Carlos Josue Costa

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artigo baseado em joão 8

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  • UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS DA RELIGIO

    Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio

    DO CONFLITO DE JESUS COM OS JUDEUS

    REVELAO DA VERDADE QUE LIBERTA EM JOO 8,31-59

    CARLOS JOSU COSTA DO NASCIMENTO

    So Bernardo do Campo

    2010

  • UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS DA RELIGIO

    Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio

    DO CONFLITO DE JESUS COM OS JUDEUS

    REVELAO DA VERDADE QUE LIBERTA EM JOO 8,31-59

    Por

    CARLOS JOSU COSTA DO NASCIMENTO

    Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia

    Tese de doutorado apresentada em cumprimento s exigncias do Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio

    para a obteno do grau de doutor

    So Bernardo do Campo, So Paulo, Brasil

    2010

  • A tese de doutorado sob o ttulo DO CONFLITO DE JESUS COM OS

    JUDEUS REVELAO DA VERDADE QUE LIBERTA EM JOO

    8,31-59, elaborada por Carlos Josu Costa do Nascimento foi defendida e

    aprovada em 31 de maio de 2010, perante a banca examinadora composta por

    Paulo Roberto Garcia (Presidente/UMESP), Paulo Augusto de Souza

    Nogueira (Titular/UMESP), Pedro Lima Vasconcellos (Titular/PUC-SP),

    Milton Schwantes (Titular/UMESP), Johan Konings (Titutar/FAJE).

    ______________________________________________________________________

    Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia

    Orientador/a e Presidente da Banca Examinadora

    ____________________________________________________________________

    Prof. Dr. Jung Mo Sung

    Coordenador/Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio

    Programa: Ps-Graduao em Cincias da Religio

    rea de Concentrao: Literatura e Religio no Mundo Bblico

    Linha de Pesquisa: Estudos Histrico-literrios do Mundo Bblico

  • 4

    Dedico este trabalho minha me Alice (In memoriam) que me deu o dom da vida,

    um nome bblico (Josu), o exemplo de f e confiana em Deus nas provaes e dificuldades

    e, sobretudo a semente em mim plantada, desde cedo, de amor Palavra de Deus.

  • Agradeo imensamente os valiosos auxlios recebidos pela IEPG e pela CAPES que

    me foram imprescindveis para possibilitar minha pesquisa.

  • AGRADECIMENTOS

    No possvel agradecer a todos os que contriburam e favoreceram meus estudos

    nestes ltimos quatro anos. Muitas pessoas me ajudaram de diversas maneiras. Por todos os

    lugares por onde passei e convivi, recebi direta e indiretamente, apoio e estmulo para

    prosseguir na realizao deste desafiador doutorado, que por isso mesmo, um produto de

    mutiro, de partilha, de comunho. A todos a minha profunda gratido. Todavia, nomino

    alguns em particular que foram mais efetivos e fundamentais para a concluso de tudo.

    Agradeo a Deus Pai, Senhor da Vida, que foi e continua sendo a razo de todo meu

    pensamento e ao. Ad maiorem Dei Gloriam!

    Agradeo aos meus pais, Gentil e Alice, que me conceberam e me educaram num

    ambiente cristo de amor pleno e me deram exemplos de amor a Deus e doao ao prximo.

    Agradeo ao Programa de Ps Graduao de Cincias da Religio pela oportunidade

    de estudar num ambiente to respeitvel. Senti-me sempre bem, em casa. Obrigado a todos

    os professores que me instruram com competncia e contriburam para minha formao

  • 7

    bblica nesses quatro anos que estive na UMESP. Obrigado a todos os funcionrios que me

    beneficiaram com seus prontos servios.

    Agradeo ao meu orientador Paulo Roberto Garcia pela pacincia constante, o

    incentivo renovador, a seriedade de um pesquisador, os dilogos e sugestes, o respeito

    delicado, a presena amiga de sua esposa Margarida, os cafs oferecidos para o Padre

    durante os colquios e a amizade sincera que se fortaleceu nos encontros.

    Agradeo minha Congregao Salesiana que investiu e acreditou em mim. Agradeo

    ao meu ex-Inspetor e amigo Pe. Damsio Medeiros pela coragem em sustentar e defender

    meu doutorado facilitando, apoiando e fortalecendo-me nos momentos de desnimo que

    passei. Obrigado ao Pe. Benjamim Morando, atual Inspetor, pela compreenso e pacincia

    nestes ltimos meses de pesquisa.

    Agradeo aos amigos Luiz e Conceio Castanheira pelos cuidados e preocupaes

    prprios de um pai e de uma me; aos amigos Ruben e Lenir Lozano pela amizade e pelos

    encontros de alegria que me animaram na f e no estudo; minha tia Eliana pelos momentos

    de conversa e carinho materno; minha irm Alissandra pelas palavras de nimo e

    fortalecimento em todas as horas que precisei.

    Agradeo aos meus irmos salesianos, em particular os que me acolheram na

    comunidade da Mooca e da Casa Inspetorial. Um obrigado especial ao Pe. Marco Biaggi

    pela abertura e confiana em acolher-me na ISSP.

  • NASCIMENTO, Carlos Josu Costa do. Do Conflito de Jesus com os Judeus Revelao da

    Verdade que Liberta em Joo 8,31-59. So Bernardo do Campo: Universidade Metodista de

    So Paulo, 2010. Tese (Doutorado em cincias da religio), 325p.

    Sinopse

    Esta tese tem como objetivo demonstrar que o conflito existente na comunidade

    joanina e presente no texto uma estratgia literria do autor para construir identidade e

    fortalecer a f dos seus leitores. Para isso escolhi uma percope (Jo 8,31-59) onde verifico e

    comprovo essa dinmica. O texto produto literrio, tem lgica: incio, fim, coeso.

    tambm produto relacional, responde a uma lgica redacional. O autor o protagonista do

    texto e nele revela sua teologia. Busco entender sua vida e tudo dele para saber do seu texto.

    O texto reflexo de uma realidade nas formas de expresso que redigido. H muitos

    conflitos no texto. Para entender o conflito devo olhar a partir de sua complexidade literria.

    Do conflito revelao da verdade que liberta da incredulidade, do medo, da insegurana,

    da ideologia que escraviza, do mal que impede acolher Jesus, o Messias e Filho de Deus.

    Palavras-chave: conflito, comunidade joanina, literatura e religio, identidade,

    liberdade, verdade.

  • NASCIMENTO, Carlos Josu Costa do. From the Conflict of Jesus with the Judeans to the

    Revelation of the Truth that Liberty in John 8,31-59. So Bernardo do Campo: Methodist

    Universtity of So Paulo, 2010, Thesis (Doctorate in Religious Sciences), 325p.

    Abstract

    This dissertation has aimed to demonstrate that the conflict in the Johannine

    community and the present text is a literary author's strategy to build identity and strengthen

    the faith of its readers. For this I chose a pericope (Jn 8,31-59) where check and testify to

    that dynamic. The text is literary product, is logical: start, stop, cohesion. It is also relational

    product responds to a logic editing. The author is the protagonist of the text and it reveals

    his theology. I try to understand her life and all of it to know of your text. The text reflects a

    reality in the forms of expression that is written. There are many conflicts in the text. To

    understand the conflict should look from its literary complexity. From conflict to the

    revelation of the truth that freedom from disbelief, fear, insecurity, ideology that enslaves

    the evil that prevents welcome Jesus, the Messiah and Son of God.

    Key words: conflict, Johannine community, literary and religion, identity, liberty,

    truth.

  • SIGLAS E ABREVIATURAS

    AB Anchor Bible

    Am.Rev.Anthrop. Annual Reviews of Anthropology

    APSR American Political Science of the New Testament

    BBR Bulletin for Biblical Research

    Bib Biblica

    BinInt Biblical Interpretation

    BibOr Bblia e Oriente

    BibTrans The Bible Translator

    BS Bibliotheca Sacra

    BTB Biblical Theology Bulletin

    CBQ The Catholic Biblical Quarterly

    CD La Ciudad de Dios

    Com Communio

    Con Concilium

    Conv Convergncia

    CR Currents in Research

    CTQ Catholic Theological Quarterly

    CuadTeol Cuadernos Teologicos

    Didas Didaskalia

    Diog Diogenes

    Dial Dialog

    EcumRev The Ecumenical Review

    EstBib Estudos Bblicos

    ER Estudos de Religio

    GNLT Grande Lssico do Novo Testamento

    HTR Harvard Theological Review

    Int Interpretation (a Journal of Bible and Theology)

    JBL Journal of Biblical Literature

    JSHJ Journal for the Study of the Historical Jesus

    JSNT Journal for Studies of the New Testament

    JTS Journal Thelogical Studies

  • 11

    JCI Journal of Communication Inguary

    JPR Journal of Peace Research

    Jud Judaism

    NTE New Testament Essays

    NTS New Testament Studies

    NRT NouvRevTheol

    NovT Novum Testamentum

    Pac Pacifica

    P Pasos

    Persp Perspective

    PT Perspectiva Teolgica

    Prot Protestantesimo

    RevBib Revista Bblica

    RivBl Rivista Biblica

    RB Revue Biblique

    RevCultTeol Revista de Cultura Teolgica

    Revscphth Revue Das Sciences Philosophiques et Thologiques

    RevThom Reviste Thomiste

    RHPR Revue dHistoire et Philosophie Religieuses RIBLA Revista de Interpretaao Bblica Latino-Americana

    RivBibIt Rivista Biblica Italiana

    Sal. Salesianum

    Salm Salmanticensis

    SBL Society of Biblical Literature

    Sem Semeia

    StTh Studia Theologica

    TV Teologia e Vida

    Th Themelios

    Theo Theologika

    Theol Theology

    TET The Expository Times

    TynBul Tyndale Bulletin

    TWNT Theologisches Wrterbuch zum NT

    VH Vivens Homo

    VE Vox Evangelica

    OS ESCRITOS DE JOSEFO (apenas os usados nesta pesquisa)

    AJ Antiguidades Judaicas

    GJ Guerra Judaica

    AUTORES JUDAICOS

    Ag Ageu

    Esd Esdras

    1Hen Henoc

    Jub Jubileus

    Test. Testamentos dos XII Patriarcas

    Test Jud Testamento de Judas

  • 12

    Test Aser Testamento de Aser

    Test Jos Testamento de Jos

    Test Rub Testamento de Ruben

    Tg. Ps.-J Targum Pseudo-Jonatas

    PERGAMINHOS DE QUMRAN

    MMM Manuscritos do Mar Morto (Qumran)

