Chaui Discurso Competente

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  • 8/2/2019 Chaui Discurso Competente

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    c;;ao, porem, nao pode realizar-se de fora, opondo a competenciaestabelecida uma outra, supostamente "mais competente". 0 discursocompetente se instala e se conserva gra9as a uma regra que poderiaser assim resumida: nao e qualquer urn que pode dizer qualquercoisa a qualquer outro em qualquer ocasiao e em qualquer lugar.Com esta regra, ele produz sua contraface: os incompetentes sociais.Acredito que, se procurarmos desvendar os mecanismos de produ9aoda incompetencia social, teremos a1guma possibilidade de desfazerinternamente 0 discurso da competencia. Nao se trata, evidentemente,de confundir a impenetrabilidade imediata do saber, que e real, comurn saber transparente de imediato comunicavel a todos, pois essaimagem da plena comunica9ao e da absoluta transparencia dos produtos da coltura e 0 que permite sua banaliza9ao pelos meios decomunica9ao de massa. Trata-se de contestar 0 uso prlvado da cultura, sua condi9ao de privilegio "natural" dos bem-dotados, a dissimula9ao da divisao social do trabalho sob a imagem da diferen9a detalentos e de inteligencias. E a nQ9ao de competencia que tornapossivel a imagem da comunica9ao e dci informa9ao como espa90 daopiniao publica, imagem aparentemente democnitica e, na realidade,antidemocnitica por excelencia, po is ao fazer do publico esp{lfo daopiniiio, essa imagem destroi a possibilidade de elevar 0 saber acondi930 de coisa publica, isto e, de direito a sua produ9ao porparte de todos.

    . Outras falas: a desmontagem inte rna da competencia foi 0 que,neste Hvro, chamei de contradiscurso ou critica.Sao Paulo, abril de 1980.

    o DISCURSO COMPETENTE *Como sabemos, a ideologia nao e apenas a representa9ao imagimiria do real para servir ao exercicio da domina9ao em uma sociedade fundada na luta de classes, como nao e apenas a inversaoimagimlria do processo historico na qual as ideias ocupariam 0 lugardos agentes hist6ricos reais. A ideologia, forma especifica do imaginario social moderno, e a maneira necessaria pela qual os agentessociais representam para si mesmos 0 aparecer social, economico e

    politico, de tal sorte que essa aparencia (que nao devemos simplesmente tomar como sinonimo de ilusao ou falsidade ), por ser 0 modoimediato e abstrato de manifesta9ao do processo historico, e 0 oc!!!=-tamento olLLdissimYl.wao-do ...reaL Fundamentalmente, a ideologia\ e urn corpo sistematico de representa90es e de normas que nos("ensinam" a conhecer e a agir. A sistematicidade e a coerencia ideol6gic.as nascem de uma determina9ao muho precisa: 0 discurso ideol6gico e aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a diferen9a entre 0 pensar, 0 dizer e 0 ser e, destarte, engendrar uma16gica da identifica9ao que unifique pensamento, linguagem e realidade para, atraves dessa logica, obter a identifica9aO de todos ossujeitos sociais com uma imagem particular universalizada, isto e,a imagem da c1asse dominante. Universalizando 0 particular peloapagamento das diferen9as e contradi90es, a ideologia ganha coerencia.. e for9a porque e urn discurso lacunar que nao pode ser preenchido. Em outras palavras, a coerencia ideol6gica nao e obtida malgrado as lacunas, mas, pelo contrario, gra9as a elas. Porque jamais* Este texto foi apresentado originaImente na 29. a reuniao anual da Sociedade Brasileira para 0 Progresso da Ciencia no simp6sio "Ideologia elinguagem", em 1977.. Foi publicado em 1978 na Revista da Associa!;iioPsiquititrica da Bahia, vol. 2, n.O 1.

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    podeni dizer tudo ate 0 fim, a ideologia e aquele discurso no qualos termos ausentes garantem a suposta veracidade daquilo que estaexplicitamente afirmado.

