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ISSN 1981-1225 Dossiê Foucault N. 3 – dezembro 2006/março 2007 Organização: Margareth Rago & Adilton Luís Martins 1 Caminhos do Esclarecimento: Genealogia do ethos moderno como projeto filosófico em Foucault Paths to Enlightenment: Genealogy of modern Ethos as philosophical task in Foucault Fabiano de Lemos Britto Doutorando em Ética e Filosofia Política – UERJ Correio eletrônico: [email protected] Resumo: A conferência “Qu’est-ce que la Critique? [Critique et Aufklärung]” pronunciada por Michel Foucault diante da Sociedade Francesa de Filosofia em 27 de maio de 1978, trata da leitura que Foucault faz do artigo de Kant “Resposta à pergunta: que é a Aufklärung?”, de 1784. Contudo, em um segundo momento, Foucault se volta sobre seu próprio trabalho, traçando os limites e os procedimentos daquele que poderia ser entendido como um projeto geral de seu pensamento. Tentamos indicar como esses dois momentos estão conectados, ou seja, como a leitura que Foucault faz da Aufklärung faz surgir uma nova dimensão na sua leitura de Kant e da modernidade, uma dimensão ética que, ao mesmo tempo, o aproximaria de certos conceitos articulados pela crítica kantiana, permitiria uma inscrição de seu próprio trabalho na modernidade, e levaria a uma abordagem retrospectiva mais ampla de suas próprias pesquisas. Palavras-chave: Foucault – Kant – Esclarecimento. Abstract: The lecture “Qu’est-ce que la Critique? [Critique et Aufklärung]”, read by Foucault to the French Philosophy Society in May 27 th 1978, stands on the interpretation that Foucault does of the Kant’s 1784 article “Answer to the question:

Caminhos Do Esclarecimento

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ISSN 1981-1225 Dossiê Foucault N. 3 – dezembro 2006/março 2007 Organização: Margareth Rago & Adilton Luís Martins

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Caminhos do Esclarecimento: Genealogia do ethos moderno como projeto filosófico

em Foucault

Paths to Enlightenment: Genealogy of modern Ethos as philosophical task in

Foucault

Fabiano de Lemos Britto Doutorando em Ética e Filosofia Política – UERJ

Correio eletrônico: [email protected]

Resumo: A conferência “Qu’est-ce que la Critique? [Critique et Aufklärung]”

pronunciada por Michel Foucault diante da Sociedade Francesa de Filosofia em 27 de

maio de 1978, trata da leitura que Foucault faz do artigo de Kant “Resposta à

pergunta: que é a Aufklärung?”, de 1784. Contudo, em um segundo momento,

Foucault se volta sobre seu próprio trabalho, traçando os limites e os procedimentos

daquele que poderia ser entendido como um projeto geral de seu pensamento.

Tentamos indicar como esses dois momentos estão conectados, ou seja, como a leitura

que Foucault faz da Aufklärung faz surgir uma nova dimensão na sua leitura de Kant e

da modernidade, uma dimensão ética que, ao mesmo tempo, o aproximaria de certos

conceitos articulados pela crítica kantiana, permitiria uma inscrição de seu próprio

trabalho na modernidade, e levaria a uma abordagem retrospectiva mais ampla de

suas próprias pesquisas.

Palavras-chave: Foucault – Kant – Esclarecimento.

Abstract: The lecture “Qu’est-ce que la Critique? [Critique et Aufklärung]”, read by

Foucault to the French Philosophy Society in May 27th 1978, stands on the

interpretation that Foucault does of the Kant’s 1784 article “Answer to the question:

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What is Enlightenment?”. However, after that, Foucault turns the spot onto his own

work, designing the limits and proceedings of what could be understood as a general

project for his thought. We try to indicate how these two moments are connected, i. e.,

how Foucault’s interpretation of Aufklärung makes come out a new dimension in his

interpretation of Kant and of modernity, an ethical dimension that would, at once, get

him closer of certain concepts articulated by the kantian critique and would lead him to

a wider retrospective approach of his own researches.

