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Breve Panorama da Análise do Discurso como Disciplina Científica
Walter Barbosa Lacerda Filho1
Abstract
The article however in development was constructed, therefore, with the objective
to reconstitute to the main lines of force of the historical evolution, theoretician and
methodological of the Analysis of the Speech, while it disciplines scientific, more
particularly, represented for the clipping of the French School of Analysis of the Speech,
becoming itself , with effect, in important boarding theoretician and methodological, in the
bulge of Human Sciences, when it has in aiming the socio cultural phenomena and
contemporaries intersemiotics studies.
Resumo
O trabalho ora em desenvolvimento construiu-se, pois, com o objetivo de
reconstituir as principais linhas de força da evolução histórica e teórico-metodológica da
Análise do Discurso, enquanto disciplina científica, mais particularmente, representada pelo
recorte da Escola Francesa de Análise do Discurso, erigindo-se esta, com efeito, em
importante abordagem teórico-metodológica, no bojo das Ciências Humanas, quando se
tem em mira os fenômenos socioculturais e intersemióticos contemporâneos.
Palavras-chave: análise do discurso, enunciado, enunciação, linguagem, representação,
práxis.
1 . Mestrado em Letras, Universidade Federal do Ceará – UCF. Graduação em Letras – Universidade Federal
do Ceará – UFC.
2
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Aspectos de Filosofia da Linguagem e
Linguística segundo Guido Antonio de Almeida; 3. A Ordem do Discurso
segundo Foucault; 4. Novas Tendências em Análise do Discurso segundo
Maingueneau; 5. Heterogeneidade(s) Enunciativa(s) segundo Authier-Revuz;
6. As Quatro Etapas da Análise do Discurso segundo Nelson Barros da Costa;
7. Considerações Finais; 8. Referências.
1.Introdução
O presente artigo dedica-se à exposição dos marcos históricos e teórico-
metodológicos da Análise do Discurso (AD), mais especialmente, a partir do recorte da
escola francesa de AD, reconhecendo nesta um importante núcleo teórico-metodológico de
afirmação da AD enquanto disciplina no conjunto das ciências humanas.
O interesse em debater a AD, entre outros motivos, resulta da disputa pela hegemonia
teórica e metodológica que trava com a Semiótica enquanto procedimento analítico a
instruir os estudos culturais contemporâneos. Ambas as disciplinas científicas, com efeito,
são importantes sintomas da centralidade da linguagem na definição do paradigma
gnosiológico da contemporaneidade.
Para a construção deste breve panorama da AD, elegeu-se um percurso histórico que
destaca uma série de autores – Wittgenstein, Pêcheux, Maldidier, Foucault, Althusser,
Authier-Revuz, Maingueneau, Costa – em função de suas contribuições à formulação de
um aparato teórico-metodológico de Análise do Discurso, considerando, ainda, as
convergências ou as divergências que a AD mantém com a filosofia da linguagem,
marxismo, linguística e psicanálise, já que tal espectro de saberes encerra os principais
fundamentos teóricos que dão sustentação às práticas de AD.
Assim, o texto subdivide-se em cinco tópicos: 1) Aspectos de Filosofia da Linguagem
e Linguística segundo Guido Antonio de Almeida; 2) A Ordem do Discurso segundo
Foucault; 3) Novas Tendências em Análise do Discurso segundo Maingueneau; 4)
Heterogeneidade(s) Enunciativa(s) segundo Authier-Revuz; 5) As Quatro Etapas da
Análise do Discurso segundo Nelson Barros da Costa.
3
Tais matérias, portanto, refletem a disposição do artigo: oferecer um quadro sintético
da evolução histórica e teórica da AD àqueles que estão implicados com a interface de
estudos socioculturais e intersemióticos contemporâneos.
2. Aspectos de Filosofia da Linguagem e Linguística segundo Guido
Antonio de Almeida.
Quando se problematiza a linguagem como objeto de estudo, exige-se, de imediato,
uma primeira distinção entre Filosofia e Ciência da Linguagem: de um lado, a filosofia, a
ocupar-se da linguagem, viria a ser a meditação ou a especulação sobre a “natureza” ou
“essência” da linguagem; por outro, a ciência da linguagem consistiria no estudo empírico e
metódico dos fenômenos linguístico. Com efeito, a convenção corrente, a separar a filosofia
da ciência, toma a primeira como uma meditação especulativa, e a segunda, como estudo
empírico sob o lastro de um método definido.
