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r índice Agradecimentos N . G. C. 9 Pontos de partida 11 DO PRIMITIVO AO POPULAR: TEORIAS SOBRE A DESIGUALDADE ENTRE AS CULTURAS O elogio dos " p r i m i t i v o s " c o m o negação da História 18 Relativismo c u l t u r a l o u crítica d a desigualdade? 22 A transnacionalização da cultura 25 Em direção a uma teoria da produção cultural 28 [Cultura, reprodução social e poderj (T4 A organização cotidiana da dominação] (Yh Tarefas da investigação n a América Latina (39) INTRODUÇÃO AO ESTUDO DAS CULTURAS POPULARES Definições d o popular: o romantismo, o positivismo e a ten- dência gramsciana 42 í^or que o artesanato e as festas^ 50 \As culturas populares em transformação: o caso tarasco^ 57 A PRODUÇÃO ARTESANAL COMO U M A N E C E S S I D A D E DO CAPITALISMO "Resolver" o problema do desemprego rural @ ) As necessidades contraditórias d o consumo^ 65 () i urismo o u a reconciliação do atraso com a beleza^. 66

CANCLINI, N. as Culturas Populares No Capitalismo

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Uma análise de Nestor Garcia Canclini sobre as culturas populares no sistema capitalista.

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r índice

A g r a d e c i m e n t o s — N . G. C. 9

P o n t o s d e p a r t i d a 1 1

D O P R I M I T I V O A O P O P U L A R : T E O R I A S S O B R E A D E S I G U A L D A D E

E N T R E A S C U L T U R A S

O e l o g i o d o s " p r i m i t i v o s " c o m o negação d a História 18 R e l a t i v i s m o c u l t u r a l o u crítica d a d e s i g u a l d a d e ? 2 2 A transnacionalização d a c u l t u r a 2 5 E m direção a u m a t e o r i a d a produção c u l t u r a l 2 8

[ C u l t u r a , reprodução s o c i a l e p o d e r j (T4 A organização c o t i d i a n a d a dominação] (Yh T a r e f a s d a investigação n a América L a t i n a (39)

I N T R O D U Ç Ã O A O E S T U D O D A S C U L T U R A S P O P U L A R E S

Definições d o p o p u l a r : o r o m a n t i s m o , o p o s i t i v i s m o e a t e n ­dência g r a m s c i a n a 4 2

í^or q u e o a r t e s a n a t o e a s f e s t a s ^ 5 0 \ A s c u l t u r a s p o p u l a r e s e m t ransformação: o c a s o t a r a s c o ^ 5 7

A P R O D U Ç Ã O A R T E S A N A L C O M O U M A N E C E S S I D A D E

D O C A P I T A L I S M O

" R e s o l v e r " o p r o b l e m a d o d e s e m p r e g o r u r a l @ ) A s n e c e s s i d a d e s contraditórias d o c o n s u m o ^ 6 5 ( ) i u r i s m o o u a reconciliação d o a t r a s o c o m a b e l e z a ^ . 6 6

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X N E S T O R GARCÍA C A N C L I N I

A ação político-ideológica d o E s t a d o 6 9 ÍA produção a r t e s a n a l c o m o u m a n e c e s s i d a d e d o c a p i t a l i s m o ? ? ] 7 1 r — -

A S O C I E D A D E F R A G M E N T A D A

R u p t u r a s e n t r e o económico e o simbólico 7 6 A fragmentação d o p r o c e s s o s o c i a l 8 2

] O s indivíduos s e p a r a d o s d a c o m u n i d a d e j 8 3 A unificação m e r c a n t i l : d o étnico a o típico 8 6

D O M E R C A D O À B O U T I Q U E : Q U A N D O A S PEÇAS D E A R T E S A N A T O E M I G R A M

O a r t e s a n a t o n a m o r a d i a indígena 9 2 F e i r a s e m e r c a d o s , v i t r i n a s d a " m o d e r n i z a ç ã o " c a m p o n e s a . . . 9 4 O a r t e s a n a t o n a c i d a d e : instruções p a r a o s e u " d e s u s o " 9 8 A l o j a d e a r t e s a n a t o 1 0 1 E n t r e a boutique e o m u s e u 1 0 4 N a habitação u r b a n a : a estética d o souvenir 1 0 6

t í i m direção a u m a política p o p u l a r n a utilização d o espaço L . u r b a n o 1 0 8

F E S T A E HISTÓRIA: C E L E B R A R , R E C O R D A R , V E N D E R

F e s t a s r u r a i s e espetáculos u r b a n o s 1 L 2 F e s t a c a m p o n e s a t r a d i c i o n a l 1 1 3

t F e s t a u r b a n a . , 1 1 3 P o r q u e não c h o v e o s s a n t o s serão c a r r e g a d o s d e c o s t a s 1 1 4 A f e s t a e m P a t a m b a n : peças d e a r t e s a n a t o efémeras, n e c e s ­

s i d a d e s crónicas 1 1 8 ^ 7 0 0 0 0 t u r i s t a s c r i a r a m e m J a n i t z i o u m a c u l t u r a fotogênicaJ, . . . 1 2 2 D e i x a r d e p e r g u n t a r s o b r e a m o r t e 1 2 5

i A f e s t a c o m o subversão r e s t r i t a . J 1 2 8

C O N C L U S Ã O : P O R U M A C U L T U R A P O P U L A R C O M M I N Ú S C U L A

A interpenetração d a s c u l t u r a s e a definição d o p o p u l a r 1 3 3 A r t e p o p u l a r , a r t e kitsch o u c u l t u r a p o p u l a r ? 1 3 5 Políticas c u l t u r a i s e autogestão: f u n d a m e n t o s e contradições . . 1 3 8

B i b l i o g r a f i a 1 4 5

Agradecimentos

E s t a investigação f o i r e a l i z a d a , e n t r e o s a n o s d e 1 9 7 7 e 1 9 8 0 , n a E s c o l a N a c i o n a l d e A n t r o p o l o g i a e História d o México, q u e p a t r o c i n o u o t r a b a l h o e f i n a n c i o u o s s e u s g a s t o s . C o l a b o r a r a m e m períodos d i s t i n t o s o s s e g u i n t e s a l u n o s : Tânia C a r r a s c o , A n a M a r i a C o f i f i o , S u s a n a F e r r u c c i , G r a c i a l m b e r t o n , Mónica M a l d o n a d o , E l i a N o r a M o r e t t i S a n c h e z , Letícia R i v e r m a r P e r e z , M a r i a R o c i o S u a r e z R e y e s , J a v i e r T e l l e z , Sónia T o l e d o T e l l o e Patrícia V a r a O r o z c o .

Q u e r o e x p r i m i r o m e u a g r a d e c i m e n t o às p e s s o a s q u e a j u d a ­r a m n a reflexão a r e s p e i t o d o s t e m a s q u e compõem e s t e l i v r o , e q u e s u g e r i r a m modificações n o m a n u s c r i t o : M a r t a D u j o v n e , C l a r i s a H a r d y , M a r i a E u g e n i a Módena, V i c t o r i a N o v e l o , M e r c e d e s O l i ­v e r a , D a n i e l P r i e t o e Mariángela R o d r i g u e z .

L e m b r a r o s artesãos, dançarinos, funcionários, v e n d e d o r e s e o s t u r i s t a s q u e m e o f e r e c e r a m informações o c u p a r i a várias páginas d e s t e l i v r o . T e n h o v o n t a d e d e m e n c i o n a r a l g u n s artesãos q u e m e t r a t a r a m d e m a n e i r a g e n e r o s a e até m e a l o j a r a m e m s u a s c a s a s , m a s s e r i a i n j u s t o s e l e c i o n a r a p e n a s a l g u n s n o m e s . Além d o m a i s , d e v i d o à indiferença c o m q u e o s artesãos t r a t a m a q u e l e s q u e o s o b r i g a m a c o l o c a r a s s u a s a s s i n a t u r a s n a s peças ( o q u e será m o s t r a d o n o capí­t u l o I V ) , s e i q u e e l e s e s p e r a m m e n o s e s t e r e c o n h e c i m e n t o i n d i v i ­d u a l d o q u e a difusão d o s e u p e n s a m e n t o e a compreensão e d e f e s a d o s e u t r a b a l h o .

N . G . C .

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Pontos de p a r t i d a

O q u e é a c u l t u r a p o p u l a r : criação espontânea d o p o v o , a s u a memória c o n v e r t i d a e m m e r c a d o r i a o u o espetáculo exótico d e u m a situação d e a t r a s o q u e a indústria v e m r e d u z i n d o a u m a c u r i o s i d a d e turística?

A solução romântica: i s o l a r o c r i a t i v o e o a r t e s a n a l , a b e l e z a e a s a b e d o r i a d o p o v o , i m a g i n a r d e m o d o s e n t i m e n t a l c o m u n i d a d e s p u r a s , s e m c o n t a t o c o m o d e s e n v o l v i m e n t o c a p i t a l i s t a , c o m o se a s c u l t u r a s p o p u l a r e s não f o s s e m o r e s u l t a d o d a absorção d a s i d e o ­l o g i a s d o m i n a n t e s e d a s contradições e n t r e a s próprias c l a s s e s o p r i ­m i d a s .

A estratégia d o m e r c a d o : e n x e r g a r o s p r o d u t o s d o p o v o m a s não a s p e s s o a s q u e o s p r o d u z e m , valorizá-los a p e n a s p e l o l u c r o q u e g e r a m , p e n s a r q u e o a r t e s a n a t o , a s f e s t a s e crenças " t r a d i c i o n a i s " são resíduos d e f o r m a s d e produção pré-capitalistas. O p o p u l a r é o o u t r o n o m e d o p r i m i t i v o : u m obstáculo a s e r s u p r i m i d o o u u m n o v o -rótulo p e r t e n c e n t e a m e r c a d o r i a s c a p a z e s d e a m p l i a r a s v e n d a s a c o n s u m i d o r e s d e s c o n t e n t e s c o m a produção e m série.

O q u e vê o t u r i s t a : e n f e i t e s p a r a c o m p r a r e d e c o r a r s e u a p a r ­t a m e n t o , cerimónias " s e l v a g e n s " , evidências d e q u e a s u a s o c i e ­d a d e é s u p e r i o r , símbolos d e v i a g e n s exóticas a l u g a r e s r e m o t o s , p o r t a n t o , d o s e u p o d e r a q u i s i t i v o . A c u l t u r a é t r a t a d a d e m o d o s e m e l h a n t e à n a t u r e z a : u m espetáculo. A s p r a i a s e n s o l a r a d a s e a s danças indígenas são v i s t a s d e m a n e i r a i g u a l . O p a s s a d o se m i s t u r a c o m o p r e s e n t e , a s p e s s o a s s i g n i f i c a m o m e s m o q u e a s p e d r a s : u m a cerimónia d o d i a d o s m o r t o s e u m a pirâmide m a i a são cenários a s e r e m f o t o g r a f a d o s .

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12 N E S T O R G A R C I A C A N C L 1 N I

E s t e l i v r o p r e t e n d e u m a compreensão g l o b a l d a s d i v e r s a s manifestações d a c u l t u r a p o p u l a r . U m a v e z q u e e s t a é d i s p e r s a , c o m p r e e n d e n d o o q u e o p o v o f a z , o q u e se v e n d e n o s m e r c a d o s e boutiques e o s espetáculos através d o s q u a i s o s m e i o s d e c o m u n i c a ­ção d e m a s s a t r a n s f i g u r a m a n o s s a v i d a c o t i d i a n a . E m v e z d e n o s a p e g a r m o s , c o m o n a f u g a romântica, a u m a a u t e n t i c i d a d e ilusória, t r a t a r e m o s d e e x p l i c a r p o r q u e o s índios p r o d u z e m c a d a v e z m a i s s u a s f e s t a s e a r t e s a n a t o p a r a o u t r o s , p a r a q u e s e j a m c o m p r a d o s e a d m i r a d o s . A f i m d e não r e d u z i r m o s a questão — c e n t r a l — d a mercantilização d a c u l t u r a , i n t e r r o g a m o s o s a s p e c t o s económicos e simbólicos d o s p r o d u t o s p o p u l a r e s , v e r i f i c a n d o o q u e se v e n d e e o q u e se d e s e j a . Também p r o c u r a m o s s a b e r c o m o se c o m p l e m e n t a m o s i g n i f i c a d o d o q u e o p o v o c r i a n u m a o f i c i n a a r t e s a n a l c o m o q u e u m a o u t r a p a r t e d o p o v o u s a n u m a habitação u r b a n a o u vê n u m t e l e v i s o r : u m a v e z q u e t o d a s a s manifestações d a c u l t u r a p o p u l a r o c o r r e m n o i n t e r i o r d o s i s t e m a c a p i t a l i s t a , d e v e - s e e n c o n t r a r u m a m a n e i r a d e compreendê-los j u n t o s .

A redefinição d o q u e é h o j e a c u l t u r a p o p u l a r r e q u e r u m a estratégia d e investigação q u e s e j a c a p a z d e a b r a n g e r t a n t o a p r o ­dução q u a n t o a circulação e o c o n s u m o . A compreensão d o porquê d a permanência e , i n c l u s i v e , d o a u m e n t o d a produção d e o b j e t o s a r t e s a n a i s e x i g e u m a indagação a r e s p e i t o d o s m o t i v o s q u e o s i s t e ­m a s o c i a l p o s s u i p a r a incentivá-la. A visão q u e r e d u z o a r t e s a n a t o a u m a coleção d e o b j e t o s e a c u l t u r a p o p u l a r a u m c o n j u n t o d e t r a d i ­ções d e v e s e r a b a n d o n a d a , b e m c o m o o i d e a l i s m o folclórico q u e p e n s a q u e é possível e x p l i c a r o s p r o d u t o s d o p o v o c o m o " e x p r e s ­s ã o " au tónoma d o s e u t e m p e r a m e n t o . O e n f o q u e m a i s f e c u n d o é a q u e l e q u e e n t e n d e a c u l t u r a c o m o u m i n s t r u m e n t o v o l t a d o p a r a a compreensão, reprodução e transformação d o s i s t e m a s o c i a l , a t r a ­vés d o q u a l é e l a b o r a d a e construída a h e g e m o n i a d e c a d a c l a s s e . D e a c o r d o c o m e s t a p e r s p e c t i v a , t r a t a r e m o s d e v e r a s c u l t u r a s d a s c l a s s e s p o p u l a r e s c o m o r e s u l t a d o d e u m a apropriação d e s i g u a l d o c a p i t a l c u l t u r a l , a elaboração específica d a s s u a s condições d e v i d a e a interação c o n f l i t u o s a c o m o s s e t o r e s hegemónicos.

E s t e e n f o q u e teórico e metodológico, q u e será d e s e n v o l v i d o n o s d o i s p r i m e i r o s capítulos, a r t i c u l a - s e e m t o r n o d a s s e g u i n t e s t e s e s :

1 . O c a p i t a l i s m o , s o b r e t u d o o c a p i t a l i s m o d e p e n d e n t e p o s ­s u i d o r d e f o r t e s raízes indígenas, e m s e u p r o c e s s o d e d e s e n ­v o l v i m e n t o não p r e c i s a s e m p r e e l i m i n a r a s c u l t u r a s p o p u -

A S C U L T U R A S P O P U L A R E S N O C A P I T A L I S M O 13

l a r e s ; a o contrário, e l e i n c l u s i v e se a p r o p r i a d e l a s , r e e s t r u -t u r a - a s , r e o r g a n i z a n d o o s i g n i f i c a d o e a função d o s s e u s o b j e t o s e d a s s u a s crenças e práticas. S e u s r e c u r s o s p r e f e r i ­d o s , c o m o será v i s t o n o capítulo I I I , são o r e o r d e n a m e n t o d a produção e d o c o n s u m o n o c a m p o e n a c i d a d e , a e x p a n ­são d o t u r i s m o e a presença d e políticas e s t a t a i s d e r e f u n -cionalização ideológica.

2 . C o m a f i n a l i d a d e d e i n t e g r a r a s c l a s s e s p o p u l a r e s a o d e s e n ­v o l v i m e n t o c a p i t a l i s t a , a s c l a s s e s d o m i n a n t e s d e s e s t r u -t u r a m — m e d i a n t e p r o c e d i m e n t o s d i s t i n t o s , m a s q u e são s u b o r d i n a d o s a u m a lógica c o m u m — a s c u l t u r a s étnicas, n a c i o n a i s e d e c l a s s e , r e o r g a n i z a n d o - a s n u m s i s t e m a u n i f i ­c a d o d e produção simbólica. É c o m e s t e i n t u i t o q u e s e p a ­r a m a b a s e económica d a s representações c u l t u r a i s , r o m ­p e m a u n i d a d e e n t r e a produção, a circulação e o c o n s u ­m o , b e m c o m o e n t r e o s indivíduos e a s u a c o m u n i d a d e . E n q u a n t o q u e , n u m s e g u n d o m o m e n t o , recompõem o s pedaços, s u b o r d i n a n d o - o s a u m a organização t r a n s n a c i o ­n a l d a c u l t u r a q u e é c o r r e l a t a à multinacionalização d o c a p i t a l . A n a l i s a r e m o s e s t e p r o c e s s o p o r intermédio d e u m a d a s s u a s p r i n c i p a i s operações: a redução d o étnico a o típico (capítulo I V ) .

M a s c o m o também t r a t a r e m o s d a s r e s p o s t a s q u e a s c o m u n i ­d a d e s t r a d i c i o n a i s e o s p o v o s mestiços o f e r e c e m d i a n t e d a situação d e dominação, o u s e j a , a s s u a s m a n e i r a s d e se a d a p t a r e m , r e s i s t i ­r e m o u e n c o n t r a r e m u m l u g a r p a r a s o b r e v i v e r , o o b j e t i v o último d o l i v r o é p r o p o r u m a interpretação d o s c o n f l i t o s i n t e r c u l t u r a i s n o c a p i t a l i s m o .

E s t a interpretação f o i s u r g i n d o a p a r t i r d e u m a p e s q u i s a a r e s p e i t o d a s mudanças n o a r t e s a n a t o e n a s f e s t a s p o p u l a r e s q u e r e a ­l i z a m o s n o c e n t r o d o México, e n t r e 1 9 7 7 e 1 9 8 0 , e m p o v o a d o s d a z o n a t a r a s c a d o e s t a d o d e Michoacán. P e s q u i s a m o s d u a s áreas q u e p o s s u e m u m a m e s m a o r i g e m étnica, m a s q u e a p r e s e n t a m u m d e s e n ­v o l v i m e n t o económico e c u l t u r a l d i f e r e n t e : 1 ) a área q u e m a r g e i a o l a g o d e Pátzcuaro , região f o r t e m e n t e i n t e g r a d a a o d e s e n v o l v i ­m e n t o c a p i t a l i s t a , a o t u r i s m o , às comunicações e à ação d o s o r g a ­n i s m o s o f i c i a i s ; 2 ) P a t a m b a n e O c u m i c h o , p e q u e n a s v i l a s d e o l e i r o s e a g r i c u l t o r e s d a s e r r a , q u e se o r g a n i z a m e m t o r n o d e u n i d a d e s domésticas d e produção, às q u a i s s e c h e g a p o r t r i l h a s , e q u e c o n ­t i n u a m f a l a n d o p a r c i a l m e n t e o t a r a s c o e mantêm f e s t a s e f e i r a s q u e

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12 N E S T O R GARCÍ A C A N C L I N I

E s t e l i v r o p r e t e n d e u m a compreensão g l o b a l d a s d i v e r s a s manifestações d a c u l t u r a p o p u l a r . U m a v e z q u e e s t a é d i s p e r s a , c o m p r e e n d e n d o o q u e o p o v o f a z , o q u e se v e n d e n o s m e r c a d o s e boutiques e o s espetáculos através d o s q u a i s o s m e i o s d e c o m u n i c a ­ção d e m a s s a t r a n s f i g u r a m a n o s s a v i d a c o t i d i a n a . E m v e z d e n o s a p e g a r m o s , c o m o n a f u g a romântica, a u m a a u t e n t i c i d a d e ilusória, t r a t a r e m o s d e e x p l i c a r p o r q u e o s índios p r o d u z e m c a d a v e z m a i s s u a s f e s t a s e a r t e s a n a t o p a r a o u t r o s , p a r a q u e s e j a m c o m p r a d o s e a d m i r a d o s . A f i m d e não r e d u z i r m o s a questão — c e n t r a l — d a mercantilização d a c u l t u r a , i n t e r r o g a m o s o s a s p e c t o s económicos e simbólicos d o s p r o d u t o s p o p u l a r e s , v e r i f i c a n d o o q u e se v e n d e e o q u e se d e s e j a . Também p r o c u r a m o s s a b e r c o m o s e c o m p l e m e n t a m o s i g n i f i c a d o d o q u e o p o v o c r i a n u m a o f i c i n a a r t e s a n a l c o m o q u e u m a o u t r a p a r t e d o p o v o u s a n u m a habitação u r b a n a o u vê n u m t e l e v i s o r : u m a v e z q u e t o d a s a s manifestações d a c u l t u r a p o p u l a r o c o r r e m n o i n t e r i o r d o s i s t e m a c a p i t a l i s t a , d e v e - s e e n c o n t r a r u m a m a n e i r a d e compreendê-los j u n t o s .

A redefinição d o q u e é h o j e a c u l t u r a p o p u l a r r e q u e r u m a estratégia d e investigação q u e s e j a c a p a z d e a b r a n g e r t a n t o a p r o ­dução q u a n t o a circulação e o c o n s u m o . A compreensão d o porquê d a permanência e , i n c l u s i v e , d o a u m e n t o d a produção d e o b j e t o s a r t e s a n a i s e x i g e u m a indagação a r e s p e i t o d o s m o t i v o s q u e o s i s t e ­m a s o c i a l p o s s u i p a r a incentivá-la. A visão q u e r e d u z o a r t e s a n a t o a u m a coleção d e o b j e t o s e a c u l t u r a p o p u l a r a u m c o n j u n t o d e t r a d i ­ções d e v e s e r a b a n d o n a d a , b e m c o m o o i d e a l i s m o folclórico q u e p e n s a q u e é possível e x p l i c a r o s p r o d u t o s d o p o v o c o m o " e x p r e s ­s ã o " au tónoma d o s e u t e m p e r a m e n t o . O e n f o q u e m a i s f e c u n d o é a q u e l e q u e e n t e n d e a c u l t u r a c o m o u m i n s t r u m e n t o v o l t a d o p a r a a compreensão, reprodução e t ransformação d o s i s t e m a s o c i a l , a t r a ­vés d o q u a l é e l a b o r a d a e construída a h e g e m o n i a d e c a d a c l a s s e . D e a c o r d o c o m e s t a p e r s p e c t i v a , t r a t a r e m o s d e v e r a s c u l t u r a s d a s c l a s s e s p o p u l a r e s c o m o r e s u l t a d o d e u m a apropriação d e s i g u a l d o c a p i t a l c u l t u r a l , a elaboração específica d a s s u a s condições d e v i d a e a interação c o n f l i t u o s a c o m o s s e t o r e s hegemónicos.

E s t e e n f o q u e teórico e metodológico, q u e será d e s e n v o l v i d o n o s d o i s p r i m e i r o s capítulos, a r t i c u l a - s e e m t o r n o d a s s e g u i n t e s t e s e s :

1 . O c a p i t a l i s m o , s o b r e t u d o o c a p i t a l i s m o d e p e n d e n t e p o s ­s u i d o r d e f o r t e s raízes indígenas, e m s e u p r o c e s s o d e d e s e n ­v o l v i m e n t o não p r e c i s a s e m p r e e l i m i n a r a s c u l t u r a s p o p u -

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l a r e s ; a o contrário, e l e i n c l u s i v e se a p r o p r i a d e l a s , r e e s t r u -t u r a - a s , r e o r g a n i z a n d o o s i g n i f i c a d o e a função d o s s e u s o b j e t o s e d a s s u a s crenças e práticas. S e u s r e c u r s o s p r e f e r i ­d o s , c o m o será v i s t o n o capítulo I I I , são o r e o r d e n a m e n t o d a produção e d o c o n s u m o n o c a m p o e n a c i d a d e , a e x p a n ­são d o t u r i s m o e a presença d e políticas e s t a t a i s d e r e f u n -cionalização ideológica.

2 . C o m a f i n a l i d a d e d e i n t e g r a r a s c l a s s e s p o p u l a r e s a o d e s e n ­v o l v i m e n t o c a p i t a l i s t a , a s c l a s s e s d o m i n a n t e s d e s e s t r u -t u r a m — m e d i a n t e p r o c e d i m e n t o s d i s t i n t o s , m a s q u e são s u b o r d i n a d o s a u m a lógica c o m u m — a s c u l t u r a s étnicas, n a c i o n a i s e d e c l a s s e , r e o r g a n i z a n d o - a s n u m s i s t e m a u n i f i ­c a d o d e produção simbólica. É c o m e s t e i n t u i t o q u e s e p a ­r a m a b a s e económica d a s representações c u l t u r a i s , r o m ­p e m a u n i d a d e e n t r e a produção, a circulação e o c o n s u ­m o , b e m c o m o e n t r e o s indivíduos e a s u a c o m u n i d a d e . E n q u a n t o q u e , n u m s e g u n d o m o m e n t o , recompõem o s pedaços, s u b o r d i n a n d o - o s a u m a organização t r a n s n a c i o ­n a l d a c u l t u r a q u e é c o r r e l a t a à multinacionalização d o c a p i t a l . A n a l i s a r e m o s e s t e p r o c e s s o p o r intermédio d e u m a d a s s u a s p r i n c i p a i s operações: a redução d o étnico a o típico (capítulo I V ) .

M a s c o m o também t r a t a r e m o s d a s r e s p o s t a s q u e a s c o m u n i ­d a d e s t r a d i c i o n a i s e o s p o v o s mestiços o f e r e c e m d i a n t e d a situação d e dominação, o u s e j a , a s s u a s m a n e i r a s d e se a d a p t a r e m , r e s i s t i ­r e m o u e n c o n t r a r e m u m l u g a r p a r a s o b r e v i v e r , o o b j e t i v o último d o l i v r o é p r o p o r u m a interpretação d o s c o n f l i t o s i n t e r c u l t u r a i s n o c a p i t a l i s m o .

E s t a interpretação f o i s u r g i n d o a p a r t i r d e u m a p e s q u i s a a r e s p e i t o d a s mudanças n o a r t e s a n a t o e n a s f e s t a s p o p u l a r e s q u e r e a ­l i z a m o s n o c e n t r o d o México, e n t r e 1 9 7 7 e 1 9 8 0 , e m p o v o a d o s d a z o n a t a r a s c a d o e s t a d o d e Michoacán. P e s q u i s a m o s d u a s áreas q u e p o s s u e m u m a m e s m a o r i g e m étnica, m a s q u e a p r e s e n t a m u m d e s e n ­v o l v i m e n t o económico e c u l t u r a l d i f e r e n t e : 1 ) a área q u e m a r g e i a o l a g o d e Pátzcuaro , região f o r t e m e n t e i n t e g r a d a a o d e s e n v o l v i ­m e n t o c a p i t a l i s t a , a o t u r i s m o , às comunicações e à ação d o s o r g a ­n i s m o s o f i c i a i s ; 2 ) P a t a m b a n e O c u m i c h o , p e q u e n a s v i l a s d e o l e i r o s e a g r i c u l t o r e s d a s e r r a , q u e se o r g a n i z a m e m t o r n o d e u n i d a d e s domésticas d e produção, às q u a i s s e c h e g a p o r t r i l h a s , e q u e c o n ­t i n u a m f a l a n d o p a r c i a l m e n t e o t a r a s c o e mantêm f e s t a s e f e i r a s q u e

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a p e n a s n o s últimos a n o s começaram a r e c e b e r t u r i s t a s e p r o d u t o s i n d u s t r i a l i z a d o s .

P a r a r e a l i z a r m o s u m a análise c o m p a r a t i v a d a influência d o s a g e n t e s e x t e r n o s e d a evolução d a s r e s p e c t i v a s populações, l e v a m o s e m consideração a s mudanças q u e " t e m o s o b s e r v a d o a n o após a n o e m n o s s a s v i s i t a s , a s s i m c o m o a e s t r u t u r a a n t e r i o r d e c a d a s o c i e ­d a d e , s u a produção a r t e s a n a l e s u a s f e s t a s , d e a c o r d o c o m a s d e s ­crições f e i t a s p o r antropólogos m e x i c a n o s e n o r t e - a m e r i c a n o s a p a r t i r d a década d e 4 0 . '

D i a n t e d o s e s t u d o s p r e c e d e n t e s p o d e m o s a p o n t a r u m a d i f e ­rença: i n t e r e s s a m o - n o s t a n t o p e l a v i d a i n t e r n a d a s v i l a s q u a n t o e m a c o m p a n h a r o s artesãos e s e u s p r o d u t o s n a s f e s t a s e m e r c a d o s — e m Pátzcuaro , e m M o r e l i a e n o D i s t r i t o F e d e r a l — c o m a f i n a l i ­d a d e d e c o n h e c e r a s u a interação c o m p e s s o a s e instituições q u e são a l h e i a s a o s s e u s l u g a r e s d e o r i g e m , a f i m d e s a b e r m o s c o m o o c o n ­s u m o u r b a n o a l t e r a o s i g n i f i c a d o d a produção m a t e r i a l e simbólica d a s c u l t u r a s t r a d i c i o n a i s .

A s p r o l i x a s descrições já e x i s t e n t e s d a região t a r a s c a s e r v i r a m d e b a s e p a r a a q u e l a q u e r e a l i z a m o s n o n o s s o t r a b a l h o d e c a m p o , e

' Michoacán é u m a d a s regiões q u e m a i s c e d o e d e m o d o m a i s p e r s i s t e n t e s u s c i t o u o i n t e r e s s e d o s antropólogos m e x i c a n o s e e s t r a n g e i r o s . E m b o r a e x i s t a u m a l i t e r a ­t u r a a n t i g a , já r e s e n h a d a ( L u c i o M e n d i e t a y Núnez, Los Tarascos. M o n o g r a f i a histórica, etnográfica y económica, México, 1940), o s e s t u d o s p r o p r i a m e n t e c i e n ­tíficos começaram c o m o p r o g r a m a d e investigações antropológicas p a t r o c i n a d o p o r instituições n o r t e - a m e r i c a n a s e m e x i c a n a s n a década d e 4 0 ( D . F . R u b i n d e l a B o r b o l l a e R a l p h L . B e a l s , T h e T a r a s c a n p r o j e c t : A c o o p e r a t i v e e n t e r p r i s e o f t h e N a t i o n a l P o l y t e c h n i c a l I n s t i t u t e , M e x i c a n B u r e a u o f I n d i a n A f f a i r s a n d t h e U n i -v e r s i t y o f Califórnia, A m e r i c a n Antropologie, M e n a s h a , 1940, 42 , 708-712) . E s t e p r o j e t o g e r o u u m a investigação geográfica ( R o b e r t C . W e s t , Culturalgeography o f the modem T a r a s c a n a r e a , W a s h i n g t o n , S m i t h s o n i a n I n s t i t u t e , 1948) e o u t r a s s o b r e p o v o a d o s específicos ( R a l p h L . B e a l s , Cherán: A S i e r r a T a r a s c a n vil/age, W a s h i n g t o n , S m i t h s o n i a n I n s t i t u t e , 1944; G e o r g e M . F o s t e r , T z i n t z u n t z a n , México, F C E , 1972; D . D o n a l d B r a n d e José C o r r e a Núnez, Q u i r o g a , a M e x i c a n Município, W a s h i n g t o n , 1951; P e d r o C a r r a s c o , E l Catolicismo popular de los t a ­rascos, México, S e p s e t e n t a s , 1976, q u e s e r e f e r e e m e s p e c i a l à z o n a d o l a d o d e Pátzcuaro, s o b r e t u d o c o m informações o b t i d a s e m Jarácuaro). O u t r o s e s t u d o s s o b r e a região q u e m e r e c e m d e s t a q u e são o s d e P i e r r e L i s s e , Las artesanías y pequenas industrias em el estado de Michoacán, Pátzcuaro, C R E F A L , 1964; I n a R . D i n e r m a n , Los Tarascos, campesinos y artesanos de Michoacán, México, S e p s e t e n t a s , 1974; R . A . M . v a n Z a n t w i j k , Los servidores de los santos, México, I N I , 1974; G e o r g e P i e r r e C a s t i l e , Cherán: l a adaptación de u n a comunidad tradi­c i o n a l de Michoacán, México, I N I , 1976; V i c t o r i a N o v e l o , Artesaníasy capitalis­mo en México, S E P - I N A H , 1976; A n n e L i s e e René P i e t r i , Empleo y migración en l a región de Pátzcuaro, México, I N I , 1976.

A S C U L T U R A S P O P U L A R E S N O C A P I T A L I S M O 15

p e r m i t i r a m q u e pudéssemos c o n c e n t r a r e m a l g u n s capítulos m i n u ­c i o s a s transcrições etnográficas. D a d o q u e e s t a caracterização g e r a l e p o r m e n o r i z a d a já se e n c o n t r a f e i t a , r e s e r v a m o s u m espaço m a i o r p a r a a apresentação empírica d e p r o c e s s o s i n t e r c u l t u r a i s r e c e n t e s e a i n d a i n e x p l o r a d o s e p a r a a elaboração c o n c e i t u a i necessária p a r a a s u a compreensão: a s descrições e d a d o s estatísticos f o r a m s e l e c i o -n a d o s e m função d e s t e t r a b a l h o , a i n d a q u e também t e n h a m o s incluído a l g u m a informação básica a r e s p e i t o d a região e d a s u a história p a r a q u e m e s m o o l e i t o r q u e desconheça Michoacán p o s s a s i t u a r - s e . A q u e l e s q u e d e s e j a r e m u m p a n o r a m a m a i s d e t a l h a d o d a região o encontrarão n a b i b l i o g r a f i a q u e a c a b a m o s d e c i t a r , e s p e c i a l m e n t e n o s l i v r o s d e C a r r a s c o , D i n e r m a n , N o v e l o e v a n Z a n t w i j k .

S e b e m q u e o c o n f r o n t o e n t r e a c u l t u r a a n t i g a e a s u a r e f u n -cionalização a t u a l p e r p a s s e t o d o o l i v r o , poderá s e r e n c o n t r a d o d e m o d o m a i s p a r t i c u l a r n o s capítulos V e V I . N o capítulo V p e r c o r ­r e m o s o p r o c e s s o d e descontextualização e refuncionalização p o r q u e p a s s a o a r t e s a n a t o e m d i f e r e n t e s espaços e c l a s s e s s o c i a i s : a habitação indígena, o s m e r c a d o s e f e i r a s c a m p o n e s e s , a s l o j a s e boutiques, o m u s e u e a habitação u r b a n a . N o s e x t o capítulo, t r a t a ­m o s d o a r t e s a n a t o efémero q u e a c o m p a n h a a s f e s t a s indígenas e d o p r o c e s s o q u e c o n v e r t e a celebração e m espetáculo, a participação c o l e t i v a e m c o n s u m o p l a n i f i c a d o e a o r d e m r i t u a l agrícola-religiosa n u m a organização m e r c a n t i l d o ócio turístico.

O t r a t a m e n t o d a d o a e s t e s t e m a s b e m c o m o a m e t o d o l o g i a e m p r e g a d a s i t u a m e s t e l i v r o e n t r e a A n t r o p o l o g i a e a S o c i o l o g i a . M a s também serão e n c o n t r a d a s reflexões políticas e filosóficas s o b r e a c u l t u r a . N o e x a m e d a i d e n t i d a d e e m transformação d a s c u l ­t u r a s p o p u l a r e s , t e m o s d e l i n e a d o c r i t i c a m e n t e o s f u n d a m e n t o s e a s e n c r u z i l h a d a s d a s instituições q u e a s p r o m o v e m , e i n d a g a d o c o m o se d e v e e n c a r a r a s políticas c u l t u r a i s , r u r a i s e u r b a n a s n u m p r o c e s s o d e mudança s o c i a l .

D o m e s m o m o d o , a investigação a r e s p e i t o d o efémero e d o variável n o s p r o c e s s o s c u l t u r a i s l e v a - n o s a u m a reflexão a c e r c a d o q u e há d e frágil e volúvel n a c u l t u r a ; e não a p e n a s n o q u e se p a s s a c o m a s c u l t u r a s t r a d i c i o n a i s d e v i d o a o i m p a c t o d o c a p i t a l i s m o , m a s n o q u e o c o r r e c o m t o d a s a s representações através d a s q u a i s nós, s e r e s h u m a n o s , t e n t a m o s d a r c o n t a d a s n o s s a s v i d a s . D a d o q u e o simbólico não s e r e d u z a o s c o m p o r t a m e n t o s observáveis e a o s s e u s f i n s práticos i m e d i a t o s , e n t e n d e m o s q u e a investigação a r e s p e i t o d a s condições s o c i a i s d e produção n e c e s s i t a i n c l u i r o q u e n o i n t e -

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r i o r d a c u l t u r a é u t o p i a o u indagação. A interpretação antropoló­g i c a d a f e s t a d o s m o r t o s , p o r e x e m p l o , é u m a ocasião propícia p a r a a compreensão d o q u e o s h o m e n s f a z e m , através d a f e s t a , c o m o q u e não p o d e m f a z e r c o m a m o r t e . A análise d e s t a s cerimónias e o f e r e n d a s ajudará a e n x e r g a r m o s a c u l t u r a não a p e n a s c o m o a expressão d o m o d o c o m o se v i v e s o b o c a p i t a l i s m o , m a s também d e c o m o se m o r r e e c o m o se r e c o r d a m o s m o r t o s , a j u d a n d o - n o s a p e r ­c e b e r q u e a c u l t u r a não é a p e n a s o m o d o c o m o e s t a a r t e p o b r e r e e l a ­b o r a a s condições m a t e r i a i s , c o n c r e t a s , d a s o c i e d a d e , m a s também o q u e e l a i m a g i n a c o m o s i t u a d o além d e l a .

A o s i t u a r a s dúvidas a r e s p e i t o d o d e s t i n o d a s c u l t u r a s p o p u ­l a r e s n o i n t e r i o r d o c o n f l i t o q u e a s corrói, d e v e m o s n o s p e r g u n t a r a r e s p e i t o d o f u t u r o e d o v a l o r d e t o d a c u l t u r a , d a s i m a g e n s , d o s s i s ­t e m a s d e p e n s a m e n t o e d a s crenças através d o s q u a i s t e n t a m o s n o s e x p l i c a r e j u s t i f i c a r . N o t r a n s c o r r e r d o l i v r o p r e d o m i n a o e x a m e d o s c o n d i c i o n a m e n t o s q u e a g e m s o b r e a c u l t u r a e a consideração d a c u l t u r a c o m o i n s t r u m e n t o v o l t a d o p a r a a reprodução d a s r e l a ­ções s o c i a i s o b j e t i v a s . M a s d e s t e m o d o não c o n s e g u i m o s e x p r i m i r o q u e e x i s t e e m t o d a a produção simbólica d e invenção d e n o v a s r e a ­l i d a d e s , d e j o g o c o m o r e a l , d e a b e r t u r a a o q u e não e x i s t e o u não p o d e m o s s e r . C o m o p o d e m o s c o m p r e e n d e r e s t a s refutações a o r e a l q u e construímos n o s s o n h o s , n o s s i m u l a c r o s d a u t o p i a e d a l i t e r a ­t u r a , n o s g a s t o s s e m r e t o r n o d a s f e s t a s , e e m t o d a s a s estratégias d o imaginário e n a s astúcias retóricas d o d e s e j o ? P o r q u e s o b r e v i v e m e p r o l i f e r a m e s t e s u n i v e r s o s fictícios n u m m u n d o q u e r e i t e r a d a m e n t e se s u b m e t e à r a c i o n a l i d a d e d a eficiência? A n o s s a c a p a c i d a d e e m t r a n s c e n d e r a s n e c e s s i d a d e s m a t e r i a i s e p r o j e t a r - n o s r u m o a u m f u t u r o q u e não d e r i v a a u t o m a t i c a m e n t e d o d e s e n v o l v i m e n t o e c o ­nómico, a i n d a q u e não d e v a s e r e n c a r a d a , à m a n e i r a d o i d e a l i s m o , c o m o o c o m p o n e n t e f u n d a m e n t a l e d i s t i n t i v o d o h o m e m , m e r e c e u m l u g a r n u m a interpretação d a c u l t u r a . P r e t e n d o , também, s i t u a r e s t e s t e m a s c o m o p a r t e d o e n f o q u e sócio-histórico, p o r q u e e n t e n d o a importância s o c i a l — e também política — d e r e p e n s a r a q u i l o q u e o i d e a l i s m o , a o i s o l a r s o b o n o m e d e espírito, d e i x o u s e m e x p l i c a ­ção, e q u e o m a t e r i a l i s m o m e c a n i c i s t a , a o r e d u z i r a o s s e u s c o n d i ­c i o n a m e n t o s , t o r n o u s e m e s p e c i f i c i d a d e .

D o primitivo ao popular: teorias sobre a desigualdade

entre as culturas

C o m a c u l t u r a , o o b j e t o t r a d i c i o n a l d a A n t r o p o l o g i a , a c o n ­t e c e o m e s m o q u e c o m o s o b j e t o s d a s c o m u n i d a d e s q u e e s t a ciência e s t u d a : a o p a s s a r e m d e u m l a d o a o u t r o d a m o n t a n h a , o s e l e m e n t o s m a i s c o t i d i a n o s , a água o u o s o l , m u d a m d e n o m e . Também o s f a t o s c u l t u r a i s , p r e s e n t e s e m t o d a s a s s o c i e d a d e s , t r o c a m d e n o m e a o s a b o r d a d i s c i p l i n a q u e e s t a m o s v i s i t a n d o . O e s t u d a n t e q u e se i n i c i a n o s e u c o n h e c i m e n t o se d e p a r a c o m o f a t o d e q u e o q u e o s " ind ígenas" d e u m a ciência c h a m a m d e s i s t e m a s simbólicos, o s d e o u t r a c h a m a m d e s i g n o s , o u i d e o l o g i a , o u comunicação, o u a i n d a d e imaginário.

P o r q u e e s c o l h e m o s o t e r m o c u l t u r a ? P o r q u e q u a l i f i c a r c o m o c u l t u r a p o p u l a r e s t a f o r m a p a r t i c u l a r d e c u l t u r a q u e o u t r o s c h a ­m a m s u b a l t e r n a , o p r i m i d a e t c ? S e e m q u a l q u e r investigação o t r a b a l h o teórico d e v e a c o m p a n h a r o c o n h e c i m e n t o c o n c r e t o , i s t o é a i n d a m a i s necessário n e s t e c a m p o polémico, n e s t e b o s q u e d e d e f i ­nições (antropológicas, sociológicas, semióticas e d e o u t r a s ciên­c i a s ) q u e e m 1 9 5 2 já c h e g a v a m a o número d e t r e z e n t a s , d e a c o r d o c o m a compilação d e K r o e b e r e K l u c k h o h n . 2

Começaremos p e l a discussão d a s p r i n c i p a i s definições d e c u l t u r a d a d a p e l a A n t r o p o l o g i a ; será u m a a b o r d a g e m d a s u a c a r a c t e ­rização c o m o a q u i l o q u e se opõe à n a t u r e z a , definição à q u a l f o i atribuída a esperança d e s e r c a p a z d e p o s s u i r v a l i d a d e u n i v e r s a l , s e n d o c o n s i d e r a d a l i v r e d e p r e c o n c e i t o s etnocêntricos. E m s e g u i d a ,

2 A . K r o e b e r e C . K l u c k h o h n , C u l t u r e : A c r i t i c a i review o f concepts and defini-tions, C a m b r i d g e , M a s s a c h u s s e t s , 1952.

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a n a l i s a r e m o s a " s o l u ç ã o " q u e m u i t o s antropólogos o f e r e c e m a o p r o b l e m a d a s diferenças c u l t u r a i s — o r e l a t i v i s m o — e a s i t u a r e ­m o s d i a n t e d a organização t r a n s n a c i o n a l q u e o c a p i t a l i s m o impôs às c u l t u r a s , e d a p r o c u r a d e i d e n t i d a d e q u e e x i s t e n o i n t e r i o r d o s m o v i m e n t o s d e libertação d o s países d e p e n d e n t e s . E s t a crítica a o v a l o r científico e político d a contribuição antropológica n o s levará a o e s t a b e l e c i m e n t o d e laços e n t r e o c o n c e i t o d e c u l t u r a e o s c o n c e i ­t o s d e produção, s u p e r e s t r u t u r a , i d e o l o g i a , h e g e m o n i a e c l a s s e s s o c i a i s , c o n f o r m e têm s i d o e l a b o r a d o s p e l o m a r x i s m o . D e s t e m o d o , c h e g a r e m o s a u m a caracterização d a c u l t u r a c o m o u m t i p o p a r t i ­c u l a r d e a t i v i d a d e p r o d u t i v a , c u j a f i n a l i d a d e é c o m p r e e n d e r , r e p r o ­d u z i r e t r a n s f o r m a r a e s t r u t u r a s o c i a l e b r i g a r p e l a h e g e m o n i a . N a t a r e f a d e v i n c u l a r m o s e s t a definição a o e s t u d o empírico, u t i l i z a ­r e m o s a l g u n s r e c u r s o s d a s o c i o l o g i a d a c u l t u r a q u e e x p l i c i t a m o s m e c a n i s m o s através d o s q u a i s u m c a p i t a l c u l t u r a l é t r a n s m i t i d o p o r m e i o d e a p a r e l h o s e se i n t e r n a l i z a n o s indivíduos g e r a n d o hábitos e práticas, o u s e j a , g e r a n d o a e s t r u t u r a d a n o s s a v i d a c o t i d i a n a .

C o m o se p o d e p e r c e b e r , e s t a m o s p r o p o n d o u m a mudança e m t e r m o s d o o b j e t o t r a d i c i o n a l d e e s t u d o d a A n t r o p o l o g i a . M a i s d o q u e u m q u a d r o teórico a d e q u a d o p a r a a análise d a c u l t u r a , i n t e -r e s s a - n o s u m q u a d r o q u e n o s a j u d e n a explicação d a s d e s i g u a l d a ­d e s e d o s c o n f l i t o s e n t r e o s s i s t e m a s c u l t u r a i s . E n t e n d e m o s q u e o t r a n s c o r r e r d o l i v r o justificará e s t a p e r s p e c t i v a c o m o a m a i s f e c u n ­d a p a r a a definição e o e s t u d o d a s c u l t u r a s p o p u l a r e s : a s s i m c o m o não e x i s t e a c u l t u r a e m g e r a l , t a m p o u c o p o d e - s e c a r a c t e r i z a r a c u l ­t u r a p o p u l a r p o r u m a essência o u p o r u m g r u p o d e traços intrínse­c o s , m a s a p e n a s p e l a oposição d i a n t e d a c u l t u r a d o m i n a n t e , c o m o o r e s u l t a d o d a d e s i g u a l d a d e e d o c o n f l i t o .

O e l o g i o d o s " p r i m i t i v o s " c o m o negação d a História

O c o n c e i t o antropológico d e c u l t u r a ê u m r e s u l t a d o p a r a d o ­x a l d a expansão i m p e r i a l d o O c i d e n t e . O m e s m o c o n f r o n t o e n t r e países c o l o n i z a d o r e s e países c o l o n i z a d o s q u e e s t i m u l o u a s ilusões s o b r e a s u p e r i o r i d a d e e u r o p e i a p r o d u z i u u m c o n f r o n t o d o s c i e n t i s ­t a s i n g l e s e s , f r a n c e s e s e n o r t e - a m e r i c a n o s c o m a v i d a c o t i d i a n a d o s p o v o s q u e f o r a m s u b m e t i d o s . O s antropólogos, a o se d e s c e n t r a r e m d i a n t e d a s u a c u l t u r a , a c a b a r a m p o r d e s c o b r i r o u t r a s f o r m a s d e r a c i o n a l i d a d e e d e v i d a . Também p u d e r a m p e r c e b e r q u e c u l t u r a s

A S C U L T U R A S P O P U L A R E S N O C A P I T A L I S M O 19

não o c i d e n t a i s c o n s e g u i r a m r e s o l v e r , t a l v e z m e l h o r d e q u e nós, a s d i f i c u l d a d e s d a organização d a família e d a educação, d a i n t e g r a ­ção d o s a d o l e s c e n t e s à v i d a s e x u a l e d a a t i v i d a d e económica ( c o m o , p o r e x e m p l o , p e r c e b e u M a r g a r e t M e a d n a Polinésia).

A p a r t i r d e s t a s d e s c o b e r t a s f o i s e n d o e l a b o r a d a n o O c i d e n t e u m a concepção d i s t i n t a a r e s p e i t o d e s i m e s m o e d o s o u t r o s p o v o s . A desqualificação d o s p r i m i t i v o s , s e m e l h a n t e e m m u i t o s p o n t o s à desvalorização d a c u l t u r a p o p u l a r , m o s t r o u - s e i n c o n s i s t e n t e . A a m p l i t u d e , q u e d e s d e então o c o n c e i t o d e c u l t u r a p a s s o u a t e r — o q u e não é o b r a d a n a t u r e z a , t u d o a q u i l o q u e f o i p r o d u z i d o p o r a l g u m s e r h u m a n o , não i m p o r t a n d o o s e u g r a u d e c o m p l e x i d a d e e d e d e s e n v o l v i m e n t o —, f o i u m a t e n t a t i v a d e r e c o n h e c e r a d i g n i d a d e d o s a n t e r i o r m e n t e excluídos. F o r a m c o n s i d e r a d a s c o m o p a r t e i n t e g r a n t e d a c u l t u r a t o d a s a s a t i v i d a d e s h u m a n a s , m a t e r i a i s e i d e a i s , i n c l u s i v e a q u e l a s práticas o u crenças a n t e r i o r m e n t e q u a l i f i ­c a d a s c o m o manifestações d e ignorância (superstições e sacrifícios h u m a n o s ) , a s n o r m a s s o c i a i s e a s técnicas s i m p l e s d a q u e l e s q u e v i v e m n u s n a s e l v a , s u j e i t o s a o s r i t m o s e a o s p e r i g o s d a n a t u r e z a . T o d a s a s c u l t u r a s , p o r m a i s r u d i m e n t a r e s q u e s e j a m , são d o t a d a s d e e s t r u t u r a , p o s s u e m n o s e u i n t e r i o r coerência e s e n t i d o . I n c l u s i v e a s práticas q u e n o s d e s c o n c e r t a m o u q u e nós r e j e i t a m o s ( a a n t r o p o ­f a g i a , a p o l i g a m i a ) p o s s u e m u m a lógica n o i n t e r i o r d a s s o c i e d a d e s q u e a s a d o t a m , são f u n c i o n a i s p a r a a s u a existência.

