Carta Sobre a Tolerancia

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Texto filosófico de John Locke sobre a Tolerancia

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  • CARTA SOBRE A TOLERNCIAJONH LOCKE

    Textos Filosficos

    Director da Coleco: ARTUR MORO Professor no Departamento de Filosofia da Faculdade de Cincias Humanas da Universidade Catlica Portuguesa

    Ttulo original: Epstola de Tolerantia

    1965, Institut Intemational de Philosophie e PUF

    Traduo de Joo da Silva Gama

    revista por Artur Moro

    Todos os direitos reservados para lngua portuguesapor Edies 70, Lda.

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  • John LOCKE

    CARTA SOBRE A TOLERANCIA

    edies 70

  • ADVERTNCIA

    Nada melhor para introduzir no pensamento poltico de J. Locke do que a sua famosa Carta sobre a Tolerncia. Surgiu como resposta s aspiraes de muitos espritos europeus que, de vrios pontos de vista, sentiam a necessidade da conciliao prtica e social das pessoas, no obstante a divergncia das suas opes doutrinais. A ciso que a Reforma suscitou na Europa, a multiplicao dasseitas e confisses protestantes, a experincia cruel das guerras religiosas - com as tragdias individuais e colectivas que consigo arrastava - cedo despertaram em muitos o anelo pela tolerncia. Os argumentos a seu favor eram damais diversa espcie: religiosos, ticos e polticos. J. Locke, neste seu escrito, desenvolve sobretudo uma argumentao muito cerrada de carcter poltico. A qualidade intrnseca do opsculo depressa o imps considerao de todos, no s pela fora das razes, pela clareza e densidade da linguagem, mas tambm pela actualidade que mantm.

    Era, pois, mais do que tempo de o trazer lngua portuguesa. A presente t-aduo, que se baseia no texto latino da edio preparada por Raymond Klibansky, antecedida pela histria do texto, escrita pelo mesmo investigador, e ainda pela magnifica iiitroduo que Raymond Polin, responsvel da verso francesa, faz ao pensamento, de Locke sobre a tolerncia.

    Artur Mordo

  • PREFCIO

  • A Epistola de Tolerantia de john Locke foi muitas vezes publicada na Gr-Bretanha e nos Estados Unidos, ao longo do sc. XIX e ainda durante as ltimas dcadas. Contudo, estas edies no apresentam o texto original latino de Locke,que apareceu em Goucla em 16 8 9, sem o nome do autor; reproduzem apenas a traduo inglesa de William Popple, sobrinho do poeta AndrewMarvel1. Mais exactamente, todas as edies recentes se basearam na primeira edio desta traduo (Londres,. impressa por Awnsham Churchill, 1689), sem ter em conta a reviso efectuada pelo mesmo Poppie, no ano seguinte (Londres, igualmente por Churchill, i 6go).

    Foi s num codicilo do seu testamento, com data de 15 de Setembro de 1704 (actualmente em Oxford, BodIc an Library, MS Locke b. 5, n.o 14), que Locke reconheceu ser o autor da Epistola e, ao mesmo tempo, deu o aval da sua autoridade traduo de PppIe, nestes termos: Alm disso, deixo biblioteca pblica da Universidade de Oxford os seguintes livros: a saber, trs Cartas Sobre a Tolerncia, tendo a primeira sido por mim escrita em latim e publicada em Tergow (isto , Gouda), Holanda, em 16 89, com o ttulo: Episiola de Tolerantia, e depois traduzida para ingls without 7y privi@y. (Esta expresso um pouco ambgua no significa necessariamente, como quiseram os recentes bigrafos de Locke, que ele pretenda ter ignorado que se preparava uma traduo,mas - neste contexto - que ela se fazia sem a participao activa do filsofo, muito preocupado em manter o anonimato). De facto, existe na Bocileian Library um volume (4.0 S. 7o Th.), Ex Dono

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  • Celeberrimi Viri Ioannis Lock (sic, pela mo do bibliotecrio Thomas Hearne) que corresponde exactamente descrio de Locke e contm as suas trs Cartas Sobre a Tolerncia, estando a primeira no texto ingls de Popple. As outras duas, publicadas em ingls em Londres, em 169o e em 1692, igualmente sem revelaro nome do autor, no interessam para aqui. So as respostas de Locke aos ataques(aparecidos em Oxford em i 69o e16gi) de Jonas Proast, capelo do Queen's College e depois do All Souls College,Oxford.

    0 original latino da Epistola foi redigido quando Locke se encontrava na Holandacomo refugiado poltico. Conhecemos a data, que ainda hoje se discute, por meio de duas testemunhas, ambos amigos de Locke, Philippe de Limborch(1) e Jean Le Clerc (2). A Epistola foi escrita depois do comeo de Novembro de 1685, ao longodo Inverno de 1685-86, quando Locke vivia em Amesterdo com um nome falso (depois de o representante de Jaime 11, rei de Inglaterra, ter pedido a sua extradio), hspede clandestino do doutor Egbert Veen, deo do Collegium medicum da cidade.

    Poderamos ser tentados a precisar ainda mais a data, concluindo de uma nota de Le Clerc(3) que a Epistola tinha sido terminada antes do fim do ano de 1685. Todavia, no seria prudente fiar-nos demasiado num autor que escrevia vinte anosaps os acontecimentos a que se refere e que, s vezes, se enganava quanto a pormenores.

    (1) Carta de 24 de Maro de 1705 a Lady Masham: Illa hyeme in aedibus D. Venfi,me solo conscio, eximiam illam de tolerantia epistolam ad me scripsit. (A. DES A. VAN DEN HOEVEN, De Ioanne Geriro et Pbilippo a Limborcb,2.a parte, P. 49, Amesterdo 1843; H. R. Fox Bourne, Tbe Life Of Jobn Locke, v01. II, P. 34, Londres 1876. Verificmos a cpia conservada por Limborch: Amesterdo, Biblioteca da Universidade, MS III D 16, fOl- 54- (2) Eloge de feu Mr. Locke, Biblioteca cboisie, tomo VI, p. 374, Amesterdo 1705: Regressou (deClves) por volta do comeo de Novembro, e instalou-se novamente na casa de Veen. Foi em sua casa que comps a Carta Latina da Tolerncia, que foi depois traduzida em Tergou ... Todas as outras datas, propostas pelos historiadores contemporneos, so destitudas de fundamento. (3) Ibid., p. 375: No fim do ano, Locke foi instalar-se na casa do Sr. Guenelon, em que tambm esteve no ano seguinte,

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    A questo da tolerncia estava, nessa poca, no centro das discusses dos homensde letras, dos filsofos e dos telogos holandeses assim como dos numerosos refugiados, franceses e outros, que se encontravam neste pas. Em 1684, Henri Basnage, Senhor de Beauval, publicara em Roterdo o seu pequeno tratado Da tolerncia das religies. Mas antes dele, no incio da sua actividade literria nos Pases Baixos, Pierre Bay1e j tiriha tratado, e brilhantemente, deste tema.Nos seus Penss diverses crites un docteur de Sorbonne, Poccasion de Ia comte qui parut au mois de dcembre Wo, enunciara a arrojada tese de que o atesmo no leva necessariamente corrupo dos costumes e no impede ter ideias de honestidade (1). No ano seguinte, depois de submeter o princpio da intolerncia a um rigoroso exame, declarara na sua Critique Gnrale de PHistoire du Calvinisme de M. Maimbourg: Ora, como no havia nada melhor para fazer do mundo um sangrento teatro de confuso e massacre do que estabelecer como princpio que todos os que esto persuadidos da verdade da sua religio tmo direito de exterminar os outros, o que seria reduzir o gnero humano ao estadode natureza de que falam os Polticos, em que cada um era senhor de si e tinha odireito sobre todas as coisas,

    (1) Carta a M. L. A. D. C., em que foi provado... que os cometas no so pressgio de nenbuma desgrafa, PP. 332 e 4o6 ss., Colnia 1682; Penss &verses... Poccasion de Ia ComUe.--- Pgs. 392 SS. e 567 ss. Roterdo 1683; ed. crtica por A. Prat, tomo 11, Paris 19 12.

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  • contanto que tivesse fora para delas se apoderar, claro que a verdadeira Religio, seja qual for, no se deve valer de algum privilgio de violentar os outros, nem pretender que as coisas que impunemente pode fazer se tornem crimes,quando os outros os cometem (2), e conclua: Certamente, um atentado contra os direitos da Divindade querer forar a conscincia (3).

    Pouco tempo depois, em 1685, as Nouvelles Lettres de L'auteur de Ia Crique Gnrale de Mistoire du Calvinisme viro aprofundar a sua doutrina. Nelas sublinha que o critrio da f, longe de consistir na adequao a uma verdade objectiva, est determinado pelo acto soberano da conscincia: Em matria de Religio, a regra para julgar no est no entendimento, mas na conscincia; isto, necessrio aceitar os objectos no segundo as ideias claras e distintas, adquiridas por um rigoroso exame, mas segundo o que a conscincia nos ditar, se ao aceit-los fizermos o que agradvel a Deus (4). Visto que toda a pretenso infalibilidade no domnio da f sem fundamento, importa doravante reivindicar o direito da conscincia errnea: Ora, um pecado *n a a elmente maior agir contra as luzes

    1comp r v da sua conscincia do que agir contra leis que se ignoram... Se nosomos mais obri gados a agir segundo os instintos da conscincia errnea doque segundo as leis da verdade absoluta, que no se conhecem, evidente que o erro, disfarado de verdade na nossa alma, adquire o direito de nos levar a fazer as mesmas aces como se a verdade nos orientasse (5). E Bay1e ayo,a-se no direito inalienvel que temos, assim como o resto

    c os homens, de professar doutrinas que julgamos conformes pura verdade (6).

    Um ano mais tarde, em Outubro de 1686, publicar, com o pseudnimo bizarro de Sicur Jean Fox de Bruggs, dando a impresso de que se tratava de uma traduo doingls, a sua obra fundamental sobre o problema da tolerncia, o Co~en-

    (2) Ville-Franche (provavelmente Amesterdo), em casa de Pierre le Blanc,1682; 2.a ed. ibid. 1683, P. 267 (Carta 14); P. Bayle, Oeuvres 4verses, v01. II, P. 5 7 a (Carta 13), Haia 1727. (3) 2.a CdiO, P. 358 (Carta 18), Ville-Franche 1683; Oeuvres verses, vol. II, P. 77 b (Carta 17). (4) Nouvelles leitref..., Carta XXII, 15, t. II, P. 786, Ville-Franche 1685; (0~ruperses,vol.11,p. 354b,Haia 1727). (5) Op. cit., Carta IX, 17, t. 1, P. 294; (Oeupres perses, V01. 11, P. 227 b - 228 a). Ao tratar da conscincia errnea, tema de grande importncia para o seu pensamento, Bay1e teve certamente em conta ou as famosas teses de Toms de Aquino (Quaest. &sput. de veritae, q. 17 e S. tbeol. II, i q. 19) ou, pelo menos, as discusses das escolas que nelas se inspiraram. (6) Nouvellesleures..., Carta IX, t. I,p. 29o (Oeuvrexdiversesvol.IIp. 227a).

