras dos senhores.

A personagem Ponciá questiona a todo tempo a origem do sobrenome da sua família,

herdado do processo escravocrata. O sobrenome, herança dos brancos colonizadores,

nada dizia para aquela menina que o rejeitava por não se identificar com ele. Ela sentia

necessidade de buscar outras referências que a identificassem na vida. Para tanto

inventava outros nomes, em busca de pertencimento étnico. Esse exercício da

personagem denota seu desconforto com a condição estrutural de permanência da

opressão escrava:

Quando mais nova, sonhara até um outro nome para si. Não gostava daquele que lhe deram. Menina, tinha o hábito de ir à beira do rio e lá, se mirando nas águas, gritava o próprio nome: Poncia Vicêncio! Sentia como se estivesse chamando outra pessoa. Não ouvia o seu nome

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responder dentro de si. Inventava outros. Pandá, Malenga, Quieti, nenhum lhe pertencia também. Ela, inominada, tremendo de medo, temia a brincadeira, mas insistia. A cabeça rodava no vazio, ela vazia se sentia sem nome. Sentia-se ninguém. Tinha, então, vontade de choros e risos. (EVARISTO, 2003, p. 19)

A personagem, em busca da sua identidade, escolhia nomes que remetem à cultura

africana, o que nos permite observar como ela busca sua identidade nessa cultura

outra, a negra. Nessa perspectiva, lemos, nos nomes que imagina para si e que se

opõem àquele que lhe foi dado pela cultura branca, a sua identificação com a sua

condição de afrodescendente.

A inquietude que se inicia na fase de criança persegue a protagonista ao longo de toda

a narrativa. Assim, na fase adulta, Ponciá mantém um isolamento que caracteriza seu

repúdio a um nome com o qual ela não se identifica e a papéis sociais que ela rejeita. É

o que vemos, por exemplo, em sua relação com o marido, que se mostra aturdido pelas

ausências da mulher, a qual não consegue ficar confortável diante dos papéis pré-

estabelecidos para a mulher, assim como não se sentia bem com o sobrenome.

Tratava-se de um casamento no qual ela não seguia os padrões canônicos de

comportamento definidos para a mulher, na medida em que ela se recusava a

reproduzir o lugar de exímia dona de casa:

A mulher parecia lerda. Gastava horas e horas e horas ali quieta olhando e vendo o nada. Falava pouco e quando falava, às vezes, dizia coisas que ele não entendia. Ele perguntava e quando a resposta vinha, na maioria das vezes, complicava mais ainda o desejado diálogo dos dois. Uma noite ela passou todo o tempo diante do espelho chamando por ela mesma. Chamava, chamava e não respondia. Ele teve medo, muito medo. De manhã, ela parecia mais acabrunhada ainda. Pediu ao

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homem que não a chamasse de Ponciá Vicêncio. Ele espantado, perguntou-lhe como a chamaria então. Olhando fundo e desesperadamente nos olhos dele, ela respondeu que poderia chamá-la de nada. (EVARISTO, 2003, p. 20).

A rejeição desse comportamento é enunciada na imagem que vem à cabeça da

personagem quando se deita na cama imunda: a de porcos no chiqueiro que comem e

dormem para serem sacrificados um dia. Por meio dessa imagem, ela critica a vida de

submissão que lhe é imposta por um sistema social que não a inclui.

Ponciá Vicêncio deitou-se na cama imunda ao lado do homem e de barriga para cima ficou com o olhar encontrando o nada. Veio-lhe a imagem de porcos no chiqueiro que comem e dormem para serem sacrificados um dia. Seria isto vida, meu Deus? Os dias passavam, estava cansada, fraca para viver, mas coragem para morrer, também não tinha ainda. O homem gostava de dizer que ela era pancada da ideia. Seria? Às vezes, se sentia, mesmo, como se a sua cabeça fosse um grande vazio, repleto de nada e de nada. (EVARISTO, 2003, p. 33)

A protagonista metaforiza, por meio do seu comportamento, a resistência dela e de sua

família em continuar sendo subjugada e oprimida pelos brancos. Após várias tentativas

de ascensão social, de alcançar êxito profissional e pessoal, ela conclui que,

definitivamente, aquela estrutura criada para acomodar a ela e aos seus parentes não

dá conta de absorver as suas necessidades. Para estar bem na vida eram necessárias

outras identificações que lhe permitissem mais conforto, segurança e força:

Ponciá Vicêncio não queria mais nada com a vida que lhe era apresentada. Ficava olhando sempre um outro lugar de outras vivências. Pouco se dava se fazia sol ou se chovia. Quem era ela? Não sabia

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dizer. Ficava feliz e ansiosa pelos momentos de sua auto-ausência. (EVARISTO, 2003, p. 90).

A escrita literária de Evaristo nos impulsiona a investigar melhor as diferenças raciais

no Brasil com vistas a apreender com mais afinco o tratamento dessa temática pelo

romance.

A pretensão de discutir as diferenças raciais no Brasil, ainda que de um ponto de vista

sociológico, enfrenta sérias dificuldades, mais em função de representações sobre o

Brasil, que o definem como lugar de indistintabilidade racial, que por dificuldades de

fundamentação teórica ou comprovação empírica.

A questão racial parece ser uma problemática do presente e trata-se de uma antiga

indagação social e científica. Na Sociologia brasileira, por exemplo, a questão racial foi

o mote principal de muitas investigações, sobretudo à época do surgimento da

disciplina, tendo envolvido os mais destacados pesquisadores do fim do século XIX e

início do XX.

Preocupada em explicar e, principalmente, em construir o Estado-nação brasileiro, a

Sociologia da época deparou-se com a tarefa de abordar a questão racial, tema

premente ao final do processo de escravização no Brasil. Os trabalhos produzidos por

Conde de Gobineau e Georges Lapouge, adeptos da Antropologia Física, que, entre

seus métodos de estudo, utilizavam a medição de crânios como forma de medir a

capacidade intelectual dos indivíduos, exerceram forte influência nos pensadores

brasileiros.

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Com base nas diferenças biológicas da população percebidas pelos autores, foi

possível elaborar um continuum hierárquico dos tipos raciais brasileiros. O grupo

branco estava colocado hierarquicamente em posição superior ao grupo negro, que

estava acima do índio; e todos estes estavam em posição muito mais privilegiada que

os mestiços, degenerados pelos cruzamentos de espécies diferentes. Entre o grupo de

mestiços seria possível distinguir também os mestiços superiores e inferiores, que se

diferenciavam entre si pela espécie de cruzamento e, consequentemente, pelo grau de

energia, moralidade e inteligência.

Arthur Ramos realçado cientista do início do século XX, refere-se a Euclides da Cunha

destacando-lhe a sua competência literária por ter conseguido transmitir aos leitores,

por meio da obra Os sertões, o sentimento de degeneração do mestiço. Mesmo sem

ter passado pelo crivo da ciência, Euclides da Cunha havia conseguido, por meio de

várias afirmações e exemplos, corroborar e cristalizar nos leitores o que a ciência da

época já assinalava.

A grande mudança que o pensamento social brasileiro da década de 1930 oferece é

uma tentativa de salvar o Brasil. Ao realizar um tipo de Sociologia do cotidiano, Gilberto

Freyre (1987) inova e se coloca na direção contrária dos deterministas e dos que

apregoavam a decadência do Brasil devido a sua composição miscigenada. Nesse

sentido, Freyre nega os diagnósticos e previsões anteriores sobre a degeneração do

povo brasileiro e as diferenças raciais e culturais passam a ser vislumbradas de

maneira idílica. Em sua obra clássica, Casa Grande e senzala, cuja primeira edição é

de 1933, Freyre narra e analisa as experiências cotidianas entre senhores e escravos

no ambiente da senzala e da casa-grande, as relações sexuais, as intrigas, a

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alimentação etc.

Segundo Lília Moritz Schwarcz (2011), o sociólogo, nesse período, afirma que o Estado

construiu um movimento com vistas a sintetizar o Brasil, a despeito das diferenças,

fazendo com que a mestiçagem, para além do fator biológico, incluísse aspectos

culturais, em que manifestações como o candomblé, a capoeira, o carnaval tornaram-se

constitutivos da cultura brasileira. Além desse ponto, a pesquisadora destaca os

argumentos dele no sentido de que houve uma adaptação do negro africano ao sistema

de escravização, diferentemente do ameríndio nômade, que teve dificuldade em se

adaptar ao clima, às atividades domésticas e a outras condições físicas do Brasil.

Em outro trecho da obra, Freyre menciona como a miscigenação foi uma política

vantajosa dos europeus para com os brasileiros na medida em que contribuiu para a

formação do ideal de homem moderno nos trópicos e assinala que o problema, nesse

processo de mistura interracial, foi tão somente a sífilis, contraída aos negros pelos

colonizadores:

A vantagem da miscigenação correspondeu no Brasil à desvantagem tremenda da sifilização. Começaram juntas, uma a formar o brasileiro – talvez o tipo ideal do homem moderno para os trópicos, europeu com sangue negro ou índio a avivar-lhe a energia: outra a deformá-lo. Daí certa confusão de responsabilidades; atribuindo muitos à miscigenação o que tem sido obra principalmente da sifilização. (FREYRE, 1987, p. 47).

Mas o que fundamentalmente estava em jogo na obra de Freyre era a tentativa de

mostrar o caráter mais ameno do processo escravocrata brasileiro, assentado em certa

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benignidade e tolerância. Nessa perspectiva, a indicação é a de que a sociedade

brasileira, apesar das origens multirraciais e multiculturais, conseguiu apropriar, digerir

e criar uma cultura e um povo únicos. É exatamente em razão desse esforço de

demonstrar a harmonia entre as três raças fundantes – brancos, negros e indígenas –,

que a Gilberto Freyre é atribuída a criação da ideia de democracia racial no Brasil. Os

argumentos do teórico foram construídos e desenvolvidos nos anos 1930, algumas

décadas após a abolição da escravidão no país. Paralelo a essas ideias de Freyre e

outros, o Estado brasileiro promovia a estratégia da miscigenação do povo, em um

claro processo de desafricanização de vários elementos culturais, simbolicamente

clareados, como afirma Schwarcz (2011).

Contrapondo-se à acepção freyriana, Evaristo demonstra, no romance analisado, a

perversidade das relações raciais entre negros e brancos nas primeiras décadas após o

fim oficial do regime escravocrata no Brasil.

Os negros eram donos da miséria, da fome, do sofrimento, da revolta suicida. Alguns saíam da roça, fugiam para a cidade, com a vida a se fartar de miséria, e com o coração a sobrar esperança. Ela mesma havia chegado à cidade com o coração crente em sucessos e eis no que deu. Um barraco no morro. Um ir e vir para a casa das patroas. Umas sobras de roupa e de alimento para compensar um salário que não bastava. Um homem sisudo, cansado, mais do que ela talvez, e desesperançado de outra forma de vida. Foi bom os filhos terem morrido. Nascer, crescer, viver para que? (EVARISTO, 2003, p. 82).

De maneira expressivamente oposta à denúncia da condição de subordinação e

opressão vivida por negros e afrodescendentes retratados no romance de Evaristo,

Freyre tentou mostrar, em suas teses, que o processo de formação da sociedade

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brasileira se fez em um equilíbrio de antagonismos. Ele advoga que, podendo gerar

conflitos indissolúveis em outros lugares, as relações raciais caminharam, no Brasil,

rumo à harmonização. Para Freyre, a miscigenação foi o elemento que desempenhou o

papel de harmonizar a sociedade brasileira, pois foi capaz de amenizar os conflitos

raciais via incorporação mútua de valores e hábitos. Segundo Kabenguele Munanga

(2004), a partir desse período, as diferenças que anteriormente comprometiam o

desenvolvimento do país passaram a ser encaradas como fatos dados, e não mais de

maneira pessimista.

Nota-se, portanto, que as representações e os usos do termo raça em nossa história

recente foram muito variados, alcançando desde uma constatação biológica até uma

defesa contundente de seu abandono. Nesse sentido, Munanga (2004) faz questão de

enfatizar o aspecto sócio-histórico e político do termo raça, destacando sua

incapacidade para designar qualquer forma de diferença fenotípica entre os indivíduos,

tais como componentes genéticos ou mesmo intelectuais, mas ressaltando os usos

cotidianos que os indivíduos fazem do termo e possibilitando o estabelecimento, na

sociedade brasileira, de uma série de diferenças sociais.

A trama apresentada no romance Ponciá Vicêncio nos permite entender o contexto

sócio-histórico vivido no Brasil na pós-abolição, bem como compreender que as

discriminações raciais, que primeiramente visavam justificar a ordem servil vigente,

passaram, com o tempo, a desempenhar uma função social específica. As

discriminações que se vinculavam à perpetuação do sistema vigente operavam,

também, no sentido de criar uma relação direta entre as posições sociais e a raça a que

pertenciam os senhores e os escravos. Por meio da ficção, Conceição Evaristo nos

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permite apreender essa perspectiva, assim descrita pela narradora de Ponciá

Vicêncio:

De que valeria o padecimento de todos aqueles que ficaram para trás? De que adiantara a coragem de muitos em escolher a fuga, de viverem o ideal quilombola? De que valera o desespero de Vô Vicêncio? Ele, num ato de coragem-covardia, se rebelara, matara uns dos seus e quisera se matar também. O que adiantara? A vida escrava continuava até os dias de hoje. Sim, ela era escrava também. Escrava de uma condição de vida que se repetia. Escrava do desespero, da falta de esperança, da impossibilidade de travar novas batalhas, de organizar novos quilombos, de inventar outra nova vida. (EVARISTO, 2003, p. 84).

A obra revela que, no Brasil, com o tempo, as características negativas atribuídas ao

escravo estavam tão fortemente associadas ao indivíduo negro quanto as

características positivas e valorizadas estavam ligadas ao indivíduo branco. A

imutabilidade das representações acerca dos libertos fortalece, em demasia, esse

argumento. Apesar de não estarem mais na condição social de escravos, os libertos

não se haviam libertado das representações negativas relacionadas à cor da pele,

como se pode perceber na seguinte passagem do romance:

Nunca, em tantos anos de trabalho, ele havia cuidado de um crime tão brutal como aquele. [...) E que Luandi não levasse a mal o que ele ia dizer, mas quase todo negro era vagabundo, baderneiro, ladrão e com propensão ao crime. Poucos, muito poucos, eram como o Soldado Nestor e ele. Soldado Nestor olhou desconcertado para Luandi. (EVARISTO, 2003, p.118).

O excerto acima se refere ao momento em que a máxima autoridade da delegacia onde

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trabalha o irmão de Ponciá, Luandi, admite o seu racismo ao manifestar como via a

posição social do negro naquela sociedade. Nessa perspectiva, as reflexões de Memmi

(2007) e Fanon (2003) contribuem para o nosso entendimento acerca de como o

delegado, que é branco, assim como o colonizador, insiste, de maneira preconceituosa,

em ver a população afro-brasileira de maneira negativa. Dessa forma, assiste-se, mais

uma vez, ao olhar de superioridade do primeiro segmento em relação ao segundo.

A escritora romanceia, ainda, a força da pertença étnica que marca a família de Ponciá,

considerando a linhagem à qual a menina se filia e a herança identitária que assume,

como podemos identificar no trecho abaixo, em que a tradição do trabalho manual com

barro é perenizada. A arte tributária do barro, que é feito com a mistura de argila com

água, torna-se uma metáfora que vincula esse trabalho com a linhagem à qual Ponciá

pertence.