Lévi-Strauss t a l v e z s e j a u m d o s antropólogos q u e têm j u s t i f i ­c a d o d a m a n e i r a m a i s sólida o caráter lógico e e s t r u t u r a d o d a s c u l ­t u r a s a r c a i c a s , t a l v e z s e j a u m d o s q u e têm d e m o l i d o d e m o d o m a i s r i g o r o s o a pretensão o c i d e n t a l d e s e r o ápice d a História, d e t e r r e a ­l i z a d o o m a i o r avanço e m t e r m o s d o a p r o v e i t a m e n t o d a n a t u r e z a , d a c o n q u i s t a d a r a c i o n a l i d a d e e d o e s t a b e l e c i m e n t o d o p e n s a m e n t o científico. S u a investigação a r e s p e i t o d o r a c i s m o p a r a a U N E S C O 3

m o s t r a o e x e m p l o d a América p a r a r e f u t a r a concepção e v o l u c i o ­n i s t a d a história h u m a n a , q u e a c o n c e b e c o m o u m único m o v i m e n t o l i n e a r e p r o g r e s s i v o , n o i n t e r i o r d o q u a l a c u l t u r a e u r o p e i a o c u p a r i a o c u m e , s e n d o q u e a s d e m a i s e q u i v a l e r i a m a m o m e n t o s a n t e r i o r e s d o m e s m o p r o c e s s o . O s h a b i t a n t e s d o c o n t i n e n t e a m e r i c a n o c o n s e ­g u i r a m a t i n g i r , a n t e s d a c o n q u i s t a e s p a n h o l a , u m i m p r e s s i o n a n t e d e s e n v o l v i m e n t o c u l t u r a l , d e m a n e i r a i n d e p e n d e n t e d a E u r o p a :

3 C l a u d e Lévi-Strauss, Race et histoire. P a r i s , Éditions G o u t h i e r - U N E S C O 1961 . ( E x i s t e u m a tradução p u b l i c a d a n o B r a s i l e m Antropologia E s t r u t u r a l 2, R i o d e J a n e i r o , Edições T e m p o B r a s i l e i r o , 1976.)

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d o m e s t i c a r a m espécies a n i m a i s e v e g e t a i s , o b t i v e r a m remédios e b e b i d a s próprios, l e v a r a m indústrias c o m o a t e c e l a g e m , a cerâmica e o t r a b a l h o c o m m e t a i s p r e c i o s o s a o m a i s a l t o g r a u d e perfeição. É difícil, a r g u m e n t a o antropólogo francês, s u s t e n t a r a i n f e r i o r i d a d e d e p o v o s q u e p r o p o r c i o n a r a m a o V e l h o M u n d o u m a contribuição i m e n s a : a b a t a t a , o t a b a c o , o c a c a u , o t o m a t e e m u i t o s o u t r o s a l i ­m e n t o s . O número z e r o , c o n h e c i d o e u t i l i z a d o p e l o s m a i a s p e l o m e ­n o s q u i n h e n t o s a n o s a n t e s d e s e r d e s c o b e r t o p o r sábios h i n d u s , a m a i o r precisão d o s e u calendário, o r e g i m e político avançado d o s i n c a s são o u t r o s f a t o s i n v o c a d o s p a r a i n v a l i d a r e m p i r i c a m e n t e o e v o l u c i o n i s m o .

M a s é e m O Pensamento Selvagem o l u g a r o n d e Lévi-Strauss d e s e n v o l v e m e l h o r o s e u q u e s t i o n a m e n t o teórico. A l i l e m o s q u e s e a s c u l t u r a s não o c i d e n t a i s alcançaram u m s a b e r q u e é e m vários p o n t o s s u p e r i o r a o e u r o p e u f o i p o r q u e o s e u d e s e n v o l v i m e n t o i n t e ­l e c t u a l a t i n g i u u m r i g o r s e m e l h a n t e a o d a s d i s c i p l i n a s científicas, m e s m o q u e através d e c a m i n h o s d i f e r e n t e s . A p e n a s u m a o b s e r v a ­ção metódica e m i n u c i o s a d a r e a l i d a d e p o d e t e r p o s s i b i l i t a d o a o s hanunõos a p o s s e d e m a i s d e 1 5 0 t e r m o s p a r a d e s c r e v e r a s p a r t e s c o n s t i t u t i v a s e a s p r o p r i e d a d e s d o s v e g e t a i s ; o s p i n a t u b o s , e n t r e o s q u a i s f o r a m e n c o n t r a d a s m a i s d e 6 0 0 p l a n t a s d o t a d a s d e n o m e , são p o s s u i d o r e s d e u m c o m p l e x o c o n h e c i m e n t o s o b r e a s u a utilização e d e m a i s d e c e m t e r m o s v o l t a d o s p a r a a descrição d a s s u a s p a r t e s o u d e s e u s a s p e c t o s característicos. U m s a b e r d e s e n v o l v i d o d e m o d o tão sistemático — c o n c l u i Lévi-Strauss — não é possível d e se o b t e r a p e n a s e m função d o s e u v a l o r prático. E x i s t e m , i n c l u s i v e , t r i b o s q u e e n u m e r a m , n o m e i a m e o r d e n a m répteis q u e não serão c o m i d o s n e m p o s s u e m q u a l q u e r f i m utilitário. " A p a r t i r d e t a i s e x e m p l o s , q u e p o d e r i a m s e r e n c o n t r a d o s e m t o d a s a s regiões d o m u n d o , é possível i n f e r i r q u e não se c o n h e c e m a s espécies a n i m a i s e v e g e t a i s p o r q u e e l a s são úteis, m a s s i m q u e e l a s são c l a s s i f i c a d a s c o m o úteis o u i n t e r e s s a n t e s p o r q u e são, p r i m e i r a m e n t e , c o n h e c i d a s . " 4 T r a t a -se d e u m s a b e r q u e ê p r o d u z i d o e m s o c i e d a d e s q u e a t r i b u e m u m l u g a r f u n d a m e n t a l às a t i v i d a d e s i n t e l e c t u a i s . C o n s e q u e n t e m e n t e , o q u e d i f e r e n c i a o " p e n s a m e n t o s e l v a g e m " d o q u e o a u t o r c h a m a d e " p e n s a m e n t o d o m e s t i c a d o " o u científico não é q u e e s t e p o s s u a

4 C l a u d e Lévi-Strauss, E l Pensamiento Salvaje, México, F o n d o d e C u l t u r a Econó­m i c a , 1964, p . 2 4 ( t r e c h o q u e p o d e s e r e n c o n t r a d o à p . 29 d a t r a d . p u b l i c a d a n o B r a s i l , O Pensamento Selvagem, São P a u l o , C i a . E d i t o r a N a c i o n a l , 2? e d . , 1976).

A S C U L T U R A S P O P U L A R E S N O C A P I T A L I S M O 21

u m a m a i o r c a p a c i d a d e d e o r d e n a r r a c i o n a l m e n t e o m u n d o o u u m predomínio d a a t i v i d a d e i n t e l e c t u a l d i a n t e d a prática; m u i t o m e ­n o s , c o m o p r e t e n d e r a m a l g u n s , r e s i d e n a comprovação d e q u e o c o n h e c i m e n t o p r i m i t i v o é r e s u l t a d o d e d e s c o b e r t a s f e i t a s a o a c a s o . Ninguém m a i s se a t r e v e a e x p l i c a r a revolução neolítica — q u e e n v o l v e u a t i v i d a d e s tão c o m p l e x a s c o m o a cerâmica, a t e c e l a g e m , a a g r i c u l t u r a e a domesticação d e a n i m a i s — c o m o u m acúmulo f o r ­t u i t o d e d e s c o b e r t a s c a s u a i s . " C a d a u m a d e s s a s técnicas supõe séculos d e observação a t i v a e metódica, hipóteses o u s a d a s e c o n t r o ­l a d a s , p a r a s e r e m r e j e i t a d a s o u c o m p r o v a d a s p o r m e i o d e experiên­c i a s i n c a n s a v e l m e n t e r e p e t i d a s . " 5

A o invés d e c o l o c a r m o s e m oposição a m a g i a e a ciência, o p e n s a m e n t o mítico e o p e n s a m e n t o r a c i o n a l , c o m o se o p r i m e i r o f o s s e a p e n a s u m r a s c u n h o g r o s s e i r o d o s e g u n d o , d e / e m o s colocá-l o s " e m p a r a l e l o , c o m o d u a s f o r m a s d e c o n h e c i m e n t o , q u e são d e s i g u a i s q u a n t o a o s r e s u l t a d o s teóricos e práticos ( p o i s , s o b e s t e p o n t o d e v i s t a , é c e r t o q u e a ciência se s a i m e l h o r d o q u e a m a g i a , se b e m q u e a m a g i a s e j a u m a prefiguração d a ciência, n o s e n t i d o d e q u e e l a a l g u m a s v e z e s também t r i u n f a ) m a s não são p e l o género d e operações m e n t a i s q u e a m b a s supõem, e q u e d i f e r e m m e n o s q u a n t o à n a t u r e z a d o q u e q u a n t o a o t i p o d e fenómenos a o s q u a i s se a p l i c a m " . 6

E m o u t r a s p a l a v r a s : o s d o i s t i p o s d e p e n s a m e n t o — o s e l v a ­g e m e o científico — não c o r r e s p o n d e m a e t a p a s s u p e r i o r e s o u i n f e ­r i o r e s d o d e s e n v o l v i m e n t o h u m a n o , m a s a d i s t i n t o s "níveis estragé-g i c o s através d o s q u a i s a n a t u r e z a se d e i x a a t a c a r p e l o c o n h e c i m e n t o científico: s e n d o q u e u m d e l e s e n c o n t r a - s e a p r o x i m a d a m e n t e a j u s ­t a d o a o d a percepção e d a imaginação e o o u t r o , d e s l o c a d o " . 7 N o p e n s a m e n t o s e l v a g e m , q u e é m a i s l i g a d o à s e n s i b i l i d a d e , " o s c o n ­c e i t o s estão s u b m e r s o s e m i m a g e n s " ; n o p e n s a m e n t o m o d e r n o , a s i m a g e n s , o s d a d o s i m e d i a t o s d a s e n s i b i l i d a d e e a s u a elaboração imaginária estão s u b o r d i n a d o s a o s c o n c e i t o s .

O a n t i e v o l u c i o n i s m o , posição a q u e e s t e s raciocínios c o n d u ­z e m , f o i e x a c e r b a d o p o r Lévi-Strauss até o p o n t o d e i m p l i c a r u m a negação d a p o s s i b i l i d a d e d e existência d e q u a l q u e r explicação u n i ­f i c a d a a c e r c a d a história. D i a n t e d e s t e t e m a , Lévi-Strauss r e t i r a a s conclusões m a i s r a d i c a i s d o s e u f o r m a l i s m o e s t r u t u r a l i s t a : a s u b o r -

5 I d e m , p . 31 ( p . 34 n a t r a d . p u b l i c a d a n o B r a s i l ) . 6 I d e m , p . 30 ( i d e m , p . 34) . 7 I d e m , p . 33 ( i d e m , p . 36) .

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22 N E S T O R G A R C I A C A N C L I N I

dinação d a história à e s t r u t u r a , d a e s t r u t u r a a o c o n h e c i m e n t o f o r ­m a l q u e d e l a s e p o s s u i e d e s t e c o n h e c i m e n t o à codificação. A i n d a q u e c a d a s o c i e d a d e p o s s u a a s s u a s p e c u l i a r i d a d e s , é possível c o m ­p a r a r m o s u m a s c o m a s o u t r a s p o r q u e c o m p a r t i l h a m u m a m e s m a lógica s o c i a l e i n t e l e c t u a l . A f i n a l d e c o n t a s , a m a g i a e a ciência pressupõem operações m e n t a i s s e m e l h a n t e s , o s m i t o s o u o s i s t e m a d e p a r e n t e s c o são construídos a p a r t i r d e e s t r u t u r a s análogas . E s t a coincidência s e r i a u m a coincidência e n t r e lógicas sincrônicas e não e n t r e p r o c e s s o s c o n v e r g e n t e s ; e m v i r t u d e d i s s o , Lévi-Strauss a c r e ­d i t a q u e a o se e s t a b e l e c e r e m relações e n t r e c u l t u r a s d i s t i n t a s s e j a m a i s c o r r e t o estendê-las n o espaço d o q u e ordená-las n o t e m p o . O p r o g r e s s o não é necessário n e m contínuo; o u m e l h o r , o c o r r e a t r a ­vés d e s a l t o s q u e não c a m i n h a m s e m p r e n a m e s m a direção. C o m o a l t e r n a t i v a a o e v o l u c i o n i s m o , q u e a história e a a n t r o p o l o g i a a d o -t a r a m d a b i o l o g i a d o século X I X , Lévi-Strauss propõe e s q u e m a s q u e se b a s e i a m n a s concepções probabilísticas, d o a c a s o e d a n e c e s ­s i d a d e , d a física e b i o l o g i a contemporâneas. E l e s u g e r e u m a c o n ­cepção d o d e s e n v o l v i m e n t o histórico q u e é s e m e l h a n t e a o m o v i ­m e n t o d o c a v a l o n o j o g o d e x a d r e z , q u e p o s s u i s e m p r e à s u a d i s p o ­sição m u i t a s p o s s i b i l i d a d e s d e avanço, m a s q u e n u n c a s e e n c a m i ­n h a m p a r a o m e s m o s e n t i d o . A h u m a n i d a d e , e m s e u p r o c e s o d e d e s e n v o l v i m e n t o , não se p a r e c e c o m u m p e r s o n a g e m q u e a o s u b i r n u m a e s c a d a s o m a , a c a d a m o v i m e n t o , u m n o v o d e g r a u a o s q u e já h a v i a c o n q u i s t a d o ; a o contrár io, a s s e m e l h a - s e a o j o g a d o r c u j a c h a n c e está r e p a r t i d a e n t r e vários d a d o s e q u e , a c a d a lançamento, o s e s p a r r a m a s o b r e a m e s a , p r o d u z i n d o r e s u l t a d o s d i f e r e n t e s . O q u e s e g a n h a p o r u m l a d o s e m p r e s e está a r r i s c a d o a p e r d e r p o r o u t r o ; s e n d o q u e s o m e n t e d e t e m p o s e m t e m p o s a história t o r n a - s e a c u m u l a t i v a , o u s e j a , o s r e s u l t a d o s o b t i d o s são s o m a d o s c o m p o n d o u m a combinação favorável. 8

R e l a t i v i s m o c u l t u r a l o u crítica d a d e s i g u a l d a d e ?

E s t a t e o r i a d a história p e r m i t e u m a explicação d a s diferenças e n t r e a s c u l t u r a s ? S o m o s c a p a z e s d e e n t e n d e r p o r q u e t a n t a s v e z e s a s diferenças se t r a n s f o r m a m e m d e s i g u a l d a d e s o u são p o r e l a s p r o ­d u z i d a s ? É c u r i o s o q u e o e s t r u t u r a l i s m o d e Lévi-Strauss, a p e s a r d a

8 C l a u d e Lévi-Strauss, Rateei H i s l o i r e , p p . 38-39 ( p p . 357-358 d a t r a d . p u b l i c a d a n o B r a s i l ) .

A S C U L T U R A S P O P U L A R E S N O C A P I T A L I S M O 23

M U I dislância teórica e metodológica d i a n t e d o f u n c i o n a l i s m o e d o l u l t u r a l i s m o , a p e s a r d o s e u esforço e m não r e p e t i r a i n g e n u i d a d e d i i t a s c o r r e n t e s , a c a b e p o r c o i n c i d i r c o m a s s u a s implicações f i l o -Òficas e políticas. O s antropólogos i n g l e s e s ( M a l i n o w s k i , R a d c l i f f e -

l l t o w n , E v a n s - P r i t c h a r d ) e s t u d a r a m a s s o c i e d a d e s a r c a i c a s c o m a f i n a l i d a d e d e c o m p r e e n d e r o s s e u s f i n s intrínsecos. E n x e r g a r a m c n t l a u m a d e l a s c o m o u m s i s t e m a d e instituições e " m e c a n i s m o s d e Cooperação v o l t a d o p a r a a satisfação d a s n e c e s s i d a d e s s o c i a i s " ( l . u c y M a i r ) , 9 c u j o f u n c i o n a m e n t o , s e a n a l i s a d o e m s i m e s m o , é p e r c e b i d o c o m o c o e r e n t e , e t e n d e n d o a p e r s i s t i r d e v i d o à s u a f u n -i t o n a l i d a d e . D e m o d o d i f e r e n t e d o s i n g l e s e s , q u e s u s t e n t a v a m a existência d e u m a p r o f u n d a u n i v e r s a l i d a d e e d e u m a equivalência d a s instituições, p o r s e r e m r e s p o s t a s a n e c e s s i d a d e s u n i v e r s a i s ( p a r a o d e s e j o s e x u a l a r e s p o s t a s e r i a a família, p a r a a f o m e , a o r g a n i z a ­ção económica, p a r a a angústia, a religião), a antropóloga n o r t e -a m e r i c a n a R u t h B e n e d i c t a f i r m a v a q u e a s instituições não p a s s a m d e f o r m a s v a z i a s c u j a u n i v e r s a l i d a d e é i n s i g n i f i c a n t e p o r q u e c a d a s o c i e d a d e a s p r e e n c h e d e m o d o d i f e r e n t e . O antropólogo, então, d e v e p r e o c u p a r - s e c o m e s t a d i v e r s i d a d e c o n c r e t a , e , a o invés d e v o l t a r - s e p a r a a comparação e n t r e a s c u l t u r a s , d e v e e x a m i n a r a s s u a s p a r t i c u l a r i d a d e s . H e r s k o v i t s c o n c l u i q u e e s t a p l u r a l i d a d e d e organizações e experiências s o c i a i s , c a d a u m a d o t a d a d e s e n t i d o próprio, i n i b e j u l g a m e n t o s q u e s e j a m b a s e a d o s e m s i s t e m a s d e v a l o r e s q u e são a l h e i o s a e s t e s e n t i d o . T o d o e t n o c e n t r i s m o t o r n a -se , d e s t e m o d o , d e s q u a l i f i c a n d o , s e n d o q u e se d e v e a d m i t i r o r e l a t i ­v i s m o c u l t u r a l : c a d a s o c i e d a d e p o s s u i o d i r e i t o d e d e s e n v o l v e r - s e d e m o d o au tónomo, i n e x i s t i n d o u m a t e o r i a a c e r c a d a h u m a n i d a d e q u e s e j a d o t a d a d e u m a l c a n c e u n i v e r s a l e c a p a z , p o r t a n t o , d e i m p o r - s e d i a n t e d e u m a o u t r a r e i v i n d i c a n d o q u a l q u e r t i p o d e s u p e ­r i o r i d a d e .

R e s t a m d o i s p r o b l e m a s s e m solução. U m d e caráter e p i s t e m o ­lógico: c o m o é possível a construção d e u m s a b e r q u e p o s s u a v a l i ­d a d e u n i v e r s a l i n d o além d a s p a r t i c u l a r i d a d e s d e c a d a c u l t u r a s e m s e r e s t e s a b e r a imposição d o s padrões d e u m a c u l t u r a a t o d a s a s d e m a i s ? O o u t r o p r o b l e m a é d e caráter político: c o m o é possível o e s t a b e l e c i m e n t o , n u m m u n d o c a d a v e z m a i s ( c o n f l i t u o s a m e n t e ) i n t e r - r e l a c i o n a d o , d e critérios s u p r a c u l t u r a i s d e convivência e d e interação?

9 L u c y M a i r , Natives Policies, 1937. C i t a d o p o r G e r a r d L e c l e r e . Anlropologie et colonialisme. P a r i s , F a y a r d , 1972, p . 1 5 1 .

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24 N E S T O R GARCÍA C A N C L I N I

E m 1 9 4 7 a Associação Antropológica N o r t e - A m e r i c a n a , t e n d o e m v i s t a " o g r a n d e número d e s o c i e d a d e s q u e e n t r a r a m e m e s t r e i t o c o n t a t o c o m o m u n d o m o d e r n o e a d i v e r s i d a d e d o s s e u s m o d o s d e v i d a " , a p r e s e n t o u às Nações U n i d a s u m p r o j e t o d e D e c l a ­ração s o b r e o s D i r e i t o s d o H o m e m q u e a s p i r a v a r e s p o n d e r a e s t a p e r g u n t a : " C o m o a declaração p r o p o s t a p o d e s e r aplicável a t o d o s o s s e r e s h u m a n o s e não s e r u m a declaração d e d i r e i t o s c o n c e b i d a u n i c a m e n t e n o s t e r m o s d o s v a l o r e s d o m i n a n t e s n o s países d a E u r o ­p a O c i d e n t a l e d a América d o N o r t e ? " A p a r t i r " d o s r e s u l t a d o s d a s ciências h u m a n a s " f o r a m s u g e r i d o s três p o n t o s d e a c o r d o : " 1 ? ) O indivíduo c o n c r e t i z a a s u a p e r s o n a l i d a d e através d a c u l t u r a ; o r e s p e i t o às diferenças i n d i v i d u a i s i m p l i c a , p o r t a n t o , o r e s p e i t o às diferenças c u l t u r a i s ; 2 ? ) O r e s p e i t o p o r e s t a diferença c u l t u r a é váli­d o c o m o consequência d o f a t o científico d e q u e não se c o n s e g u i u d e s c o b r i r n e n h u m a técnica d e avaliação q u a l i t a t i v a d a s c u l t u r a s " ( . . . ) " O s f i n s q u e o r i e n t a m a v i d a d e u m p o v o são e v i d e n t e s p o r s i m e s m o s e m s e u s i g n i f i c a d o p a r a e s t e p o v o , não p o d e n d o s e r s u p e ­r a d o s p o r n e n h u m p o n t o d e v i s t a , i n c l u i n d o o d a s p s e u d o v e r d a d e s e t e r n a s " ; 3 ? ) " O s padrões e v a l o r e s são r e l a t i v o s à c u l t u r a d a q u a l d e r i v a m , d e m o d o q u e t o d a s a s t e n t a t i v a s d e formulação d e p o s t u ­l a d o s q u e d e r i v e m d e crenças o u códigos m o r a i s d e u m a c u l t u r a d e v e m s e r , d e s t e m o d o , r e t i r a d o s d a aplicação d e t o d a Declaração d o s D i r e i t o s d o H o m e m à h u m a n i d a d e c o m o u m t o d o . " 1 0

É b a s t a n t e d i v e r t i d o r e g i s t r a r q u a n t a s v e z e s e s t e p r o j e t o , q u e t e m p o r o b j e t i v o e v i t a r o e t n o c e n t r i s m o , r e c o r r e a e l e ; q u a n t a s v e z e s s u a a l e g a d a fundamentação científica não p a s s a d e t e n d e n ­c i o s a argumentação ideológica. O s e u p o n t o d e p a r t i d a é o i n d i ­víduo — c o l o c a d o n e s t e l u g a r p e l o l i b e r a l i s m o clássico — e não a e s t r u t u r a s o c i a l o u a s o l i d a r i e d a d e o u a i g u a l d a d e e n t r e o s h o m e n s , c o m o s u s t e n t a r i a m o u t r a s t e o r i a s científicas o u políticas. O r e s ­p e i t o às diferenças é d e f e n d i d o p o r q u e não se e n c o n t r o u n e n h u m a técnica d e avaliação q u a l i t a t i v a d a s c u l t u r a s , o q u e s i g n i f i c a q u e se t r a t a d e u m raciocínio q u e p e r m a n e c e p r e s o a u m a oposição metodológica ( q u a n t i t a t i v o / q u a l i t a t i v o ) q u e é própria d o s a b e r o c i ­d e n t a l .

O a t a q u e d e p r e c i a t i v o a o m i t o e à religião ( " a s p s e u d o v e r d a ­d e s e t e r n a s " ) , além d e n e g a r o p r o c l a m a d o r e s p e i t o a o q u e c a d a c u l t u r a c o n s i d e r a c o m o v a l i o s o , r e v e l a e m q u e g r a u e s t a declaração é p r e s a a u m a concepção e m p i r i s t a , q u e n e m a o m e n o s p o d e s e r

1 1 1 C i l a d a p o r G . L e c l e r e , op. cit,, p p . 161-163.

A S C U L T U R A S P O P U L A R E S N O C A P I T A L I S M O 25

g e n e r a l i z a d a p a r a t o d a s a s e p i s t e m o l o g i a s o c i d e n t a i s . P o r f i m , p e r ­g u n t a m o s : c o m o se p o d e e s t a b e l e c e r u m c o n h e c i m e n t o científico q u e s u g e r e a s v e r d a d e s p a r c i a i s , etnocêntricas d e c a d a c u l t u r a , c o m b a s e n e s t e c e t i c i s m o r e l a t i v i s t a ? C o m o d e l i n e a r u m a política q u e s e j a a d e q u a d a à situação d e interdependência q u e já e x i s t e n o m u n ­d o e à homogeneização planetária alcançada p e l a s políticas i m p e ­r i a l i s t a s , s e c o n t a m o s a p e n a s c o m u m p l u r a l i s m o q u e se b a s e i a n u m r e s p e i t o v o l u n t a r i s t a o u verborrágico, i n d i f e r e n t e às c a u s a s c o n c r e ­t a s d a d i v e r s i d a d e e d a d e s i g u a l d a d e e n t r e a s c u l t u r a s ?

Lévi-Strauss c o l o c a a e s t r u t u r a , e não o indivíduo, c o m o p o n t o d e p a r t i d a d a s u a t e o r i a , não s a c r a l i z a a s avaliações e m p i r i s ­t a s c o m o o s p r o c e d i m e n t o s e x c l u s i v o s d e u m a demonstração n e m e n c a r a o s m i t o s c o m a i n s e n s i b i l i d a d e d e t a n t o s antropólogos p o s i ­t i v i s t a s . E n t r e t a n t o , a s u a b u s c a p o r u m a concepção m u l t i c e n t r a d a d a história — c o r r e t a s e l e v a r e m consideração a s inter-relações e o s c o n f l i t o s — " p e r c e b e " a s diferenças c o m o p r o d u t o d o a c a s o , c o m a t r i v i a l i d a d e d e q u e m e s p a r r a m a o s d a d o s s o b r e u m a m e s a d e j o g o . T a l v e z a s u a o u t r a metáfora, a d o " c a v a l o d e x a d r e z q u e t e m à s u a disposição m u i t a s p o s s i b i l i d a d e s d e avanço, m a s q u e n u n c a se e n c a m i n h a m p a r a o m e s m o s e n t i d o " , d e v i d o às implicações políti­c a s d e s t e j o g o , p u d e s s e tê-lo f e i t o p e r g u n t a r - s e a s i m e s m o se a e s c o l h a d e u m a direção o u d e o u t r a n o p r o c e s s o d e d e s e n v o l v i m e n t o s o c i a l não d e p e n d e r i a d e q u e m m o v e o s c a v a l o s e o s peões. M a s a t e o r i a e s t r u t u r a l i s t a d a s o c i e d a d e n e s t e p o n t o a s s e m e l h a - s e e m d e m a s i a às t e o r i a s d o c u l t u r a l i s m o e d o f u n c i o n a l i s m o ; a o m n i d e -terminação sinerônica d a e s t r u t u r a não está m u i t o l o n g e d a t e o r i a d o c o n s e n s o e d a interdependência harmónica d a s funções n a s o u t r a s d u a s t e o r i a s . A s três, d e s t e m o d o , t o r n a m - s e i n c a p a z e s d e p e n s a r a s transformações e o s c o n f l i t o s . O p e n s a m e n t o l i b e r a l j o g a o x a d r e z c o m peças d i s t i n t a s e m e d i a n t e estratégias v a r i a d a s , m a s a s o r d e n a e n g e n h o s a m e n t e d e m o d o q u e o f u n c i o n a l i s m o , o c u l t u ­r a l i s m o e o e s t r u t u r a l i s m o s e j a m s o m a d o s a o f i n a l , " v i s a n d o a f o r ­mação d e u m a combinação favorável" .

A transnacionalização d a c u l t u r a

D u r a n t e m u i t o t e m p o a c r e d i t o u - s e q u e o r e l a t i v i s m o c u l t u r a l e r a a consequência m a i s a d e q u a d a d a d e s c o b e r t a d e q u e não e x i s ­t e m c u l t u r a s s u p e r i o r e s e i n f e r i o r e s . V i m o s q u e o r e l a t i v i s m o , s e c o l a b o r a n a superação d o e t n o c e n t r i s m o , d e i x a e m a b e r t o p r o b l e -

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26 N E S T O R G A R C I A C A N C L I N I

m a s q u e são f u n d a m e n t a i s n u m a t e o r i a d a c u l t u r a : a construção d e u m c o n h e c i m e n t o q u e p o s s u a v a l i d a d e u n i v e r s a l e d e critérios q u e s i r v a m p a r a p e n s a r e r e s o l v e r o s c o n f l i t o s e d e s i g u a l d a d e s i n t e r c u l -t u r a i s .

D e v o d i z e r , f i n a l m e n t e , q u e o r e l a t i v i s m o c u l t u r a l n a u f r a g a p o r q u e s e a p o i a n u m a concepção a t o m i z a d a e ingénua d o p o d e r : i m a g i n a q u e c a d a c u l t u r a e x i s t e s e m s a b e r n a d a d a s d e m a i s , c o m o se o m u n d o f o s s e u m v a s t o m u s e u h a b i t a d o p o r e c o n o m i a s a u t o -s u f i c i e n t e s , c a d a u m a n a s u a v i t r i n a , imperturbável d i a n t e d a p r o x i ­m i d a d e d a s d e m a i s , e r e p e t i n d o i n v a r i a v e l m e n t e o s s e u s códigos, a s s u a s relações i n t e r n a s . A p o u c a u t i l i d a d e d o r e l a t i v i s m o c u l t u r a l t o r n a - s e e v i d e n t e q u a n d o s e p e r c e b e q u e e l e p r o d u z i u u m a n o v a a t i ­t u d e d i a n t e d e c u l t u r a s r e m o t a s , m a s q u e é i m p r o d u t i v o q u a n d o o s " p r i m i t i v o s " são o s s e t o r e s " a t r a s a d o s " d a s u a própria s o c i e d a d e , q u a n d o são o s c o s t u m e s e crenças q u e e x i s t e m n a s p e r i f e r i a s d a n o s s a c i d a d e q u e s e n t i m o s c o m o e s t r a n h o s .

A t a r e f a m a i s f r e q u e n t e d o antropólogo, n e s t a época d e e x p a n ­são planetária d o c a p i t a l i s m o , não é a d e e s t a b e l e c e r cordões s a n i ­tários e n t r e a s c u l t u r a s , m a s a v e r i g u a r o q u e a c o n t e c e q u a n d o o r e l a t i v i s m o c u l t u r a l é n e g a d o c o t i d i a n a m e n t e , q u a n d o a s p e s s o a s são o b r i g a d a s a e s c o l h e r e n t r e c o s t u m e s e v a l o r e s antagónicos, q u a n d o u m a c o m u n i d a d e indígena p e r c e b e q u e o c a p i t a l i s m o c o n ­v e r t e e m espetáculo p a r a t u r i s t a s a s s u a s f e s t a s t r a d i c i o n a i s , o u q u a n d o o s m e i o s d e comunicação d e m a s s a c o n v e n c e m o s operários d e u m a c i d a d e d e q u i n z e milhões d e h a b i t a n t e s q u e o s símbolos indígenas, r u r a i s , d o m o d o c o m o e s t e s m e i o s o s i n t e r p r e t a m , r e p r e ­s e n t a m a s u a i d e n t i d a d e .

A s afirmações a r e s p e i t o d a i g u a l d a d e d o género h u m a n o , d a r e l a t i v i d a d e d a s c u l t u r a s e d o d i r e i t o d e c a d a u m a d e l a s d e d e s e n ­v o l v e r a s u a f o r m a própria, são i n c o n s i s t e n t e s s e nós não a s i t u a ­m o s n o i n t e r i o r d a s condições a t u a i s o n d e v i g o r a m a u n i v e r s a l i z a ­ção e a interdependência. N o m u n d o contemporâneo e s t a i n t e r d e ­pendência não é u m a relação d e r e c i p r o c i d a d e igualitária, c o m o n a s s o c i e d a d e s a r c a i c a s o n d e o intercâmbio d e a l i m e n t o s e r a c o n t r o ­l a d o p o r princípios q u e r e s t a b e l e c i a m o equilíbrio. A m u l t i n a c i o n a -lização d o c a p i t a l , q u e é a c o m p a n h a d a p e l a transnacionalização d a c u l t u r a , impõe u m a t r o c a d e s i g u a l t a n t o a o s b e n s m a t e r i a i s q u a n t o a o s b e n s simbólicos. M e s m o o s g r u p o s étnicos m a i s r e m o t o s são o b r i g a d o s a s u b o r d i n a r a s u a organização económica e c u l t u r a l a o s m e r c a d o s n a c i o n a i s , e e s t e s t r a n s f o r m a m - s e e m satélites d a metró­p o l e , d e a c o r d o c o m u m a lógica monopolística.

A S C U L T U R A S P O P U L A R E S N O C A P I T A L I S M O 27

A d i v e r s i d a d e d o s padrões c u l t u r a i s , d o s o b j e t o s e d o s hábitos d e c o n s u m o é u m f a t o r d e per turbação intolerável p a r a a s n e c e s ­s i d a d e s d a expansão c o n s t a n t e q u e é intrínseca a o c a p i t a l i s m o . A s d i f e r e n t e s m o d a l i d a d e s d a produção c u l t u r a l ( d a b u r g u e s i a e d o p r o l e t a r i a d o , d o c a m p o e d a c i d a d e ) são r e u n i d a s , e até c e r t o p o n t o h o m o g e n e i z a d a s , d e v i d o à absorção, n u m único s i s t e m a , d e t o d a s a s f o r m a s d e produção ( m a n u a l e i n d u s t r i a l , r u r a l e u r b a n a ) . A homogeneização d a s aspirações não s i g n i f i c a q u e o s r e c u r s o s sãoí •/ i g u a l a d o s . Não são e l i m i n a d a s a s distâncias e n t r e a s c l a s s e s n e m e n t r e a s s o c i e d a d e s n o a s p e c t o f u n d a m e n t a l — a p r o p r i e d a d e e o c o n t r o l e d o s m e i o s d e produção —, m a s £e c r i a a ilusão d e q u e t o d o s p o d e m d e s f r u t a r , r e a l o u v i r t u a l m e n t e , d a s u p e r i o r i d a d e d a c u l t u r a d o m i n a n t e . Q u a l q u e r d e s e n v o l v i m e n t o au tónomo o u a l t e r ­n a t i v o p o r p a r t e d a s c u l t u r a s s u b a l t e r n a s é i m p e d i d o , t a n t o o s e u c o n s u m o e produção q u a n t o a s u a e s t r u t u r a s o c i a l e l i n g u a g e m são r e o r d e n a d o s c o m a f i n a l i d a d e d e se t o r n a r e m a d a p t a d o s a o d e s e n ­v o l v i m e n t o c a p i t a l i s t a . C o m o a n a l i s a r e m o s n o s próximos capítu­l o s , às v e z e s s e p e r m i t e q u e a l g u m a s f e s t a s t r a d i c i o n a i s s u b s i s t a m , m a s o s e u caráter d e celebração c o m u n a l é diluído n o i n t e r i o r d a organização m e r c a n t i l d o l a z e r turístico; u m a c e r t a sobrevivência d e peças d e a r t e s a n a t o é a d m i t i d a , e i n c l u s i v e p r o m o v i d a , c o m o o b j e t i v o d e p r o p o r c i o n a r u m a r e n d a c o m p l e m e n t a r p a r a a s famí­l i a s c a m p o n e s a s e a s s i m r e d u z i r o s e u êxodo p a r a a s c i d a d e s , o u s e j a , p a r a " s o l u c i o n a r " o d e s e m p r e g o e a injustiça d o c a p i t a l i s m o , a c u j a lógica m e r c a n t i l o s d e s e n h o s e a circulação d o s p r o d u t o s a r t e s a n a i s também estão s u b m e t i d o s .

N e s t e c o n t e x t o , q u e s e n t i d o p o d e t e r f a l a r m o s d e r e l a t i v i s m o c u l t u r a l ? A " s u p e r a ç ã o " prática d o e t n o c e n t r i s m o q u e o c a p i t a l i s ­m o p r o d u z i u f o i a imposição d e s e u s padrões económicos e c u l t u ­r a i s às s o c i e d a d e s d e p e n d e n t e s e às c l a s s e s p o p u l a r e s . À l u z d e s t a situação t o r n a - s e difícil a c r e d i t a r m o s n o s a p e l o s favoráveis a o r e s ­p e i t o p e r a n t e a s p a r t i c u l a r i d a d e s d e c a d a c u l t u r a , b e m c o m o n o s r e s i g n a r m o s d i a n t e d a s f o r m a s d e e t n o c e n t r i s m o q u e i m p e d e m a coexistência harmónica e n t r e a s c u l t u r a s . D e f a t o , e x i s t e m d o i s t i p o s d e e t n o c e n t r i s m o q u e s u r g e m c o m o consequência d o p r o c e s s o c a p i t a l i s t a d e t r o c a d e s i g u a l : o i m p e r i a l i s t a , q u e através d a m u l t i n a -cionalização d a e c o n o m i a e d a c u l t u r a t e n d e a a n u l a r t o d a o r g a n i ­zação s o c i a l q u e se t r a n s f o r m e e m d i s f u n c i o n a l ; e o d a s nações, c l a s s e s e e t n i a s o p r i m i d a s , q u e só p o d e m l i b e r t a r - s e p o r intermédio d e u m a enérgica auto-afirmação d a s u a s o b e r a n i a económica e d a s u a i d e n t i d a d e c u l t u r a l . P a r a e s t a s últimas o r e l a t i v i s m o c u l t u r a l ,

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28 N E S T O R GARCÍA C A N C L 1 N I

n o q u e p o s s a t e r d e p o s i t i v o , não é a p e n a s a consequência filosófica d o c o n h e c i m e n t o p r o d u z i d o p e l a s ciências s o c i a i s , m a s u m a exigên­c i a política indispensável p a r a q u e c o n s i g a m o a u t o - r e c o n h e c i m e n t o e o c r e s c i m e n t o c o m a u t o n o m i a . D e v i d o a i s t o , a superestimação d a própria c u l t u r a — c o m o a c o n t e c e n o s m o v i m e n t o s n a c i o n a l i s ­t a s , étnicos e d e c l a s s e s e m l u t a p e l a libertação — não é o c o m e t i ­m e n t o d e u m e r r o o u d e u m a p a r c i a l i d a d e a s e r l a m e n t a d o , m a s u m m o m e n t o necessário d o p r o c e s s o d e negação d a c u l t u r a d o m i n a n t e e d e auto-afirmaçâo c u l t u r a l .

O s c o m p o n e n t e s i r r a c i o n a i s q u e c o s t u m a m a p a r e c e r e m p r o ­c e s s o s d e s t e t i p o — a tentação c h a u v i n i s t a — p o d e m s e r c o n t r o l a ­d o s p o r intermédio d e d o i s r e c u r s o s : u m a autocrítica n o i n t e r i o r d a própria c u l t u r a e o e s t a b e l e c i m e n t o d e u m a interação solidária c o m o s d e m a i s g r u p o s e nações o p r i m i d o s . U m a m a i o r universalização d o c o n h e c i m e n t o , l i b e r t o d e t o d o e t n o c e n t r i s m o , só será possível c o m o a d v e n t o d a superação d a s contradições e d a s d e s i g u a l d a d e s . C o m o a r g u m e n t a v a G r a m s c i , t e r m i n a r c o m o q u e o e t n o c e n t r i s m o p o s s u i d e d i s t o r c i v o , " l i b e r t a r - s e d a s i d e o l o g i a s p a r c i a i s e f a l a z e s " , " n ã o é u m p o n t o d e p a r t i d a , m a s d e c h e g a d a " ; a l u t a necessária p e l a o b j e t i v i d a d e " é a própria l u t a p e l a unificação d o género h u ­m a n o " . " M a s i n c l u s i v e n e s t a situação utópica, n a q u a l s e t e r i a m e x t i n g u i d o a s d e s i g u a l d a d e s , subsistirá u m a d i v e r s i d a d e não c o n ­traditória d e línguas, c o s t u m e s , c u l t u r a s .

E m direção a u m a t e o r i a d a produção c u l t u r a l

O c o n c e i t o m a i s a b r a n g e n t e d e c u l t u r a , o q u e a d e f i n e e m oposição à n a t u r e z a , a p r e s e n t a d o i s i n c o v e n i e n t e s , q u e f a z e m c o m q u e n o s d e c i d a m o s a descartá-lo. Já m e n c i o n a m o s q u e o s e u e n f o ­q u e r e s u l t o u n u m a equiparação d e t o d a s a s c u l t u r a s , m a s não p r o ­d u z i u e l e m e n t o s c a p a z e s d e p e n s a r a s d e s i g u a l d a d e s e x i s t e n t e s e n t r e e l a s . P o r o u t r o l a d o , e s t e e n f o q u e e n g l o b a , s o b o n o m e d e c u l t u r a , t o d a s a s instâncias e m o d e l o s d e c o m p o r t a m e n t o d e u m a formação s o c i a l — a organização económica, a s relações s o c i a i s , a s e s t r u t u r a s m e n t a i s , a s práticas artísticas e t c . — s e m c o n s t r u i r u m a h i e r a r q u i a

" A n t o n i o G r a m s c i , E l M a t e r i a l i s m o histórico y l a f i l o s o f i a de Benedetto Croce, B u e n o s A i r e s , N u e v a V i s i o n , 1973, p p . 150 -151 . ( p . 170 d a t r a d . b r a s i l e i r a , A Concepção Dialética da História, R i o d e J a n e i r o , E d . Civilização B r a s i l e i r a , 1978, 2? e d . ) .

A S C U L T U R A S P O P U L A R E S N O C A P I T A L I S M O 29

q u e l e v e e m consideração o p e s o d e c a d a u m a . C o m o o b s e r v o u R o g e r E s t a b l e t , a noção d e c u l t u r a s e t r a n s f o r m a a s s i m n o sinóni­m o i d e a l i s t a d o c o n c e i t o d e formação s o c i a l . 1 2 Antropólogos c o m o R u t h B e n e d i c t e n q u a d r a m - s e n e s t e e n f o q u e ; p a r a e l a a c u l t u r a é a f o r m a d e u m a s o c i e d a d e u n i f i c a d a p e l o s v a l o r e s d o m i n a n t e s .

P o r e s t a s razões, p r e f e r i m o s r e s t r i n g i r o u s o d o t e r m o cultura p a r a a produção de fenómenos que contribuem, mediante a repre­sentação ou reelaboração simbólica das estruturas materiais, para a compreensão, reprodução ou transformação do sistema social, ou seja, a cultura diz respeito a todas as práticas e instituições dedica­das à administração, renovação e reestruturação do sentido.

E s t a restrição a s s e m e l h a - s e à q u e L i n t o n e o u t r o s antropólo­g o s r e a l i z a r a m a o o p o r e m c u l t u r a a s o c i e d a d e : e m p r e g a r a m a p a l a ­v r a c u l t u r a a p e n a s p a r a o c a m p o d a s crenças, d o s v a l o r e s e i d e i a s , d e i x a n d o d e f o r a a t e c n o l o g i a , a e c o n o m i a e a s c o n d u t a s e m p i r i c a ­m e n t e observáveis. M a s a definição q u e e s t a m o s p r o p o n d o não o p e r a u m a identificação d o c u l t u r a l c o m o i d e a l e d o s o c i a l c o m o m a t e r i a l , m u i t o m e n o s supõe q u e s e j a possível a n a l i s a r m o s e s t e s níveis d e m a n e i r a s e p a r a d a . A o contrário, o s p r o c e s s o s i d e a i s ( d e representação o u reelaboração simbólica) r e m e t e m a e s t r u t u r a s m e n t a i s , a operações d e reprodução o u transformação s o c i a l , a práticas e instituições q u e , p o r m a i s q u e se o c u p e m d a c u l t u r a , i m p l i c a m u m a c e r t a m a t e r i a l i d a d e . E não é só i s t o : não e x i s t e p r o ­dução d e s e n t i d o q u e não e s t e j a i n s e r i d a e m e s t r u t u r a s m a t e r i a i s .

P o d e r i a s e r a s s i n a l a d a , também, a equivalência e n t r e a n o s s a definição d e c u l t u r a e o c o n c e i t o m a r x i s t a d e i d e o l o g i a . E f e t i v a -m e n t e , a t e o r i a d a c u l t u r a c o i n c i d e e m p a r t e c o m a t e o r i a d a i d e o ­l o g i a , e p r e c i s a d e l a p a r a r e l a c i o n a r o s p r o c e s s o s c u l t u r a i s c o m a s s u a s condições s o c i a i s d e produção. E n t r e t a n t o , n e m t u d o é ideoló­g i c o n o s fenómenos c u l t u r a i s s e e n t e n d e r m o s q u e a i d e o l o g i a p o s s u i c o m o t raço d i s t i n t i v o , d e a c o r d o c o m a m a i o r i a d o s a u t o r e s m a r x i s ­t a s , u m a deformação d o r e a l m o t i v a d a p e l o s i n t e r e s s e s d e c l a s s e . M a n t e m o s o t e r m o c u l t u r a , s e m o s u b s t i t u i r m o s p o r i d e o l o g i a , p r e ­c i s a m e n t e p a r a alcançarmos o s f a t o s n u m s e n t i d o m a i s a m p l o . T o d a produção d e s i g n i f i c a d o ( f i l o s o f i a , a r t e , a própria ciência) é passível d e s e r e x p l i c a d a e m t e r m o s d e relação c o m a s s u a s d e t e r m i ­nações s o c i a i s . M a s e s s a explicação não e s g o t a o fenómeno. A c u l ­t u r a não a p e n a s r e p r e s e n t a a s o c i e d a d e ; c u m p r e também, d e n t r o

1 2 R o g e r E s t a b l e t , " C u l t u r e e t idéologie", Cahiers marxistes leninistes, P a r i s , n ? s

12-13, j u l . - o u t . 1966, p p . 7-26 .

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d a s n e c e s s i d a d e s d e produção d o s e n t i d o , a função d e r e e l a b o r a r a s e s t r u t u r a s s o c i a i s e i m a g i n a r o u t r a s n o v a s . Além d e representar a s relações d e produção, c o n t r i b u i p a r a a s u a reprodução, transfor­mação e p a r a a criação d e o u t r a s relações.

A l g u n s a u t o r e s , c u j a a b o r d a g e m será u t i l i z a d a n a s páginas s e g u i n t e s , incluíram c o m o p a r t e d a t e o r i a m a r x i s t a d a i d e o l o g i a e s t a função d e i n s t r u m e n t o p a r a a reprodução e transformação s o c i a l . Não o b s t a n t e , p r e f e r i m o s i n s i s t i r n a existência d e u m a d i f e ­rença e n t r e a c u l t u r a e a i d e o l o g i a , d e v i d o a o f a t o d e q u e c o n t i n u a p r e v a l e c e n d o n a b i b l i o g r a f i a a interpretação d a i d e o l o g i a c o m o u m a representação d i s t o r c i d a d o r e a l .

Q u a i s são a s consequências metodológicas d a análise d a c u l ­t u r a c o m o u m s i s t e m a d e produção? O d e s e n v o l v i m e n t o ( e m b o r a a i n d a i n s u f i c i e n t e ) d e u m a t e o r i a d a produção simbólica o u c u l t u r a l é o q u e está p e r m i t i n d o a concretização n e s t e c a m p o d a r u p t u r a c o m o i d e a l i s m o q u e já f o i r e a l i z a d a p e l a s ciências s o c i a i s e m o u t r o s níveis. R e s u m i r e m o s e m a l g u m a s páginas o t r i p l o m o v i ­m e n t o i m p l i c a d o n e s t a reorganização d a t e o r i a d a c u l t u r a .

A f i r m a r q u e a c u l t u r a é u m p r o c e s s o s o c i a l d e produção s i g n i ­f i c a , a n t e s d e t u d o , o p o r - s e às concepções q u e e n t e n d e m a c u l t u r a c o m o u m a t o e s p i r i t u a l (expressão, criação) o u c o m o u m a m a n i f e s ­tação a l h e i a , e x t e r i o r e p o s t e r i o r às relações d e produção ( s e n d o u m a s i m p l e s representação d e l a s ) . H o j e p o d e m o s e n t e n d e r p o r q u e a c u l t u r a c o n s t i t u i u m nível específico d o s i s t e m a s o c i a l e p o r s u a v e z p o r q u e não p o d e s e r e s t u d a d a i s o l a d a m e n t e . Não a p e n a s p o r ­q u e está determinada p e l o s o c i a l , e n t e n d i d o c o m o a l g o d i s t i n t o d a c u l t u r a , q u e é i n c o r p o r a d o a p a r t i r d o s e u e x t e r i o r , m a s p o r q u e está inserida e m t o d o f a t o sócio-econômico. Q u a l q u e r prática é s i m u l t a ­n e a m e n t e económica e simbólica, u m a v e z q u e a g i m o s através d e l a , construímos u m a representação q u e l h e a t r i b u i u m s i g n i f i c a d o . C o m p r a r u m v e s t i d o o u t r a n s p o r t a r - s e p a r a o t r a b a l h o , d u a s práti­c a s sócio-econômicas h a b i t u a i s , estão c a r r e g a d a s d e s e n t i d o simbó­l i c o : o v e s t i d o o u o m e i o d e t r a n s p o r t e — além d o s e u v a l o r d e u s o : c o b r i r - n o s , t r a s p o r t a r - n o s — s i g n i f i c a m , d e a c o r d o c o m o t e c i d o e o d e s e n h o d o v e s t i d o , o u t e n d o e m v i s t a s e u t i l i z a m o s u m ônibus o u u m c a r r o , e s u a m a r c a , q u e p e r t e n c e m o s a u m a d e t e r m i n a d a c l a s s e s o c i a l . A s características d a r o u p a o u d o c a r r o c o m u n i c a m a l g o d a n o s s a inserção s o c i a l , o u d o l u g a r a o q u a l a s p i r a m o s , d o q u e q u e r e ­m o s t r a n s m i t i r a o s o u t r o s a o usá-los. D e m o d o i n v e r s o , q u a l q u e r f a t o c u l t u r a l — a s s i s t i r a u m c o n c e r t o , p r e p a r a r u m a conferência — p o s s u i s e m p r e u m nível sócio-econômico implícito: p a g a r a m - m e

A S C U L T U R A S P O P U L A R E S N O C A P I T A L I S M O 31

p e l a conferência, a o i r m o s a o c o n c e r t o c o m p r a m o s i n g r e s s o s q u e f i n a n c i a m o espetáculo, e além d o m a i s , e s se s f a t o s n o s r e l a c i o n a m c o m a s p e s s o a s c o m q u e m t r a b a l h a m o s d e m o d o d i f e r e n t e d o q u e se disséssemos t e r i d o a u m a apresentação d e rock o u a s s i s t i r a danças indígenas.