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  • taire philosophique sur ces paroles de jsus-Cbri[s]t: Contraint[s]-1es d'entrer; o Pon prouve par plusieurs raisons dmonstratives qu'il n:y a rien de plus abominable que de faire des conversions par Ia contrainte, et Pon rfutetous les sophismes des convertisseurs contrainte, et PApologie que S. Au
  • tor, o pastor Charles Le Cne, huguenote refugiado nos Paises Baixos, sobre o mesmo assunto (13). Quase ao mesmo tempo, o principal representante da ortodwia reformada entre os refugiados franceses, Henri Jurieu, lana um veemente ataque contra a obra de Bayle; no tratado Des droits des deux souverains, en -watre dereli ,gion, Ia conscience et le prince, pour dtruire le douz)ve de Pindiffrence des reli ,gions et de Ia tolrance universelle, contre un livre intitul: Commentaire philosophique... ( 14), este discipulo de Calvino, tendo ele prprio sido perseguido, reivindica vigorosamente para a verdadeira Igreja, a sua, o direito de perseguir. A resposta de Ba),le no se fez esperar. Sem citar o nome do autor, denunciou rapidamente o livro de Jurieu na carta destinada a aparecer no princpio da terceira parte do seu ComMentaire philosophique, publicado em 1687 (15), e criticou-o mais extensamente, no ano seguinte, rio SUPPIient du Covimentaire philosophique... o, entre autres choses, Pon acl,ve de ruiner Ia seule khap[p]atoire qui restoit aux adversaires, en dwontrant le droit ] trait de Ia Libert de Cmscience,&WW au Roi de France et son Conseit. A Philadelphie (provavelmente Amesterdo), por Timothe de S. Amour 1687. (14) Roterdo 1687. (15) Terceira parte, Contendo a refutao da Apologia que S. Agostinho fez dos Convertedores fora, em Cantorbery, por Thomas Litwel 1687 (0eurrU versts, ed. cit., vol. II, pags. 444-96). A carta (Londres, dia 29/3o de Maio de1687) no se encontra entre os exemplares da edio original que consultmos, mas na segunda edio do Com~taire philosopbique, Roterdo 1713, e em Oeuvres4verses, p. 444. (16) A Hambourg, pour Thomas Litwel, 1688 (Oeuvres verres, ed. cit., vol. II, pags. 497-56o). (17) BiblioINque universelle el bistoriqw de l'am 1687, tomo VI, p. 295Amesterdo 1687. (18) Ibid., torrio V, P. 215. (19) Abrgde ladoctrint de tolrance civile (sem o nome do autor), por Barent Bos, P. 3, Roterdo 1691.

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  • 0 eco destas controvrsias fez-se sentir nos novos peridicos eruditos em lnguafrancesa, que comearam a aparecer na Holanda precisamente nesta poca e que Locke certamente conhecia (20).

    (20) Les Nouvelles de Ia Repblique des Leilres e a Bibliobque universelle encontravam-se entre os seus livros; ver os catlogos da sua biblioteca, Bodleian Library, MS Locke b. 2.. fol. 1 ogr e 44r; MS Locke f. 16, p. 3 1. MS Locke f. 3 3 contm as suas notas por ocasio da leitura destes peridicos.

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    Estas discusses foram seguidas com o mais vivo interesse na comunidade dos seguidores de Arminius (os Remonstrantes), com os quais Locke mantm estreitas relaes, do princpio ao fim da sua estadia na Holanda. 0 mdico Veen, que o albergou em sua casa e que Locke saudou mais tarde como um dos qui mihi peregrina in terra pararunt patriam [que, em terra estranha, me prepararamuma ptria] (1), era um membro distinto desta comunidade e, alm disso, aparentado com a famlia Arminius, por ter desposado a sua neta. Os traos principais que caracterizam os Remonstrantes - a sua insistncia, contra os discpulos de Calvino, na universalidade da graa e na harmonia entre os decretos divinos e a liberdade humana, o tom moderado dos escritos dos seus mestres, a ausncia de toda a tentativa para impor as suas doutrinas - no podiam deixar de ser simpticas ao filsofo ingls.

    Em particular, sentiu-se atrado pelas obras do sucessor de Armnius, Simon Episcopius, que conheceu nesta poca. No tinha este sublinhado que o cristianismo, longe de ser um conjunto de dogmas, era uma moral vivida? No tinha ele tomado como divisa o pensamento atribudo a S. Agostinho: In necessariis unitas, in dubbiis libertas, in omnbus caritas (na necessria unidade, na dvida liberdade, em todas as coisas

    (1) Carta de Locke a Egbert Veen, Londres, 8 de Maro de 1689, pouco tempo depois do seu regresso a Inglaterra (Leida, Biblioteca da Universidade, MS Papenbroek 15); ver estante 2.

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  • caridade)? 0 esprito que animava os Remonstrantes descrito pelo genebrino Le Clerc que se tornara membro da sua comunidade: ... nunca abjurei nada, nem sequer assinei algo contra os sentimentos dos outros. Os Remonstrantes no exigem isto de ningum; mas apenas que se reconhea a Sagrada Escritura como nica regra da sua f; que se viva cristianamente; que no se seja idlatra, e no se queira perseguir ningum. De modo algum condenam os que no tm a mesma opinio em coisas de especulao; mas julgam dever seguir as luzes das suas prprias conscincias, e deixam os outros ao juzo de Deus (2).

    Pelo mesmo escritor ficamos a saber que Locke, que at ento no conhecia os Remonstrantes a no ser pelo ouvir-dizer e por algumas conversaes que aqui tivera..., ficou surpreendido por encontrar opinies muito mais prximas das suas do que pensara; e a seguir fez um excelente aproveitamento das luzes que deles pde tirar (3). E numa carta escrita algum tempo depois da morte de Locke, Lady Masham, a filha de Ralph Cudworth, em cuja casa passara os ltimos anos da sua vida, declarou ao seu correspondente holands: Nasceu e fez os seus estudos na altura em que o calvinismo estava em moda na Inglaterra; mas esta doutrina era aqui muito desacreditada antes de eu ter nascido, de modo que o Sr. Locke tinha o costume (sic) de falar das opinies que eu sempre encontraraem voga na Universidade e entre o Clero, como algo que era novo para ele. E comovrios anos antes de ir para a Holanda pouco convivera com eclesisticos, imagino que as opinies que encontrou entre vs lhe agradaram tanto mais quanto no estava habituado a

    ouvir Telogos a falar de uma maneira to razovel. Mas, seja como for, sei (sic) que sempre continuou a falar aqui com muito afecto no apenas dos seus amigos, que na Holanda partilham destas opinies, como em geral de toda a Comunidade dos Remonstrantes (4).

    Desde a juventude, Locke seguira as numerosas e calorosas controvrsias inglesasa respeito da tolerncia, e os ensaios da sua autoria sobre este assunto, datando de diferentes perodos da sua vida, e que se encontram entre os seus papis, fomecem-nos um testemunho eloquente do interesse que dedicava a este problema. A sua experincia nos Pases Baixos, o profundo

    (2) Bibliothque choisie, tomo XIX, P. 383-84, Amesterdo 171o E ibid., 1726). (3) J. LE CLERC, Eloge de feu Mr. Locke, BiblioINque cboisie, tomo VI, P . 3 75, Amesterdo 170 5. (4) Carta a Philippe de Limborch, de 17 de Setembro de 1705: Amesterdo, bibl. da Universidade, MS M. 31 c, P. 3.

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  • conhecimento que obteve da tradio erasmiana e, sobretudo, as conversaes que manteve na casa de Veen com Philippe de Limborch, professor de teologia no seminrio dos Remonstrantes, incitaram-no a tratar novamente deste tema. Limborch correspondera-se com Cudworth, Flenry More e outros filsofos-telogos latitudinros de Cambridge (5), com os quais partilhava a adn-rao por Erasmo. Publicara as obras de Episcopius, seu tio-av, e ele prprio elaborara oprojecto de escrever um livro sobre a tolerncia (6). Na altura em que Locke o conheceu, Limborch andava a preparar a sua Theolgia christana, com o objectivode praticar a piedade e promover a paz CriSt (7). Era a propsito desta obra que a Bibliothque Universelle observava: A tolerncia o dogma de que os Remonstrantes mais se ufanam, em que mais insistem em todos os seus livros, e emvirtude do qual so irmos de todos os cristos que aceitam todos os artigos fundamentais, no querem tiranizar ningum, e no so nem idlatras nem de maus costumes (8).

    As cartas de l_ocke deste perodo mostram que valor atribuiu s suas relaes amistosas e s suas trocas de ideias com o sbio holands que muito o ajudou ao longo do seu exlio (9). Limborch foi o nico a saber que o filsofo ingl^s, no seu esconderijo em Amesterdo, compunha a sua Epistola de tolerantia que, alis,lhe foi dedicada. Tendo em conta, na escolha de alguns exemplos, o contexto holands, s apareceu alguns trs anos e meio mais tarde, por volta do princpiode Maio de 1689, pouco depois do regresso de Locke lnglaterra. As duas siglas,de aparncia bizarra e misteriosa, T.A.R.P.T.O.L.A. e P.A.P.O.I.L.A., que a edio original traz no frontespcio (10) ocultando o nome do destinatrio e o do autor, s depois da morte de Locke encontraram a sua explicao. Com efeito, s no Elo

  • significavam; a saber, o primeiro, Theologiae Apud Remonstrantes Professorem, Tyrannidis Osorem, Limburgium, Amstelodamensem; e o segundo, Pacis Amico, Persecutionis Osore, Ioanne Lockio Anglo.

    Na sua carta a Lady Masham dC 24 de Maro de 1705, 0 rio Limborch tinha apresentado uma verso ligeiramente Srifeprente (Amesterdo, Biblioteca da Universidade, MS 111 D 16, fOl- 54): ... voluitque nomina nostra sub literis titulo insertis latere, quibus indicatur epistolam esse scriptam ad Theologiae Apud Remonstratenses Professorem, Tyrannidis, Osorem, Libertatis Amantem, a Pacis Amante, Persecutionis Osore Ioanne Lockio Anglo. A primeira vista, este testemunho podia parecer definitivo. Mas provvel que Locke tivesse deixado deindicar o nome do destinatrio e do autor, e tivesse escolhido uma frmula mais pesada do que a que nos foi transmitida por Le Cletc? Sabemos que este, antes decompor o seu Eloggio de Locke, se dera ao trabalho de se relacionar com amigos ingleses do filsofo, a fim de obter informaes precisas sobre a sua vida. Poderemos, pois, admitir que se lanou a explicar as siglas sem consultar Limborch, seu colega e amigo intimo, que se interessava pela preparao do Elgio e vivia na mesma cidade? Parece-nos mais razovel imaginar que a fonte deLe Clerc no outra seno a de Limborch e que este, depois de voltar ao

    assunto, corrigiu a explicao contida na sua carta.

    provvel que tenha sido por intermdio de Limborch que a Epistola foi publicada em Gouda, pelo editor Justus ab Hoeve. Limborch que viveu muito tempo nesta cidade- conhecida j desde os tempos de Dirk Coornhert pela sua tradio de tolernciareligiosa - a publicara o seu livro De ;veritate religionis Christianae amica collatio cum erudito Judaeo, em 1687, no mesmo editor. Em todo o caso, foi Limborch- sabemo-lo por uma das suas cartas (Bodleian Library, MS Locke c. 14, fOl- 44) - que vigiou a impresso da Epistola.

    Quanto traduo inglesa, pode dizer-se que Popple, procurando ser totalmente fiel ao texto do autor, introduziu aqui e ali modificaes que, em alguns casos,acabaram por alterar um pouco o sentido original. Preferimos, pois, apresentar ao leitor o texto latino que s foi impresso dois sculos depois (12). Na falta do manuscrito do autor, comparmos, a fim de estabelecer um texto crtico, todasas edies precedentes da Epistola, isto , i) a edio original de Gouda; 2) a de

    (12) 0 texto latino acaba de ser igualmente publicado nas seces italiana (Florena 1961), espanhola (Montreal 1962) e polaca (Varsvia 1963) da nossa srie La Philosophie et Ia Communaut Mondiale.

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  • Londres de 176 5, levada a cabo pelos cuidados de Thornas Hollis (I-etters Concernng Toleratioti, pp. 1-28); c 3) a de Londres de1768, que se encontra na stima edio de John (sic) Locke, Works, segundo volume, PP. 315-343. Geralmente, seguimos o texto da edi@io pri,,iceps, a que contm menos erros, sem todavia ser perfeita. Limitmo-nos, contudo, a corrigir algumas irregularidades - tendo em considerao o facto de o prprio Locke modificar muitas vezes a prpria ortografia - e a modernizar ligeiramente a pontuao.