    CD Aliana de Damasco

    MQ Rolo do templo

    IQM Rolo da Guerra

    IQS Regras da comunidade

    4QMMT Miqsat Maaseh h-TOrah; Halkhic Let

    ANTIGOS AUTORES CRISTOS

    HE Eusbio de Cesaria, Histria Eclesistica

    Apol. Justino, Apologia

    Dilogo Justino, Dilogo com Trifone

    CC Orgenes, Contra Celsum

    PG J. Migne, Patrologia Graeca

    PL J. Migne, Patrologia Latina

    2Clem 2 Clemente

    OUTRAS ABREVIATURAS E SIGLAS

    AT Antigo Testamento

    AH Irineu de Lio, Adversus Haeresis

    a.C. Antes de Cristo

    cap. Captulo(s)

    cf. confira, conforme

    d.C. Depois de Cristo

    QE Quarto Evangelho

    ed., eds. Edio, editor (es)

    Id. Idem, o mesmo

    LXX Modo latino de escrever 70, um nmero redondo usado

    para a traduo grega do AT (Septuaginta)

    n. nmero

    NT Novo Testamento

    Op. cit. Obra citada

    P Manuscrito em papiro (geralmente de um escrito bblico)

    p. Pgina, pginas

    par. (e) paralelo(s)

    p. ex. por exemplo

    s, ss e seguinte(s)

    TEB Traduo Ecumnica da Bblia

    v. (vv.) Versculo, versculos

    vol. Volume

  • SUMRIO

    INTRODUO..................................................................................................................................................... 16

    CAPTULO I

    A COMUNIDADE JOANINA NUM CONTEXTO PLURALISTA DO I SCULO .......................................... 23

    1.1 As etapas da redao do Quarto Evangelho (Origens e Fontes) ........................................... 25

    1.1.1 Teorias sobre as fontes literrias do Quarto Evangelho ........................................... 29

    1.1.2 As origens histricas do QE (fases da redao) ......................................................... 33

    1.2 A comunidade joanina e o seu ambiente scio-poltico-cultural-religioso no I sculo d. C. ... 36

    1.2.1. A diversidade de grupos e movimentos (cristianismos) ....................................... 38

    1.2.2 A situao poltica-cultural-social da Palestina no I sculo ....................................... 42

    1.2.3 As razes e as idias da comunidade joanina neste contexto (Gnosticismo, Qumran,

    Judasmo, Seguidores de Joo Batista) ............................................................................... 44

    1.2.4 Concluses aps a anlise dos contextos ................................................................. 49

    1.3 A teologia e o estilo literrio joaninos ..................................................................................... 52

    1.3.1 A composio primria do QE ................................................................................... 52

    1.3.2 O marcante estilo de controvrsia e disputa (polmicas) ..................................... 54

    1.3.3 Qual o objetivo do autor com este estilo? ................................................................ 58

    1.4 Os judeus no Quarto Evangelho e em 8,31-59..................................................................... 60

    1.4.1 Quem eram os judeus do QE? ............................................................................... 60

    1.4.2 O posicionamento do autor do QE diante dos judeus ........................................... 62

    1.4.3 A polmica Judeus-Israel ........................................................................................... 64

    1.5 Teoria scio-literria ................................................................................................................ 68

    1.5.1 As fases literrias da redao .................................................................................... 69

    1.5.2 O processo aps o conflito com a Sinagoga .............................................................. 71

    1.5.3 O ambiente da comunidade do QE ........................................................................... 73

    1.5.4 A evoluo literria e o contedo teolgico ............................................................. 74

    1.5.5 Etapas de elaborao do QE ..................................................................................... 76

    1.5.5.1 Primeira etapa: A tradio oral ao redor do Discpulo Amado ..................... 76

  • 14

    1.5.5.2 Segunda etapa: O conflito com os judeus (autoridades farisaicas) provoca

    uma releitura das palavras de Jesus ......................................................................... 77

    1.5.5.3 Terceira etapa: Os primeiros escritos comeam a circular nas comunidades e

    a diviso interna da comunidade .............................................................................. 79

    1.5.5.4 Quarta etapa: Redao final do Quarto Evangelho ...................................... 80

    1.6 Concluso ................................................................................................................................ 82

    CAPTULO II

    A ESTRATGIA LITERRIA NA PERCOPE JOO 8, 31-59 ........................................................................ 86

    2.1 O texto grego da percope Jo 8,31-59 .................................................................................... 88

    2.2 A traduo da percope ......................................................................................................... 91

    2.3 A percope e sua localizao no Quarto Evangelho ............................................................... 93

    2.3.1 Jo 7 um incio de nova seo? ................................................................................ 94

    2.3.2 Fim da unidade? ........................................................................................................ 95

    2.3.3 (7,1-8,59) uma unidade com incio e fim ............................................................... 96

    2.3.3.1 (7 8) onde o tema do conflito constri unidade ............................................ 105

    2.4 Diviso da percope 8,31-59 ................................................................................................ 107

    2.5 Anlise da percope Jo 8,31-59 ............................................................................................ 110

    41b 47 : 121

    49 59 : 122

    2.6 Anlise literria de Jo 8,31-59 .............................................................................................. 122

    2.7 Consideraes sobre a estratgia literria de Jo 8,31-59 .................................................... 162

    CAPTULO III DO CONFLITO QUE GERA IDENTIDADE COMPREENSO DA COMUNIDADE JOANINA ................... 170

    3.1 O conflito: chave hermenutica de compreenso .............................................................. 172

    3.2. Estrutura dramtica e conflitual do QE ............................................................................... 177

    3.2.2 Primeira parte: o Livro dos Sinais (Jo 1,19 12,50) ................................................ 184

    3.2.2.1. Reconhecimento gradual acerca de quem Jesus Jo 1,1951................ 184

    3.2.2.2 No sinal inicial de Can Jo 2,1-12 ............................................................. 187

    3.2.2.3 A purificao do Templo Jo 2,13-22 ......................................................... 190

    3.2.2.4 Breve sumrio da f e no-f Jo 2,23-25 .................................................. 192

    3.2.2.5 A f inadequada de Nicodemos Jo 3,1-21 ................................................ 193

    3.2.2.6 Rivalidade entre seguidores de Joo Batista e de Jesus Jo 3,22-30 ......... 195

    3.2.2.7 O conflito com os Samaritanos Jo 4,4-42 ................................................. 196

    3.2.2.8 Uma f que contrasta: o funcionrio real Jo 4,43-54 ............................... 199

    3.2.2.9 No sbado, Jesus cura e d a vida, provocando um spero dilogo .......... 201

  • 15

    3.2.2.10 Divergncias acerca da eucaristia e rompimento da ................ 203

    3.2.2.11 Discusses sobre a origem do Cristo Jo 7,1-52 ...................................... 206

    3.2.2.12 Morrereis no vosso pecado: a recusa de Jesus Jo 8,21-30 ..................... 208

    3.2.2.13 O cego de nascena I: paradigma de iluminao Jo 9,1-41 ................... 209

    3.2.2.14 O cego de nascena II: a cura como Protesto contra o Templo ................ 212

    3.2.2.15 O Bom Pastor contra os falsos pastores Jo 10,1-21 ............................... 214

    3.2.2.16 O dom da vida conduz deciso do Sindrio de que Jesus deve morrer .. 216

    3.2.2.17 A incredulidade dos judeus persiste Jo 12,37-50.................................... 218

    3.2.2.18 Concluses do Livro dos Sinais .................................................................. 220

    3.2.3 Segunda parte: o Livro da Glria (Jo 13,1 20,31) ................................................. 229

    3.2.3.1 O anncio da traio de Judas: a separao das trevas e da luz ............... 230

    3.2.3.2 O dio do mundo, as perseguies e o testemunho do Parclito ............... 231

    3.2.3.3 Jesus se recusa a rezar pelo mundo Jo 17,1-26 .................................... 235

    3.2.3.4 Na priso Jesus revela a identidade do agressor Jo 18,1-12 .................... 236

    3.2.3.5 O julgamento do Filho de Deus Jo 18,28-19,16 ........................................ 238

    3.2.3.6 Na morte a revelao da glria de Jesus Jo 19,17-42 .............................. 242

    3.2.3.7 Tom: outro modelo emblemtico de incredulidade e f Jo 20,19-31 ..... 243

    3.2.3.8 Pedro e Joo: Conflitos de autoridade na comunidade joanina ................. 244

    3.2.3.9 Concluses do Livro da Glria ..................................................................... 246

    3.3. A estrutura esttico-dinmica do QE revela conflitos na comunidade ............................... 250

    CAPTULO IV AS FIGURAS DE ABRAO, JESUS E O DIABO NO CONFLITO DA COMUNIDADE JOANINA .................. 258

    4.1 A filiao de Abrao ............................................................................................................. 269

    4.2 A paternidade do diabo ....................................................................................................... 271

    4.3 Pelo conflito, a busca de identidade .................................................................................... 273

    4.4 A revelao da verdade que liberta ..................................................................................... 276

    CONCLUSO ........................................................................................................................................ 280

    BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................................... 288

    1. Fontes primrias, Dicionrios e Enciclopdias ............................................................. 288

    2. Estudos, Dissertaes, Teses, Comentrios em geral .................................................. 290

    3. Estudos, Comentrios sobre o Evangelho de Joo ....................................................... 303

    4. Revistas, Artigos ........................................................................................................... 309

  • INTRODUO

    Talvez mais do que qualquer outro dos quatro evangelhos que foram includos

    no cnon da igreja crist, o Quarto Evangelho (=QE)1 o mais misterioso e

    problemtico. Quem o escreveu? Para quem foi escrito? Onde? Quando? Quais foram

    as circunstncias sociais e religiosas dentro das quais ele apareceu? Por que foi

    escrito? Por que o QE to diferente dos outros evangelhos, os chamados evangelhos

    sinticos? O QE histria ou teologia? Se houve bastante concordncia sobre estas

    questes ao longo dos sculos entre a grande maioria dos teolgos, isto mudou com o

    incio do uso do mtodo histrico-crtico nos estudos bblicos. Hoje em dia estas e

    outras perguntas semelhantes ainda esto abertas. Contudo, mesmo assim, tem havido

    progresso nas pesquisas, as quais podem facilitar muito nossa tentativa de entender

    a mensagem deste livro singular na biblioteca dos cristos primitivos. o que

    intentamos realizar nesta pesquisa sobre a literatura e teologia joaninas.

    Esse Quarto Evangelho, que na tradio catlica comparado a uma guia que

    com seus olhos penetrantes desafia o brilho do sol, nos transporta, desde sua primeira

    1 Ao longo deste trabalho usaremos esta sigla QE para referirmo-nos ao texto evanglico joanino.

  • 17

    pgina at a contemplao de Deus em seu mistrio eterno. Por trs deste Evangelho

    est uma comunidade que nasceu de modo simples, foi crescendo e adquirindo um

    jeito prprio de ser e de agir, profundo na sua reflexo e criativo na sua forma

    literria. E de fato o texto revela os traos tpicos e peculiares dessa comunidade, que

    ns chamaremos de a comunidade joanina ou do Discpulo Amado.2 Sua finalidade

    teolgico-literria expressa com toda a clareza no final: Muitos outros sinais fez

    Jesus ainda diante dos discpulos que no esto escritos neste livro. Estes, porm,

    foram escritos para crerdes que Jesus o Messias, o Filho de Deus, e para que,

    crendo, tenhais a vida eterna em seu nome (20,30-31). Aqui fica patente a inteno

    querigmtica e, ligada a ela, a finalidade soteriolgica. Trata-se da f em Jesus Cristo

    como Messias e Filho de Deus; nesta f o homem alcana a vida. Esta finalidade

    a diretriz de toda a obra e se dirige aos cristos que viviam ao tempo de sua redao:

    mostrar-lhes que Jesus de Nazar, e nenhum outro, o Messias e que s na f, na

    messianidade e na filiao divina de Jesus est a salvao. Nenhuma outra questo

    tratada de forma to ampla, como a pretenso de Jesus de ser o revelador e o salvador,

    ou seja, como a sua messianidade.