    Sabemos tambem que, pOl' definic;:ao, na ideologia as ideias estaosempre "fora do lugar", uma vez que sao tomadas como determinantes do processo historico quando, na verdade, sao determinadas pOl'ele. Evidentemente, isto nao significa que as ideias sejam urn "reflt:xo"invertido do real, mas indica apenas que elas nao precedem 0 real,pois 0 exprimem, seja na forma imediata do aparecer, seja na formamediata da reflexao. POl' outro lado, ao afirmar que na ideologia asideias estao "fora do lugar", essa afirmac;:ao nada tern a vel' com ageografia (como nos poderia levar a ereI', pOl' exemplo, a infindavelrepetic;:ao de que no Brasil se pensa pOl' importac;:ao de ideias estrangeiras). "Fora do lugar" remete a circunscric;:ao do espac;:o social epolftico de uma sociedade determinada. Em suma: as ideias deveriamestar nos sujeitos sociais e em suas relac;:6es, mas, na ideologia, ossujeitos sociais e suas relac;:6es e que parecem estar nas ideias.

    Tambem sabemos que a ideologia nao tern historia. Isto naosignifica que a ideologia seja urn corpus imovel e identico de representac;:6es e normas (pois a experiencia nos mostra, a cada passo, asmudanc;:as ideologicas). Dizer que a ideologia nao tern historia significa apenas dizer, em primeiro lugar, que as transformac;:6es oconidasem urn discurso ideologico nao dependem de uma forc;:a que the seriaimanente e que a faria transformar-se e, sim, que tais transformac;:6esdecorrem de uma outnl historia que, pOl' meio da ideologia, a classedominante procura escamotear; em segundo lugar, e mais profundamente, significa que a tarefa precisa da ideologia esta em produziruma certa imagem do tempo como progresso e desenvolvimento demaneira a exorcizar 0 risco de enfrentar efetivamente a historia.Afirmar que a ideologia nao tern historia e, portanto, afirmar que,alcm de "fora do lugar", nela as id6ias tambem estao "fora do tempo". Embora paradoxal, essa constatac;:ao e inevitavel. 0 paradoxada expressao "fora do tempo" decorre do fato de que, estando aideologia a servic;:o da dominac;:ao de uma classe social historicamentedClcrminada, necessariamente a atualidade da dominac;:ao exercidacxigiria que as ideias estivessem encravadas em seu proprio tempo.PUl'a que tal paradoxo se desfac;:a e preciso que compreendamos'1 d i r L : n ; n ~ a entre saber e ideologia.

    () saher e urn trabalho. POl' ser urn trabalho, e uma negac;:aon,f!('xioIlante, isto C, uma negac;:ao que, por sua propria forc;:a interna,111l1l:,rOI'IlI;\ algo que the e externo, resistente e opaco. 0 saber e 0.,