A s d i f i c u l d a d e s a r e s p e i t o d e c o m o v i n c u l a r a i n f r a - e s t r u t u r a e a s u p e r e s t r u t u r a s u r g i r a m e m consequência d e u m a interpretação d a diferença c o m o c o r r e s p o n d e n d o a u m a divisão. N a r e a l i d a d e a e c o n o m i a e a c u l t u r a c a m i n h a m i m b r i c a d a s u m a n a o u t r a . P o d e m s e r d i s t i n g u i d a s e n q u a n t o instâncias teórico-metodológicas, s e p a r a ­d a s n o nível d a representação científica, m a s e s t a diferenciação, q u e é necessária n o m o m e n t o analítico d o c o n h e c i m e n t o — c o m c e r t o a p o i o n a s aparências —, d e v e s e r s u p e r a d a n u m a síntese q u e dê c o n t a d a s u a integração. E x i s t e a n e c e s s i d a d e d e se d a r c o n t a t a n t o d a unidade q u a n t o d a distinção e n t r e o s níveis q u e compõem a t o t a l i d a d e s o c i a l . U m c o n h e c i m e n t o científico d a s s u p e r e s t r u ­t u r a s não é possível se não a s d i s t i n g u i m o s d a b a s e económica e não a n a l i s a m o s a s f o r m a s através d a s q u a i s e s t a b a s e a s d e t e r m i n a : a g i n d o s o b r e a s i d e o l o g i a s políticas, a m o r a l f a m i l i a r o u a l i t e r a t u r a c o m r a p i d e z e eficiência d i s t i n t a s . M a s t e n d o e m v i s t a q u e convém q u e d i s c r i m i n e m o s a e s p e c i f i c i d a d e d e c a d a instância c o m a f i n a l i ­d a d e d e p e r c e b e r m o s o s e u m o d o próprio d e a g i r , não se d e v e e s q u e ­c e r a s u a situação d e dependência recíproca p a r a não p e r d e r m o s o s i g n i f i c a d o q u e l h e s é atribuído p e l a t o t a l i d a d e à q u a l p e r t e n c e m .

O e s t u d o d a s s o c i e d a d e s a r c a i c a s , b e m c o m o o d a s s o c i e d a d e s c a p i t a l i s t a s , d e m o n s t r o u q u e o económico e o c u l t u r a l compõem u m a t o t a l i d a d e indissolúvel. Q u a l q u e r p r o c e s s o d e produção m a t e ­r i a l i n c l u i d e s d e o s e u n a s c i m e n t o i n g r e d i e n t e s i d e a i s a t i v o s , q u e são necessários p a r a o d e s e n v o l v i m e n t o d a i n f r a - e s t r u t u r a . O p e n s a ­m e n t o não é u m m e r o r e f l e x o d a s forças p r o d u t i v a s : e x i s t i n d o n e l a s d e s d e o s e u começo, c o n f i g u r a - s e c o m o u m a condição i n t e r n a d a s u a manifestação. P a r a q u e e x i s t a m u m t r a t o r o u u m c o m p u t a d o r , f a t o s m a t e r i a i s q u e o r i g i n a r a m mudanças i m p o r t a n t e s n o d e s e n v o l ­v i m e n t o d a s forças p r o d u t i v a s e d a s relações s o c i a i s d e produção, f o i p r e c i s o q u e o t r a t o r o u o c o m p u t a d o r , a n t e s d e t o m a r u m a f o r m a m a t e r i a l , t i v e s s e m s i d o c o n c e b i d o s p o r e n g e n h e i r o s ; o q u e não s i g n i f i c a q u e t e n h a m b r o t a d o e x c l u s i v a m e n t e a p a r t i r d e c o n s ­truções i n t e l e c t u a i s , q u e o i d e a l p r o d u z a o m a t e r i a l , p o r q u e , p o r o u t r o l a d o , f o i necessário u m c e r t o d e s e n v o l v i m e n t o d a b a s e m a t e ­r i a l , d a s forças s o c i a i s , p a r a q u e e s t a s máquinas p u d e s s e m s e r p e n ­s a d a s . D e m o d o s e m e l h a n t e , a s relações d e p a r e n t e s c o o u d e p r o d u -

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ção não p o d e m s e r m o d i f i c a d a s s e m q u e s i m u l t a n e a m e n t e s e j a m d e f i n i d a s n o v a s r e g r a s d e filiação, d e aliança e d e p r o p r i e d a d e , q u e não são representações a posteriori d a s mudanças , m a s c o m p o ­n e n t e s d o p r o c e s s o q u e d e v e m e x i s t i r d e s d e o s e u começo. E s t a p a r t e i d e a l , p r e s e n t e e m t o d o d e s e n v o l v i m e n t o m a t e r i a l , não é, então, a p e n a s u m conteúdo d a consciência; e x i s t e a o m e s m o t e m p o n a s relações s o c i a i s , q u e são, p o r t a n t o , também relações s i g n i f i ­c a t i v a s . 1 1

E m s e g u n d o l u g a r , f a l a r d a c u l t u r a c o m o produção supõe q u e se l e v e e m consideração o s p r o c e s s o s p r o d u t i v o s , m a t e r i a i s , q u e são necessários p a r a a invenção, o c o n h e c i m e n t o o u a representação d e a l g u m a c o i s a . N u m s e n t i d o g e r a l , a produção d e c u l t u r a s u r g e d a s n e c e s s i d a d e s g l o b a i s d e u m s i s t e m a s o c i a l e está d e t e r m i n a d a p o r e l e . M a i s e s p e c i f i c a m e n t e , e x i s t e u m a organização m a t e r i a l própria p a r a c a d a produção c u l t u r a l e q u e t o r n a possível a s u a existência ( a s u n i v e r s i d a d e s p a r a a produção d o c o n h e c i m e n t o , a s e d i t o r a s p a r a a produção d o s l i v r o s e t c ) . A análise d e s t a s instituições, d a s condições s o c i a i s q u e e l a s e s t a b e l e c e m p a r a o d e s e n v o l v i m e n t o d o s p r o d u t o s c u l t u r a i s , é d e c i s i v a p a r a a interpretação d e s t e s p r o d u t o s . O r e c o n h e c i m e n t o d a importância d e s t a s e s t r u t u r a s intermediárias p o d e e v i t a r d u a s deformações metodológicas: e s t u d a r m o s o s p r o ­d u t o s c u l t u r a i s , p o r e x e m p l o , u m a peça d e t e a t r o o u u m a dança p o p u l a r , a t e n d e n d o s o m e n t e a o s e n t i d o i n t e r n o d a o b r a , c o m o o f a z a crítica i d e a l i s t a , o u s i m p l e s m e n t e r e l a c i o n a r m o s a e s t r u t u r a d a o b r a c o m a s o c i e d a d e e m s e u c o n j u n t o . E n t r e a s determinações s o c i a i s g e r a i s e c a d a p r o d u t o c u l t u r a l e x i s t e u m c a m p o intermediá­r i o , o d a produção t e a t r a l , n u m c a s o , o d a dança, n o o u t r o . A i n d a q u e s e t r a t e d a m e s m a s o c i e d a d e , a organização s o c i a l a p a r t i r d a q u a l são g e r a d a s a s o b r a s t e a t r a i s é d i f e r e n t e d a q u e p r o m o v e a s danças p o p u l a r e s . A s determinações g e r a i s q u e o c a p i t a l i s m o e x e r ­c e s o b r e a produção artística são m e d i a d a s p e l a e s t r u t u r a d o c a m p o

3 M a u r i c e G o d c l i c r j u s t i f i c o u o p a p e l e s t r u t u r a l d e e l e m e n t o s t r a d i c i o n a l m e n t e j u l ­g a d o s c o m o ideológicos, u t i l i z a n d o m a t e r i a i s clássicos d a e t n o l o g i a ( " I n f r a e s -t r u c t u r a , s o c i e d a d e s e h i s t o r i a " , e m C u i c u i l c o , México, 1980, n " 1). M . D i s k i n e S . C o o k (Mercados de O a x a c u , México, I N I , 1975) e G i l b e r t o G i m e ­n e z ( C u l t u r a p o p u l a r y religión en cl A n a h u a c , México, C e n t r o d e Estúdios E c u ­ménicos, 1978), e n t r e o u t r o s , o f i z e r a m c o m c a s o s l a t i n o - a m e r i c a n o s , d e m o n s ­t r a n d o q u e n a s relações d e produção p o d e m e s t a r a m a l g a m a d a s a s relações d e p a r e n t e s c o e c o m p a d r i o , e l e m e n t o s jurídicos e políticos c o m o u m p r o g r a m a d e r e f o r m a aerária, a organização c e r i m o n i a l e simbólica d e u m a f e s t a .

0Jjfo.oo£-J [ B i b l i o t e c a Universitária U F S C

A S C U L T U R A S P O > U L i ' i R C 0 M O O ) ' i P I T ) ' i L I 0 H I O J 3

t e a t r a l n u m c a s o , e n o o u t r o , p e l a e s t r u t u r a d o s g r u p o s o u i n s t i t u i ­ções q u e o r g a n i z a m a s danças.

P o r t a n t o , a análise d e v e m o v e r - s e e m d o i s níveis: p o r u m l a d o examinará o s p r o d u t o s c u l t u r a i s c o m o representações: v e r i f i c a n d o c o m o o s c o n f l i t o s s o c i a i s a p a r e c e m d r a m a t i z a d o s n u m a o b r a t e a t r a l o u n u m a dança, q u a i s a s c l a s s e s q u e se e n c o n t r a m r e p r e s e n t a d a s , c o m o são e m p r e g a d o s o s p r o c e d i m e n t o s f o r m a i s d e c a d a l i n g u a ­g e m p a r a s u g e r i r a s u a p e r s p e c t i v a específica; n e s t e c a s o , e s t a b e -l e c e - s e u m a relação e n t r e a realidade s o c i a l e a s u a representação i d e a l . P o r o u t r o l a d o , relacionar-se-á a estrutura social c o m a estru­tura do campo teatral e c o m a estrutura do campo da dança, s e n d o q u e c o n s i d e r a m o s c o m o a e s t r u t u r a d e c a d a c a m p o a s relações s o c i a i s q u e o s a r t i s t a s d e t e a t r o e o s dançarinos mantêm c o m o s d e m a i s c o m p o n e n t e s d o s s e u s p r o c e s s o s estéticos: o s m e i o s d e p r o ­dução ( m a t e r i a i s , p r o c e d i m e n t o s ) e a s relações s o c i a i s d e produção ( c o m o público, c o m a q u e l e s q u e o s f i n a n c i a m , c o m o s o r g a n i s m o s e s t a t a i s e t c . ) . 1 4

E m t e r c e i r o l u g a r , o e s t i l o d a c u l t u r a c o m o produção supõe a consideração não a p e n a s d o a t o d e p r o d u z i r , m a s d e t o d o s o s p a s s o s d e u m p r o c e s s o p r o d u t i v o : a produção, a circulação e a recepção. T r a t a - s e d e u m o u t r o m o d o d e d i z e r q u e a análise d e u m a c u l t u r a não p o d e c o n c e n t r a r - s e n o s o b j e t o s o u n o s b e n s c u l t u r a i s ; d e v e o c u p a r - s e d o p r o c e s s o d e produção e circulação s o c i a l d o s o b j e t o s e d o s s i g n i f i c a d o s q u e r e c e p t o r e s d i f e r e n t e s l h e s a t r i b u e m . U m a dança d e m o u r o s e cristãos a p r e s e n t a d a n o i n t e r i o r d e u m a c o m u n i d a d e indígena p o r e l e s e p a r a e l e s não é a m e s m a dança q u a n d o a p r e s e n t a d a n u m t e a t r o u r b a n o p a r a u m público q u e é a l h e i o a e s s a tradição, e m b o r a a s s u a s e s t r u t u r a s f o r m a i s s e j a m idênticas. I s t o será v i s t o d e m o d o a i n d a m a i s c l a r o n o capítulo I V , a r e s p e i t o d o a r t e s a n a t o : a s v a s i l h a s p r o d u z i d a s p o r c o m u n i d a d e s indígenas, d e a c o r d o c o m a s r e g r a s d e produção m a n u a l e o p r e d o ­mínio d o v a l o r d e u s o n u m a e c o n o m i a q u a s e d e auto-subsistência, c m s e g u i d a são v e n d i d a s n u m m e r c a d o u r b a n o d e a c o r d o c o m o s e u v a l o r d e t r o c a e f i n a l m e n t e c o m p r a d a s p o r t u r i s t a s e s t r a n g e i r o s p e l o s e u v a l o r estético. S o m e n t e u m a visão g l o b a l d o p r o c e s s o p o d e e x p l i c a r o s e n t i d o d e s t a produção d e s l o c a d a n a s u a trajetória s o c i a l .

1 4 E s t e p o n t o está d e s e n v o l v i d o c o m m a i o r a m p l i t u d e n o n o s s o l i v r o L u Producción simbólica. T e o r i a y método en sociologia dei arte, México, S i g l o X X I , 1979, c a p . 3 (A Produção Simbólica: teoria e metodologia em sociologia da arte. R i o e lc J a n e i r o , E d . Civilização B r a s i l e i r a , 1979.)

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34 N E S T O R GARCÍA C A N C L I N 1

C u l t u r a , reprodução s o c i a l e p o d e r

O s e g u n d o a c o n t e c i m e n t o teórico q u e , j u n t a m e n t e c o m a aná­l i s e d o p r o c e s s o p r o d u t i v o , está c o n t r i b u i n d o p a r a s i t u a r a c u l t u r a n o p r o c e s s o d e d e s e n v o l v i m e n t o sócio-econômico é o q u e a i n t e r ­p r e t a c o m o u m i n s t r u m e n t o p a r a a reprodução s o c i a l e d a l u t a p e l a h e g e m o n i a . A p a t e r n i d a d e d e s t a c o r r e n t e p o d e s e r r a s t r e a d a a p a r ­t i r d e M a r x , m a s f o i G r a m s c i q u e m a t r i b u i u a t a i s c o n c e i t o s u m l u g a r c e n t r a l n a reflexão s o b r e a c u l t u r a . O d e s e n v o l v i m e n t o d e s u a s intuições p o r a u t o r e s r e c e n t e s ( A n g e l o B r o c c o l i , C h r i s t i n e B u c i - G l u c k s m a n n ) , s i m u l t a n e a m e n t e c o m o s t r a b a l h o s d e A l t h u s -s e r , B a u d e l o t e E s t a b l e t , d e m o n s t r o u a f e c u n d i d a d e d e s t a l i n h a p a r a a realização d e análises m a r x i s t a s , s o b r e t u d o a r e s p e i t o d o p r o c e s s o e d u c a c i o n a l . C o m u m a f o r t e influência m a r x i s t a , c r i a t i v a ­m e n t e v i n c u l a d a a o u t r a s tendências sociológicas ( e s p e c i a l m e n t e W e b e r ) , P i e r r e B o u r d i e u l e v o u e s t e m o d e l o à s u a m a i s a l t a s i s t e m a ­tização e d e m o n s t r o u o s e u p o d e r e x p l i c a t i v o e m d o i s l i v r o s f u n d a ­m e n t a i s q u e f o r a m d e d i c a d o s a o s i s t e m a d e e n s i n o e à produção, circulação e c o n s u m o d o s b e n s artísticos. 1 5

O s s i s t e m a s s o c i a i s , p a r a s u b s i s t i r e m , d e v e m r e p r o d u z i r e r e f o r m u l a r a s s u a s condições d e produção. T o d a formação s o c i a l r e p r o d u z a força d e t r a b a l h o através d o salário, a qualificação d e s t a força d e t r a b a l h o através d a educação e , p o r úl t imo, r e p r o d u z c o n s t a n t e m e n t e a adaptação d o t r a b a l h a d o r à o r d e m s o c i a l através d e u m a política cultural-ideológica q u e o r i e n t a t o d a a s u a v i d a , n o t r a b a l h o , n a família, n o l a z e r , d e m o d o q u e t o d a s a s s u a s c o n d u t a s e relações m a n t e n h a m u m s e n t i d o q u e s e j a compatível c o m a o r g a ­nização s o c i a l d o m i n a n t e . A reprodução d a adaptação a e s t a o r d e m r e q u e r " p a r a o s operários u m a reprodução d a s u a submissão à i d e o l o g i a d o m i n a n t e e p a r a o s a g e n t e s d a exploração u m a r e p r o d u ­ção d a c a p a c i d a d e d e m a n i p u l a r a i d e o l o g i a c o r r e t a m e n t e " . 1 6

A c r e s c e n t a r e m o s q u e r e q u e r também u m a readaptação d o s t r a b a ­l h a d o r e s às mudanças d a i d e o l o g i a d o m i n a n t e e d o s i s t e m a s o c i a l , e u m a renovação — e não s o m e n t e reprodução — d a i d e o l o g i a d o m i -

1 5 P i e r r e B o u r d i e u , L a Reproducción, Elementos p a r u u n a teoria dei sistema de ensenanza, B a r c e l o n a , L a i a , 1977. P i e r r e B o u r d i e u , L a D i s t i n c t i o n . C r i t i q u e social du jugement. P a r i s , M i n u i t , 1979.

1 6 L o u i s A l t h u s s e r , I d e o l o g i a y aparatos ideológicos dei Estado, México, E N A H , p . 15 ( p . 52 d a t r a d . b r a s i l e i r a " A p a r e l h o s d e E s t a d o e I d e o l o g i a " , i h Posições, v o l . 2 , R i o d e J a n e i r o , E d . G r a a l , 1980).

A S C U L T U R A S P O P U L A R E S N O C A P I T A L I S M O 35

n a n t e e m função d a s modificações d o s i s t e m a p r o d u t i v o e d o s c o n ­f l i t o s s o c i a i s . ( E s t e c o m p l e m e n t o n o s p a r e c e indispensável p a r a r e a ­l i z a r m o s u m a superação d o caráter estático d a concepção a l t h u s s e -r i a n a d a i d e o l o g i a , s o b r e t u d o c o m o f o i f o r m u l a d a e m s e u s p r i m e i ­r o s t e x t o s . )

Através d a reprodução d a adaptação, a c l a s s e d o m i n a n t e p r o ­c u r a c o n s t r u i r e r e n o v a r o c o n s e n s o d a s m a s s a s p a r a a política q u e f a v o r e c e o s s e u s privilégios económicos. U m a política hegemónica i n t e g r a l r e q u e r :

a ) a p r o p r i e d a d e d o s m e i o s d e produção e a c a p a c i d a d e d e a p r o p r i a r - s e d a m a i s - v a l i a ;

b ) o c o n t r o l e d o s m e c a n i s m o s necessários p a r a a reprodução m a t e r i a l e simbólica d a força d e t r a b a l h o e d a s relações d e produção (salário, e s c o l a , m e i o s d e comunicação e o u t r a s instituições c a p a z e s d e q u a l i f i c a r o s t r a b a l h a d o r e s e p r o v o ­c a r o s e u c o n s e n s o ) ;

c ) o c o n t r o l e d o s m e c a n i - m o s c o e r c i t i v o s (exército, polícia e d e m a i s a p a r e l h o s r e p r e s s i v o s ) c o m o s q u a i s s e j a possível a s s e g u r a r a p r o p r i e d a d e d o s m e i o s d e produção e a c o n t i ­n u i d a d e d a apropriação d a m a i s - v a l i a q u a n d o o c o n s e n s o se d e b i l i t a o u se p e r d e .

A p r o p r i e d a d e d o s m e i o s d e produção e a c a p a c i d a d e d e a p r o ­p r i a r - s e d o e x c e d e n t e é a b a s e d e t o d a h e g e m o n i a . E n t r e t a n t o , e m s o c i e d a d e a l g u m a a h e g e m o n i a d e u m a c l a s s e p o d e s u s t e n t a r - s e u n i ­c a m e n t e m e d i a n t e o p o d e r económico. N o o u t r o e x t r e m o , e n c o n ­t r a m o s o s m e c a n i s m o s r e p r e s s i v o s q u e , m e d i a n t e a vigilância, a intimidação o u o c a s t i g o g a r a n t e m — c o m o último r e c u r s o — a subordinação d a s c l a s s e s s u b a l t e r n a s . M a s se t r a t a d e u m último recurso. Não e x i s t e c l a s s e hegemónica q u e p o s s a a s s e g u r a r d u r a n t e m u i t o t e m p o o s e u poder económico a p e n a s c o m o poder repres­sivo. E n t r e a m b o s d e s e m p e n h a u m p a p e l c h a v e o poder cultural:

a ) impõe a s n o r m a s c u l t u r a i s e ideológicas q u e a d a p t a m o s m e m b r o s d a s o c i e d a d e a u m a e s t r u t u r a económica e polí­t i c a arbitrária ( c h a m a m o - l a arbitrária n o s e n t i d o d e q u e não e x i s t e m razões biológicas, s o c i a i s o u " e s p i r i t u a i s " , d e r i v a d a s d e u m a s u p o s t a " n a t u r e z a h u m a n a " o u d a " n a ­t u r e z a d a s c o i s a s " , q u e t o r n e m necessária u m a e s t r u t u r a s o c i a l d e t e r m i n a d a ) ;

b ) l e g i t i m a a e s t r u t u r a d o m i n a n t e , f a z c o m q u e e l a s e j a p e r c e -

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36 N E S T O R G A R C I A C A N C L I N l

b i d a c o m o a f o r m a " n a t u r a l " d a organização s o c i a l , e n c o ­b r i n d o p o r t a n t o a s u a a r b i t r a r i e d a d e ;

c ) t o r n a , também, o c u l t a a violência q u e e n v o l v e o p r o c e s s o d e adaptação d o indivíduo a u m a e s t r u t u r a e m c u j a c o n s ­trução não i n t e r v e i o e f a z c o m q u e a imposição d e s t a e s t r u ­t u r a s e j a s e n t i d a c o m o a socialização o u a adequação n e c e s ­sária a c a d a u m p a r a a v i d a e m s o c i e d a d e ( e não e m uma s o c i e d a d e p r e d e t e r m i n a d a ) . D e s t e m o d o , o p o d e r c u l t u r a l , a o m e s m o t e m p o q u e r e p r o d u z a a r b i t r a r i e d a d e sócio-c u l t u r a l , impõe c o m o necessária e n a t u r a l e s t a a r b i t r a r i e ­d a d e , o c u l t a e s t e p o d e r económico, f a v o r e c e o s e u e x e r ­cício e a s u a perpetuação.

A eficácia d e s t a imposição-dissimulação b a s e i a - s e , e m p a r t e , n o p o d e r g l o b a l d a c l a s s e d o m i n a n t e e n a p o s s i b i l i d a d e d e colocá-lo e m prática através d o E s t a d o , s i s t e m a d e a p a r e l h o s q u e r e p r e s e n t a p a r c i a l m e n t e ( u m a c l a s s e s o c i a l ) o c o n j u n t o d a s o c i e d a d e , e m b o r a s i m u l e representá-lo p l e n a m e n t e . A importância d o E s t a d o r e s i d e , t ambém, n o f a t o d e q u e e l e e s t e n d e c a d a v e z m a i s s u a organização e c o n t r o l e p a r a t o d a a v i d a s o c i a l : a e c o n o m i a , a política, a c u l t u r a , a existência c o t i d i a n a . M a s e s t a eficácia se a p o i a , a o m e s m o t e m p o , n a n e c e s s i d a d e d e t o d o indivíduo d e s e r s o c i a l i z a d o , d e a d a p t a r - s e a a l g u m t i p o d e e s t r u t u r a s o c i a l q u e p e r m i t a o s e u d e s e n v o l v i m e n t o p e s s o a l e p r o p o r c i o n e segurança a f e t i v a . P o r i s t o , se a d e s c o b e r t a d a a r b i t r a r i e d a d e e d a r e l a t i v i d a d e d a organização s o c i a l e m q u e se está i n s e r i d o , e d o s hábitos q u e se a d q u i r i u c o m e l a , é s e m p r e u m a percepção secundária, t a r d i a , q u a n t o m a i s não é a crítica a e s t a organização e a e s t e s hábitos. C o n c o r d a m o s c o m P i e r r e B o u r d i e u : " U m a c o i s a é o e n s i n o d o r e l a t i v i s m o c u l t u r a l , o u s e j a , d o caráter arbitrário d e t o d a c u l t u r a , a indivíduos q u e já f o r a m e d u c a d o s d e a c o r d o c o m o princípio d a a r b i t r a r i e d a d e c u l t u r a l d e u m g r u p o o u c l a s s e ; o u t r a c o i s a s e r i a a intenção d e o f e r e c e r u m a educação r e l a t i ­v i s t a , o u s e j a , a produção d e f a t o d e u m h o m e m c u l t i v a d o q u e f o s s e o indígena d e t o d a s a s c u l t u r a s . O s p r o b l e m a s c o l o c a d o s p e l a s s i t u a ­ções d e b i l i n g u i s m o o u b i c u l t u r a l i s m o p r e c o c e s o f e r e c e m a p e n a s u m a pálida i d e i a d a contradição insolúvel c o m q u e se d e f r o n t a r i a u m a ação pedagógica q u e p r e t e n d e s s e t o m a r c o m o princípio prá­t i c o d a a p r e n d i z a g e m a afirmação teórica d a a r b i t r a r i e d a d e d o s códigos linguísticos o u c u l t u r a i s . " 1 7

1 7 P i e r r e B o u r d i e u , L a Reproc/ucción, op. e /7 . , p p . 52-53 .

v , < U l T U R A S P O P U L A R E S N O C A P I T A L I S M O 37

i i d i f i c u l d a d e e m p e r c e b e r a s u a própria c u l t u r a c o m o r e l a -> • ' - i i i ndência p a r a u m a absolutização d o u n i v e r s o semântico n o q u t l l v \ \ c m o s p o s s u i u m a importância e n o r m e p a r a u m a ação polí-

I r u n s f o r m a d o r a . C o m o s u s c i t a r , a r e s p e i t o d o m o d o d e v i d a ''. l o i i m p o s t o m a s q u e a s s i m i l a m o s c o m o próprios, o d i s t a n -

1 necessário p a r a q u e s u r j a a visão crítica? E e m s e g u n d o n o c r i a r u m a d i s c i p l i n a crítica c o n s t a n t e , c o m o i m p e d i r

i " i i d e o l o g i a a l t e r n a t i v a através d a q u a l i m p u l s i o n a m o s a m u -• i m . , , i — o c a t o l i c i s m o p r o g r e s s i s t a , u m n a c i o n a l i s m o etnocêntrico

' são d o m a r x i s m o e l a b o r a d a d e a c o r d o c o m a s exigências d a l u r a — se t r a n s f o r m e n u m s i s t e m a a u t o - s u f i c i e n t e , f e c h a d o

O b r e si m e s m o , e p o r t a n t o r e s i s t e n t e à renovação? E s t e é u m d o s p r o b l e m a s m a i s difíceis n o q u e d i z r e s p e i t o a o p a p e l político d a s • u l l u r a s p o p u l a r e s , m a s n o s enganaríamos se o reduzíssemos a o s

i l o r e s m e n o s ins t ruídos" . É óbvio q u e o d e s e n v o l v i m e n t o d a i p u i i d a d e crítica d a s m a s s a s e d a s u a participação n a p r a x i s são

I pet l o s d e c i s i v o s p a r a a s u a solução; m a s a história n o s d i z q u e N I C é u m r i s c o q u e o s i n t e l e c t u a i s e o s líderes políticos revolucioná-i Ion l a m b e m c o r r e m , p o r q u e o m a i o r t r e i n a m e n t o e d i s p o n i b i l i d a d e I n t e l e c t u a l p a r a a crítica não p r o d u z a u t o m a t i c a m e n t e u m a l i b e r t a -

l o d a tendência centrípeta e a u t o j u s t i f i c a d o r a d e t o d o s i s t e m a c u l -i i n a l .

A organização c o t i d i a n a d a dominação

U m a o r d e m despótica se s u s t e n t a q u a n d o constrói o s e u e s p e -l h o n a s u b j e t i v i d a d e . D e F r e u d a D e l e u z e , d e N i e t z s c h e a F o u c a u l t , i ' n i s i d o e x p l i c a d o q u e a opressão não c o n s e g u e e x i s t i r s e b a s e a d a a p e n a s n o a n o n i m a t o d a s e s t r u t u r a s c o l e t i v a s : a l i m e n t a - s e d o e c o q u e o s o c i a l g e r a n o s indivíduos. A psicanálise e s e u s d i s s i d e n t e s e l a b o r a r a m a l g u n s c o n c e i t o s v i s a n d o a compreensão d e s t a i n t e r n a - -lização d a o r d e m , m a s t r a t a - s e d e c o n c e i t o s q u e q u a s e s e m p r e estão s i t u a d o s a p a r t i r d o observatório d o s u j e i t o ( a i n d a q u e se t r a t e d e m u s u j e i t o d e s c e n t r a d o , q u e s t i o n a d o , a t r a v e s s a d o p e l a s e s t r u t u r a s o b j e t i v a s ) . C o m o e n t e n d e r s o c i o l o g i c a m e n t e e s t e p r o c e s s o ? O q u e p o d e o m a r x i s m o d i z e r a s e u r e s p e i t o ? B o u r d i e u propôs u m m o d e l o d e análise q u e c o m b i n a c o n c e i t o s económicos, sociológicos e p s i c o - I lógicos, q u e são a r t i c u l a d o s m e d i a n t e u m a m p l o t r a b a l h o t a n t o teórico q u a n t o empírico, e l e t e n t a v e r c o m o é q u e u m c a p i t a l c u l t u - /

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38 N E S T O R GARCÍ A C A N C L I N I

r a l s e t r a n s m i t e p o r m e i o d e a p a r e l h o s e e n g e n d r a hábitos e práticas c u l t u r a i s .

A s t e o r i a s l i b e r a i s d a educação c o n c e b e m - n a c o m o o c o n j u n t o d o s m e c a n i s m o s i n s t i t u c i o n a i s através d o s q u a i s s e a s s e g u r a a t r a n s ­missão d a herança c u l t u r a l d e u m a geração a o u t r a . O p o s t u l a d o tácito d e s t a s t e o r i a s é q u e a s d i f e r e n t e s ações pedagógicas q u e se e x e r c e m n u m a formação s o c i a l c o l a b o r a m h a r m o n i o s a m e n t e p a r a a reprodução d e u m capital cultural q u e se i m a g i n a c o m o p r o p r i e ­d a d e c o m u m . E n t r e t a n t o , o b j e t a B o u r d i e u , o s b e n s c u l t u r a i s a c u ­m u l a d o s n a história d e c a d a s o c i e d a d e não p e r t e n c e m realmente a t o d o s ( a i n d a q u e formalmente s e j a m o f e r e c i d o s a t o d o s ) , m a s àqueles q u e dispõem d o s m e i o s p a r a a p r o p r i a r - s e d e l e s . P a r a c o m ­p r e e n d e r u m t e x t o científico o u d e s f r u t a r u m a o b r a m u s i c a l são necessários a p o s s e d o s códigos, o t r e i n a m e n t o i n t e l e c t u a l e sensível c a p a z e s d e p e r m i t i r a s u a decifração. C o m o o s i s t e m a e d u c a c i o n a l e n t r e g a a a l g u n s e n e g a a o u t r o s — d e a c o r d o c o m a posição s o c i o ­económica — o s r e c u r s o s p a r a a apropriação d o c a p i t a l c u l t u r a l , a e s t r u t u r a d o e n s i n o r e p r o d u z a e s t r u t u r a prévia d a distribuição d e s t e c a p i t a l p o r e n t r e a s c l a s s e s .

O s aparelhos culturais são a s instituições q u e a d m i n i s t r a m , t r a n s m i t e m e r e n o v a m o c a p i t a l c u l t u r a l . N o c a p i t a l i s m o , são p r i n ­c i p a l m e n t e a família e a e s c o l a , m a s também o s m e i o s d e c o m u n i c a ­ção, a s f o r m a s d e organização d o espaço e d o t e m p o , t o d a s a s i n s t i ­tuições e e s t r u t u r a s m a t e r i a i s através d a s q u a i s c i r c u l a o s e n t i d o ( n o capítulo I I I e s t u d a r e m o s a importância q u e o s a p a r e l h o s c u l t u r a i s d o E s t a d o p o s s u e m e m t e r m o s d a s mudanças n o a r t e s a n a t o , e n o capítulo V e s t u d a r e m o s o s d i v e r s o s espaços p o r o n d e e l e c i r c u l a : a habitação indígena, o m e r c a d o , a l o j a u r b a n a e t c ) . A c r e s c e n t e m o s a g o r a q u e n a s s o c i e d a d e s não c a p i t a l i s t a s — o u o n d e são c o n s e r v a ­d o s e n c l a v e s c o m f o r m a s d e v i d a não c a p i t a l i s t a — e s t a s funções c o s t u m a m e s t a r m i s t u r a d a s c o m o u t r a s d e índole económica e s o c i a l ; q u a s e n u n c a e x i s t e m instituições específicas p a r a o d e s e n v o l v i m e n t o c u l t u r a l , e e s t e s e r e a l i z a n o próprio p r o c e s s o d e produção o u a t r a ­vés d e instituições q u e c o m b i n a m o económico e o c u l t u r a l ( p o r e x e m p l o , o s s i s t e m a s d e p a r e n t e s c o , d e c a r g o s o u a d m i n i s t r a t i v o ) .

M a s a ação d o s a p a r e l h o s c u l t u r a i s d e v e s e r i n t e r n a l i z a d a p e l o s m e m b r o s d a s o c i e d a d e , a organização o b j e t i v a d a c u l t u r a n e c e s s i t a i n f o r m a r c a d a s u b j e t i v i d a d e . E s t a interiorização d a s e s t r u ­t u r a s s i g n i f i c a t i v a s g e r a hábitos, o u s e j a , s i s t e m a s d e disposições, e s q u e m a s básicos d e percepção, compreensão e ação. O s hábitos são e s t r u t u r a d o s ( p e l a s condições s o c i a i s e p e l a posição d e c l a s s e ) e

A S C U L T U R A S P O P U L A R E S N O C A P I T A L I S M O 39

e s t r u t u r a n t e s ( g e r a d o r e s d e práticas e e s q u e m a s d e percepção e apreciação): a união d e s t a s d u a s c a p a c i d a d e s d o hábito c o n s t i t u i o q u e B o u r d i e u d e n o m i n a " o e s t i l o d e v i d a " . E m o u t r a s p a l a v r a s , o s a p a r e l h o s c u l t u r a i s n o s q u a i s c a d a c l a s s e p a r t i c i p a — p o r e x e m p l o , a e s c o l a — p r o d u z e m hábitos estéticos, e s t r u t u r a s d o g o s t o d i f e r e n ­t e s q u e levarão u n s à a r t e c u l t a e o u t r o s a o a r t e s a n a t o .

F i n a l m e n t e , d o s hábitos s u r g e m práticas, n a m e d i d a e m q u e o s s u j e i t o s q u e o s i n t e r n a l i z a r a m e n c o n t r a m - s e s i t u a d o s n o i n t e r i o r d a e s t r u t u r a d e c l a s s e s e m posições favoráveis p a r a q u e t a i s hábitos se a t u a l i z e m . E x i s t e , p o r t a n t o , u m a correspondência e n t r e a s p o s ­s i b i l i d a d e s d e apropriação d o c a p i t a l económico e d o c a p i t a l c u l t u ­r a l . Condições sócio-econômicas s e m e l h a n t e s p r o p i c i a m o a c e s s o a níveis e d u c a c i o n a i s e a instituições c u l t u r a i s p a r e c i d o s , e n e l e s são a d q u i r i d o s e s t i l o s d e p e n s a m e n t o e d e s e n s i b i l i d a d e q u e p o r s u a v e z e n g e n d r a m práticas c u l t u r a i s p a r t i c u l a r e s .

T a r e f a s d a investigação n a América L a t i n a

P e r c o r r e m o s d e m o d o sumário a l g u n s p o n t o s d e intersecção e n t r e o m a r x i s m o , a a n t r o p o l o g i a e a s o c i o l o g i a , m a s o u t r o s a s p e c ­t o s c e n t r a i s p a r a u m a t e o r i a d a c u l t u r a a i n d a não f o r a m a b o r d a ­d o s . D e n t r e e l e s , p o s s u e m g r a n d e importância o s a s p e c t o s q u e r e s u l t a m d a a b o r d a g e m d a semiótica v i s a n d o a produção d e u m a explicação p a r a o s p r o c e s s o s d e significação e d a psicanálise e m t o r n o d o s p r o c e s s o s i n c o n s c i e n t e s d e simbolização e sublimação q u e estão n a b a s e d a produção c u l t u r a l . Não o b s t a n t e , a g o r a a p e ­n a s a c r e s c e n t a r e m o s a l g u m a s consequências q u e e s t a l i n h a d e t r a ­b a l h o p o d e t e r p a r a a investigação s o c i a l n a América L a t i n a .

1 . A construção d e u m a t e o r i a científica d a c u l t u r a é d e c i s i v a p a r a o c r e s c i m e n t o d a s ciências s o c i a i s , e não u n i c a m e n t e c o m o u m c o m p l e m e n t o d a análise económica c o m a f i n a l i ­d a d e d e e v i t a r o e c o n o m i c i s m o , m a s s i m p a r a e n t e n d e r a própria e s t r u t u r a económica, d a q u a l o s fenómenos s i m ­bólicos são p a r t e . E s t a u n i d a d e e interdependência e n t r e o e s t r u t u r a l e o s u p e r e s t r u t u r a l , q u e é j u s t i f i c a d a — c o m o f o i v i s t o — d o p o n t o d e v i s t a teórico, a p r e s e n t a - s e c o m p a r t i c u l a r importância n o n o s s o c o n t i n e n t e d e v i d o a o p a p e l d o s c o n f l i t o s étnicos e c u l t u r a i s n a l u t a d e c l a s s e s . C o m o p o d e m o s e n t e n d e r a n o s s a história a t u a l , s e p e n s a -

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N E S T O R GARCÍA C A N C L I N I

m o s questões c h a v e s , c o m o a incorporação d a s f o r m a s t r a ­d i c i o n a i s d e produção c a m p o n e s a (indígena) a o c a p i t a l i s ­m o , d e a c o r d o c o m a p e r g u n t a e x c l u s i v a m e n t e económica s o b r e s e se t r a t a d e u m a articulação o u u m a subsunção, se não incluímos c o m o p a r t e d o c o n f l i t o a l u t a p e l a h e g e m o ­n i a simbólica o u a r e l e g a m o s d e p r e c i a t i v a m e n t e às polémi­c a s c u l t u r a l i s t a s e n t r e o i n d i g e n i s m o e o s s e u s adversários? T a l v e z n a América L a t i n a t e n h a m o s razões s u p l e m e n t a r e s p a r a r e v a l o r i z a r o p a p e l d o s f a t o r e s c u l t u r a i s n a d i f e r e n ­ciação e n o c o n f l i t o e n t r e a s c l a s s e s , q u e já h a v i a s i d o r e c o ­n h e c i d o p o r M a r x e L e n i n , e q u e , s e m e s q u e c e r o l u g a r d e t e r m i n a n t e d a s relações d e produção, t e m s i d o a m p l i a d o n o s últimos a n o s p o r a l g u n s m a r x i s t a s e u r o p e u s ( E d w a r d P . T h o m p s o n , N i c o s P o u l a n t z a s e t c ) . A p e s a r d o m u i t o q u e f a l t a s e r i n v e s t i g a d o a r e s p e i t o d a s interações econô-m i c o - c u l t u r a i s n a n o s s a r e a l i d a d e , é e v i d e n t e q u e a s m u ­danças d e i d e n t i d a d e d o s operários m i g r a n t e s , d o s indíge­n a s e mestiços a c u l t u r a d o s , s u a reutilização p e l o d e s e n v o l ­v i m e n t o c a p i t a l i s t a não p o d e m a p e n a s s e r e x p l i c a d a s p e l a extração d a m a i s - v a l i a : a s u a exploração o r g a n i z a - s e e se s u s t e n t a c o m b a s e e m m e c a n i s m o s múltiplos, q u e às v e z e s não são tão c l a r o s s e o s b u s c a m o s n a produção e não n o c o n s u m o , s e p r e s t a m o s atenção à p e r d a d o s m e i o s d e p r o ­dução e não n a s u a relação c o m a l i n g u a g e m , c o m a saúde o u c o m o s i s t e m a d e crenças.

2 . D i s t o s e d e d u z a importância d e se a c r e s c e n t a r , às p e s q u i ­s a s d e s t i n a d a s a o c o n h e c i m e n t o d a s f o r m a s d e circulação e d e apropriação d o c a p i t a l c u l t u r a l n a América L a t i n a , o s e u p a p e l n a reprodução e n a transformação d o s i s t e m a s o c i a l . Além d o f a t o d e q u e o m o d e l o d e B o u r d i e u p r e c i s a s e r h i s t o r i c i z a d o ( o q u e obrigará o r e c o n h e c i m e n t o d e q u e a c u l t u r a b u r g u e s a não é i n t e i r a m e n t e arbitrária, m a s c o n ­sequência d e u m d e s e n v o l v i m e n t o específico d a s forças p r o d u t i v a s e d a s relações s o c i a i s ) , d e v e m o s especificá-lo d e a c o r d o c o m a s e t a p a s através d a s q u a i s f o i s e n d o construí­d o e m n o s s o c o n t i n e n t e u m c a p i t a l c u l t u r a l heterogéneo c o m o r e s u l t a d o d a confluência d e v a r i a d a s influências: a ) a herança d a s g r a n d e s c u l t u r a s pré-colombianas, c u j o s hábitos, línguas e s i s t e m a s d e p e n s a m e n t o p e r s i s t e m n o México, n a América C e n t r a l e n o p l a n a l t o a n d i n o ; b ) a importação e u r o p e i a , s o b r e t u d o e s p a n h o l a e p o r t u g u e s a ;

A S C U L T U R A S P O P U L A R E S N O C A P I T A L I S M O 41

c ) a presença n e g r a n o B r a s i l , Colômbia e A n t i l h a s . 1 8 P r e c i ­s a m o s s a b e r d e q u e m a n e i r a a combinação e a i n t e r p r e t a ­ção d e s t e s c a p i t a i s c u l t u r a i s f o i f o r m a n d o a n o s s a i d e n t i ­d a d e e q u a i s f o r a m a s estratégias d e acumulação e d e r e n o ­vação d e c a d a u m . N e s t e l i v r o t e n t a m o s d e s c o b r i r c o m o e s t e s c a p i t a i s c u l t u r a i s s e r e l a c i o n a m c o m o s a t u a i s c o n f l i ­t o s d e c l a s s e : c o m o o s s e t o r e s d o m i n a n t e s e o s s u b a l t e r n o s a p r o p r i a m - s e d a herança indígena e d a s c u l t u r a s p o p u l a r e s c a m p o n e s a s e u r b a n a s , c o m o a s r e c o n t e x t u a l i z a m e l h e s a t r i b u e m u m n o v o s i g n i f i c a d o e m função d o s s e u s i n t e r e s ­s e s . O q u e s i g n i f i c a s a b e r a m a n e i r a p e l a q u a l a lógica t r a n s n a c i o n a l d a c u l t u r a n o c a p i t a l i s m o m o d e l a o s hábitos e a s práticas, a s f o r m a s d e consciência e d e v i d a e o q u e o s n o s s o s p o v o s p o d e m f a z e r p a r a se a p r o p r i a r d o c a p i t a l c u l ­t u r a l p e r d i d o o u e x p r o p r i a d o , c o m o p o d e m renová-lo d e a c o r d o c o m a s t a r e f a s a t u a i s .

P a r e c e e v i d e n t e a n e c e s s i d a d e d e q u e e s t e s e s t u d o s s e m u l t i p l i ­q u e m p a r a q u e p o s s a m o s c o n h e c e r a s n e c e s s i d a d e s d o s p o v o s l a t i -n o - a m e r i c a n o s ( q u a l é h o j e a nossa a r t e , a nossa m e d i c i n a , a nossa educação?). P a r a q u e p o s s a m o s s a b e r e m q u a i s a p a r e l h o s c u l t u r a i s d e v e m o s l u t a r o u o n d e e x i s t e a n e c e s s i d a d e d e c r i a r m o s o u t r o s q u e l e j a m a l t e r n a t i v o s , b e m c o m o d e q u e m a n e i r a d e v e m o s t r a v a r e s t e c o m b a t e n o c a m p o d a s u b j e t i v i d a d e p a r a q u e p o s s a m o s s u s c i t a r hábitos n o v o s e práticas t r a n s f o r m a d o r a s .

\

" A r e s p e i t o d e s t e a s p e c t o , D a r c y R i b e i r o , Las Américas y l a civilización, t . I , H u e n o s A i r e s , C e n t r o E d i t o r d e América L a t i n a , 1969. ( O o r i g i n a l b r a s i l e i r o p o d e s e r e n c o n t r a d o e m As Américas e a Civilização, E d . V o z e s , Petrópolis, 1979, 3? e d . )

Page 20: CANCLINI, N. as Culturas Populares No Capitalismo

Introdução ao estudo das culturas populares

Definições d o p o p u l a r : o r o m a n t i s m o , o p o s i t i v i s m o e a tendência g r a m s c i a n a

C o m o e l a b o r a r , a p a r t i r d a discussão a n t e r i o r , u m c o n c e i t o d e c u l t u r a p o p u l a r ? A c i m a d e t u d o , a c u l t u r a p o p u l a r não p o d e s e r e n t e n d i d a c o m o a "expressão" d a p e r s o n a l i d a d e d e u m p o v o , à m a n e i r a d o i d e a l i s m o , p o r q u e t a l p e r s o n a l i d a d e não e x i s t e c o m o u m a e n t i d a d e a priori, metafísica, e s i m c o m o u m p r o d u t o d a i n t e -ração d a s relações s o c i a i s . T a m p o u c o a c u l t u r a p o p u l a r é u m c o n ­j u n t o d e tradições o u d e essências i d e a i s , p r e s e r v a d a s d e m o d o eté­r e o : s e t o d a produção c u l t u r a l s u r g e , c o m o v i m o s , a p a r t i r d a s c o n ­dições m a t e r i a i s d e v i d a e n e l a s está a r r a i g a d a , t o r n a - s e a i n d a m a i s fácil c o m p r o v a r m o s e s t a afirmação n a s c l a s s e s p o p u l a r e s , o n d e a s canções, a s crenças e a s f e s t a s estão l i g a d a s d e m o d o m a i s e s t r e i t o e c o t i d i a n o a o t r a b a l h o m a t e r i a l a o q u a l s e e n t r e g a m q u a s e t o d o o t e m p o . P e l o m e s m o m o t i v o , não n o s p a r e c e útil p a r a e x p l i c a r m o s o s p r o c e s s o s c u l t u r a i s d o p o v o pensá-los, a o e s t i l o f u n c i o n a l i s t a , c o m o f o r m a s v a z i a s d o t a d a s d e u m caráter u n i v e r s a l , o u d e a c o r d o c o m o e s t r u t u r a l i s m o , c o m o lógicas m e n t a i s , q u e a d o t a m m o d a l i ­d a d e s p a r t i c u l a r e s e m d i f e r e n t e s c o n t e x t o s .

As culturas populares (termo que achamos mais adequado do que a cultura popular) se constituem por um processo de apropria­ção desigual dos bens económicos e culturais de uma nação ou etnia por parte dos seus setores subalternos, e pela compreensão, repro­dução e transformação, real e simbólica, das condições gerais e específicas do trabalho e da vida.

A S C U L T U R A S P O P U L A R E S N O C A P I T A L I S M O 43

A s relações e n t r e o c a p i t a l económico e o c a p i t a l c u l t u r a l já f o r a m e x p l i c a d a s , b e m c o m o o f a t o d e q u e a p r o p r i e d a d e o u a e x c l u ­são d o c a p i t a l económico e n g e n d r a u m a participação d e s i g u a l n o c a p i t a l e s c o l a r e , p o r t a n t o , n a apropriação d o s b e n s c u l t u r a i s d e q u e dispõe u m a s o c i e d a d e . M a s a e s p e c i f i c i d a d e d a s c u l t u r a s p o p u ­l a r e s não d e r i v a a p e n a s d o f a t o d e q u e a s u a apropriação d a q u i l o q u e a s o c i e d a d e p o s s u i s e j a m e n o r e d i f e r e n t e ; d e r i v a também d o f a t o d e q u e o p o v o p r o d u z n o t r a b a l h o e n a v i d a f o r m a s específicas d e representação, reprodução e reelaboração simbólica d a s s u a s relações s o c i a i s . D e s e n v o l v e m o s n o capítulo a n t e r i o r e m q u e s e n t i ­d o a c u l t u r a é representação, produção, reprodução e reelaboração simbólica. A g o r a d e v e m o s a c r e s c e n t a r q u e o p o v o r e a l i z a e s t e s p r o ­c e s s o s c o m p a r t i l h a n d o a s condições g e r a i s d e produção, circulação e c o n s u m o d o s i s t e m a e m q u e v i v e ( u m a formação s o c i a l d e p e n d e n ­t e , p o r e x e m p l o ) e p o r s u a v e z c r i a n d o a s s u a s próprias e s t r u t u r a s . P o r t a n t o , a s c u l t u r a s p o p u l a r e s são construídas e m d o i s espaços: a ) a s práticas p r o f i s s i o n a i s , f a m i l i a r e s , c o m u n i c a c i o n a i s e d e t o d o t i p o através d a s q u a i s o s i s t e m a c a p i t a l i s t a o r g a n i z a a v i d a d e t o d o s o s s e u s m e m b r o s ; b ) a s práticas e f o r m a s d e p e n s a m e n t o q u e o s s e t o r e s p o p u l a r e s c r i a m p a r a s i próprios, m e d i a n t e a s q u a i s c o n c e ­b e m e e x p r e s s a m a s u a r e a l i d a d e , o s e u l u g a r s u b o r d i n a d o n a p r o ­dução, n a circulação e n o c o n s u m o . N u m c e r t o s e n t i d o , p o d e m o s d i z e r q u e o patrão e o operário p o s s u e m e m c o m u m a participação n o m e s m o t r a b a l h o n a m e s m a fábrica, a audiência d o s m e s m o s c a n a i s d e televisão ( a i n d a q u e c e r t a m e n t e a p a r t i r d e posições d i f e ­r e n t e s q u e p r o d u z e m decodificações d i s t i n t a s ) ; m a s , p o r o u t r o l a d o , e x i s t e m opções económicas e c u l t u r a i s q u e o s d i f e r e n c i a m , jargões próprios , c a n a i s d e comunicação específicos a c a d a c l a s s e . A m b o s o s espaços, o d a c u l t u r a hegemónica e o d a c u l t u r a p o p u l a r , são i n t e r p e n e t r a d o s , d e m o d o q u e a l i n g u a g e m p a r t i c u l a r d o s o p e ­rários o u d o s c a m p o n e s e s é e m p a r t e u m a construção própria e e m p a r t e u m a ressemantização d a l i n g u a g e m d o s veículos d e c o m u n i ­cação d e m a s s a e d o p o d e r político, o u u m m o d o específico d e a l u ­são às condições s o c i a i s c o m u m a t o d o s ( p o r e x e m p l o , a s p i a d a s s o b r e a inflação). Interação q u e o c o r r e , também, e m s e n t i d o c o n ­trário: a l i n g u a g e m hegemónica d o s m e i o s d e comunicação d e m a s s a o u d o s políticos, n a m e d i d a e m q u e p r e t e n d e alcançar o c o n j u n t o d a população, levará f m consideração a s f o r m a s d e expressão p o p u ­l a r e s .

S i n t e t i z a n d o : a s c u l t u r a s p o p u l a r e s são o r e s u l t a d o d e u m a apropriação desigual d o c a p i t a l c u l t u r a l , r e a l i z a m u m a elaboração

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44 N E S T O R GARCÍA C A N C L I N I

específica d a s s u a s condições d e v i d a através d e u m a interação con­flitua c o m o s s e t o r e s hegemónicos. E s t e m o d o d e e n t e n d e r a s c u l ­t u r a s p o p u l a r e s n o s a f a s t a d a s posições q u e p r e d o m i n a r a m n o s e u e s t u d o : a s interpretações i m a n e n t e s , f o r m u l a d a s n a E u r o p a p e l o p o p u l i s m o romântico e n a América L a t i n a p e l o n a c i o n a l i s m o e i n d i g e n i s m o c o n s e r v a d o r e s , e , p o r o u t r o l a d o d o p o s i t i v i s m o q u e , p r e o c u p a d o c o m o r i g o r científico, e s q u e c e u o s e n t i d o político d a produção simbólica d o p o v o .