A partir da revisão da literatura sobre a linguagem, realizada por Guido de Almeida,
reconhece-se que a filosofia da linguagem é coisa que não existe propriamente. E isto se
deve à impossibilidade de falar sobre O Todo da Linguagem, como se nos fosse a priori
uma totalidade auto-evidente e supostamente homogeneizável desde sua definição à sua
fenomenologia.
Por conseguinte, está delimitado o confronto crítico entre os campos acima referidos
pelos posicionamentos teóricos da linguística e da filosofia da linguagem (esta representada
por um recorte do pensamento anglo-saxão). O horizonte de sentido da presente discussão
faz-se melhor precisar pelos três seguintes pontos eleitos pelo autor:
1) a crítica de Wittgenstein à concepção filosófica tradicional de
linguagem, e seu conceito de “jogo de linguagem”;
2) o desenvolvimento da concepção wittgensteiniana com a teoria,
elaborada por Austin, dos “proferimentos performativos” e “atos ilocucionários”;
3) a explicação de Searle dos “atos de fala” em função de um “sistema
de regras constitutivas”, plasmado no contexto de uma instituição social.
Entre as ideias de Wittgenstein, Austin e Searle, formula-se um conjunto teórico
coerente. Logo, o debate fica posto entre este recorte da filosofia da linguagem e a
4
linguística concebida por Chomsky, um dos arranjos da linguística moderna. É propósito de
Almeida também repercutir a crítica de Chomsky sobre as ideias de Wittgenstein, a fim de
estabelecer o contraponto necessário às posições da Filosofia da Linguagem.
A linguística gerativa e transformacional, a definir a posição chomskyana, afirma-se
em oposição às ideias de uma filosofia da linguagem e sob a demanda de compor com uma
sociolinguística, não mais pensada como um simples anexo da linguística.
A concepção wittgensteiniana da linguagem apresenta como primeira determinação a
sua orientação manifestamente não-aristotélica. Daí porque Wittgenstein viu-se obrigado a
desenvolver uma crítica à concepção tradicional da linguagem, herdeira das proposições
aristotélicas, como passo fundamental à construção de uma posição alternativa às aporias
da tradição filosófica na compreensão da matéria. Contudo, a motivação de Wittgenstein
foi, a rigor, estritamente filosófica. Assim, o filósofo do Tractatus Logico-Philosophicus e
das Investigações Filosóficas não pode ser instado a dar corpo e, consequentemente, vida a
uma ciência da língua, como modernamente se compreende a linguística.
Apoiando-se na exposição de Guido de Almeida, sobressaem-se duas primeiras
razões para o interesse de Wittgenstein pela linguagem: 1) o pensamento filosófico, em
geral, equivoca-se quanto à linguagem praticada em nosso contexto normal; 2) o contexto
do uso normal da linguagem declina-se como meio privilegiado para desvelar a estrutura
conceitual que as noções filosóficas então recobrem.
O próprio interesse da filosofia pela linguagem tem por destacado motivo o
reconhecimento da existência de diferentes linguagens. O que sempre deu ensejo, quando
do uso linguístico de diferentes expressões, a buscar distinguir entre o sentido e o não-
sentido, discurso sensato e o discurso meramente especulativo, por exemplo.
No Tractatus, Wittgenstein adota como objetivo de um método filosófico mostrar
como o filósofo deixa de significar satisfatoriamente certas expressões características de
seus enunciados. Wittgenstein, em suas Investigações Filosóficas, explica tal fenômeno
devido ao fato de o metafísico usar “a palavra cujo significado quer analisar fora do „jogo
de linguagem‟ que é o seu contexto normal e não-problemático”. (ALMEIDA, 1986, p.8).
No entanto, seria um primeiro mal-entendido caso se compreendesse o interesse
filosófico pela linguagem apenas definido pela consideração dos contextos particulares de
certos usos linguísticos.