Key-words: Foucault – Kant – Enlightenment.

No dia 4 de janeiro de 1978, Michel Foucault abre seu curso anual no

Collège de France, que recebe dessa vez o título geral Securité –

territoire – population. Desde as primeiras aulas fica claro que um

movimento novo está sendo feito: surge o problema da

governamentalização, onde a leitura dos opúsculos sobre história de

Kant ocupa um papel fundamental. Paralelamente, Foucault estreita os

laços com Paul Veyne e suas pesquisas sobre a Antiguidade, o que o faz

repensar todo seu projeto de uma Histoire de la sexualité a partir de um

retorno mais profundo aos gregos e aos romanos. Retorno que abrirá

uma dimensão inédita em seus trabalhos, que até então haviam se

mantido nos limites históricos da formação de nossa modernidade,

recuando, no máximo, até o Renascimento, como, por exemplo, em Les

mots et les choses (cf. Foucault, 1966: cap. II). Por outro lado,

podemos também notar uma acentuada preocupação metodológica

recorrente nos artigos e entrevistas de Foucault a partir de fins dos anos

setenta, e até o fim de sua vida. Não que Foucault não tenha tido essa

preocupação antes: de fato, cada novo trabalho era uma oportunidade

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para reposicionar o anterior, para modular os resultados de pesquisas

antecedentes em relação aos novos resultados, estabelecendo entre

estes e aqueles nexos de continuidade que permitiriam observar a

trajetória de um projeto em curso. O que ocorre, contudo, a partir dos

últimos anos da década de setenta é uma avaliação mais geral, uma

leitura mais ampla sobre quais seriam, afinal, os elementos básicos, as

pressuposições fundamentais, os objetos, os procedimentos específicos

desse projeto arqueológico-genealógico que Foucault começara a

empreender desde a década de sessenta. A governamentalização, o

retorno aos antigos, a preocupação com o projeto geral: esses três

problemas não apenas convivem paralelamente em um mesmo período,

eles estão profundamente imbricados no que poderia ser considerado

um momento novo na trajetória de Foucault. Não no sentido de um

desvio, de uma mudança radical, mas, ao contrário, como o momento

em que o conjunto das pesquisas se abre como que por inteiro; como

resultado, poderíamos dizer, mais geral de uma longa trajetória. O ano

de 1978 marca, se não o início, ao menos o ponto exemplar desse novo

movimento.

Tal leitura torna impossível o estabelecimento de fases na trajetória

de Foucault. A fase tenta encontrar o retrato estagnado de uma

pesquisa que não pára de se movimentar, e para a qual o movimento é

condição sine qua non. Falar de uma fase arqueológica, de uma fase

genealógica, de uma fase hermenêutica ou ética em Foucault seria

ignorar os nexos de continuidade que tornam a arqueologia-genealogia

um projeto móvel; seria, enfim, perverter a idéia de movimento que

subjaz ao conceito de ruptura em nome de uma demarcação redutora

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dos objetos dentro de um determinado período. André Queiroz aponta

muito explicitamente o risco desse equívoco:

Não compreender a dança das cartografias é se deixar enganar pela rigidez dos traços, dos mapas, das fases. Com o risco de nos perdermos de Foucault e de seus movimentos. O que seria, em última instância, esquecermos de seus impasses, suas curvas, seus riscos e, mesmo, seus paradoxos, para trazê-lo “congelado” em uma imagem que, sob qualquer aspecto, jamais poderá ser, ao menos, um ícone de Michel Foucault (Queiroz, 1999: 25).

Nesse sentido, os últimos textos de Foucault são imprescindíveis

para dissolver esse tipo de leitura. Entre eles, a conferência pronunciada

diante da Sociedade Francesa de Filosofia em 27 de maio de 1978, com

o título Qu’est-ce que la critique [Critique et Aufklärung], articula de

modo bastante conciso os problemas-chave desse período. A partir de

uma leitura que Foucault faz do texto de Kant ”Resposta à pergunta: o

que é Esclarecimento?” as relações entre esses problemas vão sendo

analisados com uma clareza difícil de encontrar em outro texto de

Foucault. Desse artigo de Kant, Beantwortung der Frage: Was ist

Aufklärung?, publicado originalmente em 12 de dezembro de 1783 no

jornal Berlinische Monatsschrift, além do original, Foucault consultava

constantemente a tradução de S. Piobetta reunida em Opuscules

historiques, publicada em 1947 pela editora Aubier Texto, portanto,

fundamental para uma leitura do trabalho de Foucault como projeto.