O s românticos c o n c e b e r a m o p o v o c o m o u m a t o t a l i d a d e homogénea e au tónoma, c u j a c r i a t i v i d a d e espontânea s e r i a a m a i s a l t a expressão d o s v a l o r e s h u m a n o s e o m o d e l o d e v i d a a o q u a l deveríamos r e g r e s s a r . A crença n a c u l t u r a p o p u l a r c o m o s e d e autên­t i c a d o h u m a n o e essência p u r a d o n a c i o n a l , i s o l a d a d o s e n t i d o a r t i ­f i c i a l d e u m a "civi l ização" q u e a n e g a v a , t e v e c e r t a u t i l i d a d e , e n q u a n t o reivindicação d o p e n s a m e n t o e d o s c o s t u m e s p o p u l a r e s , s u s c i t a n d o o s e u e s t u d o e a s u a d e f e s a após t e r s i d o a m p l a m e n t e excluído d o s a b e r académico. M a s e s t a exaltação s e b a s e o u n u m e n t u s i a s m o s e n t i m e n t a l , q u e não c o n s e g u i u s u s t e n t a r - s e q u a n d o a f i l o l o g i a p o s i t i v i s t a d e m o n s t r o u q u e o s p r o d u t o s d o p o v o — s e n d o q u e a ênfase e r a atribuída à p o e s i a — o r i g i n a m - s e t a n t o d a e x p e ­riência d i r e t a d a s c l a s s e s p o p u l a r e s c o m o d o s e u c o n t a t o c o m o s a b e r e a a r t e " c u l t o s " , s e n d o a s u a existência, e m b o a p a r t e , u m r e s u l t a d o d e u m a "absorção d e g r a d a d a " d a c u l t u r a d o m i n a n t e 1 9 .

A t u a l m e n t e , q u a s e m a i s n e n h u m c i e n t i s t a se a t r e v e a i n c o r r e r n o e r r o d a idealização romântica. E n t r e t a n t o , e s t a m a n t e v e o s e u p o d e r d e atração d i a n t e d e m u i t o s f o l c l o r i s t a s e i n d i g e n i s t a s d a América L a t i n a , e c o n t i n u a a s e r u t i l i z a d a p e l o d i s c u r s o político n a c i o n a l i s t a . A i n d a q u e n e m s e m p r e se i n s p i r e m n o r o m a n t i s m o e u r o p e u , r e i n c i d e m e m m u i t a s d e s u a s t e s e s . E s t a visão metafísica d o p o v o o i m a g i n a c o m o o l u g a r o n d e e s t a r i a m c o n s e r v a d a s i n t a c ­t a s v i r t u d e s biológicas ( d a raça) e i r r a c i o n a i s ( o a m o r à t e r r a , a r e l i ­gião e a s crenças a n c e s t r a i s ) . A supervalorização d o s c o m p o n e n t e s biológicos e telúricos, típica d o p e n s a m e n t o d e d i r e i t a , é u t i l i z a d a p e l o p o p u l i s m o nacionalista-burguês p a r a a realização d e u m a identificação d o s s e u s i n t e r e s s e s c o m o o s i n t e r e s s e s d a nação, e p a r a e n c o b r i r a s u a dependência d i a n t e d o i m p e r i a l i s m o , e n o nível i n t e r n o , o s c o n f l i t o s d e c l a s s e q u e ameaçam o s s e u s privilégios. O

1 9 A l b e r t o M . C i r e s e , Ensayo sobre las culturas subalternas, México, C e n t r o d e I n v e s t i g a c i o n e s S u p e r i o r e s d e i 1 N A H , C u a d e r n o s d e l a C a s a C h a t a , n? 24 , 1979, p p . 55-56 e 68 -70 .

A S C U L T U R A S P O P U L A R E S N O C A P I T A L I S M O 45

p r o c e s s o histórico através d o q u a l f o r a m s e n d o construídos o c o n ­c e i t o e o s e n t i m e n t o d e nação é n e u t r a l i z a d o e diluído p e l a " t r a d i ­ç ã o " . A p a r t i r d e s t e c o n c e i t o d e f o l c l o r e c o m o u m a r q u i v o f o s s i l i ­z a d o e apolítico, p r o m o v e - s e u m a política p o p u l i s t a q u e , r e c o r r e n ­d o a o p r e t e x t o d e " d a r a o p o v o a q u i l o d e q u e e l e g o s t a " , e v i t a pôr e m questão se se f o r m a u m a c u l t u r a p o p u l a r e n t r e g a n d o a o p o v o p r o d u t o s e n l a t a d o s o u l h e p e r m i t i n d o a e s c o l h a e a criação. T a m ­p o u c o p e r g u n t a m a r e s p e i t o d o q u e é o f e r e c i d o a o p o v o , n e m s o b r e q u e m , d u r a n t e séculos d e dominação, t e m m o d e l a d o o s e u g o s t o .

M u i t o s e s p e c i a l i s t a s universitários c o n s i d e r a m o e m p i r i s m o , q u e p o d e s e r m a i s o u m e n o s p o s i t i v i s t a , c o m o a a l t e r n a t i v a cientí­f i c a a e s t a idealização. R e c o m e n d a m o c o n t a t o d i r e t o c o m a r e a l i ­d a d e , o e x a m e m i n u c i o s o d o s o b j e t o s e d o s c o s t u m e s e a s u a c l a s ­sificação d e a c o r d o c o m a o r i g e m étnica e a s diferenças i m e d i a t a ­m e n t e observáveis. E s t a o u t r a f o r m a d e paixão, q u e é c o n t r o l a d a p e l o r i g o r científico m a s q u e se m o s t r a f a s c i n a d a p e l o v a l o r — até então d e s c o n s i d e r a d o — d a s e t n i a s o p r i m i d a s , t e n d o c h e g a d o a o p o n t o d e p e s q u i s a d o r e s p a s s a r e m vários a n o s e m p e q u e n a s a l d e i a s c o m a f i n a l i d a d e d e r e g i s t r a r o s s e u s d e t a l h e s m a i s ínfimos, p r o d u ­z i u l i v r o s e m o n o g r a f i a s d e g r a n d e u t i l i d a d e p a r a o c o n h e c i m e n t o d o s m i t o s , l e n d a s * f e s t a s , a r t e s a n a t o , hábitos e instituições. Não o b s t a n t e , d e v e m o s p e r g u n t a r p o r q u e a m a i o r i a d e s t e s t r a b a l h o s a p r e s e n t a u m a desproporção e n t r e o s d a d o s c o l e t a d o s e a s e x p l i c a ­ções p r o d u z i d a s . P a r e c e - n o s q u e e s t e f a t o d e c o r r e d a opção p o r u m r e c o r t e d e m a s i a d a m e n t e e s t r e i t o d o o b j e t o d e e s t u d o — são o b s e r ­v a d o s a p e n a s o a r t e s a n a t o o u a c o m u n i d a d e l o c a l — e d a m a n e i r a errónea c o m q u e e s t e f o i v i n c u l a d o a o d e s e n v o l v i m e n t o c a p i t a l i s t a .

A s deficiências d e s t e e n f o q u e não d e s a p a r e c e r a m c o m a v o n ­t a d e d e d a r c o n t a d a s mudanças n a i d e n t i d a d e d o s p o v o s t r a d i c i o ­n a i s através d e u m a t e o r i a d o s " c o n t a t o s c u l t u r a i s " . T a i s e s t u d o s , i n i c i a d o s n a década d e t r i n t a c o m o s p r i m e i r o s t r a b a l h o s s o b r e aculturação d o S o c i a l S c i e n c e R e s e a r c h C o u n c i l , d o s E s t a d o s U n i ­d o s , 2 0 e c o m a publicação n o R e i n o U n i d o d o l i v r o Methods of study ofculture contact in Africa in 1938,21 não c o n s e g u i r a m s u p e ­r a r o caráter n e u t r o d o s c o n c e i t o s d e aculturação e d e c o n t a t o c u l ­t u r a l , n e m a i n c a p a c i d a d e p a r a e x p l i c a r o s c o n f l i t o s e o s p r o c e s s o s

2 0 E d w a r d H . S p i c e r , " A j c u l t u r a t i o n " , I n t e r n a t i o n a l Encyclopedia o f social Scien­ces, v o l . 1 , p p . 21 -27 , N o v a I o r q u e , M a c m i l l a n C o m p a n y , 1968.

2 1 M e m o r a n d u m X V , I n t e r n a t i o n a l I n s t i t u t e o f A f r i c a n L a n g u a g e s a n d C u l i i i t r C i t a d o p o r G e o r g e P i e r r e C a s t i l e , op. cit., p . 14.

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46 N E S T O R GARCÍA C A N C L 1 N I

d e dominação q u e a adoção d e s t e s c o n c e i t o s n o r m a l m e n t e i m p l i c a . C o m u m a cândida benevolência, c h a m a r a m o s e x p l o r a d o r e s d e " g r u p o d o a d o r " d e v a l o r e s e à reação d o s o p r i m i d o s d e " a d a p t a ­ç ã o " . L i n t o n i n t r o d u z i u u m a v a r i a n t e s i g n i f i c a t i v a q u a n d o s e r e f e ­r i u a u m a " m u d a n ç a d i r i g i d a " p a r a e x p l i c a r o s c a s o s " o n d e u m d o s g r u p o s e m c o n t a t o intervém a t i v a e i n t e n c i o n a l m e n t e n a c u l ­t u r a d o o u t r o " . 2 2 M a s , t a m p o u c o , s i t u o u a d e q u a d a m e n t e e s t a s intervenções e m relação c o m a s s u a s c a u s a s sócio-econômicas.

A s interpretações p s i c o l o g i s t a s e c u l t u r a l i s t a s através d a s q u a i s o s antropólogos d a s metrópoles p r e t e n d e r a m e x p l i c a r a s m u ­danças c u l t u r a i s e a s resistências indígenas e n c o n t r a r a m u m a dócil aceitação p o r p a r t e d o s antropólogos l a t i n o - a m e r i c a n o s , s o b r e t u d o d a q u e l e s q u e t i v e r a m R e d f i e l d , B e a l s e o s d e m a i s ideólogos d a "modernização d o s p o v o s p r i m i t i v o s " c o m o p r o f e s s o r e s . T a l v e z s e j a A g u i r r e B e l t r a n a f i g u r a m a i s d e s t a c a d a n e s t a l i n h a d e v i d o à s u a reconceptualização u m t a n t o o r i g i n a l d o s fenómenos d e a c u l t u ­ração e à s u a influência n a s políticas i n d i g e n i s t a s . A p e s a r d e o s s e u s e s t u d o s l e v a r e m e m consideração a s f o r m a s d e dominação e a s b a s e s p r o d u t i v a s d o s c o n t a t o s i n t e r c u l t u r a i s , não a t r i b u e m p e s o s u f i c i e n t e às determinações m a t e r i a i s , s u p e r v a l o r i z a n d o o étnico, q u e é e n t e n d i d o d e m a n e i r a i s o l a d a , e a d a p t a n d o a s u a problemá­t i c a teórica e empírica a o s f i n s i n t e r j - a d o r e s e conciliatórios d o s e u p r o j e t o político: c o n s t r u i r u m a " d o u t r i n a q u e g u i e e esclareça o s p r o c e d i m e n t o s e a s m e t a s q u e a ação i n d i g e n i s t a d e v e s e g u i r " . 2 3

E n t e n d e m o s q u e a investigação d o s c o n f l i t o s i n t e r c u l t u r a i s não p o d e e s t a r o r i e n t a d a p e l a preocupação e m e x a l t a r a c u l t u r a p o p u l a r , n e m p e l a intenção d e s e a p e g a r d e m o d o c o n s e r v a d o r a o a s p e c t o i m e d i a t o e a o s e n t i d o q u e a própria c o m u n i d a d e a t r i b u i a o s f a t o s e n e m p e l o i n t e r e s s e e m adaptá-la à modernização. A questão d e c i s i v a c o n s i s t e n a compreensão d a s c u l t u r a s p o p u l a r e s através d a s u a conexão c o m o s c o n f l i t o s d e c l a s s e e c o m a s condições d e e x p l o ­ração s o b a s q u a i s e s t e s s e t o r e s p r o d u z e m e c o n s o m e m .

D e f a t o , s e s i t u a r m o s o s t i p o s d e e n f o q u e d a d o s às relações i n t e r c u l t u r a i s n a s s u a s condições histórico-políticas, p e r c e b e r e m o s d e m o d o m a i s c l a r o o s e u caráter c o n f l i t u o s o . A preocupação c o m o q u e s e c h a m o u d e c o n t a t o c u l t u r a l o u d e aculturação e n t r e socie­dades diferentes s u r g i u d u r a n t e a expansão i m p e r i a l i s t a d o c a p i t a -

2 2 R a l p h L i n t o n , A c c u l l u r a t i o n i n seven a m e r i c a n i n d i a n I r i b e s , N o v a I o r q u e , D A p p l e t o n - C e n t u r y C o m p a n y , 1941 . C i t a d o p o r G . P . C a s t i l e , op. c /7 . , p . 16.

2 3 G o n z a l o A g u i r r e B e l t r a n , E l Proceso de Aculluración, México, U N A M , 1957.

A S C U L T U R A S P O P U L A R E S N O C A P I T A L I S M O 47

l i s m o , d e v i d o à n e c e s s i d a d e d e ampliação d o m e r c a d o m u n d i a l , a o f i n a l d o século X I X e n o início d o século X X . P o r o u t r o l a d o , a aceleração d o p r o c e s s o d e industrialização e d e urbanização a p a r t i r d a década d e q u a r e n t a , q u e t e v e c o m o consequência u m a m a s s i v a migração e a formação d e v i l a s miseráveis, b a i r r o s periféricos e f a v e l a s n o s g r a n d e s c e n t r o s u r b a n o s , b e m c o m o a reorganização c a p i t a l i s t a d a e c o n o m i a e d a c u l t u r a c a m p o n e s a s t o r n a r a m m a i s a g u d a s a s contradições n o c a m p o , n a c i d a d e e e n t r e a m b o s : d e s t e p r o c e s s o n a s c e u o i n t e r e s s e e m e n t e n d e r o s c o n f l i t o s i n t e r c u l t u r a i s dentro de cada sociedade, e n t r e a s s u a s d i f e r e n t e s c l a s s e s e g r u p o s étnicos.

M a s a insuficiência n a explicação d e s t e s p r o c e s s o s não é e n c o n t r a d a a p e n a s n a s c o r r e n t e s antropológicas. Também o m a r ­x i s m o , q u e p o s s u i a t e o r i a d e m a i o r p o d e r e x p l i c a t i v o a r e s p e i t o d e s t e s c o n f l i t o s n o c a p i t a l i s m o , p r o d u z i u p o u c o s e s t u d o s s o b r e o t e m a : p r i v i l e g i o u a análise d o s s e u s a s p e c t o s económicos e , q u a n t o à c u l t u r a , o c u p o u - s e q u a s e q u e e x c l u s i v a m e n t e d a i d e o l o g i a d a s c l a s s e s d o m i n a n t e s . A p a r t i r d e G r a m s c i o p o p u l a r c o n q u i s t o u u m n o v o l u g a r científico e político, m a s só e m a n o s r e c e n t e s a l g u n s antropólogos, s o b r e t u d o i t a l i a n o s , d e s e n v o l v e r a m a q u e l a s lacóni­c a s intuições d o cárcere através d e investigações c o n c r e t a s . U m a p r i m e i r a conclusão q u e r e t i r a m o s d e s t a s reflexões é q u e o m a r c o m a i s fértil p a r a o e s t u d o d a s c u l t u r a s p o p u l a r e s p a r e c e r e s i d i r n a intersecção e n t r e a explicação m a r x i s t a a r e s p e i t o d o f u n c i o n a m e n t o d o c a p i t a l i s m o e a s a b o r d a g e n s empíricas, e e m p a r t e metodológi­c a s , d a a n t r o p o l o g i a e d a s o c i o l o g i a .

F a z - s e necessário, p a r a m e l h o r p r e c i s a r m o s a concepção q u e e m p r e g a m o s , e n u m e r a r , d e m o d o b r e v e , o q u e n o s p a r e c e m a i s v a l i o s o n o s t e x t o s d e G r a m s c i e d o s s e u s c o n t i n u a d o r e s ( C i r e s e , L o m b a r d i S a t r i a n i ) , b e m c o m o i n d i c a r a l g u m a s d i f i c u l d a d e s q u e n e l e s e n c o n t r a m o s . Já u t i l i z a m o s n o capítulo a n t e r i o r o q u e n o s p a r e c e m a i s f e c u n d o d a contribuição g r a m s c i a n a , a s u a conexão d a c u l t u r a c o m a h e g e m o n i a . A l b e r t o M . C i r e s e o r g a n i z o u e d e s e n v o l ­v e u a q u e l a s n o t a s n u m a o b r a q u e t a l v e z s e j a a d e m a i o r v a l o r teó­r i c o a r e s p e i t o d e s t e t e m a e x i s t e n t e n o s países e u r o p e u s . C i r e s e r e f u t a a q u e l e s q u e d e f i n e m a c u l t u r a p o p u l a r c o m b a s e e m p r o p r i e ­d a d e s intrínsecas, a p a r t i r d e u m a série d e traços q u e l h e s e r i a m próprios, e , e m t r o c a , a c a r a c t e r i z a r e l a s u a relação c o m a s c u l t u r a s q u e a e l a s e opõem. O caráter p c p u l a r d e q u a l q u e r fenómeno d e v e s e r e s t a b e l e c i d o c o m b a s e n o s e u u s o e não p o r intermédio d a s u a o r i g e m , d e v e s e r e n c a r a d o " c o m o u m f a t o e não c o m o u m a essên-

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48 N E S T O R G A R C I A C A N C L I N I

c i a , c o m o posição r e l a c i o n a l e não c o m o substância" . O q u e c o n s ­t i t u i o caráter p o p u l a r d e u m f a t o c u l t u r a l , a c r e s c e n t a , " é a relação histórica, d e diferença o u d e c o n t r a s t e , d i a n t e d e o u t r o s f a t o s c u l t u ­r a i s " . 2 4 E n t r e t a n t o , e s t a concepção dialética d a s relações s o c i a i s e n t r a e m contradição c o m a s u a teorização c o m p l e m e n t a r s o b r e o s "desníveis" e n t r e a s c u l t u r a s . E l e d i s t i n g u e d o i s t i p o s d e desníveis: "desníveis e x t e r n o s " , o s q u e e x i s t e m e n t r e a s s o c i e d a d e s e u r o p e i a s e a s "etnológicas o u p r i m i t i v a s " , e o s "desníveis i n t e r n o s " n o i n t e ­r i o r d a s s o c i e d a d e s o c i d e n t a i s , e n t r e o s e s t r a t o s d o m i n a n t e s e s u b a l ­t e r n o s d e u m a m e s m a formação s o c i a l . F a l a r d e níveis q u e e s t a r i a m e m d i f e r e n t e s a l t u r a s n o s p a r e c e d e m a s i a d o estático, t r a t a n d o - s e d e u m c o n c e i t o p o u c o p e r t i n e n t e p a r a d a r c o n t a d a s desigualdades e conflitos q u e i n t e r - r e l a c i o n a m p e r m a n e n t e m e n t e a s c u l t u r a s p o p u ­l a r e s c o m a s c u l t u r a s hegemónicas. E s t e vocabulário l e v a - o a d e s i g ­n a r c o m o " p r o c e s s o s d e d e s c i d a " e d e " s u b i d a " o q u e a s m e n s a ­g e n s e p r o d u t o s r e a l i z a m a o p a s s a r d e u m nível a o u t r o , o q u e — p o r m a i s advertências q u e se façam — c o n o t a u m a hierarquização inaceitável.

S e c o n s i d e r a r m o s s e r i a m e n t e o s " in tercâmbios , emprésti­m o s e c o n d i c i o n a m e n t o s recíprocos" q u e se p r o d u z e m e n t r e a s c u l ­t u r a s p o p u l a r e s e a s o u t r a s , a q u e o próprio C i r e s e a l u d e , 2 5 o c o n ­c e i t o d e desnível não p a r e c e s e r o m a i s a d e q u a d o p a r a registrá-los. P e l o contrár io, c o m p a r t i m e n t a l i z a r a c u l t u r a e m p r o c e s s o s p a r a l e ­l o s , n u m a espécie d e estratificação geológica, i m p l i c a c e d e r às c l a s ­sificações estáticas d o f o l c l o r e c o n t r a a s q u a i s G r a m s c i , e C i r e s e n o s s e u s t e x t o s m a i s g r a m s c i a n o s , opõem u m a estratégia d e e s t u d o dinâmica e crítica. O o b j e t o d e investigação não p o d e s e r o desní­v e l , m a s a s d e s i g u a l d a d e s e o s c o n f l i t o s e n t r e a s manifestações s i m ­bólicas d a s c l a s s e s , c u j a participação c o n j u n t a n u m m e s m o s i s t e m a não p e r m i t e u m a existência au tónoma.

U m p r o b l e m a c o m u m a t o d a orientação g r a m s c i a n a é q u e , p o r i n s i s t i r m u i t o n a contraposição e n t r e a c u l t u r a s u b a l t e r n a e a hegemónica e n a n e c e s s i d a d e política d e d e f e n d e r a independência d a p r i m e i r a , a c a b a p o r c o n c e b e r a a m b a s c o m o s i s t e m a s e x t e r i o r e s e n t r e s i . I s t o s e t o r n a a i n d a m a i s c l a r o e m L o m b a r d i S a t r i a n i e , s o b r e t u d o , n a utilização q u e f o i f e i t a d o s s e u s t e x t o s n a América L a t i n a . C h e g a - s e a o p o r d e m o d o tão maniqueísta a s c u l t u r a s h e g e ­mónicas e a s c u l t u r a s s u b a l t e r n a s , q u e s e a t r i b u i c o m d e m a s i a d a

2 4 A . M . C i r e s e , op. cil., p . 5 1 . 2 5 I d e m , p . 54 .

A S C U L T U R A S P O P U L A R E S N O C A P I T A L I S M O 49

f a c i l i d a d e p r o p r i e d a d e s " n a r c o t i z a n t e s " o u "contes ta tór ias" a fenómenos c u l t u r a i s q u e não são n e m u m a c o i s a n e m o u t r a , m a s u m a combinação d e vivências e d e representações c u j a a m b i g u i ­d a d e c o r r e s p o n d e a o caráter não r e s o l v i d o d a s contradições n o i n t e r i o r d o s s e t o r e s p o p u l a r e s . S e m p r e j u d i c a r a apreciação d a s s u g e s t i v a s análises d e L o m b a r d i S a t r i a n i s o b r e a e s t r u t u r a d a s c u l ­t u r a s p o p u l a r e s ( p o r e x e m p l o , o capítulo s o b r e o folkmarket e m Apropiación y destrucción de la cultura de las clases subalternas),lh

n e l e p r e v a l e c e u m a oposição t a x a t i v a e n t r e o hegemónico e o s u b a l ­t e r n o , c o n s i d e r a d o s c o m o p r o p r i e d a d e s intrínsecas d e c e r t a s m e n ­s a g e n s m a i s d o q u e c o m o m o d a l i d a d e s — ambíguas e transitórias — d o s c o n f l i t o s q u e a s v i n c u l a m .

E m S a t r i a n i a oposição e n t r e dominação e resistência c u l t u r a l p o s s u i u m caráter f u n d a n t e , c o m o se se t r a t a s s e d e d o i s fenómenos e x t e r i o r e s e n t r e s i , a n t e r i o r e s a o p e r t e n c i m e n t o d e a m b a s a s c u l t u ­r a s a u m único s i s t e m a s o c i a l . E s t e m o d e l o p o d e r i a s e r a d e q u a d o p a r a o s p r o c e s s o s i n i c i a i s d a colonização, q u a n d o a expansão c a p i ­t a l i s t a i m p l a n t a v a o s s e u s padrões d e v i d a a p a r t i r d o e x t e r i o r e a s c o m u n i d a d e s indígenas r e a g i a m e m b l o c o a e s t a imposição. T r a t a -se d e u m m o d e l o útil p a r a a explicação d a c o n q u i s t a d a América p e l o s espanhóis e p o r t u g u e s e s , e m e s m o d e e t a p a s p o s t e r i o r e s , q u a n d o o s e n f r e n t a m e n t o s f o r a m a p a z i g u a d o s , p e r m i t i n d o u m a r e l a t i v a a u t o n o m i a às c u l t u r a s s u b m e t i d a s e à c u l t u r a d o m i n a n t e . M a s q u e se t o r n a i n a d e q u a d o d i a n t e d o a t u a l d e s e n v o l v i m e n t o d o c a p i t a l i s m o m o n o p o l i s t a q u e i n t e g r a s o b o s e u c o n t r o l e a s s o c i e ­d a d e s q u e d o m i n a , c o m p o n d o u m s i s t e m a c o m p a c t o n o q u a l o c o n ­f l i t o sócio-econômico e c u l t u r a l precede a s políticas d e dominação e d e resistência, combinando o s u s o s n a r c o t i z a n t e s , contestatórios o u d e o u t r o t i p o a o q u a l o s p r o d u t o s c u l t u r a i s p o s s a m e s t a r s u b m e ­t i d o s .

Situação q u e c o r r e s p o n d e a u m a n e c e s s i d a d e d e c o n c e n t r a r ­m o s a investigação não n o s fenómenos d e " q u e s t i o n a m e n t o " e d e "na rco t i zação" , m a s n a própria e s t r u t u r a d o c o n f l i t o , q u e p o r c e r t o i n c l u i e s t e s fenómenos, m a s q u e também a b r a n g e o u t r o s c o m o a integração, a interpenetração, o e n c o b r i m e n t o , a d i s s i m u l a ­ção e o a m o r t e c i m e n t o d a s contradições s o c i a i s . A i n d a e s t a m o s n e c e s s i t a d o s d e u m a t i p o l o g i a d a s interações e n t r e a s c u l t u r a s p o p u ­l a r e s e a s d o m i n a n t e s , q u e só será f o ' m a d a através d e investigações

2 6 L . M . L o m b a r d i S a t r i a n i , Apropiación y destrucción de l a c u l t u r a de las clases subalternas, México, N u e v a I m a g e n , 1978, p p . 77-119 .

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50 N E S T O R GARCÍA C A N C L I N I

a r e s p e i t o d e p r o c e s s o s d i v e r s o s , d e s d e q u e s e j a m i n v e s t i g a ç õ e s a b e r t a s à compreensão d a v a r i e d a d e d e vínculos e x i s t e n t e s e n t r e a s c u l t u r a s e q u e não s e a p r e s s e m a etiquetá-las c o m o p o r t a d o r a s d e e f e i t o s p o s i t i v o s o u n e g a t i v o s .

P o r f i m , p o r q u e f a l a r d e c u l t u r a s p o p u l a r e s ? P r e f e r i m o s e s t a designação a o u t r a s e m p r e g a d a s p e l a a n t r o p o l o g i a , p e l a s o c i o l o g i a e p e l o f o l c l o r e — c u l t u r a o r a l , t r a d i c i o n a l o u s u b a l t e r n a — q u e pressupõem u m a c e r t a p o s s i b i l i d a d e d e redução d o p o p u l a r a u m traço e s s e n c i a l . A i n d a q u e u t i l i z e m o s o c a s i o n a l m e n t e a e x p r e s s ã o " t r a d i c i o n a l " p a r a d a r c o n t a d e um aspecto ou tipo d e c u l t u r a p o p u l a r q u e s e c o n s t i t u i p o r oposição à " m o d e r n i d a d e " , d e v e - s e s e m p r e l e r e s t a s p a l a v r a s e n t r e a s p a s ( a i n d a q u e não a s l e v e m p a r a t o r n a r o t e x t o m a i s l e v e ) , c o m o fórmulas u t i l i z a d a s d e v i d o a o s e u v a l o r opera tór io , p a r a a identificação d e fenómenos, não d e e s s ê n ­c i a s , q u e e x i s t e m e n e c e s s i t a m s e r n o m e a d o s , a p e s a r d e n ã o s e r e m d e t e r m i n a n t e s . D o m e s m o m o d o , u t i l i z a r e m o s " c u l t u r a s u b a l t e r ­n a " q u a n d o q u i s e r m o s s u b l i n h a r a oposição d a c u l t u r a p o p u l a r à c u l t u r a hegemónica. M a s d e f a t o não e x i s t e a c u l t u r a o r a l , t r a d i ­c i o n a l o u s u b a l t e r n a . C o n c o r d a m o s c o m G i o v a n n i B a t t i s t a B r o n z i -n i : " A o r a l i d a d e , o t r a d i c i o n a l i s m o , o a n a l f a b e t i s m o , a s u b a l t e r n i ­d a d e são fenómenos c o m u n i c a t i v o s e / o u económicos e s o c i a i s , i n e ­r e n t e s à e s t r u t u r a d a s o c i e d a d e e a o s i s t e m a d e p r o d u ç ã o " ( • • • ) " C o m o fenómenos não p r o d u z e m c u l t u r a , n e m d e s i g n a m c o n d i ­ções s u f i c i e n t e s p a r a a s u a produção, m a s s e t r a n s f o r m a m e m c a n a i s e m e i o s d e produção c u l t u r a l e m m o m e n t o s e l u g a r e s d a d o s e e m d e t e r m i n a d a s situações s o c i a i s . A m e s m a s u b a l t e r n i d a d e es tá h i s t o r i c a m e n t e d i f e r e n c i a d a : c o m o e s t a d o sócio-econômico s u f o c a a c u l t u r a , c o m o consciência d e c l a s s e a s u s c i t a . O f a t o r c o n s t a n t e d a produção c u l t u r a l é o t r a b a l h o d a s c l a s s e s p o p u l a r e s e m s u a s f a s e s d e opressão e d e l iber tação ." 2 7

p o r q u e o a r t e s a n a t o e a s f e s t a s

E s c o l h e m o s e s t a s d u a s manifestações p a r a a n a l i s a r a s m u d a n -d a c u l t u r a p o p u l a r n o c a p i t a l i s m o p o r q u e o s objetos a r t e s a n a i s acontecimento d a f e s t a , além d e c e n t r a i s , n o s p o v o s indígenas e vários p o v o s mestiços, s i n t e t i z a m o s p r i n c i p a i s c o n f l i t o s d a s u a

2 7 G j o v a n n i B a t l i s t a B r o n z i n i , C u l t u r a popolare-dialecttica e contestuatità, B a r i , Dédalo L i b r e , 1980, p . 15.

A S C U L T U R A S P O P U L A R E S N O C A P I T A L I S M O 51

,,. orporação a o c a p i t a l i s m o . N a produção, circulação e c o n s u m o d o " t e s a n a t o , n a s transformações d a s f e s t a s , p o d e m o s e x a m i n a r a I I I I I Ç A O económica d o s f a t o s c u l t u r a i s : s e r e m i n s t r u m e n t o s p a r a a l>l produção s o c i a l ; a função política: l u t a r p e l a h e g e m o n i a ; a s f u n -. . ti s />sicossociais: c o n s t r u i r o c o n s e n s o e a i d e n t i d a d e , n e u t r a l i z a r O U ' l a b o r a r s i m b o l i c a m e n t e a s contradições. A c o m p l e x a compósi­t o d o a r t e s a n a t o e d a s f e s t a s , a v a r i e d a d e d e fenómenos s o c i a i s , | i i c a b r a n g e m f a v o r e c e m o e s t u d o , d e m o d o simultâneo, d a c u l t u r a n < i i i r e s p r i n c i p a i s c a m p o s e m q u e se m a n i f e s t a : os textos, aspráti-, g& <>u relações sociais, a organização espacial. F a l a r s o b r e o a r t e s a ­nal*» r e q u e r m u i t o m a i s d o q u e descrições d o d e s e n h o e d a s técnicas , l c produção; o s e u s e n t i d o só é a t i n g i d o s e o s i t u a m o s e m relação C o m o s t e x t o s q u e o p r e d i z e m e o p r o m o v e m ( m i t o s e d e c r e t o s , f o l h e t o s turísticos e condições p a r a c o n c u r s o s ) , e m conexão c o m a s práticas s o c i a i s d a q u e l e s q u e o p r o d u z e m e o v e n d e m , o b s e r v a m - n o o u o c o m p r a m ( n u m a a l d e i a , n u m m e r c a d o camponês o u u r b a n o , u m a boutique o u m u s e u ) , c o m relação a o l u g a r q u e o c u p a j u n t o a o u t r o s o b j e t o s n a organização s o c i a l d o espaço ( v e r d u r a s o u a n t i ­g u i d a d e s , s o b r e u m chão d e t e r r a b a t i d a o u s o b a astúcia s e d u t o r a d a s v i t r i n a s ) .

O q u e é q u e d e f i n e o a r t e s a n a t o : s e r p r o d u z i d o p o r indígenas o u c a m p o n e s e s , a s u a elaboração m a n u a l e anónima, o s e u caráter r u d i m e n t a r o u a i c o n o g r a f i a t r a d i c i o n a l ? A d i f i c u l d a d e e m e s t a b e ­l e c e r a s u a i d e n t i d a d e e o s s e u s l i m i t e s s e t e m a g r a v a d o n o s últimos a n o s p o r q u e o s p r o d u t o s c o n s i d e r a d o s a r t e s a n a i s m o d i f i c a m - s e a o se r e l a c i o n a r e m c o m o m e r c a d o c a p i t a l i s t a , o t u r i s m o , a "indústria c u l t u r a l " e c o m a s " f o r m a s m o d e r n a s " d e a r t e , comunicação e l a z e r . M a s não se t r a t a s i m p l e s m e n t e d e mudanças n o s e n t i d o e n a função d o a r t e s a n a t o ; e s t a questão f a z p a r t e d e u m a c r i s e g e r a l d e i d e n t i d a d e q u e e x i s t e n a s s o c i e d a d e s a t u a i s . A homogeneização d o s padrões c u l t u r a i s e o p e s o alcançado p e l o s c o n f l i t o s e n t r e s i s t e m a s simbólicos c o l o c a m e m questão u m a série d e p r e s s u p o s t o s e d e d i f e ­renças q u e até a g o r a n o s t r a n q u i l i z a v a m : d e u m l a d o o s b r a n c o s , d e o u t r o l a d o o s n e g r o s ; a q u i o s o c i d e n t a i s , lá o s indígenas; n a s g a l e ­r i a s e m u s e u s u r b a n o s a a r t e , n o c a m p o o a r t e s a n a t o .

Também são d e r r u b a d o s estereótipos estéticos c o m o o s q u e s e p a r a v a m a a r t e " c u l t a " , a a r t e " d e m a s s a s " e o p o p u l a r . E s t e s três s i s t e m a s d e representação f u n c i o n a v a m c o m b a s t a n t e i n d e p e n ­dência, s e n d o q u e c a d a u m c o r r e s p o n d i a a c l a s s e s s o c i a i s d i s t i n t a s : a a r t e c u l t a c o r r e s p o n d i a a o s i n t e r e s s e s e g o s t o s d a b u r g u e s i a e d o s s e t o r e s c u l t i v a d o s d a p e q u e n a - b u r g u e s i a , a a r t e d e m a s s a s — q u e

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52 N E S T O R G A R C I A C A N C L I N I

s e r i a m e l h o r c h a m a r p a r a a s m a s s a s — a o s s e t o r e s m é d i o s e a o p r o ­l e t a r i a d o u r b a n o , e n q u a n t o q u e o a r t e s a n a t o c o r r e s p o n d i a a o s c a m p o n e s e s . A distância e n t r e o s padrões estéticos e l i t i s t a s e a c o m ­petência artística d a s c l a s s e s s u b a l t e r n a s e x p r e s s a v a , e r e a s s e g u ­r a v a , a separação e n t r e a s c l a s s e s s o c i a i s . O s códigos d o b o m g o s t o , c o n s a g r a d o s p o r e l e s próprios, e r a m c o n t r o l a d o s e x c l u s i v a m e n t e p e l o s s e t o r e s d o m i n a n t e s , e i s t o l h e s s e r v i a c o m o s i g n o d e distinção p e r a n t e a massificação c u l t u r a l . A a r t e p a r a a s m a s s a s e o f o l c l o r e , u m a v e z q u e t r a n s m i t i a m u m a visão d e m u n d o q u e l e g i t i m a v a p e r a n t e a s c l a s s e s p o p u l a r e s a s u a situação d e opressão , r e i v i n d i ­c a v a m a s s u a s tradições e hábitos n u m espaço d i f e r e n c i a d o , o n d e a ignorância d a " g r a n d e c u l t u r a " , a i n c a p a c i d a d e d e compreendê-la e d e desfrutá-la r a t i f i c a v a m o d i s t a n c i a m e n t o e n t r e o p o v o e a s e l i ­t e s . A m b o s s e u n i a m f o r m a l m e n t e n o s d i s c u r s o s o f i c i a i s , n a s i n v o ­cações p e l a u n i d a d e n a c i o n a l , m a s e r a m c u i d a d o s a m e n t e s e p a r a d o s a o s e r atribuída a o r g a n i s m o s d i f e r e n t e s a s u a adminis t ração , a o s e r e m o u t o r g a d o s prémios o u r e p r e s e n t a r e m o país n o e s t r a n g e i r o q u a n d o o s o b j e t o s a r t e s a n a i s e r a m e n c a m i n h a d o s p a r a o s c o n c u r ­s o s d e a r t e p o p u l a r e a s o b r a s d e a r t e , p a r a a s b i e n a i s .

E m p a r t e , t u d o i s t o c o n t i n u a a o c o r r e r . M a s m u i t o s são o s f a t o s q u e vêm c o n s p i r a n d o c o n t r a e s t a r i g o r o s a dist inção e n t r e o s s i s t e m a s simbólicos. A l g u m a s fábricas r e c o r r e m a d e s e n h o s autóc­t o n e s p a r a a s u a produção i n d u s t r i a l , e e x i s t e m artesãos q u e i n c o r ­p o r a m a o s s e u s o b j e t o s a i c o n o g r a f i a d a a r t e c u l t a o u d o s veículos d e comunicação d e m a s s a , c o m o o s z a p o t e c o s d e T e o t i t l a n d e i V a l l e , e m O a x a c a , q u e t e c e m e s t a m p a s c o m i m a g e n s d e K l e e e P i c a s s o . E m negócios u r b a n o s e n o s m e r c a d o s r u r a i s m i s t u r a m - s e o a r t e s a ­n a t o e o s p r o d u t o s i n d u s t r i a i s . A s c o m p a n h i a s m u l t i n a c i o n a i s d e d i s c o s d i f u n d e m n a s metrópoles música folclórica, e n q u a n t o q u e o s b a i l e s e m q u e p e q u e n o s v i l a r e j o s c a m p o n e s e s c e l e b r a m u m a a n t i g a f e s t a d o p a d r o e i r o são a n i m a d o s p o r c o n j u n t o s d e rock. Podería­m o s c i t a r a a r t e pop, o s v e r s o s políticos f e i t o s c o m músicas c o m e r ­c i a i s , o u s o d e i m a g e n s c a m p o n e s a s p e l a p u b l i c i d a d e p a r a s u g e r i r o caráter " n a t u r a l " d e u m p r o d u t o recém-inventado, a existência d e a d o r n o s d e plástico e m v i v e n d a s r u r a i s e d e t e a r e s m a n u a i s q u e d e c o r a m a p a r t a m e n t o s m o d e r n o s , c o m o o u t r o s e x e m p l o s d o m o d o p e l o q u a l o s s i s t e m a s estéticos se c r u z a m , p a r e c e n d o d i s s o l v e r - s e e m f o r m a s m i s t a s d e representação e d e organização d o espaço.

S e não p o d e m o s d e f i n i r , c o n f o r m e d i s s e m o s , a c u l t u r a p o p u ­l a r p o r u m a essência a priori, t a m p o u c o p o d e m o s fazê-lo c o m o a r t e s a n a t o o u c o m a s f e s t a s : não e x i s t e u m e l e m e n t o intrínseco —

A S C U L T U R A S P O P U L A R E S N O C A P I T A L I S M O 53

p o i e x e m p l o , a s u a produção m a n u a l — q u e s e j a s u f i c i e n t e , n e m 0 m e n o s p o d e - s e r e s o l v e r e s t a questão através d o a c ú m u l o d e

( . I M O S e l e m e n t o s . E m e s t u d o s r e c e n t e s t e n t o u - s e d e f i n i r o q u e s e r i a específico a o

a i l e s a n a t o a p a r t i r d e análises económicas q u e só l e v a m e m c o n t a o p r o c e s s o d e t r a b a l h o ( e não o s i g n i f i c a d o q u e s e f o r m a n o c o n s u ­m o ) o u o t i p o d e subordinação económica a o c a p i t a l i s m o ( m a s s e m . o n s i d e r a r o p a p e l d o c u l t u r a l p a r a e s t a caracterização).

T a m p o u c o é possível d e f i n i r m o s a a r t e o u a c u l t u r a p o p u l a r e s a p e n a s p e l a s u a oposição à a r t e c u l t a o u d e m a s s a s . Só o p o d e m o s f a z e r a p a r t i r d o s i s t e m a q u e e n g e n d r a a t o d o s e l e s , q u e l h e s a t r i b u i l u g a r e s d i s t i n t o s , r e f o r m u l a - o s e o s c o m b i n a , p a r a q u e c u m p r a m a s funções económicas, políticas e p s i c o s s o c i a i s necessárias p a r a a s u a reprodução . N e c e s s i t a m o s , p o r t a n t o , e s t u d a r o a r t e s a n a t o c o m o u m p r o c e s s o e não c o m o u m r e s u l t a d o , 2 8 c o m o p r o d u t o s i n s e r i d o s e m relações s o c i a i s e não c o m o o b j e t o s v o l t a d o s p a r a s i m e s m o s .

M a s , q u a l o c o n c e i t o d e a r t e s a n a t o q u e e m p r e g a r e m o s p a r a s e r m o s e n t e n d i d o s ? S e somássemos o s u s o s d e s t e vocábulo — n o s t e x t o s o f i c i a i s e e m c a r t a z e s d e l o j a s , n a l i n g u a g e m c o l o q u i a l e n o s g u i a s turísticos — teríamos d e i n c l u i r q u a s e t u d o q u e é p r o d u z i d o a mão, d e m o d o r u d i m e n t a r , p e l o s indígenas m a s também p o r o u t r o s c o m f o r m a s q u e e v o c a m a i c o n o g r a f i a pré-colombiana o u q u e s i m ­p l e s m e n t e s u g e r e m " a n t i g u i d a d e " o u " p r i m i t i v i s m o " : c e s t a s e chapéus d e t u l e , louça doméstica e peças escultóricas d e b a r r o , o u r i v e s a r i a l u x u o s a e d e a c a b a m e n t o rústico, o b j e t o s t a l h a d o s p o r j o v e n s hippies u r b a n o s e o u t r o s d e produção e c o n s u m o c a m p o n e ­ses c u j o v a l o r estético não i n t e r e s s a (sandálias, r e d e s e t c ) .

N e s t a s peças d i f e r e m o s p r o c e s s o s d e t r a b a l h o , o s c a n a i s d e circulação e a valorização n o m e r c a d o , o s c o n s u m i d o r e s , o s u s o s e o s i g n i f i c a d o q u e d i f e r e n t e s r e c e p t o r e s l h e s a t r i b u e m . Não p a r e c e c o n v e n i e n t e r e s t r i n g i r m o s o t e r m o a r t e s a n a t o p a r a u m a área d e s t e u n i v e r s o a n t e s d e p e r c o r r e r m o s o e s t u d o teórico e empírico a q u e n o s p r o p u s e m o s . A s s u m i r e m o s p r o v i s o r i a m e n t e e s t a dispersão s i g ­n i f i c a t i v a , i n c l u i r e m o s n a investigação situações b a s t a n t e díspares, o n d e o c o n c e i t o p a s s a p o r u s o s q u e não são f a c i l m e n t e compatíveis: p e r g u n t a r p e l a s razões d e s t a desagregação semântica e pragmática n o s a j u d a r á a e n t e n d e r a extensão e a modificação d a s s u a s funções s o c i a i s . A o c h e g a r m o s a o últ imo capítulo, e s t a r e m o s e m m e l h o r e s

2 8 V i c t o r i a N o v e l o , op- Ctt., p . 7 .

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54 NESTOR GARCIA CANCLINI

condições para sugerir uma utilização mais restrita do conceito de artesanato.

Das festas não falaremos, como o fazem os fenomenólogos da religião (Otto, Eliade) e mesmo certos antropólogos (Duvig-naud), como uma ruptura do cotidiano, uma passagem do profano ao sagrado, uma busca de um tempo original onde "se reencontra de modo pleno a dimensão sagrada da vida, onde se experimenta a santidade da existência humana enquanto criação divina".29 Pelo contrário, a pesquisa de campo nos fez ver que a festa sintetiza a totalidade da vida de cada comunidade, a sua organização econó­mica e suas estruturas culturais, as suas relações políticas e as pro­postas de mudanças. Num sentido fenomênico é verdade que a festa apresenta uma certa descontinuidade e excepcionalidade: os índios interrompem o trabalho habitual (ainda que para realizar outros, às vezes mais intensos e prolongados), vestem roupa espe­cial, preparam comidas e adornos incomuns. Mas não pensamos que a soma destes fatos seja determinante para situarmos a festa num tempo e.lugar opostos ao cotidiano.

As festas camponesas, de raízes indígenas, coloniais, e ainda as festas religiosas de origem recente são movimentos de unificação comunitária para celebrar acontecimentos ou crenças surgidos da sua experiência cotidiana com a natureza e com outros homens (quando nascem da iniciativa popular) ou impostos (pela Igreja ou pelo poder cultural) para comandar a representação das suas condi­ções materiais de vida. Associadas com frequência ao ciclo produ­tivo, ao ritmo do plantio e da colheita, são um modo de elaborar simbólica, e às vezes de se apropriar materialmente, do que a natu­reza hostil ou a sociedade injusta lhes nega, celebrar este dom, recordar e reviver a maneira como o receberam no passado, buscar e antecipar sua chegada futura. Quer festejem um fato recente (a abundância de uma colheita) ou comemorem eventos longínquos e míticos (a crucificação e ressurreição de Cristo), o que motiva a festa está vinculado à vida comum do povo. Ao invés de concebê-la, como Duvignaud, como um momento no qual a "sociedade sai de si mesma, escapa a sua própria definição",30 enxergamos nela uma ocasião na qual a sociedade penetra no mais profundo de si mesma, naquilo que habitualmente lhe escapa, para compreender-

29 Mircea Eliade, Lo Sagradoy to Profano, Madrid, Ediciones Guadarrama, 1967, p. 80.

30 Jean Duvignaud, Feles et civilizations, Genebra, Librairie Weber, 1973, p. 46.

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sc e restaurar-se. A causa da distância entre o ordinário e o festivo deve ser buscada na história cotidiana, no que lhes falta ou não compreendem no trabalho, na vida familiar, no relacionamento impotente com a morte.

Esta diferença da festa, seus excessos, o esbanjamento e a sua alegre decoração são compreendidos se relacionados com as suas carências rotineiras. A partir de um enfoque materialista podem ser interpretados como uma compensação ideal ou simbólica das insa­tisfações económicas. Uma interpretação energética (psicanalítica) revela, por detrás do desenfreio e da sublimação da festa, a explo­são ou realização disfarçada de pulsões reprimidas na vida social. Em ambos os casos, a descontinuidade é uma forma de se falar do que se abandona, um outro modo de continuá-lo. Não podemos aceitar que a essência da festa seja a fuga da ordem social, a perse­guição de um lugar "sem estrutura e sem código, o mundo da natu­reza onde só se exercem as forças do ' i d \ a grande instância da sub­versão".31 Ao contrário, mediante o ritual da festa o povo impõe uma ordem a poderes que sente como incontroláveis, procura transcender a coerção ou a frustração de estruturas limitativas atra­vés da sua reorganização cerimonial, imagina outras práticas sociais, que às vezes chega a pôr em prática no tempo permissivo da cele­bração. Nem sempre estas práticas são libertadoras (podem ser eva­sivas ao interpretarem de modo resignado ou culposo a sua misé­ria), mas sim, aparecem estruturadas, tanto por sua ordem interna como pelo espaço delimitado que ocupam na vida cotidiana que as precede e as continua e que nelas se inscreve.

A festa continua, a tal ponto, a existência cotidiana que repro­duz no seu desenvolvimento as contradições da sociedade. Ela não pode ser o lugar da subversão e da livre expressão igualitária, ou só consegue sê-Io de maneira fragmentada, porque não é apenas um movimento de unificação coletiva: as diferenças sociais e económi­cas nela se repetem. Por isto não compartilhamos a interpretação que faz do gasto recreativo ou suntuário da festa um mecanismo de redistribuição ou de nivelação económica: a pressão comunitária para que os ricos ocupem cargos e postos diretivos seria, para auto­res como Castile, um recurso destinado a obrigá-los a reinvestir os seus lucros na celebração e assim reduzir a desigualdade de renda.32

31 Idem, p. 41. 32 Entre os que sustentam a tese da "redistribuição" podemos citar Eric Wolf;

Aguirre Beltran critica esta postura e fala de "nivelação". Castile desenvolveu

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Encontramos, às vezes, este processo de coerção e entendemos que é legítimo ver nele uma forma de se fazer com que o excedente seja reinvestido dentro do povoado para evitar que um grande inter­câmbio com o exterior destrua a coesão interna. Mas além do fato de que não existe redistribuição porque os ricos não transferem parte do seu lucro para os pobres mas sim, o gastam no festejo, esta " p e r d a " é muitas vezes compensada por outros ganhos: são eles que vendem a cerveja e as comidas, que administram as diversões.

Ao beneficiar os que já possuem muito e multiplicar o seu enriquecimento graças à intensificação do consumo, a festa reafir­ma as diferenças sociais, propicia uma nova ocasião para que se exerça a exploração interna e externa sobre o povo. Ao mesmo tempo que possui elementos de solidariedade coletiva, a festa exibe as desigualdades e diferenças que nos impedem de idealizar as " co ­munidades" indígenas, obrigando-nos a escrever com reserva esta palavra quando aplicada a estes povos. (Não podemos falar de comunidades como se fossem blocos homogéneos; é um termo útil para designarmos agrupamentos onde o coletivo possui mais força do que nas sociedades " m o d e r n a s " , com a condição de que mani­festemos as suas contradições internas.)

A partir desta compreensão da festa como uma estrutura, homóloga ou invertida diante da estrutura social, podemos tornar inteligível o que nela existe de acontecimento, de transgressão, de reinvenção do cotidiano, do que transcende o controle social e se abre para o florescimento do desejo. Mas a tensão entre aconteci­mento e estrutura não se dá do mesmo modo em todas as classes e situações. Consequentemente surge a importância de primeiro conhecer as estruturas sociais e a estrutura da festa, de não especu­lar sobre a festa em geral, de distinguir entre as festas cívicas, as reli­giosas, as familiares, as urbanas e as rurais. Tratarei de justificar este enfoque teórico através do estudo de três festas religiosas de Michoacán, a de São Pedro e São Paulo em Ocumicho, a de Cristo Rei em Patamban e a dos mortos na zona do Lago de Pátzcuaro.

ambos os aspectos em relação aos tarascos no seu livro Cherán: la adaplación de una comunidad tradicional de Michoacán, pp. 62-66.