    trabalho para ellevar a dimensao do conceito uma s i t u a ~ a o de oao-saber, isto e, a experiencia imediata cuja obscuridade pede 0 trabalhoda clarificac;:ao. A obscuridade de uma experiencia nada mais e seoaoseu carateI' necessariamente indeterminado e 0 saber nada mais esenao 0 trabalho para determinar essa indeterminac;:ao, is to e, paratorna-la inteIigfvel. So ha saber quando a reflexao aceita 0 risco daindeterminac;:ao que a faz nascer, quando aceita 0 risco de nao contarcom garantias pr6vias e exteriores a propria experiencia e a propriareflexao que a trabalha. Ora, para que a ideologia seja eficaz epreciso que realize urn movimento que the 6 peculiar, qual seja,recusar 0 nao-saber que habita a experiencia, tel' a habilidade paraassegurar uma posic;:ao g r a ~ a s a qual possa neutralizar a historia,abolir as diferenc;:as, ocultar as contradic;:6es e desarmar toda a tentativa de interrogac;:ao. Assim, grac;:as a certos artifkios que Ihe saopeculiares (como, pOl' exemplo, elevar todas as esferas da vida sociale poHtica a condi9ao de "essencias"), a ideologia torna-se dominantee adquire feic;:ao propria sempre que consiga conjurar ou exorcizaro perigo da indeterminac;:ao social e poHtica, indeterminac;:ao que fazcom que a interrogac;:ao sobre 0 presente (0 que pensar? 0 que fazer?)seja inutilizada grac;:as a representac;:6es e normas previas que fixemdefinitivamente a ordem institufda. Sob esse prism a, torna-se possfveldizer que na ideologia as id6ias estao fora do tempo, embora a servic;:oda dominac;:ao presente. Com efeito, afirmar que nela as ideias estao fora do tempo e perceber a diferen9a entre 0 hist6rico ou instituinte e 0 institucional ou institufdo. A ideologia teme tudo quantapossa ser instituinte ou fundador, e s6 pode incorpora-Io quandoperdeu a forc;:a inaugural e tornou-se algo ja institufdo. Por essa viapodemos perceber a diferenc;:a entre ideologia e saber, na medidaem que, neste, as ideias sao produto de urn trabalho, enquantonaquela as ideias assumem a forma de conhecimentos, isto e, deideias institufdas.

    Tomemos a ajuda de urn exemplo. Costuma-se imaginal' que 0Santo Offcio puniu Galileu porque a ffsica gaIilaica punha em riscoIj uma representac;:ao do mundo que servia de sustentaculo para adominac;:ao teol6gico-poHtica medieval. Assim sendo, torna-se compreensfveI a reabilitac;:ao do saber galilaico quando a burguesiatoma 0 poder e encontra na nova ffsica uma representa9ao do espac;:o e do tempo que convem ao exerdcio de sua pratica economica e poHtica. Dessa maneira, a demolic;:ao do poder teol6gicopolitico medieval faz da scienza nuova urn conhecimento valida quese converte, pouco a pouco, em ideologia da nova cIasse dominante,

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    Illica e profana. Ora, se fizermos um pequeno retomo. a hist6ria,veremos que os acontecimentos ocorreram de modo bastante diverso. Em primeiro lugar, e sobretudo, nao houve l a i c i z a ~ a o dapolitica, mas apenas um deslocamento do lugar ocupado pela imagem de Deus como poder uno e transcendente: Deus baixou doceu a terra, abandonou conventos e pulpitos e foi alojar-se numaimagem nova, isto e, no Estado. Nao quero com isto referir-me aodireito divino dos reis. Refiro-me a r e p r e s e n t a ~ a o modema do Estado como poder uno, separado, homogeneo e dotado de f o r ~ a paraunificar, pelo menos de direito, uma sociedade cuja natureza propriae a divisao das classes. esta figura do Estado que designo como anova morada de Deus. Em segundo lugar, e conseqiientemente, naohouve passagem de uma politica teol6gica a uma poHtica racionalateol6gica ou ateia, mas apenas uma transferencia das qualidadesque eram atribuidas a Divina Providencia a imagem modema daracionalidade. A nova ratio e teologica na medida em que conserva,tanto em poHtica quanto em ideologia, dois t r a ~ o s f u n d a m ~ n t a i s dopoder teol6gico: de um lado, a admissao da transcendencia do poderface aquilo sobre 0 que este se exerce (Deus face ao mundo criado,o Estado face it sociedade, a objetividade das ideias face aquilo que econhecido); por outro lado, a admissao de que somente um poderseparado e externo tem f o r ~ a para unificar aquilo sobre 0 que seexerce (Deus. unifica 0 mundo criado, 0 Estado unifica a sociedade,a objetividade unifica 0 mundo inteligivel). Ora, se nao e a l a i c i z a ~ a o da racionalidade (pois nao houve) que explica a a c e i t a ~ o da ffsicagalilaica pela burguesia, de onde nasce a i n c o r p o r a ~ a o dessa fisicacomo modelo da racionalidade moderna? 0 saber galilaico toma-seaceitavel e passivel de i n c o r p o r a ~ a o quando jii foram acionados dispositivos economicos, sociais e politicos que permitam acolher 0saber novo nao porque seja inovador, nem porque seja verdadeiro;mas porque perdeu a f o r ~ a instituinte, jii se transformou de sabersobre a natureza em conhecimentos fisicos, jii foi neutralizado, epode servir para justificar a suposta neutralidade racional de umacerta forma de d o m i n a ~ a o . Nessa passagem do que era instituinte;l condi!;ao de discurso instituido ou de discurso do conhecimento,assistimos ao movimento pelo qual a ideologia incorpora e consomeas n(lVaS id6ias, desde que tenbam perdido as amarras com 0 tempol l I ' i ~ i n a r i o de sua i n s t i t u i ~ a o e, assim, fiquem fora do tempo. E 0 quefui dito acerca de Galileu poderia ser dito, por exemplo, a respeitolie- Freud. Este dissera que, com a psicanalise, trouxera a peste ahUlIIlllJidadc. Como explicar, entao, que esse f1agelo tenba podidoh