    Em apndice, o leitor encontrar o prefcio de Popple traduo. A se vir a ler a clebre frase: Da liberdade absoluta, a justa e verdadeira liberdade, a liberdade igual e imparcial que temos necessidade. Palavras que foram muitas vezes, e erradamente, atribudas a Locke que, pelo contrrio, no deixa de sublinhar a necessidade de pr limites liberdade: Outra proposio (com igualcerteza): Nenhum governo concede uma liberdade absoluta. Com efeito, visto que a prpria ideia de governo estabelecer a sociedade em regras ou leis que exigem obedincia, ao passo que a ideia de uma liberdade absoluta a possibilidade de cada um fazer tudo o que lhe agrade -

    posso estar to certo da verdade desta proposio como de qualquer proposio matemtica (13). As expresses da passagem anterior, exaltando a liberdade absoluta so, pelo contrrio, caractersticas de Popple, amigo de William Penn emuito mais intransigente do que Locke na atitude a adoptar nas questes poltico-religiosas.

    (13) Ensaio sobre o Entendimento humano, 1 iv. IV, 3, 18. Ver tambm a famosa passagem no Segundo Tratado do governo civil, cap. 4. 22.

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  • IV

    No princpio do seu prefcio, Popple declara que a Epistola j tinha sido traduzida para holands e francs. Esta afirmao foi muitas vezes repetida pelos actuais historiadores. Apesar de tudo, nenhum exemplar de uma ou de outra traduo foi encontrado pelos bibligrafos (1). Na verdade, h uma traduo holandesa, surgida apenas alguns meses depois do original latino em 1689. Porqueem Setembro, Philippe de Limborch avisou Locke de que esta traduo estava venda e que tinha tido muito sucesso: verum Belgice in officinis nostris ptostat, et a pluribus maximo prostat, et a pluribus maximo cum appIausu legitur (2). Duas semanas mais tarde, Limborch envia-lhe um exemplar: Versionis Belgicae vides hic exemplar (3). Apesar das nossas buscas nas bibliotecas dos Pases Baixos e entre os livros de Locke, no encontrmos nenhumexemplar desta edio, atestada igualmente por Le Clerc (4). Encontrmos, porm,uma outra edio holandesa, igualmente desconhecida dos bibligrafos de Locke, aparecida em Amesterdo em 17 3 4.0 editor, Isaac Tirion, refere-se a uma edio anterior, sur-

    (1) Ver H. 0. Christophersen, A Bibliographical Introduction to tbe Study of JohnLocke (Det NorskeVidenskaps-Akademii Oslo), p. 15, 0s10 1930- (2) Carta de 16 de Setembro de 1689, Bodleian Library, MS Locke c. 14, foi. 3or. (3) Carta de3o de Set. de 1689, ibid., foi. 32v. (4) BiblioINque universelle, Dezembro de 1689, tomo XV, P. 412, Amesterdo169o; 2.8 ed. ibid., 1699.

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  • gida pouco depois do texto latino e j ento impossvel de encontrar (5)_

    Por outro lado, uma traduo holandesa publicada sem data em Harlingen por F. van der Plaats mencionada num repertrio bibliogrfico do Sc. XVIII (6). Serpermitido identific-la com a primeira edio? Esta foi, certamente, annima, enquanto a edio de Harlingen tinha o nome de Locke. Trata-se, portanto, de umapublicao posterior. Alm disso, sabemos que Folkert van der Plaats s comeou a sua actividade de editor em1727. Segundo informaes que M. G. W. Kolthoff, secretrio de comuna de Harlingen, teve a gentileza de nos transmitir, o livro de Locke teria aparecido nesta cidade em 1729. Podemos constatar a existncia de pelo menos trs edies da traduo holandesa ao longo de meio sculo que se seguiu ao aparecido original latino, prova manifesta do interesse que o opsculo de Locke suscitou nos Pases Baixos.

    Quanto traduo francesa que teria aparecido em 1689, o fracasso de todas as buscas por encontrar um exemplar levou os historiadores contemporneos a supor que Popple fazia aluso recenso que se encontra na Bibliothqii,, Universelleel Historique de P_AIwe 1d4, tomo XV, PP. 40?~417. Mas, como este tomo s se publicou no ano seguinte, esta hiptese continua difcil de defender; alis, o autor da recenso indica tambm que talvez ainda vejamos o livro em francs. Alm disso, a correspondncia de Locke permite acabar com a questo. Este revelaque uma traduo francesa foi certamente planeada na Holanda; em julho de 1689, Locke soube mesmo por Limborch que a traduo j estava terminada, que o Snr. Le Cne - isto , o pastor huguenote Charles Le Une, que acabara de traduzir o tratado da tolerncia de Jean Crell (7) - era o seu autor e que iria aparecer dentro em breve (8). Assim, acrescenta, depressa se poder ler a Epistola em quatro lnguas; e alegra-se especialmente ao pensar que foi traduzida para francs, lngua agora comum a

    (5) Een Brief aangaande de VerdraagZa~heid. Geschreven door Johannes Locke. Uit her Latyn vertaalt. Twede Druk. Ern: Ver.Zameling van eenige Verhandelingenoverde Verdraag.Zaamheiden Vry17eidvan CodsdienstAmesterdo 1734. Um exemplar ericontra-se na Biblioteca Real, Haia; outro na Biblioteca da Universidade de Leida. (6) J. van Abkoude. Naamre

  • todos, at dos grandes senhores e prncipes (9). Locke exprimiu o desejo de veresta traduo e pediu duas vezes a Limborch para lhe enviar um exemplar (10). Mas este confessou, primeiramente, que ela no tinha aparecido, depois, que a publicao era incerta (1 1). Em Dezembro de 1689, depois deter indicado que o livro j tinha aparecido em ingls e em holands, Le Clerc declarou: talvez ainda o vejamos em frai,-cs (12). De facto, por razes desconhecidas, o projecto de publicar a traduo de Le Cne foi abandonado. Popple, que tinha amigos nos Pases Baixos, soubera que a traduo francesa estava em curso e conclura erradamente que a publicao j se fizera. A primeira traduo francesa a aparecer foi assim a de 171o, nas Oeuvres Diverses de Monsieitr Jean Locke (por Fritsch e Bhm, Roterdo), em que o editor declara expressis verbis que a famosa carta do Snr. Locke aindano tinha aparecido na nossa lngua. Foirepublicada em Amesterdo em 17 3 2 (13).

    (9) Ibid. (10) Cartas de Locke de 7/17 Agosto e de 2o de Set. de 1689, em Lwres indife@ dejobnLocke, op. cit., pags. 188-igo. (11) Cartas de Limborch de 16 de Set. de 1689 (Bodleian Library, MS. Locke c. 14, f01. @o) e de 3o de Set. de 1689, na qual admite (ibid., f01. 32v): Gallica versio non est impressa: an iriprimeiida, incertus SUM. (12) BibIio@hque universelle, Dezembro de 1689, tomo XV, P. 412, Amesterdo 16go. (13) Oeuvres diverses de Morsieur Locke. Nova edio, consideravelmente aumentada, vol. I, pags. 1-123, por F. Bernard, Amesterdo 1732.

    27

  • vA Epistola de Locke foi precedida de numerosos escritos sobre a tolerncia. De facto, as primeiras reflexes aprofundadas sobre o tema remontavam poca de Thomas More e, at antes, a Nicolau de Cusa (1). manifesto o grande interesse que Locke punha nas discusses e em todos os elementos de informao que se referiam questo. Num dos seus cadernos (Bodleian Library, MS Locke c. 33, f01. 24v), com a rubrica Tolerantia, pro elaborara uma lista de numerosas passagens da Sagrada Escritura que, na sua o_pinia-o, se referiam ao assunto; nomesmo caderno, anotou igualmente (fOl. 5r) um livro de viagens no qual encontrara observaes sobre a tolerncia nas Indias. E nestes volumes enumerados pelo prprio Locke ou pelo seu secretrio figuram a maioria dos textos que tinham contribudo para formar a grande tradio ocidental da tolerncia. Aqui se encontram as Conclusiones de Pico della Mirandola (2) e o Deveritate scientiarum de Agrippa de Nettesheim (3), os Strata
  • coercendis, os Dialo
  • logo de livros controversos e que dificilmente se encontram (Bodleian Library, MS Locke b. 2, f01. 27r), o Tractatus Theologico~politicus en franois soubs lenom de Ceremonies des jUifS ( 15) e (f01. 27v) a Philosophia Scripturae interpres, o livro annimo do amigo de Espinosa, Lodewijk Meyer (16). Durante asua estadia nos Pases Baixos, muito provvel que tenha ouvido falar de Espinosa por intermdio do seu amigo Limborch. Este encontrou Espinosa no ano anterior sua morte e, sendo daqueles que o tomavam por ateu, tinha por conseguinte atacado a sua impietas. Seja corno for, um inventrio dos livros que pertenciam a Locke na poca da sua estadia nos Pases Baixos, 1686 (BodleianLibrary, MS Locke b. 2, fOl- 44v), indica com certeza que possua as Opera posthup.ia de Espinosa, de 1677. Num catlogo da sua biblioteca, estabelecido umpouco mais tarde, em 1693 (MS Locke, 16, P. 211), vrias edies separadas de diversas obras de Espinosa foram acrescentadas; entre elas figura o Tractatus lheolo i o-
  • encontra-se a principal obra de Bay1e sobre a tolerncia, o Commentaire Philosophique (19). Quando o ter lido? Num dos seus cadernos contendo notas de leitura tinha-alguns anos antes na Holanda - assinalado o ttulo desta obra (2 U); trata-se manifestamente de uma chamada recenso pormenorizada que aparecera em Novembro de 16 8 6, na Bibliolhque Universelle (2 1) e que o prprio Locke -na poca colaborador deste peridico - conhecia certamente. Mesmose admitirmos que Locke tinha lido a obra de Bay1e imediatamente depois de ter percorrido a recenso, deveramos concluir que ela influenciou a sua Epistola? De facto, um crtico contemporneo afirma que o autor da Epistola retoma um dos exemplos do Commentaire Philosophique (22). Lembremos, contudo, que este ltimo s apareceu em Outubro de 1686, isto , pelo menos volta de oito

    ou nove meses aps a concluso da Epistola. No , portanto, de modo algum permitido supor que o livro de Bay1e tenha tido uma influncia qualquer sobre o tratado de Locke.

    (19) BodIeian Library, MS Locke f. 16, p. 14. (20) BodIeian Library, MS Locke c.33 f01. 29v: FOX J. COMMCntaire philosophique sur ces paroles... 2 V01. 12 Amest. 86 335 ... ; isto : Cn-12, Amesterdo 1686, resumido no tomo da BibliotIVque univerwIle que serviu de base a estas notas (t. III), pags. 3 3 5 ss. (21) Tomo III, pags. 335-36o, Amesterdo 1686. (22) (Henri Basnage, Sicur deBeauval), Hisfoire des ouvragei des sFavans, P. 23, Roterdo 1689.