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As culturas populares em transformação: o caso tarasco Os tarascos ou purépechas têm sido e são um dos principais

grupos étnicos do México. Durante a chegada dos espanhóis ocupa­vam o atual estado de Michoacán, partes de Guerrero, Guanajuato e Querêtaro, num total de 70 000 quilómetros quadrados onde viviam um milhão e meio de habitantes. Esta cifra incluía outras etnias, principalmente nahuatls, toltecas e chichimecas, mas os tarascos eram o grupo dominante. Os poucos documentos que se referem à sua vida pré-colombiana, os Relatórios de Michoacán e Tancítaro, a descrição na qual Sahagún reproduz a admiração azteca para com eles, bastam para termos uma imagem dos seus costumes e do seu poder, da habilidade artesanal e dos seus artigos de luxo, da sua importância nos tempos anteriores à conquista.

Subjugados pelos espanhóis, perderam possessões e a inde­pendência, foram obrigados a renunciar parcialmente a seus hábi­tos, mas também muitos se refugiaram na serra. Sua obstinada resistência, e a ação social de Vasco de Quiroga, que fez parte da colonização mas interessou-se em desenvolver algumas instituições indígenas, tornaram possível uma melhor sobrevivência da herança tarasca em comparação com outras regiões do México. A superex-ploração da colónia, os combates no período da Independência e da Revolução, as lutas entre agraristas e sinarquistas — que inter­romperam e modificaram a sua continuidade cultural — não aboli­ram totalmente o sentido comunal na exploração da terra e dos bosques, as organizações locais de governo, as técnicas artesanais e alguns rituais e festas. Como estas transformações de séculos pas­sados foram amplamente descritas em vários livros, em especial nos escritos por Carrasco e van Zantwijk, já citados, resenharemos apenas no capítulo IV os antecedentes mais significativos para o estudo dos conflitos atuais.

Chegar a Patamban de dia: após um ahora e quinze por uma picada, vemos terrenos semi-secos, alguns rachados, e nos meses melhores umas poucas plantações de milho, feijão e abóbora. A escassez de chuva não impede que enormes bosques de pinho rodeiem o povoado. Os habitantes parecem habituados ao frio dos 3 700 metros de altitude, e saem muito cedo, homens e adolescen­tes, montados em cavalos e asnos, armados com machados e serras, para buscar madeira e resina. Em suas casas, a maioria de grandes troncos, outras de tijolo, as mulheres, as crianças e alguns homens

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cuidam dos animais, de uma pequena plantação, e produzem uma cerâmica verde, de complexa decoração, que levam para a praça nas festas ou que exibem nas portas. Vão também para a praça, por ruas de terra ou semicalçadas, para buscar água que às vezes é racio­nada e para comprar o que não possuem nas suas plantações. Os mais velhos falam o tarasco, os jovens o entendem e as crianças aprendem exclusivamente o espanhol na escola. Como a migração é equivalente ao crescimento demográfico, faz muitos anos que são umas seis mil pessoas os seus habitantes.

Chegar a Patamban no sábado, na noite anterior à festa do Cristo Rei: três quilómetros antes do povoado sabemos que esta­mos perto ao vermos girar a roda-gigante, iluminada por lâmpadas fluorescentes, e tão alta como a torre da igreja. Por ruas irregula­res, desacostumadas aos carros,' caminhões estatais e de interme­diários particulares chegam para buscar as peças de artesanato do concurso. Encostamos às paredes para deixá-los passar e ouvimos os comentários dos habitantes que transformam as portas das suas casas em plateias. Na praça e nas ruas próximas os mais jovens se reúnem para observar como são instalados os postos de venda de produtos industriais, os jogos mecânicos e de azar. De modo seme­lhante ao que ocorre em outros povoados camponeses, observamos que um modo de se "vestir para a festa" é usar roupas de clubes norte-americanos, ainda que as crianças prefiram as que levam imagens da televisão como as panteras e a mulher biônica. No palanque levantado sobre a fonte da praça, um representante da delegação do Turismo anuncia que vai começar o concurso de pire-kuas, as antigas canções tarascas. No momento em que o primeiro conjunto começa a cantar, alguns homens, apenas homens, uns quarenta, aproximam-se com seus gravadores e os levantam, pro­curando a melhor posição para registrar a música. Ao término de cada canção ouvem-se aplausos e o barulho das teclas de controle dos gravadores. Numa pausa do espetáculo, respondem-me que compraram os gravadores em Morelia ou no Distrito Federal, alguns nos Estados Unidos, onde trabalharam como braçais, e que querem guardar a música para continuar a escutá-la quando a festa termi­nar e voltarem a viajar. Terminada a pausa retornam aos seus luga­res, junto ao palanque, ou agrupados em círculo ao redor de um grande alto-falante: devido à sua atitude concentrada diante dos aparelhos eletrônicos, por seus gestos lentos e cuidadosos com os quais manipulam as fitas, debaixo de amplos ponchos que os prote­gem do frio, vejo nos gravadores uma parte do ritual da festa.

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Como tantos objetos cerimoniais, são o recurso para se apropria­rem e conservarem os símbolos de sua identidade. É claro que o meio utilizado, o lugar de onde ele é trazido e para onde o levam revelam como a identidade se está modificando.

A outra região que estudamos, a do lago de Pátzcuaro, sobre­tudo da cidade que leva o seu nome, parece mostrar para onde vai o processo que vimos em Patamban e outros povoados da serra. A região lacustre, devido ao seu papel-chave na economia, na política e na cultura da região, desde os tempos pré-cortesianos até agora, foi acrescentando, à sua maior riqueza agrária, pesqueira e em cabe­ças de gado, centros arqueológicos e coloniais (igrejas, conventos, cidades intactas desde quatro séculos atrás), peças de artesanato e serviços turísticos. Excelentes vias de comunicação facilitam que os 24000 habitantes de Pátzcuaro viajem com frequência e recebam produtos industrializados, revistas, fotonovelas e jornais. Por estes motivos concentrou-se também nesta área a atividade de vários organismos oficiais: a Secretaria de Agrupamentos Humanos e de Obras Públicas, que entre outros edifícios constrói oficinas e lojas para a venda de peças de artesanato; o Instituto Nacional Indige­nista, que cria escolas, albergues e fornece assessoria técnica e comercial para agricultores e artesãos; a Secretaria de Turismo e suas campanhas publicitárias. Existe também um organismo inter­nacional, até pouco tempo dependente da UNESCO, o Centro Regional de Educação Fundamental para a América Latina (CRE-FAL), que se dedica à organização comunitária, à educação cam­ponesa e que na década de 60 influiu na produção artesanal através de estudos, cursos, assistência técnica e propostas para os organis­mos governamentais.

Entretanto, as diferenças existentes entre os povoados que margeiam o lago, como por exemplo Ihuatzio e Tzintzuntzan, que possuem uma importância política e religiosa semelhante, não per­mitem a simplificação evolucionista que conceberia esta zona como uma antecipação do que ocorrerá na serra. Tzintzuntzan é um povoado mestiço que perdeu o uso da língua indígena e se encontra económica e culturalmente integrado à sociedade nacional. Ao lado, Ihuatzio — que também está a alguns poucos metros de dis­tância de Janitzio, de frente para esta ilha que é o maior centro de comercialização da festa dos mortos no México — conserva os hábi­tos, a língua e as formas de organização social dos tarascos. Este processo não pode ser pensado como uma absorção progressiva e inevitável das culturas tradicionais pelo capitalismo. É mais com-

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plexo, com idas e vindas, coexistências desconcertantes e múltiplas combinações.

Estas não são todas as bases teórico-metodológicas, nem o marco histórico-social da região, que podemos considerar como suficientes para a nossa investigação. Preferimos ir entrelaçando os dados e as reflexões através do texto, achamos melhor que a descri­ção dos fenómenos encontrados na pesquisa de campo se deixe guiar pela explicação conceituai, que o trabalho teórico seja colo­cado em contraste vez por outra com a sua base empírica.

A produção artesanal como uma necessidade

do capitalismo O artesanato se mantém como um setor específico, possuidor

de técnicas de fabricação e de motivos visuais de origem indígena, ou se dissolveu nos sistemas de produção e de representação das sociedades industriais? É comum que as peças de artesanato sejam encaradas como objetos que se enganaram de século. Afirma-se que as oficinas artesanais correspondem a um outro modo de pro­dução, que nas grandes cidades há muito tempo foram substituídas pelas manufaturas e em seguida pelas fábricas, e que a sua concor­rência desvantajosa diante das empresas capitalistas relegou os artesãos à realização de consertos ou outros trabalhos marginais onde a criatividade manual permanece sendo útil. Pode-se entender por que nos países latino-americanos, devido à sua "moderniza­ç ã o " tardia e desigual, persistem formas "a t r a sadas" de produ­ção, mas como explicar que no México, que apresenta uma indus­trialização crescente desde a década de 40, exista o maior número de artesãos do continente: seis milhões de pessoas? Por quais moti­vos o Estado multiplica os organismos destinados a incentivar um tipo de trabalho que, ocupando cerca de 10% da população, repre­senta apenas 0,1 °7o do produto nacional bruto?33

Não podemos explicar o auge do artesanato juntamente com o avanço industrial, se o concebermos como uma sobrevivência atávica de tradições ou como obstáculo disfuncional para o desen­volvimento económico. Nossa tese, quanto a este ponto, é que o artesanato — bem como as festas e outras manifestações populares 33 I Seminário sobre a problemática artesanal (intervenção do dr. Rodolfo Becerril

Straffon), FONART-SEP, 1979, p. 1.

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— subsistem e crescem porque desempenham funções na reprodu­ção social e na divisão do trabalho necessárias para a expansão do capitalismo. Para explicar a sua persistência deve-se analisar, dentro do ciclo atual da reprodução do capital económico e cultural nos países dependentes, quais as funções que o artesanato desempenha e que não são contra a lógica capitalista, mas dela fazem parte. Deve-se enxergar tanto os aspectos materiais quanto os simbólicos na subordinação das comunidades tradicionais ao sistema hegemó­nico, deve-se perceber a complementação e o inter-relacionamento que se estabelece entre eles. E ao mesmo tempo deve-se superar o estudo das alterações formais dos objetos e as mudanças na produ­ção, como geralmente se faz, para se considerar o ciclo completo do capital: as mudanças na produção, na circulação e no consumo.

Vejamos, antes de tudo, por que se transforma a função tra­dicional do artesanato: proporcionar objetos para o autoconsumo nas comunidades indígenas. No México podemos identificar vários fatores, inerentes ao desenvolvimento capitalista, como responsá­veis pelo crescimento do número de artesãos e pela diminuição da sua produção para uso interno em comparação com o excedente para a comercialização externa. Sem pretendermos uma enumera­ção exaustiva, analisaremos os quatro campos principais onde se localizam as causas desta transformação: as deficiências da estru­tura agrária, as necessidades do consumo, o estímulo turístico e a promoção estatal. Como estes fatores ainda não estão suficiente­mente estudados nas suas relações com o artesanato e a cultura popular, proporemos — mais do que uma visão sistemática — uma reformulação hipotética do problema, uma reunião de dados e uma maneira de utilizá-los para incitar a realização de futuros trabalhos.

"Resolver" o problema do desemprego rural A principal fonte de recursos nas economias camponesas, o

cultivo da terra está organizado em unidades mínimas de produção (ejidos — terras comunais — e pequenas propriedades), cujo tama­nho não permite o emprego de toda a força de trabalho dos grupos domésticos durante todo o ciclo agrícola. A tecnologia rudimentar, frequentemente pré-hispânica ou da era colonial, juntamente com a má qualidade de muitas das terras contribuem para que grande parte da produção agrícola sirva unicamente para o autoconsumo. O excedente é entregue ao mercado em tais condições de exploração

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que nunca propicia aos pequenos camponeses rendimentos de importância.

A partir dos anos 60 agravaram-se problemas crónicos do campo mexicano. Os minifúndios se tornam cada vez menos rentá­veis, os preços de muitos produtos agrícolas se deterioram em rela­ção aos produtos industriais, o acelerado crescimento demográfico torna as terras insuficientes para oferecer trabalho para toda a população camponesa. Esta pauperização expulsa um grande núme­ro de pessoas do campo, incentiva a concentração das propriedades abandonadas pelos minifundiários, aumenta a mão-de-obra deso­cupada e por conseguinte o grau de exploração e o número de mi­grantes: em 1960, 90% das fazendas do centro do país possuíam menos de 5,1 hectares cada uma; em 1970, muitas delas haviam desaparecido.34

Em Michoacán as terras comunais são minoritárias em rela­ção às propriedades privadas ou as que são temporariamente arren­dadas. Os pequenos produtores, ou os que participam em empreen­dimentos comunais, raramente obtêm muito mais do que o milho, o feijão e outros poucos alimentos em quantidade apenas suficiente para as suas famílias. A criação de animais, quando existe, é dedi­cada em sua maioria para o consumo interno; a madeira dos bos­ques, para a fabricação do artesanato, de moradias e como com­bustível. Tal escassez de recursos obriga uma procura de alternati­vas para a subsistência: alguns produzem artesanato, outros traba­lham em terras alheias (como diaristas, meeiros ou parceiros), na zona do lago de Pátzcuaro recorrem à pesca e ao comércio com os turistas. Muitos acabam por emigrar para o Sul dos Estados Uni­dos, alguns não chegam mais do que aos estados do Norte do Méxi­co ou às grandes cidades do país, outros até Apatzingán, ainda dentro do estado michoacano, onde existem terras mais férteis que permitem o cultivo de melão e de algodão para exportação. Um grande número dentre as famílias entrevistadas, tanto na região lacustre como na serra, possui membros trabalhando longe de seus povoados.

Devido ao empobrecimento e ao caráter estacionário da pro­dução agrícola, o artesanato aparece como um recurso complemen­tar apropriado, e em alguns povoados converteu-se na principal fonte de renda. Sem requerer uma grande inversão em materiais e

34 Teresa Rendon, "Utilización de mano de obra en la agricultura mexicana, 1940-1973", Demografiay Economia, vol. X, n? 3, México, 1976.

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máquinas, nem a formação de mão-de-obra qualificada, aumenta o ganho das famílias rurais, através da utilização das mulheres, das crianças e dos homens quando dos períodos de inatividade agrícola. O artesanato permite que os camponeses sem terra encontrem um modo alternativo de subsistência. As tradições artesanais herdadas de tempos pré-colombianos, o lugar central que ocupam em muitas culturas indígenas influenciaram para que alguns funcionários ima­ginassem que este tipo de produção "resolveria" a questão agrária. Ainda que o conhecimento mais elementar da problemática rural coloque em descrédito este tipo de " e m e n d a " , o mais completo estudo feito até agora a respeito das condições de emprego e sobre a migração em Michoacán — o de Anne Lise e René Pietri — demons­tra que o artesanato é ainda hoje a principal maneira para se reter a população camponesa nesta região: as mais baixas cifras de mi­grantes correspondem aos filhos de artesãos.35

Do ponto de vista dos camponeses, a produção artesanal faz com que seja possível manter a família unida e alimentada no povoado do qual sempre se sentiram fazendo parte. Do ponto de vista do Estado, o artesanato é um recurso económico e ideológico utilizado para limitar o êxodo camponês e a consequente entrada nos meios urbanos de maneira constante de um volume de força de trabalho que a indústria não é capaz de absorver, e que agrava as já preocupantes deficiências habitacionais, sanitárias e educacionais. A gravidade desses problemas foi revelada num estudo realizado pela C O P L A M A R (Coordenação Geral do Plano Nacional de Zonas Deterioradas e de Grupos Marginalizados), segundo o qual três milhões de pessoas disfarçam o seu desemprego dedicando-se ao comércio ambulante — engraxar sapatos, vender bugigangas, "comer fogo" — nas esquinas da capital. A promoção do artesa­nato, que propicia no campo trabalho para os seus produtores e, nas cidades onde é vendido, ocupação para milhares de marginali­zados, transforma " u m a situação de subemprego visível (pessoas que só possuem ocupação durante uma curta temporada por ano) numa situação de subemprego invisível generalizado durante o ano devido à justaposição ou à superposição de atividades económicas cujos rendimentos são anormalmente baixos".36

Anne Lise e René Pietri, Empteo y migración en la región de Pátzcuaro, México, INI, 1976, p. 257. . Anne Lise-Pietri, "La artesanía: un factor de integractón dei médio rural , in Ivan Restrepo (coord.), Conflicto entre ciudad y campo en América Latina,

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As necessidades contraditórias do consumo A expansão do mercado capitalista, a sua reorganização

monopolista e transnacional tende a integrar todos os países, todas as regiões de cada país num sistema homogéneo. Este processo "estandartiza" o gosto e substitui a louça ou a roupa de cada comu­nidade por produtos industriais padronizados, os seus hábitos par­ticulares por outros de acordo com um sistema centralizado, as suas crenças e representações pela iconografia dos meios de comu­nicação de massa: o mercado da praça cede o seu lugar para o super­mercado, a festa indígena para o espetáculo comercial.

Mas de modo simultâneo as exigências de renovar vez por outra a demanda não permitem que a produção se estanque na repetição monótona de objetos uniformizados. Contra os riscos.de uma entropia no consumo, recorre-se à introdução de inovações na moda e ao processo de ressignificação publicitária dos objetos: todos usamos jeans, mas a cad ano devemos mudar de modelo; na compra de produtos industriai — um carro, por exemplo — a pro­paganda nos segreda confidencialmente (a todos) que existem tantas cores e tais acessórios opcionais para permitir que o nosso se distin­ga dos outros. O capitalismo engendra os seus próprios mecanis­mos para a produção social da diferença, mas também utiliza ele­mentos alheios. As peças de artesanato podem colaborar nesta revi­talização do consumo, já que introduzem na produção em série industrial e urbana — com um custo baixíssimo — desenhos origi­nais, uma certa variedade e imperfeição, que por sua vez permitem que se possa diferenciá-las individualmente e estabelecer relações simbólicas com modos de vida mais simples, com uma natureza nostálgica ou com os índios artesãos que representam esta proximi­dade perdida.

Os fatores psicossociais, o valor conotativo do artesanato possuem singular importância entre os consumidores estrangeiros.

México, Nueva Imagen, 1980, p. 360. Vários livros têm caracterizado nos últi­mos anos a economia camponesa mexicana e o seu posicionamento no desenvol­vimento capitalista. Para se conhecer as discussões teóricas e a informação empí­rica, já bastante difundidas, remetemos apenas a dois textos recentes: Mário Margulis, Contradicciones en la estructura agraria y transferencias de valor, México, El Colégio dei México, 1979, e Armando Bartra, La Explotación dei tra-bajo campesino porei capital, México, Editorial Macehual, 1979. Quanto à orga­nização específica da produção artesanal michoana e a sua posição no interior da economia camponesa, além do que foi dito neste capítulo, este tema será tratado no capítulo V e na conclusão.

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Gobi Stromberg, uma antropóloga norte-americana que pesquisou a produção de objetos de prata em Taxco, registrou algum dos motivos que levaram os turistas a comprar peças de artesanato: atestar a sua viagem ao estrangeiro (devido ao status sócio-econô­mico e ao tempo livre que ela implica), demonstrar a "ampl i tude" do seu gosto, que não se restringe ao seu próprio contexto e é sufi­cientemente "cu l t ivado" para abranger "inclusive o que há de mais primit ivo", expressar a recusa diante de uma sociedade mecanizada e a capacidade de dela "escapar" mediante a aquisição de peças singulares elaboradas a mão.37

Existe, deste modo, um duplo movimento do consumo. Por um lado, a roupa e os objetos domésticos de origem indígena são cada vez menos utilizados nas sociedades camponesas porque são substituídos por produtos industriais mais baratos ou atraentes devido ao seu desenho e suas conotações modernas. Mas a produ­ção artesanal decaída é reativada graças a uma crescente demanda de objetos "exóticos" nas próprias cidades do país e do estrangeiro. Esta estrutura aparentemente contraditória mostra que também no espaço do gosto o artesanal e o industrial, a " t r ad ição" e a " m o ­dernidade" se implicam reciprocamente.

O turismo ou a reconciliação do atraso com a beleza "Ainda que o lugar conserve um encanto de selvagem virgindade, a popula­ção não é tão primitiva que não possa oferecer as comodidades básicas às quais o viajante está acostumado."

De la Guia Turística de la Asociación Mexicana Automobilística, a propósito de Isla Mujeres (México, 1980, 10? ed., p. 166).

A fascinação nostálgica pelo rústico e pelo natural é uma das motivações mais invocadas pelo turismo. Ainda que o sistema capi­talista proponha a homogeneidade urbana e o conforto tecnológico como modelo de vida, mesmo que o seu projeto básico seja apro-priar-se da natureza e subordinar todas as formas de produção à economia mercantil, esta indústria multinacional que é o turismo necessita preservar as comunidades arcaicas como museus vivos.

37 Gobi Stromberg, EIJuego dei coyote: platería y arte en Taxco, inédito, pp. 16-17.

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Também aqui existe uma oscilação entre a uniformidade e o incen-livo seletivo das diferenças. De uma certa maneira, os países turísti­cos são um só país, em todos se fala inglês, existe um cardápio inter­nacional, pode-se alugar carros idênticos, ouvir a música da moda e pagar com cartão American Express. Mas para se convencer as pes­soas a fim de que se desloquem até hotéis remotos não basta ofere-cer-lhes a reiteração dos seus hábitos, um ambiente padronizado com o qual podem sintonizar-se rapidamente; é útil que se mante­nham cerimónias "primit ivas" , objetos exóticos e povos que os ofereçam barato.

Mais ainda que o autóctone, o que o turismo requer é a sua mescla com o avanço tecnológico: as pirâmides ornadas com luz e som, a cultura popular transformada em espetáculo. É fácil com­prová-lo nos cartazes e folhetos das empresas privadas e dos orga­nismos estatais. Um artigo da revista Caminos dei Aire, editada pela companhia Mexicana de Aviación e distribuída em suas agências e Boeings, incentiva a compra de artesanato com este duplo argu­mento: são feitos com "ferramentas de pedra antiquíssimas" e laqueados com espinhos e pigmentos vegetais, mas possuem avan­ços técnicos que garantem a duração das peças. "Há uns trinta anos muitos dos artefatos de barro eram encantadoramente decora­dos, mas se rompiam com facilidade e eram demasiado porosos para a cozinha moderna. Hoje em dia, os artigos de barro ainda são pintados a mão de modo muito belo, mas são à prova de logo" .

A estrutura do raciocínio confessa as suas duas operações ideológicas: a) mostrar que o antigo e o moderno podem coexistir, que o primitivo possui um lugar na vida atual; b) organizar esta relação, enlaçar ambas as partes (ao mesmo tempo que as diferen­cia, subordina o primitivo diante do atual, como o faz a forma adversativa " m a s " : o seu uso reiterado para vincular o artesanal e 0 industrial significa que o artesanal é fatalmente inferior e defei­tuoso, que pode permanecer entre nós se melhorado por aquilo que 0 supera).

Como que para confirmar que este lugar paradisíaco do qual lala a revista merece ser visitado pelo modo como superou o atraso conservando a sua beleza, assinala que artesãos " d a geração atual estão cursando a universidade ou já estão seguindo qarreira. Entre-lanto, frequentemente a tradição de hábeis e criativas mãos é tão forte que estes mesmos jovens regressam às suas casas para nas suas horas de folga trabalhar em cerâmica, esculpir em madeira ou para

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desenvolver qualquer outra atividade artística".18 O pitoresco, o primitivo podem seduzir o turista devido ao contraste com a sua vida habitual, mas o fazem ainda mais se o discurso folclórico-publicitário consegue convencê-lo de que a pobreza não precisa ser erradicada, que as "ferramentas antiquíssimas" podem sair-se bem diante da cozinha moderna, que "os artigos pintados a mão de modo muito be lo" , já não são incompatíveis com os testes de resis­tência. Também as contradições entre o universitário e o artesanal, o profissional e o camponês são conciliáveis numa mesma pessoa, no recinto da subjetividade. Como consegui-lo? Deve-se deixar que as tradições em nós adormecidas venham à tona quando do regresso às nossas casas e que nos ajudem a nos realizarmos... nas "horas de folga".

Michoacán, um dos estados que apresentam maior desenvol­vimento artesanal e afluência de visitantes, permite que apreciemos claramente o impacto do turismo: na produção do artesanato (mu­danças no volume e no desenho), na circulação (crescimento dos intermediários, das feiras, mercados e lojas) e no consumo (modifi­cações no gosto da população tarasca). O seu forte desenvolvimento pré e sobretudo pós-colombiano, um resultado de múltiplos estí­mulos internos (desde Vasco de Quiroga até Lázaro Cardenas), nunca havia antes experimentado um desenvolvimento tão acele­rado como nas duas últimas décadas. Junto com os demais fatores mencionados neste capítulo, é evidente o papel chave desempe­nhado pela penetração do turismo. As estatísticas, ainda que precá­rias e incompletas, e as entrevistas que realizamos nos mercados revelam que os lugares e as épocas de maior produção e venda coin­cidem com os que apresentam o maior número de visitantes: dos 2 071 439 turistas que Michoacán recebeu em 1977, mais de 60% (1 264 035) concentraram-se nas cidades que possuem o maior comércio de artesanato (Morelia, Uruapan e Pátzcuaro) nos meses de abril e de dezembro, ou seja, durante as festas e feiras da Semana Santa e do fim de ano.39 Faltam-nos dados específicos de Michoa­cán quanto ao volume global das vendas, mas uma estimativa nacio­nal indica que as compras de peças de artesanato alcançam a por­centagem de 18% do gasto médio de cada turista.40 Um fato parti-38 Bessie Galbraith, "Artesanía" in Caminos dei Aire, México, Mexicana de Avia-

ción, março-abril 1980, pp. 9-12. 39 Dados retirados do Plan de Desarrollo Turístico dei Gobierno de Michoacán,

1974-1980, tomo I. 40 Cifra do Banco de México mencionada por Victoria Novelo, op. cit., p. 15.

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cularmente impressionante é a invasão que ocorre no lugar mais famoso de Michoacán, a ilha de Janitzio, cujos 3 mil habitantes receberam em 1979 cerca de 70 mil turistas durante a Noite dos Mortos (do dia 1 para o dia 2 de novembro). Os 250 postos de venda de artesanato, que incluíam desde estabelecimentos estáveis até postos improvisados por indígenas e intermediários das redonde­zas, não davam conta de atender toda a multidão.

Em resumo: também no discurso turístico e nos números per­cebemos a importância que possuem o artesanato e as festas popu­lares em termos do desenvolvimento atual. Como atração econó­mica e de lazer, como instrumento ideológico, a cultura popular tradicional serve à reprodução do capital e da cultura hegemónica. Esta a admite, e dela necessita, como uma adversária que a conso­lida, que evidencia a sua "superior idade", como um lugar onde se vai para obter lucro fácil, e também a certeza de q u ; o merecemos porque afinal de contas a história termina conosco.

A ação político-ideológica do Estado A principal função ideológica do artesanato não se realiza

perante os turistas, mas sim com os habitantes do país que o pro­duz. Isto já havia sido percebido pelos dirigentes surgidos com a Revolução de 1910, quando promoveram o desenvolvimento do artesanato e do folclore com a finalidade de oferecer um conjunto de símbolos para a identificação nacional. Um país fraturado por divisões étnicas, linguísticas e políticas necessitava, juntamente com as medidas de unificação económica (reforma agrária, nacio­nalização, desenvolvimento coordenado do mercado interno) e política (criação do partido único, da central dos trabalhadores), que se estabelecesse uma homogeneidade ideológica. A castelhani-zação dos índios e a exaltação do seu capital cultural sob a forma de patrimônio comum de todos os mexicanos foram alguns dos recursos privilegiados. Tanto o novo Estado quanto vários intelec­tuais e artistas de destaque (Manuel Gamio, Othón de Mendizabal, Alfonso Caso, Diego Rivera, Siqueiros) sustentaram que para construir " u m a Pátria poderosa e uma nacionalidade coerente" devia ser posta em prática uma política que incluísse a "fusão entre raças, a convergência e a fusão de manifestações culturais, a uni­ficação linguística e o equilíbrio económico entre os elementos

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sociais",41 conforme escreveu Manuel Gamio. Salvador Novo declarava em 1932 que "os bonecos de palha, as xícaras, os brin­quedos feitos de barro, os chapéus multicoloridos" estavam dando aos mexicanos " u m elevado sentido racial e uma consciência de nacionalidade que antes nos faltava".42

Em 1921 reconheceu-se oficialmente pela primeira vez a impor­tância do que até então era chamado de "ar te popular" ou "indús­trias típicas"; para comemorar o centenário da Consolidação da Independência foi organizada uma exposição de artesanato, inau­gurada pelo presidente do México, Álvaro Obregon. Na década de trinta foram realizadas exposições promocionais no estrangeiro. Durante o governo de Lázaro Cardenas, em 1938, foi criado em Pátzcuaro o Museu Regional de Artes e Indústrias Populares, e em 1940 o primeiro Congresso Indigenista, reunido nesta cidade, apro­vou uma recomendação a respeito da "proteção das artes indígenas por intermédio de organismos nacionais". A partir de então, o incentivo aumentou: estudos sócio-econômicos e técnicos procura­ram conhecer os problemas da produção artesanal e propuseram novas medidas de apoio, foram criados fundos destinados à assis­tência creditícia, bem como organismos regionais e nacionais dedi­cados ao incentivo da produção e da sua difusão comercial. A Dire­ção Geral de Culturas Populares e o Fundo Nacional para o Fomento do Artesanato (FONART), criados na década de 70, tentaram coor­denar estes esforços que se encontravam disseminados devido à mul­tiplicação dos organismos oficiais, mais de cinquenta em todo o país.

Victoria Novelo, autora do mais exaustivo estudo a respeito das instituições e das políticas para o artesanato, explica que — ainda que tenha sido mantida a exaltação pós-revolucionária dos símbolos indígenas — o avanço do capitalismo tornou mais com­plexo em etapas posteriores o seu significado e função. Victoria dis­tingue três períodos a partir daquele impulso inicial: a) a explora­ção comercial do artesanato relacionada com o crescimento do turismo estrangeiro e com o interesse em incrementar a reserva de divisas, que gerou a sua industrialização parcial e a combinação de

Manuel Gamio, Forjando Patria, México, Editorial Porrúa, 1960, p. 183. Salvador Novo, "Nuestras artes populares", in Nuestro México, T. I., n? 5, México, julho 1932, p. 56. Citado por Victoria Novelo, op. cit., p. 35. Veja-se também, de Maria Luisa Zaldivar Guerra, Consideraciones sobre el arte popular en México, Sociedad Mexicana de Antropologia, XIII, Mesa redonda, Jalapa, set. 1973.

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objetos indígenas com objetos de outra origem; b) o incentivo à exportação dos produtos artesanais, que pretendeu contribuir para a política de substituição de importações visando a obtenção de um equilíbrio na balança comercial; c) a promoção do artesanato como parte da estratégia de criação de empregos e fontes complementares de rendimentos para as famílias rurais com a finalidade de reduzir o seu êxodo em direção aos centros urbanos.43

De um modo ou de outro, por intermédio das políticas esta­tais para o artesanato percebemos quais as funções que as culturas populares tradicionais podem cumprir no desenvolvimento econó­mico e na reelaboração da hegemonia. O avanço do capitalismo nem sempre precisa da eliminação das forças produtivas e culturais que não servem diretamente ao seu desenvolvimento se estas forças proporcionam coesão a um setor numeroso da população, se ainda satisfazem as suas necessidades ou as necessidades de uma reprodu­ção equilibrada do sistema.

A produção artesanal como uma necessidade do capitalismo? As peças de artesanato, portanto, são e não são um produto

pré-capitalista. O seu papel como recursos suplementares de rendi­mento no campo, como introdutoras de renovação na esfera do con­sumo e como atração turística e instrumento de coesão ideológica indica a variedade de lugares e funções nos quais o capitalismo delas necessita. Entretanto, não alcançamos inteiramente o que acontece com elas se só pensamos a partir do capitalismo, unidirecionalmente, as suas encruzilhadas atuais. Os produtos artesanais são também, há séculos, manifestações culturais e económicas dos grupos indí­genas. Esta dupla inscrição: histórica (num processo que vem desde as sociedades pré-colombianas) e estrutural (na lógica atual do capitalismo dependente) é o que produz o seu aspecto híbrido. Ao analisarmos este aspecto devemos encontrar um caminho entre dois obstáculos vertiginosos: a tentação folclorista de enxergar apenas o aspecto étnico, considerando o artesanato apenas como uma sobre­vivência crepuscular de culturas em extinção; ou, como uma reação a isto, o risco de isolar a explicação económica, e estudá-lo como qualquer outro objeto regido pela lógica mercantil.

Nem as culturas indígenas podem existir com a autonomia

Victoria Novelo, op. cit., pp. 14-16.

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pretendida por certos antropólogos ou folcloristas, nem são tam­pouco meros apêndices atípicos de um capitalismo que a tudo devo­ra. Às vezes os economistas mais atentos ao desenvolvimento mate­rial das formações sociais possuem uma concepção teológica do capitalismo (pensam-no como igual a Deus: onipotente, onisciente, onipresente) e exageram a sua hegemonia até enxergarem tudo que acontece como um efeito mecânico das suas determinações macroes-truturais.44 Em sociedades tão complexas como as que se situam no interior do capitalismo periférico e que possuem um forte compo­nente indígena, os processos sócio-oulturais são o resultado do con­flito entre várias forças que possuem origem diversa. Uma delas é a persistência de formas de organização comunitária da economia e da cultura, ou sobras da que existiu anteriormente, cuja interação com o sistema dominante é muito mais complexa do que supõem os que falam unicamente da penetração e da destruição das culturas autóctones.

Muitos estudos a respeito das culturas populares surgiram a partir desta pergunta apocalíptica: o que se pode fazer para evitar que o capitalismo acabe com o artesanato e com outras manifesta­ções tradicionais? Antes de procurar a resposta, deve-se perguntar se a pergunta está bem formulada. Ela deve ser repensada com base numa visão mais complexa de como o modo de produção vigente reproduz e renova a sua hegemonia. Os quatro fatores expostos neste capítulo demonstram que nem o Estado nem a classe domi­nante estão interessados em abolir a produção artesanal. Nenhuma classe hegemónica pode exercer o seu poder e a sua ideologia atra­vés de uma arbitrariedade total, unicamente de cima para baixo; ela necessita, especialmente nas suas etapas históricas progressistas, do avanço do conjunto da sociedade. Quer seja através de um desen­volvimento tecnológico e económico que integre a todos os setores sociais, incluindo as suas formas peculiares de produção material e cultural, quer seja porque precisa melhorar o nível educativo e de consumo das classes subalternas para expandir a produção e o mer­cado, o projeto dominante inclui muito mais do que a classe que o formula.

Do mesmo modo, devemos levar em consideração o papel específico que os índios atribuem aos seus próprios produtos e como ressignificam e refuncionalizam os papéis que lhes são impos-44 Esta critica nos foi sugerida, na discussão deste capítulo, pelo sociólogo Alfredo

Pucciarelli.

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tos. Existe muito mais do que a submissão e o mimetismo passivo que costuma ser atribuído a eles. Teremos ocasião de apreciá-lo quando descrevermos o significado do artesanato na vida cotidiana de economias de quase auto-subsistência, na casa indígena e no mercado camponês, e o confrontarmos com o significado que ele adquire no museu, no supermercado e nas moradias urbanas. Se antepomos a esta descrição de fatos, que cronologicamente foram prévios, a explicação da sua função presente, isto se deve a razões metodológicas: a explicação deve orientar a descrição. Não esque­cemos que toda explicação se constrói no processo de observação e descrição e que, após a construção de uma primeira explicação, novas observações podem vir a retificá-la, mas é certo também que a observação que não possui um marco teórico é uma observação cega ou ilusória.

Não apreenderíamos o significado atual do artesanato no capitalismo se o observássemos apenas a partir da sua raiz indíge­na. Aqueles que partem da sua origem étnica são levados por este método a enxergá-lo como uma sobrevivência que não possui lugar nas sociedades industriais. Em troca, uma explicação preocupada, acima de tudo, em situar o artesanato na lógica da reprodução capi­talista, onde o histórico esteja presente mas se encontre subordi­nado ao estrutural, é capaz de compreender as oscilações atuais, o auge e o declínio que ocorre em diferentes regiões e períodos, bem como pode entender através da divisão do trabalho e das suas varia­ções a subordinação de formas não-capitalistas de produção ao regime dominante.

É óbvio que a existência deste processo de deslocamento faz com que os produtos artesanais já não sejam o que eram na época das oficinas pré-capitalistas, nem o que foram em séculos passados como objetos representativos de grupos étnicos, nem ao menos sejam os símbolos da identidade nacional como nas primeiras déca­das deste século. Continuam a desempenhar parcialmente estas funções, mas a existência de novos projetos para o país e a conse­quente mudança do seu papel económico e cultural foram alterando o seu lugar nas relações sociais, na definição da identidade mexi­cana e a sua própria identidade como objetos. Devemos averiguar, então, que modificações estão acontecendo na estrutura interna dos povos indígenas e mestiços, na significação social do artesa­nato, e perceber de que modo as estratégias de reprodução e de transformação do capitalismo influem na produção, na circulação e no consumo do artesanato.

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A sociedade fragmentada A história da dominação dos indígenas é a história da desa­

gregação e da dispersão. Como cada sociedade é uma totalidade estruturada, cada uma de suas partes possui sentido em relação com as outras, e se reforçam mutuamente. Por isso, a dominação externa para realizar a sua hegemonia diante dos grupos étnicos tem procurado quebrar a sua unidade e coesão, destruindo o signi­ficado que os objetos e as práticas possuem para cada comunidade.

A primeira penetração capitalista na América, na conquista e na colónia, desarticulou o universo indígena mediante a reorgani­zação dos sistemas económico e cultural pré-colombianos. A pro­priedade comunal da terra foi desaparecendo em muitas regiões devido à apropriação privada pelos colonizadores, especialmente dos vinculados à Igreja; ainda que na região tarasca a imposição do sistema de fazehdas tenha sido mais lenta pelo fato de os terrenos serem menos aptos para a criação do gado e o cultivo em larga esca­la, no século XIX a progressiva privatização já havia conseguido romper a solidariedade comunitária, acentuar a desigualdade socio­económica e transferir para proprietários de terra não indígenas grande parte das terras e do poder. Um novo sistema ideológico — a religião cristã — se sobrepôs ao purépecha, substituiu-o naquilo que pôde ou o absorveu através de uma ressemantização: as igrejas foram construídas sobre as pirâmides, os lugares sagrados foram ressignificados num outro sistema cultural, as danças, a música e o teatro pré-hispânicos foram utilizados para transmitir a mensagem cristã.

Não obstante, os tarascos conseguiram conservar parte das suas terras comunais e de suas formas de trabalho agrícola e artesa-

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nal. Em muitos povoados os bosques continuam a ser de proprie­dade coletiva e a exploração da terra ainda é decidida coletivamente, sendo que a produção para auto-subsistência conserva em alguns deles uma importância maior do que a destinada ao mercado. Certas comunidades, sobretudo na serra, permanecem falando o tarasco, celebrando suas festas antigas e mantendo formas de organização social e de poder — governo dos anciãos, sistemas de reciprocidade — paralelas ao regime nacional.

O que aconteceu com o artesanato neste processo? Antes da conquista ele já possuía um papel importante na economia de mui­tos povos do México e, portanto, na sua identidade. Sabemos pelo Relatório de Michoacán que o Império Tarasco havia organizado uma complexa divisão técnica do trabalho artesanal (muito antes da chegada de Vasco de Quiroga, a quem ela costuma ser atribuí­da): o couro era trabalhado em Nahuatzen, nos povoados da serra o algodão, na região do lago faziam-se esteiras de junquilho e em Tzintzuntzan havia a olaria. O intercâmbio comercial, no qual o artesanato era trocado juntamente com frutas e verduras, foi muito intenso, os mercados impressionaram bastante os espanhóis pelo seu tamanho e atividade: o mercado de Tzintzuntzan, de noite, à luz de tochas, foi comparado por um dos viajantes europeus ao espetáculo de Tróia em chamas.45 Os colonizadores aumentaram a variedade e o volume da produção, sobretudo nos tempos de dom Vasco, que introduziu técnicas europeias e ensinou os ofícios a populações que os desconheciam. Não obstante, os desenhos indí­genas, a iconografia surgida da visão pré-cortesiana do mundo foram mantidos nos tecidos e nos produtos de barro, e subsistem em grande parte até hoje. Parece que, de modo diferente da arqui-tetura, da música,46 do poder político e da ordem familiar, reorga­nizados devido à influência católica e colonial, o artesanato teria podido resguardar melhor a identidade arcaica que se evaporava no restante da vida social. Mas o impacto que quatro séculos de colo­nização não haviam conseguido exercer sobre ele chegou com o desenvolvimento contemporâneo do capitalismo. A industrializa-

45 Alonso de la Rea, "Crónica de la Orden de N. Seráfico P. S. Francisco, provín­cia de San Pedro y San Pablo de Michoacán en la Nueva Espana (1643)", Méxi­co, 1882. Citado por John W. Durston, op. cit., p. 24.

46 Para uma análise das mudanças nas danças e festas durante a colónia, veja-SC 0 livro de Arturo Warman La dama de moros y cristianos, México, Sepsetenl 1 1972.

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ção, o turismo e os meios de comunicação de massa parecem ser mais eficazes para que os oleiros de Santa Fe de la Laguna produ­zam — ao invés das panelas que utilizam há séculos — estojos de barro para cigarros, decorados com reproduções das etiquetas inter­nacionais, os de Ocumicho modelem seus diabos pilotando aviões, e para que em Capula (o melhor povoado oleiro de Michoacán, um dos mais obstinados em seus desenhos) hajam proliferado recente­mente girafas, animal que subitamente se transforma assim num animal característico do planalto central mexicano.

As formas recentes de subordinação económica e política dos grupos étnicos diante do capital monopolista e multinacional têm requerido uma reestruturação das sociedades tradicionais e das suas culturas populares. O processo atual de construção da hege­monia capitalista revela de forma mais contundente algo que tam­bém podia ser comprovado na colónia: não bastam apenas a sujei­ção militar, nem a concorrência económica desigual, nem mesmo — como desde Gramsci se pensa com maior sutileza — que à vio­lência e à exploração se acrescente o consentimento. Estes três meios também foram utilizados na dominação dos indígenas, mas só são suficientes para assegurar a reprodução social e o controle no interior de sociedades constituídas de modo homogéneo. Em países multiétnicos a construção da hegemonia, além de basear-se na divisão em classes, assenta-se no manejo da fragmentação cultu­ral e na produção de outras divisões: entre o económico e o simbó­lico, entre a produção, a circulação e o consumo e entre os indiví­duos e seu marco comunitário imediato. Tais fissuras não estão ausentes nas sociedades nacionais homogéneas, mas são muito mais notáveis e decisivas nas sociedades, como o México, que pos­suem mais de cinquenta grupos étnicos.

Rupturas entre o económico e o simbólico Estamos penetrando num fenómeno que é pouco nítido para

os que moram nas grandes cidades capitalistas, onde a existência de uma expressiva divisão técnica e social do trabalho diferencia de modo taxativo as funções económicas das culturais. Os grandes centros urbanos acentuam esta separação ao distribuírem em espa­ços distintos as atividades estruturais e superestruturais: existem os bairros administrativos e os industriais, as cidades universitárias, as zonas comerciais etc. A relativa autonomia existente entre estas

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áreas confere a cada uma delas uma dinâmica diferente: uma crise ideológica ou a renúncia coletiva de um ministério não afetam a produção (ao menos de forma imediata), nem as recessões econó­micas acarretam necessariamente reordenamentos políticos ou mudanças na consciência de classe. A rigor nenhuma destas partes opera com total independência. A atividade industrial pode desen-volver-se através de uma lógica relativamente própria, não se pode desenvolver em qualquer direção, mas sim naquela que é tornada possível pela existência das outras partes do sistema social: a dispo­nibilidade de profissionais e técnicos, o aparato administrativo, as estruturas educacionais, os hábitos de consumo. Mas é verdade que o capitalismo atribuiu a cada região da vida social uma maior independência que os outros modos de produção, e que as apresen­tam como mais desconectadas do que de fato estão. Tal isolamento gerou, entre outras consequências, a compartimentalização do conhecimento científico, estruturas académicas e teóricas que não se comunicam, como se um objeto de estudo único — a sociedade — pudesse ser apreendido em fatias económicas por um lado, socio­lógicas por outro, linguísticas, psicológicas etc.

A investigação das sociedades arcaicas contribuiu, em troca, para que fosse percebida com maior transparência uma verdade que é também aplicável ao capitalismo: a interdependência entre o material e o simbólico. Quando se chega à praça central de algum pequeno povoado camponês de origem indígena e se percebe que estão na mesma casa a chefatura de polícia, o cartório e o armazém de suprimentos da CONASUPO (Companhia Nacional de Subsis­tências Populares) e quando o delegado nos recebe num escritório rodeado de sacos de trigo e de milho, começamos a compreender a maneira pela qual estão mesclados o governo político, o poder administrativo e a atividade económica. A mesma unidade e inter­penetração de'funções se observa no núcleo familiar, simultanea­mente unidade básica da produção agrícola, oficina artesanal e aparelho educacional e ideológico.

Nas sociedades não-capitalistas e em muitas integradas ao capitalismo mas possuidoras de raízes indígenas, onde persistem formas tradicionais de vida, a estrutura e a superestrutura são menos facilmente distinguíveis do que nas nossas. As relações eco­nómicas não se circunscrevem aos espaços previamente fixados para elas — o mercado, os intercâmbios — nem as atividades cultu­rais estão fechadas em instituições especializadas (raramente as encontramos num isolamento equivalente ao existente nos museus

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de arte ou nas cidades universitárias). O económico e o simbólico se mesclam em cada relação social, e se disseminam em toda a vida da comunidade.

É por isso que alguns historiadores e antropólogos crêem que seja possível refutar a distinção entre estrutura e superestrutura, e a determinação da primeira sobre a segunda. Radcliffe-Brown sus­tenta que entre os aborígenes australianos deve-se buscar no paren­tesco a explicação e a origem dos seus atos. Luis Dumont situa a índia como um exemplo de que a determinação, em última instân­cia, pode estar na religião e no sistema de castas. Ao contrário, acre­ditamos, como Godelier, que estes casos servem para confirmar que o material e o ideal formam uma totalidade indissolúvel e que nem sempre o material aparece à primeira vista conforme o papel primordial que o capitalismo habituou-nos a reconhecer; entendo que estes casos não chegam a negar a determinação em última instância do económico, pois em cada um deles a superestrutura que domina funciona ao mesmo tempo como relação de produção. Em todas as sociedades o parentesco regula a filiação e a aliança, mas é dominante entre os aborígenes australianos. Sempre é a reli­gião que organiza as relações entre os homens e o sobrenatural, mas precisamente na índia ela controla o conjunto da vida social. Portanto, não são as funções específicas do parentesco e da religião (ordenar o matrimónio e a filiação, num caso, as forças invisíveis, no outro) que os convertem em superestruturas dominantes; cum­prem este papel em algumas sociedades onde, além da sua função geral ou explícita, o parentesco ou a religião assume a responsabi­lidade de ordenar as relações de produção. É isto que confere às suas ideias e instituições, bem como às pessoas que as comandam, o papel dominante no processo social.47

De modo análogo ao que acontece em muitas sociedades de povos caçadores-coletores, onde são as relações de parentesco que controlam os territórios e organizam o trabalho, existem povos na América Latina em que as relações económicas não parecem ser as relações que determinam a produção cultural. Uma observação preliminar dos grupos indígenas sugere que os traços específicos do artesanato (seu estilo, sua iconografia) dependem das estruturas étnicas ou familiares. Naufragaria aqui a tese de que as relações de

Maurice Godelier, op. cit.; e também no seu livro Economia, fetichismo y reli-gión en las sociedades primitivas, México-Madrid, Siglo XXI, 1978.

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produção e o pertencimento a uma classe social são as relações que determinam o caráter das representações culturais? Veremos que não. O que deve ser esclarecido é que quando as relações de paren­tesco e os agrupamentos étnicos funcionam como organizadores das relações de produção, quando o artesanato é produzido com base neles, a distinção entre estrutura e superestrutura — como afirma Godelier a respeito dos caçadores — " n ã o é uma distinção entre instituições mas uma distinção de funções no interior de uma mesma instituição",48 Apenas nas formas mais complexas de pro­dução (como as do capitalismo industrial), ou quando o artesanato se ajusta às suas regras (substituindo a família como unidade de produção pela oficina que trabalha com assalariados), esta distin­ção de funções recobre ao mesmo tempo uma distinção de institui­ções: a produção material da baixela se realiza na oficina, o dese­nho num estúdio, a administração em escritórios. Esta divisão técnica do trabalho caminha junto com uma diferenciação social muito mais clara entre aqueles que intervêm com a força de traba­lho manual, com a intelectual e com o capital, que são os que se apropriam do produto.

Neste último caso, a proletarização dos artesãos é evidente porque pode ser vista no processo mesmo de trabalho. Mas a situa­ção dos artesãos que fazem todo o trabalho dentro da unidade doméstica deve ser vista também como relativamente semelhante, uma vez que grande parte do seu trabalho, realizado de acordo com padrões simbólicos e de trabalho pré-colombianos, acaba por desa­guar no mercado capitalista. Não são proletários, estritamente falando, porque conservam a propriedade dos seus meios de produ­ção, mas a sua dependência do capital comercial os coloca numa situação muito próxima disto. Se não a levarmos em consideração, enxergando apenas o processo de produção dentro da comunidade ou isolando o seu aspecto cultural, caímos na distorção que carac­teriza os folcloristas conservadores, para os quais a problemática do artesanato se limita à preservação das formas, técnicas e organi­zação social nas quais a identidade étnica está arraigada.

Mas também é difícil perceber-se a peculiariedade da sua con­dição quando se está atento apenas à dimensão económica ou quando se reduz o artesanato à sua circulação mercantil. É o que acontece com duas posições diversas que coincidem em reduzir a

Maurice Godelier, Infraestructura, sociedad e história, op. cit.