    converter-se, mundo afora, em terapia adaptativa e de ajustantento,se aquilo a que essa "terapia" pretende nos ajustar e exatamente 0que toma posslveis a neurose,' a psicose e a loucura?o caso Galileu (como 0 caso Freud) nos ensina a1go que poderiamos designar com a expressao: discurso competenle.o discurso competente e aqueleque pode ser proferido, ouvidoe aceito como verdadeiro ou autorizado (estes termos agora se equivalem) porque perdeu os l a ~ o s com 0 lugar e 0 tempo de sua origem.Assim, nao e paradoxal nem contradit6rio em um Mundo como 0nosso, que cultua patologicamente a cientificidade, surgirem interd i ~ o e s ao discurso cientifico. Podemos dizer que exatamente porquea ideologia contemporanea e cientificista, cabe-Ihe 0 papel de reprimir 0 pensamento e 0 discurso cientifico. nesse contexto de bipervaloriza!;ao do conhecimento dito cientifico e de simultanea repressaoao trabalbo cientifico que podemos melbor apanhar 0 significadodaquilo que aqui designamos como discurso competente.o discurso competente e 0 discurso instituido. aquele no quala linguagem sofre uma restri!;ao que poderia ser assim resumida:nao e qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisaem qualquer lugar e em qualquer circunstancia. 0 discurso competente confunde-se, pois, com a Iinguagem institucionalmente permitida ou autorizada, isto e, com urn discurso no qual os interlocutoresjii foram previamente reconhecidos como tendo 0 direito de falar eouvir, no qual os lugares e as circunstancias ja foram predeterminados para que seja permitido falar e ouvir e, enfim, no qual 0 conteudo e a forma ja foram autoriudos segundo os canones da esferade sua pr6pria competencia.

    Cabe-nos, e n t a ~ , indagar 0 que significam essa r e p a r t i ~ a o , circunscri!;ao e d e m a r c a ~ a o do discurso quanta aos interlocutores, 0tempo, 0 lugar, a forma e 0 conteudo. Antes, porem, de tentarmosresponder a estas questoes, cumpre fazer uma o b s e r v a ~ a o . Com freqiiencia, a critica do discurso competente costuma cair em uma confusao que e, no final das contas, um logro: a confusao decorrente daidentifica!rao entre discurso competente e discurso elitista, em oposi!rao ao discurso. democratico, identificado com 0 discurso de Massa.Todos sabem 0 quanto a Escola de Frankfurt foi tachada de elitistapor ter sistematicamente recusado a chamada "cultura de massa".Aqueles que criticam os frankfurtianos, 0 fazem por ignorarem urn Essa c o m u n i c a ~ o foi feita durante a 29.a reuniao da SBPe que baviasido proibida pelo poder central.