A mãe fazia panelas, potes e bichinhos de barro. A menina buscava a argila nas margens do rio. Depois de seco, a mãe punha os trabalhos para assar num forno de barro também. As coisinhas saíam então duras, fortes, custosas de quebrar. Ponciá Vicêncio também sabia trabalhar muito bem o barro. (EVARISTO, 2003, p. 21).

No trecho abaixo é possível ler parte dos costumes e das tradições herdadas da

identidade cultural negra que a família preserva:

O importante na roça era conhecer as fases da lua, o tempo de plantio e de colheita, o tempo das águas e das secas. A garrafada para o mau da pele, do estômago, do intestino e para as excelências das mulheres.

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Saber a benzedura para o cobreiro, para o osso quebrado ou rendido, para o vento virado das crianças. O saber que se precisa na roça difere em tudo do da cidade. (EVARISTO, 2003, p. 25).

Os hábitos culturais desenvolvidos pela família de Ponciá revelam diversas

manifestações culturais que permeiam o cotidiano da vida dos brasileiros. São

contribuições que se manifestam pelas principais etnias que compuseram o tecido

social brasileiro: indígenas, brancos e negros.

Assim, assistimos no romance, na voz de Ponciá – e reiterando a fala de Duarte já

citada neste estudo –, à fala de um “sujeito étnico, com as marcas da exclusão inscritas

na pele, a percorrer nosso passado em contraponto comum à história dos vencedores e

seus mitos de cordialidade e democracia racial”. (DUARTE, 2006, p. 308).

Pela voz desse sujeito étnico que se expressava na voz da narradora, vemos que Vô

Vicêncio e sua família foram mantidos escravizados, assim como muitos negros e

negras daquela região em que moravam, enriquecendo o Coronel, quando deveriam

estar construindo suas vidas de maneira autônoma. Vemos também esse sujeito

manifestar a sua indignação com a situação de subjugados em que a sua família se

encontrava e manter a veia do inconformismo diante de uma situação histórica de

opressão que atravessa os tempos e persiste até o presente.

3.3 A tessitura romanesca de Chiziane e a temática étnico-racial em Moçambique

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Ainda que o contexto sociocultural de Moçambique tenha acentuadas diferenças em

relação ao cenário brasileiro, consideramos que a escritora Paulina Chiziane apresenta,

em seu romance, momentos que nos permitem ler as relações étnico-raciais daquele

país. Nosso esforço foi no sentido de melhor apreender o que se passa no contexto

moçambicano retratado no romance, marcado por um processo histórico de tentativa de

apagamento da cultura do negro durante o período de colonização.

Nessa perspectiva, ainda que Paulina Chiziane acentue com vigor a perversa relação

de subalternidade com a qual os colonizadores trataram os negros moçambicanos, o

romance revela, em vários trechos, a influência que teve o modo de vida africano para

os brancos. São várias as situações descritas no romance em que testemunhamos o

processo de influência mútua que marcou as relações entre a sociedade colonizadora e

a sociedade colonizada. No excerto abaixo, a velha esposa do régulo faz uma

digressão sobre a via de mão dupla em que se caracterizou o processo colonial:

O tempos mudaram muito. Até os padres aprenderam dos negros a dar um mergulho nu à beira do mar. As mulheres brancas aprenderam das negras a andarem de tangas, a que chamam de mini-saias, colantes. Agora são esses europeus que gostam de andar por aí de tangas enquanto o povo veste, com rigor, as roupas antigas. (CHIZIANE, 2008, p.36).

Depreende-se da leitura do fragmento que os brancos também foram influenciados

pelos negros em seu comportamento social, como no caso da vestimenta. Mas

devemos considerar ainda, pela leitura desse trecho, a denúncia da imposição do modo

de se vestir ao negro, na medida que as vestes sóbrias, outrora usadas pelos brancos,

foram assimiladas pelos negros. Ao nosso ver, essa inversão se dá em função de mais

uma demonstração da força do colonizador sobre o colonizado, ditando regras e 141

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posicionamentos.

Em um trecho da obra, a narradora demonstra que o modus operandi vivido no

momento pós-independência diferencia-se consideravelmente do período de

segregação vivido sob o manto da opressão imposto pelo sistema colonial. Trata-se das

oportunidades de ascensão social que alguns poucos negros podiam experimentar. O

diálogo de Maria das Dores com o filho médico é um exemplo para que possamos ler

essa mudança. Ela questiona o fato de o rapaz exercer essa profissão, considerada de

valor na hierarquia da estrutura social, e aponta qual era o lugar dos negros até há

pouco tempo, quando ele ocupava postos considerados de subserviência, de prestação

de serviços básicos para a elite.

– De onde tiraste essa bata branca, menino negro? Sai já daí, o teu lugar não é esse. O teu lugar é na entrada, no corredor, transportando macas, limpando o chão e trocando os lençóis fedorentos dos doentes. [...] O jovem médico recorda. No passado, os empregos obedeciam às hierarquias raciais. (CHIZIANE, 2008, p. 55).

Em outro ponto do romance, Chiziane nos brinda com uma parte em que metaforiza os

embates entre negros e brancos, as disputas por soberania de uma raça em relação à

outra, e a tentativa de que elas sejam superadas. No trecho em destaque, dois homens,

um branco e um negro, brigam pelo amor de uma mulher negra: “o preto e o branco

amavam loucamente a mesma mulher. Colocaram no desafio nomes como honra,

virilidade, para camuflar a cobiça, e ambos a disputavam como um troféu.” (CHIZIANE,

2008, p.50). A contenda se iniciou com os dois homens jurando que um venceria o

outro e, nessa disputa, a etnia não sobrepujava o amor da amada, pois, afinal, todos 142

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vinham do barro e as definições étnicas chegam na vida das pessoas muito tempo

depois:

Os dois no chão ganhando a cor do pó e do barro, num acto de regresso às origens. Talvez para nascer outra vez. Na primeira geração éramos da cor da terra: todos negros. Com o tempo, as raças se modificaram: pelo clima, pela comida, pelas formas de vida, a humanidade se diversificou. Por isso hoje estamos aqui, numa salada de raças. (CHIZIANE, 2008, p. 50).

Ainda que a disputa amorosa não colocasse a raça em primeiro plano e sim o amor de

dois homens em relação a uma mulher, os embates raciais resultantes do processo de

colonização vivido à época não podiam deixar de permear o sentimento dos dois

homens: “Nos socos do branco, a cegueira do amor. Nos socos do preto, o ciúme, a

raiva contra a raça dos marinheiros, o ódio pela colonização, pela escravatura, pelo

chicote dos capatazes.” (CHIZIANE, 2008, p. 50). Por isso, a vitória física da

personagem José dos Montes traduziu uma vitória dos negros em relação aos brancos:

“Um preto sovando um branco num duelo de amor. Inédito. Incrível. Bravo! O nome

José dos Montes será registrado na memória da Zambézia como um produtor da

História.” (CHIZIANE, 2008, p. 51). Não obstante, a paixão pela mulher os unia:

Cansados de tanta luta, sentaram-se lado a lado. Por amar a mesma mulher os dois homens se irmanam, abraçando-se como só a fraternidade sabe abraçar. Sussurrando um para o outro palavras cansadas. O branco, esmagado de dores, suspirava: pode um homem conquistar o amor pela força dos punhos? Ah, Deus meu, por que me trouxeste ao Éden? Por que me puseste diante dos olhos a fruta mais apetitosa da existência, se nem a posso segurar? (CHIZIANE, 2008, p. 51).

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Alguns dos diálogos entre Serafina e a filha Delfina demonstram o quanto alguns

negros intencionavam melhorar a sua condição social por meio de uma união com

brancos. No entanto, enquanto a mãe aconselha a filha a unir-se a um homem branco,

o negro José reflete sobre o seu papel na sociedade na qual é oprimido:

José conhece o reflexo do seu corpo nos tremores orgásticos das mulheres violadas nas matas, suspirando és lindo, és macho, és homem. Conhece a imagem projectada nas ondas concêntricas dos charcos nos campos de arroz, que se irmana aos vermes, sanguessugas e outros chupa-sangues malignos escondidos nos lodaçais. Sente em si um ser repelente. Por causa da sua farda de condenado. Da sua pele que impregnou o odor lamacento dos pântanos. Dos pés enormes, que caminharam descalços uma infinidade de quilômetros pisando pedras, cobras ervas, que percorreram vales e montanhas, florestas e desertos. Por causa dos braços rijos que quebraram pedras e construíram estradas. Por causa das cicatrizes de chicote. Manchas de sarna. Das mãos calosas que plantaram cinco mil palmeiras. Ou dez mil. Ou cem mil. Plantaram arroz, chá, sisal e algodão, cana-de-açúcar e feijão, e fizeram a grandeza do império. Naquele instante olha-se por dentro e identifica-se: sou homem de bem, um homem bom. De braços fortes, pés descalços. Dei o melhor da minha força na construção do mundo. De tanto dar acabei assim de mãos vazias. (CHIZIANE, 2008, p. 95)

Ainda assim, o tormento da mãe de Delfina em função da condição social em que vive a

impele a dar conselhos à filha na direção de tentar se afastar de práticas que

reforçavam a sua identidade negra: “- Minha Delfina, esperava que me dissesses: tenho

um amante branco! Olha que eu aceitaria, pois na nossa mesa não faltariam migalhas

de vinho, bacalhau e azeitona. Agora, um condenado?” (CHIZIANE, 2008, p. 95)

As justificativas da mãe para que a filha não se alie a um negro são pragmáticas e

revelam a necessidade de os negros tentarem alcançar um outro lugar na sociedade

moçambicana sob opressão de brancos. A escritora Paulina Chiziane nos dá pistas de

que, a despeito de romancear, em O alegre canto da perdiz, um cenário relacionado

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ao período imediatamente pós-independência, ainda nos dias de hoje permanecem no

país resquícios relativos ao processo de opressão do negro, típico da época colonial.

No romance em análise, a narradora apresenta severas críticas em relação ao

colonialismo vivido em Moçambique e aponta ao leitor as fortes marcas da exclusão

sofrida pelos negros. A obra nos possibilita, ainda, compreender o quanto a estratégia

de assimilação serviu aos interesses do colonizador para dividir e subjugar a população

negra naquele período. Não obstante, negros serviram-se dele para galgar espaços

diferenciados daqueles que os colocavam nessa situação. Dessa forma, a opção da

personagem Delfina por buscar formas de se imiscuir no modo de vida dos brancos são

exemplos dessa dualidade de existência de segmentos da população moçambicana

negra da época.

A busca pela assimilação caracterizou o modo de vida de vários povos africanos. Essa

investida de algumas personagens em busca de mobilidade social e reconhecimento

norteia o romance O alegre canto da perdiz. Delfina sintetiza, por analogia, esse

investimento, com as suas contradições e sua necessidade de negociar com os

opressores, com vistas a alcançar um novo estatuto. Para tanto, a busca da

personagem pela assimilação foi uma estratégia necessária naquele período, segundo

é encenado na ficção, inclusive porque a assimilação levou mais tarde à independência

do país.

Por outro lado, O alegre canto da perdiz revisita vários mitos de origem matriarcal

africanos e nos propicia ler as danosas relações que ocorreram entre dominados e

dominadores e, ainda, os diversos conflitos étnicos que sustentaram a colonização

moçambicana e africana. São vários os temas constitutivos das relações societárias

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moçambicanas que vêm à baila neste romance: a prostituição infantil, os conflitos

conjugais e de gerações, o casamento prematuro. Todas essas tramas encenadas na

obra nos permitem verificar como as relações de interesse pessoal dos negros que,

vivendo sob a égide do sistema colonial, tinham que tentar garantir seus interesses,

sobrepujavam o interesse coletivo, levando várias pessoas a sofrerem. Nesse sentido,

a descrição do processo de assimilação se apresenta de maneira acentuada. O

romance demonstra que algumas pessoas se deixaram influenciar e subjugar com o

objetivo de alcançar melhores oportunidades na estrutura societária. A personagem

José dos Montes, por exemplo, faz um juramento de fidelidade ao assumir a identidade

cultural do colonizador, em detrimento da sua, perante um oficial branco:

Quem não se ajoelha perante o poder do império não poderá ascender ao estatuto de cidadão. Se não conhece as palavras da nova fala jamais se poderá afirmar. Vamos, jura por tudo que não dirás mais uma palavra nessa língua bárbara. Jura, renuncia, mata tudo, para nasceres outra vez. Mata a tua língua, a tua tribo, a tua crença. Vamos, queima os teus amuletos, os velhos altares e os velhos espíritos pagãos. José faz o juramento perante um oficial de justiça, que mais se parece com um juramento de bandeira. (CHIZIANE, 2008, p.117)

As opiniões e posicionamentos acerca de como os moçambicanos deveriam se

comportar sob as condições de opressão se dividiam. Alguns buscavam a assimilação

com vistas a se safarem do estado de desigualdade em que viviam, outros

questionavam se de fato a libertação significaria mudança de vida para o povo. Após

recorrente insistência de Delfina, José dos Montes aceita ser um assimilado:

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- Delfina, minha deusa, eu te amo. A ti, que me tiraste da morte e me fizeste nascer outra vez. Tu me amas. Mais do que a Deus. Mais do que a minha mãe, que me trouxe ao mundo para conhecer a escravatura e a condição de condenado, sem ao menos me ensinar a ver as cores do mundo.- Ainda bem que confias em mim.- Não há pessoas feias quando há dinheiro. É a pobreza que faz a velhice, a feiura da gente – suspira José.- Por que recusavas? – indaga Delfina, satisfeita. – Podias ser já assimilado há mais tempo, e hoje a vida podia ser outra. Perdias tempo com ideias de resistência, querendo afirmar uma identidade perdida. Uma dignidade de fome. De escravatura. De morte. (CHIZIANE, 2008, p. 120).

A partir daí, José inicia a investida contra o seu povo, junto com os brancos

colonizadores.

Em 1953, noite colonial, José dos Montes parte para a guerra. Não como soldado, mas como sipaio. Soldado é coisa de homem, a bravura coisa de marinheiro e ele não passa de um cidadão de segunda. A repressão ganhava novas formas. As gentes andam com fantasias de liberdade e conspiram. Cada negro era um potencial opositor, era preciso aumentar a repressão. (CHIZIANE, 2008 p. 124).