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questão artesanal a um problema técnico-econômico: o tecnocra-tismo e o marxismo vulgar. Os tecnocratas, interessados apenas em melhorar a qualidade dos produtos e otimizar o processo de traba­lho, substituem, por exemplo,.o forno de lenha pelo de gás, que logo ninguém quer usar porque para os indígenas o mais impor­tante nesta mudança não reside no procedimento técnico, mas em passar da unidade de produção familiar (cada casa possui seu forno de lenha) à oficina cooperativa. A ausência de uma visão global — económica, social e cultural — é a causa do fracasso das políticas voltadas para o artesanato, que são concebidas apenas como uma modernização técnica. Algo semelhante acontece quando se preten­de que os indígenas tomem consciência da sua condição de prole­tários explorados sem considerar a opressão étnica que, por ser mais concreta, aparece-lhes como mais evidente: por mais que ao se sublinhar a exploração económica se destaque a forma básica da opressão, esta denúncia, desprendida das mediações étnicas, do , aspecto particular que a exploração do proletariado assume em termos da condição indígena,.se transforma em algo "abs t r a to" , estranho à vida cotidiana. O discurso político centrado nas condi­ções concretas da exploração aparece assim tão exterior quanto o proselitismo religioso que se anuncia apenas como ação espiritual. Entretanto, o espiritualismo dos evangelizadores não impede que muitos dentre eles compreendam que as mensagens que penetram nas comunidades indígenas são as que oferecem respostas (ociden­tais) para as suas necessidades económicas e simbólicas (a doutrina­ção bíblica proporcionada juntamente com a escola ou o hospital e, acima de tudo, a oferta de uma nova ética que ajude os indígenas a agir no interior do quadro de incerteza que caracteriza a passagem para uma outra forma de submissão ao capital).

Os povos camponeses com raízes indígenas, que vêm sendo integrados à sociedade nacional desde que esta existe, conservam uma certa experiência comunitária que é sustentada por estruturas económicas e simbólicas: formas de produzir e modos de vida nos quais a família é a unidade chave, um conjunto de crenças e práti­cas materiais que são adequadas a esta situação, uma relação espe­cífica com a natureza e uma língua própria para nomeá-la. Disto tudo se destaca a necessidade de considerarmos de modo conjunto — encontram-se muito mais imbricados do que nas sociedades " m o d e r n a s " — o material e o ideal, as determinações de classe, bem como certas formações "transclassistas" (Cirese), que são estes agrupamentos de origem natural (raça, idade, sexo) ou social

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(língua, etnia) que não negam a existência das classes sociais mas que especificam outras condições diante das quais os conflitos de classe adotam formas singulares.

Que consequências a unificação mais estreita entre o econó­mico e o simbólico realizada pelas culturas populares tradicionais apresenta em termos do seu estudo? Quais mudanças devem ser introduzidas na estratégia da investigação, se queremos levar em conta esta unidade mesmo quando ela está sendo erodida pela subordinação ao capitalismo? Por um lado, ao estudarmos as transformações das culturas indígenas não podemos apenas nos ocupar das estruturas ideais (desenho, o significado das peças), nem considerar a base económica como uma referência ocasional ou colocá-la somente como uma peça decorativa num capítulo introdutório. O estudo conjunto do económico e do cultural, neces­sário em qualquer investigação, pode ainda menos ser realizado de forma separada se se trata de entender o processo pelo qual se inte­gram ao capitalismo comunidades nas quais ambos os aspectos se encontravam entrelaçados de modo muito mais forte.

Esta reivindicação do estudo unificado da estrutura e da superestrutura possui, também, uma importância política. O capi­talismo rompe com a vivência imediata dá unidade entre o material e o ideal principalmente porque ele torna mais complexo e diversifi­cado o processo de produção, separando as diferentes práticas humanas — a cultural, a política, a económica — e especializando as etapas de um mesmo trabalho. A esta necessidade de uma divi­são técnica da vida social se superpõe o interesse económico e polí­tico de isolar para melhor dominar: um artesão que produz tecidos para a subsistência de sua própria comunidade compreende facil­mente a relação entre o seu trabalho, a venda e o consumo, mas quando vende seu produto para intermediários (que transportam os tecidos para um mercado urbano ou para o estrangeiro, onde final­mente o produto é entregue para compradores desconhecidos) perde, juntamente com uma parte do valor do produto, a com­preensão global do processo. Perde ainda mais se a intervenção externa provoca um fracionamento dentro da própria produção ao fazer do artesão um simples assalariado (numa oficina ou a domicí­lio) que se limita a executar desenhos impostos, estilizações da ico­nografia indígena tradicional nas quais ele não participou. A sepa­ração entre os aspectos materiais e ideais da produção aparece, no próprio momento do trabalho, como uma consequência extrema da usurpação que o capitalismo lhe inflige. A perda da propriedade

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económica do objeto caminha junto com a perda da sua proprie­dade simbólica. A distância que a organização capitalista do traba­lho e do mercado cria entre ele e os produtos do artesanato é com­plementada pela quebra entre o económico e o simbólico, entre o sentido material (mercantil) e o sentido cultural (étnico).

A fragmentação do processo social Esta dissociação existente entre o económico e o cultural pode

ser melhor apreciada se a examinarmos juntamente com o desloca­mento que ocorre entre a produção, a circulação e o consumo. O que acontece com vasilhas fabricadas por comunidades indígenas conforme as regras da produção manual e o predomínio do valor de uso numa economia quase de auto-subsistência, que em seguida são vendidas num mercado urbano e finalmente compradas por turistas estrangeiros pelo seu valor estético com a finalidade de decorar o seu apartamento? Continuam a ser artesanato? As polé­micas a respeito desta pergunta costumam embaralhar-se devido à continuidade material do objeto, que parece permanecer o mesmo desde que ele não seja considerado juntamente com as condições sociais que introduzem alterações no seu significado. Ainda que materialmente se trate do mesmo objeto, social e culturalmente ele passa por três etapas: na primeira, prevalece o valor de uso para a comunidade que o fabrica, associado ao valor cultural que o seu desenho e iconografia possuem para ela; na segunda, predomina o valor de troca do mercado; na terceira o valor cultural (estético) do turista, que o insere no interior do seu sistema simbólico, que é diferente — e às vezes oposto — daquele do indígena.

O deslocamento do sentido social do artesanato, quase fatal toda vez que o desenvolvimento capitalista o subordina à sua lógi­ca, confirma a necessidade de se superar o isolamento em que são colocados os objetos nos estudos sobre a cultura popular. A maior parte da bibliografia latino-americana tem oscilado entre a exalta­ção romântica do artesanato pela sua beleza e a classificação positi­vista ou simplesmente folclórica das pessoas de acordo com a sua origem étnica ou a sua estrutura formal. Raramente se transcende a erudição classificatória, a descrição dos objetos, para situá-los no interior do processo que os produziu. Ignora-se que o seu valor não é definido por uma substância, por propriedades intrínsecas que seriam separadas das relações sociais. De fato, o que acontece é que

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se atribui ao artesanato, como se fossem qualidades intrínsecas das peças, a beleza ou o sentido que elas possuem para os indígenas ou para o pesquisador, sem se reconhecer o papel parcial que eles desempenham numa trajetória social dos objetos, que é determi­nada também por outros agentes: os intermediários, os consumi­dores etc.

Esta consideração dos objetos de modo isolado colabora, em geral de modo inconsciente, com a dissociação e o mascaramento que são postos em prática pelo sistema económico ao separar a pro­dução da circulação e ambas do consumo. Recolocar o artesanato no conjunto deste processo, examinar as suas mudanças de signifi­cado na passagem do produtor ao consumidor, perceber a sua inte-ração com a cultura das "e l i tes" são formas capazes de torná-lo inteligível, de reencontrar um sentido que o poder mercantil nos subtrai, tanto ao artesão ao qual este é arrebatado, como ao com­prador ao qual se esconde a explicação a respeito da sua origem.

Os indivíduos separados da comunidade Quando perguntei ao prefeito de polícia de Capula, um povoa­

do de oleiros de 2600 habitantes, qual era a sua profissão, ele res­pondeu: "Sou ar tesão" . E após uma pausa, esclareceu: " N a reali­dade sou bacharel em direito, mas toda a minha família e todo o meu povo são oleiros. Eu também sei trabalhar o barro, ainda que há bastante tempo eu não o faça, mas igualmente me considero um ar tesão" . De modo diferente de um operário urbano, que enxerga a sua profissão como o resultado de uma escolha individual, de acor­do com as oportunidades ocupacionais, o membro de uma comuni­dade indígena entende que a sua identidade profissional está deter­minada pela coletividade, derivando do seu pertencimento global, cultural e económico ao seu grupo, e não da sua inserção pessoal nas relações de produção. Esta dependência da comunidade não significa uma diminuição de cada um de seus membros, como o poderíamos acreditar baseados nos nossos hábitos individualistas. Pelo contrário, conforme escrevia Mariátegui, o índio nunca é menos livre do que quando está só.

Tanto os intermediários privados como alguns organismos estatais que promovem o artesanato incentivam com as suas práti­cas a cisão entre os indivíduos e a comunidade. Nas relações econô-

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micas: selecionam os artesãos que trabalham melhor, dão-lhes um tratamento à parte e incentivam a concorrência entre eles. Ao nível do político: acentuam os conflitos já existentes entre grupos e líde­res através da distribuição de auxílios e a exigência de exclusividade nos acordos pessoais. Propicia-se também a desconexão entre o indivíduo e a sociedade quando se modifica o vínculo entre os arte­sãos e os seus produtos: as sugestões de desenhos que sejam capazes de diferenciar as peças de cada produtor e valorizá-las no mercado chegam a extremos como o de pedir aos oleiros de Ocumicho que gravem o seu nome em relevo na base dos diabos que eles confec­cionam. Pudemos comprovar até que ponto a apropriação indivi­dual das obras é estranha aos padrões culturais indígenas ao exami­nar na casa do presidente da cooperativa artesanal uma coleção de mais de cem peças que esperava pela chegada do encarregado do FONART, que iria levá-las para comercialização. Minha atenção deteve-se nas peças de uma artesã dotada de uma habilidade exce­lente porque me atraíam seus desenhos satíricos, certos jogos vio­lentos e irreverentes com figuras e cores, por exemplo, uma mulher que pilota uma motocicleta e carrega atrás de si um diabo e uma serpente, ou um berço para gémeos que abriga os diabos numa ati­tude simultaneamente infantil e sarcástica. Logo descobri o seu estilo, percebi as constantes que davam unidade à sua obra e permi­tiam identificar as peças antes de ler a assinatura. Mas depois de doze ou quinze diabos cheguei a um que sem dúvida era da mesma artesã, e que, entretanto, levava outro nome. Indaguei a este res­peito ao presidente do grupo e ele me respondeu sem se alterar: "Acontece que quando ela terminou este diabo ela não encontrou a sua firma e pediu emprestada a da vizinha".

O valor de uso e o sentido comunitário que as peças de artesa­nato possuem para o povo que as produz e consome — valor que é predominantemente prático nas vasilhas ou nos tecidos e simbólico nos diabos ou objetos cerimoniais — é neutralizado pela assina­tura. A individualização confere à peça um outro valor: torna-a única ou diferente, retira-a do sistema dos vestidos que proporcio­nam um abrigo ou dos diabos que evocam mitos tarascos, para situá-la no sistema de obras de uma artesã. O valor que era produ­zido pela utilidade do objeto para a comunidade passa a depender do gesto singular do seu produtor. Graças à assinatura, o signifi­cado das obras artesanais — como observou Baudrillard a respeito das obras artísticas — deixa de ser legível pelo seu vínculo com a natureza ou com a vida social para ser lido em relação com as demais

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obras do mesmo autor.49 Pode ser percebida claramente a conse­quência que isto representa em termos do produtor: segregado de sua comunidade, o seu mundo passa a ser o seu estilo. Uma vez que as suas obras deixam de habitar o seu povoado, ele só pode viver no universo de estereótipos que o mercado consagrou sob a sua assina­tura. Para os poucos que triunfam comercialmente, o passo final desse processo de desenraizamento será a migração para a cidade: os seus produtos deixarão de ser peças de artesanato e passarão a ser considerados como objetos "artísticos", o seu nome será esque­cido na sua comunidade e começará a ser conhecido por coleciona-dores e marchands. Para a maioria dos artesãos, que nunca alcan­çaram estes "privilégios", a perda do enraizamento cultural dos seus objetos supõe uma vida dupla: continuar convivendo com a comunidade onde nasceram os seus objetos ao mesmo tempo que se vai acompanhar estes objetos nas lojas e mercados urbanos, seguin­do ali as peripécias de um sentido que se tornou estranho.

A assinatura, que para os artistas possui algo de afirmação pessoal e de jogo narcisista, é para os artesãos um referendo para­doxal da sua identidade alienada. O capitalismo os transforma em indivíduos sem comunidade, perseguidores de um lugar solitário num sistema que lhes escapa. Além dos espetáculos tão difundidos da miséria e da dor, existem fatos cotidianos, persistentes, cuja dis­creta dramaticidade não é menor. Por exemplo, a eloquência de povoados como Capula e Patamban que, estando entre os de melhor olaria do México, continuam a parecer o que eram há trezentos anos — casas de tijolo cru e madeira, ruas empoeiradas —,.sendo um testemunho marcante de que o seu artesanato, fabricado diaria­mente durante séculos, quase não permite a acumulação de capital. Algo semelhante se sente ao entrevistar artesãos num mercado e perceber que todo o seu empenho na conversa se destina a desviá-la para a venda: a tensão do rosto ou o olhar evasivo de que quer compreender a lógica "desconcertante" de perguntas a respeito do modo como trabalham e vivem para convertê-las em respostas a respeito das vantagens das suas mercadorias. Mesmo que não haja compradores diante dos quais estivéssemos tomando-lhes o tempo, mesmo que esclareçamos que não iremos comprar coisa alguma, os mercados sempre são o lugar mais difícil para a realização de entre­vistas. O artesão não está ali para falar sobre o que sabe nem para

49 Jean Baudrillard, Crítica de la economia política dei signo, México, Siglo XXI, 1974, p. 111.

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mostrar o que ele faz, mas para buscar como o seu trabalho pode "fugir-lhe" mais rápido atrás de uma lógica que é criada por outros.

A unificação mercantil: do étnico ao típico Mas o capitalismo não apenas desestrutura e isola; ele tam­

bém reunifica, recompõe os pedaços desintegrados num novo siste­ma: a organização transnacional da cultura. A desintegração — provisória — visa apenas a criação de brechas por onde a política dominadora possa instalar-se. Recordamos no início deste capítulo que cada sociedade necessita, para funcionar, uma estrutura sólida que articule todas as suas partes; o pluralismo da sociedade burgue­sa não pode dissimular que ele é válido somente para uma minoria e que ele é sustentado por uma estratégia centralizadora, monopo­lista.

Quando alguém vai aos povoados de artesãos encontra, por exemplo, a olaria de Capula, as madeiras laqueadas de Pátzcuaro, as esteiras de Ihuatzio. «Nas lojas de Quiroga, cidade comercial onde se cruzam as estradas que ligam estes três povoados, a olaria, a madeira e as esteiras transformam-se em artesanato. Os povoados de origem são apagados e o comércio só fala do "artesanato de Michoacán", nunca designando-as como peças tarascas ou purépe-chas, nomes que — por serem os do grupo indígena ao qual perten­cem estes povoados — manteriam ao reuni-las a origem étnica. Nas lojas de Acapulco, do Distrito Federal, dos grandes centros turísti­cos, as peças de artesanato de Michoacán reúnem-se numa mesma vitrina juntamente com as de Guerrero, Oaxaca e Yucatán, e se convertem em "Mexican curious", ou, na melhor das hipóteses, em "artesanato mexicano". Mesmo nas lojas do FONART, patro­cinadas pelo Estado, observa-se esta dissolução do étnico no nacio­nal: os cartazes e o restante da publicidade anunciam "Genuína arte popular mexicana"; no interior da loja, as peças costumam ficar separadas por diferenças de material ou de forma, e mesmo quando elas são distribuídas de acordo com a sua procedência não se afixa nenhum cartaz que as identifique nem fichas que informem sucintamente a origem material e cultural da sua produção e o sen­tido que elas possuem para a comunidade que as criou.

No Acapulco Center, gigantesco conjunto de espetáculos onde o Estado mexicano construiu um dos maiores centros de exi­bição da cultura nacional para os turistas, as danças de Michoacán são mostradas juntamente com as de Veracruz, bem como junta-

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mente com os "voadores" de Papantla, com um vaqueiro de Jalis-co, um tourinho com fogos de artificio, uma briga de galos e até com uma manifestação de "folclore" urbano, como são os clava-distas* de Acapulco. De nenhum deles se explica a origem precisa, são feitas apenas algumas vagas referências a respeito do estado de onde procedem. Em todos os casos, tanto os dançarinos quanto os "voadores" , o vaqueiro e os tourinhos são apresentados com as cores da bandeira mexicana nas suas roupas ou na cenografia. A necessidade de homogeneizar e ao mesmo tempo manter a atração que o exótico exerce dilui a especificidade de cada povoado, não no denominador comum do étnico ou do indígena, mas na unidade (política) do estado — Michoacán, Veracruz — sendo que os esta­dos também acabam por diluir-se na unidade política da nação.

Dissemos: dissolução do étnico no nacional. Rigorosamente se trata de uma redução do étnico ao típico. Porque a cultura nacio­nal não pode ser reconhecida por um turista tal como ela é se ela é mostrada como um todo compacto, indiferenciado, se não é dito como é que vivem os grupos que a compõem nem são narrados os combates com os colonizadores (e entre as próprias etnias) que estão na base de muitas danças e de muitos desenhos artesanais. A unificação sob as cores e símbolos nacionais, que num certo sentido é positiva, como demonstraremos na discussão final, se torna dis­torcida e despolitizadora quando omite as diferenças e contradições que de fato existem. A museugrafia ou o espetáculo que ocultam as necessidades e a história, os conflitos que geraram um objeto ou uma dança promovem juntamente com o resgate a desinformação, junto com a memória o esquecimento. A identificação que exaltam é negada quando dissolvem a sua explicação na sua exibição. A grandeza do povo que elogiam é diminuída ao apresentarem como manifestações espontâneas, que facilmente são atribuídas ao vir­tuosismo ou ao "génio" populares, peças de artesanato e cerimó­nias cujo mérito reside no esforço realizado para transportar para o plano simbólico, e às vezes "solucionar" de modo imaginário rela­ções dramáticas onde a natureza fez com que se sentissem impoten­tes ou os opressores fizeram com que se sentissem humilhados.

O típico é o resultado da abolição das diferenças, da subordi­nação a um tipo comum dos traços específicos de cada comurrái-dade. Pode-se argumentar que o turista necessita desta simníada cação do real porque ele não viaja como um investigador da/, taií)

ziosos de * Os que praticam saltos-mortais nos despenhadeiros de Acapulco. A Q eX&tO

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mostrar o que ele faz, mas para buscar como o seu trabalho pode "fugir-lhe" mais rápido atrás de uma lógica que é criada por outros.

A unificação mercantil: do étnico ao típico Mas o capitalismo não apenas desestrutura e isola; ele tam­

bém reunifica, recompõe os pedaços desintegrados num novo siste­ma: a organização transnacional da cultura. A desintegração — provisória — visa apenas a criação de brechas por onde a política dominadora possa instalar-se. Recordamos no início deste capítulo que cada sociedade necessita, para funcionar, uma estrutura sólida que articule todas as suas partes; o pluralismo da sociedade burgue­sa não pode dissimular que ele é válido somente para uma minoria e que ele é sustentado por uma estratégia centralizadora, monopo­lista.

Quando alguém vai aos povoados de artesãos encontra, por exemplo, a olaria de Capula, as madeiras laqueadas de Pátzcuaro, as esteiras de Ihuatzio. 'Nas lojas de Quiroga, cidade comercial onde se cruzam as estradas que ligam estes três povoados, a olaria, a madeira e as esteiras transformam-se em artesanato. Os povoados de origem são apagados e o comércio só fala do "artesanato de Michoacán", nunca designando-as como peças tarascas ou purépe-chas, nomes que — por serem os do grupo indígena ao qual perten­cem estes povoados — manteriam ao reuni-las a origem étnica. Nas lojas de Acapulco, do Distrito Federal, dos grandes centros turísti­cos, as peças de artesanato de Michoacán reúnem-se numa mesma vitrina juntamente com as de Guerrero, Oaxaca e Yucatán, e se convertem em "Mexican curious", ou, na melhor das hipóteses, em "artesanato mexicano". Mesmo nas lojas do FONART, patro­cinadas pelo Estado, observa-se esta dissolução do étnico no nacio­nal: os cartazes e o restante da publicidade anunciam "Genuína arte popular mexicana"; no interior da loja, as peças costumam ficar separadas por diferenças de material ou de forma, e mesmo quando elas são distribuídas de acordo com a sua procedência não se afixa nenhum cartaz que as identifique nem fichas que informem sucintamente a origem material e cultural da sua produção e o sen­tido que elas possuem para a comunidade que as criou.

No Acapulco Center, gigantesco conjunto de espetáculos onde o Estado mexicano construiu um dos maiores centros de exi­bição da cultura nacional para os turistas, as danças de Michoacán são mostradas juntamente com as de Veracruz, bem como junta-

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MI . nii i om os "voadores" de Papantla, com um vaqueiro de Jalis-Hi i i lourinho com fogos de artifício, uma briga de galos e até

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Dissemos: dissolução do étnico no nacional. Rigorosamente MU ala de uma redução do étnico ao típico. Porque a cultura nacio­n a l não pode ser reconhecida por um turista tal como ela é se ela é mostrada como um todo compacto, indiferenciado, se não é dito COmo é que vivem os grupos que a compõem nem são narrados os combates com os colonizadores (e entre as próprias etnias) que eitão na base de muitas danças e de muitos desenhos artesanais. A unificação sob as cores e símbolos nacionais, que num certo sentido é positiva, como demonstraremos na discussão final, se torna dis­torcida e despolitizadora quando omite as diferenças e contradições que de fato existem. A museugrafia ou o espetáculo que ocultam as necessidades e a história, os conflitos que geraram um objeto ou uma dança promovem juntamente com o resgate a desinformação, junto com a memória o esquecimento. A identificação que exaltam é negada quando dissolvem a sua explicação na sua exibição. A grandeza do povo que elogiam é diminuída ao apresentarem como manifestações espontâneas, que facilmente são atribuídas ao vir­tuosismo ou ao "génio" populares, peças de artesanato e cerimó­nias cujo mérito reside no esforço realizado para transportar para o plano simbólico, e às vezes "solucionar" de modo imaginário rela­ções dramáticas onde a natureza fez com que se sentissem impoten­tes ou os opressores fizeram com que se sentissem humilhados.

O típico é o resultado da abolição das diferenças, da subordi­nação a um tipo comum dos traços específicos de cada comuni­dade. Pode-se argumentar que o turista necessita desta simplifi­cação do real porque ele não viaja como um investigador da reali-

* Os que praticam saltos-mortais nos despenhadeiros de Acapulco.

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dade. Mas a simplificação mercantil das culturas tradicionais, que de modo semelhante ao que ocorre na imprensa e na televisão são chamadas de populares, quase sempre supõe que os seus especta­dores estejam abaixo do coeficiente intelectual que eles realmente possuem e que o turismo ou o entretenimento são lugares onde nin­guém quer pensar. Parece-nos uma hipótese razoável para uma pes­quisa de mercado que a simplificação quanto às suas mensagens posta em prática pela indústria turística é maior do que o esperado pela maioria dos consumidores. Sob o pretexto de facilitar o consu­mo, somos acotumados a enxergar a realidade num espelho enfa­donho, dotado de tão poucos matizes que ao final o real acaba por ser menos atraente do que poderia ser. Paradoxalmente, as técnicas de tipificação mostram-se contraproducentes para estimular o con­sumo que dizem promover.

Mas como o nosso principal interesse não é o de incentivar o turismo, preferimos enfatizar as consequências que esta redução do étnico ao típico apresenta em termos da consciência política e cultu­ral. Se entendemos que o turismo, além do seu valor recreativo, é um dos principais meios de que dispomos para fazer-nos compreen­der a nossa localização sócio-cultural num mundo cada vez mais inter-relacionado, é inquietante que exista uma política geral desti­nada a ignorar a pluralidade de hábitos, crenças e representações. Se pensamos que para entendermos a nós próprios é útil conhecer o que nos é estranho, perceber que outros seres humanos podem viver — às vezes até melhor do que nós — com costumes e modos de pen­sar diferentes, devemos concluir que esta estratégia de esconder o diferente é uma maneira de confirmar cegamente o que somos e o que temos. Os tarascos, mazatecos e maias convertidos em indíge­nas, o miserável exibido como pitoresco, as crenças que correspon­dem a uma outra relação com a natureza, com a doença ou com o futuro encaradas como superstições são mecanismos que servem para dissimular a real situação dos camponeses que nos proporcio­nam verduras, frutas e peças de artesanato baratas. Também servem para que possamos nos manter instalados em privilégios e precon­ceitos sem que coisa alguma nos desafie.

Três condições básicas para a democracia, reconhecidas desde o nascimento do liberalismo — reconhecer a pluralidade de opi­niões e de modos de vida, aprender a conviver com elas, exercer a crítica e a autocrítica — são prescritas se somos convencidos de que o mundo todo é parecido com o nosso ou está em vias de, se quando viajamos a um outro país compramos o artesanato nos

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supermercados de sempre e nos escondem, debaixo da lacónica eti­queta de "curiosidades mexicanas" ou guatemaltecas ou paname­nhas o que verdadeiramente poderia aguçar a nossa curiosidade: maneiras distintas de produzir os pratos e de cozinhar, de tecer a roupa e de se vestir, de ficar doente e de se recorrer a plantas que desconhecemos para se curar. Ao desenvolver e sistematizar a nossa ignorância do diferente, a padronização mercantil nos treina para viver em regimes totalitários, no seu sentido mais literal de oposi­ção aos regimes democráticos, ao suprimir o plural e obrigar que tudo fique submerso numa totalidade uniformizada.

O típico, ou seja, o que o turismo cerca de cartazes inócuos para adaptá-lo aos nossos preconceitos, é não apenas uma escamo­teação da realidade do lugar que estamos visitando mas também da nossa própria realidade, do que poderia ocorrer conosco se em vez de passearmos por um cenário que nos reflete adentrássemos os países da diferença.

Um dia estava em Quiroga entrevistando um grupo de turistas canadenses e estes me perguntaram entre as pilhas de chapéus, brin­quedos de madeira e de plástico, cerâmica de várias regiões, produ­tos de pele fabricados industrialmente e mil outras coisas quais eram as peças de artesanato "típicas" deste lugar. Primeiro ocor-reu-me propor a eles que fossem a Capula ou Ihuatzio, mas pensei que era inútil: os ônibus com ar condicionado e poltronas recliná­veis não alteram o seu percurso. Expliquei-lhes sucintamente que Quiroga se assemelhava mais com as cadeias de lojas que iriam encontrar em Acapulco ou Cancún que a um povoado tarasco, e comecei a imaginar um plano para a urbanização do deserto de Sonora e que fosse capaz de proporcionar trabalho para muitos desempregados. Tratar-se-ia de um Grande Centro Turístico Inter­nacional, que pouparia aos viajantes a fadiga de se deslocarem por tantos milhares de quilómetros. O viajante que ali viesse teria a possibilidade de subir em navios e aviões que se moveriam com o ritmo correspondente e estariam sonorizados com conversas em vários idiomas para produzir uma verossimilhança com os trajetos intercontinentais. Mas sem a necessidade de subir em nenhum veí­culo poderiam visitar diferentes salas, todas muito próximas, onde sistemas circulares de cinemascope, com som e aroma quadrifôni-cos, reproduziriam as imagens e sensações de cada região e de cada um dos cinquenta e seis grupos étnicos do México. Haveria, tam­bém, uma seleção de ruínas, cidades e monumentos famosos de todo o mundo , reproduzidos em acrílico no seu tamanho exato.

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Pela manhã se visitaria uma cerimónia de peyotl entre os huicholes e as cataratas do Niágara, à tarde a visita seria à basílica de São Pedro, a um mercado da Indonésia e às pirâmides de Teotihuacan, à noite assistiríamos a um concurso de peças de artesanato e de danças de todos os países latino-americanos. Haveria um serviço de guias, cujo percurso pelas salas seria parte do espetáculo para os demais grupos, como em todos os lugares, e com uma taxa suple­mentar seriam proporcionadas visitas orientadas por antropólogos ou técnicos bilíngues das respectivas comunidades. Nos corredores que levariam de uma sala a outra seriam colocadas máquinas nas quais, depositando-se uma moeda, poderiam ser adquiridos cas­setes com a gravação das frases que os sacerdotes proferem na ceri­mónia huichol e na missa do Vaticano, com o barulho das cata­ratas, os pregões dos vendedores do mercado de Oaxaca e outras recordações sentimentais. Numa segunda etapa, seriam inventados, através de computadores, novos países e etnias que atraíssem por uma segunda ou terceira vez os que já tivessem estado ali: conhece­riam novas religiões, plantas imaginárias para curar doenças desco­nhecidas, bem como peças de artesanato e festas pré-colombianas inexistentes até o momento em que foram programadas.50

O humorista Carlos de Peral imaginou um delírio parecido no seu texto "Viaje al país dei turismo", publicado na revista Crisis, n? 16, Buenos Aires, 1973. Sabe-se que a Disneylândia e o Disneyworld concretizaram de fato aproximações imper­feitas dessas fantasias.

Do mercado à boutique: quando as peças de artesanato emigram Podemos investigar as mudanças na identidade cultural regis­

trando, como o fizemos, a influência de agentes externos diante das comunidades tradicionais. Este tema também tem sido estudado com base nos processos de migração e adaptação dos camponeses nos núcleos urbanos. Vamos, agora, explorá-lo na "mig ração" dos produtos das culturas indígenas.

O artesanato é um lugar privilegiado para se perceber a rapi­dez e a multiplicidade de modificações que o capitalismo introduz nas culturas tradicionais. De fato, a estrutura semântica dos obje­tos é mais maleável que a das pessoas: um manto bordado para a festa da padroeira de uma aldeia pode mudar em poucas horas o seu significado e a sua função ao passar a servir de decoração numa habitação urbana, ainda que a mesma índia que o usava na sua aldeia, transportada para esta cidade, mantenha por muitos anos as crenças que a levavam a participar da festa. Mas diante dos outros produtos do campo retirados do controle da propriedade dos traba­lhadores, o artesanato conserva uma relação mais complexa em termos da sua origem e do seu destino, por ser simultaneamente um fenómeno económico e estético, sendo não capitalista devido à sua confecção manual e seus desenhos, mas se inserindo no capitalismo como mercadoria. Mesmo depois de "emigrar" das comunidades indígenas carregam, na mistura de materiais tradicionais e moder­nos (cerâmica e plástico, lã e acrílico), de representações campone­sas e urbanas, indígenas e ocidentais e dos seus usos (práticos e decorativos), o conflito e a coexistência entre sistemas sociais e sim­bólicos. É por isto que enxergamos na trajetória social do artesa­nato um fenómeno especialmente propício para a compreensão das

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peripécias atuais da cultura popular: as interações económicas e ideológicas entre a cidade e o campo, o modo pelo qual o desenvol­vimento capitalista redefine a identidade ao combinar formas diversas de produção e de representação. Não obstante, por mais que em todo objeto ecoem as relações sociais que o engendram, para explicarmos o itinerário mutante do artesanato devemos nos ocupar das estruturas sociais e espaciais por onde ele circula. A subordinação das culturas tradicionais ao sistema capitalista pode ser resumida, até certo ponto, nas posições que as peças de artesa­nato vão ocupando durante o seu percurso. Mas isto só é possível se precisarmos em que sentido a organização do espaço proporciona uma visualização das mudanças na produção, no consumo e na circulação, bem como dos conflitos entre as classes, entre as etnias, e das relações do campo com a cidade. Tentaremos demonstrar que a reelaboração do lugar do artesanato em espaços que são díspares permite captar a estratégia de descontextualização e ressignificação que a cultura hegemónica cumpre diante das culturas subalternas. Não é, portanto, apenas a inserção das peças de artesanato em con­textos diversos que representa a condição deslocada dos seus pro­dutores, mas a perda de contexto, o exílio do seu espaço nativo — a vida indígena, o mercado rural — e seu deslocamento para uma outra cena: a cultura burguesa, a loja urbana, o museu e a boutique.

O artesanato na moradia indígena Frequentemente ouvimos os artesãos explicarem como fabri­

cam a louça enquanto comíamos nas suas casas na mesma louça que foi feita por eles, estando alguns sentados em cadeiras e outros em troncos. Junto à parede podem ser encontradas pilhas de vasos de barro para vender, e, conforme a estação do ano, diferentes quantidades de milho que podem estar ensacadas ou amontoadas junto ao fogão de lenha que é alimentado com a madeira dos bos­ques que circundam o povoado. Se a casa não possui outros cómo­dos haverá ali umas poucas camas, ou esteiras de tule compradas e produzidas em povoados próximos ao lago de Pátzcuaro, que são enroladas durante o dia para deixar o espaço tão livre quanto seja possível. A mesa costuma ficar encostada, de modo que o centro do cómodo fica vazio, sendo ocupado apenas à noite com um traba­lhador braçal, em torno do qual reúne-se a família com os vizinhos, mais algum visitante ou eventuais antropólogos.

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Mas estes homens e mulheres estão quase sempre trajados com roupas de fabricação industrial. Inclusive nos povoados escon­didos na serra é cada vez maior o número dos que cozinham em fogões de gás, com utensílios adquiridos nas cidades quando para lá se dirigem a fim de vender a louça que produzem. Os produtos de barro empilhados para a venda ou para uso próprio coexistem com vários produtos industriais, os vasos com flores e plantas medici­nais não estão longe das prateleiras onde se misturam latas de comi­da e refrescos com medicamentos preparados quimicamente. A combinação de objetos revela a existência de um processo de substi­tuição do artesanal pelo industrial, das técnicas tradicionais empre­gadas para a satisfação das duas necessidades básicas — cozinhar, curar — por técnicas modernas. Em suma, as sociedades organiza­das com um regime que até poucas décadas atrás era quase de auto-subsistência, encontram-se, agora, cada vez mais integradas ao intercâmbio mercantil. A presença da olaria local e de algumas peças do vestuário tecidas artesanalmente mantêm a prática ou a recordação da identidade, bem como de uma história cuja vigência depende, sobretudo, da importância que a exploração comunal ou ejidal da terra consiga manter na subsistência do povoado. Em povoados onde a crise do velho modelo de produção agrícola em­pobreceu os camponeses, ou onde a escassez de chuva agravou essa crise, como em Patamban e Ocumicho, o artesanato emerge como a alternativa económica que permite a um grande número de cam­poneses a permanência no campo. As peças de artesanato adquirem assim um papel destacado na vida cotidiana e contribuem de modo duplo para reforçar a identidade cultural: por tratarem-se de obje­tos, técnicas de produção e de desenhos que estão enraizados na própria história destes povos e porque fazem com que seja possível a manutenção da união das famílias indígenas em torno da vida comunitária.

O artesanato pertence e não pertence aos índios, possui e não possui na habitação indígena o seu lugar. É certo que ele continua a compor um sistema com a unidade doméstica de produção, e, deste modo, sustenta a vida quase póstuma desse sistema. Mas as peças de artesanato também sofrem um processo de ressignificação e de refuncionalização. Qualquer indígena possui consciência de que produz mais objetos de couro para a venda do que para o uso pró­prio ou de seus vizinhos, ele vê diariamente que o que ganha com eles serve para aumentar a sua precária ocidentalização: o rádio portátil e a televisão, a roupa comprada em lojas urbanas, os obje

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tos e hábitos trazidos pelos filhos que viajaram como trabalhadores braçais para os Estados Unidos vão colocando de lado as peças artesanais.

Todo objeto recebe o seu significado do sistema de objetos reais entre os quais se situa e também do repertório imaginário de objetos que não se possui, mas que são vistos, descritos, oferecidos pela sedução publicitária. A subordinação material e simbólica da vida camponesa diante do regime capitalista, o incentivo do con­sumo burguês e proletário através dos meios de comunicação de massa, o turismo e os relatos dos migrantes reorganizam a vida cotidiana: tanto o conjunto de objetos reais que povoam há séculos as habitações tarascas como o universo simbólico de bens deseja­dos, alheios, em termos dos quais se vai alterando o significado do artesanato. Mesmo quando os camponeses não podem comprar a maior parte do que é exibido nos supermercados ou anunciado na mídia, esta floresta de mercadorias e símbolos ingressa no cenário das suas referências.

Feiras e mercados, vitrinas da "modernização" camponesa A produção do artesanato, fei'a na unidade doméstica para a

auto-subsistência e para o intercâmbio com os povoados próximos, e identificada com a economia e a cultura da região, possui o seu primeiro e último recinto na habitação indígena: ali se produz e se consome. Mas entre o seu nascimento e o uso está o mercado. Já quase não existem mais feiras e mercados exclusivamente regionais, onde apenas são negociados os bens de uma região pequena entre os próprios produtores, em postos de venda controlados por eles mesmos. Os mercados locais transformam-se em pontos chaves para a articulação da economia camponesa com o sistema capita­lista nacional e internacional. Assim o testemunham as suas duas funções principais: extrair o excedente dos produtos da região para distribuí-los na sociedade nacional e incorporar o campesinato ao mercado interno mediante a distribuição de produtos industriais."

51 Uma boa descrição da estrutura económica dos mercados pode ser encontrada no artigo de Luisa Paré, "Tianguis y economia capitalista", Nueva Antropologia, ano 1, n? 2. México, out. 1975, e no livro jã citado de Martin Diskin e Scott Cook sobre os mercados de Oaxaca. Os de Michoacán foram fartamente estudados por

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Tanto os mercados de pequenas aldeias indígenas (Patamban, Ocumicho, Ihuatzio, por exemplo) como os de cidades de tamanho médio que centralizam o comércio camponês (Pátzcuaro, Uruapan) mostram objetos industriais e mesmo peças de artesanato de outros estados: costumam afluir aos mercados de Michoacán comercian­tes de Guadalajara e do Distrito Federal e artesãos de Guerrero, Jalisco e Guanajuato. Estes mercados conservam em parte a estru­tura do antigo mercado rural, onde as peças de artesanato são expostas sobre esteiras, no chão, junto a verduras, frutas, animais e demais produtos da região, cuja venda e exposição é organizada visando a satisfação das necessidades da comunidade local. Mas cada vez mais estes mercados — de modo semelhante às habitações indígenas — recebem mercadorias próprias do sistema de consumo e prestígio da sociedade nacional: artigos de plástico, rádios tran-sistores, objetos de decoração produzidos industrialmente. As rela­ções comerciais, sociais e recreativas que se caracterizavam por serem relações diretas entre produtores e consumidores cederam lugar para outras relações, características do capitalismo avançado, onde os intermediários e às vezes as grandes empresas desempe­nham um papel central. Como consequência disso, a organização visual e económica antiga se mistura com a " m o d e r n a " : junto a precários postos de venda de alimentos e ao artesanato produzido domesticamente, junto a diversões e concursos "folclóricos", vemos stands de refrescos, jogos mecânicos, caminhões de empre­sas que possuem a sua sede nas grandes cidades, a publicidade das maiores firmas nacionais e multinacionais.

Apesar da crescente penetração do grande capital comercial, da sua concorrência desigual com os produtos locais e das confu­sões entre bens de origem e fabricação diferentes, estes mercados ainda permitem que se entre em contato com as fontes culturais de certos objetos. Nos pequenos postos de venda dos camponeses e artesãos o vendedor é quase sempre o produtor, a organização fami­liar que produziu o artesanato pode ser vista no posto: o homem, a mulher e os filhos que fabricaram os objetos são também os que os

John W. Durston no seu livro Organización Social de los mercados campesinos en el centro de Michoacán, México, INI, 1976. No que diz respeito às feiras liga­das aos eventos religiosos e a sua conexão com os circuitos regionais dos merca­dos, veja-se o estudo de Guillermo Bonfil "Introducción al ciclo de ferias de Cuaresma en la región de Cuautla, Morelos (México)", Anales de Antropologia, vol. VII, México, 1971, pp. 167-202.

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vendem e anunciam. Nos mercados não assistimos apenas a um fato comercial, mas presenciamos a vida mesma da família, já que no posto de venda comem, dormem, possuem aparelhos domésti­cos, mostrando, assim, fragmentos da sua vida habitual. "Dramá­tico e efémero museu do cot idiano", foi como Malinowski e de la Fuente chamaram o mercado no estudo que realizaram a respeito dos mercados de Oaxaca.52

De modo diferente da loja urbana de artesanato, onde este fica apartado da vida e onde se misturam indiscriminadamente peças oriundas de diversas culturas, no mercado os objetos artesa­nais adquirem o seu significado através da sua proximidade com outros produtos camponeses da mesma região e com os próprios produtores. Este contraponto é ainda maior quando se trata dos supermercados, estes luxuosos e anónimos galpões onde a abstra-ção mercantil chega a seu ponto máximo de ostentação, uma vez que neles ocorre um ocultamento do proprietário — que é desco­nhecido pelos próprios vendedores —, havendo uma divisão técni­ca do trabalho e a redução dos trabalhadores ao papel por eles desempenhado (vendedor, supervisor, vigilante), existindo também uma organização fechada e asséptica do espaço, que é iluminado artificialmente noite e dia. O mercado popular, ao contrário, fun­ciona em espaços abertos e ruidosos, frequentemente em praças, favorece as relações interpessoais múltiplas e costuma interromper o trânsito ou misturar-se com ele. Longe de se limitar às relações formais da operação comerciai!, no mercado popular a comuni­cação abrange a vida familiar, a política, a saúde (lembremos de que os postos onde se vendem ervas medicinais são também centros de consulta). Mesmo o mero intercâmbio mercantil inclui esta for­ma vivaz e picaresca de diálogo que é a pechincha. Como observou J. Martin Barbero, enquanto que no supermercado as relações de apropriação individual dos objetos se realizam silenciosas e soli­tárias — pode-se comprar "sem se sair do narcisismo especular que leva e traz a pessoa de um objeto a o u t r o " — no mercado se costuma gritar, nós procuramos uma comunicação expansiva, dei-xamo-nos interpelar. " N o supermercado não existe comunicação, existe apenas informação. Não existem sequer vendedores, na ple­na acepção do termo, mas apenas pessoas que transmitem a infor-

Bronislaw Malinowski e Julio de la Fuente, La economia de un sistema de merca­dos en México, Acta Antropológica, 2? época, vol. 1, n? 2, México, Escuela Nacional de Antropologia e Historia, Sociedad de Alumnos, 1957, p. 20.

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mação que não foi possível ser obtida na embalagem do produto ou na sua propaganda. As pessoas no supermercado não possuem a menor possibilidade de assumir uma voz própria sem quebrar a magia do ambiente e a sua funcionalidade. Levante a voz e perce­berá a estranheza e a desaprovação com que será cercado" ... " N a praça, ao contrário, vendedor e comprador expõem-se um ao outro e a todos os demais. E deste modo a comunicação não poderia reduzir-se a uma simples, anónima e unidirecional transmissão de informação."53

Entretanto, o mercado popular está progressivamente se tornando semelhante ao supermercado, adotando os seus hábitos, deixando-se infiltrar e remodelar. Assim como Bourdieu diz que o supermercado é a galeria de arte do pobre,54 é possível ver na reor­denação turística do mercado camponês a fabricação simultânea de duas ilusões: para o indígena a "opor tun idade" de ter acesso ao vértigo consumista urbano, para o turista a crença de que o contato com a cultura tradicional na sua origem pode ser feito com base nos mesmos códigos que regem as relações mercantis na cidade.

Mas haveria ainda uma ilusão a mais, a do pesquisador ou leitor, que se deixasse levar por esta oposição e identificasse mani-queistamente o mercado camponês com o bem e o supermercado com o mal. Também nas feiras e mercados rurais encontramos a exploração: intermediários que dobram os preços, funcionários que especulam com os dois ou três metros de praça que cada posto ocupará, artesãos que vendem uma baixela de 72 peças (o trabalho de uma família de sete pessoas durante 15 dias) pela metade de um salário mínimo mensal. Já dissemos, também, que se os artesãos se submetem a esta exploração é porque sofrem no seu povoado de origem, no cultivo da terra, uma exploração ainda maior. As rela­ções capitalistas que se estabelecem no supermercado, os privilégios em termos de poder aquisitivo que se manifestam na cidade e no turismo são sustentados pela exploração dos camponeses e do pro­letariado urbano.

J. Martin Barbero, "Prácticas de comunicación en la cultura popular", in Máxi­mo Simpson Ginberg, Comunicación alternativa y cambio social, México, UNAM, 1981, p. 244. Pierre Bourdieu, La distinction, op. cit., p. 35.

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O artesanato na cidade: instruções para o seu "desuso" Pegue seis milhões de artesãos, coloque-os a produzir mantos

e panelas de barro, colares e máscaras, os mesmos que fazem para si próprios mas multiplicando a quantidade por cem ou por mil, organize mercados e feiras em cidades pequenas, acrescente lojas de curiosidades em todos os centros turísticos. Em seguida deve-se falar com os comerciantes de cada região, especialmente se pos­suem caminhões para ir buscar nos povoados as peças dos artesãos que insistam em não viajar, convença-os de que sendo intermediá­rios destes produtos lucrarão mais do que com qualquer outro. Por último organize campanhas de propaganda a respeito das belezas da região com folhetos que falem do valor espiritual-folclórico-autóctone do artesanato, coloque em todas as metrópoles e aero­portos do mundo cartazes para lembrar a importância do contato com a natureza e para anunciar que onde se vende o artesanato existem lagos, fontes naturais, cozinha regional, ruínas de todas as culturas que não são a ocidental, convide milhares de turistas para trazerem a sua fadiga urbana, suas máquinas fotográficas e seus cartões de crédito.

A produção excedente de objetos artesanais, originada em parte pelo aumento da demanda (turismo, novas motivações para o consumo, incentivo estatal) gera por sua vez espaços e mecanismos que ampliam a sua comercialização rural. Os artesãos também vão aos mercados urbanos, a feiras de outras regiões, a hotéis e lojas. Mas não é fácil para eles estabelecerem-se durante vários dias numa cidade devido aos gastos e aos sacrifícios que isto implica. Em Michoacán existem três feiras que se encontram entre as mais con­corridas do país: a de Uruapan na Semana Santa, as de Pátzcuaro na primeira semana de novembro, relacionada com o dia dos mor­tos, e de 5 a 9 de dezembro (que até três anos atrás se chamava Feira Anual Agrícola e Artesanal, e que agora é Turística e Artesanal). Nestas três feiras são cobrados de cem a duzentos pesos diários por cada metro quadrado que um artesão ocupa. E é aí, sobre o piso da praça, que os artesãos dormem todas as noites: não é uma metáfora a afirmação de que a cultura popular está sob a intempérie.

Pior ainda é o que lhes ocorre nas grandes cidades, porque o alojamento e a comida superam rapidamente os ganhos que obtêm com a venda dos seus produtos. Além do que, a maioria dos arte­sãos se sente desorientada e insegura neste mundo vasto e diferente.

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A quem devem vender? Não serão ludibriados? O dinheiro pago compensará os dias que deixa de trabalhar, as peças que se que­bram frequentemente devido à sua fragilidade, os gastos muito aci­ma dos que possui em sua casa? Devido a tudo isto, muitos são os artesãos que vendem as suas peças para intermediários privados (monopolistas locais e comerciantes de fora) ou para organismos estatais. Ainda que o lucro destes últimos seja menor, nunca verifi­camos que entre o dinheiro entregue ao produtor e o preço pago pelos consumidores houvesse menos de 80% de diferença; geral­mente o preço de venda é o dobro do que foi pago pelo intermediá­rio. Mas a maioria dos artesãos prefere perder a metade do seu lucro a fim de evitar riscos que sente como incontroláveis.

Esta ampliação do mercado é um dos principais fatores que provocaram a transformação da estrutura produtiva, e do lugar social e do significado do artesanato. Na produção ela encerrou a época onde a maioria dos objetos era feita para a auto-subsistência, e modificou o processo de trabalho, os materiais, o desenho e o volume das peças para adequá-las para o consumo externo. Retirou os objetos de um sistema social onde a produção e a troca eram regulados pela organização comunal, ainda que ritual, e recolocou-os num regime de concorrência intercultural que os artesãos enten­dem apenas parcialmente, e ao qual servem de fora. Nas relações de produção, estas mudanças provocam uma concentração e um assa­lariamento progressivos. Em casos como a olaria, passa-se da ofici­na familiar para a pequena indústria ou para a unidade de produ­ção baseada no trabalho assalariado; se se trata de tecidos ou de móveis a tendência é o aumento do tamanho das empresas e a dimi­nuição do seu número, com a substituição das técnicas manuais pelas mecânicas, conservando-se apenas signos formais do artesa­nato original.55

Grande parte do poder de decisão a respeito do que devem ser as peças é transferida da esfera da produção para a circulação, ou para sermos exatos, para os intermediários, este crescente setor de comerciantes que quase nunca são artesãos mas que controlam a produção, e que atingem um rápido enriquecimento, o que é fre­quente entre aqueles que contam, ao iniciar um negócio, com peque­nos capitais. Se o comerciante possui um caminhão e talvez um armazém no povoado, o seu relacionamento com os artesãos pos-

" Alice Littlefield, "The expansion of capitalist relations of produclion in Mexican Crafts", in The Journal of peasant Studies, 1980, pp. 471-488.

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sui, como observou Victoria Novelo, o caráter de " u m a indústria a domicílio, onde o empresário — o dono do capital comercial — reparte o trabalho entre os oleiros, compra-lhes a produção, e os mantém atados através de empréstimos e de vales",56 não neces­sitando investir num local específico para a produção, nem em equipamento (os artesãos usam as suas ferramentas), nem preo-cupar-se com quebras ou perdas, tampouco, é claro, com detalhes como a previdência social. Os intermediários que são também donos de oficinas quase nunca reinvestem os seus lucros em melhorias técnicas, porque o caráter manual e rudimentar do artesanato é precisamente um atrativo para os consumidores. As condições gerais do sistema capitalista e as próprias dificuldades de os arte­sãos nele se inserirem e se organizarem de modo consistente torna-os cada vez mais dependentes do capital comercial. Este regime acarreta a decadência dos mercados locais, ou a sua "urbanização" ou "supermercadização", ou seja, o artesanato deixa de pertencer à cultura camponesa para se colocar como apêndice "folclórico" do sistema capitalista nacional e multinacional.

Sabemos que para que ocorram estas mudanças na produção e na circulação devem ter acontecido modificações correlatas na esfera do consumo. O crescimento da produção artesanal depende de um novo tipo de demanda motivado pela avidez turística pelo pitoresco, por um certo nacionalismo que é mais simbólico do que efetivo e pela necessidade de se renovar, oferecendo variação e rus-ticidade dentro da padronização industrial. Mas o artesanato rara­mente desempenha nos meios urbanos as funções originárias das culturas indígenas. A sua não utilização é, a rigor, a passagem de um uso prático a outro que é decorativo, simbólico, estético-folcló-rico. Trata-se de uma modificação do sentido primário, cujas diver­sificação e complexidade poderiam ser captadas através de um extenso levantamento a respeito dos espaços urbanos onde as peças de artesanato são exibidas e utilizadas. Vamos nos ocupar na próxi­ma discussão de quatro destes espaços, que nos parecem represen­tativos das principais operações de refuncionalização: a loja de artesanato, a boutique, o museu e a habitação urbana. Mas antes quero dizer que esta mudança de sentido que o artesanato sofre ao passar do meio rural ao meio urbano, da cultura indígena ou cam­ponesa para a cultura da burguesia e dos estratos médios, é com­pensada pela existência de uma tendência para a reordenação do

Victoria Novelo, op. cit., p. 128.