    31

  • vi

    Durante a sua estadia nos Pases Baixos, Locke encontrou tempo livre para rever os rascunhos do seu Ensaio sobre o Entendimento, redigidos primeiramente em 1671(1). Enviou resumos das diferentes partes a amigos na Inglaterra. Traduzido parafrancs por Le Clerc, o epitome da obra completa apareceu em 1688 na Bibliothque Universelle (2). As reflexes sobre a tolerncia que se encontram no livro ingls, publicado em Maro de i 6go, no ano seguinte aps o seu regresso ptria, remontam assim, sem dvida, pelo menos ao tempo do exlio holands; devem relacionar-se com as da Epistola. 0 argumento principal que, no Essay concerning Human Understanding, serve para estabelecer a ideia da tolerncia, funda-se na natureza do entendimento: A necessidade em que nos encontramos de acreditar sem conhecimento e, muitas vezes, at sobre fracos fundamentos, no estado passageiro da aco e da cegueira em que vivemos sobre a terra, esta necessidade, digo eu, deveria tornar-nos mais cuidadosos em nos instruirmos a ns mesmos do que em obrigar os outros a aceitar as nossas opinies... A opo que deveramos tomar nesta ocasio seria ter piedade da

    (1) Ver An early draft Qf Locke's Essay together wib excerpsfrom hsjournah, ed. por R. I. Aaron e J. Gibb, Oxford 1936 e J. Locke, An Essay concerning lhe Understanding, KnoivIedg-, Opinion, and Assent. ed. por B. Rand, Cambridge (Mass.) MI. (2) Extrait d'un Livre Anglais qui n'est pas encore publi, intitul Essai philosopbique concernant I'Entendement... Communiqu par MonsicurLocke. Bibl. univ., tomo VIII, pags. 49-142, Amesterdo 1688.

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  • nossa mtua ignorncia e procurar dissip-la por todas as vias suaves e honestasde que nos podemos lembrar para esclarecer o esprito, e no maltratar primeiramente os outros como pessoas obstinadas e perversas, porque no querem deixar as suas opinies e aceitar as nossas... Pois, onde est o homem que tem provas incontestveis da verdade de tudo o que defende ou da falsidade de tudo oque condena, ou que pode dizer que examinou a fundo todas as suas opinies ou todas as dos outros homens (3)?

    De modo diferente do Ensaio, a Carta sobre a Tolerncia no insiste demasiado noexame crtico da certeza do conhecimento. Locke aborda aqui o problema sob o ponto de vista da sua filosofia social e poltica. Ao examinar a competncia do governo civil em matria religiosa e guiado pela sua concepo da liberdade do juzo, essencial a todo o ser humano, toma como ponto de partida a distino, aparentemente ntida e clara, entre as funes do estado e da igreja. Segue-se da que os direitos destas duas instituies - uma referindo-se ao homem e aos seus bens neste mundo, a outra salvao eterna da sua alma - esto estritamente limitados. Nenhum estado tem o direito de impor uma f religiosa; nenhuma igreja - definida como associao livre e voluntria - pode perseguir osadeptos das igrejas rivais. Assim, Locke julga ter estabelecido os fundamentos, ao mesmo tempo tericos e prticos, da tolerncia.

    A tolerncia lockiana est, apesar de tudo, sujeita a vrias restries. Dela seexcluem quatro categorias de pessoas: i) As que professam um dogma oposto e contrrio sociedade humana ou aos bons costumes necessrios para conservar a sociedadeCiVil. 2) As que atribuem aos fiis, aos religiosos, aos ortodoxos, isto , a si prprias, nos assuntos civis, algum privilgio e poder de que no goza o resto dos mortais, e que, por consequncia, se arrogam o direito de ser intolerantes para com todos os que no partilham a sua f. 3) As que pertencem igreja em que cada um passa ipso facto ao servio e obedincia de um soberano estrangeiro; ao recusar-se assim a tolerar os catlicos, Locke limita-se a seguir um argumento defendido antes dele por muitos escritores ingleses, como Milton e Marvel. 4) Uma vez que a existncia de Deus - verdade para ele susceptvel de prova rigorosa (4) - se considera como fundamento da toda a conduta moral, segue-se que os que negam a existncia de um poder divino no devem, de modo

    (3) Ensaio sobre o Fn@enmen@o humano, IVcap. 16,4. (4) Ensaiosobre o Enten~o bumano, IV, cap. i o. 1 -6.

    33

  • algum, ser tolerados; porque os ateus destroem necessariamente a base da permanncia da sociedade humana.

    Basta confrontar o raciocnio de Locke com o ensamento de BavIe no seu Comp,,entaire Pl)ilosophique, baseaSo. por um lado, @os direitos da conscincia,por mais falvel que seja, por outro, nos princpios da moral soberana, juiz dasverdades de toda a religio. Uma comparao pormenorizada entre os argumentos dofilsofo ingls e os do pensador francs, mais universal nos seus postulados e mais radical nas suas concluses (5) evidenciaria plenamente o carcter especfico da obra de Locke, a sua fora e as suas fraquezas.

    0 modo de raciocnio simples usado por Locke na sua Epistola, a experincia dos assuntos de estado que ela reflecte, a ausncia de especulao austera, a falta de todo o zelo teolgico, distinguem a sua obra dos numerosos tratados, muitas vezes, densos e prolixos, dos seus predecessores. A sua linguagem moderada, os argumentos sbrios, incisivos e bem arquitectados, o seu mtodo onde, segundo a sua inteno, o peso dos argumentos intimamente solidrio da humanidade e benevolncia das razes, e - qualidade no menor - um estilo claro e agradvel,muito apreciado pelo pblico no seu tempo, contriburam para o sucesso imediato desta obra. Com efeito- observa um crtico contemporneo -, poucos livros se viram que tratassem o tema com to poucas palavras e com to grande clareza e fora como CSte (6). Compreende-se ue o livrinho tenha adquirido uma importncia superior rStivamente maioria dos outros escritos do mesmo gnero, e no somente para as discusses e as polmicas a que serviu de pretexto no seu tempo, mas sobretudo por ter servido de ponto de partida, ao longo dos sculos seguintes, para a reflexo sobre a tolerncia. Para mencionar apenas um exemplo do interesse suscitado actualmente, lembremos o estudo crtico de J. Ebbirighaus na seco alem desta mesma srie (7).

    Evidentemente, o significado do texto no reside apenas na sua importncia histrica. Ao permitir-nos reconhecer a complexidade do conceito de tolerncia, a Carta de Locke deveria suscitar novas consideraes sobre os dados do problema. Corri efeito, a insuficincia da base do raciocnio do

    (5) interessante o subttulo acrescentado pelo editor da z.a edio do Commentaire philosopbique (Roterdo, por Fritsch e Bhm, 17 13): ou traiM de Ia @olrance universelle. (6) Bibliolhque universelle (Dezembro de 1689), tomo XV,P. 412, Amesterdo, 16go. (7) J. Locke, EinBriefber ToleranZ, Hamburgo 1957.

    34

  • autor, como tambm a natureza dos limites que ele impe tolerncia - limites compreensveis, dados os pressupostos da sua filosofia e do contexto poltico e social a que se reteria, mas pouco aceitveis para o leitor actual - provam a necessidade de uma nova reflexo.

    McGill University, Montreal.

    RAYMOND KLIBANSKY

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  • INTRODUAO

  • ii. Locke e o problema da tolerncia.

    Cada filsof) tem o seu mtodo de trabalho. John Locke o homem dos planos delineados e meditados em longos intervalos, antes de ser completada a redaco definitiva da obra. De modo que o aparecimento tardio das suas obras principais,que se acumulam entre i 689-i6go, quando atinge a idade de 57 anos ou58, assinala o trmino de projectos, cujos primeiros esboos se encontram vinte ou trinta anos mais cedo. Locke poderia legitimamente figurar ao mesmo tempo entre os mais tardios ou entre os mais precoces dos filsofos.

    Assim, o Ensaio sobre o Entendimento Humano, que apareceu em 16go, precedido de esboos muito desenvolvidos que anunciam a sua disposio; conhecemos vrios,dois de entre eles datam de cerca de 16 7 1, um publicado por B. Rand ( 1), o outro por R. 1. Aaron e J. Gibb (2); a terceira verso data de 1685 (3). Da mesma maneira, Locke antecedeu, desde1661, os Tratados sobre o Governo Civil com os Ensaios sobre a Lei Natural, ao asso que os seus dois Tratados sero, sem dvida, escritos Xe ois de 168o e no sero tambm publicados em 16go. Finffimente, a Carta de 1689 Sobre a Tolernciaincluir, vamos ver, toda,uma srie de esboos preliminares

    (1) HarvardUniversityPress,193i. (2) Oxford University Press, 1936. (3) Ms. em Pierpont Morgan Library, em Nova lorque.

    39

  • redi dos a partir de 166o. j no falo das notas, por vezes .gi . muito minuciosas, que este homem, que reflectia escrevendo, inseria no seu Dirio, queconservar com grande regularidade quase at ao fim da vida.

    o exemplo, aparentemente ideal, de uma longa formao filosfica que parece convidar tanto mais ao estudo dos progressos de um pensamento quanto, desde h dez anos, os manuscritos de Locke se tornaram acessveis ao pblico e dispomos, entre outros, dos manuscritos dos diversos esboos que acompanham este desenvolvimento, sobretudo o que se refere doutrina da tolerncia.

    Alguns procuraram descobrir vestgios de uma transformao nas convices de Locke: no seria divertido ver o filsofo clssico do liberalismo entrar na vidacom convices autoritrias, por exemplo, como discpulo de Hobbes? Pensou~se at atribuir a Anthony Ashiey Cooper, primeiro Baro AshIey, futuro Conde Shaftesbury, e aos da sua roda, a modificao, isto , a converso que se pretende observar no curso das ideias de Locke. Por um pouco, segundo alguns, Locke s se teria feito filsofo sob a influncia de AshIey. Datou-se o que se apresentou como a reviravolta do seu pensamento filosfico, o _perodo de1666-1667, poca em que Locke, que fizera em Oxford longos estudos de medicina, teve a oportunidade de encontrar Lorde Ashiey, de o tratar, curar de uma fistulae se tornar um dos seus assduos frequentadores, a ponto de, da em diante, se poder instalar em sua casa, em Exeter House, e durante longos anos. Locke permanecer, at morte de Lorde Ashley, o confidente e conselheiro deste grande senhor to empenhado na poltica inglesa da altura, e participar efectivamente na sua actividade e tarefas. A adquirir, sem dvida, uma grande eIX, crincia poltica e muito 1 que a personalidade forte AshIey Cooper no tenha =de o influenciar profundamente. Mas, fazer dele o seu mentor e inspirador, outra coisa.

    Com efeito (4), julgamos que o desenvolvimento do pensamento pessoal de Locke, entre i 66o e i 6go, e mesmo at sua morte, em 1704 - alis, esquece-se demasiado que, desde i 66o, deu provas de uma notvel actividade de filsofo - representa uma transformao em profundidade, no uma transformao em inteno ou em direco. Sem dvida, pode dizer-se que a sua filosofia amadurece, se concretiza, se aprofunda e adquire um significado universal. Sem dvida, Locke reagiu s circunstncias e foi levado a insistir sobre esta ou aquela consequncia das suas ideias e at sobre este ou aquele aspecto da sua doutrina,

    (4) Cf. nota Poltica moral de John Locke, i 96o, pags. 2 3 7-2 5 1.

    40

  • para melhor responder situao do momento. Mas o seu projecto fundamental, que o uso racional da liberdade e a sua salvaguarda, graas subordinao da poltica moral, n

    ermanece uma constante a pa@tr do momento em ue o . ovem

    ke, desde os seus vinte e cinco anos, comea a a quirir uma conscincia filosfica profunda de si prprio. A inteno filosfica e, de maneira mais geral, a atitude filosfica de Locke no se alteraro; ter-se-o at admiravelmente explicitado desde os primeiros escritos, cujos manuscritos nos chegaram: com a ajuda da maturidade do homem e da obra, s a expresso se adaptar s circunstncias.

    o ue desejaramos demonstrar novamente no caso particular Ia Carta sobre a Tokrncia. Foi escrita por volta de1685-1689, durante o longo exlio de Locke na Holanda (5), quando vivia num meioarminiano, remonstrante, e era suspeito, embora se tenha defendido, de ter participado nas conspiraes tramadas pelos seus amigos whi

  • adequadamente o pensamento de Locke e encontrar com mais clareza a unidade da sua doutrina atravs das diversas formas que lhe deu a partir de i 66o.