    Mas, como realmente nasceu e se formou a comunidade joanina? O que significa

    crer em Jesus Cristo no fim do I sculo? Como incorporou outros grupos e novos

    membros em seu meio? Como ocorreu esse processo? Sabemos que, em torno do ano

    80, quando o texto ainda no estava escrito, essa comunidade (composta de judeus

    convertidos, samaritanos, pagos e outros) se viu envolvida por inmeros conflitos

    2 Em toda esta pesquisa no usaremos o nome Joo para designar o autor do Quarto Evangelho.

    Entendemos que o texto resultado da reflexo e meditao de um grupo (crculo/escola joanina)

    de discpulos de Jesus. Demonstraremos que surgiram, ao longo da histria da redao, autores

    posteriores que resumiram uma tradio que tinham disposio e que teologicamente redigiram. A

    linguagem, estilo e teologia do Quarto Evangelho sugerem a idia de que no final da cadeia da

    tradio est a personalidade de um evangelista e, em seguida, de um grupo, de alto gabarito, que deu

    ao todo um cunho pessoal.

  • 18

    que vinham de fora e de dentro da mesma. Nessa poca o Templo de Jerusalm j

    tinha sido destrudo, mas as lideranas judaicas decidiram eliminar todos os que

    dessem adeso a Jesus. O QE revela esse conflito, praticamente, a cada captulo.

    nesse contexto que o autor desenvolve sua estratgia literria e revela sua teologia.

    Estamos certos que o autor escreveu o QE para fortalecer na f em Jesus, como

    Cristo e como Filho de Deus, uma comunidade ou um grupo de comunidades.3 Esta f

    certamente estava sendo atacada e posta em perigo. Neste sentido o Evangelho ,

    como texto bsico dos judeu-cristos, um escrito de defesa e de confisso em favor

    da f, em perigo, na messianidade de Jesus; um texto que buscava criar autntica

    identidade de discpulos de Jesus. Encontramos no texto uma terminologia comum,

    insistente, que a estratgia literria em alguns verbos como buscar, procurar,

    conhecer, ver, crer e seguir.4 O contexto escolhido torna-se uma temtica que

    prevalece nos relatos e narrativas, o tema do conflito, do drama, da crise; certo de

    que a opo por Jesus a realizao do julgamento messinico. preciso fazer

    escolhas: ser da luz ou das trevas, do alto ou de baixo, da carne ou do esprito, da

    verdade ou da mentira, da vida ou da morte, da esfera de Deus ou do mundo, ser filho

    ou ser escravo, ser de Deus ou do diabo. Dependendo da opo, se descobrir a

    autntica natureza e identidade do verdadeiro discpulo de Jesus.

    i, zhtei/te (O que procurais?, 1,38) so as primeiras palavras de Jesus aos

    seus futuros discpulos, como tambm a pergunta dirigida a Maria Madalena na

    manh de ressurreio (20,15). A exemplo de Jesus, que convida os seus discpulos a

    vir e ver (e;rcesqe kai. o;yesqe Vinde e vereis, 1,39), o autor do texto joanino

    3 O autor do QE dirige-se a uma comunidade crist, todavia tem pretenses de universalidade, como

    verificaremos ao longo desta pesquisa. 4 Cf. CULLMANN, Oscar. Das origens do Evangelho formao da teologia crist, p. 93-104.

  • 19

    convida, quase provocando, seus leitores a se aproximar, a conhecer e a decidir-se,

    com f renovada, quele que se apresenta como o caminho, a verdade e a vida

    (14,6).5 E ainda o verbo permanecer () fala em favor deste sentido. preciso

    que as palavras de Jesus permaneam nos que nele creem (8,31; 15,7), para que

    tenham parte na liberdade do Filho (8,35) e deem frutos em abundncia. Esta a

    condio para ser verdadeiro discpulo de Jesus. A alegoria da videira convida

    insistentemente a permanecer em Cristo como ele permanece nos fiis (15,4-10).

    Ao longo dos captulos deste trabalho demonstraremos que o autor do QE utiliza

    de estratgias narrativas para escrever esta sua inteno e criar identidade. Notaremos

    que, de fato, por trs do texto transparece o contexto conflitivo de hostilidade a Jesus

    que a comunidade joanina vivia em meio ao diversificado cristianismo primitivo.

    Porque o cristianismo nascente no era uma realidade unitria, como tambm o

    judasmo neste perodo. Como escreve Josef Blank, ao lado do judasmo ortodoxo

    coexistia tambm o heterodoxo. Basta pensar em Qumran; alm da presena e

    influncia helenstica naquele momento histrico.6 partindo deste contexto que

    compreenderemos melhor os discursos joaninos. E, de fato, em particular, percebemos

    que a discusso com o judasmo da poca ocupa certamente um lugar de destaque em

    todo o QE; muito til para a sua interpretao e para se precisar exatamente os

    pontos polmicos.

    5 O ato de ver se apresenta como uma necessidade, todavia ao ato da viso deve juntar-se o ato de f,

    esta atitude interior de crer com o corao. Por isso, a vida de Jesus narrada no QE, no pensamento do

    autor, no tem por objetivo proporcionar simplesmente um quadro exterior, cmodo, mas antes pr

    em evidncia a identidade entre o Jesus encarnado e o Cristo eterno, em especial presente na

    comunidade joanina, desafiado e desacreditado por alguns que duvidavam e at negavam. 6 Cf. BLANK, Josef, O Evangelho segundo Joo, 4/1a, p. 61.

  • 20

    Para concretizar nosso propsito:

    O captulo I tem como objeto apresentar o ambiente, o contexto, a situao e a

    realidade do I sculo d.C. no qual viveu a comunidade joanina. Iniciamos, porm,

    situando a pesquisa do QE no momento atual, principalmente no que se refere s

    etapas de formao do texto joanino (sua origem e fontes), visto que a definio de

    uma teoria literria nos interessa para fundamentarmos nossa tese. O conhecimento do

    ambiente poltico, cultural, religioso e social da Palestina deste perodo histrico

    tambm de capital importncia para entendermos melhor os conflitos que haviam

    entre os grupos e movimentos de ento. Nossa inteno mostrar ainda que a teologia

    e o estilo literrio joaninos so reflexos do ambiente e da situao que a comunidade

    enfrentava, isto , foram determinantes para influenciar a redao do texto evanglico;

    que ser, em nosso entendimento, o estilo de controvrsia, de disputa e polmicas,

    geradores de conflitos dentro e fora da comunidade do QE. Procuraremos ainda

    definir quem so os judeus especficos do confronto com Jesus que aparecem no texto.

    E por fim, apresentaremos nossa prpria teoria scio-literria sobre as etapas da

    redao do texto e a teologia joanina.

    Uma vez conhecido o ambiente e o contexto da comunidade joanina, nos

    interessa aprofundar melhor o texto que foi produzido a partir dessa realidade. Por

    isso o captulo II se ocupa em descrever a estratgia literria do autor demarcando a

    percope 8,31-59 dentro da estrutura de todo o QE. Veremos que esta percope est

    bem inserida dentro de uma unidade temtica dos captulos 7 8. O tema do conflito,

    que percorre marcadamente estes captulos, o modo buscado pelo autor, que d

    forma compacta e coerente e incita seus leitores a definirem-se diante da provocao

  • 21

    contrria. Apresentamos ainda a diviso da percope, nossa prpria traduo e a

    anlise literria de cada versculo nela contido.

    Depois de aprofundarmos o contexto da comunidade joanina e os recursos

    literrios usados pelo autor para escrever sua mensagem aos seus imediatos

    destinatrios, precisamos definir o que conflito e como ele se desenvolve no seio da

    comunidade. Apresentamos no captulo III especificamente o conflito presente em

    todo o Quarto evangelho, mostrando-o como chave de compreenso da teologia

    joanina. Tal conflito, visto como uma estatgia literria do autor, interpretado como

    revelador da comunidade que o vivia e gerador de identidade, como intenciona o

    autor. Procuramos observar esta metodologia presente em quase todo o QE: h uma

    estrutura dramtica e conflitual, esttica e dinmica cuja base o desentendimento e a

    controvrsia. O autor estrutura sua narrativa sobre relatos de conflitos. Desde o incio,

    no Prlogo, se delineia uma insistncia no embate, usando do dualismo, de hostilidade

    entre realidades e foras opostas como trevas e luz, alto e baixo, verdade e mentira,

    morte e vida, filhos e escravos, esprito e carne. Termos joaninos tpicos da sua

    linguagem e teologia repetem-se ao longo dos captulos como glria, hora, sinal,

    obra. Aps este percurso por todo o texto joanino, seguindo a diviso feita pelo autor

    das duas grandes partes o Livro dos Sinais e o Livro da Glria, faremos nossa leitura

    dos conflitos presentes.

    O conhecimento desta dinmica literria joanina que percorre todo o QE

    retornamos, no captulo IV nossa percope 8,31-59 para ilustrar os motivos do

    conflito existentes na comunidade joanina, destacando em particular as figuras de

    Jesus, Abrao e o Diabo como os temas principais das discusses dentro e fora da

    mesma. O autor rene na unidade dos captulos 7-8 o debate sobre a autenticidade do

  • 22

    Jesus messinico, as resistncias, ataques e defesas dos membros, leitores do texto

    joanino.

    Na Concluso, enfim, apresentamos nossa tese de que o conflito gera identidade.

    Interpretando a estratgia usada pelo autor conclumos que sua inteno era conduzir

    seus leitores a uma opo de f slida e consciente no Messias e Filho de Deus,

    reconhecido em Jesus Cristo e negado pelos Judeus da Sinagoga e por membros da

    prpria comunidade, aos quais ele dirige seu texto evanglico.