Paradoxalmente, a conferência permanece muito pouco conhecida. Não

foi incluída na cuidadosa e exaustiva edição dos Dits et écrits organizada

por François Ewald e Daniel Defert em 1994 já que não havia recebido o

imprimatur de Foucault, que, em testamento, havia proibido qualquer

publicação póstuma não autorizada. Mesmo a brecha que os editores

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encontraram para a publicação dos cursos de Foucault no Collège de

France e de certas comunicações suas – que assume que sua palavra

proferida publicamente não deixa de carregar em si uma autorização

desses textos – não impediu que a única edição francesa dessa

conferência tenha sido publicada num veículo de pequena circulação, de

difícil acesso: o Bulletin de la Societé Française de Phiosophie. De fato, o

Bulletin publicara em junho de 1990 – portanto, mais de dez anos

depois de sua leitura – o texto integral dessa conferência e do debate

que a seguiu. Contudo, e, mais uma vez, apesar de sua importância, o

destino desse texto não encontrou ainda sua amplitude: as traduções

que existem – para o inglês, o italiano, o alemão e o castelhano – são

todas parciais, se não fragmentadas, e em alguns casos – como na

versão espanhola – publicadas igualmente em veículos praticamente

inacessíveis. Assim, embora alguns estudiosos das pesquisas de

Foucault tenham recentemente reconhecido a relevância desse texto –

como é o caso, por exemplo, de Mariapaola Fimiani - notadamente em

Foucault et Kant, publicado em 1999 - e de Fréderic Gros - pode-se

dizer que ele permanece relativamente desconhecido.

Uma primeira aproximação de Qu’est-ce que la critique? apresenta

ainda outra grande dificuldade: trata-se, aparentemente, de um texto

muito heterogêneo, onde as observações de Foucault em torno de Kant,

da Aufklärung e da governamentalização ocupam uma primeira parte da

conferência, que dariam lugar, em um segundo momento, a uma

extensa análise sobre os problemas de método das pesquisas

arqueológico-genealógicas, que, por sua vez, seriam seguidas,

finalmente, por um debate disperso e até certo ponto pouco frutífero

com os membros da Sociedade. Quanto ao debate final, de fato,

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podemos dizer que pouco acrescenta ou esclarece em relação aos

problemas levantados no texto de Foucault, ainda que sirva como

excelente ilustração das reações dos intelectuais diante dos

procedimentos da arqueologia-genealogia. Mas no que diz respeito à

conferência propriamente dita, a heterogeneidade pode esconder algo

que está no centro de nossa leitura: entre a questão da Aufklärung e a

tentativa de pôr em evidência os problemas de método de suas

pesquisas, Foucault nos leva a um campo geral onde a preocupação

metodológica surge, senão como conseqüência, ao menos como

continuidade do ethos crítico caracterizado pela maioridade que Kant

define em seu artigo de 1783. Não é por acaso que a leitura de Kant

sirva como ponto de partida para explicitar os procedimentos das

pesquisas de Foucault. Isso porque a filosofia kantiana precisou fazer

ver, talvez mais que nenhuma outra, de que maneira uma propedêutica

filosófica, que deve cuidar dos limites e dos caminhos do pensamento,

deve levar a uma autonomia desse pensamento. Em Kant, é exatamente

a solidez de um edifício crítico, que faz o pensamento se questionar

sobre o que pode pensar – e como pode, efetivamente, fazê-lo – que

garante a possibilidade de se fazer uso, corretamente, do próprio

entendimento. A lição que enxergamos quando encontramos o artigo de

Kant sobre a Aufklärung na mesma trajetória que se iniciara com a

Crítica da razão pura poucos anos antes é a de que não se pode chegar

à autonomia, não se pode pôr em questão a governamentalização, sem

que antes se tenha promovido uma volta sobre o próprio ato de filosofar

– só se chega ao Sapere aude! de Horácio através do Gnôthi seautón de

Sócrates (cf. Kant, 1974: Ak 35). Essa lição talvez seja o maior legado

de Kant para as pesquisas de Foucault, e a conferência diante da

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Sociedade Francesa de Filosofia em maio de 1978 corresponde ao lugar