    2. As obras de Locke sobre a tolerncia.

    Citemos, antes de mais, para melhor esclarecimento, os principais textos em que Locke trata o problema da tolerncia. A abertura ao pblico, na Bodleian Libra@y, em Oxford, da Lovelace Collection permitiu a revelao de vrios deles;foi obra encetada por W. von Leyden, na introduo sua edio dos E.Isays on the Law of Nature, Oxford, 1954. A primeira edio acaba de ser fornecida por Carlo Viano Scritti editi e inediti sulla folleran,-a, Turim, 196 1.

    i.o -0 primeiro texto est datado de Oxford, i i de Dezembro de 166o. Intitula-se: Question: @whether the Civill Ma

  • tolcncia e seus limites, tal como os define, querem-se independentes das convices religiosas dos que lhe reivindicam o respeito, e das convices religiosas daqueles de quem reivindica tal respeito. Que assim seja efectivamente ou no, era pelo menos a convico de Locke.

    Nascido de uma famlia puritana, foi submetido muito cedo a uma disciplina de vida rigorosa e austera, ao mesmo tempo que foi habituado tolerncia praticadade bom grado pelos independentes. Evocar, mais tarde, a escola muito severa que foi para ele Westminster school, a melhor escola da Inglaterra do seu tempo;quando chega a Oxford, Christ Church, encontra como Deo o Dr. Owen que, impondo regras de vida muito severas, no transigindo nos artigos de f, desenvolve o liberalismo dos independentes. Owen ensinava que nada na Bblia mandava que os herticos fossem reprimidos pela fora (10). 0 papel do magistrado , dizia ele, manter a ordem, no impor a religio. Cada um livre de adorar a Deus segundo a sua conscincia, com a condio de no perturbar a paz pblica. Era j a futura posio de Locke.

    0 prprio Locke era profundamente crente e a sua f na existncia de Deus, perfeitamente sbio e todo poderos,-), orienta o conjunto do seu sistema. A procura humana da salvao eterna s encontra o seu sentido num universo ordenado por Deus em relao ao homem. Deus, para ele, no est apenas presente pela revelao e at por milagres, mas tambm pela razo e para a razo. A ideiade Deus no inata (11), mas evidente luz da razo, porque as marcas visveis da sua sabedoria e do seu poder aparecem to claramente em todas as obras da sua criao, que uma criatura racional, que se d ao trabalho de reflectir, no pode deixar de descobrir Deus (12). No livro IV do Ensaio sobre oEntendimento humano, Locke por em forma uma demonstrao da existncia de Deus:nada pode produzir algo de real; ora, sabemos, com certeza, a partir da nossa prpria existncia, que algo existe efectivamente. Para explicar esta existnciaactual, h que remontar sucessivamente at algo que existe desde toda a eternidade. Este ser eterno, por ser a fonte de tudo o que existe, deve ser extremamente poderoso. Ao retomar o mesmo raciocnio a partir de algo que pensa,e que sabe, e ao mostrar que algo que pensa no pode ser produzido por algo que no

    (10) Maurice Cranston, John Locke, Londres, 1957, P. 41. Cf. tambm Fox Bourne, Life of Locke, 1, P. 72 ss. e Ernesto de Marchi, Le origini e/Pidea delia folleran7,a religiosa nel Locke, Occidente, 19 5 3. (11) Ensaio sobre o Enen&meno humano, liv. 1, cap. M, art, 1 1. (12) Ensaio sobre o Enendimento humano, liv. 1, cap. III. art. 9.

    43

  • pensa, Locke conclui a exist@ncia de um ser eterno pensante extremamente poderoso e extremamente sbio. o que chamamos Deus (13), um Esprito eterno e infinito, que fez e governa todas as coisas, cuja existncia serde demonstrar, embora a sua essncia escape s operaoes o nosso esprito finito.

    Conhecemos Deus por outras fontes alm da razo, pelos milagres, por exemplo. Mas at os prprios milagres no se afastam assim tanto do mbito da razo. No so milares porque infringem as leis da natureza, o que seriai oucuras temporrias do universo; so milagres porque depen~ dem de leis que escapam (talvez provisoriamente) ao nosso entendimento. Determinam a nossa crena em virtude de analogias derivadas do fim moral do universo (14), Estes sinais da vontade de Deus no podem ser contrrios razo, cuja luz Ele escolheu para revelar aos homens as verdades da religio natural e da moralidade.

    A revelao que vem de Deus um princpio suficiente de certeza, to certo comoa experincia da nossa p@pria existncia. Provoca em ns a f. Ainda necessrio que seja urna revelao divina e que a entendamos bem (15). A f s.itua-se para l das descobertas possveis das nossas faculdades naturais, acima da razo (16). A f, que um firme assentimento do esprito, afirm isse#tof he mind, s se presta baseada em boas razes; no pode ser contrria razo( 17): Whetber it be a Revelaon or iiot, Reason )wUstjud

  • ao domnio que escapa razo, que se percebe perfeitamente que ele prprio ficaplenamente satsfeito com o simples conheci~ mento de Deus, alis totalmente certo, que a razo nos fornece.

    Logo, o verdadeiro papel da revelao consiste, para Locke, em assistir a razo e em permitir a Deus atingir o vulgar, a massa da humanidade e mpor-lhe o respeito pela lei moral, niediante a revelao do seu criador e legislador (22).Assim fez Cristo, que revela aos homens a lei da moraldade no Novo Testamento.

    V-se que, se a atitude religiosa de Locke incontestvel, o seu credo, estabelecido na perspectiva de uma teologia racional, no deixa de ficar reduzido a um credo mnimo. A teologia racional unia tradio inglesa e a influncia de Richard Hooker expandiu-a amplamente entre os anglicanos. Em Cambridge, entre os Plat nicos, perto de Oxford, volta do Visconde Falkland, no Tew CircIe, desenvolveu-se, entre os anglicanos, uma atitude latitudinria que se contentava com um credo limitado ao essencial e que, sobretudo em Oxford,inclua uma crtica deveras arrojada aos dogmas recebidos e tendia para* cepticismo. Os latitudinrios punham, por exemplo, em dvida* dogma. da trindade, que os unitrios negavam dogmaticamente. Entre os unitrios contava-se, por exemplo, William Popple, o tradutor da Carta, e sobretudo Sit Isaac Newton, que mantinha estreitas relaes com Locke (2 3). Todos defendiam e praticavama tolerncia. Locke podia certamente ser classificado entre os latitudinrios, entre os quais se encontravam inmeros amigos seus e cujas obras ocupavam um bom lugar na sua biblioteca (24).

    Mas os latitudinrios eram anglicanos entre os outros, ao passo que se acusava Locke, no fim da sua vida, de ser sociniano, isto , desta. E os modernos disseram vrias vezes que he may pass as the Socinus of this centu5 (25). Os socinianos iam at s ltimas consequncias da teologia racional; no se contentavam com recusar, por exemplo, o dogma da trindade, mas rejeitavam igualmente a ideia da divindade de Cristo, e todos os dogmas que lhe so inerentes. Os deistas rejeitavam toda a religio revelada e todo o dogma supra-racional para s afirmarem a presena,

    (22) Reasonablenessof Cbristiani@y. Works, i8z4, tomo VI, P. 134. (23) H. J. McLachIan, Tbe Religious Opinionsof Milton, Nnvon, Locke, 1941- (24) Entre os autores que a aparecem, citemos dois latitudinrios, Hales, Chillingworth (The Religious Thinking of Protestants), liberais de Cambridge, Cudworth, Whchcote, unitrios, Nye, trs volumes de Unifarian Traris e muitos textos socinianos, acomear pelo prprio Socino - do qual, afirmava todavia nunca ter lido uma linha. (25) H.J.McLachlan,Socinianismin17thCenturYF-ngland@1951,P.325.

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  • evidente para a razo, de um Deus infinitamente sbio e Sode-ia apenas um corrimo roso. Se a revelao divii ar os medocres e os incapazes, se a verdadeira revelac@nasce'a partir da reflexo racionai sobre a existncia da realidade, sobre a interpretao da ordem que a descobre, claro que o credo de Locke tende para no ir alm do de Socini. Mas defender-se- sempre encarniadamente de por aqui se ter ficado.

    Na defi-nio que ele prprio d, em 1695, do cristianismo racional, elimina, tratando-o por omisso, o dogma trinitro atanasiano e ab andona a doutrina do pecado original. S em1698, a sua ousadia chegar ao ponto de lembrar a Stillingfleet que em nenhuma parte da Bblia a Trindade foi proclamada (2 6). Mas recusa energicamente o qualificativo de sociniano (27) e chama sistematicamente Messias a Jesus, o Cristo Salvador. juntamente com a lei das obras, que a lei da natureza, cognoscvel pela razo, Cristo trouxe aos homens a lei da f (2 8) para permitira sua salvao a todos; trouxe-lhes a f que salva (2 9). Esta f, tal como se expressa nos Evangelhos, a f na palavra e nas promessas de Deus, a homenagem que prestamos sua bondade e verdade, ao seu poder e sabedoria, sua providncia (30). Chamar-se-, portanto, cristo a uele que cre que Jesus o Messias anunciado e que, ari . Z-se dos seus pecados, toma a sincera resoluo de viver par@ o futuro segundo as suas leis, como um fiel sbdito do seu reino (3 1). Jesus o Messias. Eis, ao fim e ao cabo, claramente professado, o credo racional de Locke.

    V-se que est na disposio de apenas se limitar lei moral e s suas implicaes metafIsicas. Apesar de tudo, o papel das Escrituras no apenas histrico e a f de Locke no se pode limitar estritamente s descobertas da razo, porque implica a f em Cristo Salvador dos Evangelhos.

    Sem dvida o que professa o prudente Snr. Locke, numa poca em que o socinianismo no era tolerado pelos anglicanos mais latitudinrios e em que os seus adeptos eram perseguidos pela lei. Mas, que a f em Jesus e o recurso aos Evangelhos tenham sido ou no invocados por ele por razes de segurana e de prudncia, ou antes, que tenha sido sincero, como confessa,

    (26) Repb@ to tbe... Bishop of Worcester's Answer to this Second Lettor,1694. Works, tomo III, P. 343- (27) Reasonsablemess, p. 16 3. (21) Ibid., p. 13. (29) Ibid., P. 102. (10) Ibid., p. 12 9. (31) Second Vindication of lhe Reasonableness of Cbrisni@y. Workr, tomo VI,

    P. 352.

    46

  • isto pouco altera o cristianismo moral, que perfeitamente coerente com o conjunto da filosofia estabelecida por Locke, com a sua atitude filosfica e humana e com a sua doutrina da tolerncia. Isto pode e deve bastar-nos. Digamos que a nossa recusa de curiosidade por este pequeno problema a expresso da nossa prpria e protunda tolerncia. E no consideramos que, nesta poca em que a perseguio ocorria, em que efectivamente ainda se condenavam morte escritores peles seus escritos (corno Algernon Sydney), em que o prprio Locke teve de refugiar-se na Holanda, e em que, mesmo na Holanda, por vezes, teve de mudar de residncia e viver com um nome falso, em que guardava o anonimato, alis bem transparente nas suas publicaes, necessrio sistematicamente imaginar entre as linhas o que o atitor teria receado intensamente em dizer de modo explcito. um mtodo em que entra muito de arbitrrio para o fazer intervir, a no ser onde mais nenhum confere sentido. Alis, o muito prudente, mas sbio e firme Locke exprimiu-se, na verdade, muito claramente. Se no o respeitamos pelos amigos fiis que mereceu, que o respeitemos ao menos pelos inin-gos contra os quais no receia atirar-se e no o enchamos de fceis sarcasmos.