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Pode-se figurar a concepção tradicional da linguagem por uma primeira tese, cuja
proposição tipifica essa mesma concepção como “representacionista”. Dessa maneira, a
linguagem seria pensada como uma via de representação de uma realidade dada de antemão
e independente da própria linguagem. Esta compreensão da linguagem cristalizou-se, na
filosofia, desde Aristóteles, pela ideia de que “as palavras expressam por convenção os
pensamentos, ou as afecções da alma, que por sua vez representam por semelhança natural
as coisas de que são a imagem”. (ALMEIDA, 1986, p.9). Ademais, encoraja-se o
entendimento da linguagem como um meio secundário de expressão dos pensamentos.
Desde então se postula que o pensamento poderia até se formar sem o concurso da
linguagem.
Quando Wittgenstein amplia a analogia do jogo à linguagem como um todo
(enquanto sistema), e não só aos sistemas axiomáticos, como primeiro postulou, dá-se
ocasião à intervenção da expressão “jogo de linguagem”. Em suas primeiras articulações, a
expressão era usada, sem maiores distinções, como um equivalente de “cálculo”. O
propósito maior de Wittgenstein era então pôr em evidência as várias semelhanças entre
linguagem e jogos, o que já estava em pauta desde a contribuição dos formalistas aos
estudos literários nas primeiras décadas do século XX, ressignificando, pois, o potencial
explicativo da analogia antes construída em torno das semelhanças verificadas entre o
cálculo e a linguagem, representada esta pelos sistemas formais da lógica e matemática.
Ambas as analogias, em suas origens, derivam da comparação dos usos de
linguagem – ora enquanto sistemas axiomáticos, ora enquanto a linguagem como um todo –
com o jogo de xadrez, determinando-se por este que a linguagem é, por consequência, uma
atividade guiada e orientada por regras. Nesse sentido, como em qualquer jogo, a
linguagem põe-se em causa pelas próprias regras que definem a sua constituição, a saber, as
regras da gramática. Mas, distintamente do jogo, subordinado a um viés de estratégia, essas
regras gramaticais não nos prescrevem, de antemão, qual jogada (ou ação verbal, na
analogia assumida por Wittgenstein) terá sucesso, ou será consequente com os fins do
próprio jogo (ou, pois, de todo diálogo verbal), e, sim, o que é correto ou não e o que faz ou
não sentido, contextualizando assim a linguagem como jogo.
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A consequência de tudo isso é que o significado de uma palavra não se determina a
priori ou exclusivamente pelo objeto a que se refere, erige-se, todavia, pelas regras que
orientam o seu uso e aplicação em diversos contextos.
Para melhor explicitar a similitude firmada entre a linguagem e o jogo, pode-se
recorrer à aprendizagem do significado das palavras: esta aprendizagem se consuma no
exato momento em que se aprende a usar as palavras, tal qual se aprende o xadrez ao jogá-
lo. Com efeito, não se aprende o xadrez pela associação de peças a objetos, como
conceberam alguns para a aprendizagem das palavras, a partir da associação da palavra (ou
do seu significado) com o seu objeto, mas pelo regramento dos movimentos possíveis das
peças constituintes do jogo, em suma, pois, com o próprio uso.
Uma proposição, portanto, corresponde a um lance no jogo de linguagem. Esta
perderia o seu significado quando tomada fora desse contexto de jogo em que atua como
um lance entre jogadores. Logo, o sentido de uma proposição é o papel que desempenha na
interação linguística em curso, isto é, sob a pragmática de jogo de linguagem. (Cf.
WITTGENSTEIN, 2000, §§ 23, 199, 421). Assim, as proposições ou os atos verbais, não
só os realizados como também os possíveis, dependem da situação, do contexto em que
encontram lugar ao serem proferidos ou expressos; e, para cada ato verbal, nesse horizonte
de interação linguística, aciona-se o circuito do sentido que, por sua vez, definirá os lances
aguardados no jogo como inteligíveis ou não.
3. A Ordem do Discurso segundo Foucault
A ordem do discurso não pode prescindir de sua circunscrição institucional, sob pena
de não mais existir o discurso que se materializa e se conhece por seus efeitos de sentido.