onde essa dívida é anunciada, um tanto obscurecida pela aparente

heterogeneidade de seus dois momentos.

Talvez a tarefa mais urgente e difícil da crítica seja colocar-nos

diante de nós mesmos. A essa dificuldade a arqueologia respondeu,

quase como numa missão, incorporando em seus procedimentos a

ousadia com que a Aufklärung veio ocupar seu espaço entre os homens

de conhecimento. “Ousa saber!”, dizia Kant, se apropriando de Horácio.

Mas essa atitude de nada valeria se não nos levasse a interrogar o

estatuto mesmo de nosso pensamento. Kant levou a cabo esse

empreendimento através da análise das condições a priori do sujeito e

de toda experiência possível. Foucault o fez, por sua vez, indicando a

irredutível historicidade dessa forma-sujeito e dessa forma-experiência.

O que há de essencial aqui, no entanto, é que em ambos a pesquisa das

condições (transcendentais em Kant, epistemológicas em Foucault) é

seguida de perto pela constante interrogação sobre os caminhos e os

resultados dessa mesma pesquisa. É dessa forma que a ousadia da

crítica resulta não apenas no gesto insurreto contra a autoridade de um

entendimento externo, mas também no gesto precavido que leva o

homem ao encontro de si mesmo; resulta, enfim, no movimento em que

o homem volta seu olhar sobre si para se interrogar sobre o que está

fazendo agora, e, assim, vislumbrar, de um novo patamar, o que fez até

agora. Nota-se, portanto, a importância das pesquisas de Foucault em

torno dos estóicos, por exemplo, nos últimos anos de sua vida: com eles

aprendemos essa técnica específica do cuidado de si que é a de voltar o

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olhar sobre si mesmo1. Mantidas todas as distâncias, o que se mostra

evidente é o fato de que tanto Foucault quanto Kant assimilam ao

problema da governamentabilidade, da autonomia em nossa

modernidade, uma preocupação com o projeto geral de suas pesquisas.

Em um caso, como no outro o ethos crítico é acompanhado por um

cuidado metodológico muito preciso. É claro que não podemos suprimir

as incontornáveis diferenças entre a crítica como ethos e a crítica como

propedêutica. Mas é nas difíceis relações entre o problema da

Aufklärung e a investigação metodológica, no deslocamento mesmo

entre Aufklärung e crítica, conforme promovido por Kant, que Foucault

encontrará um dos eixos da modernidade:

Não pretendo mostrar a oposição que havia em Kant entre a análise da Aufklärung e o projeto crítico. Seria, acredito, fácil mostrar que para Kant mesmo esta verdadeira coragem de saber, que era invocada pela Aufklärung, esta mesma coragem de saber consiste em reconhecer os limites do conhecimento; e seria fácil mostrar que, para ele, a autonomia está longe de ser oposta à obediência aos soberanos. Mas é inegável que Kant fixou à crítica, em seu empreendimento de desassujeitamento em relação ao jogo do poder e da verdade, como tarefa primordial, como prolegômeno a toda Aufklärung, presente e futura, conhecer o conhecimento (Foucault, 1990: 7).

Na realidade, quando Foucault chama a atenção para essa diferença,

está menos preocupado em realmente distinguir os dois procedimentos

críticos do que em anunciar um campo que se abre entre um e outro,

onde cada um é chamado a se posicionar em relação ao outro. É nesse

sentido que a divisão que Foucault promove na modernidade entre uma

“analítica da verdade” e uma “ontologia crítica de nós mesmos” 1 Cf. sobre isso as aulas de 17 e 24 de fevereiro de 1982 no último curso pronunciado por Foucault no Collège de France, que recebera o título L´Herméneutique du sujet.