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  • II

    A CARTA DE 1689

    Para melhor apreciar o desenvolvimento da doutrina da tolerncia, talvez nos faa falta, e a despeito da ordem cronolgica, estudar antes de mais nada o ponto a que Locke chega, a prpria Car@a sobre a Tolerncia. No a analisaremos.Procuraremos evidenciar os temas fundamentais da argumentao de Locke, tal comose apresenta em 1689.

    1.o - 0 seu argumento mais forte, do qual tudo depende e* que mais importncia d , seguramente, a distino entre* comunidade poltica e a sociedade religiosa, a distino e separao radical entre as funes da Igreja e as do Estado.0 Estado nasce da obrigao em que o homem se encontra de obedecer lei naturale, para assegurar a conservao e a integridade da sua vida, do seu corpo, da sua liberdade e dos seus bens, construir uma sociedade, no seio da qual todos poderemos desfrutar da segurana, da paz e da prosperidade comum, que no deixar de seguir-se (1). Tal o bem pblico, em vista do qual o Estado se constituiu. uma sociedade estabelecida por um determinado nmero de homens como nico fim de conservar e promover os seus bens temporais, na medida em que estes so bens civis reconhecidos pela lei (2), Para levar a

    () Carta, P. 114-115- (2) Carta, p. 92.

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  • cabo a sua funo, apesar dos maus, o Magistrado (3) dispe da fora pblica toto scilicet subditorum suorum robore e age, portanto, pela coaco, pelas sanes, no quadro das leis, em sntese, pela lei apoiada na sua fora. Visa fins estritamente temporais por meios estritamente temporais. Os limites do poder supremo, de que o Magistrado dispe, so essencialmente limites funcionais: a prerrogativa do Magistrado tem os limites que lhe fixam os fins para os quais esta lhe foi concedida: tem todos os poderes que lhe so necessrios para realizar e salvaguardar o bem pblico e apenas este. A funo da fora pblica assegurar a paz para todos e a liberdade para cada um.

    Uma igreja, pelo contrrio, uma sociedade livre e voluntria (4) ou, segundo apalavra de Locke, uma socetas spontanea (5), uma sociedade que no corresponde nem necessidade, nem at, como a comunidade poltica, a uma obrigao conforme lei natural. Nasce da necessidade de afirmar publicamente a sua f, de servir e honrar a Deus em pblico e em com-um (6), desfmtando do seu acordo com outrem.Ela prpria se forma pelo livre acordo dos que se juntam para professar e praticar em comum e publicamente o que pensam ser a verdadeira religio e o culto agradvel a Deus, a fim de assegurar a salvao eterna da sua alma. por isso que Locke pode escrever que a tolerncia o principal critrio da verdadeira igreja 7. -ti igreja diz respeito ao homem enquanto tem uma alma imortal, capaz de uma felicidade ou de uma infelicidade eterna e enquanto a suasalvao depende de ter feito o que devia a acreditar no que estava prescrito (8). A igreja dirige-se unicamente s almas e visa a sua salvao eterna. claro que, nestas condies, nenhuma igreja necessria e cada qual juiz da igreja a que decide livremente pertencer; em ltima anlise, alguns homens, por mais reduzido que seja o seu nmero, podem formar, pata si

    (3) Por Magistrado entendo aquele que administra a comunidade, que dispe de umpoder supremo sobre todos os outros eao qual se delega o poder para estabelecer e abrogar leis; pois tal o direito do poder supremo em que unicamente consistea fora do Magistrado, graas qual governa todos os outros e regula a seu gosto os assuntos civis; e assim que os ordena e dispe em vista do bem pblico e a fim de conservar o povo na paz e na concrdia. Esta definio, extrada do Magi"ratus civilis, C. 28, f.0 4, vale para o conjunto da obra, se bem que tenhamos preferido, para traduzir os termos de Ma s rvar ,gistrafus ou Magistrate, con e a palavra Magistrado, dando-lhe o seu mais pleno sentido, apesar de no sei muito usado. Era, em particular, a palavrade Calvino. (4) Carta, P. 94.

    Carta, P. 97-98. Carta, p. io5. (7) Carta, p. 89. (8) Carla, P. 114-

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    C.S.T.-4

  • prprios, uma igreja (9). A fortiori claro ue nenhuma estrutura interna e nenhuma hierarquia essendi a uma igreja enquanto tal. Sem dvida, enquanto sociedade, uma igreja tem as suas leis que so necessrias ao seu funcionamento,e o direito de fazer as suas leis pertence prpria sociedade. Mas ela no dispe de fora alguma coactiva, de direito alguxn para atacar os direitos civis, os bens deste mundo (10). Como arma, dispe do direito de discutir, de argumentar, de exortar; como sano, o direito de excluir do seu seio os que considere em desacordo irredutvel com ela.

    0 Estado e a igreja existem, pois, sem um lao comum entre si ou, antes, no deveriam ter qualquer lao comum, se cada qual se ativer estritamente ao seu domnio. Dizem respeito ao Estado apenas este mundo e os seus bens; pode apenas agir sobre eles e tem somente o direito de se ocupar deles. A salvao eterna e o cuidado das almas apenas dizem respeito igreja; ela unicamente pode agir sobre as almas e apenas tem o direito de se ocupar delas. A tolerncia a consequnda directa desta separao, j que cada igreja independente do Estadoe no dis e de nenhum dos meios temporais de coaco que este pol accionar, j que, por outro lado, o Estado no abrangido pelo que diz respeito f e salvao das almas, sendo, nestas matrias, t o ineficaz como incompetente.

    2.0 - Com efeito, e este novo argumento , sem dvida, o princpio de todos os outros, cada qual o nico capaz, e no seu foro interno, de cuidar da sua alma e assegurar a salvao eterna. Apenas contam a f pura e a sinceridade interior (11). na f que consiste a fora e a eficcia da verdadeira religio. Ningum pode deixar a outrem, seja prncipe ou papa, o cuidado de decidir quanto sua f e de assegurar a salvao ( 12). Cada qual juz, em ltima instncia, da sua f e salvao: uma e outra dependem unicamente de si. Por outras palavras, aliberdade do juzo, que essencial ao homem, que o meio por excelncia graasao qual se pode cumprir a obrigao do homem face liberdade e a uma existnciaverdadeiramente humana, deve poder exercer-se em matria de religio.

    No apenas um direito, mas um poder indestrutvel. Este o primeiro argumento subsidirio, pois: a fora do entendimento humano tal que no pode ser coagido por uma fora que lhe seja exterior (13). A verdade no se defende ou no se impe

    (9) Carta, P. 95- (10) Carta, p. 96. (11) Carta, p. 104. (12) C-Ia, p. 92. (11) c-ta, P. 92-

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  • a no ser por meios espirituais. Se a verdade no conquista o entendimento com asua prpria luz, o apoio de uma fora exterior de nada lhe serve ( 14). Alis, no se poderia acreditar por ordem de outrem, seja qual for a boa vontade que ase aplique. A fora, que no tem qualquer comparao com a f, que no da mesma ordem, imprpria para impor uma f ou fazer mudar de religio; a fortiori incapaz de assegurar a salva o das almas contra a sua vontade. 0 prprio Deus no salva um homem sem o seu consentimento. No s o uso da violncia contrrio ao direito de todo o homem liberdade, mas vo e ineficaz.

    No s a fora v e ineficaz, mas - segundo argumento subsidirio - suscita a resistncia e o endurecimento dos crentes na sua f; arrasta consigo lamentveisconsequncias contra a ordem civil; no a diversidade das opinies, mas a perseguio que gera os tumultos e a revolta (15). Pelo contrrio, a proteco das igrejas, sem distino de religio, faz de todos bons cidados no Estado.

    Por outro lado, a tolerncia to conforme ao Evangelho como razo, e a religio de Cristo, que armou os seus companheiros para converter as naes, no, com a espada e a violncia, mas com o Evangelho, com o anncio da paz e do amor ou da santidade dos costumes, deve ser a mais tolerante e pacfica de todas(16).

    por isso - trata-se menos de um argumento do que de uma condenao radical - que Locke denuncia todos os que- e a seus olhos manifestamente o maior nmero - tomam a religio como pretexto para satisfazer o seu desejo de riqueza e de poder, ou at para dar livre curso ao seu fanatismo, corrodo de vcios e crueldade ( 17). este farisdsmo que est na origem dos piores excessos da intolerncia. ele que ameaa todos os que, dispondo de um poder temporal, so tentados a dele abusar.

    Importa sublinhar aqui que Locke insiste to fortemente no tema da autonomia do juzo - , com efeito, um dos temas maiores da sua filosofia, a explicao do seu combate contra o inatismo e o dogmatismo - que deixa de lado uma das argumentaes mais tradicionais a favor da tolerncia. Quase no alude ao facto de reinar, em matria de religio, uma extrema diversidade de opinies. Os defensores da tolerncia deduziam, ordinariamente, que, no estado de ignorncia em que os

    (14) C-tap.II3. (15) Cartap.i22. (16) Carta, p. 9 1 e 12 1. (17) Carta,p.88.

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  • homens se encontram, naturalmente fracos e cegos, e na falta de certeza e at desaber, era necessrio proibir impor aos outros, pela fora, as suas prprias crenas como verdades. insensato esperar que algum homem se submeta sincera e lucidamente a uma autoridade que o seu entendimento no reconhece. A necessidadeem que nos encontramos de crer sem saber, no estado de hesitao e de cegueira em que estainos, deveria tornar-nos mais cuidadosos em nos informarmos e informar os outros- mediante processos delicados e leais - do que em os constranger, Alis, era o argumento que o prprio Locke defendia na poca da Carta, no Ensaio sobre o Entendiwento humano (18). Porque no o retoma agora na Carta? Poder-se~ia supor que receou, mediante o uso de uma arma extrada do arsenal dos cpticos, desconsiderar o resto da sua argumentao, sem no entanto conseguir atingir os verdadeiros crentes ou os detentores do poder, isto , os que ele pretende convencer. Ao fim e ao cabo, a finalidade da Corto prtica e poltica.

    3 -0 -Em virtude da confuso e das interferncias u ocorrem inelutavelmente entre o donnio da f e o do p er, dadas a fraqueza e a maldade dos homens, convm, pois, ditar regras segundo as quais o Magistrado deveria assegurar o bempblico e manter a tolerncia no Estado. Ser o terceiro tema da argumentao a favor da tolerncia; a consequncia dos dois precedentes.

    0 objecto do direito de legislar, de que dispe o Magistrado com vista a assegurar o bem p'blicoy precisamente o conjunto das coisas indiferentes, e selas (19), isto , o conjunto das &&&,popa, coisas @ue no esto determinadas como boas ou ms em virtude da lei divina revelada, ou das descobertas da razo,que se chamam lei Natural (2 0). Compete ao Magistrado definir, com as suas leis, o bom e o mau uso no Estado das coisas indiferentes em matria de religio. Contudo, o Magistrado s pode, por um lado, legislar sobre coisas indiferentes em vista e em funo do bem pblico, que a regra e a medida das leis, por outro, se as coisas indiferentes atentarem contra os interesses do Estado ou lhes disserem respeito.

    Em princpio, por conseguinte, os assuntos religiosos, quer se trate da f interior ou do dogma, ou do culto e das suas circunstncias de tempo e lugar ou das assembleias religiosas, no vo contra os interesses do Estado e no se relacionam. com eles; escapam, por consequncia, jurisdio do Mags-

    (18) Ensaio sobr6 o EqtenWmento humaw, liv. IV, cap. XV]@ an. 4. (19) Cartap.zo6. (20) CivilMagi@trate>e.7,Oie2,eCipilifMagistratusc.z8,og.