A instituição surge como coordenada fundamental do discurso, já que por ela se
impõe, antes de tudo, formas ritualizadas a disciplinar toda a produção verbal. Logo, o
discurso encontra seu estatuto próprio em referência à lei. Instituição que apresenta como
seu avesso a ordem do desejo, que, como assevera Lacan, anima todo e qualquer discurso.
O desejo, porém, está sempre fadado à frustração quando aspira que o próprio
discurso se faça transparente a si mesmo. Ordem esta atravessada por lutas, dominações,
servidões... Que o uso contínuo e permanente da palavra nos fez, todavia, cegar.
7
Foucault diz-se em busca senão do lugar, ao menos, do teatro do trabalho que gostaria
de se ocupar. Para tanto, adota como hipótese inicial a seguinte compreensão: “em toda
sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e
redistribuída por certo número de procedimentos”. (FOUCAULT, 1996, pp.8-9). E que
função toma corpo por tal disposição? Ora, a função não seria outra que “conjurar seus
poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível
materialidade”. (FOUCAULT, 1996, p.9).
Esta ordem de condicionamento, sob o signo da exclusão, próprios de nossa
sociedade, apresenta três procedimentos privilegiados, a saber: i) interdição; ii) separação
ou rejeição; iii) o verdadeiro e o falso. A interdição aparece então como o modo mais
familiar dentre tal regime de exclusão. Por ela, opera-se o tabu do objeto e,
consequentemente, o ritual da circunstância. O que ratifica, por sua vez, o “direito
privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala”. (Ibid.).
O conjunto destes três procedimentos de exclusão perfaz uma malha que não
permanece a mesma ao longo da história de uma sociedade. Diagnostica Foucault que as
regiões da sexualidade e da política marcam-se com o maior número de buracos negros,
“como se o discurso, longe de ser esse elemento transparente ou neutro no qual a
sexualidade se desarma e a política se pacifica, fosse um dos lugares onde elas exercem, de
modo privilegiado, alguns de seus mais temíveis poderes”. (FOUCAULT, 1996, pp.9-10).
O que significa que toda interdição a incidir sobre o discurso revela-se duplamente
comprometida com as instâncias do poder e do desejo. Em outras palavras, poder e desejo
são termos que rompem a simetria especular do sujeito com o seu próprio dizer, então
regido do exterior que é a própria fala. Têm-se, assim, lugares e agentes, dispostos uns em
relação aos outros, assimetricamente.
Não é mais novidade entender o discurso, conforme a psicanálise, desde Freud a
Lacan, como aquilo que manifesta ou oculta o desejo. A partir daí, o mais importante é
reter, segundo Foucault, que o discurso pode vir a ser mesmo o objeto do desejo.
O discurso, com efeito, não mais admite ser reduzido a um meio de tradução das lutas
ou dos sistemas de dominação que por ele se efetua e efetiva, realçando a face
representativa de todo fenômeno discursivo, e negligenciando, portanto, a face pragmático-
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discursiva que faz o discurso ser o que é; mas, ainda, exige ser tomado como “aquilo por
que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”. (FOUCAULT, 1996, p.10).
No que importa à separação e rejeição, procedimentos sabidos de exclusão, erige-se
por objeto privilegiado, em nosso contexto de civilização, a disjunção operada entre razão e
loucura. Pode ser dito que “o louco é aquele cujo discurso”, ao menos, desde a alta idade
média, “não pode circular como o dos outros”. (Ibid.). Caracterizada está a separação e/ou a
rejeição atuando como vetor de exclusão.
Com relação à loucura, ainda que se verifique, na maioria dos casos, a anulação do
direito, por parte do louco, para sua própria afirmação, existiram regimes outros que
garantiram plenos poderes à fala do louco. Designa-se, daí, um espectro de sentido, no qual
se determina a palavra ou o mutismo do louco, nos termos de Foucault, “excluída ou
secretamente investida pela razão”, porém, “no sentido estrito, ela não existia”.
(FOUCAULT, 1996, p.11).
Interessa a nossa perspectiva de análise saber que, em última instância, é no ato de
fala que se dá a reconhecer a loucura do louco. O mais irônico de tudo isso é constatar que
esta separação se realiza na e pela palavra, lugar onde a verdade fala ou é calada.