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    t l l ' ~ J l O l l t ( ) ~ fundamentais da Escola no que concerne a analise dol'lllH:l:ilO de "massa". Para os pensadores da Teoria Critica, a culturaelita dc "massa" e a nega

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    C:itc cmana da racionalidade imanente do mundo organizado ou, sepreferirmos, da competencia dos cargos e f u n ~ e s que, por acaso,estao ocupados por homens determinados.Nesse contexto, podemos aprender a primeira modalidade dodiscurso competente que se distribui em tres registros: ha 0 discursocompetente do administrador-burocrata, 0 discurso competente doadministrado-burocrata e 0 discurso competente e generico de homensreduzidos a c o n d i ~ a o de objetos socio-economicos e socio-politicos,na medida em que aquilo que sao, aquilo que dizem ou fazem, naodepende de sua iniciativa como sujeitos, mas do conhecimento quea O r g a n i z a ~ a o julga possuir a respeito deles. Essa primeira modaIidade da competencia e aquela submetida a norma restritiva do "naoe qualquer urn que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa emqualquer lugar e em qualquer circunstancia".Para compreendermos a outra modalidade ou a outra face dodiscurso da competencia, precisamos levar em conta a t r a n s f o r m a ~ a o sofrida pela propria ideologia burguesa com 0 proeesso da buroc r a t i z a ~ a o .

    Em SUa forma classica, 0 discurso burgues e legislador, etico epedag6gico. Tratava-se de urn discurso proferido do alto e que, gra~ a a transcendencia conferida as ideias, nomeava 0 real, possuiacriterios para distinguir 0 necessario e 0 c o n t i n g e ~ t e , a natureza e acultura, a c i v i l i z a ~ a o e a barbarie, 0 normal e 0 patol6gico, 0 Hcito eo proibido, 0 bern e 0 mal, 0 verdadeiro e 0 falso: punha ordemno mundo e ensinava: Fazia das i n s t i t u i ~ o e s como Patria, Familia,Empresa, Escola, Estado (sempre escritos com maiusculas), valorese reinos fundados de fato e de direito. Por essa via, 0 discurso nomeaVa os detentores legitimos da autoridade: 0 pai, 0 professor, 0patrao, 0 governante, e, conseqiientemente, deixava expHcita a figurados subordinados e a legitimidade da s u b o r d i n a ~ a o . Emitia conhecimentos sobre a hist6ria em termos de progresso e continuidade,oferecendo, com isto, urn conjunto de referenciais seguros fixadosno passado e cuja obra era continuada pelo presente e acabada pelofuturo. Era 0 discurso da t r a d i ~ a o e dos m ~ o s , isto e, 0 discursoque se e n d e r e ~ a v a a ouvintes diferenciados p o r g e r a ~ a o e unificadospela unidade da tarefa coletiva herdada.

    Com 0 fen6meno da b u r ( ) c r a t i z a ~ a o e da o r g a n i z a ~ a o , a ideologia deixou de ser discurso legislador, etico e pedagogico fundadona transeendenciadas ideias e dos valores, para converter-se emdiscurso anonimo e impessoal, fundado na pura racionalidade de fatosnacionais. Nao deixou de ser legislador, etico e pedag6gico, maslO

    dcixou de fundar-se em cssncias c valorcs, COOlO dcixou de serproferido do alto para fundar-se no racional inscrito no mundo eproferir-se ocultando 0 lugar de onde e pronunciado. Ganhou novacara: tornou-se discurso neutro da cientificidade ou do conhecimento.Sob 0 signo da O r g a n i z a ~ a o apareee no mundo da p r o d u ~ a o urn conhecimento aeerca da racionalidade tal que esta ja nao e considerada como fruto ou a p l i c a ~ a o da ciencia aO mundo do trabalho,mas como ciencia em si, ciencia encarnada nas coisas. A id6ia de