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(Foucault, 1994, vol. IV: 687) pode ser mais amplamente entendida:

não uma distinção rígida e redutora, mas uma estratégia que permite a

Foucault seu trabalho nesta última linha. A modernidade se constitui nos

interstícios dessas duas instâncias. E se a questão primordial da

arqueologia-genealogia era de fato a de circunscrever os modos de

objetivação e de subjetivação em nossa modernidade (cf., por exemplo,

Foucault, 1994, vol. IV: 631-636), então os dois momentos da

conferência não se mostram tão distantes assim, mas se apóiam sobre o

solo de um projeto geral que os engloba.

Podemos dizer, portanto, que, ao encontrar um plano onde a

pesquisa é levada a se encontrar consigo mesma, as questões enfim

levantadas diante da Sociedade reposicionam todo o trabalho de

Foucault até então; colocam-no, mais que nunca, sob o domínio de um

projeto que se questiona incessantemente, ou, ainda, que teria como

uma de suas tarefas fundamentais promover esse questionamento. A

grande importância da leitura de Kant para Foucault não é tanto fazer

surgir novos objetos – como se poderia crer em relação a

governamentabilidade – mas a de promover uma nova dinâmica a partir

de nexos de continuidade finalmente explicitados – e que só poderiam

ser explicitados exatamente nesse ponto, em que o problema da

subjetividade se agrega ao do governo de si e da autonomia, até

culminar no cuidado de si e na estética da existência, em torno dos

quais se desenvolveria o último curso que Foucault daria no Collège de

France, pouco antes de sua morte.A conferência de maio de 1978

reorganiza, assim, o grande arquivo dos textos de Foucault, e faz surgir

sobre muitos deles, até então negligenciados, uma luz antes

insuspeitável.

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Nada poderia ser menos produtivo, do ponto de vista do

pensamento, do que aquilo que Foucault chamou de chantagem, a

obrigação irredutível de se filiar à longa tradição ocidental do

racionalismo. Contudo, ser racional ou não ser racional deixa de ser uma

opção válida para um pensamento que está preocupado em interrogar a

razão. A chantagem quer o comprometimento tranqüilizador dos que

buscam um nome sob o qual podem se resguardar dos riscos do

irracional, e todas as figuras que tem origem aí – a loucura, a falsidade,

o erro. A chantagem, portanto, coagula a crítica naquilo que seria a sua

atitude fundamental, ao menos desde que Kant fazia a sua pergunta “O

que é a Aufklärung?”: a ousadia. A ousadia da Crítica que, no horizonte

de seu próprio tempo, deve forçar sempre o pensamento na direção de

seu limite. A ousadia limítrofe, portanto. Nada mais anacrônico que uma

modernidade que quer encontrar definitivamente o repouso de uma

certeza. Nada, entretanto, mais comum. Acusa-se o trabalho da

arqueologia-geneaalogia de um niilismo ingênuo, no mesmo sentido em

que se busca encontrar em Nietzsche, enfim, um modo de desarmar a

potência de seu riso cínico, acusando-o de uma contradição pueril.

Tanto quanto Nietzsche, Foucault é um trabalhador no campo das

iminências. Paul-Michel Foucault, Michelle Florence – um de seus

pseudônimos – Michel Foucault, o filósofo mascarado: desabrigado de

um nome, afastando de si até mesmo a insígnia brilhante do Autor, o

pensamento faz da crítica um ethos, uma experiência de si mesmo:

“Não me pergunte quem eu sou e não me diga para permanecer o

mesmo” (Foucault, 1969: 28).