Muito embora o último século tenha ensaiado uma retomada da palavra do louco, não
se deve logo presumir que todo o esforço de separação entre razão e loucura se mostre
superado, ou mesmo, a anular-se. O próprio Foucault defende que se questione a escuta do
médico e, até, do psicanalista como vivo procedimento de separação do par razão-loucura.
Seguindo a exposição de Foucault, deve-se fazer intervir agora o terceiro
procedimento de exclusão, a saber: o par dicotômico verdadeiro-falso. Contrastando com os
dois procedimentos anteriores, a interdição e a separação razão-loucura, a oposição
verdadeiro/falso digna-se, em primeira aparência ou imediatamente, muito menos arbitrária
quanto modificável. Mas à medida que se muda de perspectiva, por exemplo, quando se
perscruta a vontade de verdade que se formulou historicamente por nossa sociedade nos
últimos séculos, observar-se-á mais nitidamente “o tipo de separação que rege nossa
vontade de saber, então é talvez algo como um sistema de exclusão (sistema histórico,
institucionalmente constrangedor) que vemos desenhar-se”. (FOUCAULT, 1996, p.14).
Foucault instiga-nos a perceber uma vontade de verdade a animar a nossa própria vontade
de saber. Uma verdade, pois, a autenticar o saber que nos é próprio.
9
O discurso verdadeiro, no mundo antigo, se propunha em função de quem por direito
o pronunciava, observando, ainda, o ritual próprio requerido para tanto. Por isso, é que se
denuncia que tal ordem de verdade se resolve antes na dimensão performativa de seu
próprio dizer. O dizer com status de fazer. Mas cedo tal disposição da verdade e do
verdadeiro deslizou de sua enunciação para o seu enunciado. Com efeito, abandonou-se a
perspectiva do que era ou fazia o discurso em favor, agora, do que ele dizia. O que deixa
entrever que o discurso desligou-se, numa certa medida, do exercício do poder.
Foucault entende a vontade de verdade sob um suporte institucional a conferir-lhe um
poder de coerção para além das instâncias anteriores, a da palavra proibida e da segregação
da loucura, que atua como se lei para um discurso de verdade. Enquanto o interdito da
palavra e a segregação da loucura parecem insofismavelmente a arrefecer-se, quando mais
e mais atravessados pela vontade de verdade de nosso tempo, esta, por sua vez, tanto mais
insidiosa sua própria presença, reforça-se sobremaneira, reordenando ambos à sua própria
órbita. Razão pela qual Foucault dedica tempo maior a discutir a vontade de verdade que é
definidora de nossa sociedade. Apesar disso, é desta que, ainda, menos se fala.
O que leva Foucault a propor que a vontade de verdade que se consubstancia em
nosso dizer, “essa que se impõe a nós há bastante tempo, é tal que a verdade que ela quer
não pode deixar de mascará-la”. (FOUCAULT, 1996, p.20). Tudo se comporta como se
tivéssemos olhos apenas para uma verdade de sentido e valor insidiosamente universal,
olvidando, com toda sorte de implicações que lhe é então de direito, a vontade de verdade,
a determinar-se “como prodigiosa maquinaria destinada a excluir todos aqueles que, ponto
por ponto, em nossa história, procuraram contornar essa vontade de verdade, lá justamente
onde a verdade assume a tarefa de justificar a interdição e definir a loucura”. (Ibid.).
Os procedimentos de exclusão até agora expostos de controle do discurso se deixaram
propor a partir de um funcionamento do exterior. Aspecto que não será devidamente
compreendido senão os considerar, também, como “parte do discurso que põe em jogo o
poder e o desejo”. (FOUCAULT, 1996, p.21).
Mas, em contraste com estes, merecem agora a nossa atenção um grupo de
procedimentos, caracterizados como internos ao discurso, responsáveis por seu próprio
controle. Tais procedimentos apelam, por sua vez, a princípios de classificação, de
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ordenação, de distribuição, fazendo crer, de ora em diante, que se trata, pois, “de submeter
outra dimensão do discurso: a do acontecimento e do acaso”. (Ibid.).