  • CAPTULO I

    A COMUNIDADE JOANINA NUM CONTEXTO

    PLURALISTA DO I SCULO

    Neste primeiro Captulo percorreremos uma trajetria que nos ajudar a

    conhecer melhor como est a atual pesquisa sobre o Quarto Evangelho e a

    investigao sobre as etapas da redao do texto evanglico. Nosso maior interesse,

    porm, aprofundar o conhecimento sobre a o ambiente no qual surgiu este

    Evangelho. Pretendemos saber quem eram os judeus que freqentavam a comunidade

    joanina, os de dentro e os de fora da mesma. A partir desse conhecimento

    fundamentaremos nossa hiptese sobre os conflitos existentes nesse contexto e com

    estes protagonistas para defender nossa tese da identidade dos membros da

    comunidade do Evangelho joanino. O progresso da investigao ir modelando e

    precisando as caractersticas de toda a obra, contudo, neste incio faz-se necessrio

    colocar as bases onde fundamentar toda a construo.

    Especificamente, no ponto 1.1 abordada as origens e as fontes do QE.

    Percorre-se a histria (como um excursus) das etapas de redao, as vrias hipteses

  • 24

    dos autores que desde o princpio da pesquisa joanina formularam suas posies, e o

    progredir da pesquisa de ontem at hoje, tendo Rudolf Bultmann como o divisor das

    guas nesta pesquisa sobre a histria redacional e literria do QE.

    Continuaremos procurando a origem da comunidade na qual foi gerada a obra

    (1.2): o ambiente plurietnico e religioso no qual nasceu e cresceu. Interessa-nos

    tambm conhecer mais o gnero literrio e a teologia caractersticas do QE, com seu

    estilo marcadamente de controvrsia e hostilidade (1.3.).

    Trataremos ainda dos judeus, procurando saber quem eram eles e como

    agiram e reagiram no confronto com a comunidade(s) joanina(s) (1.4.).7 Afirmaremos

    que havia uma numerosa quantidade de grupos, partidos e movimentos no primeiro

    sculo; e nesta pluralidade de idias e expectativas de cada grupo que se encaixa a

    comunidade joanina, a qual respira o mesmo ar e se alimenta do mesmo po. O

    que aconteceu antes e depois da destruio do Templo (ano 70 d.C) muito

    importante para compreendermos a comunidade joanina, inserida, vtima e

    protagonista da sua prpria histria neste contexto social, poltico, econmico,

    religioso e cultural da Palestina. O que acontecia com um judeu que aceitasse e cresse

    em Jesus como o Messias? A controvrsia se d dentro dos limites do prprio

    Judasmo; uma briga em famlia, intra-eclesial, se poderia dizer.

    O QE aparece, depois de todo esse percurso, muito ligado ao ambiente no qual

    surgiu. A nossa escolha de conhecer melhor esse contexto foi proposital para dar

    7 O termo no QE tem sido motivo de controvrsia e discusso por um tempo prolongado ao

    longo da histria e da pesquisa deste evangelho (cf. bibliografia em Raymond E. BROWN, El

    Evangelio segun Juan I, tambm no artigo de Ricardo PIETRANTONIO: Los en el Evangelio de Juan, RevBib 47:1-2, 1985, p. 27-41). Com efeito, contrariamente aos Sinticos o QE

    usa o termo muito freqentemente (69 vezes). Ultimamente uma srie de estudos aprofundou e tentou

    esclarecer o panorama. Reenvio nossa bibliografia a abrangente discusso sobre este tema.

  • 25

    apoio e fundamento teoria literria que apresento no ltimo ponto deste captulo

    (1.5.). um pressuposto fixo de que no se entender a teoria literria sem se entender

    a realidade circunstante da comunidade joanina.

    1.1 As etapas da redao do Quarto Evangelho (Origens e

    Fontes)

    Pode-se afirmar que o redator do QE utiliza tradies e fontes comuns aos

    evangelhos Sinticos, contudo no se pode afirmar dependncia literria entre os

    documentos.8 Percebe-se que o texto foi produzido, isto , elaborado em vrias

    etapas; usou-se de material variado e existente na poca e no lugar onde o autor ou os

    autores viveram. Isso tudo, como escreve Brown, nos faz concluir que o Evangelho

    no foi composio de um nico autor que escrevia suas recordaes e reflexes.9

    A partir destes questionamentos foram levantadas vrias hipteses para

    esclarecer as divergncias. Teoria das mudanas, modificaes acidentais e

    reorganizao dos textos (Wikenhauser, Boismard). Teoria das fontes mltiplas

    (Macgregor, Morton, Bultmann). Teoria das redaes mltiplas (E. Schwarz,

    Wellhausen, W. Wilkens, Parker). As discusses antes de Bultmann giravam,

    sobretudo em torno da paternidade e da origem do QE. O processo de descobrimento

    das origens e das fontes do QE teve enormes avanos. Chegou-se concluso que o

    texto que temos hoje deve ser fruto de um longo e complexo processo redacional.10

    Tudo comeou por volta do ano 50 com relatos de Jesus narrados e interpretados

    como sinais. Com o tempo foram sendo modificados com acrscimos e enxertos.

    8 Aprofundamentos mais especficos sobre o QE e os Sinticos encontram-se em: BLINZLER, Josef.

    Giovanni e i Sinottici. Rassegna informativa. (Studi Biblici 5), Brescia: Paideia Editrice, 1969. 9 BROWN, Raymond. El Evangelio segun Juan I-XII. p. 26.

    10 KONINGS, J. A memria de Jesus e a manifestao do Pai no Quarto Evangelho. In: Perspectiva

    Teolgica 51, 1988, p. 177.

  • 26

    Quanto ao problema da origem histrica do QE, Bultmann o define como o

    enigma de onde se coloca o Evangelho de Joo em relao com o desenvolvimento do

    cristianismo das origens e explica dizendo que no se pode considerar pertencente a

    nenhuma das trs razes do desenvolvimento doutrinal que se pode distinguir na Igreja

    primitiva, que so: o cristianismo helenstico (Paulo), o cristianismo judeu-helenstico

    (I Clemente, o Pastor de Hermas, Hebreus, a Carta de Barnab), ou o cristianismo

    palestins (os Evangelhos Sinticos).11

    O QE deve ser despido, segundo Bultmann, do seu revestimento estranho e

    extico que o evangelista pegou emprestado da sua fonte gnstica (dos Mandeus, em

    particular). Na verdade, Bultmann diz que a originalidade da literatura joanina teria

    provindo, alm de fontes comuns aos Sinticos, de fontes aramaica ou siraca, de

    natureza gnstica ou proto-gnstica; que os discursos de revelao, se no foram

    compostos em lngua semtica, teriam sido ao menos pensados de acordo com o estilo

    e a poesia semtica, com paralelismos e antteses ocupando papel primordial, em

    harmonia com o contedo dualista. Dessa fonte proviriam no somente o prlogo, as

    palavras e os discursos do Jesus joanino, mas toda a linguagem dualista que

    transparece no pensamento do redator e se encontra espalhada por toda a literatura

    joanina.12

    E continua dizendo que a tarefa do exegeta simplesmente aquela de

    assegurar que a carne no seja confundida com a pele, o mito entendido como a

    mensagem. O instrumento literrio, definitivamente, no a prpria mensagem.13

    Contudo, o trabalho de Bultmann vulnervel em muitos pontos. No existe um

    consenso entre os estudiosos do gnosticismo sobre as origens deste movimento nem

    sobre a data em que comeou a circular. No sabemos de fato se o gnosticismo era

    11

    BULTMANN, Rudolf. The Gospel of John. A Commentary, p. 4-7. 12

    Id., p. 7-8; Encontramos as mesmas afirmaes em Teologia do Novo Testamento, p. 438-440. 13

    BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento, p. 70.

  • 27

    suficientemente formado j no final do II sculo a.C., para que tenha exercido tal

    influncia como atesta a teoria de Bultmann.

    J Charles Dodd, como resultado de sua ponderada e meticulosa investigao

    diz que o QE apresenta contatos com uma tradio original aramaica, isto , com os

    incios mesmo do cristianismo. Este Evangelho o nico que introduz termos

    aramaicos em primeira mo no seu escrito. Quando os Sinticos tm, em lugares, se

    no paralelos, ao menos anlogos, os termos Cristo, Pedro, o QE tem Messias,

    Cefas.14

    Algumas variantes na traduo de certos termos aramaicos se explicam talvez

    por este mesma razo; o termo matela (o mashal hebraico) traduzido pelos

    Sinticos com parbola ( ), enquanto no QE se traduz com provrbio

    ( ), porm com o mesmo sentido de parbola (cf. Jo 10,6; 16,25.29). O termo

    bisera (basar) que os LXX traduzem umas vezes com corpo ( ) e outras com

    carne ( ), o traduzem os Sinticos por corpo e no texto joanino com carne (cf. Jo

    6,51; 19,18). Como tambm afirma Dodd que a tradio pr-cannica deste Evangelho

    contm algumas expresses que delatam uma ambientao judaica, mais precisamente

    judaico-crist.15

    Tambm as indicaes geogrficas, nomes de lugares, indicaes

    cronolgicas, a situao poltica da Judia (narrao da Paixo) permitem constatar

    uma tradio muito antiga, de um notvel conhecimento topogrfico da Palestina e de

    Jerusalm, especificamente e de uma procedncia de crculos judaico-cristos em

    contato com a sinagoga,16

    possivelmente anterior ao ano 66 d.C.17

    14

    Cf. Jo 1,41: Encontramos o Messias (que se traduz Cristo = Ungido): eu`rh,kamen to.n Messi,an( o[ evstin meqermhneuo,menon cristo,j; Jo 1,42: tu te chamars Cefas (que se traduz Pedro): su. klhqh,sh| Khfa/j( o] er`mhneu,etai Pe,troj

    15 Algumas aluses a crenas difundidas no judasmo: o Messias devia permanecer como um personagem

    desconhecido at que Elias no o identificasse (Ecl 48,1; Mal 3,1; 4,4; Jo 1,21.26); a opinio do Sumo

    sacerdote qualificada de profecia e explicada por razo de sua funo (cf. Jo 11,50s); a passagem de

    Jo 1,48 com a possvel aluso histria de Susana. 16

    Os nomes Gabbatha junto a Pavimento: Jo 19,13 = no lugar chamado Pavimento, em hebraico

  • 28

    Helmut Koester outro autor que trouxe grandes avanos na pesquisa da fonte

    gnstica para o QE e os Sinticos. Ele v parentesco e proximidades literrias entre

    o QE e os escritos reconhecidamente pr-gnsticos da biblioteca de Nag Hammadi

    (descoberta em 1947), em particular o Evangelho de Tom e o Dilogo do Salvador.

    Koester diz que os discursos e dilogos do Jesus joanino devem-se a um longo

    processo de interpretao dos ditos originais de Jesus, processo cujos reflexos podem

    ser encontrados seja nos evangelhos sinticos, seja em outros escritos, como o

    Evangelho de Tom, O Dilogo do Salvador e o Apcrifo de Tiago.18

    Segundo este

    autor, o Evangelho de Tom em seu desenvolvimento, testemunho de uma trajetria

    que leva da primitiva interpretao espiritualizante dos ditos de Jesus ao

    reconhecimento pleno do potencial gnstico dessa compreenso de Jesus como mestre

    de sabedoria divina. E que O Dilogo do Salvador tem estreitas relaes com o

    Evangelho Joanino remetendo assim a uma origem sria do mesmo, datada no sculo

    I.19

    Aprofundaremos mais acuradamente esse tema adiante neste trabalho.