As influências da cultura europeia, o processo de apagamento cultural de africanos e a

imposição de valores culturais extrínsecos ao modo de vida e à cultura africana também

são revelados no romance em análise. Pode-se ler, ainda, no trecho abaixo, a

diversidade étnica constitutiva do continente africano em função da sua exploração por

meio dos principais povos que o colonizaram. E, por fim, a ironia da descrição da

narradora para abordar o momento atual em que ajudas humanitárias chegam ao

devastado continente, enviadas por países que outrora o espoliaram durante séculos. A

crítica ao assistencialismo está estabelecida, assim como a apropriação da cultura

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moçambicana e a assimilação da cultura de outros povos por parte destes. Presente

nestas reflexões está ainda o modo de submissão dos africanos diante das influências

estrangeiras:

[...] tudo começou no princípio. Vieram os árabes. Os negros converteram-se. E começaram a chamar-se Sofia, Zainabo, Zulfa, Amade, Mussá. E tornaram-se escravos. Vieram os marinheiros da cruz e da espada. Outros negros converteram-se. Começaram a chamar se José, Francisco, António, Moisés. Todas as mulheres se chamaram Marias. E continuaram escravos. Os negros que foram vendidos ficaram a chamar-se Charles, Mary, Georges, Christian, Joseph, Charlotte, Johnson. Baptizaram-se. E continuaram escravos. Um dia virão outros profetas com as bandeiras vermelhas e doutrinas messiânicas. Deificarão o comunismo, Marx, marxismo, Lénine, leninismo, Diabolizarão o capitalismo e o Ocidente. Os negros começarão a chamar-se Iva, Ivanova, Ivanda, Tania, Kasparov, Tereskova, Nadia, Nadioska. E continuarão escravos. Depois virão pessoas de todo o mundo com dinheiro no bolso para doar aos pobres em nome do desenvolvimento. E os negros chamar-se-ão Soila, Karen, Erica, Tânia, Tatiana, Sheila. Receberão dinheiro deles e continuarão escravos. (CHIZIANE, 2008, p. 157).

Em O alegre canto da perdiz, a personagem José dos Montes se torna um dos vários

negros assimilados pelo sistema colonial, afinal, “sem a contribuição do negro, a

colonização não teria sido possível” (CHIZIANE, 2008, p. 179). No entanto, todo o

tempo, o seu lugar de subalternidade é marcado com vistas à manutenção da relação

de opressão:

Falam de José dos Montes. Elogiam-no. Ele é um preto bom, um preto fiel, o melhor que já existiu. Se não fosse um cafre, podia até ser um fidalgo ou um general. É um belo exemplar. Até as mulheres brancas suspiram por ele. (CHIZIANE, 2008, p. 137)

No excerto acima, por exemplo, soldados brancos elogiam José dos Montes como

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alguém que se capitulou diante da assimilação. É tratado como um dócil assimilado,

exemplo a ser seguido por outros.

Não obstante, surgem críticas acerca dos resultados advindos do processo de

assimilação, que parecem ser acentuadas neste diálogo entre o curandeiro Moyo,

procurado por José dos Montes quando se sente fragilizado em momento de disputa de

poder com os patrões brancos. José dos Montes deseja ter o poder que os soldados

brancos têm. Como não consegue, procura pelo curandeiro com o propósito de

alcançá-lo, mas ouve de Moyo considerações críticas sobre o regime:

- Será tu um opositor ao regime? Um terrorista? – pergunta José meio enraivecido.- Desconfias de mim? Porquê?- És conhecido como baluarte da resistência. Falas sempre da independência. Não me queres atender porque sou sipaio. Os brancos são o progresso e este regime o futuro. Por que te opões?- Nessa independência que sonhamos o mundo não será o mesmo. Libertaremos a terra, sim, mas jamais seremos senhores. Os governadores do futuro terão cabeças de brancos sobre o corpo negro. Nesse tempo, os marinheiros já não precisarão de barcos, porque terão construído moradas seguras dentro da gente. O colonialismo habitará a nossa mente e o nosso ventre e a liberdade será apenas um sonho. (CHIZIANE, 2008, p. 170-171)

Moyo adverte José dos Montes sobre como o negro, deixando-se seduzir pelas boas

oportunidades de uma vida melhor, no futuro esqueceria a sua trajetória de oprimido e

passaria a oprimir outros negros na disputa pelo poder. Ainda assim, pela leitura do

curandeiro, será relativo o poder que o negro terá no futuro, pois o branco não cederá a

sua posição elitista. Afinal, conforme afirma a narradora, “dizem que a humanidade é a

semelhança de Deus, mas este é a imagem de um branco”. (CHIZIANE, 2008, p.195).

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No fim do romance, a personagem José dos Montes demonstra o seu arrependimento

em ter-se voltado contra o seu povo e ter ficado a serviço do colonizador.

José sente que devia ter lutado pela sua terra e não contra ela. Felizmente houve homens valentes, videntes, que de tanto a amarem deram o sangue por ela e a trouxeram de volta. Para se ter liberdade é preciso, primeiro, sonhar com ela. E quando se alcança deve ser preservada de todas as tormentas. (CHIZIANE, 2008, p. 333).

Esse trecho é uma evidente crítica ao sistema colonial e aponta o quão os negros foram

corajosos ao enfrentarem a luta contra a condição de subjugo, ainda que muitos deles

tenham se submetido ao processo de assimilação para alcançarem o êxito da

libertação.

Delfina, que viveu um período na prostituição do corpo, busca a feitiçaria para

conseguir conquistar o amor do branco Soares, casar-se com ele e, assim, migrar de

condição, alcançando o almejado conforto social. O diálogo de Delfina com o seu

marido português encena o quanto se sentiam inferiorizados os negros que, assim

como assinala Cabaço (2002), investiram na tentativa de se associarem ao grupo

elitista:

- Ah, minha negrinha!- Hás-de me levar contigo para Lisboa.- Levar-te? Sim, claro. Qualquer dia Lisboa será a pátria de todas as raças. Qualquer dia. Lisboa, ah, Lisboa. Que saudades de Lisboa!- É verdade Soares?- Claro minha santa!- Santa, eu?

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Isso sim, agradava Delfina. Que era santa na palavra e não na obra. Porque o pecado tem gosto de mel e ela ama o pecado. Ser santa é abster-se dos prazeres deste mundo.- Minha joia, minha pérola negra!Pérola, sim, mas negra? Nesse momento ela se enternecia toda e rebuscava palavras nas gavetas da memória para retribuir com longas palavras de amor, contorcidas melopeias, urdidas como poemas.- Eu te amo porque és branco, és civilizado, és bom. Antes de ti tudo era negro, era pobre. Hoje temos rádio e até eletricidade. Aqui em casa tudo é higiene, não falta roupa, não faltava comida e até comemos bacalhau.- Delfina meu anjo, falas como se pobres não fossem humanos.- Os pretos não são nada, Soares. (CHIZIANE, 2008, p. 226)

Mais uma vez, recorremos a Fanon para analisar o fragmento acima. A cultura do

branco colonizador é almejada por Delfina, que, como negra, sofre diante da sua

situação de excluída. A necessidade de Delfina era a de alcançar a ascensão social por

meio do status que lhe era possível ao ser amante do branco português. Ao analisar o

comportamento das mulheres na Martinica, seu país de nascimento, Fanon (1983)

explica um comportamento do negro que é bem próximo ao comportamento da mãe de

Maria das Dores nessa ficção:

Todas essas mulheres de cor, frenéticas, à procura do Branco, esperam. E, certamente um dia desses se surpreenderão não querendo olhar para trás; pensarão ”em uma noite maravilhosa, um amante maravilhoso, um branco”. (FANON, 1983, p. 43).

A personagem Delfina se orgulha com o nascimento da filha Maria Jacinta, mestiça,

fruto de seu casamento com o branco Soares. A filha negra, Maria das Dores, do

casamento com o negro José dos Montes, é relegada ao segundo plano a partir dessa

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[...] quando a irmã mulata nasceu, o colo da mãe emigrou para a outra margem do rio, nunca mais o alcançou. Buscava no céu a compreensão de tudo o que lhe acontecia. Ela pensava em fugir, refugiar-se na rua ou em qualquer lugar. Mas a ideia de que o pai voltaria a prendia. Suportava em silêncio a cólera que a mãe derramava sobre ela. Era injusto, ela sabia, mas não queria reivindicar. Do ventre daquela mãe ela tinha nascido e não queria desafiar, porque desafiar o destino. Daquela boca ouvira o primeiro canto e o primeiro beijo. Não podia contrariá-la. Porque praga de mãe é profecia. Aquela mãe era a sua árvore e a sua sombra. (CHIZIANE, 2008, p. 249)

Ao mesmo tempo, Delfina trata com desdém a filha Maria das Dores, que é negra.

Afinal, o seu ideal de pertença, como negra assimilada que se tornara, ocorre pela sua

identificação com a filha que nasceu com a pele clara:

Delfina vem e espreita. Emociona-se. As filhas crescem cada dia mais belas. Sente que lhes nasce uma profunda mágoa mas mesmo assim simula um sorriso.- Então meninas, esse penteado nunca mais acaba?-É difícil entrançar os cabelos de uma mulata, mãe – diz Maria das Dores -, escorregam.- Os cabelos das pretas é que são difíceis, parecem palha, não são bons. Tu, Jacinta, herdaste do teu pai um cabelo bom, para que queres tu esse penteado de preta?-É tão bonito, mãe! – reclama Jacinta. (CHIZIANE, 2008, p. 254)

A rejeição do seu pertencimento racial é de tal ordem que Delfina rejeita a filha negra,

Maria das Dores, maltrata essa filha e se mostra encantada com a filha mestiça, Maria

Jacinta, fruto da união interracial que teve com o branco, José Soares. Delfina negocia

a virgindade da filha negra com o feiticeiro e, com isso, magoa a filha mestiça, que

passa a atormentá-la pela ausência da irmã em casa. As cobranças de Maria Jacinta,

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feitas à mãe, em relação ao sumiço da irmã, Maria das Dores, de quem tanto gostava,

são constantes. A atitude da filha mestiça é um dos fatores que levam Delfina a sofrer

pelo ato de entrega da filha Maria das Dores.

Ao se deslocar para o período pós-independência, a tessitura romanesca de Chiziane

nos permite ler as reflexões da personagem Delfina acerca da esperança. São sinais de

novos tempos. A independência dela se inicia por um feliz momento de recuperação

afetiva e amorosa do homem que sempre amara, José dos Montes, e também da filha

negra, Maria das Dores, a quem tanto procurava:

José dos Montes desperta a sua Delfina. Vagarosamente. E prepara-a gradualmente para a grande nova prevenindo uma morte súbita, por congestão de felicidade.- O que aconteceu? - É a festa do novo século.Desta vez Delfina reage, José dos Montes traz a memória paladares antigos. Fala das necessidades do corpo a quem se alimenta dos restos dos restaurantes do cais. É uma das idosas que povoam as ruas na sexta-feira de esmolas.- Sombra do José, falas de comidas boas que persegui a vida inteira.- Vem Delfina, à celebração do sol. (CHIZIANE, 2008, p. 312-313)

Os filhos de Delfina também são arautos das transformações ocorridas. São

anunciadas boas formas de convivência entre as raças, acontecem relações amorosas

com brancos, sem culpa, sem medo de retaliações ou pressões. Relações essas que

são possíveis em tempos de liberdade, de busca de fraternidade entre as pessoas:

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Sou o Zezinho. Filho da Delfina. Não sei que magia eu tenho, mas sou o que mata de amor todas as mulheres brancas, sou belo. Casei com uma branca por amor. No nosso lar abolimos a hierarquia das raças, preto e branco comem com a mesma colher e bebem água do mesmo cântaro. (CHIZIANE, 2008, p. 323).

A filha mestiça, Maria Jacinta, também demonstra o processo de transição entre

momentos de opressão e tempos atuais de conquista da liberdade. Para chegar a esse

ponto, foi necessário que negros se submetessem às formas de vida do branco,

cedessem a relações pouco nobres, por meio da assimilação:

Sou a Maria Jacinta, a mulata, troféu de guerra, bandeira branca, escudo de combate (…) os bancos eram do meu pai. As companhias aéreas também. Sou de todos e de ninguém. Sou diferente e igual. Amai-me e odiai-me, à altura da vossa paixão e da vossa raiva, mas atenção: sou vossa, eu vos pertenço! Esta é a minha terra. Aqui é o me céu e este o chão dos meus antepassados! Vim também em nome do meu pai. Para recuperar toda a herança ursupada e deixá-la nas mãos da Maria das Dores, sua legítima proprietária. (CHIZIANE, 2008, p. 323)

O romance, ao fim e ao cabo, acena para o hibridismo cultural, a diversidade étnica e

antropológica do tecido social moçambicano, mas, sobretudo, para a forma de

constituição das relações ideológicas e políticas que permitam a reconstrução de

relações de paz entre negros, mestiços, e( por que não?) brancos.

Não obstante, é fulcral compreendermos que os estudos de Fanon (1983) já nos

alertavam sobre esse desejo do homem negro ser branco para ser aceito, ou para

alcançar visibilidade. Essa necessidade do homem negro, que lemos na personagem

Delfina, faz parte do seu sofrimento, advindo da sua condição de subalternidade. A

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esse respeito, Fanon chama a atenção para a necessidade de conscientizar esses

sujeitos com vistas a que eles provoquem “uma mudança das estruturas sociais”.

(FANON, 1093, p. 83).

3.4 A escrita como gesto de criação de uma nova identidade negra

Pelo que foi apresentado anteriormente, podemos inferir que as obras Ponciá

Vicêncio, de Conceição Evaristo, e O alegre canto da perdiz, de Paulina Chiziane,

retratam os embates étnico-raciais que permeiam as personagens inseridas num

contexto narrativo que remete às sociedades brasileira e moçambicana. Ao olhar sagaz

e crítico das duas escritoras não escapa a visão de tempos nefastos que ilustram o

período histórico marcado pela escravização e pela colonização, retratado em suas

obras. É crucial destacar que, nos contextos narrativos, nos dois países, ressalvadas as

diferenças socioculturais, a opressão e a exclusão dos negros garantiram a supremacia

dos colonizadores portugueses.

Em Ponciá Vicêncio, podemos fazer uma leitura literária do que se passou no Brasil no

momento que se segue à escravização de negros. Ponciá Vicêncio e sua família vivem

uma severa situação de exclusão, que coincide com reais situações de manutenção da

escravidão negra, ainda que dissimulada.

A manutenção da família de Ponciá na fazenda do coronel Vicêncio, sem perspectiva

de uma vida melhor, com a precariedade da escolarização e a continuidade do tráfico

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dos filhos daquela família, é emblemática para compreendermos a situação de

subalternidade mantida para afro-brasileiros no contexto apresentado no romance.

O romance é permeado pela constante busca de explicações por parte da personagem

principal. Ponciá tenta entender as motivações sociais, pessoais e históricas para as

situações ruins às quais é submetida. Por isso, as situações de desigualdades raciais e

de conflitos étnicos são estruturantes na obra.

Por outro lado, lemos, em O alegre canto da perdiz, a insistente tentativa de assumir

um modo de vida típico da cultura branca, por parte da personagem Delfina, como uma

metáfora para compreendermos a necessidade dos negros de se utilizarem de

mecanismos pragmáticos impostos pela própria história de colonização para

qualificarem as suas vidas. A repulsa que tinha Delfina pela cor da sua pele é outra

importante metáfora que nos permite ler a tentativa de algumas personagens de se

safarem da situação socioeconômica que o colonialismo lhes impôs. Pelo mesmo

motivo, a personagem José dos Montes se torna assimilada, o que é mostrado por meio

de sua renúncia às raízes étnico-culturais do povo moçambicano.