O comentário representará a primeira categoria destes procedimentos internos ao
discurso. Aciona-se, por esta categoria, a oposição texto criador vs. texto de glosa. O que se
desdobra em texto primeiro e texto segundo, instituindo ainda a complementaridade de seus
papéis. Cumpre-se com o comentário uma forma de se conjurar o acaso do discurso,
contanto que se lhe permita “dizer algo além do texto mesmo, mas com a condição de que o
texto mesmo seja dito e de certo modo realizado”. (FOUCAULT, 1996, pp.25-26).
O comentário funciona como importante recurso para limitar “o acaso do discurso
pelo jogo de uma identidade que teria a forma da repetição e do mesmo”. (FOUCAULT,
1996, p.29). O que demonstra ser norma bastante eficaz no que respeita à rarefação dos
discursos, onde a identidade põe-se em função da repetição e do mesmo, que, num tal
contexto, não deixariam de ser menos efetivo do que propriamente são.
Reconhece Foucault outro princípio de rarefação do discurso, podendo, em certa
medida, ser pensado como complementar ao comentário, nomeado pela rubrica do autor.
Autor, aqui, se distingue do indivíduo falante, assumindo, agora, o sentido de princípio de
agrupamento do discurso. Logo, admite ser referido “como unidade e origem de suas
significações, como foco de sua coerência”. (FOUCAULT, 1996, p.26).
Sobre a pertinência do princípio do autor, nunca é demais lembrar que “existem, ao
nosso redor, muitos discursos que circulam, sem receber seu sentido ou sua eficácia de um
autor ao qual seriam atribuídos”. (Ibid.). Divisa-se, assim, uma ordem que prescinde da
atribuição de um autor, como é o caso das receitas técnicas transmitidas no anonimato, dos
contratos que necessitam de signatários ao invés de autor e das conversas cotidianas que
logo se deixam apagar. Estado de coisas que é de pronto contraditado quando se pensa,
sobretudo, os domínios da literatura, filosofia ou ciência, onde se confere muito peso à
atribuição do autor.
A função do autor, antes de ser referida necessariamente a um dado indivíduo, merece
ser disposta como uma maneira de limitar “esse mesmo acaso pelo jogo de uma identidade
que tem a forma da individualidade e do eu”. (FOUCAULT, 1996, p.29).
Opondo-se tanto ao comentário quanto ao autor, as disciplinas surgem como terceiro
princípio interno de limitação do discurso. O que se descreve com as palavras de Foucault:
11
Ao do autor, visto que uma disciplina se define por um domínio de objetos, um
conjunto de métodos, um corpus de proposições consideradas verdadeiras, um
jogo de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos: tudo isto constitui
uma espécie de sistema anônimo à disposição de quem quer ou pode servir-se
dele, sem que seu sentido ou sua validade estejam ligados a quem sucedeu ser
seu inventor. (FOUCAULT, 1996, p.30).
Quanto ao do comentário, observa-se que a oposição dá-se enquanto
em uma disciplina, diferentemente do comentário, o que é suposto no ponto de
partida, não é um sentido que precisa ser redescoberto, nem uma identidade que
deve ser repetida; é aquilo que é requerido para a construção de novos
enunciados. (Ibid.).
Desse modo, fica entendido que as disciplinas contrastam com as categorias do
comentário e do autor, sabidas, em essência, de caráter limitante do discurso, por sua
exigência permanentemente posta: a possibilidade de formular indefinidamente proposições
novas. Contudo, as disciplinas não se fecham, nem mesmo pelo conjunto de todo o
verdadeiro aceito em seu próprio campo.
4. Novas Tendências em Análise do Discurso segundo Maingueneau
Uma primeira indicação, para a emergência da escola francesa de Análise do
Discurso, encontra-se no reconhecimento de certa tradição, a consagrar-se na prática
escolar francesa, apoiada por uma conjuntura intelectual que privilegia uma reflexão sobre
os textos e a história.
Sobre a configuração intelectual da época, flagra-se a presença hegemônica do
estruturalismo, articulado a uma reflexão sobre a “escritura”, conjugando a linguística, o
marxismo e a psicanálise.