    Gabbatha = eivj to,pon lego,menon liqo,strwton( ~Ebrai?sti. de. Gabbaqa ;Golgotha junto a ao chamado Lugar da Caveira: Jo 19,17 = saiu e chegou ao chamado Lugar da Caveira, em hebraico chamado

    Golgotha = xh/lqen eivj to.n lego,menon Krani,ou To,pon( o] le,getai ~Ebrai?sti. Golgoqa. 17

    DODD, C. Historical Tradition in the Fourth Gospel, p. 423-432. Mais detalhes da teoria de C. Dodd

    encontra-se na obra de PONGUT, Silvestre. El Evangelio segn Juan. Cartas de San Juan, p. 32-37. 18

    KOESTER, Helmut. Ancient Christian Gospels: Their History and Development, p. 256-267. A

    descoberta da biblioteca de Nag Hammadi possibilitou o acesso a vrios escritos que auxiliam na

    reconstruo da evoluo dos ditos, discursos e dilogos que certamente circulavam na comunidade

    joanina e estiveram presentes nas fases iniciais da composio do texto do QE. Eis alguns exemplos:

    As palavras sobre a luz em Jo 11,9-10 e 12,35-36 encontram paralelo no Evangelho de Tom 24b. Jo

    8,52: Se algum guardar minha palavra, jamais provar a morte, uma variante do Evangelho de Tom e citado como dito de Jesus no Dilogo do Salvador 104 (147,18-20); Jo 16,24 (pedir receber alegrar-se) atestado como palavra de Jesus no Dilogo do Salvador 20 (129,14-16); a recompensa dos que no viram e, contudo creram (Jo 20,29) aparece no Apocryphon de Tiago 12,31-

    13,3. A afirmao dos discpulos de que Jesus est agora falando abertamente e no mais em

    parbolas (Jo 16,29) aparece como um dito de Jesus no Apocryphon de Tiago 17,1-6. O Evangelho de

    Tom, alm disso, apresenta vrios ditos de Jesus no estilo Eu, raros nos Evangelhos Sinticos, mas freqentes no QE. Cf. KOESTER, Helmut. Introduo ao Novo Testamento 2, p. 196.

    19 O Dilogo do Salvador um testemunho importante de uma discusso que o QE continua em seus

    dilogos e discursos. Em toda essa tradio de interpretao, Jesus lembrado como mestre de

    sabedoria que permanece vivo em suas palavras e que desafia seus discpulos a descobrirem em si

    mesmos como a verdade se tornou realidade em suas vidas. Somente no conhecimento do eu a

    revelao se torna efetiva, porque aqui os crentes se tornam iguais a Jesus, na medida em que

    alcanam o conhecimento de sua prpria origem e destino. Aqui esto as razes da teologia gnstica.

  • 29

    Voltando a Bultmann encontramos em sua obra a afirmao que o tema central

    de todo o QE a revelao. O Revelador vem terra para dizer uma coisa e uma s:

    que Ele o Revelador.20

    Bultmann v a mensagem central do QE como um convite

    f e no quer permitir que esta mensagem fique obstaculada pelos seus rudimentares

    equipamentos gnsticos. A f crist significa crer em Jesus Cristo e reduzir este ato de

    f a uma afirmao ou a uma srie de afirmaes significa faz-lo tornar-se

    irreconhecvel. Porque, depois de tudo, as palavras de Jesus no so afirmaes

    didticas, mas um convite ou uma chamada a uma deciso. A nica finalidade da

    vinda de Jesus sobre a terra, segundo Bultmann, a de revelar, de sinalizar a presena

    de Deus no mundo e de provocar uma adequada resposta humana.

    1.1.1 Teorias sobre as fontes literrias do Quarto Evangelho

    Com relao s fontes literrias do QE Bultmann apresenta basicamente trs

    fontes que serviram de suporte para a redao do Evangelho: dos Sinais (Semeia-

    Quelle), dos discursos de revelao, o relato da Paixo e da Ressurreio. O autor

    percebe que na fonte dos sinais o incio se d no captulo 2,11 (Esse incio dos sinais,

    Jesus o fez em Can da Galilia...) e 4,54 (Foi esse o segundo sinal que Jesus fez ao

    voltar da Judia para a Galilia). Tambm outros textos serviram para fundamentar

    as afirmaes de Bultmann: (2,18.23; 3,2; 6,2; 7,31; 9,16; 11,47; 12,18.37; 20,30).

    Dessa maneira o evangelista teria selecionado um nmero de milagres realizados por

    Jesus: (2,1-12; 4,46-54; 5,1-9; 6,1-25; 9,1-7; 11,1-44) presente na fonte, juntamente

    com algumas narraes. E o texto 1,35-49 poderia ser o que introduziria a fonte dos

    Paulo reconheceu isso em sua exposio em 1 Corntios, e o autor do QE precisou entender-se com

    essa tendncia gnstica da interpretao dos ditos de Jesus. Cf. KOESTER, Helmut. Introduo ao

    Novo Testamento. Histria e Literatura do cristianismo primitivo, p. 169-171. 20

    Para compreender melhor a posio de Bultmann preciso fazer, segundo Ashton, a distino que faz

    entre f e religio. A religio encadeada na terra; a f vaga livremente. A religio o objeto prprio

    do estudo histrico; a f uma questo teolgica.

  • 30

    sinais. Bultmann acredita que foi a partir da fonte dos discursos de revelao que o

    evangelista desenvolveu sua pregao. O texto primitivo, fruto do pensamento

    gnstico oriental, foi modificado com uma conotao crist, colocado na boca de

    Jesus de forma cristianizada e desmitologizada.21

    Diz tambm que o autor pertencera a

    um grupo gnstico de discpulos de Joo Batista e depois se convertera ao

    cristianismo e que as grandes influncias semticas no Evangelho se explicam mais

    pelo uso das fontes do que pelo grego do evangelista. Finalmente, Bultmann postula a

    interveno de um redator eclesistico. A sua influncia foi de carter literrio e

    teolgico; introduziu uma ordem prpria ao material deixado pelo evangelista. Porm,

    a influncia teolgica foi mais importante: agregou referncias aos sacramentos (ao

    batismo: gua em 3,5; a eucaristia em 6,51-58; ao batismo e a eucaristia em 19,34-35),

    a escatologia final nas passagens como 5,28-29 e 12,4-8. No que se refere aos dados

    histricos, procurou harmoniz-los com os dados dos Sinticos.

    Marie-mile Boismard tem sua prpria hiptese das fontes literrias do QE.

    Apresenta-a dividindo-a em quatro etapas redacionais, com a interveno de trs

    autores (JoI, JoIIA, JoIIB, JoIII). Boismard aplicou quatro critrios para separar seu

    procedimento: 1) as adies em forma de glosa, correo ou ratificao; 2) as

    duplicaes ou repetio de contedos; 3) textos aparentemente deslocados de seus

    contextos de origem; 4) textos estilisticamente semelhantes, com base numa lista de

    mais de 400 caractersticas de estilo. O autor descobriu como resultado da primeira

    etapa de redao um evangelho inteiro, semelhante aos Sinticos, tendo a parte os

    discursos prprios do QE. Sua segunda fase redacional teria sido realizada pelo

    presbtero Joo, autor das Cartas, com o acrscimo de passagens sinticas e de alguns

    discursos de Jesus. Na terceira etapa, o evangelista teria efetuado a organizao do

    21

    BROWN, Raymond. The Gospel according to John (I - XII), p. 31.

  • 31

    Evangelho a partir do ano judaico, alm de revelar certa influncia de Qumran. A

    quarta etapa poderia ser atribuda a outro autor, o qual teria acrescentado as glosas e

    invertido algumas passagens do texto.22

    A grande contribuio de Boismard foi a de

    realizar uma minuciosa e acurada crtica literria, o que estimulou e at facilitou o

    estudo da histria das origens da comunidade joanina.

    Rudolf Schnackenburg, outro pesquisador joanino, no considera a teoria

    bultmaniana convincente no seu todo, mas admite a probabilidade do QE ter se

    utilizado da fonte de sinais escrita. O autor do QE utilizou da tradio e fontes orais

    de forma livre e soberana. H um primeiro estgio da tradio e depois foram

    incorporados novos textos por um redator final. Este encontrou uma mltipla tradio

    e foi formando lentamente seu evangelho sem que tenha chegado a dar uma concluso

    definitiva. Entre as tradies que o evangelista foi elaborando, se podem reconhecer

    somente com dificuldades fontes escritas. A utilizao direta dos Sinticos no

    pensvel; s se pode pensar em um conhecimento parcial da tradio sintica. Para a

    tradio prpria ele utilizou de narraes orais, de originalidade independente e

    procedentes de informao muito antiga (os logia, por exemplo). Em algumas

    passagens Schnackenburg admite elementos prprios da liturgia e do Kerygma.23

    22

    BOISMARD, Marie-mile. Lvangile de Jean. Sinopse des quatre vangiles, vol. 3, 1977. 23

    Cf. SCHNACKENBURG. Rudolf. Il Vangelo di Giovanni I, p. 93-102. Schnackenburg, na sua

    pesquisa, faz ainda um peculiar comentrio s origens do QE dizendo que um trabalho de

    sincretismo, no qual os componentes helensticos e gnsticos no podem ser eliminados. Segundo o

    autor, torna-se extremamente difcil encarnar o QE a uma rea bem definida e a um ambiente claramente reconhecvel. Porque a inteira cultura do evangelista era sincretista, e a metade oriental do

    Imprio Romano, a nica metade em questo com lugar de origem do QE, contm diversas regies e

    cidades similares: Sria e Antioquia, sia Menor e feso, Egito e Alexandria. O problema

    ulteriormente complicado quando iniciamos a distinguir o ambiente do autor, o mbito intelectual do

    lugar de origem, e talvez tambm as fases do desenvolvimento do mesmo trabalho. Cf. ASTHON,

    John, Comprendere il Quarto Vangelo, p. 103. Queremos esclarecer que para ns, o autor do QE tinha

    um projeto, uma lgica e ordenou seus escritos, seus ou recolhidos, mas tambm recebeu influncia do

    ambiente e da cultura que o circundava no seu momento histrico. Ele no somente um simples

    compilador, mas respondia s necessidades e desafios da comunidade no lugar e na situao em que se

    encontravam. H no QE uma unidade estilstica e temtica, como demonstraremos mais adiante.