Acreditamos que as obras de Conceição Evaristo e Paulina Chiziane nos proporcionam

uma leitura das questões étnicas e raciais do ponto de vista de grupos culturais que, até

há pouco tempo, tinham as suas vozes silenciadas no circuito eurocêntrico. Conceição

Evaristo e Paulina Chiziane corroboram, com as suas escritas, para uma representação

positiva das comunidades negras brasileira e moçambicana, ao inscreverem as

histórias que permeiam as vidas dessas pessoas em seus romances. A respeito disso,

Conceição Evaristo faz a seguinte afirmação:

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Gosto de escrever, na maioria das vezes dói, mas depois do texto escrito é possível apaziguar um pouco a dor, eu digo um pouco... Escrever pode ser uma espécie de vingança, às vezes fico pensando um pouco sobre isso. Não sei se vingança, talvez desafio, um modo de ferir um silêncio imposto, ou ainda, executar um gesto de teimosa esperança. Gosto de dizer ainda que a escrita é para mim o movimento de dança-canto que o meu corpo executa, é a senha pela qual eu acesso o mundo. (EVARISTO apud MOREIRA e SCHNEIDER, 2005, p. 202).

Por outro lado, Chiziane nos aponta a sua urgência e necessidade da escrita pelo fato

de ser moçambicana. No trecho que segue, a escritora revela um conflito que vive em

seu país: “percorri a trajectória do nosso ser, procurando o erro da nossa existência.

Não encontrei nenhum. Reencontrei na escrita o preenchimento do vazio e

incompreensão que se erguia à minha volta”. (CHIZIANE,1994, p. 15).

Destacamos como significativo para a compreensão das obras a profunda imersão que

as escritoras fazem no jogo literário, de modo a externar, em sua escrita, situações

vivenciadas pelas comunidades às quais pertencem. Ponciá Vicêncio e O alegre

canto da perdiz denotam, indubitavelmente, o quanto as escritoras revelam o modus

operandi das sociedades brasileira e moçambicana do ponto de vista das relações

étnico-raciais.

Junto com Fanon (1983), consideramos que as duas escritoras trabalham a ficção na

perspectiva de que negros na atualidade devam buscar a sua emancipação, a sua

libertação em relação à tentativa do branco em impingir-lhe o lugar de subalternidade,

de inferioridade. Para Fanon, “o Negro não deve mais ser colocado diante desse

dilema: tornar-se branco ou desaparecer, mas ele deve poder tomar consciência de

uma possibilidade de existir”. (FANON, 2003, p. 83). As obras operam no sentido de

nos dizer sobre a constante resistência das personagens e, também, das escritoras, 157

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que buscam alternativas contra a opressão e, para tanto, criam sua literatura como

modo de recriar uma identidade negra emoldurada por formas de viver que lhes

permitam enfrentar situações desfavoráveis decorrentes das pressões étnico-raciais.

4 LITERATURA, MEMÓRIA E IDENTIDADE

4.1 Investigando o tema

Neste capítulo, aprofundaremos as problematizações sobre os aspectos da memória

que permeiam as escritas de Evaristo e Chiziane e que, por conseguinte, conformam as

identidades de gênero e dos grupos étnicos aos quais elas pertencem.

Jacques Le Goff (1992) argumenta que a memória é um elemento fulcral para a

reconstrução de uma identidade nacional, sendo por meio dela que o homem atualiza

impressões ou informações do passado e reconstitui a sua história. Para o pensador, a

memória, além de ser um componente fundamental na busca de identidade de

indivíduos ou sociedades, serve ainda como instrumento e objeto de poder.

Le Goff acredita ser dever dos profissionais da memória, ou seja, pesquisadores cujos

estudos se dedicam a reflexões sobre memória, democratizá-la, a fim de que ela seja

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instrumento de libertação e não de servidão dos homens. Pensamos que a nossa

pesquisa encontra interface com estudos como esses, que tentam compreender a

função da memória nas escritas de Conceição Evaristo e Paulina Chiziane como de

resistência a uma estrutura social opressora, que preconiza a existência de uma

memória oficial e nacional que se constituem a partir da exclusão de negros, em

especial, de mulheres negras.

Nessa perspectiva, um pensador que nos auxilia a compreender o uso da memória nas

abordagens pelas quais as obras em estudo nos conduzem é Michael Pollak (1989).

Segundo ele, devemos perceber a disputa entre memórias ou a luta entre a memória

oficial e as memórias nomeadas por ele como subterrâneas. O embate que se percebe,

pela incorporação das memórias silenciadas, tais como as memórias de mulheres

retratadas por Evaristo e Chiziane em seus romances, decorre da necessidade de

afirmação de uma identidade que, por pertencer a uma minoria, encontra-se

marginalizada no processo de construção da memória oficial.

Paul Ricoeur (2007), ao falar sobre a relação entre memória, história e esquecimento,

chama-nos a atenção para o fato de que esses são elementos importantes para a

construção de uma história, pois são as escolhas do historiador que vão definir essa

construção. Assim como o historiador, Evaristo e Chiziane construíram histórias que

nos permitem, por meio da memória das personagens, fazer alusões a fatos

importantes para um segmento populacional que tem a sua história sistematicamente

não reconhecida.

Fernando Catroga (2001) considera que a recordação sempre apresenta uma tensão

entre cordialidade e conhecimento. Normatividade, antíteses e memória, para ele, são

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componentes de correntes pulsantes que permeiam os deveres sociais. Catroga, dessa

forma, prevê uma relação intrínseca entre identidade, filiação, memória e distinção.

Joel Candau (2011) considera que a “atividade da memória que não se inscreve em um

projeto do presente não tem carga identitária, e, com frequência, equivale a nada

recordar” (CANDAU, 2011, P. 149). Em nossa análise das obras em estudo,

observamos que as escritoras revelam personagens em processo de construção

identitária, relembrando as suas histórias de vida e reatualizando o presente seu e de

sua comunidade.

Candau nos alerta sobre a manipulação da memória pelos brancos, que “consiste em

manter a memória da escravidão, pois esta é concebida como um meio de inferiorizar

os negros”. (CANDAU, 2011, p. 167). Relutando contra essa manipulação, Conceição

Evaristo, em seu romance Ponciá Vicêncio, mostra personagens reavivando a

memória com vistas a demonstrar que se faz necessário romper com as formas de

manutenção da inferiorização do negro historicamente construídas.

As memórias das personagens nos remetem ao conhecimento das formas, construídas

por eles, de insubmissão em relação ao processo colonizador, na medida em que, ao

rememorarem os seus comportamentos diante da situação de opressão, dão significado

ao que foi vivido e mostram como ressignificaram as situações desvantajosas. Lemos

ainda a memória atuando como forma de reacender a resistência das personagens

femininas em relação ao sistema patriarcal. Reiteramos que é possível, também, ao

analisar aspectos atinentes à memória e à identidade nas obras de Chiziane e Evaristo,

constatarmos, mais uma vez, a resistência a uma escrita que seja pautada em

referências literárias canônicas.

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Conceição Evaristo nos auxilia quando afirma que “A literatura negra é um lugar de

memória” (EVARISTO, 1996, p. 24). A escritora sinaliza ainda que a literatura negra

“nos traz revivência dos velhos arautos africanos, guardiões da memória, que de aldeia

em aldeia cantavam e contavam a história, a luta, os heróis, a resistência negra contra

o colonizador”. (EVARISTO apud PEREIRA, 2010, p. 136).

Dessa forma, a memória permite que recordações venham à tona, tal como nos

possibilita ver o poema abaixo:

Recordar é preciso

O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos. A memória bravia lança o leme;Recordar é preciso.O movimento de vaivém nas águas-lembrançasdos meus marejados olhos transborda-me a vida,salgando-me o rosto e o gosto. Sou eternamente náufraga.Mas os fundos oceanos não me amedrontam nem me imobilizam.Uma paixão profunda é a bóia que me emerge.Sei que o mistério subsiste além das águas. (EVARISTO, 1992, p. 17)

No poema, a memória é metaforizada pelo mar, na medida em que os dois, mar e

memória, são indomáveis. Além disso, é possível perceber o espírito náufrago do eu-

lírico materializado nessas letras.

Paulina Chiziane também corrobora com as nossas reflexões acerca da memória

quando relata que

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[…] as minhas memórias mais remotas são das noites frias à volta da lareira, ouvindo histórias da avó materna. Nas histórias onde havia mulheres, elas eram de dois tipos: uma com boas qualidades, bondosa, submissa, obediente, não feiticeira. Outra era má, feiticeira, rebelde, desobediente, preguiçosa. A primeira era recompensada com um casamento feliz e cheio de filhos; a última era repudiada pelo marido, ou ficava estéril e solteirona. (CHIZIANE, 1994, p. 14)

De certa forma, essa afirmação da escritora nos dá pistas para entender a opção que

fez em relação ao tipo de mulher que ela romanceia em O alegre canto da perdiz, ou

seja, aquela que não pratica a obediência e a submissão como pré-requisitos para ser

bem aceita na sociedade.

Assim, Conceição Evaristo e Paulina Chiziane revelam, em seus romances, o exercício

da memória para tratar de assuntos coletivos que impactaram a vida dos sujeitos

constituídos pelas mulheres negras nas sociedades em que vivem. As vozes das

personagens ecoam os conflitos surgidos a partir da violência praticada contra os

negros, em especial contra a mulher negra, em decorrência do racismo comum nos

períodos escravocrata e pós-abolição no Brasil e nos períodos colonial e pós-

independência em Moçambique. Dessa forma, rasuram os discursos oficiais e apontam

fatos não revelados pela historiografia com vistas a encobrir a profundidade das

mazelas impostas às mulheres negras.

As obras Ponciá Vicêncio e O alegre canto da perdiz dizem muito do compromisso

das escritoras em trazer à tona as histórias de vida ou as histórias culturais de

mulheres negras que foram silenciadas ao longo dos tempos. Com isso, percebemos

que, no contexto dos dois romances, o uso da memória de algumas personagens ou

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dos grupos aos quais pertencem possibilita que o leitor possa se inteirar de fatos

históricos que não tinham visibilidade na história oficial.

As escritoras constroem suas narrativas por meio de um ato de rememoração do

passado, para colocá-lo em xeque e desestabilizar de forma crítica o presente.

Acreditamos, com base nos estudos de Joel Candau, que as duas escritoras se

dedicam, em suas construções literárias, a “encontrar ou fabricar tudo o que pode ter

função de traços, relíquias, vestígios ou de arquivos, ou seja, tudo o que permite a um

grupo narrar-se a si próprio”. (CANDAU, 2011. p. 159).

Por isso, podemos tomar as escritas de Conceição Evaristo e Paulina Chiziane como

exemplos de contribuições literárias que rasuram as historiografias literárias brasileira e

moçambicana. Assim, neste estudo, problematizamos acerca das historiografias que

foram manipuladas pelas elites que produziram histórias oficiais no campo literário. Em

contrapartida, apresentamos as escritas de Evaristo e Chiziane como produtoras de

histórias alusivas ao pertencimento racial de povos ex-colonizados, em especial a partir

da perspectiva de mulheres.

Se considerarmos a perspectiva da história oficial que é retomada na literatura, em

geral, notamos que um só lado tem alcançado visibilidade. Na maioria das vezes, os

textos registram histórias produzidas pelos opressores, com vistas a silenciar ou apagar

a memória dos que foram oprimidos por séculos e se encontram ainda em processos

de exclusão. A construção literária das duas escritoras move as letras para percursos

alternativos e para novas identidades, desconstroe a propalada fixidez de lugares e

pessoas, e anuncia sujeitos em trânsito, em busca de emancipação. Nos romances, as

personagens mobilizam esforços no sentido de transitarem para lugares diferentes

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daqueles que significaram a sua opressão: Ponciá e sua família se deslocam das terras

do antigo dono para a cidade, em busca de melhores oportunidades; Maria das Dores

busca o campo mítico para se ausentar da situação de desconforto em que vivia e,

assim, conquistar seu lugar na sociedade.

4.2 Literatura, memória e identidade em Ponciá Vicêncio

Ponciá gastava a vida em recordar a vida. (EVARISTO, 2003, p.93)

O romance Ponciá Vicêncio é permeado por fatores que nos remetem à ideia

memorialista que o organiza. Toda a narrativa atrela experiências passadas da

personagem principal, marcada pela presença do avô, Vicêncio, que, outrora

escravizado, enlouquece, mutila-se, tenta assassinar a esposa e os filhos. Toda essa

radicalidade da personagem acontece em função do incômodo que experimenta por

constatar que ele e seus parentes permaneceram em uma condição de subalternidade

que não se distinguia da condição de escravos da família do Coronel Vicêncio após a

abolição da escravatura no Brasil.

Ponciá herda do avô o inconformismo com a situação e protagoniza, com a permanente

semelhança com ele, situações de rebeldia. As recordações dela e de seus familiares

cosem todo o enredo romanesco. As lembranças referem-se aos momentos vividos

com o avô, já falecido, às cenas cotidianas vividas no passado. Há também,

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novamente, no presente, as recorrentes situações que levam todos a identificarem, no

comportamento da menina, e depois no da mulher, atitudes semelhantes às do pai do

seu pai.

Diversas lembranças nos remetem à rememoração da personagem Ponciá Vicêncio

com o avô, o que parece demonstrar a negativa da menina em esquecer os vínculos

identitários com esse parente que a liga ao processo de resistência à subalternização.

A memória pessoal da personagem e da sua família permeia a vivência da

menina/mulher:

De que valera o desespero de Vô Vicêncio? Ele, num ato de coragem-covardia, se rebelara, matara uns dos seus e quisera se matar também. O que adiantaria? A vida escrava continuava até os dias de hoje. Sim ela era escrava também. Escrava de uma condição de vida que se repetia. Escrava do desespero, da falta de esperança, da impossibilidade de travar novas batalhas, de organizar novos quilombos, de inventar outra e nova vida. (EVARISTO, 2003, p. 30)

A memória atravessa toda a narrativa, mobiliza os pensamentos e ações de Ponciá e

das demais personagens. Acerca desse aspecto, Maria José Somerlate Barbosa (2003)

afirma que:

[…] se a memória é a via de acesso de Ponciá ao seu autoconhecimento, é também através dela, do que a voz narrativa constrói, que nós leitores penetramos no âmago das suas emoções e passamos a conhecer a história pessoal de cada um. (BARBOSA apud EVARISTO, 2003, p. 9).

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A estudiosa acentua ainda que Vô Vicêncio permanece “vivo” no romance todo o

tempo, por meio da sua neta Ponciá, que incorpora em si vários traços que o lembram.

Destaca-se o modo de andar, com um dos braços escondidos às costas e a mão

fechada como se fosse cotó. Ainda que o avô já houvesse morrido quando Ponciá era

ainda muito pequena, os primeiros passos da neta, na infância, lembravam-no.

Desfiava fios retorcidos de uma longa história. Andava em círculos, ora com uma das mãos fechadas e com o braço para trás, como se fosse cotoco, ora com as duas palmas abertas, executando calmos e ritmados movimentos, como se estivesse moldando alguma matéria viva. Todo cuidado Ponciá Vicêncio punha nesse imaginário ato de fazer. Com o zelo da arte, atentava para as porções das sobras, a massa excedente, assim como buscava ainda significar as mutilações e as ausências que também conformam um corpo. Suas mãos seguiam reinventando sempre e sempre. E quando quase interrompia o manuseio da arte, era como se perseguisse o manuseio da vida, buscando fundir tudo num ato só, igualando as faces da moeda. Seus passos em roda se faziam ligeiramente mais rápidos então, sem contudo se descuidar das mãos. Andava como se quisesse emendar um tempo ao outro, seguia agarrando tudo, o passado-presente-e-o-que-há-de-vir. E do tempo lembrado e esquecido de Ponciá Vicêncio, uma imagem se presentificava pela força mesma do peso de seu vestígio: Vô Vicêncio. Do peitoril da pequena janela, a estatueta do homem-barro enviesada olhava meio para fora, meio para dentro, também chorando rindo e assistindo a tudo. (EVARISTO, 2003, p.131-132).