    O r g a n i z a ~ a o serve para cimentar a c r e n ~ a na existencia de estruturas(infra ou supra, pouco importa) que existem em si e funcionamem si sob a d i r e ~ a o de uma racionalidade que lhes e pr6pria eindependente da vontade e da i n t e r v e n ~ a o humanas. 0 real, a a ~ a o e 0 conhecimento ficam consubstancializados, identificados. No interior dessa "substancia", isto e, da O r g a n i z a ~ a o , os homens ja encontram p r e - t r a ~ a d a s as formas de a ~ a o e de c o o p e r a ~ a o "racionais", ouseja, aquelas que lhes sera permitido ter. E cada. sujeito imaginaconhecer-se a si mesmo pela m e d i a ~ a o do conhecimento que a Organ i z a ~ a o julga PQssuir a respeito dele. A ideologia, trazendo urn novomodo de representar a racionalidade e 0 objeto racional, realiza-seagora pelo descomunal prestigio conferido aO conhecimento, confundido com a ciencia ou com a cientificidade.o que. e 0 discurso competente enquanto discurso do conhecimento? Sabemos que e 0 discurso do especialista, proferido de urnponto determinado da hierarquia organizacional. Sabemos tambemque havera tantos discursos competentes quantos lugares hierarquicosautorizados a falar e a transmitir ordens aos degrllus inferiores e aosdemais pontos da hierarquia que the forem paritarios. Sabemos tambern que e urn discurso que nao se inspira em ideias e valores, masna suposta reaIidllde dos fatos e na suposta eficacia dos meios dea ~ a o . Enfim, tambem sabemos que se trata de urn discurso instituidoou da ciencia institucionalizada e oao de urn saber instituinte e inaugural e que, como conhecimento institufdo, tem 0 papel de dissimularsob a capa da cientificidade a existencia real da d o m i n a ~ a o . Todavia, essas d e t e r m i n a ~ O e s da linguagem competente nao nosdevem ocultar 0 fundamental, isto e, 0 ponto a partir do qual tais det e r m i n a ~ o e s se constituem. A c o n d i ~ a o para 0 prestigio e para a eficacia do discurso da competencia como discurso do conhecimentodepende da a f i r m a ~ a o tacita e da a e e i t a ~ a o tacita da incompetenciados homens enquanto sujeitos sociais e poHticos. Nesse ponto, asduas modalidades do discurso da competencia convergem numa 80.Para que esse discurso possa ser proferido e mantido e imprescindivel

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    que nao haja sujeitos, mas apenas homens reduzidos a c o n d i ~ a o deobjetos sociais. Ora, exatamente no instante em que tal c o n d i ~ a o epreenchida (0 discurso administrativo como racionalidade do real)e que a outra modalidade do discurso competente entra em cena paraocultar a verdade de sua primeira face. Ou seja, 0 discurso co'mpetente como discurso do conhecimento entra em cena para tentardevolver aos objetos socio-economicos e socio-politicos a qualidadede sujeitos que Ihes foi roubada. Essa tentativa se realiza atraves dacompetencia privatizada. Invalidados como seres sociais e politicos,os homens seriam revalidados por intermedio de uma competenciaque lhes diz respeito enquanto sujeitos individuais ou pessoas privadas. Ora, essa r e v a l i d a ~ a o e urn logro na medida em que e apenasa transferencia, para 0 plano individual e privado, do discurso competente do conhecimento cujas regras ja esHio dadas pelo mundoda burocracia e da o r g a n i z a ~ a o . Ou seja, a competencia privada estasubmetida amesma r e i f i c a ~ a o que preside a competencia do discursodo conhecimento. Basta que prestemos uma certa a t e n ~ a o ao modopelo qual opera a r e v a l i d a ~ a o dos individuos pelo conhecimento paraque percebamos sua fraude.