  • 32

    Raymond Brown apresenta sua teoria sobre a formao do QE resumindo-as em

    cinco etapas e ligando-as com a situao e problemticas vividas pela comunidade. A

    primeira etapa descrita com a existncia de materiais independentes das tradies

    sinticas que traziam atos e ditos de Jesus; a segunda etapa os materiais com relatos

    sobre palavras de Jesus que so desenvolvidos em meio comunidade atravs da

    pregao e do ensino oral; a terceira etapa trata a primeira redao do Evangelho a

    partir da organizao dos materiais j citados (provavelmente tal reao j fora em

    grego e no em aramaico). A quarta etapa mostra que uma nova redao feita diante

    de problemas surgidos na comunidade, adaptando os textos para os novos objetivos e

    interesses; quinta etapa a redao final feita por um redator que no o evangelista.

    Tal redao acrescentou textos da tradio joanina.24

    J. L. Martyn tambm apresentou sua teoria sobre a composio literria do QE.

    Segundo John Ashton, a obra de J. L. Martyn (History and Theology in the Fourth

    Gospel) provavelmente a mais importante e relevante monografia sobre o Evangelho

    joanino depois do comentrio de Bultmann. Martyn fundamenta sua teoria em trs

    fases: 1) nesta fase inicial, a comunidade joanina (de judeus convertidos), vive e age

    em um ambiente e em uma situao judaicos (a Sinagoga), e caracteriza-se pela

    apresentao da tradio sobre Jesus em forma de homilias. Um dos pregadores

    recolheu as tradies e homilias sobre Jesus e elaborou um primeiro texto (esboo) do

    evangelho; 2) nesta segunda fase acontece uma grave tenso entre os que acreditam

    em Jesus e os judeus (fariseus) e d-se uma ruptura. Tal rompimento conduz

    perseguio e at a execuo de alguns membros da comunidade crist seguidora de

    Jesus por parte das autoridades da sinagoga. Nesta situao, a comunidade forada a

    reformular suas concepes sobre Jesus. Usam ento do dualismo para apresentar

    24

    BROWN, Raymond. El Evangelio segn Juan I XII, p. 36-42.

  • 33

    Jesus: Aquele que vem do alto (3,31), desprezado pelos seus (1,11), quem O aceita

    odiado pelo mundo (17,14.16), os que nEle crem so chamados de verdadeiros

    israelitas e no mais judeus (1,47); 3) a terceira fase caracterizada pela tenso entre a

    comunidade joanina e outros grupos afins. Pelo menos quatro grupos: a sinagoga dos

    judeus, judeus a que procuram serem fiis a Jesus, a mesma comunidade joanina e

    outras comunidades de cristos influenciados pelo judasmo.

    1.1.2 As origens histricas do QE (fases da redao)

    Podemos considerar J. L. Martyn um que mais contribuiu na pesquisa joanina

    com suas observaes sobre a correlao entre a histria literria do QE e a histria da

    comunidade.25

    Diz Martyn que o QE narra a histria de um evento real na vida da

    comunidade de tal modo que pode ser visto como uma reconstruo de um episdio

    no ministrio de Jesus. Inicia com o captulo 9 (a cura do cego mendicante), que

    plausivelmente constri um drama. Todos os principais protagonistas, compreendido

    Jesus, tem as prprias analogias na experincia da comunidade: o cego mendicante

    um convertido cristo, O Sindrio o conselho local judaico; Jesus um profeta do

    ltimo dia que fala em seu nome. Os pais do cego so membros da comunidade

    joanina.

    Tantos outros autores se debruaram para descobrir as razes histricas e

    literrias da comunidade onde nasceu o QE. Cada um deu sua contribuio cientfica e

    vlida. Snen Vidal outro autor, mais recente, que conseguiu sintetizar vrios

    estudos (como as de Bultmann, Wengst, Brown, Culmann, Boismard) e harmoniz-los

    25

    Cf. TUI, Jos-Oriol. Escritos Joaninos e Cartas Catlicas, p. 123-125; ASHTON, John.

    Comprendere il Quarto Vangelo, p. 113-115.

  • 34

    na sua teoria. Segundo Vidal,26

    as tradies bsicas (TB) consistiriam em textos de

    origem diversas, relativos a aes/ditos de Jesus; so os textos mais primitivos e,

    portanto, mais prximos do Jesus Histrico, e que esto na base dos demais

    Evangelhos. Nesta base esto os relatos sobre Jesus e sobre Joo Batista (1,19-33;

    1,37-49; 3,23-30), tendo uma clara inteno apologtica; assim tambm o relato

    independente da converso dos samaritanos em Sicar (4,5-41). A estes foi

    acrescentada certa coleo de milagres, que transparece em Marcos, bem como os

    relatos da Paixo, fonte comum tambm aos Sinticos.

    Para Vidal o primeiro escrito do QE seria o texto surgido do trabalho redacional

    inicial, no qual foram unidas as tradies bsicas (relatos sobre Joo Batista, de

    milagres, da paixo), na forma de uma histria da paixo de Jesus, mas com a inteno

    de ser uma etiologia da comunidade joanina (E1). A trajetria do Jesus joanino lida

    como reflexo da trajetria histrica da comunidade joanina. E seu contexto scio-

    histrico seria, portanto o do conflito com as autoridades farisaicas e a expulso da

    sinagoga nos anos 80. Assim teria nascido o segundo Evangelho com a releitura dos

    primeiros escritos sob nova tica (E2). Isto teria acontecido provavelmente na dcada

    de 90 100, marcada por grandes perseguies aos cristos em geral. Em seguida

    nova edio teria sido feita pela comunidade joanina (E3) com novas glosas ao longo

    do texto e o cap. 21. A comunidade atravessava um processo de institucionalizao

    apostlica. H um grande esforo com relao tica do amor fraterno e a expectativa

    pelos acontecimentos escatolgicos futuros. Vidal conclui dizendo que o QE foi

    escrito por vrias pessoas num largo espao de tempo entre uma redao e outra,

    possivelmente unidos em torno de uma mesma tradio ligada ao discpulo amado.

    26

    Teoria presente nas pginas de 13 a 40 do livro de VIDAL, Senn. Los escritos originales de la

    comunidad del discpulo amigo de Jess.

  • 35

    A investigao sobre as fases da redao do QE conseguiu aprofundar e

    conhecer melhor seus processos. A crtica literria (anlises estilsticas) ofereceu a

    possibilidade de delimitar os diversos documentos dentro de uma mesma obra ou

    dentro de uma determinada tradio. Distinguiram-se no QE diversos nveis literrios,

    como vimos antes nas numerosas passagens que no parecem suficientemente

    pertinentes a seu contexto atual. Isso tudo levou a concluir que vrias aporias so

    presentes no texto e indicam fases histricas literrias na sua composio. Uma escola

    joanina, isto , um grupo-autor foi elaborando o texto na base de releituras constantes

    e que so constatveis, inclusive, na forma literria do prprio texto, como

    provaremos mais adiante, na nossa percope 8,31-49. A obra literria foi elaborada

    lentamente numa tradio oral a partir de necessidades catequticas, apologticas,

    missionrias, de busca de identidade.27

    Descobriu-se tambm que o QE tem uma peculiaridade, a qual no pode vir do

    cristianismo primitivo ou somente de uma tradio oral; deve ter surgido de outro

    meio cultural. Tal meio que proporciona um documento base que vai ser o ncleo da

    apresentao da pessoa de Jesus. Trata-se de um conjunto de discursos de um

    revelador gnstico, que seria utilizado como base e, depois, constituiria o centro da

    cristologia do QE. Para os textos narrativos, Bultmann prope como vimos

    anteriormente, uma Semeia Quelle (fonte literria dos sinais); para o relato da Paixo,

    outra fonte. Contudo, para Bultmann, o ponto central do desenvolvimento do QE

    constitui-se pelo conjunto dos discursos de revelao. Passou-se ento, aps

    Bultmann, a novas pesquisas e avanos: do autor histria da literatura joanina e aos

    diversos momentos dessa histria como contexto social da comunidade (Sitz im

    Leben), aonde vo surgindo os diversos nveis que compem o Evangelho.

    27

    RUBEAUX, Francisco. As razes do Quarto Evangelho. In RIBLA 22, p. 64.

  • 36

    Comearam a aparecer novas hipteses sobre as etapas que marcam a progressiva

    redao do QE. Quanto ao lugar que ocupa no cristianismo primitivo temos o estudo

    de E. Ksemann, discpulo de Bultmann. A questo gnstica continua crescendo como

    objeto de aprofundamento e novas descobertas. Como tambm exegetas que escrevem

    sobre um sincretismo geral existente na poca da comunidade joanina. Conclui-se que

    o QE surgiu num contexto judaico, numa comunidade judeu-crist, marcada por uma

    forte polmica com uma ou vrias determinadas formas de interpretar o judasmo e a

    pessoa de Jesus Cristo.

    Podemos dizer ainda que aps a descoberta dos manuscritos de Qumran e os

    estudos comparativos com a literatura do QE, nota-se sempre mais uma aproximao e

    at, certa influncia. O aprofundamento desse estudo vai conquistando novos espaos

    e pesquisadores e se afirmando como literatura paralela e contempornea

    comunidade joanina, como tambm forma de pensar e de estruturar a mensagem.

    Aprofunda-se tambm a relao do QE com as chamadas cartas joaninas.28

    Veremos

    no ponto seguinte justamente o contexto no qual surgiu a composio do QE.

    1.2 A comunidade joanina e o seu ambiente scio-poltico-cultural-

    religioso no I sculo d. C.

    O QE produto literrio do seu tempo e do seu espao. O autor quer narrar a

    vida, morte, ressurreio e ensinamentos de Jesus segundo e direcionado s realidades

    e necessidades do seu lugar e momento histrico. A mensagem do evangelista ,

    portanto, influenciada e moldada pela situao em que sua comunidade vive. Por que

    o autor escreveu esta narrativa de determinada maneira? Por que incluiu certos fatos?

    28

    TUI, Jos-Oriol, Escritos Joaninos e Cartas Catlicas, p. 138-145.

  • 37

    Por que omitiu outros? Encontramos as respostas a estas perguntas ao examinarmos o

    contexto social, poltico, cultural, religioso da comunidade joanina. o conhecimento

    deste contexto que nos ajudar a entender melhor a natureza e o sentido do Jesus do

    autor joanino. Inclusive entenderemos melhor por que escreveu em 20,31: Esses foram

    escritos para crerdes que Jesus o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo,

    tenhais vida em seu nome.

    Primeiro, num contexto mais amplo, precisamos compreender o contexto

    histrico e poltico no qual deve ser investigado o QE. O livro foi escrito no final do

    sculo I do Imprio Romano. Augusto (antes Otaviano), filho adotivo de Jlio Csar,

    tornou-se primeiro imperador romano depois do colapso da repblica romana e da

    suposta cessao das guerras civis que dominaram a vida e a poltica durante pelo

    menos a segunda metade do sculo I a.C. Nesse perodo, portanto, que nasceu Jesus

    e viveu a comunidade joanina. Do ponto de vista de Roma e das poucas autoridades

    romanas do sculo I que teriam ouvido falar deste grupo, Jesus e os movimentos

    subseqentes reunidos em torno dele eram grupos judaicos do Oriente. Para Roma,

    escreve A. Overman, os movimentos de Jesus faziam parte do imprio do Oriente.