Além disso, ainda pequena, ela, que já produzia artesanato de barro, fez um boneco

igualzinho ao avô, causando preocupação em sua mãe: “ela era tão pequena, tão de

colo ainda quando o homem fez a passagem. Como, então, Ponciá Vicêncio havia

guardado todo o jeito dele na memória?” (EVARISTO, 2003, p. 19). A mãe dela também

ficou intrigada com a similaridade entre os dois. E ao olhar para o boneco, o pai de

Ponciá reconheceu seu próprio pai.

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A estratégia de construir o romance por meio de flashback indica a intenção de Evaristo

em relacionar a memória e a vivência das personagens. Toda a narrativa é articulada

pela memória individual dos que compõem a trama. Desde o início da ficção, esse

recurso permite ao leitor conhecer o enredo, que mostra, no presente narrativo, o que

foi o passado da personagem central, bem como o de seus parentes e/ou do grupo

social ao qual pertence.

O romance Ponciá Vicêncio é entremeado de lembranças, sobretudo da personagem

principal, trazendo vestígios de um passado marcado por acontecimentos opressores,

relacionado à sua vivência num tempo que remete ao período escravocrata e ao

momento pós-abolição no Brasil. A situação de opressão que se verifica no romance e

a partir da qual se projeta a vida da personagem Ponciá Vicêncio e a de seus familiares

encontra ressonância nesse quadro social em que a memória oficial brasileira enquadra

negros e mestiços:

Ponciá Vicêncio sabia que o sobrenome dela tinha vindo desde antes do avô de seu avô, o homem que ela havia copiado de sua memória para o barro e que a mãe não gostava de encarar. O pai, a mãe, todos continuavam Vicêncio. Na assinatura dela, a reminiscência do poderio do senhor, de um tal coronel Vicêncio. O tempo passou deixando a marca daqueles que se fizeram donos das terras e dos homens. (EVARISTO, 2003, p. 29)

Ponciá Vicêncio, por meio das personagens, revisita a memória com vistas a evitar o

esquecimento de fatos apagados por uma memória oficial que exclui a história do negro

e da mulher negra, como intentam os dominadores. A sua escrita reluta contra a

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tentativa de apagamento de histórias/memórias que não interessam ao poder

hegemônico.

Na narrativa, Ponciá, após deixar o campo e migrar para a cidade, desejava reencontrar

a sua família, pois ela era “sempre matéria de sua memória. Tanto tempo já se tinha

passado. Quando se encontrariam juntos os três? Parte de sua vida era o desejo de

que isso acontecesse”. (EVARISTO, 2003, p. 30). Percebemos que a constante

lembrança dos seus entes e a tentativa de reencontro com eles podem ser traduzidas

como resistência a uma condição em que, separados, sentiam-se fragilizados e com

pouca esperança para encontrar tempos auspiciosos. A memória dos parentes

permanecia viva e, como essa memória estava fortemente vinculada ao passado que

os subalternizava, as lembranças mostram os esforços que foram empreendidos pelo

grupo de personagens na constante luta pela emancipação.

A memória no romance funciona como delineador e veículo de reconstituição de

aspectos da experiência de afro-brasileiros. A memória da protagonista é, então,

constituída pela ação de regresso a aspectos relevantes de sua vida que denotam a

tentativa de reencontro com vários aspectos que remetem o leitor a traços identitários

da cultura afro-brasileira.

Nesse aspecto, são vários os pontos de ligação entre a cultura negra brasileira e a

africana que notamos no enredo do romance, tais como as canções, que remetem a

traços da língua africana, as referências à mitologia de expressão africana, como é o

caso do arco-íris, que ocupa a memória da protagonista desde a tenra idade.

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O arco-íris permeia as lembranças da protagonista durante toda a obra, promovendo

uma espécie de tessitura entre a sua memória individual e a do grupo social ao qual

pertence. Ponciá Vicêncio, quando criança, tinha medo do arco-íris. Não queria passar

por baixo dele, pois se negava a virar homem, conforme rezava a lenda do imaginário

popular à época. Afora essa situação, na infância, a menina ia buscar barro na beira do

rio, onde via constantemente o arco-íris. Na adolescência, quando passou por baixo do

arco-íris foi que ocorreu o seu primeiro e único momento de prazer sexual. Na fase

adulta, na condição de mulher, ao lembrar a visão do arco-íris, ocorre um

esvaziamento. O arco-íris, presente na vida da personagem, parece indicar os altos e

baixos que ocorreram em sua vida, a instabilidade emocional, afetiva, o descompasso,

a sua busca de equilíbrio.

Até mesmo no final do romance, quando Ponciá reencontra a sua família, ele

reaparece:

lá fora, no céu cor de íris, um enorme angorô multicolorido se diluía lentamente, enquanto Ponciá Vicêncio, elo e herança de uma memória reencontrada pelos seus, não se perderia jamais, se guardaria nas águas do rio” (EVARISTO, 2003, p. 128).

Assim, lemos o arco-íris cosendo toda a trama, costurando as lembranças, as

recordações e os reencontros da família Vicêncio.

A narrativa se desenvolve em um movimento cíclico que nos permite aguçar o sentido

de orientação para o passado e o presente. Esse movimento pode ser lido a partir da

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perspectiva discutida por Fernando Catroga (2001), ao afirmar que o indivíduo utiliza-se

da sua memória e do seu conhecimento para elaborar as representações sobre si

mesmo ou sobre os fatos. O autor informa ainda que se observa um movimento

crescente de sujeitos narrando histórias do passado com vistas a conferir uma

coerência narrativa à vida dos grupos:

Daí o diálogo que os indivíduos mantêm, dentro de um processo sociabilizador, com os valores da(s) sociedades e grupo(s) em que se situam, e o modo como, à luz do seu passado, organizam o seu percurso como projecto. (CATROGA, 2001, p. 46).

Vemos que a narrativa em estudo se estrutura a partir do ato de rememoração da

personagem central. Ponciá recupera, a todo o tempo, a memória da sua infância, a

ponto de permanecer nela, de certa forma, por meio de suas contínuas lembranças.

Pensamos que essa é uma estratégia criada pela personagem para que, desse modo,

possa se alijar da situação de exclusão social que vive na cidade grande, bem como,

igualmente, afastar-se da relação de opressão que vive com o marido. A personagem

gasta muito tempo recordando o seu passado. São várias as palavras empregadas no

texto que nos fazem pensar que as recordações de Ponciá mantêm vivas as

lembranças relacionadas aos momentos em que ela e sua família foram submetidos a

situações de humilhação e, por isso, buscam alternativas para alcançarem uma vida

melhor.

A utilização dos verbos rememorar, lembrar, recordar e outros, que aparecem entre

cinco e sete vezes cada um no texto, remete-nos a pensar que esses fragmentos da 170

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memória, evocados pela personagem, operam na perspectiva de que as marcas de

sofrimento sejam reatualizadas no sentido de alterar o presente, tendo como referência

o passado. Não obstante, eles também sinalizam para uma mobilização de esforços no

sentido de buscar possibilidades favoráveis para a sua própria existência no presente.

Afinal, como afirma Catroga, “só o desconhecimento dos mecanismos de enraizamento

poderá conduzir a que se confunda a convocação do passado com atitudes passadistas

ou nostálgicas.” (CATROGA, 2001, p. 52).

Ponciá Vicêncio insere-se ainda no contexto teórico formulado por Fernando Catroga

(2001) quando ele tece as seguintes considerações:

[…] nas liturgias da recordação, existe sempre uma tensão entre cordialidade e conhecimento, bem como entre memória e normatividade, antíteses que tendem a resolver-se através de mensagens impulsionadoras de correntes pulsionais que levam à sua assunção voluntária como deveres sociais. Daí a estreita relação entre memória, identidade, filiação e distinção. Sem aquela, estas nunca existirão. (CATROGA, 2001, p. 51)

Afinal, são as recordações e a memória daquela família que criam a tensão entre as

experiências traumáticas vividas por ela e a normatividade organizada pela elite, que

rege as relações sociais. A narrativa estudada diz da necessidade, do dever social que

a escritora se coloca, que é o de demonstrar a relação intrínseca entre memória e

identidade. Assim, percebe-se uma atitude crítica da escritora ao construir a ficção a

partir da reconstrução do processo histórico que constituiu a vida das personagens:

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[…] nos tempos de roça de Ponciá, nos tempos de casa de pau-a-pique, de chão de barro batido, de bonecas de espigas de milho, de arco-íris feito cobra coral bebendo água no rio, a menina gostava de ser mulher, era feliz. (EVARISTO, 2003, p. 24).

As recordações da Ponciá mulher demonstram que ela era feliz no passado e que, na

fase adulta, os infortúnios são muitos. As recordações da infância são constantes nesse

movimento memorialístico, o que marca a forte relação entre a memória da adulta e as

identificações com o ambiente familiar. As brincadeiras, a descoberta da sexualidade e,

mais uma vez, o arco-íris, estão presentes em sua constituição identitária.

A família Vicêncio permanece todo o tempo em um ir e vir. Estão a buscar algo: “Ponciá

Vicêncio ganhou um aflitivo remorso no peito. Sim, fora ela a causadora de tudo. Saíra

primeiro de casa, agora estava o irmão perdido na cidade e a mãe sem rumo lá pelo

povoado”. (EVARISTO, 2003, p. 46). Percebe-se que, a partir da iniciativa de Ponciá

em busca de ascensão social, por meio do deslocamento físico, o irmão e a mãe

também sentem necessidade de buscar condições melhores de vida. A movimentação

da Mãe de Ponciá também diz muito de seu esforço para alcançar porto seguro perto

dos filhos:

A cada saída, retornava e quando partia novamente, aumentava a distância do ponto original, avançando um pouco mais na rota em busca dos filhos. O rito de ir e vir já havia sido cumprido algumas vezes. No primeiro retorno não obteve sinais de nada, mas, quando voltou pela segunda vez, colheu notícias da filha. Nêngua Kainda falou dela. (EVARISTO, 2003, p. 106).

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Tempos mais tarde, após vários desencontros, o reencontro de Ponciá com o irmão

Luandi não significou a possibilidade de reestruturação familiar. O movimento pela

busca identitária segue o seu curso. No reencontro dos irmãos, Ponciá não dá sinais de

que efetivamente o encontrou. A harmonia não se realiza meramente por esse

encontro:

O nome de Ponciá Vicêncio ecoou na estação como um apito do trem e ela nem prestou atenção alguma ao chamado. Andava, chorava e ria, dizendo que queria voltar ao rio. Luandi acercou-se carinhoso da irmã, dizendo-lhe que sabia o caminho do rio e que haveria de levá-la. Ponciá levantou os olhos para ele, mas não se podia dizer se ela o havia reconhecido ou não. (EVARISTO, 2003, p. 123)

Ponciá parecia estar em busca de algo que eventualmente pudesse completar o vazio

que sentia. Talvez lhe faltasse encontrar a identidade. Fragmentos das vivências e das

memórias do vivido se evidenciaram nesse momento.

Pollack (1989) considera a necessidade de que as memórias de grupos sociais que

foram silenciadas pelo discurso hegemônico venham à tona. A narrativa em estudo

evidencia a busca do passado, por meio da memória individual, que, no entanto,

articula-se com a memória coletiva das personagens. A construção da identidade e a

resistência das personagens permeiam a ficção, assim como podemos entender pela

fala da narradora sobre Ponciá: “falavam também do ódio que o pai dela tinha por Vô

Vicêncio ter matado a mãe dele. Ponciá sabia de tudo como se fosse pela primeira

vez.” (EVARISTO, 2003, p. 63). Na narrativa, as histórias vão sendo remendadas com

minúcias, fazendo com que o passado truncado daquela família seja reconstituído de

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maneira a constituir pedaços da sua identidade. Assim, a personagem principal se

sente como alguém que “precisasse recuperar a primeira veste para nunca mais se

sentir desamparadamente nua”. (EVARISTO, 2003, p. 63).

Outra estratégia da narrativa que nos chama a atenção é a forma fragmentada com a

qual ela é construída. Assim como funciona a memória, a narrativa se constrói por

lembranças que vêm e vão a todo o tempo, constituindo as vidas das personagens e

indicando as buscas por suas identidades. Não há linearidade nos acontecimentos do

romance. O que se observa, a partir das reflexões traçadas por Adélia Bezerra de

Menezes (2004), é que as narrativas intentam dar forma e conteúdo a determinados

temas. A recriação das histórias e a dimensão do real, dada a elas, é matéria vital para

a ficcionista. Assim, o enredo de Ponciá Vicêncio, na perspectiva pensada por Adélia

Bezerra de Menezes, trata de histórias de vida que invocam o passado, forjando uma

memória rearranjada. Lemos na obra ficcional de Evaristo um passado recriado, em

alinhamento com fatos vividos no presente narrado pelas personagens. Dessa forma,

nota-se a orientação da escrita da autora que, em vez de petrificar os fatos narrados

encarcerando-os no passado, reinventa-os, recontextualiza-os a partir da memória,

para, por meio dela, expor as problemáticas vividas pelas personagens, os conflitos que

impulsionaram as suas ações para alterar o curso da vida imposta a eles até então.

A atitude da personagem Ponciá sinaliza que a sua vivência e a da sua família, entre os

espaços da roça e da cidade, em busca da sua identidade, demonstram as incertezas

experimentadas por eles no presente:

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Gastava todo seu tempo com o pensar, com o recordar. Relembrar a vida passada, pensava no presente, mas não sonhava e nem inventava nada para o futuro. O amanhã de Ponciá era feito de esquecimento. Em tempos outros, havia sonhado tanto. (EVARISTO, 2003, p. 19).

Esse trecho parece querer nos dizer da necessidade que a personagem tem de não

criar expectativa de vida positiva diante de uma realidade que ainda coloca negros e,

em particular, a mulher negra, em uma condição de silenciamento. O “esquecer”, nessa

circunstância, assume um caráter de resistência, na medida em que a memória daquela

família insiste em trazer à tona seu pertencimento a uma condição social subalterna.

Além da estratégia de esquecimento, a memória da maioria das personagens invoca

histórias que dão suporte aos familiares de Ponciá, alimentando a sua reflexividade, a

sua resistência e também a sua busca por alternativas ao sistema excludente no qual

vivem.

A construção identitária de Ponciá e das demais personagens por meio da invocação

do passado conforma também a alteridade de cada um, e assim, os movimentos de ida

e vinda, os conflitos individuais pelos quais cada um passa resvalam para a

conformação identitária coletiva daquela família. As situações que os fazem se unirem e

se separarem são mescladas pelas recordações que cada personagem tem de si e das

histórias que afetam a todos os familiares. A esse respeito Candau observa que

Ao mesmo tempo que constrói sua identidade pessoal por uma totalização provisória de seu passado, o indivíduo realiza, portanto, a aprendizagem da alteridade. Desse ponto de vista, a memória familiar é para o indivíduo ao mesmo tempo a consciência de uma ligação e a consciência de uma separação. (CANDAU, 2011, p. 141).