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sistema com a finalidade de reduzir a defasagem entre ambas as culturas. A política hegemónica não apenas ressemantiza os obje­tos ao mudá-los de meio ambiente e de classe social; ela também modifica, como vimos, as comunidades tradicionais e os consumi­dores urbanos para colocá-los em sintonia no interior de uma estru­tura global. O ajuste entre a oferta e a procura não é o resultado de uma imposição da produção sobre o consumo nem de uma adapta­ção dos produtores ao gosto dos consumidores, mas sim uma con­sequência da homologia funcional e estrutural que comanda todas as áreas de uma formação social. A explicação deve ser buscada, mais do que nas intenções conscientes dos produtores ou no cálculo cínico dos intermediários, na capacidade do sistema de reelaborar as relações objetivas e a sua interiorização nos indivíduos, de modo que todos os campos da vida social tendam a se organizar de acor­do com a mesma lógica ou conforme lógicas que sejam convergen­tes: as oposições entre o artesanato e a arte, entre a cultura rural e a urbana, entre o gosto dos produtores e o dos consumidores são homólogas entre si, e homólogas às oposições que ordenam os vín­culos complementares entre as classes sociais. " O acordo que assim se estabelece objetivamente entre as classes de produtores e as clas­ses de consumidores não se realiza no consumo mas através desta espécie de sentido da homologia que existe entre os bens e os gru­pos" , conforme advertiu Bourdieu em sua pesquisa a respeito das estruturas do gosto na sociedade francesa.57

Acrescentamos que a manutenção de uma classe hegemónica depende da sua capacidade para renovar esta correlação, esta equi­valência e complementaridade entre as classes sociais, entre a socie­dade nacional e as etnias e subculturas que a compõem e entre as relações sociais e a disponibilidade dos objetos. De modo inverso, o poder transformador dos setores populares dependerá da sua capa­cidade de subverter esta ordem, introduzindo — tanto na produção como no consumo — demandas que representem os seus verdadei­ros interesses e que por isso sejam disfuncionais, tornando as con­tradições do sistema mais agudas e impedindo a sua restauração.

A loja de artesanato Podemos distinguir quatro tipos de consumo do artesanato:

O prático, que ocorre no interior da vida cotidiana (roupas, baixe-57 Pierre Bourdieu, La distinction, op. cit., pp. 257-258.

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las), o cerimonial, ligado a atividades religiosas ou festivas (másca­ras, peças de barro com cenas sacras), o suntuário, que serve de dis­tinção social para setores com alto poder aquisitivo (jóias, mobílias trabalhadas) e o estético ou decorativo, destinado à decoração, especialmente das moradias (adornos, móbiles).

A loja urbana dispõe as peças de artesanato de modo tal que reduz estes quatro usos a uma combinação dos dois últimos. A uti­lidade prática e cerimonial é ignorada, salvo exceções, ao se retirar os objetos do contexto para o qual foram concebidos — a casa ou a festa — e ao serem exibidos isoladamente, sem explicações que per­mitam imaginar o seu sentido original. É por isso que ouvimos fre­quentemente os turistas perguntarem para que servem as peças ou de onde elas são. E o que é pior é que com frequência os vendedores não o sabem. Ao interrogarmos os compradores, percebemos que salvo nas baixelas, roupas ou artigos obviamente práticos, o artesa­nato é adquirido na maioria das vezes pelo seu desenho, pela sua adequação a algum lugar da casa que se quer decorar ou para ser presenteado com fins semelhantes. Sem dúvida, isso corresponde a inclinações prévias à entrada dos consumidores na loja. Mas se compararmos esse predomínio do consumo estético com o sentido prático que prevalece nos mercados, mesmo entre os turistas, deve­mos pensar que existe uma correspondência entre os consumidores suntuários e a disposição dos objetos nas lojas.

Existem vários tipos de lojas de artesanato urbanas. Algumas oferecem peças de artesanato e antiguidades, com o que são asso­ciadas ao velho, ao que não é mais usado e só se compra para deco­ração. Outras lojas, também de propriedade particular, aglomeram peças de várias regiões dentro da mesma vitrina ou estante, impon­do desde a distribuição visual uma confusão, ou uma simples indi­ferença a respeito da origem e da função de cada uma delas: a unifi­cação das peças é realizada sob fórmulas tão vazias de significado como a de "curiosidades mexicanas", que já analisamos, e pelo seu aspecto mais externo, o qual permite que os bordados de pano sejam exibidos junto com os de lã, as peças de barro com as de louça. Nas lojas estatais (FONART, Casas de Artesanato regio­nais) existem apenas peças de artesanato "genuínas", conforme afirmam, selecionadas devido às suas qualidades estéticas: a ênfase neste valor formal das peças melhora a sua admiração, mas pouco acrescenta ao seu conhecimento. Salvo realizações esporádicas de mesas-redondas ou de audiovisuais, a política destas instituições é orientada por critérios comerciais, não culturais.

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As diferenças entre as lojas de artesanato correspondem à necessidade de selecionar e de apresentar os objetos para grupos diversos de consumidores: o de gosto mais ou menos sofisticado, o dos que "adqu i r em" signos de distinção ou o dos que apenas dese­jam levar souvenirs. Esta diversificação das lojas é resultado, tam­bém, da concorrência, cada vez mais complexa, imposta pela expan­são do mercado artesanal e pelo incremento dado ao turismo. Com a massificação da produção e da comercialização do artesanato, algumas lojas dedicam-se à ampliação da sua oferta (misturando objetos de regiões e de valor diferentes), enquanto que outras, que se dirigem para consumidores interessados no sentido estético e na distinção social, preferem as peças "autênt icas" , aquelas cujas ino­vações as transformam em "exclusivas". A ramificação na oferta e no consumo provoca mudanças na estrutura e no desenho dos obje­tos: num caso, a simplificação ou a cópia em grande quantidade, que barateia o custo (por exemplo, as grosseiras e infinitas multipli­cações de calendários aztecas); em outro, a estilização e a procura da originalidade, que permita ao comprador dotado de alto poder aquisitivo diferenciar-se do consumidor "vulgar" (tecidos e cerâ­micas assinados).

A oposição entre as lojas que elevam os seus lucros mediante o aumento quantitativo dos produtos e as que o fazem através da renovação formal dos objetos corresponde à oposição entre estilos estéticos de classes sociais distintas. De um lado o gosto da peque-na-burguesia e dos setores populares, apegado às manifestações mais imediatas do exótico em suas versões uniformizadas. De outro, o da burguesia e dos setores cultivados da pequena-burguesia, que sublinha, através do interesse pela autenticidade, da sua relação familiar com a origem e com a valorização das inovações formais, sua capacidade em apreciar as obras de arte independentemente da sua utilidade, como um modo de expressar o seu distante relaciona­mento com as urgências económicas do cotidiano. Esta diversifica­ção das funções sócio-culturais do artesanato mostra, também, a variedade de níveis e estratégias sociais que envolvem a sua utiliza­ção, e em que medida a sua circulação hoje ultrapassa o significado antigo de objetos indígenas produzidos conforme uma finalidade prática ou cerimonial para comunidades de auto-subsistência.

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Entre a boutique e o museu O museu também retira o artesanato do seu contexto nativo e

destaca o seu valor estético, mas não lhe coloca preço; mostra-o apenas para que seja contemplado. Ao ingressar nesses salões neu­tros, aparentemente fora da história, cada objeto artesanal perde as suas referências semânticas e pragmáticas, o seu sentido passa a ser configurado pelas relações que a sua forma estabelece com as de outros objetos dentro da sintaxe interna do museu. Os vidros que os protegem, os solenes pedestais sobre os quais são exibidos refor­çam ainda mais a sua condição isolada de objetos-para-serem-con-templados.

Nas boutiques cuida-se mais do que nas lojas da apresentação do artesanato. Ele é disposto para ser visto, como no museu, mas — enquanto que este inclui a apropriação privada — as boutiques dispõem e arrumam as peças para incentivar a sua compra. A inter­venção não se limita a selecionar peças de qualidade e colocá-las junto a tapetes, móveis antigos, edições de luxo; modifica o acaba­mento de alguns objetos, sua pintura ou o seu polimento, a fim de imprimir-lhes a "d ignidade" do luxo ou da antiguidade.

No museu encontramos a herança cultural, a história das lutas dos homens com a natureza e com outros homens, mas esta se encontra fechada em vitrinas; a boutique neutraliza esse passado, ou acentua o que nele pode ser subordinado à beleza, para que con­viva serenamente com o nosso presente (um produto do qual foram ocultados os dramas que o engendraram é o mais apropriado para nos distrair dos dramas atuais). No museu as peças de artesanato não podem ser tocadas; a boutique oferece algo que tampouco é para ser utilizado mas sim para ser visto, deve ser visto como algo que é de quem o compra, mas encarado com toda a distância que se deve ter de algo que é decorativo, como se não fosse um objeto a ser integrado à vida.

E se elas não pertencem aos artesãos de quem foram arrebata­das tanto económica quanto simbolicamente, nem ao consumidor a quem se impõe um uso alienado e externo à coisa, de quem são as peças de artesanato? Dos comerciantes, é claro, mas seria mais exa-to dizer: dos que administram conjuntamente o nosso dinheiro e os nossos sonhos, nos quais a nossa realidade é trocada pelos fetiches.

Quase tudo que hoje se faz com o artesanato se resume entre o que acontece na boutique e no museu, oscila entre a comerciali­zação e a conservação. Enquanto que alguns vendem as suas peças

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tirando do produtor a metade do seu valor, a poucas quadras de distância elas são exaltadas e conservadas como se estivessem acima de todo valor material, como se fossem apenas uma criação eterna do espírito. O museu de artesanato é a boa consciência de um siste­ma que possui o seu eixo no mercado.

Mas, como um museu poderia ajudar-nos a apreender o signi­ficado dos objetos, as relações entre uma máscara e uma vasilha, um manto e uma festa? Tentou-se muitas vezes superar o mero armazenamento ou a exibição estética das peças. O melhor exemplo que conhecemos em Michoacán é o do Museu de Arte Popular de Pátzcuaro, onde as peças que correspondem a cada atividade, por exemplo, a comida, foram ordenadas num ambiente que reproduz ponto por ponto a estrutura de uma cozinha tradicional tarasca. Entretanto, a primeira impressão que se tem ao penetrar neste ambiente não é a da vida da cozinha mas a da ordem passiva, mo­nótona, intocável dos objetos. Quem está servindo de guia para a visita enfatiza que a maioria das vasilhas e dos panos foi feita no século XIX, e com efeito, a sua coloração suavemente desbotada e o excessivo cuidado e a rigidez da sua colocação induzem a uma observação distante e reverente.

Não se trata tampouco de introduzir manequins, fotos ou audiovisuais, ainda que por vezes eles sejam úteis. Devemos aceitar que os museus são diferentes da vida. A sua tarefa não é a de copiar o real, mas sim a de reconstruir as suas relações. Portanto, não podem permanecer na exibição de objetos solitários nem de ambien­tes minuciosamente ordenados; devem apresentar os vínculos que existem entre os objetos e as pessoas, de modo que se entenda o seu significado. Por que mostrar apenas vasilhas e tecidos, e nunca um forno ou um tear? E por que não funcionando? E se também docu­mentássemos a relação entre as horas de trabalho e os preços? Cire­se tem razão quando afirma que o isolamento dos objetos num museu é muito maior do que é necessário para a conservação das peças, porque toda essa instituição está impregnada de uma ideolo­gia da passividade. Ainda que para que cada peça continue a existir não seja possível que cada visitante a utilize a seu bel-prazer, exis­tem muitas peças que não apresentam riscos, e poderiam ser feitas reproduções das mais frágeis para que a museografia ensine não somente o seu aspecto mais também a sua utilidade.58 Na medida em que os museus nos fazem esquecer que as panelas foram feitas

Alberto M. Cirese, op. c/7., pp. 25-41.

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para cozinhar, as máscaras para festejar e os chapéus para abrigar-nos, eles são lugares de fetichização dos objetos. Como as lojas e as boutiques.

Na habitação urbana: a estética do souvenir Penso no interior doméstico da pequena-burguesia, a acumu­

lação e proliferação de objetos mediante os quais ostenta as suas conquistas e entrincheira a sua privacidade. A casa como um mini-museu, lugar de conservação e de exibição. O liquidificador, o toca-discos, o televisor, as porcelanas importadas, tudo possui um tape­te por baixo ou por cima, tudo está resguardado, de modo análogo ao museu. Há uma necessidade de superproteger o que se soube conseguir. Num canto, sobre um móvel ou uma prateleira, como sinal de que os que habitam esta zelosa intimidade também viajam, se expandem, são colocados objetos que proclamam os lugares onde estiveram: Acapulco, Las Vegas, Oaxaca.

Cada vez que lemos "Lembrança de Michoacán" sabemos que este objeto não foi feito para ser usado em Michoacán. Esta fórmula, supostamente destinada a garantir a autenticidade da peça, é o signo da sua inautenticidade. Um tarasco jamais precisará assinalar a origem nas panelas ou nos jarros que ele produz para utilizar com os seus iguais. A inscrição é necessária para o turista que misturará esta cerâmica com as que foram compradas em outros lugares, sendo que o que é mais significativo é a distinção social, o prestígio de quem esteve em tais lugares para comprá-las, do que os próprios objetos.

A legenda é desmentida pelo fato de estar escrita. Se foi preci­so gravar a sua origem supõe-se o risco de que se deixe de lembrar ou saber de onde procede. A maioria dos objetos que carregam esta fórmula de identificação não é comprada dos produtores, nem escolhida pela relação afetiva, de interesse e compreensão que o forasteiro estabelece com aqueles que fazem os objetos; é compra­da em mercados urbanos ou lojas, frequentemente de regiões dis­tintas daquelas onde eles foram produzidos. O paradoxo mais extre­mado desta perda de contexto encontramos nas peças de artesanato de aeroporto. Dado que o turista não pode saber nada das condi­ções de vida dos artesãos, necessita que seja inventada uma memó­ria, a nostalgia de uma identidade que desconhece.

Ao dissolver o valor de uso do artesanato no intercâmbio das

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i adorias, ou no quase vazio valor simbólico do "indígena", o • ipitalismo precisa construir identidades imaginárias, fingir recor­dações, enfatizá-las para gerar significados que ocupem o vazio daqueles que foram perdidos. Esquecido o uso dos objetos que ugora só servem para ser vendidos e servir como decoração, para Mi exibidos e proporcionar distinção, ignoradas as relações com a natureza e com a sociedade que deram origem à iconografia cam­ponesa, qual é o sentido que podemos encontrar em formas que aludem indiretamente a este universo: flores que reclamam chuva, linhas quebradas usadas para evocar relâmpagos?

Como consequência surge a necessidade de que o discurso publicitário instaure novos significados, reelabore um outro imagi­nário social, no qual a profundidade do passado é convocada para dar profundidade a uma intimidade doméstica que os utensílios industriais estereotiparam. Como consequência surge a necessidade de que o artesanato possua essa mistura de sinal de origem e de instruções para o seu uso. E que ao se falar dele sejam exagerados os seus elementos folclóricos: a hipérbole é a figura predileta da retórica mediante a qual o capitalismo se apropria do exótico. Quando o "indígena" ou o " n a t u r a l " são submetidos à cultura urbana são reforçados os seus elementos distintivos: os vestidos fei­tos em Oaxaca devem possuir mais flores e pássaros se são para ser exportados, não existem danças tão coloridas nem "voadores" tão impetuosos quanto os que se apresentam no Acapulco Center, do mesmo modo que — como observa Rubert de Ventos — os jardins do Hotel Princess são mais tropicais que a selva (existem mais cocos, mais cipós, mais papagaios; há mais de tudo). Adaptada às regras da exibição mercantil, a cultura indígena oferece algo "me­lhor" que a sua essência: a multiplicação, a colocação em cena de forma ampliada da sua beleza. O capitalismo acostumou-nos a enxergar a cultura do povo através de um espetacular espelho retro­visor.

A profundidade do passado ê convocada para dar profundi­dade a uma intimidade doméstica que os aparelhos industriais este­reotiparam: se a panela e o chapéu artesanais existem na moradia urbana não é devido à sua utilidade mas por seu valor decorativo, não se espera deles que desempenhem um papel no espaço da prá­tica doméstica mas sim no tempo que atribui o seu sentido à vida pessoal e familiar. O artesanato que em sua maior parte nasce nas culturas indígenas pela sua função é incorporado à vida moderna pelo seu significado. Mas o que ele significa? Justamente o tempo,

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a origem. De modo diferente dos objetos funcionais, que só exis­tem no presente e esgotam-se com o seu uso — o copo serve para beber, o carro para a locomoção —, os objetos antigos ou artesa­nais falam-nos da passagem do tempo, da origem.

O gosto pelo antigo e pelo artesanal, assinala Baudrillard, costuma caminhar ao lado da paixão pelo ato de colecionar: pos­suir para resistir ao tempo e à morte. Apropriar-se do passado, reuni-lo, ordená-lo, apontá-lo como algo a ser admirado por si mesmo e por outros é mantê-lo vivo, é lutar contra o que no pas­sado existe de perecível. Numa época em que os objetos se deterio­ram velozmente e se convertem em detritos, a presença do artesa­nato proporciona um testemunho de um triunfo contra o desgaste, ostenta a beleza do que sobrevive. Por isso é atribuído ao objeto artesanal, " o mais formoso dos animais domésticos", "uma espécie de intermediário entre os seres e os objetos",59 este meio ambiente especial, um local privado que evidencia a relação particular que o seu dono possui com o passado. Daí a importância que assume para a burguesia o fato de ela não possuir peças de artesanato comuns, iguais às dos outros. A burguesia não apenas se apropria da natureza e a privatiza através do domínio técnico, não somente se apropria do excedente económico mediante a exploração social; ela também se apropria do passado, do passado dos grupos sociais aos quais oprime, e o coloca a serviço da sua necessidade de distin­ção. Por isto transforma o tempo histórico num tempo metafísico, dissolve os objetos em signos, os utensílios cotidianos utilizados por outros em troféus — como os quadros, os vinhos e os móveis antigos — cuja posse crêem que confere ao seu dono o gosto pelo antigo e um domínio do tempo e da história. O modo como a bur­guesia e a pequena-burguesia colecionam em suas casas o artesa­nato é o reverso da relação que não temos sabido, ou querido, man­ter com os artesãos: saber olhar o artesanato é perceber neste con­traste uma acusação.

Em direção a uma política popular na utilização do espaço urbano A forma pela qual o artesanato será encarado e os seus códi­

gos de leitura são determinados pelos contextos específicos que 59 Jean Baudrillard, El sistema de los objetos, México, Siglo XXI, 1969, p. 101.

(Ed. bras.: O Sistema dos Objetos, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1973.)

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demarcam a sua trajetória social. Aqueles que regem a sua produ­ção camponesa e a sua localização no mercado, junto a verduras e frutas, são muito diferentes dos códigos visuais e semânticos que orientam a percepção do artesanato no museu ou a decoração doméstica urbana, onde ganha autonomia o sentido estético das formas. Nos últimos anos ocorreu um avanço notável da bibliogra­fia a respeito da questão artesanal ao se reconhecer a influência dos organismos estatais e dos intermediários nas mudanças do processo de produção e dos desenhos.60 Mas não conhecemos nenhum texto que atribua às estruturas espaciais uma função equivalente à dos aparelhos ideológicos. Entretanto, de modo semelhante ao que ocorre com a família ou com a escola, a instalação diferencial de objetos num meio ambiente ou noutro induz hábitos perceptivos, esquemas de compreensão e de incompreensão.

A organização do espaço, a mudança de contexto e de signifi­cado dos objetos populares é um recurso indispensável para que a burguesia construa a sua hegemonia. O seu interesse pelo artesa­nato não é unicamente económico, não se reduz a atenuar a miséria camponesa e as migrações, nem em proporcionar lucros fáceis aos intermediários; ela busca também efeitos políticos: reorganizar o sentido dos produtos populares, das suas instituições — a casa, o mercado, a festa — para subordiná-los à ideologia dominante.

Uma explicação completa das culturas populares deve anali­sar os diferentes espaços por onde circulam os seus produtos e evi­tar visões compartimentadas como as daqueles que só levam em consideração o processo de trabalho ou a comercialização. Deve­mos perceber as interpenetrações existentes entre um lugar e outro, entre os seus objetos e as suas lógicas. Por exemplo, o modo pelo qual o industrial invade a intimidade da moradia indígena, e, no sentido contrário, por que no interior da organização mercantil urbana há um interesse em recuperar o passado, vincular o presente com o passado, como o querem os souvenirs localizados nas mora­dias urbanas. Também devem ser registradas as causas das "confu­sões" existentes entre o rural e o urbano, o indígena e o ocidental e entre as culturas de classes sociais distintas: deve-se procurar ver na

60 Além do livro de Victoria Novelo e o volume que reúne os trabalhos do I Seminá­rio sobre la problemática artesanal, aos quais já nos referimos, pode ser consul­tado o livro de Andrés Medina e Noemi Quezada, Panorama de las artesanías otomíesdel Valle dei Mezquital, México, Instituto de Investigaciones Antropoló­gicas, UNAM, 1975.

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origem de todas estas interpenetrações a organização homogenei-zadora e monopolista do capitalismo.

E por isto que rechaçamos a concepção evolucionista, linear, que imagina a cultura indígena e camponesa como uma etapa pré-industrial, cujo destino inexorável seria o de parecer-se cada vez mais com a "modern idade" e finalmente nela dissolver-se. Ainda que exista no desenvolvimento capitalista uma tendência para absor­ver e tornar semelhantes as formas de produção material e cultural que o precederam, a subordinação das comunidades tradicionais não deve ser completa devido à impossibilidade do próprio capita­lismo industrial de proporcionar trabalho, cultura, assistência mé­dica para todos, e, também, pela resistência por parte das etnias que defendem a sua identidade. O caráter ambíguo da estratégia que as classes dominantes põem em prática diante das culturas subalternas é explicado, desse modo, pela existência de um duplo movimento: pretendem impor aos dominados os seus modelos eco­nómicos e culturais e, ao mesmo tempo, procuram apropriar-se do que não conseguem anular ou reduzir, utilizando as formas de pro­dução e de pensamento alheias através da sua refuncionalização para que a sua continuidade não seja contraditória com o cresci­mento capitalista.

Finalmente, isto permite-nos entrever em qual direção deve­mos agir para construir uma cultura contra-hegemônica. Não basta " resgatar" a cultura popular, evitando que se percam os mitos, o artesanato e as festas. Tampouco é suficiente o incentivo à sua pro­dução através de créditos generosos nem o sequestro dos seus melho­res resultados em museus honoráveis ou em livros suntuosamente ilustrados. Os mitos e a medicina tradicional, o artesanato e as festas podem servir para a libertação dos setores oprimidos desde que sejam reconhecidos por eles como símbolos de identidade que pro­piciam a sua coesão, e desde que os indígenas e as classes populares urbanas consigam converter estes "resíduos" do passado em mani­festações "emergentes" , contestatórias.61 Para que isso ocorra é fundamental que os setores populares se organizem em cooperati­vas e sindicatos a partir dos quais possam ir reassumindo a proprie­dade dos meios de produção e de distribuição. Mas também é vital que cheguem a se apropriar do sentido simbólico dos seus produ-

Retiramos a distinção entre cultura residual e emergente de Raymond Willians. Marxism and Literature, Oxford, Oxford University Press, 1977. (Ed. bras.: Marxismo e Literatura, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979.)

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tos. Obviamente isto não significa que eles devem ser reintegrados ao contexto indígena, ou que se deva " indenizar" as lojas urbanas, mas sim que deve ser elaborada uma estratégia visando o controle progressivo sobre os espaços e mecanismos de circulação.

Uma tal estratégia requer o discernimento do que nas culturas é mera sobrevivência e o que representa os interesses atuais das classes subalternas, e, portanto, é capaz de se opor ao sistema hege­mónico. Consequentemente, devem ser examinadas as possibili­dades que os mercados e feiras oferecem para os produtores, que devem reclamar uma participação ativa na sua organização e admi­nistração, na publicidade turística, no julgamento dos concursos etc. Em suma, devem lutar pelo controle económico e cultural da sua produção e de todas as instâncias onde ela pode ser refunciona-lizada e ressignificada. A respeito das inovações no desenho, na apresentação e na difusão do seu trabalho, devem ser os artesãos, os dançarinos, os trabalhadores indígenas da cultura os que devem decidir quais mudanças podem ser aceitas e quais se opõem aos seus interesses. Na medida em que as classes populares rurais e urbanas desempenhem este papel de protagonista, iremos tendo uma cultura popular: uma cultura que surja democraticamente da reconstrução crítica da experiência vivida.

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Festa e história: celebrar, recordar, vender Festas rurais e espetáculos urbanos A festa é uma posta das fissuras entre o campo e a cidade,

entre o indígena e o ocidental, das suas interações e dos seus confli­tos. Isto pode ser comprovado na coexistência das danças antigas com os conjuntos de rock, nas centenárias oferendas mortuárias indígenas que são fotografadas por centenas de câmaras, no cruza­mento de ritos arcaicos e modernos nos povoados caponeses, nas festas híbridas através das quais os migrantes evocam, nas cidades industriais, um universo simbólico que se centra no milho, na terra, na chuva. Estas oposições dramáticas também são representadas no contraste entre as festas rurais e as urbanas.

Para as populações indígenas e camponesas, as festas são acontecimentos coletivos enraizados na sua vida produtiva, cele­brações fixadas de acordo com o ritmo do ciclo agrícola ou o calen­dário religioso, onde a unidade doméstica de vida e de trabalho se reproduz através da participação coletiva da família.

Nas cidades, a existência da divisão entre as classes sociais, de outras relações familiares, o maior desenvolvimento técnico e mer­cantil voltado para o lazer, a organização da comunicação social que apresenta um caráter massivo criam uma festividade que é dis­tinta. À maioria das festas as pessoas vão individualmente, são feitas em datas arbitrárias, e, quando se adere ao calendário ecle­siástico, a estrutura segue uma lógica mercantil que transforma o motivo religioso num pretexto; ao invés da participação comunitá­ria, é proposto um espetáculo para ser admirado.

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Gilberto Gimenez esquematizou os traços das festas rurais e urbanas no seguinte modelo:62

Festa camponesa tradicional a) Ruptura do tempo normal; b) Caráter coletivo do fenómeno da festa, sem exclusão de nenhu­

ma classe, como expressão de uma comunidade local; c) Caráter compreensivo e global, uma vez que a festa abrange os

elementos mais heterogéneos e diversos sem disgregação nem "especialização" (jogos, danças, ritos, música etc. ocorrem no interior de uma mesma celebração global);

d) Com a consequente necessidade de ser realizada em grandes espaços abertos e ao ar livre (a praça, o pátio da Igreja...);

e) Caráter fortemente institucionalizado, ritualizado e sagrado (a festa tradicional é indissociável da re':gião);

f) Impregnação da festa pela lógica do valor de uso (como conse­quência: festa-participação e não festa-espetáculo);

g) Forte dependência do calendário agrícola no quadro de uma agricultura sazonal.

Festa urbana a) Integração da festa à vida cotidiana como um seu apêndice,

complementação ou compensação; b) Caráter fortemente privado, exclusivo e seletivo da festa; c) Sua extrema diferenciação, fragmentação e "especialização"

(são dissociados os elementos que na festa popular coexistiam no interior da unidade de uma mesma celebração global);

d) Com a consequente necessidade de ela ser desenvolvida em espa­ços íntimos e fechados;

e) Laicização e secularização da festa, maior espontaneidade e menor dependência de um calendário estereotipado;

f) Penetração da lógica do valor de troca: festa-espetáculo, conce­bida em função do consumo e não da participação.

Gilberto Gimenez, Cultura popular y religión en el Anáhuac, México, < < i"' •' dl Estúdios Ecuménicos, 1979, pp. 164-165.

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Este tipo de contraposição gerou — como no caso do artesa­nato — polémicas bizantinas a respeito do que seria a essência da festa, a autenticidade exclusiva da festa rural e da sua decadência, devido às variações que sofre, nas cidades.63 Como adverte Gime­nez, a polarização é demasiado "abrup ta" , e de fato é difícil encon-trar-se festas comunitárias puras, que possuam uma indigenidade impecável. Perguntamos também até que ponto existem a ruptura do tempo social, o predomínio do valor de uso e as demais caracte­rísticas apontadas. As indagações que nos parecem mais pertinentes são as que possam nos auxiliar na compreensão de por que existe este contraste, por que cada vez mais as festas rurais vão cedendo terreno aos modelos mercantis urbanos e são parcialmente substi­tuídas por divertimentos e espetáculos.

Analisaremos três festas onde se pode perceber, segundo o vocabulário do funcionalismo evolucionista, uma transição do tradicional ao moderno: a festa do padroeiro de Ocumicho, reali­zada ano após ano sem maiores mudanças; a do Cristo Rei de Pa­tamban, onde as modificações que percebemos durante três anos representam uma maior adequação do povoado ao mercado nacio­nal e à cultura urbana; e por último, a festa dos mortos na região do lago de Pátzcuaro, onde podemos colocar como contrastantes a celebração tradicional que ocorre em Ihuatzio e outros povoados com a sua radical alteração, a poucas centenas de metros, na ilha de Janitzio, como consequência da reorganização comercial do feste­jo . Não tomaremos, entretanto, estes três casos como pontos esca­lonados de uma progressão — a festa de Ocumicho não está conde­nada a ser igual à de Janitzio — mas como processos que revelam as mudanças desencadeadas pela penetração capitalista numa tradi­ção cultural determinada, a tarasca. Além do que, os três exem­plos, pelo seu sentido religioso, oferecerão uma ocasião para nos interrogarmos a respeito da sobrevivência e da caducidade das crenças tradicionais, e do seu lugar atual na redefinição das cultu­ras populares.

Porque não chove os santos serão carregados de costas Bosques formados por pinheiros cercam o povoado, a madei­

ra e a resina estão relacionados com a alimentação dos seus habi-

6 3 Uma resenha deste debate pode ser encontrada em Agnes Villadary, Fête et vie quotidienne, Paris, Les Éditions Ouvries, 1968.

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tantes, bem como a semeadura de pequenos terrenos, onde o milho e o feijão crescem como podem nos escassos meses de chuva. Alguns criam ovelhas e vendem a lã. Dos 2300 habitantes de Ocumicho, 65 famílias produzem objetos de barro e umas tantas mulheres tecem blusas. Vivem de modo semelhante ao que descrevemos a respeito de Patamban. A primeira diferença que se nota é que toda a população fala o tarasco o tempo todo; os homens jovens e algu­mas mulheres usam o espanhol quando são visitados por estra­nhos. Além da língua, um regime de compadrio e solidariedade comunitária estritamente mantido serve-lhes de coesão: em algu­mas casas convivem quatro ou cinco famílias, que plantam e colhem juntas.

Por que começaram a fazer, no final da década de 60, os dia­bos de barro que rapidamente se converteram numa das peças de artesanato mais difundidas e valorizadas do México? " O diabo percorria Ocumicho e incomodava a todos. Enfiava-se nas árvores e as matava. Entrava nos cachorros, e estes não faziam outra coisa senão agitar-se e gritar. Em seguida perseguiu as pessoas, que adoe­ciam e enlouqueciam. A alguém ocorreu que se deveria dar-lhes lugares onde pudesse viver sem incomodar a ninguém. Por isso fizemos diabos de barro, para que ele tivesse onde ficar."

Ao juntar a este relato dois fatos, foi surgindo uma interpre­tação. Por um lado, a época em que começou a produção dos dia­bos coincidiu com aquela em que começaram a diminuir as chuvas e quando alguns hejidatarios (posseiros de terras comunais) de Tangancícuaro apropriaram-se de terras muito férteis que até agora os habitantes de Ocumicho não conseguiram recuperar. Ainda que alguns deles tivessem anteriormente feito objetos de barro, nestes anos essa produção se estendeu a muitas famílias como atividade compensatória, a exploração dos bosques se tornou mais intensa, o que abriu para a comunidade um maior intercâmbio com o merca­do nacional. O outro fato que relacionamos com o mito são as constantes que aparecem nos diabos: estão cercados de serpentes e animais da região, mas costumam estar associados a elementos do mundo " m o d e r n o " inexistentes no povoado: policiais, motocicle­tas, aviões. A cerâmica de maior tamanho que vimos em Ocumi­cho, de setenta centímetros de largura, é um ônibus com diabos ale­gres, jogando os corpos pela janela, e uma inscrição na frente: Ocumicho-México-Laredo (o nome do povoado compondo uma série com o de dois lugares onde se viaja em busca de trabalho). Não podemos pensar que os diabos — a falta de chuvas, o roubo

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das terras, a necessidade de abrir a comunidade para o exterior, enfim, todos os males que começaram a desintegrá-la — precisa­vam de um lugar onde pudessem ser controlados e contidos?

As festas são um dos poucos espaços onde a população pode continuar a reafirmar a sua solidariedade comunitária. Os quatro bairros que compõem o povoado participam na organização e no financiamento das festas principais: as dedicadas a São Sebastião no dia 20 de janeiro, a Quaresma na Semana Santa, a de São Pedro e São Paulo nos dias 28 e 29 de junho, a do Santo Cristo nos dias 13 e 14 de setembro, a da Virgem no dia 8 de dezembro, e em seguida as cantorias (pastoreias) de Natal e a festa de Santo Estêvão e São Miguel nos dias de 26 e 27 de dezembro. Para as festas são designa­dos encarregados, mas todos colaboram com trabalho e dinheiro. Nada mais longe de um espetáculo do que estas festas. As ativida­des de cada festa e a forma como são realizadas são conhecidas por todo o povo como parte do seu repertório de crenças e da sua tradi­ção. A maioria dos habitantes acompanha passo a passo as cerimó­nias e desempenha papéis ativos. Tampouco a festa é um espetá­culo para os visitantes, já que estes são provenientes dos povoados próximos (Patamban, San José de Gracia), conhecem os habitantes de Ocumicho e são convidados a participar. É mínima a assistência de pessoas estranhas: turistas, funcionários que se ocupam do turis­mo e do artesanato.

A festa mais importante é a de São Pedro e São Paulo, uma vez que o primeiro é o padroeiro do povoado. A atividade central é a procissão, mas também são queimados castelos de fogos de artifí­cio e pequenos touros de pólvora, são contratadas duas bandas de música que tocam obras clássicas e concorrem durante toda a noite. Para a procissão as imagens de São Pedro e São Paulo são vestidas com esmero e adornadas com frutas e verduras, de plástico e de cera. São Pedro carrega uma espiga de milho, que é o alimento cotidiano dos camponeses. Mas a procissão dos santos não é um ato puramente formal, que se repete para dar sequência a uma tra­dição. Na procissão de junho de 1979, as imagens, ao saírem da igreja, iam de costas como castigo aos santos porque não haviam feito chover durante dois meses e as plantações estavam ficando secas. Os habitantes trazem oferendas aos santos — pães, frutas e doces — dançam diante das imagens para chamar as suas graças, mas a sua atitude não é a de uma recatada submissão, não se limi­tam a cumprir o que a Igreja estabelece; eles também intervêm, rea­gem sobre os fatos, modificando o significado dos ritos.

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A relação do povoado com o exterior, as suas dificuldades de subsistência e a importância da migração podem ser observadas num detalhe: as mulheres encarregadas da festa vestem para esta ocasião um traje especial, carregam dinheiro mexicano e dólares atados às fitas multicoloridas que amarram nos cabelos. São as contribuições que os membros dos bairros fazem aos encarregados para ajudá-los com os gastos da festa. Os dólares são provenientes daqueles que foram como trabalhadores braçais para os Estados Unidos. Por um lado, a introdução do dinheiro como elemento de decoração e de participação na festa (como relação social já faz parte há muito tempo) manifesta as diferenças sociais e culturais surgidas no povoado: conforme o valor da doação, se é oferecida em bens ou moedas de outro país. Por outro lado, revela que mes­mo as pessoas que abandonam Ocumicho e que partilharam de outras formas de vida no exterior regressam e participam da festa. A presença do dinheiro estrangeiro, que poderia ser interpretada como uma perda das manifestações culturais tarascas ou nacionais, mostra-nos a readaptação cerimonial, a nova situação de uma comunidade desgarrada que encontra na festa um meio para reafir­mar o que na sua identidade possui origem no passado, do mesmo modo que encontra nas mudanças uma forma de atualizar a repre­sentação das suas carências, das suas desigualdades, mas também da sua coesão histórica.

Qual o significado que apresenta o fato de que o dinheiro, além de ser utilizado para financiar os gastos da festa, tenha a sua aparição reduzida a esta presença decorativa, eufemística, e que a atividade comercial seja muito baixa, já que apenas é permitida na praça a presença de dez postos de venda de brinquedos de plástico, enfeites e jogos de tiro ao alvo? Entendemos que estes limites repre­sentam na festa o controle relativo que o povoado ainda exerce diante da dependência mercantil que lhe é imposta de fora, e que também possui alguns agentes entre eles. As autoridades indígenas da comunidade, que estão acima do governo cívico-político na organização da festa, impedem que a celebração adquira um cará­ter predominantemente mercantil; por isso proíbem também a entrada de jogos mecânicos. Ao mesmo tempo que pressionam os membros do povoado com maiores recursos para que assumam a responsabilidade de encarregados, com o que obrigam aqueles que conseguiram acumular algum capital a reinvesti-lo dentro de Ocu­micho: este gasto, ainda que não elimine a desigualdade porqiií não supõe uma redistribuição, evita que o excedente obtido com 0

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trabalho dos habitantes do povoado, ao ser investido no exterior, agrave a subordinação ao mercado nacional.

Talvez este controle da atividade mercantil, a sua redução parcial a operações simbólicas, do mesmo modo que a produção do artesanato, sejam os últimos recursos para a sua autopreservação. Até que ponto os ajudará a fazê-lo a partir dos recursos do imagi­nário? Qual será a eficiência do simbólico? Até quando poderão continuar a se reconhecer naquilo que fazem?

Perguntei a um artesão por que numa das suas peças havia vários diabos amontoados, atropelando-se para olhar num espelho. Ele me respondeu: " O espelho é a aparência. Alguém se olha e está. Alguém retira o espelho e já não se está mais" .

A festa em Patamban: peças de artesanato efémeras, necessidades crónicas São dois os cenários. O espaço concentrado da praça, onde é

feito o comércio de artesanato e de produtos industriais, a diversão do consumo, a comida feita na hora, os jogos mecânicos e de azar. Simultaneamente, d espaço itinerante da procissão, seis quilóme­tros de caminhada que começam rodeando o centro e em seguida abandonam o povoado, sobem ao outeiro para a missa principal. Oscilação entre o económico e o religioso: por um lado, o artesa­nato vendido na praça para propiciar a sobrevivência; por outro, o artesanato efémero (enfeites de papel pendurados entre as casas, veredas cobertas com desenhos compostos com serragem e flores), que se estende pelo caminho da procissão e segue além do povoado até onde se ergue o outeiro, para se desmanchar na volta sob os passos daqueles que carregam o santo.

De acordo com o sacerdote de Patamban, a festa foi criada há quinze ou vinte anos por um padre anterior com o objetivo de atrair visitantes e de promover a venda do artesanato. Por isto ele organizou a decoração das ruas e da igreja com tapetes de flores naturais, com arcos de madeira cobertos com flores e frutas e com arranjos de papel (composturas) que ficam dependurados em fios preenchendo o espaço visual das ruas. O resto dos informantes atri­bui à festa entre vinte e trinta anos de antiguidade e diz que ela foi criada por motivos religiosos; de acordo com eles, ela começou a possuir aspectos comerciais muitos anos depois da sua criação.

De modo diferente das festas dos padroeiros de Patamban,

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Ocumicho e outros povoados, a festa de Cristo Rei não se encontra na mão dos encarregados mas de toda a população. O sacerdote, as freiras e os representantes de cada bairro ocupam-se da organiza­ção, mas todos participam de modo integral nas tarefas: um bairro se encarrega da confecção do castelo, outro cuida da música, outro, do enfeite da igreja. Todos confeccionam e colocam os enfeites, organizados por quadras: para chegar a um acordo a respeito da forma, da cor e dos materiais que serão empregados nos arranjos de papel e nos tapetes todos se reúnem, propõem e discutem dife­rentes desenhos. A maioria das figuras é geométrica e outras imi­tam formas naturais: flores, animais. Numas vinte esquinas são levantados arcos feitos com armações de madeira e que são decora­dos com papéis coloridos, pequenos objetos de cerâmica, cascas de ovo pintadas, flores, frutas e espigas de milho. Podemos dizer, conforme o vocabulário das vanguardas artísticas, que se trata de uma arte pobre, coletiva, urbana e efémera.

Anteriormente os tapetes eram confeccionados apenas com flores naturais, que existiam em quantidade abundante ao redor do povoado. Desde que as chuvas diminuíram, muitos passaram a empregar a serragem, pois a conseguem gratuitamente ou de modo muito barato nas serrarias do próprio povoado que cortam a ma­deira dos bosques das redondezas, mas as flores ainda são muito utilizadas. Em 1977 houve um movimento por parte dos comer­ciantes para se transferir a data da festa, fixada no último domingo de outubro, para o mês de dezembro, quando a afluência de turis­tas seria maior; quase todo o povoado concordou em rechaçar a mudança, argumentando que se a escolha do mês de outubro havia sido feita por ser a época do ano em que existe uma maior quanti­dade de flores, não se devendo ao calendário religioso, não deveria ser alterada por razões comerciais.

Flores, serragem, cerâmica, milho: a festa prolonga a vida cotidiana e o trabalho do povoado. Algumas atividades agrícolas são interrompidas, mas a artesanal aumenta com vistas às vendas extraordinárias, e se trabalha mais do que nunca na preparação dos arranjos. Podemos afirmar que a produção se modifica, mas não que a festa seja uma fuga do cotidiano ou a passagem do profano ao sagrado. Do mesmo modo que em outras festas religiosas — por exemplo, a de Ocumicho, que não possui objetivos comerciais — o que pode haver de excepcional no tempo, no espaço e nas práticas sociais sempre está incluído numa profunda continuidade com a ordem habitual. Os materiais e os desenhos usados na decoração

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etfão arraigados na vida produtiva, nas necessidades e gostos cole-tivos. É significativo, nesta linha de argumentação, perceber quais são os materiais " m o d e r n o s " que são empregados na decoração. Muitas coroas são feitas com latas (com as quais criam losangos, formas complicadas) e copos de plástico esteticamente recortados: no momento em que vi toda uma quadra decorada deste modo e passou um menino com duas tinas de água, compreendi o significa­do. Assim como — soube depois — em algumas procissões são uti­lizadas garrafas de coca-cola para levar as velas, ou simplesmente são seguradas como ato devoto, o uso das latas e copos representa o papel que os refrigerantes comerciais possuem num lugar onde a água precisa ser buscada em dois locais, e em várias épocas do ano não é suficiente nem para beber. Ao entrarmos em muitas casas temos a sensação de que se trata de pequenas vendas, porque pos­suem quatro ou cinco caixotes de refrigerantes. A decoração com estes elementos não indica apenas a penetração das empresas multi­nacionais e da sua cultura de plástico: a substituição parcial, no espaço da festa, de elementos naturais e de cerâmicas confecciona­das na região por elementos de origem externa, industrial (símbolo ao mesmo tempo daquilo que substitui a água) representa o lugar que a população lhes atribui no seu sistema imaginário, ou seja, o papel que concede a estes objetos importados, semelhante ao das verduras e frutas, na satisfação material das suas necessidades, e a invocação que fazem dos seus poderes enquanto elementos "me­diadores" na resolução simbólica das suas carências.

Na praça instalam-se os postos de venda de artesanato, de produtos industriais e a maior parte das diversões. A venda do arte­sanato produzido em Patamban é uma das atividades comerciais mais importantes: 75% da população trabalham com louça e esta festa proporciona-lhes uma ocasião para vendê-la no povoado sem os gastos com o transporte e com o alojamento que enfrentam no resto do ano ao se transportarem para feiras ou mercados longín­quos. Por isso, várias semanas antes da festa toda a família se dedi­ca a preparar uma quantidade maior de peças do que a habitual. Nem todos os oleiros expõem a sua cerâmica na praça, porque se requer que as peças sejam finas ou semifinas. Aqueles que fabricam louça comum reconhecem que o seu lugar não é na praça, e vendem nas portas das suas casas ou simplesmente guardam-na. Outros tampouco saem para vender no dia da festa porque trabalham com cerâmica fina ou semifina por encomenda.

Embora a produção e a venda do artesanato local mantenha-

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| C constante, crescem a cada ano os postos de cerâmica de Ocumi­c h o , bem como alguns postos de San José de Gracia, e o número de Comerciantes que vendem as cerâmicas de Santa Fe de la Laguna e de Guanajuato. Tem crescido ainda mais o número dos que trazem louça de cidades (Zamora, Morelia, do Distrito Federal) e mistu­ram blusas e ponchos produzidos artesanalmente em outros povoa­dos com objetos de fabricação industrial: sapatos, roupa, artigos domésticos, bugigangas de plástico e de madeira (brinquedos, pen­tes, pulseiras, colares, brincos, espelhos e t c ) . Completam a festa postos de venda de verduras, frutas, pães, doces, bebidas e comi­das, que se somam para fazer desta festa a maior atividade comer­cial do povoado.

Grande parte da diversão se concentra na praça e nas ruas vizinhas. A roda-gigante, os carrosséis, um jogo de loteria que inunda o espaço com a sua música e a leitura por alto-falantes dos bilhetes premiados, jogos de azar e de habilidade, todos trazidos de Zamora, aproveitam esta festa, a única festa religiosa em que são permitidos entrar no povoado. Nas demais, os habitantes de Patam­ban entendem que o tempo da festa deve ser um tempo de recolhi­mento; nesta festa as alegrias das maiores vendas do ano se conci­liam, de acordo com o sacerdote, com a do triunfo de Cristo, e este clima prevalece em todas as atividades. A mesma procissão, que atravessa um caminho formado por arranjos de papel e tapetes multicoloridos, acompanhada por bandas de música e foguetes durante todo o percurso, não inclui penitências ou mortificações, e nem se carregam as imagens ou oferendas desmesuradamente pesa­das que vimos em outras procissões.

Mas a reunião destes elementos — a decoração com flores e serragem, a música e os foguetes — não possui apenas um caráter ornamental e recreativo, como nas secularizadas festas urbanas. Todos os ingredientes das festas camponesas servem, ao mesmo tempo, a um movimento ritual que invoca poderes sobre-humanos e pede pelos seus favores. As bandas tocam hinos cristãos, que a procissão canta conduzida pelas freiras a partir de alto-falantes portáteis. Na parte de trás da procissão os fogueteiros lançam aos céus as suas mensagens de luz e de ruído para agradar aos deuses da chuva e do trovão e propiciar a atenção destes deuses para a colhei­ta. Na mesma marcha até o outeiro misturam-se os deuses pré-colombianos e o cristão, os cânticos que aprenderam no período dc colonização e o alto-falante adquirido há três anos, as flores q u e são proporcionadas há séculos pelos seus bosques e a serragem que

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tingem agora com anilinas de preparação química. Sincretismo, cruzamento de cu l tu r a s : magia tarasca, religião católica e tecnolo­gia capitalista, t r a b a l h o e reza. Assim caminham os povos quando uma dominação se sobrepõem à outra.

As bandas pe rco r rem as ruas várias vezes ao dia, desde muito cedo. Aproximam-se das pessoas que estão decorando as casas e o chão, e perguntam Qual a música que gostariam de ouvir. Outro acontecimento mus ica l é o concurso de pirekuas (música da região tarasca), que é o r g a n i z a d o pela comissão da festa e pelo sacerdote com o apoio do Ins t i t u to Nacional Indigenista e da Secretaria de Turismo para a a t r i bu ição de prémios. O FONART promove um concurso de a r t e s a n a t o : em 1979 foram dados prémios que iam de 500 a 1.500 pesos; q u a n t i a s que às vezes cobrem o preço das peças e que em poucas ocas iões chegam a alcançar o dobro do seu valor. As obras que d i spu tavam o concurso estavam em exposição desde antes, mas imedia tamente após o concurso — que é feito na noite de sábado anterior à festa — o FONART retira as obras vencedoras e todas as demais q u e lhe interesse comprar. Num primeiro mo­mento o concurso fo i anunciado para o domingo, mas foi anteci­pado porque o F O N A R T queria levar a mercadoria o mais depressa possível e no dia segu in te os enfeites e os tapetes impediriam a pas­sagem dos caminhões . Muitos artesãos que haviam produzido peças para vender na praça no dia da festa, desfizeram-se delas antes do dia em que começaria a venda. Como no concurso participaram apenas 24 oleiros, c o m o não havia nenhum artesão no júri (com­posto por representantes do FONART, do INI e da Casa de Artesa­nato de Morelia), a maioria da população apenas observava os fatos. O concurso e m que era julgado e premiado o seu trabalho era para quase todo o p o v o a d o um entretenimento para o qual foram convocados como espec tadores .

70000 turistas criaram em Janitzio uma cultura fotogênica Existe apenas u m a rua na ilha. Ela nasce no cais e sobe, sinuo­

samente, até o m o n u m e n t o dedicado a Morelos: às suas margens cada choupana foi t r a n s f o r m a d a em loja de venda de artesanato ou de alimentos. Em o u t r a época, Janitzio produziu esculturas de ma­deira e cerâmica, além d a pesca de charales e da pescada branca, um dos peixes mais ca ros do país. Atualmente os seus habitantes

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dedicam-se à venda do artesanato de várias regiões mesclado com louça e roupa, e continuam a produzir objetos de decoração com­postos com imagens locais (embarcações e redes de brinquedo, algumas máscaras, reproduções em miniatura da estátua de More-los). As raras oficinas que sobrevivem são utilizadas para atrair os turistas.

A pesca deixou de ser, há muitos anos, uma atividade cole-tiva, os proprietários das embarcações médias e grandes impedem os pescadores de se aproximarem do cais, inclusive com a utilização de violência. "Ent re , coma pescada branca de Pátzcuaro", anun-cia-se nas portas dos restaurantes da ilha, mas o que é oferecido é em realidade peixe dos lagos de Chapala, situada a 350 quilómetros de distância, porque o peixe do lago que circunda Janitzio, mais tenro e saboroso, é enviado para restaurantes de quatro estrelas do Distrito Federal e de Acapulco.

Nem o artesanato, nem a pescada, nem o modo de vida são os próprios da ilha. Janitzio é uma grande empresa de simulação. O lugar onde melhor se mantém a cultura tarasca é no cemitério. Como em Jarácuaro, a maior ilha do lago, e as outras onde vivem poucos habitantes como em Ihuatzio, Tzurumutaro e quase todos os povoados da região, nas noites de 31 de outubro e de 1 de novem­bro as pessoas se dirigem para os túmulos carregando velas acesas e defumadores queimando incenso. As guares, envolvidas em man­tos azuis, transportam o huatzallari, arco enfeitado com flores amarelas, onde se penduram figuras de açúcar, pães e doces. Desde antes da conquista colocam sobre as tumbas de terra as trabalhosas kenekuas, oferendas de pães, chayotes (fruto da chayotera) e caba­ças (espécie de abóbora) ou as comidas prediletas dos mortos. Houve um tempo em que se acreditava que os mortos os visitavam na ma­drugada para agradecer as rezas em sua intenção e para protegê-los. O cristianismo atenuou esta crença e nela introduziu os seus princípios; a secularização tem propiciado o seu esquecimento. Se perguntarmos pelo sentido da cerimónia, quase todos dirão que "em outra época isto acontecia". Parece que o rito se sustenta menos pela crença do que por servir de comunicação e proporcio­nar uma elaboração simbólica em torno de uma relação com o des­conhecido que o desenvolvimento social tem mercantilizado, mas que não pode substituir.