    Estavam entre os povos, lnguas e culturas diferentes com os quais Roma entrou em

    conflito a partir do fim do sculo II a.C. os seguidores de Jesus e as comunidades a ele

    congregadas viviam na fronteira do Imprio. O Oriente crescia em importncia

    econmica e poltica para Roma.29

    29

    Andrew Overman diz que um exemplo desse crescimento se v na carreira e nas realizaes de

    Pompeu, o Grande, que, se dizia, pacificou o Oriente, reorganizou-o administrativamente, f-lo seguro

    para comrcio e viagens e governou terras orientais to longnquas quanto o rio Eufrates para a rbita

    e o controle de Roma. Cf. OVERMAN, Andrew J. Igreja e Comunidade em crise, p. 16.

  • 38

    1.2.1. A diversidade de grupos e movimentos (cristianismos)

    Desse contexto histrico-poltico maior vamos ao menor e mais especfico.

    Perguntamo-nos como era a situao cultural, religiosa e social antes e aps a guerra

    dos judeus na Palestina do I sculo d.C. Sabemos que o perodo que se seguiu

    guerra judaica de 66-70 d.C. foi decisivo para a formao da simblica religiosa que

    recriaria o judasmo (javismo) e as novas formas de cristianismo. As recentes

    pesquisas exegticas dialogam com as cincias sociais, (como a antropologia cultural,

    a sociologia, a psicologia, a lingstica) para descobrir e compreender mais a fundo as

    estruturas existentes na poca da comunidade joanina, que condicionaram sua atuao.

    A identidade da comunidade do QE foi um processo que lentamente se organizou no

    confronto e dilogo com tantas foras contrrias e em mudana.30 Elaine Pagels

    chega a afirmar que os documentos encontrados em Nag Hammadi foram escondidos,

    enterrados nos penhascos, porque seriam parte (causa, reflexo) de uma disputa crtica

    na formao do incio do cristianismo. O que nos faz reconhecer que nos primrdios

    do cristianismo existia diversidade de textos, opinies, concepes, grupos. As foras

    existentes nos grupos de ento, segundo Pagels, desempenharam um papel

    predominante na rejeio de outros pontos de vista como herticos e na uniformizao

    da verdade, ou da ortodoxia, como no caso da tradio catlica que se

    institucionalizou radicalmente insistindo que s poderia haver uma nica igreja e fora

    dela, no h salvao.31 Apenas os membros desta igreja so os cristos ortodoxos

    (do pensamento correto). Quem quer que desafiasse o consenso, argumentando a

    favor de outras formas de ensinamento cristo, era declarado herege e expulso. Assim,

    neste seguimento, quando os ortodoxos obtiveram apoio militar, algum tempo depois

    30

    R. Brown pesquisou profundamente a histria da comunidade joanina. Ele mostra a evoluo e as etapas na formao da comunidade no seu livro A comunidade do Discpulo Amado (1979).

    31 Atribui-se a Ireneu de Lio a frase Extra ecclesiam nulla salus, contudo no existe uma comprovao

    histrica e documentria que realmente seja ele mesmo o autor desta frase.

  • 39

    de o imperador Constantino tornar-se cristo no sculo IV, o castigo para quem se

    desviasse do pensamento correto (da ortodoxia), era a classificao de heresia e a

    excluso da comunho.32

    Aprofundaremos isso mais adiante.33

    Continuemos a

    verificar como foi o surgimento desta diversidade de grupos e dos conflitos nos incios

    do cristianismo primitivo.

    Os anos que se seguiram mais ou menos 30 at o final do sculo I definiram

    as estratgias das expresses e formas religiosas (diversas) subsistentes. A guerra

    ocasionou o desaparecimento de muitas seitas e movimentos menores, mesmo que

    alguns elementos de escritos apocalpticos subsistiram numa nova dispora. Os

    zelotas, derrotados militarmente, saem de cena, embora alguns focos de resistncia

    armada judia ainda continuem se manifestando at 135; mas no temos confirmaes

    documentrias ou histricas de que exista continuidade dos zelotas para estas novas

    revoltas. Com o Templo destrudo e a funo sacerdotal acabada fundamentos do

    poder, os saduceus desapareceram definitivamente. Os essnios, retirados no deserto

    de Jud, talvez participaram da guerra, mas foram destrudos, todavia deixaram um

    legado de escritos nas grutas de Qumran. Os samaritanos submergem na histria como

    um grupo menor e permanecem at os dias de hoje sem muita expresso. Os fariseus

    so os nicos que se estabelecem e se fortalecem depois do 70-ps guerra como um

    movimento que d maior importncia piedade e ao amor Torah. Nasce o judasmo

    32

    Cf. PAGELS, Elaine, Os Evangelhos Gnsticos, xviii-xxi. 33

    Como exemplo desta questo na poca em relao ao QE, cito Ireneu de Lio que escreveu a

    Heraclio, o qual j se tinha apropriado deste evangelho, interpretando-o dentro do sistema teolgico gnstico: Tu, carssimo, nos tinhas pedido que expusssemos as doutrinas secretas dos discpulos de Valentim, e mostrssemos as divergncias que h entre eles e os refutssemos. Mas, se para a simples

    exposio foi suficiente um livro, foram necessrios vrios para a refutao. (...) Neste terceiro livro

    aduziremos as provas tiradas das Escrituras para te fornecer argumentos oportunos para refutar

    completamente todos os que de qualquer forma ensinam a mentira. IRENEU DE LIO, Contra as heresias, Livro III, p. 245. Parece que inicialmente os cristos de tendncia gnstica aceitavam mais

    facilmente o QE do que os cristos no-gnsticos. Diante disso era preciso garantir sua ortodoxia.

  • 40

    formativo34 em Jmnia por volta do ano 90 que significa a nova imagem e identidade

    do judasmo.35

    Nesse lugar acontece um snodo que define o cnon da Bblia hebraica

    e exclui quem no se enquadra nas suas novas regras fixadas. Podemos dizer que o

    rabinado quem comanda e institucionaliza o judasmo conseguindo se impor tambm

    fora da Palestina, na dispora.36

    Com o passar do tempo surge a Mishnah e o Talmude,

    produtos dessa nova religiosidade e interpretaes dos rabis fariseus.37

    nesse

    contexto que o cristianismo tenta afirmar-se, num movimento que tenta se impor, em

    meio a uma pluralidade judaica de movimentos e expresses que tornam cena.38

    Assim escreve Paulo R. Garcia:

    O perodo que cerca o movimento de Jesus em especial do

    segundo sculo a.C. at o segundo sculo d. C pode ser

    considerado como um perodo de uma riqueza e, ao mesmo

    tempo, de uma conflitividade sem par na histria do judasmo

    e da cultura israelita-judaica.39

    Podemos dizer que o cristianismo luta para se afirmar no somente diante do

    desafio da nova configurao judaico-farisaica, mas tambm diante de outros

    34

    Este termo judasmo formativo de uso comum atualmente entre os estudiosos do judasmo e foi criado por Jacob Neusner, dedicado especificamente ao aprofundamento do judasmo antigo. Neusner

    entende por judasmo formativo o perodo que comea com o a elaborao da Mishnah no 2 sculo depois de Cristo at a composio final do Talmud no 6 sculo depois de Cristo.

    35 Seguimos neste trabalho exatamente esta compreenso de judasmo formativo que defendida na tese

    do Prof. Paulo Roberto Garcia (Tese doutoral O Sbado do Senhor teu Deus. O Evangelho de Mateus

    no Espectro dos Movimentos Judaicos do I Sculo, p. 44-49). Na perspectiva da sua proposta tambm

    aceitamos aqui esta definio, mesmo com crticas a NEUSNER, pois consideramos tardio demais o

    nascimento deste tipo de judasmo. Ele nasceu bem antes do perodo que Jacob Neusner estabelece. 36

    Pierre Grelot, um estudioso do judasmo da poca de Jesus, diz que a reforma que os doutores fariseus

    ou mais exatamente, os da escola de Hillel ali operaram, foi recebida em toda parte sem contestao, tanto no Egito de lngua grega como na Mesopotmia de lngua aramaica, onda as

    comunidades judaicas eram numerosas e muito florescentes. A academia de Jmnia foi acrescida de

    um tribunal (Beth dn) que herdou, por fora das circunstncias, uma parte dos poderes outrora

    confiado ao Sindrio. Cf. GRELOT, P. A Esperana Messinica no Tempo de Jesus, p. 142. 37

    NEUSNER, J. The formation of Rabbinic Judaism: Yavneh form A.D. 70-100, ANWR II., 19.2, p.3-42. 38

    Paulo R. Garcia escreve que o judasmo formativo escondeu muitas tradies que reapareceram na mstica judaica novamente depois de 4 sculos. Muitos movimentos e grupos conservaram suas

    memrias mesmo depois da destruio do Templo em 70 d.C. Cf. GARCIA, Paulo Roberto. Jesus, um

    Galileu frente a Jerusalm: Um olhar histrico sobre Jesus e os Judasmos de seu tempo, p. 264. 39

    Id., p. 266.

  • 41

    cristianismos. Como escreve Nstor O. Mguez em seu artigo,40 comunidades crists

    se formaram e se fortalecem antes da guerra. Algumas se dispersaram e buscaram

    refgio em aldeias crists da Galilia e do sul da Sria. Certamente por ali encontraram

    outras fontes literrias e entraram em contato com outras expresses de cristianismos.

    Tudo isso influenciou e determinou o rumo das comunidades crists primitivas e os

    textos que da surgiram. Para ns interessa descrever as origens da comunidade que

    chamamos de joanina por ter Joo, o discpulo amado de Jesus, como seu fundador.

    O movimento de Jesus, continua Paulo R. Garcia, teve grande impulso,

    conforme o evangelista Lucas, no dia de Pentecostes (At 2,1-36), o anncio da Boa-

    Nova comeou com ardor e vigor seguindo a ordem dada por Jesus de evangelizar nas

    sinagogas da Galilia (Mc 1,14) depois da Ressurreio (Mc 14,28; 16,7; Mt 28,10).

    Esta primeira etapa do anncio da Boa-Nova do Reino entre os judeus (dos anos 30 a

    40), segundo Carlos Mesters e Francisco Orofino, termina com a crise provocada pela

    poltica do imperador Calgula (37-41) e pela perseguio dos cristos por parte do

    rei Herodes Agripa (41-44).41 Estas primeiras comunidades, antes e depois da morte

    de Jesus, eram sustentadas e animadas por missionrios ambulantes (Mt 10,8; Lc

    10,9). O crescimento, tanto geogrfico como numrico, obrigou estas comunidades a

    se organizarem com novas lideranas (At 6,2-6; cf. Lc 9,1-6; 10, 1-9.17-24; Mt 10,5-

    15; Mc 6,7-13).