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Em Ponciá Vicêncio as personagens estão emaranhadas, de uma forma ou de outra.

Assim, a mãe Maria Vicêncio, o pai, Vô Vicêncio, Bilisa, namorada do irmão, a velha

Nêngua Kainda, o irmão Luandi, o soldado Nestor e as demais personagens com

menor aparição na trama são, todas, matéria da memória da personagem central, mas

também constroem os seus destinos a partir de suas próprias memórias e, com isso,

demonstram resistência diante das situações adversas que lhes são impostas. Dessa

forma, dramas vividos por cada um são também coletivizados, na maioria das vezes.

Uma das personagens que funciona como um contraponto no processo de construção

individual e coletiva da família é o soldado Nestor, que era inicialmente referência de

negro bem-sucedido para Luandi. O soldado auxilia o amigo em tudo o que pode,

aconselha e ajuda-o a escrever o próprio nome, consegue os papéis para que ele se

torne soldado. Ao final da trama, é ele quem recebe a mãe de Luandi, Maria Vicêncio e

leva-a até o filho, apaziguando a dor que o atormenta desde a morte da sua namorada

Bilisa, a quem tanto amava.

E quando a mãe de Ponciá e de Luandi entregou ao soldado Nestor um papelzinho dobrado, quase rasgado pelo tempo e que ela cuidadosamente guardava enrolado num pedacinho de pano, ente os seios, ele sorriu reconhecendo a própria letra. Era como se previamente soubesse de tudo, pois tinha sido justo ele o autor daquela identificação que Luandi deixara um dia com Nêngua Kainda, para que a velha entregasse a sua mãe. Maria Vicêncio gostou daquele moço soldado que tinha idade para ser também seu filho (EVARISTO, 2003, p. 116).

A personagem Luandi intenta ser soldado na cidade grande por entender que esse

posto lhe permitirá sair de sua posição subalterna e ocupar um lugar de poder, tal qual

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vê a situação do soldado Nestor. Após várias idas e vindas, a decepção com o

posicionamento da polícia, em especial em relação ao negro, e também diante da

possibilidade de não ter os seus entes amados consigo, de voltar para o interior, viver

com a sua irmã e mãe, organizar a vida junto a elas, ele desiste do propósito de ser um

homem da lei. Inicia, a partir dessa decisão, uma reflexão acerca do papel da polícia, e

do soldado Nestor, que tanto admirou:

Soldado Nestor era tão fraco e tão sem mando como ele. Apenas cumpria ordens, mesmo quando mandava, mesmo quando prendia. Foi preciso que a herança de Vô Vicêncio se realizasse, se cumprisse na irmã para que ele entendesse tudo. Só agora atinava também com o riso e as palavras de Nêngua Kainda. [...] Se a voz de Luandi não fosse o eco encompridado de outras vozes-irmãs sofridas, a fala dele nem no deserto cairia. Poderia sim, ser peia, areia nos olhos dele, chicote que ele levantaria contra os corpos dos seus. (EVARISTO, 2003, p. 94 - 126).

Luandi desloca o pensamento e a posição inicial sobre o entendimento do que seja

poder de mando, toma consciência do seu lugar e passa a se sentir incomodado,

desconfortável com a sua necessidade de ser policial. Afinal, as atividades inerentes a

quem está nesse posto pareciam ser as de reproduzir o movimento de opressão para

com o outro, em especial o negro. A busca identitária mobiliza a personagem ao fim da

história. Assim, ele procura o caminho de volta às suas raízes familiares, pois se

conscientiza de que “era preciso construir a história dos seus”. (EVARISTO, 2003, p.

127).

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A mãe de Ponciá e Luandi também perambulou durante muito tempo em busca de sua

identidade. Durante o seu vagar vieram à tona as lembranças e o fortalecimento do seu

papel na vida da família:

A mãe de Ponciá Vicêncio há anos vinha andando de povoado a povoado.E nessas andanças,em cada lugar que passava, encontrava trabalhos de barro feitos por ela e pela filha. O tempo passara, vida também e ela, sempre no fazer, nem percebera o tanto que havia criado. Só depois, calma, longe de tudo, podia admirar o que tinha feito. Em toda casa, em toda fazenda tinha uma criação dela ou da filha. (EVARISTO, 2003, p. 84).

A presença da arte das duas, mãe e filha, em todos os espaços em que Ponciá

transitava, parece dizer da importância delas para a memória daquelas pessoas da

região. O fortalecimento daquela família torna-se visível por meio dos seus trabalhos

artísticos. Desse modo, surge a segurança e a certeza de que poderiam traçar novos

rumos e que eles poderiam ser traduzidos em dias melhores. Com Candau (2011)

podemos interpretar que “a memória e a identidade pessoal devem sempre compor

com a memória familiar, que é uma memória forte, exercendo seu poder para além de

laços aparentemente distendidos”. (CANDAU, 2011, p. 141). Maria Vicêncio não se

cabia sozinha no espaço da casa em que fora abandonada pelo marido e pelos filhos,

mas sempre voltava para buscar, ou deixar algumas pistas dos seus percursos. Embora

não permanecesse ali, a promessa de reconstituição da sua família era necessária para

apaziguar a sua errância identitária:

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Maria Vicêncio revolveu as cinzas no fogão mais uma vez para se certificar se as cinco brasas estavam acesas. Lá estavam, e uma maior, grande carvão incandescente, brilhava feito estrela. Havia uns três dias que a mãe de Ponciá tinha retornado à casa. Desde que os filhos partiram, estava sempre ali, porém nunca para ficar. Voltava para visitar a casa, espantar o vazio e sentir a presença dos mortos (EVARISTO, 2003, p. 114).

É necessário que se compreenda que o esquecer é uma estratégia da construção

literária da escritora, a nos demonstrar que a personagem resiste à situação de

opressão e dominação. Nessa direção, Ricoeur (2000) aponta que os acontecimentos

que eventualmente tenham traumatizado certas pessoas ou grupos podem resvalar em

lembranças que necessitam serem repostas na expectativa de amenizar sofrimentos.

É nessa direção, de compreender os momentos de esquecer e de lembrar, que Ponciá

nos revela as estratégias que cria com o propósito de selecionar imagens e fatos

vividos por ela e por sua família. Concluímos que alguns pontos que são esquecidos,

bem como os que são lembrados, fazem parte da memória coletiva do grupo social ao

qual pertencem Ponciá e sua família e que dão significado e importância aos processos

de resistência em relação à opressão vivida por eles. Podemos citar, à guisa de

enriquecer os nossos argumentos, a passagem em que a personagem principal se

“ausenta” da realidade, em uma situação de penúria, quando chega na cidade,

desamparada e sem rumo:

Estava cansada, tinha fome, emoção e um pouco de frio. A cabeça tonteou. Sentou-se rápido, num banquinho de madeira. Veio, então, a profunda ausência, o profundo apartar-se de si mesma. Quando Ponciá voltou a si, já era quase meia-noite. Quanto tempo ficara alheia? Não

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sabia ao certo. Chegara ali por volta do meio-dia e agora a noite já se tinha dado. (EVARISTO, 2003, p. 50).

Logo em seguida à ausência de si, a menina-mulher lembrou-se da sua mãe, do

aconchego do lar, pois, ainda que com muita dificuldade, mobilizavam-se de maneira

solidária e carinhosa, dando conforto um ao outro. “Lembrou-se dos biscoitos fritos que

a mãe fazia. Abriu a trouxa (semelhante a que levara quando partiu) e de lá retirou um

pedaço de pão com linguiça” (EVARISTO, 2003, p. 50).

Não podemos deixar de destacar que, no contexto narrativo, Ponciá é oriunda da

segunda geração de negros libertos no Brasil. Seu pai nasceu na vigência da Lei do

Ventre Livre e seu avô recebeu carta de alforria. A memória opera de modo a construir

uma narrativa que denuncia a exclusão racial e social de um segmento populacional em

um passado não muito distante e que perdura nos dias atuais. No romance, Ponciá é

guardiã da memória dos seus familiares, na medida em que é por meio dessa

personagem que os dilemas vividos pelos seus antepassados vêm à tona.

É nessa perspectiva que o romance pode ser pensado a partir das reflexões de

Catroga, especialmente quando afirma que “a memória será sempre fundacional,

sacralizadora e reactualizadora de um passado que, estando ainda vivo, tende a fundir-

se num eterno presente” (CATROGA, 2001, p. 54).

Pensamos que essa produção literária, ao costurar aspectos da memória na tessitura

dessa trama, inscreve Conceição Evaristo no rol dos poetas e escritores que não fogem

da história, na medida que o seu texto é social e histórico.

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4.3 Literatura, memória e identidade em O alegre canto da perdiz

No que se refere a O alegre canto da perdiz, fizemos uma leitura que nos

possibilitasse interpretar os fatos vividos pelas personagens no contexto da narrativa a

partir da dimensão do tempo, considerando a importância dele para os povos africanos.

Várias vezes, foi-nos demonstrado o valor do tempo, por meio da evocação da

memória, sobretudo pelas personagens Maria das Dores, Delfina e a senhora mais

velha, esposa do régulo.

São os fatos narrados no presente das personagens que nos permitem olhar os fatos

do passado e fazer várias interpretações sobre eles. Assim, no romance de Chiziane, a

temporalidade é um dos aspectos que nos permitem perceber a circularidade da

organização narrativa. Tempo passado e presente convivem no enredo, sendo a

memória o fio condutor desse movimento orquestrado pela trama.

Pensamos que a presença da memória na obra de Chiziane diz do seu investimento em

uma tessitura literária que se dedica a narrar o movimento das personagens que foram

testemunhas do projeto de construção de uma nova sociedade em Moçambique no

período pós-colonial. A esse viés podemos acrescentar o investimento de Chiziane em

dar visibilidade à perspectiva como as mulheres se colocam nessa nova sociedade,

com vistas a demonstrar o caráter de resistência delas em relação a todas as formas de

opressão, incluindo aquela resultante do patriarcalismo.

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A circularidade desenvolvida nas ações das personagens nos permite compreender

que, pela memória, elas reelaboram, reorganizam as suas vidas e a vida do grupo ao

qual pertencem. Delfina, Maria das Dores, Maria Jacinta e outras personagens

reescrevem a história de suas vidas com vistas a buscarem um cenário favorável para

si, ainda que com ambiguidades, contradições e equívocos nas relações entre elas.

Elas fazem esse movimento rasurando tradições, atualizando mitos e promovendo uma

revisão de sua história e, consequentemente, da história do grupo social no qual estão

inseridas. Assim, as memórias de cada uma corroboram para a formação da memória

coletiva do grupo social ao qual pertencem.

A narrativa se desenvolve em um movimento cíclico que nos permite aguçar o sentido

de orientação para o passado e o presente. Esse movimento pode ser lido a partir da

perspectiva discutida por Fernando Catroga (2001):

Como a memória é activa, a recordação (e a necessária comemoração) nunca resultará da oposição ou da separação entre o passado, o presente e o futuro. Ao contrário, toda a retrospectiva é uma protensão, podendo mesmo defender-se que, em certa medida, o futuro não é uma criação ex nilhilo: o passado, enquanto memória, participa na sua edificação. (CATROGA, 2001, p. 52-53 – grifo do autor).

A memória, não somente da senhora, esposa do régulo, mas também de Delfina, mãe

de Maria das Dores, e ainda, as lembranças desta última, incidem nessa construção de

escrita com vistas a demonstrar que O alegre canto da perdiz, além de matéria da

lembrança das personagens, pode ser visto como uma narrativa que ficcionaliza

também os conflitos étnicos e sociais que sempre existiram na sociedade

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moçambicana. É o que se percebe, por exemplo, com a personagem Maria das Dores,

que

Lembra-se de tudo, da terra e do mundo. Onde a cultura dita normas sobre homens e mulheres. Onde o dinheiro vale mais que a vida. Onde o mulato vale mais que o negro e o branco vale mais que todos eles. Onde a cor e o sexo determinam o estatuto de um ser humano. (CHIZIANE, 2008, p. 27).

Assim, o movimento da memória permite que se leiam, nas lembranças das

personagens, as adulterações provocadas pelas diversas transformações pelas quais

passou o país desde o período colonial até a pós-independência, bem como as

disputas relacionadas a gênero que constituem as relações societárias. O romance

ilustra essas situações, evoca a tradição, percorre uma temporalidade específica e se

reapropria de conhecimentos seculares, para retomá-los e repô-los em atitude crítica.

Os mitos evocados pela senhora esposa do régulo, por exemplo, dizem-nos sobre os

conflitos existentes entre os regimes matriarcal e patriarcal, sobre características da

tradição moçambicana, e, ainda, que é possível acompanhar os processos de busca

identitária das personagens em suas tentativas de se adequarem ao sistema societário

em que vivem. Nessa perspectiva, ora as personagens se adequam, ora rompem com

padrões de comportamento, ora questionam as relações de dominação em que estão

enredadas.

No romance, vemos a personagem Maria das Dores, que aparece nua diante de todos,

relembrando fatos de sua existência que a levaram à sua aparente loucura. Na

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verdade, a personagem revela, na sua perda de memória, que o presente vivido é

ainda permeado por um sistema de opressão: “odeio as paredes das casas que não me

deixam escutar a música do vento. Eu sou a Maria das Dores. Aquela que desafia a

vida e a morte a busca do seu tesouro” (CHIZIANE, 2008, p. 17). A personagem não

aceita se adequar a uma estrutura que a aprisiona, daí a sua ruptura com essa

estrutura e sua busca de liberdade/tesouro. É essa mulher que é encontrada nua na

beira do rio, causando espanto nas outras mulheres, levando a que as memórias

míticas sejam buscadas para que se compreenda a sua posição diante daquela

estrutura societária que não respeitava a sua identidade.

O comportamento de Maria das Dores, sobretudo a simbologia da sua nudez, colide

com uma eventual aceitação passiva da instituição do patriarcalismo na sociedade

atual: é Maria das Dores, com o seu comportamento inusitado, audacioso, que, fugindo

do marido Sianga, resiste à prerrogativa que o patriarcado atribui ao homem de definir

o destino da mulher. Essa resistência de Maria das Dores é explicada pela esposa do

régulo, que usa a mitologia para associar a nudez da personagens a um status de

poder que a mulher tinha no tempo do matriarcado, como também para explicar as

mudanças que aconteceram no transcorrer do tempo e que desembocaram na

mudança de status da mulher, pela qual ela perde sua posição de mando para o

homem:

Os homens invadiram o nosso mundo – dizia ela –, roubaram-nos o fogo e o milho, e colocaram-nos num lugar de submissão. Enganaram-nos com aquela linguagem de amor e de paixão, mas ursuparam o poder que era nosso. Uma mulher nua do lado dos homens? Ó gente, ela veio de um reino antigo para resgatar o nosso poder usurpado. Trazia de novo o sonho da liberdade (CHIZIANE, 2008, p. 22).