Em Ihuatzio e em outros povoados é permitido que toda a família vele as sepulturas, ainda que algumas mulheres o façam sozinhas. Em Janitzio, os homens do povoado não entram no cerni-

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tério até o amanhecer, mas os turistas — que em 1979 foram 70000 — não respeitam esta vontade. Nunca soubemos que isto tenha provocado conflitos, enquanto que já ouvimos orgulhosos relatos a respeito de quantas vezes a ilha tem sido cantada, fotografada e filmada. A iluminação das velas é uma parte tão habitual da ceri­mónia quanto a luz dos flashes, os cantos fúnebres misturam-se o tempo todo com murmúrios em inglês, francês e alemão.

Num tempo em que a crença se apaga, a cerimónia subsiste mudando de função. Perdido o acontecimento restam os signos — velas, arcos, oferendas — que a necessidade económica justifica de outra maneira. Os jornais, a televisão e o Departamento de Turis­mo insistem na "profunda atitude mística" das pessoas, a "quie­tude hierática das suas faces", esta "tristeza de toda uma raça que se volta para dentro de si mesma";64 afirmam-nos precisamente nos folhetos que incitam as multidões a atirarem-se sobre estas festas, suprimir a quietude hierática ou de qualquer outro tipo, levando aqueles que a celebram a saírem de si mesmos e esforçarem-se em encontrar uma compensação ao que durante o resto do ano lhes é subtraído.

Janitzio é um exemplo extremado desta tendência do capita­lismo em secularizar os acontecimentos tradicionais, mas resga­tando os seus signos se adequados para a ampliação dos seus lucros. E a mesma tendência que anexa feiras a festas antigas ou que cria novas festas para que as feiras tenham a sua cenografia. Comer­ciantes de jogos mecânicos e de azar, grupos de música urbana e bebidas das grandes companhias internacionais, roupas de baixa qualidade e peças de artesanato de imitação vão percorrendo as fes­tas e ocupando o espaço económico e simbólico, visual e sonoro, que pertencia àqueles que vivem permanentemente nos povoados. Os ingredientes da festa tradicional (as danças, a ornamentação do povoado) passam a ser uma parte, às vezes complementar ou deco­rativa, da festa atual. Tanto nas antigas festas indígenas como nas da colónia a celebração ritual, o acontecimento cultural ou reli­gioso eram acompanhados por atividades comerciais, mas que esta­vam integradas à vida e às necessidades da região.

A religião cristã, que deslocou as culturas pré-colombianas, retira várias das suas procissões para o interior do templo (por exemplo, a da Virgen de la Salud em Pátzcuaro, desde há quatro 64 Noite dos Mortos, folheto da Dirección de Turismo dei Gobierno de Michoacán,

Morelia, s.d.

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anos) e cede a rua para os comerciantes de fora, que instalam os seus vendedores, os seus alto-falantes, os parques de diversão. A nova invasão de cor, luz e som que é trazida pela prática mercantil substitui — por seu caráter de experiência estética total — as festas religiosas que eram nos povoados a fonte principal de integração pública da vista, do ouvido, do olfato e do paladar, enfim, de edu­cação sensível das massas.

A festa se transforma primeiro em feira e depois em espetá­culo. Um espetáculo interurbano, nacional e mesmo internacional, conforme o seu alcance turístico. Foi deixado para trás o tempo das festas comunitárias, chegaram os empresários que as converteram em festas para os outros. São separados os espectadores dos atores e é entregue a profissionais a organização dos divertimentos. Em vez dos encarregados ou administradores, um grupo de técnicos prepara o cenário, os alto-falantes, a iluminação, a colocação do espetáculo em cena. Os camponeses, os indígenas, os artesãos tor-nam-se parte deste espetáculo para turistas, devendo estilizar-se ou tornar-se um divertimento. Os turistas também são um espetáculo para os habitantes que "vão à praça" pela curiosidade de ver os estranhos, de ver algo estranho. Este jogo de observações do longín­quo pode acabar sendo no seu conjunto um show para espectadores ainda mais distantes: as fotos pelas quais os habitantes de Janitzio cobram para posar, o cinema e a televisão que nos últimos anos se incorporaram como parte " n a t u r a l " do dia dos mortos vêm fazen­do deste acontecimento, que as filosofias ocidentais consideram como o mais solitário do homem, um evento da comunicação de massa.

Deixar de perguntar sobre a morte "Uma viúva perguntou a um sacristão se era verdade que os mortos real­mente apareciam no dia dos mortos, pois queria esperar o seu marido. O sacristão lhe respondeu que o esperasse e que, enquanto isso, preparasse aguardante e outras coisas que ele gostava de comer. À noite, o sacristão diri-giu-se para a casa da viúva fazendo-se passar pelo defunto e pediu-lhe dinhei­ro e aguardante. Quando foi embora, já estava bêbado e deixou-se cair na rua. Na manhã seguinte a mulher saiu de casa e encontrou na rua o homem que acreditara ser o seu marido. 'És um maldito... Este homem me enganou.' Pegou um pedaço de pau e com ele golpeou o sacristão, que saiu correndo. Desde esse dia a mulher não faz mais perguntas a respeito dos mortos." '

65 Pedro Carrasco, op. cit., p. 148.

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Recolhemos vários contos que demonstram desconfiança ou clara incredulidade diante das crenças tradicionais e das instituições e pessoas que as representam, mas nenhum é tão paradigmático quanto este obtido por Pedro Carrasco na sua pesquisa entre os tarascos, que ele entretanto não chegou a analisar.

Qual é o ponto de partida do conto? " U m a viúva perguntou a um sacristão se era verdade que os mortos realmente apareciam no dia dos mortos, pois queria esperar o seu mar ido . " O relato come­ça com uma pergunta que expressa dúvida acerca das crenças tradi­cionais, A dúvida se refere à possibilidade de restaurar uma relação querida do passado. Ou seja, o conto se inicia com um duplo movi­mento: desejo de retorno a uma situação perdida e incredulidade sobre a reparação que o mito anuncia. A tensão entre estes movi­mentos — o passado e o futuro, o perdido e o prometido, a per­gunta crédula e a dúvida — resume as oscilações de um processo de transição com base no qual o relato é pronunciado.

No segundo momento, a autoridade religiosa garante a res­tauração desejada e coloca os requisitos para que esta se produza: " O sacristão lhe respondeu que o esperasse e que enquanto isto pre­parasse aguardante e outras coisas que ele gostava de comer" . Os requisitos referem-se a duas necessidades gerais (sede e fome) que, satisfeitas de um modo comum a qualquer membro da comunidade (aguardente e "as coisas que ele gostava de comer") , criam a ambi­guidade necessária para que possam corresponder ao marido ou ao sacerdote.

A terceira frase justifica a dúvida originária, desacredita a esperança e revela a causa do engano. " À noite, o sacristão dirigiu-se para a casa da viúva fazendo-se passar pelo defunto e pediu-lhe dinheiro e aguardante ." Existem duas mudanças entre as primeiras exigências rituais e o requerido no momento de cumpri-las: no segundo caso, o sacristão não pede comida, ou seja, desaparece o mais indispensável, a parte mais legítima da oferenda; em troca reclama, junto com a aguardente, dinheiro: a impostura é associa­da à exploração e ao alcoolismo. "Quando foi embora, já estava bêbado e deixou-se cair na r u a . "

A mulher o descobre quando "saiu de casa" (alcança o conhe­cimento com a saída do mundo doméstico) e xinga e golpeia o sacris­tão, que já não é mais nomeado pelo seu cargo religioso mas sim como um simples " h o m e m " . A conclusão não afirma que a mulher deixou de acreditar na Igreja, nos sacerdotes ou na mitologia fúne­bre. Com uma virada muito mais sugestiva, literariamente esplên-

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dida, afirma que "desde este dia a mulher não faz mais perguntas a respeito dos mor tos" . Não se trata apenas da perda de uma crença, mas sim de uma mudança radical na estrutura do pensamento: des­cobre quais são os assuntos sobre os quais não se deve perguntar para não ser enganado.

Mas quem são os mortos, o que é o morto sobre o qual não se deve perguntar? Se relacionamos este conto com as táticas de sobre­vivência e de especulação económica desenvolvidas na festividade, descobrimos que o fato concreto da morte física dos seres queridos pode ser encarado, como em qualquer cultura, como metáfora de outras perdas. O morto é o que desapareceu em nós mesmos e ao nosso redor, na sociedade que habitamos: pessoas, e também cos­tumes, relações sociais, objetos.

Diante da perda da crença no regresso dos mortos, e nas ofe­rendas para invocá-los, como consequência do "d inhe i ro" , os tarascos comercializam a sua celebração, "revivem" os ritos para se aproveitarem da economia monetária que os agride. Obviamente, não se trata de uma decisão originária, já que o começo da mercan-tilização das festas deve ser atribuída à iniciativa invasora da eco­nomia e da cultura capitalistas. Mas existe uma série de atos gera­dos pelo próprio povo, sobretudo em Janitzio, que contribui para comercializar a festa: colocação de postos de venda de comida e de bebida em toda a ilha, adaptação do seu artesanato e das cerimó­nias, a exigência de que sejam pagos para permitirem que os filmem e os fotografem.

A morte da crença na morte, conforme ela era entendida pelos antepassados, é transformada numa estratégia de vida, ou pelo menos de sobrevivência. Ainda que estas respostas sofram da ambi­valência de favorecerem os interesses do povo ao mesmo tempo que o subordinam a um regime económico que o explora. Este regime não apenas os domina e destrói de fora; mata a vida comunitária reproduzindo-se no seu interior, promovendo a acumulação de capital por parte de um pequeno setor privilegiado (comerciantes, donos de barcos, monopolizadores da pesca e do artesanato). Ao deixar de perguntar sobre a morte, não será necessário lançar uma outra pergunta: averiguar por que não deixam o povo transformar a morte em vida, por que uma parte do próprio povo se converte em destruidora da outra?

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A festa como subversão restrita As festas examinadas sintetizam, simbólica e materialmente,

as mudanças dos povos que as fazem. Representam o estado atual dos conflitos entre uma produção camponesa tradicional, que há não muito tempo foi uma economia de subsistência, centrada no núcleo doméstico, orientada pela lógica do valor de uso e a sua pro­gressiva inserção no mercado capitalista. O enfraquecimento das suas estruturas e das suas cerimónias antigas, a substituição, com­plementação ou refuncionalização através de agentes " m o d e r n o s " são dramatizados na hibridez da festa. As mudanças nas danças e na decoração, a sua convivência com espetáculos e diversões urba­nos, mostram as imposições dos dominadores, ao mesmo tempo que também são tentativas de reagir sobre elas, de vincular o pas­sado às contradições do presente.

Como um fenómeno global, que abrange todos os aspectos da vida social, a festa mostra o papel do económico, do político, do religioso e do estético no processo de transformação-continuidade da cultura popular. Temos visto que os rituais, a sua repetição, desa­parecimento e inovação podem ser lidos como esforços voltados para uma intervenção no processo de remodelação das suas estrutu­ras sociais, com o objetivo de manter uma regulação endógena da vida no povoado (Ocumicho) ou de reformá-la para que se integre à ordem externa (o mercado nacional e o turismo em Janitzio).

Existe, portanto, uma continuidade entre a festa e a vida coti­diana, entre o que nós, ocidentais, costumamos distinguir como o religioso e o profano. Os atos cerimoniais não devem ser separados dos cotidianos. Tanto nos povoados da serra (Patamban, Ocumi­cho) quanto em muitos povoados da região dos lagos (Ihuatzio, Tzintzuntzan), as imagens dos santos são guardadas com a mesma devoção nas igrejas e nas casas dos encarregados das festas e dos líderes dos bairros. " A população trata os deuses — observou R. A. M. van Zantwijk — quase do mesmo modo com que trata as pessoas proeminentes e influentes do seu ambiente social. Não exis­te diferença essencial entre o modo como saúdam um chefe, um notável ou um ancião e o modo como se dirigem aos santos: quan­do muito será uma diferença no grau de dignidade."66

A continuidade que verificamos existir entre o tempo do tra­balho e o da festa, entre os elementos cotidianos e os cerimoniais, o

R. A. M. van Zantwijk, op. cit., p. 165.

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6 - Demónio de Ocumicho. As cenas eróticas podem incluir demónios, animais, mulheres e policiais.

7 - Por que os demónios estão se olhando no espelho? O artesão me respondeu: "O espelho é a aparência. A gente se olha e existe. Tira-se o espelho e já não se está mais".

8 - Santa Ceia: os oleiros de Ocumicho começaram a fazê-la tempos depois dos demónios para atender a exigências de alguns sacerdotes e a pedidos de compradores.

9 - Somente os demónios podem pilotar estes aviões, cujo desenho revela tanto a liberdade imaginativa dos artesãos como a distância entre um aeroporto e esse povoado agricultor e oleiro escondido na serra michoacana.

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10 - Entrega de prémios no concurso de Patamban, outubro de 1980.

11 - Os caminhões do Fondo Nacional para o Fomento de las Artesanías (FONART) chegam a Patamban para transportar a cerâmica que será vendida nas lojas urbanas.

12 - Loja do FONART na cidade do México, colónia de San Angel. 13 - Artesanatos bilíngues.

14 e 15 - Vitrinas da loja do FONART. Os artesanatos com os cartões de crédito, entre a paisagem urbana.

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23 - A praça de Ocumicho: levando artesanato para a feira na festa de São Pedro e São Paulo.

24 - As bandas percorrem o 2b - Patamban na festa de povoado várias vezes durante a festa: Cristo-Rei, fotografada da roda acompanham as cerimónias principais gigante, e animam a vida cotidiana em cada bairro.

26 - A falta de água. 1 1

27 - ... explica a importância das latas na decoração.

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30 - Cálice e pombas: a iconografia cristã entre os tarascos.

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31 - As ruas são decoradas com serragem tingida e flores para que passe a procissão. 32 - Nas festas e feira dos povoados indígenas as cerâmicas que são vendidas recebem seu significado da interação com os artesanatos efémeros da decoração, com as mantas, com a vida familiar que é mostrada nos locais: o homem, a mulher e os filhos que fabricaram os objetos são também quem os vende e os anuncia.

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3 5 - M e d e i x a t i r a r u m a f o t o ? M e d e i x a t i r a r u m a f o t o ? M e d e i x a t i r a r u m a f o t o ?

3 6 - C o m o s g r a v a d o r e s e s c u t a n d o o c o n c u r s o d e p i r e k u a s e m P a t a m b a n .

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44 - Indígenas e turistas no panteão de Janitzio.

Nota: A maioria das fotos foi tirada por Lourdes Grobet. Pertencem a Ana Confino as fotos 6 a 10, 23 e 24, e a Gracia Imberton as fotos 6, 34 e 44.

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fato de que a organização da produção (familiar e por bairros) é mantida na preparação dos festejos, desqualifica toda oposição absoluta entre a festa e a existência diária. Isso leva-nos a suspeitar também da astúcia empregada pelas concepções dualistas para ma­nipular os dados de outras festas a fim de "legit imar" a separação que realizam entre as cerimónias e as condições materiais, rotinei­ras, que as engendram. Não encontramos nos casos analisados, nem em outras festas michoacanas — dos padroeiros, da Semana Santa, cívicas ou urbanas — a possibilidade de utilizarmos a ideia da festa como "fuga da temporalidade do cot idiano", ideia que levamos enquanto hipótese para a pesquisa de campo, impressiona­dos pela sua esmagadora reiteração na bibliografia.

Do que falam as festas? Não falam do Grande Tempo sagra­do, nem de mistérios religiosos, mas do plantio, da colheita e das chuvas, das necessidades comuns da alimentação e da saúde, da ordem que organiza os seus hábitos e as suas esperanças. Para que elas são feitas? Para manter esta ordem, restaurá-la ou para res-situarem-se no interior de uma ordem nova, conforme a descobrem — primeiramente — em suas práticas económicas: o crescimento ou o declínio dos produtos da terra, a venda do artesanato, o desem­prego, a migração. Fazem-nas também para consolidar as relações afetivas comunitárias, o pertencimento à comunidade dos que par­tiram e regressam para celebrar. Reinversão interna obrigatória do excedente económico, catarse controlada daquilo que não pode vir à tona no trabalho que é realizado em condições de opressão mas que é também regulado na sua irrupção festiva para que não preju­dique a coesão permanente: a festa não é a liberação desregrada dos instintos que tantos antropólogos e fenomenólogos imaginaram, mas um lugar e um tempo delimitados no qual os ricos devem financiar o prazer de todos e o prazer de todos é moderado pelo "interesse social". As paródias ao poder, o questionamento irreve­rente da ordem (mesmo nos carnavais) é consentido em espaços e momentos que não ameaçam o retorno posterior à "normal idade" . A descontinuidade e a excepcionalidade remetem ao cotidiano, são o reverso e a compensação do que lhes falta, mas dentro das nor­mas que estabelecem as autoridades rotineiras (encarregados, admi­nistradores, sacerdotes). Vimos em Janitzio, Patamban e outros povoados que o acontecimento extraordinário que esperam da festa é o volume de venda do artesanato e de comida, uma ocasião para a compra de produtos industriais e se divertirem com jogos mecâ­nicos que habitualmente não existem nas suas praças.

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Esta explicação social, materialista da festa não faz com que nos esqueçamos de que as cerimónias de origem indígena conti­nuam a incluir crenças sobre a relação com a natureza e com enti­dades transcendentais que não se deixam diluir nas determinações económicas atuais. Os ritos e danças pré-colombianos e algumas procissões católicas emergem de experiências histórias nas quais se construiu a identidade popular, representam — com ambiguidades — esta parte da cultura que não se entrega à espetacularização mer­cantil, que não confia nas promessas do mercado capitalista ou do turismo. Gilberto Gimenez observou, a propósito da peregrinação a Chalma, que a persistência de elementos comemorativos não-capitalistas revela um aspecto regressivo e utópico: a aspiração de revitalizar periodicamente a unidade comunitária perdida e a espe­rança de reconquistar uma vida auto-suficiente.67 Os procedimen­tos ambivalentes, contraditórios, através dos quais são combinados o presente com o passado e com o futuro permitem que festas dife­rentes, ou distintos setores sociais dentro de uma mesma festa, atri­buam a estas relações com o transcendental significados diversos: um ritual pode propiciar uma fuga ou ser libertador. Não existem danças ou cerimónias que sejam fatalmente narcotizantes ou con-testatórias; devemos analisar em cada caso particular o seu signifi­cado para os protagonistas e os espectadores, de acordo com o con­texto ou com a conjuntura. E acima de tudo devemos recordar — contra a redução do religioso ao meramente ideológico, que apenas enxerga o seu aspecto cognitivo, e portanto o seu caráter distorcivo — que as festas religiosas também possuem funções políticas e psicossociais: de coesão, resignação, catarse, expansão e reforço coletivo.

Num certo sentido, é evidente que a ideologia e o ritual reli­giosos separam os indivíduos do real e do presente. Os ritos fingem operar sobre a natureza e a sociedade, mas em verdade agem sobre as suas representações: a sua operacionalidade ao nível dos sím­bolos68 pode ser eficaz quando a causa do mal — como em algumas doenças — reside no psíquico ou no cultural, mas sabemos da sua inutilidade, do caráter ilusório do seu efeito, quando o que se pre­tende modificar é algo estritamente material, por exemplo, a falta de chuva. Também podemos dizer que o ritual religioso é um instru-

67 Gilberto Gimenez, op. cit., p. 161. 68 Alberto M. Cirese, op. cit., cap. sobre "El ceremonial: celebraciones, operacio-

nes, reproducciones".

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mento para ordenar e diferir: remete as necessidades insatisfeitas a lugares e tempos fictícios, regula a sua colocação em cena, a sua irrupção controlada, a sua sublimação disfarçada na dança, na procissão, nos jogos, mediante obrigações e regras. Entretanto, oferece uma ocasião para que algumas restrições cotidianas sejam levantadas, para que os corpos tomem consciência do seu poder lúdico e o expressem: o ritual mais rigoroso, sobretudo se é cole­tivo, serve à sociedade — como escreveu Roberto da Matta refe-rindo-se ao carnaval brasileiro — para que esta se abra a "uma visão alternativa de si mesma", para que possa "inventar um mundo novo através da dramatização da nossa realidade social".69 O fato de que na festa prevaleça a resignação ou a emergência do desejo dependerá das relações entre as forças repressivas e expressivas de cada sociedade.

Qual é o destino das crenças tradicionais que deram origem às festas? A secularização e a mercantilização das cerimónias é inver­samente proporcional ao grau com que uma sociedade se encontre integrada equilibradamente e tenha resolvido a problemática da satisfação das suas necessidades básicas. Por exemplo, os efeitos desintegradores do turismo sobre uma celebração indígena, a estru­tura familiar ou os hábitos cotidianos serão maiores onde o desem­prego leve vários habitantes do povoado a buscar trabalho fora ou a adaptar os seus produtos e padrões culturais a códigos externos a fim de obter o indispensável para subsistir.

A tendência predominante do capitalismo é a de reduzir ou anular a diferença entre festas participativas rurais e espetáculos mercantis urbanos, como uma outra consequência da subordinação do campo à cidade, da vida local ao mercado nacional e transna­cional. Ou melhor dizendo, conforme Michel Freitag e Marianne Mesnil: cada vez se pode distinguir menos o rural do urbano, as crenças e os hábitos, as formas de organização "auto-or ientadas" tradicionais, das formas dirigidas da cidade industrial, cujo centro de decisão excede a cada núcleo urbano. Vivemos num "sistema produtivo supra-urbano" , que substitui a oposição entre campo e cidade por um reordenamento económico, político e cultural homo­geneizado.70

69 Roberto da Matta, Carnavais, malandros e heróis — Para uma sociologia do dilema brasileiro, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1980, 2? ed., pp. 32-33.

70 Michel Freitag, "De la ville-societé a la ville-millieu", Sociologie et Societé, Les Presses de L'Université de Montreal, vol. Ill, n? 1, maio 1971, pp. 25-27. Marian-

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Entretanto, esta expansão capitalista supra-urbana, a sua necessidade de padronizar a produção e o consumo encontram limites na configuração específica de cada cultura e no interesse do próprio sistema em manter formas antigas de organização social e representação. Também com relação às festas percebemos que, por motivos económicos (conservar fontes complementares de empre­go, como o artesanato), políticas (utilizar o caciquismo ou outros mecanismos tradicionais do poder autoritário) ou ideológicas (asse­gurar a identidade nacional, manter "museus vivos" para atrair turistas), a cultura dominante preserva bolsões arcaicos refuncio-nalizando-os e recontextualizando-os.

O que é necessário para que a festa popular não se dissolva inteiramente num espetáculo, para que continue a ser centrada na vida comunitária, oferecendo um tempo e um espaço para a partici­pação coletiva? Pode ela ainda fortalecer a identidade cultural e contribuir para a reelaboração da coesão social? Isto é possível se o povo consegue fazer com que a expansão, o desfrute e os gastos da festa sejam realizados dentro dos marcos internos, ou ao menos não sejam subordinados aos interesses do grande capital comercial: se os membros do povoado conservam um papel destacado na orga­nização material e simbólica da festa, se asseguram através do siste­ma de encargos a reinversão do excedente económico no financia­mento das festas. Ou, em festas de repercussão nacional, como as dos grandes centros cerimoniais, se conquistam um lugar decisivo nas instituições governamentais, turísticas, artesanais que progra­mam estes eventos, sendo, então, capazes de controlar a penetração dos agentes externos. É óbvio afirmar que para conseguir tudo isto os povoados devem organizar-se, e organizar-se democraticamente. De outro modo, as companhias de refrigerantes e de cervejas, os comerciantes de produtos industriais e de diversões urbanas conti­nuarão arrebatando dos grupos indígenas — às vezes com a cumpli­cidade dos seus líderes locais — o espaço e o significado das suas festas, os lugares e os momentos que eles escolheram para a recor­dação ou para a alegria.

nc Mesnil, Trois essais sur la Fête — Du fotklore a Vethnosemioúque, Bruxelas, Cahiers cTÉtude de Sociologie Culturelle, 1974, pp. 12-13.

Conclusão: por uma cultura popular com minúscula A interpenetração das culturas e a definição do popular Afirmamos que quase tudo que é feito com o artesanato osci­

la entre o mercado e o museu, entre a comercialização e a conserva­ção. Mas num certo sentido, não existe nada mais diferente da vida cultural no capitalismo do que o museu. Houve um tempo em que a ordem das vitrinas, a colocação precisa e serena dos objetos corres­pondia ao que estava fora do museu. Nascidos na Europa para guardar as presas de guerra, os museus reproduziam nas suas clas­sificações a apropriação dos povos e dos seus objetos por parte da burguesia, expressavam os lugares que a eles eram destinados. Um rei ou um presidente podia passear pelas colónias como um turista pelas salas dos museus: naquela direção os países que produziam matérias-primas, nesta os que as manufaturavam. Os primeiros, fechados num vínculo familiar e cíclico com a natureza, não faziam mais que repetir mitos, festas e danças monótonas como ela; os oci­dentais, em troca, seduzidos pela expansão tecnológica e econó­mica, haviam feito da invenção o motor de uma cultura em cons­tante renovação e crescimento. Existiam missões educativas que procuravam transmitir a alguns poucos colonizados a cultura, os códigos "super iores" necessá ios para que os povos exóticos pudessem entender o seu lugar no mundo. Mas, esta maneira de pensar, simultaneamente benévola e pejorativa, reforçava a dife­rença. O gesto hierárquico do educador garantia que a cultura e a barbárie não se confundiriam. Cada uma na sua vitrina.

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O próprio crescimento do mercado pôs fim a esta ordem impe­cável. As classes dominantes, que excluíam as subalternas tanto da produção quanto do consumo de certos bens culturais, tiveram de modificar parcialmente a sua ideologia e as suas práticas: conti­nuam a excluir o povo do controle da produção, mas chegam a admitir o consumo de vários produtos culturais por parte de vastos setores da população para propiciar uma expansão das vendas. Deste modo substituem em povoados indígenas e mestiços os obje­tos artesanais pelos de fabricação industrial. A ascensão socio­económica e cultural das classes populares, as suas exigências de participação no consumo " m o d e r n o " convergem, num certo senti­do, com esta necessidade de avanço do mercado. Ainda que, como se sabe, são as lutas políticas e económicas das classes, etnias e nações oprimidas o que mais ameaça a ordem imposta.

A resposta do capitalismo tem sido incontáveis vezes a repres­são. Mas a réplica mais cotidiana e incisiva é a que trata de absor­ver as culturas populares, integrá-las, ressemantizar as suas mensa­gens e refuncionalizar os seus objetos. Nas lojas urbanas de artesa­nato, nos museus, na publicidade e no turismo, como pudemos ver, as representações e práticas subalternas são reestruturadas com a finalidade de se tornarem compatíveis, para que inclusive colabo­rem para o desenvolvimento do sistema hegemónico. Internaliza-se a cultura dominante nos hábitos populares, reduz-se o étnico ao típico, uniformizam-se as diversas estratégias de sobrevivência pos­tas em prática pelas classes oprimidas com a finalidade de subor­diná-las à organização transnacional do simbólico. Outras opera­ções muito sutis colaboram nesse processo: a necessidade de reno­var a demanda fez com que empresas industriais utilizassem dese­nhos indígenas, enquanto que os setores "nacional is tas" da bur­guesia e os artistas interessados na divulgação ou na temática popu­lares têm incorporado aos circuitos das elites mensagens das classes populares. O resultado é um cruzamento, uma interpenetração de objetos e sistemas simbólicos.

O estudo que realizamos enfocando estes movimentos de importação e de interação entre culturas, de surgimento de forma­ções culturais mistas, confirmou a dificuldade que foi assinalada no início deste trabalho de se definir o popular por certas proprie­dades que lhe seriam intrínsecas: o artesanato se definiria pela sua produção manual, as festas pela sua cerimonialidade, a cultura popular, enfim, pela sua origem camponesa, indígena ou "tradicio­na l" . Como observamos por várias vezes, todas estas designações

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— bem como a caracterização de algo como folclórico — nasceram nas sociedades industriais, fazem parte do eurocentrismo classifica­tório, que quer sempre submeter o real à prolixidade classificatória do museu.

Portanto, o popular não deve por nós ser apontado como um conjunto de objetos (peças de artesanato ou danças indígenas) mas sim como uma posição e uma prática. Ele não pode ser fixado num tipo particular de produtos ou mensagens, porque o sentido de ambos é constantemente alterado pelos conflitos sociais. Nenhum objeto tem o seu caráter popular garantido para sempre porque foi produzido pelo povo ou porque este o consome com avidez; o senti­do e o valor populares vão sendo conquistados nas relações sociais. É o uso e não a origem, a posição e a capacidade de suscitar práti­cas ou representações populares, que confere essa identidade.

Do mesmo modo, o artesanato, que numa certa época podia ser identificado pelo modo como era produzido (antes da Revolu­ção Industrial tudo era feito de modo artesanal) hoje precisa incluir na sua caracterização o processo social por onde circula, desde a sua produção até o consumo. Em parte, o artesanal segue desig­nando um modo de se utilizarem os instrumentos de trabalho, mas o seu sentido também é construído na recepção, por intermédio de uma série de traços que são atribuídos aos objetos — antiguidade, primitivismo etc. — apesar de que tenham sido fabricados com o emprego de tecnologia industrial.

Arte popular, arte kitsch ou cultura popular? Alguns autores pretenderam libertar-se destas incertezas,

empregando o termo arte popular. Esta designação, que inclui sem­pre uma boa dose de romantismo, isola um aspecto da produção de algumas peças — a criatividade — e tenta convertê-lo no critério específico para definir e valorizar o indígena. Quase todos os que efetuam este recorte contrabandeiam para o campo do popular o conceito de arte surgido no interior das estéticas ocidentais dos últi­mos quatro séculos: um conceito baseado no predomínio da forma sobre a função e na autonomia dos objetos. É lógico que para eles muitas peças de artesanato rústicas, mal-acabadas, que circulam no consumo popular não mereçam o nome de arte. Se conseguíssemos libertar o conceito de arte da sua carga elitista e eurocêntrica, se o estendêssemos às formas estéticas não-ocidentais, por exemplo, as

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indígenas, poderíamos incluir sob o nome de arte manifestações que trabalham de outro modo as relações sensíveis e imaginárias dos homens com os outros homens e com o seu meio.71

Enquanto não realizarmos isso, nossas conceptualizações da arte popular forçarão os objetos a se enquadrarem em classificações estranhas ao seu sentido, e subestimarão muitos dentre eles, por não serem "museificáveis", incluindo-os no confuso reino do kitsch. Sob essa palavra, sem equivalente entre nós, através da qual somos nomeados a partir de uma das línguas da dominação, incluem-se objetos comuns ou "inúteis" revestidos com um banho artístico, peças de artesanato de acabamento descuidado ou iconografia e cores que chocam nossa sensibilidade cultivada, e as muitas utiliza­ções atípicas ou as cópias que as classes populares fazem dos bens da grande Cultura. Esta noção, que não sem motivo nasceu em Munique por volta de 1860, simultaneamente com uma certa expan­são do bem-estar burguês, devido ao surgimento de técnicas mecâ­nicas de reprodução em larga escala, serve como preservação, como alfândega do " b o m gos to" . O sistema hegemónico que necessita expandir-se económica e ideologicamente, que precisa responder aos reclamos do consumo popular com versões acessíveis e comerciais dos bens e símbolos enaltecidos pela burguesia, teve de se defender afirmando serem falsos os gostos, as maneiras daqueles que preten­dem compartilhar dos seus privilégios. "Arte e kitsch são dois ter­mos necessários e interdependentes no plano económico e concei­tua i " ... " A inacessibilidade das 'essências' artísticas se mede pela quantidade de imitações que suscitam. Eis aqui por que é necessá­rio o kitsch, a noção de kitsch: quanto mais este seja abundante mais brilhará a autenticidade da 'ar te ' ; quanto mais divulgado, mais ressaltará o caráter aristocrático do possuidor da ' a r te ' . " 7 2

Outra das causas da existência, na América Latina, do que é considerado como kitsch é a exigência comercial de se produzir desenhos pré-colombianos que estejam adaptados aos padrões esté­ticos modernos, ou, para ser mais preciso, dos setores médios. Assim foi-se expandindo o que Alberto Beltran denominou "ar te

Duas valiosas tentativas nesta direção: o artigo de Roberto Diaz Castillo, "Lo esencial en el concepto de arte popular". Cuadernos Universitários, Universidad de San Carlos de Guatemala, n? 7, março-abril de 1980; e o de Mirko Lauer, "La mutación andina", em Soeiedady Política, n? 8, Lima, fev. 1930. Juan Antonio Ramirez, Médios de masas e historia dei arte, Madri, Ediciones Cátedra, 1976, p. 265.

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neo-pré-hispânica". Neo e pré: a ironia, mais que um jogo linguís­tico, emerge das contradições reais que a especulação mercantil gera na produção artesanal. O kitsch não se localiza precisamente nos objetos; é o estilo pelo qual o mercado se relaciona com o popu­lar. A paródia não reside nas peças (os usuários populares e os da pequena-burguesia as colocam em suas casas seriamente convenci­dos da sua beleza); a paródia ou o grotesco surge como efeito de um tipo particular de recepção, é colocado pelas classes dominantes para criar uma distância do que elas mesmas engrendraram.

A fim de rompermos esta opção entre arte e kitsch, devemos reivindicar a cultura popular, as produções mais diversas e os seus usos mais heterodoxos. Não proporemos uma reivindicação esté­tica indiscriminada, como o populismo, que considera como bom e belo tudo que vem do povo simplesmente porque ele o faz, e esque­ce que vários dos seus objetos, práticas e gostos são versões de segunda mão da cultura que o oprime. Estamos falando de uma reinvidicação científica e política, de abolir os critérios de classifi­cação estabelecidos de modo prepotente pelas histórias da arte, pelas estéticas e pelo folclore, abrir estas disciplinas a um estudo crítico, despojado de preconceitos, dos gostos e dos usos populares conforme a sua representatividade e o seu valor social.

Se preferimos falar de cultura e não de arte popular é porque as realizações do povo não nos interessam principalmente pela sua beleza, sua criatividade ou sua autenticidade, mas pelo que Cirese chama de "sua representatividade sócio-cultural", ou seja, pelo fato de que indicam os modos e formas através dos quais certas classes sociais têm vivenciado o processo cultural em relação com as suas condições de existência reais enquanto classes subalternas.73 Mas para que esta definição científica não seja entendida de modo estático, como uma mera referência às "condições (objetivas) de existência", embora eu saiba que não foi esta a intenção de Cirese, parece-me útil pedir a Brecht que nos acrescente a sua caracteriza­ção política: "Popula r é o que as grandes massas compreendem/o que documenta e enriquece a sua forma de expressão/é o que incor­pora e reafirma o seu ponto de vista/é aquilo que é tão representa­tivo da parte mais progressista do seu povo, que pode se encarregar da sua direção e tornar-se também compreensível para os demais setores do povo/é o que, partindo da tradição, a leva adiante/o que

Alberto M. Cirese, op. cit., p. 56.

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transmite ao setor do povo que aspira ao poder/as conquistas do setor que presentemente o sustenta".74

Para que uma obra ou um objeto sejam populares não impor­ta tanto o seu lugar de nascimento (uma comunidade iridígena ou uma escola de música) nem a presença ou a ausência de signos fol­clóricos (a rusticidade ou a imagem de um deus pré-colombiano), mas a utilização que os setores populares fazem deles. Afirmemo-lo de modo paradoxal: a louça de Tlaquepaque, em Guadalajara, pro­duzida por artesãos jaliscenses a partir de desenhos arcaicos, mas em oficinas de empresários norte-americanos, e se submetendo às suas adaptações estilísticas e perdendo na venda para os turistas o controle económico e simbólico do produto, não é arte popular. Em troca, uma obra de Goya, trabalhada pelos camponeses indíge­nas e mestiços de Aranza, em Michoacán, com o apoio de artistas da Oficina de Investigação Plástica de Morelia, para realizar um mural que coloca os problemas da comunidade desde a sua perspec­tiva, é arte popular.

Políticas culturais e autogestão: fundamentos e contradições Esta maneira de conceber o popular ajuda a tornar mais pre­

ciso o sentido que devem ter as políticas culturais que tentam pro­movê-lo. Se o popular não se define pela sua beleza ou autentici­dade, o que ele precisa — de modo prioritário — não é que se cul­tive a sua dignidade artística ou se preserve a sua autenticidade (que também é valiosa). Já criticamos esta concepção romântica, con­servadora, que enxerga apenas a questão cultural, ou meramente estética, e se consagra a vigiar as tradições, embalsamando os dese­nhos, as técnicas e as relações sociais diante das quais alguma vez os indígenas se reconheceram.

Tampouco aceitamos a posição oposta, o tecnocratismo desen­volvimentista: rumando velozmente em direção ao que imagina como um excelente futuro, propõe a modernização da produção e do desenho do artesanato, ou simplesmente a sua abolição e a incor­poração dos indígenas na produção industrial. Quanto às festas, procura readaptá-las aos hábitos estéticos e recreativos do turismo,

74 Bertold Brecht, Escritos sobre teatro, Buenos Aires, Nueva Vision, 1973, tomo 2, p. 63.

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transformando-as em espetáculos de massa ou então substituindo-as por jogos mecânicos e bailes modernos. Da oficina doméstica à fábrica, da venda desvalorizada dos seus produtos no mercado camponês à venda desvalorizada na exportação ou na loja urbana, a exploração apenas muda de cenário. Há uma esmagadora despro­porção entre os lucros que a modernização pode propiciar aos pro­dutores e a perda cultural que sofrem em termos da organização familiar do trabalho, da propriedade comunal da terra e de outros suportes da sua identidade. A promessa desenvolvimentista de me­lhorar a condição dos artesãos tornando-os assalariados ou ofere-cendo-lhes um novo papel subordinado dentro de outro tipo de exploração, é uma variação pouco imaginativa de antigas mano­bras semelhantes, cujo caráter ilusório permitiria que fosse incluída junto com as que Borges ironizou em sua Historia universal de la infâmia: " E m 1517 o Padre Bartolome de las Casas teve muita pena dos índios que se esgotavam nos laboriosos infernos das minas de ouro antilhanas, e, propôs ao imperador Carlos V a importação de negros, que se esgotaram nos laboriosos infernos das minas de ouro anti lhanas".7 3

Se o quadro de opções parece resumir-se às "soluções" con­servadoras ou tecnocráticas é porque ambas são faces de um mes­mo sistema. Esta bifurcação nas políticas culturais corresponde, até certo ponto, a estratégias de diferentes setores da burguesia. A fração industrial que busca o crescimento económico mediante o desenvolvimento tecnológico considera o artesanato um obstáculo a ser erradicado, um resíduo de formas de produção pré-capita-listas. A fração agrícola e essa parte da burguesia comercial que especula com a produção dos camponeses servem de intermediá­rias para os artesãos ou se beneficiam com o turismo, confiam na expansão dos recursos tradicionais para acumular capital: desta­cam, por isso, o papel ideológico, folclórico, das culturas popula­res, insistem em conservar os seus produtos e as suas festas para proporcionar aos camponeses uma fonte de renda complementar e aos turistas, atrações exóticas.

Além das críticas políticas que estas posições merecem, deve­mos expressar as suas aberrações conceituais. Tanto os que tentam proteger e conservar a independência das formas autóctones como os que apenas buscam a tecnificação da produção e a absorção pelo 75 Jorge Luis Borges, "Historia universal de la infâmia", in Obras Completas,

Buenos Aires, Emecé, 1974, p. 295.

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mercado capitalista do artesanato incorrem no erro de separar o económico do simbólico. Nenhuma solução que leve em conta ape­nas um destes níveis será capaz de resolver os conflitos atuais da identidade e a subsistência das classes populares.

Não será suficiente para os artesãos uma política que se redu­za a preservar a tradição cultural (haja vista o êxodo dos jovens e a persistente miséria daqueles que permanecem em povoados inalte­rados) nem a mera incorporação económica ao mercado e ao con­sumo capitalistas (pensemos nos artesãos convertidos em assalaria­dos de ernpresários que descaracterizam os seus padrões culturais para torná-los competitivos em troca de salários medíocres). Se entendemos que na motivação para produzir artesanato reúnem-se a continuidade de uma tradição cultural e a urgência em completar os baixos rendimentos obtidos no campo, torna-se claro que a crise artesanal não pode ser solucionada de modo separado do resto da problemática agrária.

Por outro lado, ao recordarmos que os materiais e as técnicas rudimentares que muitos consideram como essenciais ao artesanato surgiram da adaptação ao meio ambiente natural e a formas ante­riores de organização social, não vemos porque esses materiais e essas técnicas não podem readaptar-se às novas condições económi­cas e culturais de migrantes que se aglomeram ao redor das capitais ou que moram em povoados camponeses que se transformaram. Não é consequente com estas mudanças que os materiais, procedi­mentos e desenhos sejam reformulados em função dos recursos e estímulos atuais, e também que muitos deixem de produzir artesa­nato para incorporar-se em outras atividades produtivas que lhes permitam viver melhor?

Perguntas tais como: o que é hoje em dia o artesanato? o que é a cultura popular? são inseparáveis de outras: por que continuar a produzi-las? Para quem? Sem sombra de dúvida, são problemas que dizem respeito ao Estado, à sociedade em seu todo, e se mistu­ram com os problemas da balança de pagamentos, com o cálculo económico necessário numa sociedade planificada, com o sentido global do desenvolvimento económico. Mas os primeiros que devem opinar são os artesãos, os dançarinos, os trabalhadores populares da cultura, porque não se trata apenas de uma questão macroeco­nómica. Nela são postas em jogo formas domésticas e cooperativas da pequena produção, a identidade cultural, um estilo de vida, que ainda não sabemos com clareza em nome de que vantagens exclusi­vas da grande indústria devem ser extintos. Sem prejudicar o reco-

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nhecimento da importância dos problemas teóricos e de política económica e cultural global que viemos discutindo, a resposta à indagação do que o artesanato deve ser hoje cabe antes de tudo aos produtores. O que deve ser resolvido em primeiro lugar não é saber se é conveniente preservar as formas tradicionais mesmo que isso os mantenha na miséria, sofisticar os procedimentos e melhorar as suas qualidades para competir com a indústria ou transportar os seus desenhos tradicionais para objetos fabricados com tecnologia recente. A decisão fundamental é permitir uma participação demo­crática e crítica aos próprios artesãos, criar condições para que estes a exerçam. Uma política cultural que pretenda servir às classes populares deve partir de uma resposta insuspeita a esta pergunta: o que é que se deve defender: o artesanato ou os artesãos?

Permitir uma participação democrática e criar condições para que esta possa ser exercida: destaquemos a importância de se com­binar ambos os aspectos. Limitar-se ao mero questionamento do sistema económico e político global, da sua dominação hierárquica frequentemente leva ao populismo. Para que exista uma cultura popular não é suficiente desbloquear os canais de participação cole-tiva, como se existissem massas não contaminadas às quais só bas­tassem que fossem retiradas grades, externas a elas, para que se manifestassem livremente. O pensamento e a prática do povo tam­bém têm sido modelados pela cultura dominante (não apenas os intelectuais e os burgueses estão "ideologizados"), com o agravante de que o seu secular alheamento da educação e dos centros de poder tem privado o povo de instrumentos indispensáveis para a com­preensão do sistema que o oprime e para que ele possa mudá-lo.

Como é possível que os artesãos, na sua grande parte analfa­betos, camponeses com escassa ou nula experiência em questões macroeconómicas ou interculturais possam elaborar posições pró­prias a respeito dos seus problemas sem que conheçam melhor a situação do seu trabalho no conjunto da produção, e da sua etnia e classe na sociedade nacional? Existe, apesar de tudo, uma renovada tomada de consciência, um pensamento crítico por parte dos indí­genas e de outros setores populares, mas a opressão os obriga a desenvolver-se no isolamento, na atomização e na marginalidade. A imensa maioria dos produtores que se deslocam até os mercados urbanos busca apenas converter o seu trabalho em dinheiro para poder adquirir mercadorias que têm um valor de uso para ele e para a sua família; mesmo nos artesãos que se aglutinam em cooperati­vas ou que se relacionam com o Estado aparece de modo claro que

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o seu pensamento e as suas práticas estão organizados em função da subsistência, das relações de reciprocidade não-lucrativa e das "relações de amizade",7 6 predominantes no universo indígena. Raramente se colocam as tarefas necessárias para combater o siste­ma ou simplesmente para acumular capital. Com isto delegam para os organismos estatais e para os intermediários privados a criação do "valor progressivo" e o controle do mercado. Por certo existem causas económicas e políticas objetivas que entravam a participa­ção dos artesãos e dos camponeses, mas também existe uma aceita­ção mais ou menos submissa, o hábito de se pensar apenas nos objetivos pragmáticos imediatos da sua produção no interior do horizonte exíguo do seu povoado.

Muitos fatos encontrados na pesquisa de campo podem ilus­trar de que modo o sistema capitalista reproduz nas etnias que ele subordina as suas formas de concorrência e isola os indígenas num lugar marginalizado para reassegurar, dentre outras coisas, a sua ignorância das leis que os aprisionam. Escolho dois exemplos. A única tentativa que conheci de fazer com que um artesão partici­passe do júri de um concurso foi em outubro de 1980, em um con­curso organizado pelo FONART e o INI em Patamban. A artesã que foi convidada, líder do seu povoado e uma das que possuíam melhor qualidade, contou-me que havia renunciado antes que o júri se reunisse, por não aguentar as pressões dos seus vizinhos. Alguns deixaram de comprimentá-la e outros a agrediram porque ela não se comprometia a dar-lhes algum prémio. As difíceis condi­ções da concorrência, que mostram até que ponto um povoado escondido na serra reproduz o estilo capitalista de lutar pelo lucro e pelo prestígio, não podem ser resolvidas facilitando uma participa­ção ocasional dos produtores nos órgãos de decisão.

A outra história ocorreu quando um artesão de tule de Ihuat­zio contou-me que havia começado a tecer aviões nesse povoado formado por casas de tijolo cru, desde que o levaram a Londres por um mês, para uma exposição organizada pelo governo mexicano. " O que achaste de Londres?" " N ã o sei. Não vi nada. Como fazia muito frio, passei todo o mês sentado ao lado do fogo, trabalhan­d o " . Até certo ponto é lógico: o que pode lhe interessar numa gran-

76 Cf. o livro de Ina R. Dinerman, Los tarascos: campesinos y artesanos de Michoa­cán, op. cit., cujo sexto capítulo oferece uma informação bem documentada e elaborada a respeito das incompatibilidades entre as relações sociais indígenas e as do capitalismo.

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de cidade que é estranha, a um tarasco que durante setenta anos não saiu das margens do lago de Pátzcuaro? Mas também podemos perguntar como é que alguém pode conseguir estruturar uma alter­nativa consistente às estratégias oficiais, situar criticamente as suas reivindicações étnicas no interior do desenvolvimento capitalista para o qual trabalha, se não se interessa em ver Londres, nem a Cidade do México, em entender como funcionam os centros de poder.

Não haverá políticas culturais realmente populares enquanto os produtores não tiverem um papel de protagonista, e este papel não se realizará senão como consequência de uma democratização radical da sociedade civil. As tarefas necessárias excedem a um sim­ples " resga te" das estruturas coletivas e das tradições indígenas ou a um tíbio respeito à autonomia étnica ou mesmo ao desenvolvi­mento de cooperativas ou de lutas locais. Para que estes esforços não afundem na ineficácia nem sejam absorvidos pelo regime hege­mónico como uma engrenagem a mais da sua reprodução, devem transcender as reivindicações económicas ou étnicas isoladas, que devem ser aglutinadas, criando-se uma coordenação das lutas de cada grupo através de organismos políticos interétnicos: federações nacionais, e também internacionais, que sejam capazes de multi­plicar a sua força e atribuir às suas conquistas uma dimensão ade­quada aos programas multinacionais do capitalismo. Mas como a opressão sofrida pelos índios é compartilhada, de várias maneiras, pelos demais setores populares, e como o poder étnico isoladamente não conseguirá transformar o sistema global, as lutas indígenas necessitam ser articuladas com as organizações representativas dos operários, dos camponeses, e de todos os setores subalternos. Isto significa que os grupos étnicos, a partir de uma adequada caracteri­zação da sua dominação, devem atribuir um sentido anticapitalista (e não simplesmente anticolonialista) a suas lutas, e que os parti­dos políticos e os movimentos sindicais devem reconhecer na opres­são étnica e nos conflitos culturais o seu caráter de problemas espe­cíficos, caráter que frequentemente é descuidado.

O fracasso de tantos grupos cooperativos porque os seus membros agem com hábitos económicos e ideológicos que são opostos à sua finalidade, o fato de que muitos dos que trabalham de forma associada não se encontram em melhor situação do que 01 que o fazem de forma individual, bem como o caráter pequem 1111 modificações alcançadas pelos organismos estatais em termoi do conjunto da produção artesanal (mesmo no México, que i 0 pil

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latino-americano de maior iniciativa e de investimentos neste setor), demonstram o quão difícil é escapar das contradições impos­tas ao artesanato quando se permanece dentro da lógica capitalista. Isso não quer dizer que se deve esperar a chegada de outro sistema para que se possa encarar os conflitos. Pelo contrário, assim como a produção do artesanato é uma das áreas que exibem com maior clareza as contradições do processo social e dos próprios setores populares, também pode ser um campo propício para se ensaiar formas de socialização, e para se enfrentar de modo firme o que deve morrer, o que pode ser recuperado através da sua transforma­ção e o que deve ser inventado para se edificar uma nova cultura.

A conclusão não pode ser outra: o futuro das culturas popu­lares depende do conjunto da sociedade. Necessitamos que os arte­sãos participem, critiquem e se organizem, que redefinam a sua produção e o seu modo de relacionar-se com o mercado e com os consumidores; mas também precisamos que se forme um novo público, um novo turismo, um outro modo de exercer o gosto e de pensar a cultura. Necessitamos de uma modificação sistemática de todos os meios de produção, circulação e consumo cultural. Deve­mos reorganizar as instituições de promoção e de difusão artística e artesanal, construir outra história da arte e outra teoria da cultura, outras escolas e outros veículos de comunicação, a fim de que os processos culturais que se encontram fechados nas vitrinas da Arte sejam recolocados na vegetação de fatos e mensagens no meio dos quais aprenderemos a pensar e a sentir. Mas esta reorganização do campo cultural só poderá ser realizada de modo cabal numa socie­dade que não se baseie mais na exploração mercantil dos homens e das suas obras. Ou ao menos, onde se lute para construí-las. Se conseguirmos que o artesanato, as danças, as festas contribuam para alcançá-las, se conseguirmos que se misturem com as lutas comuns da vida rural e urbana, teremos o orgulho de poder escre­ver a cultura com letra minúscula. Será o único modo de não conti­nuarmos escrevendo-a entre aspas.

é

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