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  • trado (2 1). Por outro lado, j que so indiferentes relativamente lei divina,nenhum decreto humano tem o poder de lhe atribuir ou retirar um carcter sagradoe propiciatrio. Mais particularmente no tocante ao dogma, e s opinies religiosas, h que lembrar que no so do poder do Magistrado, e que as leis novelam pela verdade das opinies, mas pela segurana dos bens de cada um e do Estado (2 2).

    Contudo, visto que as coisas religiosas se manifestam inforo externo e na medida em que causarem um prejuzo aos bens pblicos ou aos bens civis dos outros, sua liberdade, sua vida ou s suas riquezas, tornam-se objecto das leis do Magistrado, que est ento, e nessa medida., no direito de as regulamentar ou proibir. De maneira geral, nas coisas indiferentes, legibus silentibus, permitido tudo o que no inconveniente para os assuntos civis e para o bem comum; proibido tudo o que v contra eles. De uma maneira geral ainda, tudo o que petmitido na comunidade civil permitido na comunidade religiosa; tudo o que proibido na primeira tambm o na segunda (2 3).

    4.o - Apesar de tudo, pode haver casos - com boa f de ambas as partes - em que as decises e condutas pol ticas interferem com as decises e as condutas religiosas. o caso dos costumes, que no dizem menos respeito religio do que vida civil, dado que as aces morais existem sempre inforo nterno e tambm in foro externo (2 4). Neste domnio, de maneira muito legtima, como em muitos outros, de uma maneira que o menos, h o risco de interferirem duas autoridades e, por assim dizer, dois governos, o do Estado e o da conscincia. Locke entende aqui por conscincia a interpretao da lei divina e da lei natural, a que cada indivduo adere por si prprio e em funo da qual procura, no que lhe diz respeito, merecer a salvao eterna.

    Reconhecemos primeiramente que, mesmo ento, os conflitos sero raros onde o Magistrado legislar s em vista do bem pblico e onde as igrejas praticarem a tolerncia (2 5). Se h conflito, h que determinar, em princpio que o juzo privado de cada um no o dispensa do bem pblico. Um cidado pode abster-se de obedecer lei contra a sua conscincia, com a condio de consentir no consequente castigo e que no ilcito. No caso de surgir um conflito entre o Magistrado e o povo sobre

    (21) Carta, p. i o6. (22) Carta, P. 112. (21) C-Ia, p. jo8. (24) Carta, p. 113. (2-5) Cariap. 115 e 118.

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  • a interpretao do bem pblico, ento no resta mais, se os homens no quiserem por-se de acordo sobre este Direito e enquanto se espera que se pronuncie a nica instncia decisiva, no dia do juzo final, seno o apelo a Deus, isto , oapelo fora (26), o qual desempatar neste mundo os adversrios, isto , o Magistrado e o povo.

    Observemos, em seguida, que os conflitos tero probabilidades de ser tanto mais raros quanto o credo, em nome do qual se ir e@primir o juzo da conscincia, seinspirar mais directa e estreitamente na prpria palavra de Deus: preciso, pois, no ter como dogmas indubitveis, para as condies da comunho e da salvao, a no ser aquilo que ensina, em termos explcitos e claros, o EspritoSanto na Sagrada Escritura (27).

    Importa no esquecer que Locke sempre mostrou inuitas reticncias quanto aos decretos da conscincia: no ela apresentada de bom grado (e muito erradamente, na sua opinio) como uma justficao suficiente, como a expresso imediata de princpios inatos no corao do homem? (2 8) No forma ela um dos princpios e uma das reivindicaes do inatismo? Logo, melhor, pensa Locke, no defender a tolerncia em nome da conscincia e dos seus direitos, pois, poder-se-ia igualmente, e sem qualquer controlo possvel, invocar a mesma conscincia a favor do pior doginatismo ou do pior fanatismo. Locke ope filosofia imediata da conscincia urna filosofia da reflexo e da mediao pela razo. E no sem alguma ironia que deixa a cada qual o cuidado de agir segundoa sua conscincia, com a condio de demonstrar a sua boa f aceitando submeter-se s sanes previstas pela lei, mesmo com perigo da sua liberdade ou da sua vida.

    Sero excludos da tolerncia - faam ou no apelo sua conscincia, os papistas, porque reconhecem neste mundo um outro soberano alm do que governa o Estado de que so cidados e, de uma maneira mais geral, os que se atribuem, no exerccio do poder pblico, em nome da religio, em nome de um auto proclamado direito divino, alis indemonstrvel, privilgios de que no partilhariam cidados estranhos sua

    (26) Cf. sobre o apelo a Deus em caso de breacb of @rusi, tal como est exposto no Segundo tralado sobre o _governo civil, cap. XIV, art. 168 e cap. XIX, art. 2z 2., da nossa Polilique morale de Locke, pgs. 149 e 2 3 5. (27) [email protected].(28) Ensaio sobro o Entendimeno buviano, liv. II, cap. III, art. 8. j nos Essays on lhe Law of Nature (Ensaio IV, p. 154). Locke menciona negligentemente a prova da existncia de Deus fundada no apelo conscincia e declara preferir-lhe a argumentao da razo a partir dos dados dos sentidos.

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  • prpria comunho, porque isso contrrio prpria funo da comunidade poltica (29).

    Por outro lado, esto igualmente excludos os ateus, os9uais, por ue negam a existncia de um poder divino, se tornam1 le um juramento, de um contrato e, por conseguinte, de toda a vida civil (3 0). Alm disso, para este ltimos, o apelo conscincia perde, aos olhos de Locke, todo o seu sentido. Seria errado censurar Locke por ser Ao seu tempo. A ideia de um mundo ordenado e cheio de sentido, isto , de um mundo em que a moralidade tem a sua justificao e em que um compromisso razovel, implica necessariamente para ele, como para a sua poca, a existncia de um ser todo poderoso e sbio que criou tudo. Rousseau e o Vigrio saboiano no pensarode maneira diferente, setenta anos mais tarde.

    Seria erro pretender que esta dupla discriminao e esta dupla excluso so contra a sua doutrina da tolerncia. Ele permanece perfeitamente coerente consigo prprio; a tolerncia tal como a concebe no uma tolerncia qualquer. Aplica-se ao exerccio da liberdade, que no a licena para fazer tudo o que se deseja, mas o direito de obedecer obrigao, essencial a cada homem, de realizar a sua natureza humana. A liberdade do homem s tem sentido em relao lei cl sua natureza, que uma lei racional. Uma tal liberdade no pode ser garantida e salvaguardada a no ser no quadro do estado civil. neste quadro que a tolerncia deve, pois, necessariamente exercer-se; deve excluir-se tudo o que vai contra a existncia da comuni~ dade poltica e da paz civil.

    A sua doutrina sobre a tolerncia funda-se na distino radical entre o domnio da poltica e o da f; as religies que infringem esta distino no s@[o puras religies, no tm o direito de obter os benefcios desta distino que elas norespeitam; no tm nenhum direito tolerncia e isto tanto menos quanto procuram ter influncia sobre o Estado. A condenao do catolicismo submetido aoPapado por laos polticos, como a do atesmo, fundamentalmente inadequado para manter os laos morais necessrios vida poltica, mostram bem que a tolernciano est fundada por Locke nos direitos da conscincia, mas na defesa da liberdade essencial ao homem e na salvaguarda da paz no Estado. Eis o seu principio e o seu limite.

    (2 9) Caila, pags. 9 5 e i 16. (30) Cartap.118.

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  • III

    OS PRIMEIROS ESCRITOS SOBRE A TOLERANCIA

    r. Situao histrica do problema da tolerncia

    em 166o.

    Fortalecidos com a determinao dos temas da argumentao utilizados por Locke na Carta de 1689, podemos retomara sua meditao sobre a tolerncia na altura era que n@-la revelam os numerosos escritos a partir de 166o e que actualmente esto conservados na BodIeian Libra@y, em Oxford.

    Em 166o, acaba de se desmoronar o protectorado. Os problemas religiosos, que foram a ocasio e, em larga medida, a causa da crise revolucionria, correm o risco de se pr de novo, quando termina o reino tolerante dos independentes. Nose podem resolver por si prprios (1): cabe ao poder civil, ao Rei e ao Parlamento, actuar pela via da autoridade, porque se defrontam as tendncias mais opostas.

    A Igreja de Inglaterra reconstitui-se e, endurecida pelas perseguioes por que passou, forte com o regresso da monarquia pela qual sofreu e sobre a qual julga ter direitos, muitas vezes animada por um desejo de vingana. Pode recear-se que encontre as exigncias tirnicas que j uma vez foram as suas sob o impulso do arcebispo Laud, na poca em que, depois de1634, este tentou levar a bom termo um projecto de elimina-

    (1) G.N.Clark,TbeEarlvStuarisp.I7.

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  • o e de extermnio dos no-conforn-stas. A Igreja anglicana vai formar, pelo menos em torno dos seus arcebispos, um bastio da intolerncia (2).

    Os presbiterianos que 1. por volta de 1643 -164 5, na altura em que dominavam oParlamento, tinham tentado fazer da sua a igreja da nao, nunca reencontraram asua influncia, mas continuam a pregar um dogmatismo radical e a exigir a extirpao de toda a igreja cujo credo diferisse do de Genebra. Para eles, a igreja deve possuir uma autoridade absoluta tanto sobre a f como sobre o culto.A intolerncia dos mais fanticos de entre os presbiterianos, que no deixa de se manifestar nos seus escritos, teve pelo menos uma influncia negativa: para escapar ameaa de uma nova ortodoxia, as seitas e o anglicanismo aprenderam asvantagens prticas e espirituais da tolerncia (3).

    Os independentes, que ocuparam o poder entre 1648 c i 66o, puseram-se pouco a pouco de acordo com os presbiterianos no domnio da f, mas defendiam a tolerncia em matria de coisas indiferentes. 0 prprio Cromwell, que iria tentar um regulamento leigo do problema religioso, professara uma notvel tolerncia: para ele, todo o homem competente para procurar por si prprio o caminho da salvao que Deus he mostrou. No me meto nos assuntos da conscincia dos outros. Considerava que s o Estado podia defender a liberdade religiosa contra as pretenses e o dogmatismo dos clrigos. A sua tolerncia s tinha limites na razo do Estado, quando era necessrio defender o Estado contrao papismo obediente ao estrangeiro, contra o anglicanismo enfeudado Realeza oucontra as doutrinas dos levellers tidos como adversrios da ordem pblica. Presbiterianos e independentes tinham-se, pois, entendido para proibir aos catlicos o exerccio do seu culto, para arruinar a igreja anglicana, para proibir o culto anglicano e o uso do Common Prayer Book. Com efeito, o papismo era para todos sinnimo de traio; e ningum tinha esquecido que a Igreja estabelecida tinha sido uma aliada da monarquia.

    Por outro lado, o desenvolvimento cada vez mais diversificado das seitas, complica ainda a situao. Alguns praticam ritos sem dignidade, o baptismo dos adultos for imerso, por exemplo, que suscitam a inquietao. Muitos a imentam asua f com excitaes estranhas, ou procuram o entusiasmo e at o xtase. Os quacres provocam muitos motins; os seus costumes

    (2) Cf.A.A.Seaton,TbeTbeoryofTolera@ionunderlaterStuarisI9II,P-97SS. (3) Wilbur K. Jordan, Development of Refigious To1era@in in England, vol. IIII, P. 319-

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  • despertam a hostilidade; no deixam de proclamar que s Cristo tem o direito de governar a conscincia dos homens. A sua recusa em se submeterem ao Magistrado, o seu desprezo pelo poder civil e pelas suas leis, a obstinao das suas prticas religiosas, raramente encontram tanta suavidade e pacincia como junto de Cromwell. Em certas seitas com opinies extremas, recrutam-se os levellers, que professam um igualitarismo revolucionrio. Um deles, John Liburne, exprime um anticlericalismo veemente, que encontra uma enorme repercusso na opinio pblica. Denuncia o apetite de poder do clero anglicano, a sua tirania e incapacidade para propagar a f a no ser pela violncia.