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De maneira reiterada, o tempo da tradição é recuperado e infiltra-se na atualidade,

permitindo às personagens reformular e contestar valores éticos, comportamentos e

atitudes. A personagem Maria das Dores causa tumulto ao transgredir as formas de boa

conduta que aparentemente sedimentavam aquela comunidade. Dessa forma, ela

contraria homens e mulheres, sendo o seu comportamento significado da resistência ao

discurso que intenta acomodar todos, de modo a viverem um padrão homogêneo de

vida:

Nas cidades humanas a liberdade é proibida. O ser humano tem que andar sempre vestido, documentado, calçado. Por andar sem rumo, a polícia prende por vadiagem, como se alguém conhecesse de facto o rumo de cada passo. Porque é que tem de se andar num rumo exacto se todos os lugares são lugares para andar? Porque é que tenho que caminhar a horas certas se todas as horas são horas para caminhar. (CHIZIANE, 2008, p. 33).

As reminiscências das personagens traduzem a busca de elo entre passado e presente,

como vemos no fragmento abaixo:

Anos de memória confluem na sua mente. Em pequenos pedaços como gotas de água formando um rio. As imagens obscurecidas pelo tempo revelam-se uma a uma, recortadas e baralhadas como as peças de um puzzle. Como se um arqueólogo de memórias escavasse fotografias antigas. Sinto que já estive aqui, quando? Olha para a paisagem com mais atenção. A cordilheira. A cabeça do monte alto coberto com o chapéu de nuvem. Uma nascente, um rio, a crescer para o desconhecido. Já escalei aquele monte. Que buscava eu? (CHIZIANE, 2008, p. 26).

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Essa recordação da personagem parece traduzir uma espécie de prenúncio da sua

realocação em tempos melhores, que não aqueles que outrora a sufocavam:

Lembra-se de tudo, da terra e do mundo. [...] A imagem do marido é a fórmula de amargura, não quer recordá-la. A mãe é a formula de traição, nem quer revivê-la. A família era uma constelação de pretos, brancos, mulatos à mistura, baseada em hierarquias e falsas grandezas. Por isso fugiu de tudo e apreendeu os segredos da solidão. A sorrir a brisa. Conversar com o vento e a beijar as estrelas. (CHIZIANE, 2008, p. 27).

A lembrança surge em forma de reflexões críticas acerca do comportamento dos entes

próximos. Tal comportamento e modo de vida, metáfora urdida no romance para

demonstrar a insatisfação da personagem com a situação de opressão e dominação do

marido que lhe foi imposto pela mãe, foram o motivo para que a personagem Maria das

Dores se distanciasse do ambiente que a tornava refém da subalternização imposta

pelo casamento.

Próximo ao desfecho da trama, assistimos a uma cena em que Maria das Dores se

apresenta lúcida diante de seu filho, dos demais, do seu pai e do marido. A cena nos

mostra o seu equilíbrio diante da sua condição feminina e a sua conquista da posição

de mãe e esposa, tendo essa sua identidade reconhecida pelos seus familiares.

Aquele momento torna-se elucidativo para compreendermos que o alijamento da

personagem, por um certo tempo, deu-se em razão de uma situação desconfortável

para si. Entendemos ainda que esse apartamento de si assume característica de

resistência, pois ele, ao final, lhe permitiu, em um momento favorável, alcançar a

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identidade almejada. O que é reconhecido pela sua mãe, Delfina, como se vê na

passagem abaixo:

- Tu não te perdeste, mas te encontraste. Eu é que te perdi, porque te expulsei deste mundo. Impus-te fardos que não suportaste. Partiste. Para o espaço e para dentro de ti. Deixaste o teu lugar entre os humanos e ganhaste a leveza da brisa. Ou do criador. Não temias a morte nem a noite. Nos dias quentes te despias e caminhavas nua na inocência das crianças. [...] – Eu estava louca mãe.- Não, nunca estiveste louca, nunca. (CHIZIANE, 2008, p. 320).

Delfina, mãe de Maria das Dores, que sacrifica a filha entregando-a para o feiticeiro

Sianga para que este satisfaça o desejo de Delfina em alcançar uma vida melhor, por

pressão da filha Maria Jacinta arrepende-se da ação que empreendeu e faz conjecturas

sobre os anos que marcaram o momento aflitivo que a levou a cometer tal ato:

Eu tinha uma filha, ou tenho, já não sei. Era uma menina, linda. Nasceu em 1953, mas parece que ainda ontem brincava de mamã cuidando dos irmãos mais novos como bonecas. Partiu em 1974, como uma nuvem, e se esfumou no imenso palmar, já não a encontro [...] Hoje, véspera do novo século, ainda estou aqui, chamando por ti. (CHIZIANE, 2008, p. 43).

Delfina segue em busca da filha, pois está arrependida de tê-la trocado por certas

benesses e ter cedido aos imperativos do poder hegemônico: “Estou cansada de ouvir

a minha história fossilizada em moldes de barro pelas cantigas do povo. Estou cansada

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da justiça popular que me acusa e me condena, continuamente”. (CHIZIANE, 2008, p.

43).

A mãe de Maria das Dores reclama dos conflitos identitários que a perseguem. Em um

dos momentos em que Delfina se mantém “refugiada na lembrança doce dos tempos

de brilho” (CHIZIANE, 2008, p. 294), confessa-se pecadora, com sede de redenção, à

procura da filha e reflete sobre o futuro das crianças que estão ao seu redor e, alegres

e brincalhonas, não se dão conta ainda de que poderão ser “obrigadas a dormir com

qualquer um por causa de chá e de açúcar. Por causa da submissão. Da pobreza, da

injustiça humana” (CHIZIANE, 2008, p. 294). Em suas divagações, as memórias são

despertadas, os acertos, os desacertos e as dores são lembrados. A personagem sente

uma necessidade de aliviar o seu coração, de buscar novas formas de ver e rever os

atos praticados até então. Nesse movimento de rememorar, a filha Maria das Dores

desaparecida é presença constante: “As canções da criançada despertam outras

cantigas enterradas na raiz da memória. E suspira. Essa voz parece de Maria das

Dores. Esse grito parece o de Maria das Dores”. (CHIZIANE, 2008, p. 295).

A resistência em ser dominada pela cultura do outro se faz presente nas atitudes da

personagem Delfina quando, na velhice, as suas lembranças evocam constantemente

os momentos em que ela sucumbiu ao poder instituído, e também apontam para a

revisão do seu papel de mãe: “aprendi com a gravidez da Maria das Dores que a

eternidade da mulher dura nove meses de espera. Eu te gerei com muito amor, Maria

das Dores”. (CHIZIANE, 2008, p. 295).

Nessa nova condição é que assistimos ao envolvimento de Delfina com a passeata de

mulheres, no Dia Nacional da Mulher, e esse envolvimento caracteriza também a sua

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conscientização em relação ao seu papel e à sua condição de mulher negra. Aí a

lembrança da filha se faz presente de maneira mais forte: “A marcha a fazia sonhar. O

sonho era tudo o que ela queria. Pensa em Maria das Dores”. (CHIZIANE, 2008, p.

295). As canções entoadas pelas engajadas mulheres na passeata se voltam para suas

tentativas de serem felizes e autônomas, o que faz com que ela tenha recordações do

seu passado. Lembra-se de quando, em busca de dinheiro para alcançar conforto,

levava algumas mulheres à prostituição e até mesmo à morte:

Esse canto desperta as cinzas do tempo. Ressuscitam do túmulo todas as almas das raparigas mortas no meu prostíbulo. São elas a cantar os sonhos que lhes roubei, a vida que lhes tirei. Essas canções falam de mim e de ti, Maria das Dores. Hoje as mulheres cantam na rua. Na rádio. No meu tempo, cantavam ao vento. Cantavam para as ondas do rio, lavando roupas, lavando mágoas. Cantavam no pilão, pilando milho, pilando sonhos. (CHIZIANE, 2008, p. 299-300).

Arrematando a trama, Delfina é acordada das suas divagações pelo marido negro, José

dos Montes, que a prepara para a festa do novo século:

José dos Montes derrama sobre ela um olhar de ternura. E piedade. Identifica-a. Ela é uma rainha. Sempre foi. Guerras, mágoas, vaidades, roubaram-lhe a realeza por algum tempo. Mas ganhou novas asas. É uma árvore nobre onde os pássaros poisam e compõem doces cantigas (CHIZIANE, 2008, p. 313).

Destacamos ainda, na obra, o papel da senhora mais velha, mulher do régulo, que

recorrentemente alerta as mulheres daquele lugar sobre os sinais trazidos pela

personagem Maria das Dores, por elas considerada louca. Ela potencializa os recursos 189

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necessários para que possamos compreender a importância de se conhecerem os

valores tradicionais do país, e, a partir desse conhecimento, compreender quais estão

sendo rasurados, pois é justamente essa senhora que esclarece o significado da nudez

de Maria das Dores para a comunidade quando “reconhece rapidamente as razões da

zanga colectiva e responde com um arco-íris. Histórias de vida soltam-se dos arquivos

da memória como files de um computador”. (CHIZIANE, 2008, p. 19).

Para melhor apreendermos a existência da personagem na trama, buscamos Amadou

Hampaté Bâ (1980), pois ele trata da importância da tradição oral para as sociedades

moçambicanas, sobretudo para as ágrafas:

A tradição oral é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos. [...] Ela é ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento, e recreação, uma vez que todo pormenor sempre nos permite remontar à Unidade primordial. (HAMPATÉ BÂ, 1980, p. 183)

A mulher do régulo abusa da sua condição de mais velha para fazer um arrazoado das

vivências daquele povo. Por meio da sua memória, reconta as histórias , sobretudo os

mitos do matriarcado. Em um dado momento, ela convoca todos para se reportarem

aos mitos e “A multidão ouve a sua voz a penetrar. O sorriso a desabrochar. A mente a

vadiar na paisagem dos princípios. O medo a escapar. Os ânimos se acalmando”.

(CHIZIANE, 2008, p. 21).

Na evocação das raízes do grupo, é perceptível a busca pelo tempo em que o

matriarcado imperava. Nesse momento, mais uma vez, a senhora, esposa do régulo,

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explica o papel e a importância da presença de Maria das Dores naquele lugar. Explica

a todos que aquela mulher trazia uma boa nova, uma mensagem de liberdade. Para

esclarecer, evoca a mitologia: “No princípio de tudo. Homens e mulheres viviam em

mundos separados pelos Montes Namuli. As mulheres usavam tecnologias avançadas,

até tinham barcos de pesca.” (CHIZIANE, 2008, p. 21).

Ricouer (2000) afirma que antes mesmo de respondermos à questão “quem lembra?”,

ou ainda, antes de tangenciar a questão com aspectos identitários, é necessário passar

antes pela indagação sobre “de quê se lembra?” e “de quê consigo lembrar?”

Partindo dessas premissas apontadas pelo filósofo, consideramos que, no romance de

Chiziane, podemos entender o recurso à memória dos acontecimentos passados com

vistas a atualizar o presente e, ainda, a questionar formas cristalizadas de lidar com a

cultura dos que foram historicamente subalternizados. A pergunta/resposta que é feita

pela personagem mais velha, esposa do régulo, quando consultada por seu povo,

auxilia-nos na compreensão dessa interpretação que fazemos, referenciando-nos em

Ricouer. O excerto demonstra a necessidade da senhora mais velha reativar a memória

das personagens para falar sobre o poder que tinham outrora:

- De onde viemos nós? – aguarda a resposta que não vem, e afirma: “- Éramos de Monomotapa, de Changamire, de Makombe, de Kupula, nas velhas auroras. O poder era nosso. Lembram-se desses tempos, minha gente?” (CHIZIANE, 2008, p. 23).

A pergunta da esposa do régulo aponta ainda para a possibilidade de recuperação do

poder feminino, que é trazido pela mulher nua, que está à beira do rio, quebrando

paradigmas de outrora que conferem poder ao homem. Na sua insistência em reafirmar

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o poder da mulher e a necessidade de que se busquem as recordações para a

construção de um mundo sem guerras, doenças e conflitos e com sensibilidade

feminina, a velha senhora continua a argumentar que

Longe é a distância entre o teu percurso e o teu cordão umbilical. Longe é o útero da tua mãe de onde foste expulso para nunca mais voltar. É a distância para o teu próprio íntimo onde nem sempre consegues chegar. Longe é o lugar de esperança e de saudade. Lugar para sonhar e recordar. Longe é o além para onde muitos partem e deixam eternas saudades. O longe é gêmeo do perto, tal como o princípio é gêmeo do fim. Porque tudo muda na hora da meta. O ali será aqui, na hora da chegada. O futuro será presente. O amanhã será hoje. (CHIZIANE, 2008, p. 23).

Em outro trecho, sem perder de vista o fato de rememorar como estratégia para

atualizar os que ouvem as suas histórias, a mulher do régulo se utiliza do respeito que a

população tem por ela e pelas suas lembranças e traz à tona as nefastas guerras

ocorridas. Além de narrar acerca das agruras a que foi submetida a população do seu

país no processo de colonização, ela volta a afirmar que as mulheres foram subjugadas

e violentadas. Essa violência sexual levou à constituição de gerações de descendentes

de africanos mestiços e também ao desrespeito à cultura do seu povo:

Unimo-nos aos changanes, aos ngunis, aos ndaus, nhanjas, senas, Guerreámo-nos e reconciliámo-nos. Fomos invadidos pelos árabes. Guerreados pelos holandeses, portugueses. Lutámos. As guerras dos portugueses foram mais fortes e corremos de um lado para outro, enquanto os barcos dos negreiros transportavam escravos para os quatro cantos do mundo. Vieram novas guerras. De pretos contra brancos, e pretos contra pretos. Durante o dia, invasores matavam tudo, mas faziam amor na pausa dos combates.Vinham com os corações cheios de ódio. Mas bebiam água e coco e ficavam mansos e o ódio se transformava em amor. As mulheres se parecem com coco, não acham?

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As mulheres violadas choravam as dores do infortúnio com sementes no ventre, e deram à luz uma nova nação. (CHIZIANE, 2008, p. 23).

A noção que apreendemos no excerto abaixo é a de que recordar é necessário para se

atualizarem os motivos que devem reger os passos a serem seguidos no presente.

Para tanto, a senhora explica ao povo, por meio do mito do matriarcado, que o poder

inicial era da mulher e que ela foi aliciada pelos homens. Não obstante, inicialmente

eram as mulheres que

Dominavam os mistérios da natureza e tudo… eram tão puras, mais puras que as crianças numa creche. Eram poderosas. Dominavam o fogo e a trovoada. Tinham já descoberto o fogo. Os homens ainda eram selvagens, comiam carne crua e alimentavam-se de raízes. Eram canibais e infelizes. Um dia, um homem jovem tentou atravessar o rio Licungo, para saber o que havia. Ia afogar-se quando aparece a linda jovem, sua salvadora, que meteu o homem no seu barco. Como houvesse frio, a jovem tentou reanimar o moribundo com o calor do seu corpo. O homem olhou para o corpo dela, completamente aberto, um antúrio vermelho com rebordos de barro. Ali residia o templo maravilhoso, onde se escondiam todos os mistérios da criação (CHIZIANE, 2008, p. 21 – 22).

É invocando a memória mítica que ela consegue explicar às aturdidas mulheres que se

incomodam com o comportamento estranho de Maria das Dores que a história está

sendo revisitada. A senhora mais velha, legitimada pelos seus pares, que a procuram

reiteradas vezes para explicar os fatos ocorridos naquele lugar, utiliza da memória para

descortinar, reafirmar ou rasurar tradições que podem servir para a constituição

identitária daquele grupo, e em particular das mulheres.

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Sendo assim, percebemos, na obra de Chiziane, a necessidade de recuperação da

memória como um dos elementos fulcrais na construção identitária das personagens.