    J nesta primeira etapa, onde os evangelhos tm sua origem, aparecem

    divergncias. Num extremo havia o grupo ao redor de Estvo, ligados aos judeus da

    dispora (leitura da Bblia para incultur-la no mundo helenista) e no outro, havia o

    40

    MGUEZ, Nestor O. Contexto sociocultural da Palestina. In: RIBLA 22, p. 32. 41

    MESTERS, Carlos e OROFINO, Francisco. As primeiras comunidades crists dentro da conjuntura da

    poca As etapas da histria, do ano 30 ao ano 70. In: RIBLA 22, p. 35.

  • 42

    grupo dos judeus ligado aos escribas e fariseus de Jerusalm (defendiam a fidelidade

    estrita lei de Moiss e Tradio dos Antigos Mc 7,5; Gl 1,14). Entre estes dois

    extremos existem outros grupos: alguns ligados s comunidades da Galilia (cf. Mc

    16,7; 14,28), outros ligados a Tiago e aos irmos de Jesus (cf. Mc 3,31-34; Gl 1,19;

    2,9; At 12,17; 21,28), outros ainda aos samaritanos (cf. Jo 4,39-42). Esta variedade de

    grupos e tendncias revela a riqueza da vivncia da Boa-Nova do Reino, mas tambm

    mostra que existiam conflitos e tenses que se acentuavam cada vez mais.

    1.2.2 A situao poltica-cultural-social da Palestina no I sculo

    A conjuntura poltica na Palestina tomou propores graves durante o governo

    do Imperador Calgula. Muitas revoltas e levantes aconteceram entre os judeus nesse

    perodo. O sentimento anti-romano cresceu perigosamente fazendo ressurgir novos

    movimentos nacionalistas. A rebelio contra Roma foi se fortalecendo. O Zelo pela

    Lei e pelo Templo aumentou. Os zelotas se organizaram e movimentos messinicos

    surgiram. Essa nova conjuntura poltica e social repercutiu, logicamente, nas

    comunidades crists que, por causa disso, iniciaram misses para fora da Palestina

    (sia Menor, Grcia e Itlia).42

    No ano de 68 com o imperador Nero surgem novas

    revoltas e at golpes militares. Vespasiano enfim vence e assume o poder romano e

    seu filho Tito destri o Templo de Jerusalm em 70. A estas alturas os apstolos da

    primeira gerao j morreram e as comunidades crists entram numa nova fase. Novas

    perseguies aos cristos dilaceram as comunidades e isso tudo coloca em crise a

    identidade de muitos grupos. Nesse contexto, judeus e cristos se dividem mais

    radicalmente e se tornam inimigos, ao invs de se unirem para resistirem opresso

    romana. Depois do ano 70, muitas doutrinas e religies diferentes, tanto gnsticas

    42

    Id., p. 35-39.

  • 43

    como mistricas, comeam a invadir o Imprio Romano. Carlos Mesters e F. Orofino

    descrevem muito bem esta realidade plurirreligiosa que se vivia no final do I sculo:

    O que mais impressiona e chama a ateno nestes primeiros

    quarenta anos da histria das comunidades crists a

    diversidade de grupos, movimentos, tendncias e doutrinas.

    Parte dessa diversidade herana do judasmo: Fariseus (At

    15,5), Joanitas (19,1-7), Proslitos (At 13,43), Tementes a

    Deus (At 10,1; 18,7; 22,12), Samaritanos (At 8,5-6; Jo 4,39-

    40), movimentos messinicos (Mt 24,4-5.23-24), os falsos

    irmos (Gl 2,4; 2Cor 11,26), os chamados Balaamitas (Ap

    2,14), desconhecidos para ns, e outros. Parte vem da origem

    diversificada de pessoas e lugares; comunidades fundadas por

    Jesus na Galilia, outras fundadas por Paulo, Apolo, Pedro ou

    Cefas (1Cor 1,12), outras ligadas a Joo, a Tiago (At 12,9;

    21,18; Gl 1,19; 2,9) e aos irmos de Jesus (cf. Mc 3,31-35).

    Outra parte fruto da insero no mundo helenista e da

    assimilao da sua cultura na vida das comunidades:

    Nicolatas (Ap 2,6), Gnsticos (Cl 2,16-19). No fcil

    reconstruir o iderio exato de todos estes movimentos e

    grupos. Uns so aceitos com naturalidade, outros so

    condenados como herticos.43

    Encontramos nos Evangelhos sinais que demonstram essas divises e

    diversidade de grupos dentro das comunidades que produziram o texto. Notamos

    problemas internos e externos que precisam ser resolvidos, problemas teolgicos e

    culturais que precisam ser esclarecidos. No QE nota-se uma surpreendente quantidade

    de dados que oferecem a possibilidade de compor uma representao da natureza e da

    43

    Id., p. 43. Flavio Josefo, historiador judeu do sculo I d.C. descreve tambm muitas das escolas mais

    populares do judasmo de seu tempo: os essnios, em geral associados aos habitantes de Qumran e aos

    Manuscritos do mar Morto, os fariseus, os saduceus e um grupo revolucionrio, a quarta filosofia

    (Guerra Judaica II, 119-66; Antiguidades judaicas XVIII, 11-17). Alm desses, Josefo descreve

    alguns grupos menos oficiais, grupos populares que tambm alegavam ter tradies, heris e, acima

    de tudo, expectativas para Israel. Esses grupos eram variadamente classificados como bandidos,

    rebeldes, movimentos populares, sicrios ou mesmo zelotas. Outros grupos associados ao Templo,

    como os samaritanos e numerosos grupos apocalpticos no mencionados por Flvio Josefo. Cf.

    OVERMAN, Andrew J., Igreja e Comunidade em crise, p. 18-19.

  • 44

    histria da comunidade. Particularmente encontramos no captulo 8 do QE um

    declarado conflito entre Jesus e os judeus que reflete claramente o quanto a

    comunidade se enfrentava com grupos divergentes no seu seio e no seu trio, isto ,

    dentro dela e fora dela. Controvrsias teolgicas que ameaavam destruir e dilacerar a

    unidade da comunidade, pois na percope 8,31-59 chegam a violncia, levando

    excluso os que no aceitavam nem acreditavam em Jesus do jeito dos joaninos.44

    1.2.3 As razes e as idias da comunidade joanina neste contexto

    (Gnosticismo, Qumran, Judasmo, Seguidores de Joo Batista)

    As motivaes que encontramos no texto do QE so de defesa e afirmao na f

    em Jesus Cristo, como que proclamando veementemente isso aos contrariadores:

    Esses foram escritos para crerdes que Jesus o Cristo, o Filho de Deus, e para que,

    crendo, tenhais a vida em seu nome (20,30-31). Como adeso a uma pessoa, a f

    sujeita mudana, a evolues e aprofundamentos, uma atitude viva e dinmica.45

    Nota-se e sente-se nestes versculos a necessidade de confirmar a f dos membros da

    comunidade, talvez provados e abalados por doutrinas, idias, interpretaes

    diferentes e perigosas que tomam conta das comunidades e tornam difcil a confisso

    de f. Ora, somente na proclamao da f em Jesus, Cristo, Filho de Deus, que se

    pode encontrar a vida plena. Da verdade confessada na f em Jesus vida plena. Se

    algum se afastar da verdadeira f, tambm se afastar da fonte da verdadeira vida.46

    44

    R. Brown, no seu livro A Comunidade do Discpulo Amado, p. 74-95, identifica trs grupos que esto

    presentes na comunidade joanina: O primeiro seria aquele formado pelos que conseguiram se manter

    na sinagoga e no foram expulsos. Evitavam confessar publicamente que Jesus era o Cristo (cf. Jo

    9,20-22; 12,42). O segundo grupo seria composto por cristos reconhecidos publicamente, contudo

    tinham divergncias teolgicas doutrinrias que os cristos joaninos consideram inaceitveis (cf. Jo

    6,60-66). O terceiro grupo estaria representado pelos nomes da lista dos doze apstolos, exceto Judas

    Iscariotes (Pedro, Andr, Filipe, Tom, Judas e Natanael). O autor do QE parece insistir num contraste

    entre duas figuras paradigmticas dos discpulos de Jesus: Simo Pedro e o Discpulo Amado. 45

    Poucas vezes o autor do QE usa o substantivo f, usa mais o verbo crer (98 vezes). A atitude de crer uma exigncia fundamental para o seguidor de Jesus na comunidade joanina.

    46 RUBEAUX, Francisco. As razes do Quarto Evangelho. In: RIBLA 22, p. 65.

  • 45

    Portanto a comunidade precisa definir-se, decidir suas verdades. Diante da real

    ameaa de diviso se exige uma confirmao de f, uma carta de identidade.47

    As idias gnsticas circulavam entre os pensadores e se difundiam. No tinha

    sistematizao nem se constitua em movimento organizado, mas havia basicamente

    uma viso e idias que invadiram aos poucos as maneiras de pensar da poca.48

    A

    comunidade joanina provavelmente teve contato e recebeu influncia disto.49

    Deste

    pensamento gnstico baseado no dualismo grego de esprito e matria e na

    necessidade de se ter um intermedirio entre a humanidade e a divindade, surgem

    vrias teorias teolgicas e alguns grupos comeam tambm a querer reler o evento

    Jesus de Nazar com os conceitos prprios deste modo de pensar. possvel que a

    comunidade do QE quisesse expressar a mensagem evanglica num vocabulrio

    prprio aos gnsticos, mas, se o fez, foi para reforar diante da gnose as afirmaes de

    f como a criao, a redeno, que so obras do mesmo logos (Prlogo). A escola

    joanina insiste ainda na encarnao como realidade histrica e inseparvel da pessoa

    47

    Senn Vidal escreve que a concluso do QE (20,30-31) tinha uma inteno etiolgica, de

    justificao da f comunitria em Jesus como profeta messinico (no de tipo poltico) que era a

    confisso fundamental dos grupos joaninos dos primeiros tempos da comunidade. Cf. VIDAL, S., Los

    escritos originales de la comunidad, p. 18. 48

    Gnosticismo a viso de mundo baseada na experincia de Gnose, que tem por origem etimolgica o

    termo grego gnosis, que significa "conhecimento". Mas no um conhecimento racional, cientfico,

    filosfico, terico e emprico (a "episteme" dos gregos), mas de carter intuitivo e transcendental;

    Sabedoria. usada para designar um conhecimento profundo e superior do mundo e do homem, que

    d sentido vida humana, que a torna plena de significado porque permite o encontro do homem com

    sua essncia eterna, centelha divina, maravilhosa e crstica, pela via do corao. uma realidade

    vivente sempre ativa, que apenas compreendida quando experimentada e vivenciada. Assim sendo

    jamais pode ser assimilada de forma abstrata, intelectual e discursiva. 49

    Enfatizamos somente como as formas gnsticas de cristianismo interagem com o QE e o que isto nos diz sobre as origens do cristianismo sem considerar