    Sabemos que uma das maneiras mais eficazes de criar nos objetossocio-economicos e socio-politicos a c r e n ~ a de que sao sujeitos consiste em elaborar uma serie de discursos segundos ou derivados, porcujo intermedio e outorgada competencia aos interlocutbres que puderem assimila":los. Eis por que a partilha entre elite e massa e, senaoilusoria, pelo menos um falso problema. Que discursos segundos ouderivados sao estes? Sao aqueles que ensinarao a cada urn comorelacionar-se com 0 mundo e com os demais homens. Como escreveLefort,2 0 homem passa a relacionar-se com seu trabalho pela med i a ~ a o do discurso da tecnologia, a relacionar-se com 0 desejo pelam e d i a ~ a o do discurso da sexologia, a relacionar-se com a a l i m e n t a ~ a o pela m e d i a ~ a o do discurso dietetico, a relacionar-se com a c r i a n ~ a por meio do discurso pedagogico e pediatrico, com 0 lactente, pormeio do discurso da puericultura, com a natureza, pela m e d i a ~ a o do discurso ecologico, com os demais homens por meio do discursoda psicologia e da sociologia. Em uma palavra: 0 homem passa arelacionar-se com a vida, com seu corpo, com a natureza e com osdemais seres humanos atraves de mil pequenos modelos cientlficosnos quais a dimensao propriamente humana da experiencia desapareeeu. Em seu lugar surgem milhares de artificios mediadores e pro., I.efort, Claude, "Maintenant", Libre, Paris, Payot, n.o 1, 1977.

    lIotorcs dt; conhecimento que constrangem cada urn e todos a sesubmeterem a linguagem do especialista que detem os segredos darealidade vivida e que, indulgentemente, permite ao nao-especialistaa Husao de participar do saber. Esse discurso competente nao exigelima submissao qualquer, mas algo profundo e sinistro: exige ai n t e r i o r i z a ~ a o de suas regras, pois aquele que nao as interiorizarcorre 0 risco de ver-se a si mesmo como incompetente, anormal,a-social, como detrito e lixo. Estamos de volta ao Discurso do Metodo,porem nao mais como projeto de d o m i n a ~ a o da natureza (pois, deha muito, a sociedade burguesa ja se encarregou dessa tarefa) e simcomo exigencia de interiorizar regras que nos assegurem que somoscompetentes para viver. A invasao dos mercados letrados por umaavalanche de discursos de p o p u l a r i z a ~ a o de conhecimento nao e signode uma cuItura enlouquecida que perdeu os bons rumos do bom saber:e apenas uma das m a n i f e s t a ~ 6 e s de urn procedimento ideologico peloqual a Husao coletiva de conhecer apenas confirma 0 poderio daquelesa quem a burocracia e a o r g a n i z a ~ a o determinaram previamente comoautorizados a saber.A ciencia da competencia tornou-se bem-vinda, pois 0 saber eperigoso apenas quando e instituinte, negador e hist6rico. 0 conhecimento, isto e, a competencia instituida e institucional nao e um risco,pois e arma para urn fanUistico projeto de dominac,:ao e de intimida~ a social e politica. Como podemos notar, nao basta uma crfticahumanista ou humanitaria ao delirio tecnocrata, pois este e apenasurn efeito de superHcie de urn processo obscuro no qual conhecer epoder encontraram sua forma particular de articulac,:ao na sociedadecontemporanea. Talvez, por isso mesmo, hoje, a Furia inquisitorialse abata, em certos paises, contra esse saber enigmMico que, na faltade melhor, chamariamos de ciencias do homem e que, quando naosao meras i n s t i t u c i o n a l i z a ~ 6 e s de conhecimentos, instauram 0 pensame'nto e se exprimem em discursos que, nao por acaso, sao considerados incompetentes. Cumpre lembrar, ainda, que, em materiade incompetencia, nos tempos que correm, a fiIosofia tem obtidosistematica e prazerozamente 0 primeiro lugar em todas as paradasde sucesso competentes.

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