Encontramos ainda no romance a recuperação do passado de poderio matriarcal como

recurso para o fortalecimento da mulher nas relações atuais, na medida em que, sem

ela, não há continuidade da família. Inicialmente, é Delfina que escolhe os homens com

os quais vai se relacionar. Ela o faz ao sabor de interesses financeiros. Ela ordena que

José dos Montes se torne um assimilado com vistas a que a família alcance melhor

sorte. Maria da Dores, por sua vez, rejeita o lugar de submissão imposto pela mãe e

busca refúgio em um tempo livre de tormentas e amarras. Ela só volta ao seio da

família quando as transformações necessárias para configurar a sua identidade e a dos

seus encontram-se consolidadas.

Para além de recontar as histórias míticas, as tradições que constituem a base cultural

de Moçambique, Paulina Chiziane, por meio da ficção, expressa sérios incômodos em

relação ao modelo cultural do ocidente que tem sido referencial para outras culturas. A

tradição imposta pelo sistema colonial e escravocrata é rasurada em sua produção

literária, que se utiliza da memória para evocar lembranças que aludem aos

movimentos de resistência das personagens.

Nessa perspectiva, podemos ler o romance a partir das reflexões de Ricouer (2000),

quando, ao tratar do tema memória e esquecimento, esclarece-nos que as lembranças

são necessárias para que histórias significativas para a constituição identitária de um

povo não sejam silenciadas.

Consideramos que os mitos trazidos pela anciã, bem como as lembranças evocadas

por Maria das Dores, Delfina e as outras personagens, remetem-nos à compreensão

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de que a busca pela constituição identitária das personagens está relacionada à

memória do grupo. As lembranças evocadas por elas estabelecem uma relação com o

seu desenvolvimento social e cultural. A busca do passado muitas vezes serve para a

compreensão e a atualização do presente, ainda que ela esteja usando como referência

um tempo mítico. A interpretação dos fatos vividos por aquelas mulheres foi várias

vezes apresentada pela anciã, e, assim, é vital para tecer a trama romanesca de

Chiziane e, consequentemente, para compreendermos os embates relacionados a

questões de gênero e aos conflitos étnicos dos Moçambicanos.

4.4 Algumas costuras possíveis sobre o aspecto da memória nas duas obras

O escritor da colônia deve usar o passado para abrir espaço ao futuro. Como um convite à ação e como a base para a esperança. [...] A responsabilidade da pessoa culta não é apenas uma responsabilidade diante da cultura nacional, mas uma responsabilidade global referente à totalidade da nação, cuja cultura representa apenas um aspecto da nação. (FANON, 1990, p. 187)

Tanto em Ponciá Vicêncio quanto em O alegre canto da perdiz é possível perceber

que a memória é usada pelas personagens para falar da cultura dos seus países e, de

certa forma, sobre os dilemas enfrentados pelas mulheres negras.

As memórias de Ponciá, de sua mãe, do irmão e demais personagens favorecem a

compreensão do leitor acerca da situação da população afro-brasileira no contexto

narrativo, que remete ao período imediatamente pós-escravocrata no Brasil. Não

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obstante, as suas reminiscências possibilitam ainda que se perceba o caráter de

resistência das personagens em relação à tentativa do poder instituído de conformar as

suas identidades pessoais a uma identidade homogênea.

O romance narra acontecimentos ligados aos descendentes de africanos com poesia,

mas também com realismo. O rememorar constante parece dizer da necessidade de

recuperação e reconstituição dos laços familiares que foram esgarçados pelos

dominadores, das situações de desconforto da personagem central na sua condição de

mulher, da busca identitária das personagens, inconformadas com o subjugo do branco.

O texto é, por esse movimento, de resistência, porta-voz de novos tempos.

No romance O alegre canto da perdiz, o sétimo e último mito, recordado pela senhora

esposa do régulo, traz à memória da comunidade a guerra dos sexos. O mito, ao relatar

sobre a existência do reino dos homens, que era distante do reino das mulheres,

informa que os homens eram incumbidos de cuidar dos bebês, e que, ao descobrirem o

reino das mulheres, dele se apropriaram. Ou seja, passaram a criar condições para que

elas cuidassem dos filhos e da casa. O fato de os homens não cumprirem a sua parte

no acordo fez com que as mulheres se mobilizassem em lutas que visavam alcançar a

igualdade nas relações de gênero.

As mulheres passariam a fazer os filhos e a cuidá-los e eles tratariam da segurança e do alimento. De princípio os homens cumpriam o pacto mas, tempos depois, começaram as violações e as mulheres foram transformadas em escravas. É por isso que elas saem à rua e reclamam a liberdade perdida. Na reivindicação do Dia Nacional da Mulher, a ameaça: se os homens não cumprem o pacto, haverá greve de sexo e tudo voltará a ser como antes […] E os homens, esses heróicos vencedores, são reis apenas quando estão sós. Nos braços das mulheres uivam como crianças. (CHIZIANE, 2008, p. 301).

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Ao fim do romance, o reencontro das personagens demonstra o deslocamento da

família de Maria das Dores para uma situação de conforto, de tempos auspiciosos. Ela

volta a estar com os seus filhos, mãe, pai e marido. As incompreensões, os conflitos

são expostos. O final da narrativa nos revela a satisfação pelos enfrentamentos que

empreenderam e a união entre as personagens: “A vida começava naquele instante”

(CHIZIANE, 2008, p. 322). A narradora dá o tom de como as memórias e as buscas

identitárias mobilizaram aquelas personagens durante toda a trama:

A humanidade aventureira conquistará outras estações celestes com gente azul e verde. Terá chegado o momento de inventar novas raças e recriar novas humanidades. Os pretos, os brancos, e seus mulatos deverão expurgar ódios, raivas e ressentimentos que ainda restem. (CHIZIANE, 2008, p. 334).

Os romances Ponciá Vicêncio e O alegre canto da perdiz rememoram o passado de

suas personagens. Dessa forma, resguardando as diferenças nos processos históricos

e sociais de cada país, eles trazem à tona embates vividos por um segmento

populacional marcado pela exclusão.

Nessa perspectiva, e em diálogo com Pierre Nora (1993), os romances em estudo

aproximam a memória social da história oficial, da memória de povos que foram

subjugados. Pela perspectiva desse autor, ao analisarmos essas obras podemos notar

que as tradições que se apresentam nos dois romances são relembradas como forma

de reafirmação de valores identitários para um determinado povo.

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Ambas as escritoras insistem em usar a memória para nos atualizar acerca das

tradições que permanecem preservadas por seus povos e para aquilo que mais nos

interessa nessa pesquisa, que é demonstrar o caráter de resistência de suas escritas.

Elas abusam das lembranças, das memórias das personagens ao entrelaçarem os fios

dos romances com vistas a reatualizarem valores que lhes são caros.

5 À GUISA DE CONCLUSÃO

[...] acompanhando o processo de formação do discurso literário brasileiro, percebemos que o romantismo despreza a presença africana e sua descendência no Brasil como elementos fundadores da nação. (EVARISTO apud RUFFATO, 2009, p. 22).

Defendemos, nesta tese, o argumento segundo o qual a produção literária de

Conceição Evaristo e Paulina Chiziane configura-se como escritas de resistência. As

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nossas motivações se deram ao perceber, no conjunto das obras dessas escritoras

negras, evidências de uma escrita marcada por questionamentos acerca de sistemas

opressores para as mulheres e, em especial, as mulheres negras – sejam eles

relacionados aos regimes instituídos para segregar grupos sociais, como no caso do

Brasil, a escravização de africanos, seja no caso de Moçambique, em função do

sistema colonial. As escritas de Evaristo e Chiziane colocam em xeque, portanto,

conflitos relacionados às relações de gênero, étnico-raciais e socioculturais nos dois

países.

Considerando que Conceição Evaristo e Paulina Chiziane são mulheres negras que

admitem serem influenciadas, em suas escritas, pelas suas vivências, as nossas

análises das obras se pautaram também nos estudos que são feitos a partir do

entrecruzamento entre sociedade e literatura. Essa perspectiva é estudada, entre

outros, por Lucien Goldman (1976), quando ele afirma que a visão de mundo do autor

se expressa, muitas vezes, de maneira espontânea. Pensamos, com esse autor, que a

literatura é influenciada pela sociedade. Nessa medida, foi fundamental para os estudos

estabelecer relações entre os fatores econômicos, as classes e grupos sociais para

melhor compreender a forma de escrever de Conceição Evaristo e Paulina Chiziane e,

por consequência, para aguçar a nossa percepção sobre a suas obras literárias.

Verticalizando acerca dessas relações, buscamos os argumentos das escritoras sobre

a conexão entre pertencimento social e étnico e as suas produções literárias. Evaristo

nos aponta que:

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Se levarmos em consideração a quantidade de obras que compõem a literatura brasileira percebemos que o personagem negro aparece bem menos como protagonista em relação ao personagem branco e surge muito mais como coadjuvante ou mesmo como antagonista do personagem central. E quando essa representação incide sobre a mulher negra, se evidenciam de modo bastante contundente as tensões nem sempre desmascaradas do jogo ambíguo da democracia racial brasileira. (EVARISTO apud RUFFATO, 2009, p. 20-21).

Chiziane, por seu turno, revela a sua intenção de, ao optar por produzir uma escrita

feminizada, considerar o contexto moçambicano:

O homem, quando fala do sexo relacionado a uma mulher, fala normalmente do que ele consumiu, portanto, sua fala é uma expressão do prazer de ter devorado alguma coisa. Já do lado da mulher, o sentimento é algo que salta. Tentei fazer uma espécie de provocação mostrando que o feminino também tem vez (...). (CHIZIANE apud DIOGO, 2010, p. 175).

Pelos depoimentos das escritoras, apreendemos que Conceição Evaristo e Paulina

Chiziane se beneficiam de práticas sociais ao construírem suas produções literárias.

Não bastasse o romance Ponciá Vicêncio, de Evaristo, apontar a saída da

personagem Ponciá, mulher negra, para espaços outros, diferentes da área rural em

que nascera, em busca de emancipação, a autora nos apresenta outras formas de

insubordinação da personagem aos papéis sociais pré-estabelecidos na sociedade

brasileira para negros, em especial para a mulher negra. Os homens, o marido de

Ponciá e o pai dela, não têm nome. As personagens femininas da obra é que são

nomeadas e que norteiam os rumos da família. O pai e “o homem de Ponciá” tentam

acompanhar os movimentos dessas personagens femininas com cautela. No caso do 200

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marido de Ponciá, aturdido pelo desconforto de não ter a atenção e a submissão da

mulher, ele passa a agredi-la fisicamente. A respeito do machismo do marido, também

negro e, portanto, submetido à estrutura racista no Brasil, Ponciá se nega à submissão

que, na visão dele, a condição de mulher lhe determina, e segue alheia aos ditames

que possam caracterizar o subjugo da mulher negra ao padrão machista que ele

também lhe tentava impor.

A escrita de Conceição Evaristo, então, rasura os valores canônicos da literatura ao

construir uma personagem central negra, questionadora do sistema e que rompe com a

subalternização na qual ela e a família se encontravam. Ponciá se inquieta e coloca em

xeque o regime pós-escravidão, já que a relação dos donos das terras em que viviam

com os seus familiares ainda se configurava como sendo uma relação em que os

brancos eram donos das terras e das pessoas.

Ponciá traz na veia a indignação, marca da personalidade do seu avô, com quem, aliás,

ela era considerada parecida no gênio rebelde e nos gestos. A semelhança da

personagem central com seu mais velho parece nos indicar a continuidade da atitude

de insubordinação, de resistência iniciadas por ele diante da necessidade de não se

vergar às situações de imposição.

A escritora, nesse romance, numa atitude de crítica literária, observa o papel da

literatura canônica e atesta que:

a literatura, enquanto forma de poder de articulação e de imposição de um determinado discurso, revela não só as representações literárias

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para as/das classes hegemônicas, como também exerce o poder de representar o Outro. (EVARISTO apud RUFFATO, 2009, p. 21).

Em O alegre canto da perdiz, Chiziane reafirma a sua escolha em aprofundar a

reflexão sobre temas que, até há bem pouco tempo, ou não eram tratados, ou eram

tratados por escritores homens de maneira parcial. Assimilação, racismo, poligamia,

prostituição e outros temas complexos que estruturam a sociedade moçambicana

compõem a tessitura romanesca de Chiziane.

No romance, quatro mulheres perfilam a situação de opressão vivida pelas mulheres

moçambicanas e os desacertos oriundos das tensões raciais presentes no tecido social

de Moçambique. Serafina obriga a filha Delfina a se prostituir, e se indigna pelo fato de

ela se casar com um homem negro, na medida em que essa união se traduz na

impossibilidade de mobilidade social. Delfina, por sua vez, obriga a filha Maria das

Dores a se unir maritalmente com um feiticeiro para, por meio do recurso à feitiçaria,

casar-se com um branco e alcançar a mobilidade social desejada. Rompendo esse

ciclo de subordinação da mulher, Maria das Dores foge do contexto opressor da mãe e

do marido, mas ao fazê-lo choca a todos com a sua atitude de desnudar-se das

amarras que lhe foram impostas; e Maria Jacinta, a filha mestiça de Delfina,

condenando a assimilação da mãe, reclama o restabelecimento da situação de Maria

das Dores no lugar que lhe pertence na família.

Todas as atitudes dessas mulheres são por nós entendidas como indicadoras da

resistência que caracteriza a escrita de Chiziane, que as enreda propondo, para elas,

comportamentos diferenciados das outras mulheres e do conjunto da sociedade. Por

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isso, as personagens femininas do romance são mulheres que negam papéis de

submissão e subalternidade e, por isso, orientam o modo de vida das demais

personagens para um futuro emancipador.

Em O alegre canto da perdiz, ainda que alguns valores culturais, referenciados na

tradição, sejam limitadores da liberdade daquele povo, e em especial das mulheres, a

escritora se apresenta otimista: “eu viajo muito pelo campo e vejo que todo sonho de

uma mulher mãe, por mais pobre que ela seja, é ver a sua filha na escola, em busca de

desenvolvimento.” (CHIZIANE, apud DIOGO, 2010, p. 176). A afirmação da escritora

sinaliza como as mulheres, em sua sociedade, estão fazendo progresso na busca por

melhores condições de vida.

Assim, Conceição Evaristo e Paulina Chiziane, por meio da escrita, resistem a uma

estrutura social opressora, na qual se funda uma memória oficial erigida a partir da

exclusão do negro, principalmente da mulher negra. Ao fazê-lo, as escritoras também

rasuram essa memória oficial com memórias de mulheres. Essas, outrora silenciadas,

emergem no contexto narrativo para afirmar uma identidade feminina negada e

marginalizada, por ser considerada minoritária no cenário da memória oficial.

Ao apresentarem personagens negras na centralidade de suas ficções, relutando ao

domínio de homens brancos e apresentando saídas para a emancipação dos povos ao

quais elas pertencem, os romances analisados nesta pesquisa rasuram valores que

insistem em serem cristalizados pelas elites. Dessa forma, as escritas de resistência de

Evaristo e Chiziane transpõem o discurso canônico que orienta as sociedades nas

quais elas vivem e expõem ao leitor vozes de diversas mulheres historicamente

invisibilizadas no cenário da produção literária.

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