    Entre os Baptistas, contudo, convm assinalar, no como um representante tpico da seita, mas como um precursor de Locke, num dos seus argumentos favoritos, Roger Williams, que desde 1644, no seu Bioud

    y Tenent of Persecution, afirma que o melhor meio da liberdade de religio se encontra na distino radical entre a igreja e o Estado, cujos fins, meios, a prpria origem nenhuma relao tm uns com os outros. A igreja , diz ele, uma nau, na qual o Prncipe um simples passageiro, da mesma maneira que o Estado uma nau em que os clrigos, por sua vez, no passam de simples passageiros. Almdisso, as concepes intensamente espirituais que os baptistas almentavam sobrea igreja levavam-nos a reclamar geralmente a sua separa o do Estado.

    As correntes a favor da tolerncia no esto, pois, menos vivas do que as da intolerncia e ficamos espantados com o nmero e a importncia das publicaes que a polmica suscita. A atmosfera geral mais para a tolerncia por razes humanas, quer por cansao depois de tantas polmicas religiosas inteis, quer tambm por razes econmicas. No faltam homens como William Petty, na sua Political Arilbmelic, que declaram, em termos econmicos, que a intolerncia impede o desenvolvimento do comrcio e das riquezas; d-se como exemplo o progresso da Holanda. Henry Parker (Of a Free Trade 1648) mostra que a liberdadereligiosa a condio da prosperidade comercial e que) reciProcamente@ as grandes companhias comerciais, sem laos com qualquer igreja particular contribuem para o desenvolvimento da liberdade religiosa e para a chegada de um inundo mais pacfico e tolerante.

    No plano das ideias, antes de mais a influncia de Lorde Falkland e do Tew Circle, que florescia em Oxford por volta de1635, que continua a fazer-se sentir atravs dos latitudinrios. Largamente influenciados pela tradio dos arminianos, estes opem-se teoria da predestinao e tirania intelectual dos calvinistas. Insistiam sobretudo no aspecto moral e racional da

    -58

  • religio e, concentrando o seu credo nas verdades irrefutveis da f aliada razo e por ela demonstrada, condenavam as disputas sobre dogmas arbitrrios e ritos, para eles, destitudos de importncia. Dando provas de uma grande amplido de vistas, Chillingworth, em The Reli
  • chegar a uma esp'cie de anarquia individualista. Nem por isso deixa de ter a suadevoo particular Igreja de Inglaterra.

    Milton, cuja paixo pela liberdade j outrora o levara, na juventude, at aos puritanos, rompera com eles na altura de Areopagitica em 1644 e, depois desta poca, desenvolve tambm um pendor muito claro para o cepticismo. Dai-me, mais do que qualquer outra liberdade, a liberdade de conhecer, de me exprimir e argumentar segundo a minha conscincia. Milton publica em 1659 0 seu Trease ofCivil Power in EccIesiastical Cawes: o tema de Locke, um ano antes dele. Milton pensa que cada homem, iluminado pela tocha ardente da sua razo, deve conseguir a verdade por si prprio, e que constitui uma autoridade suprema, no que lhe diz respeito, em matria de f. Nenhuma igreja, nenhum homem pode julgaroutro no seu lugar. 0 governo civil deve dedicar-se unicamente aos assuntos deste mundo; o Magistrado no tem nenhum poder em matria de religio. E a igreja, que no tem outra funo alm da religiosa, dispe de uma nica sano temporal, a excomunho. Tod a confuso entre a igreja e o Estado para impor umaf to infame como a prpria perseguio. Mas, como todos os influenciados pelo puritanismo na sua poca, excluir os papistas dos benefcios da tolernciapor causa de traio.

    Limitemo-nos a mencionar a posio extrema dos socinianos, grandes defensores datolerncia, tanto pela lgica da sua doutrina como pelo cuidado de conservao, porque formavam a seita mais odiada do seu tempo: que se opunham tanto divindade de Cristo como ao dogma da trindade e pretendiam professar um credo mnimo fundado na razo.

    A este leque to variado de opinies, h que acrescentar, finalmente, a opinio dos que, por vezes, se chamam erastianos, que no deixaram de exercer influnciasobre Locke. So pessoas, normalmente moderadas, que julgam que vale mais confiar ao Estado a completa autoridade nos assuntos religiosos, porque tem todas as possibilidades de ser mais imparcial do que todas as igrejas nele abrangidas e que so impulsionadas pela violncia das paixes religiosas. A melhor garantia de uma ordem religiosa liberal encontrar-se- quando o Estado no estiver enfeudado a uma igreja e sobre todas exera o seu domnio. Citar-se- entre eles Harrington, que no cr que a liberdade civil possa ser completa sem liberdade religiosa; relega o controlo dos assuntos religiosos para as mos do Magistrado Civil, e pe minuciosamente o clero e as instituies religiosas sob a sua dependncia. Para este liberal, a autoridade do Estado sobre os assuntos da religio , como em Locke, compatvel com o liberalismo: o meio mais seguro para isso. No insistamos sobre as fontes hobbistas do pensamento deHarrington; a

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  • omnipotncia do Soberano tem como finalidade, de facto, para Hobbes, a paz e o bem da commo~altb; para a chegar, Hobbes quer subordinar o religioso ao poltico e impedir que o clero seja prejudicial. A liberdade religiosa, evidentemente, no o preocupa, como tambm no a tolerncia. 0 prprio Hobbes praticamente ateu. A religio, que considera como um meio poltico, deve estar completamente ao servio do Estado. Sem dvida, a f, que reside totalmente in foro interno, escapa jurisdio civil. Mas a omnipotncia do Soberano e a sua omnisci ^ncia podem conseguir fazer dele o princpio e a fora de toda a convico religiosa no Estado. A verdade religiosa deve ser, como todas as outras verdades., conforme com a paz do Estado.

    Como que o Governo real reconstitudo vai reagir a esta enorme luta ideolgica, que em todas as suas decises mistura considerveis consequncias passionais? Carlos 11 na declarao de Breda (4 de Abril de 166o) reconheceu a liberdade de conscincia para todos os que no perturbassem a ordem pblica. Eleprprio se inclina para a tolerncia e est longe de partilhar a hostilidade muito generalizada dos seus sbditos contra os catlicos que o ajudaram, e contra o catolicismo, apoio da moriarquia em Frana. No faltam pessoas sua volta, at o seu prprio irmo e herdeiro, o duque de York, cujas simpatias catlicas no so um mistrio para ningum. Carlos 11 depressa levado pelas circunstncias, precisamente por volta de 1661-1662, com o seu ministro Clarendon, igualmente homem de opinio muito moderada, a legislar em matria de religio. Assim se forma, pouco a pouco, o que se chama o Clarefidon Code. 0 Corporation Act, de 1662, exclui das corporaes municipais os que se recusam a receber os sacramentos segundo os ritos da igreja anglicana. 0 Act of Uni/ormi@y, de 1662, restabelecia o Common Prayer Book. Mas se os no-conformistas eram excludos das funes oficiais, as suas religies e seitas eram admitidas, pela primeira vez legalmente, a unia vida civil. A perseguio era acompanhada por unia espcie de reconhecimento. Sempre que o Rei, em 1662, quer abrandar a dureza destas leis mediante uma espcie de Declarao de Indulgncia, suscita a indignao das Comunas que bloqueiam a deciso e se levantam contra os catlicos.

    2. Whether the Civil Magiattate.

    precisamente a altura em que Locke medita nos seus dois tratados sobre o Magistrado Civil. to sensvel a estas diversas correntes que se pode dizer, com propriedade, que no inventou

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  • nenhuma ideia, nenhum ponto de vista. Pode mesmo acrescentar-se que foi buscar argumentos a todos, tanto aos mais autoritrios como aos mais liberais. 0 que propriamente lhe pertence o carcter moderado da sntese a que chega, o esforo por assegurar da forma mais sensata a liberdade humana conforme razo o compatvel com a paz e a ordem de um Estado, guardio do bem pblico necessrio liberdade de cada um. j se v bem isto na sua reaco a An Essay in Defence of the Good Old Cause, or a Discourse Concemiig tbe Rise and Extent of the Power of tbe Civil Magistrate in Reference to Spiritual Affairs, publicado em 1659 por Henry Stubbe. Stubbe, amigo de Locke, e um dos seus colegas em Christ Church, apaixonadamente partidrio de um individualismo espiritual absoluto aliado, j encontrmos este vnculo, a muito cepticismo. 0 nico guia em matria de religio a conscincia de cada um. Defende, portanto,uma Christiav Iiber@y, que confere uma liberdade religiosa absoluta a todas as igrejas, mesmo s socinianas e at s catlicas, e que encara com optimismo a possibilidade de fazer coexistir homens pertencendo a diferentes confisses no mesmo Estado em vista do bem COMUM.

    Numa carta escrita a Stubbe (4) por esta altura, Locke mostra que, embora partilhe a opinio deste sobre o direito de cada homem liberdade religiosa, sobre o direito de cada um se decidir em ltima instncia quanto sua f, d provas de menor optimismo; declara-se j preocupado em assegurar o bom funcionamento do Estado, mesmo que em detrimento de liberdades que julgue exorbitantes, como a que Stubbe concedia aos papistas, os quais, porque reconheciam um outro soberano alm do Estado, so sempre traidores e conspiradores em potncia.

    a mesma posio do justo meio entre dois extremos, o extremo da liberdade absoluta e o extremo do dogmatismo tirnico, que Locke vai adoptar, criticando no seu manuscrito Whether the Civil Ma ,gist,,ate..., um panfleto publicado em 166o por outro colega seu em Christ Church, tambm um independente, Edward Bagshaw (5): Tbe Great Question concerning TUngs Indifferent iii Reli iLibrary,MssLocke,c.27,f.(>I2. (5) Cf. a este propsito von Leyden, in Locke Essays on tbe Law of Na~e, p- 23-

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  • crist, por justificar a independncia da religio relativamente ao Estado; reclamava, consequentemente, uma liberdade absoluta em matria de coisas indiferentes, enquanto tentava, pelo contrrio, subordinar o Estado religio fazendo do Estado o defensor dos dogmas da verdadeira f e o protector da comunidade religiosa de eleio, que a pratica.

    Para bem interpretar o sentido das crticas de Locke, h que no esquecer, por um lado, que no constituem um tratado da tolerncia, mas uma resposta questomuito concretamente posta por Bairshaw e, por outro, que Locice nunca defende-lia absolute 1iber@, cuja doutrina Poppie, o tradutor da Epistola de Tolerantia, por um grave contra-senso, lhe atribuiu, no prefcio no assinado da traduo inglesa. Muito pelo contrrio, no Prefcio ao Civil Ma ,gistrate, vemos Locke rejeitar tambm a anarquia e a tirania, as duas pragas da humanidade, e afirmar o seu respeito, ao mesmo tempo, pela autoridade e pela.liberdade;

    - ela liberdade geral, que no passa de uma escravido geral, mo de 2 maneiraque aqueles que se pretendem seus defensores no so mais do que os seus carcereiros, e que depressa vir instalar a tirania do fanatismo religioso, mas pela liberdade sem a qual um homem no seria menos feliz do que um animal, a escravido que nos priva de todos os benefcios desta vida e converte em veneno os nossos dons mais preciosos e a prpria razo (7). 0 leitor da Carta sobre a Tolerncia, demasiado influenciado pela frmula de Popple, no deveria esquecer que Locke, ao longo da sua vida, nunca concebeu a liberdade independentemente daexistncia e do respeito pelas leis (8).

    Tomemos como ponto de partida na anlise dos argumentos do Civil Magistrate os grandes temas levantados na Carta de 1689. No nos podemos admirar de que o primeiro tema, o tema da distino entre o religioso e o poltico,