A favor da ousadia, e em detrimento da chantagem, Foucault impõe

o risco de uma aposta: talvez a modernidade seja bem outra coisa que

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essa escolha redutora. É preciso, portanto, denunciar o anacronismo de

um pensamento que busca o fim de seu movimento próprio. É preciso

reencontrar, naquele que foi, talvez, o maior representante do que viria

a se caracterizar como o Racionalismo Esclarecido, algo diferente de

uma filiação à Verdade. O que a arqueologia-genealogia de Foucault

empreende é uma nova dinastia, não mais fundada na relação sujeito-

verdade, da perspectiva do conhecimento, mas nas múltiplas formas

assumidas pela subjetividade moderna diante da exigência de

emancipação erguida pela Aufklärung; uma inversão, portanto: um

deslocamento na direção de uma perspectiva ética, onde a Crítica não é

apenas a demarcação epistemológica de um limite, mas, muito mais

amplamente, uma atitude. Sapere aude!

Uma nova dimensão para uma questão na qual Foucault já se

detinha há algum tempo. Se a modernidade era antes o plano de

trabalho das investigações arqueológicas, ou mesmo seu ponto de

partida, agora ela surge como condição última de uma tradição de

reflexão na qual Foucault pode se inscrever. Do mesmo modo, se Kant

aparecia antes como o marco até certo ponto negativo em relação à

modernidade – como em As Palavras e as Coisas, onde sua figura

aparece como um “ponto de juntura” – agora funciona mais

positivamente, como fundador de uma forma de reflexão que ultrapassa

os cânones do racionalismo ou do anti-racionalismo, e coloca sob o

mesmo domínio Nietzsche e Max Weber, Hegel e os representantes da

escola de Frankfurt. Inversão que só se torna possível porque a atitude

crítica, de Kant a Foucault, deve ser um encontro consigo mesmo, uma

avaliação do projeto filosófico e de seus procedimentos na sua

atualidade. A dinastia leva aos inventários: eis a chave que a

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conferência diante da Sociedade Francesa de Filosofia em maio de 1978

nos oferece para compreendermos melhor a posição dessa visada

retrospectiva, de um projeto geral que nada teria de sistematicamente

fechado.

De todos os inventários constituídos por Foucault, de todas as

formas encontradas para uma possível organização de seus ditos e de

seus escritos, nenhum pode se impor como o mais verdadeiro, ou o

mais legítimo. A arqueologia-genealogia acompanhava de perto,

poderíamos dizer, a forma intempestiva da filosofia de Nietzsche, mas

estava, ao mesmo tempo, incontornavelmente ligada a um ethos que

lhe impunha o problema do sentido. Problema que a obstinação de seu

empirismo não podia deixar ser respondido a partir de nenhum

transcendental, nenhum universal inquestionável, e que, desse modo,

se condenava, voluntariamente a se constituir, antes de tudo, como

uma pergunta, incessante, sobre si mesmo. Lá onde uma resposta era

esperada, no momento seguinte a todas as imperdoáveis formas de

destruição de nossas certezas, a única aurora possível não nos garantirá

absolutamente nenhuma nova figura onde pudéssemos, enfim,

depositar nossa boa fé. Nem o Homem, nem o Sujeito, nem a Verdade.

Apenas um gesto, quase imperceptível, que não faz outra coisa senão

mostrar a malha complicada em que o pensamento, desde Kant, ou

desde os gregos, vem se debatendo. O gesto quase irritante, tamanha é

sua insistência, em que, para cada pergunta feita, um espelho nos é

mostrado. Infinitamente. No inventário de Foucault, nesse mesmo que a

conferência de maio de 1978 anuncia, a complexidade de um

pensamento que agora se olha inteiro, caberia em dois nomes, que de

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próprios muito pouco ainda guardariam, e uma interrogação, que é o

signo de um abandono. Michel Foucault?

Bibliografia

FOUCAULT, M. Dits et écrits. 4 vol. 1994. Paris, Gallimard.

__________. L’archéologie du savoir. 1969. Paris, Gallimard.

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__________. L’hermeneutique du sujet. 2001. Paris, Gallimard.

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KANT, I. Textos seletos. 1974. Petrópolis, Vozes.

QUEIROZ, A. Foucault – o paradoxo das passagens. 1999. Rio de

Janeiro, Pazulim.

Recebido em dezembro/2006.

Aprovado em fevereiro/2007.