A nova disciplina, desde os anos 1960, fez-se praticar por linguistas, historiadores e,
ainda, psicólogos. E, nesse início, ocupou-se com questões, sobretudo, de natureza política,
proporcionando uma base concreta, fenomenicamente transdisciplinar, a demandar a
convergência dos saberes então implicados, para a “(...) construção de uma abordagem
discursiva dos processos ideológicos”. (PÊCHEUX apud MAINGUENEAU, 1997, p.10).
12
Os primeiros trabalhos da AD foram recebidos como contribuição às hermenêuticas
contemporâneas. Muito embora Maingueneau, endossando a compreensão de Pêcheux,
entenda que a AD está longe de se instituir como saber ou técnica da interpretação, quando,
antes, refere-se à construção de procedimentos a expor “o olhar-leitor a níveis opacos à
ação estratégica de um sujeito (...)”. (Ibid.). Decorre daí a razão porque a AD apóia-se nas
ciências sociais, além de ter o aparelho analítico que lhe é próprio “assujeitado à dialética
da evolução científica que domina este campo”. (MAINGUENEAU, 1997, p.11).
O domínio da AD cedo se confrontou com a multiplicação dos usos da expressão
análise do discurso. Isto se deve, segundo Maingueneau, à própria conformação do campo
da linguística, onde existiria um núcleo pensado como rígido oposto a uma periferia de
contornos instáveis a interagir com disciplinas como sociologia, psicologia, filosofia, etc..
Este esquema prescreveria duas ordens fundamentais de estudos: de um lado, a região
dedicada ao estudo da língua, conforme os termos saussurianos; por outro, a região que se
reporta “à linguagem apenas à medida que esta faz sentido para sujeitos inscritos em
estratégias de interlocução, em posições sociais ou em conjunturas históricas”. (Ibid.). Esta
segunda perspectiva prefigura o entendimento próprio à AD.
A abordagem da AD frente a seu objeto assume, de imediato, a dualidade radical da
linguagem: “a um só tempo, integralmente formal e integralmente atravessada pelos
embates subjetivos e sociais”. (MAINGUENEAU, 1997, p.12).
Nesse contexto inaugural da AD, apresentaram-se vias antagônicas de formulação de
sua própria especificidade: ora aceita a partilha do campo com outras especialidades, ora
aguarda o surgimento de uma linguística do discurso, termos ainda distantes de resguardar
um espaço coerente com o tripé teórico-metodológico que sustenta a AD.
Firma-se, pois, uma primeira diretriz para a AD: acionar a língua conjugada com seus
enunciadores e com a ordem social, necessariamente constitutiva. Esboçam-se, com isso, as
injunções – a combinatória de um cálculo formal, os marcadores subjetivos, as vozes e os
lugares do complexo social – que se pretendem flagrar sob as práticas discursivas tornadas
objetos da AD.
A conjuntura teórica dos tempos de constituição da AD distingue-se nitidamente do
momento atual, a requisitar todo um esforço de explicitação de suas fronteiras, em virtude
da expansão em diversos fronts que a expressão análise do discurso sofreu, reivindicada
13
por uma série de disciplinas que passou ora tomar o discurso, ou antes, a linguagem como
objeto privilegiado de interesse. Verifica-se então a insuficiência da primeira definição de
AD, consagrada como “o estudo linguístico das condições de produção de um enunciado”
(GUESPIN apud MAINGUENEAU, 1997, p.13), já que tal formulação não mais atende às
exigências do tempo, bem como aos desafios que a AD logrou vencer, delimitando a
especificidade própria de sua prática, agora distinguida de muitas outras. Portanto, a AD
não pode perder de vista os critérios de que se vale para analisar a experiência que por ela
mesma se realiza, salvaguardando, com isso, um sentido preciso para a própria expressão
que a nomeia enquanto tal.
A esta altura, torna-se oportuno questionar as razões que constituiriam ou não um
dado produto verbal em objeto da AD. Com efeito, que razões se levantam a descartar, por
exemplo, uma conversa de bar como objeto de estudo da AD? Fundamentalmente,
responderá Maingueneau, lançando mão de três dimensões básicas a cumprir a função de
critérios a serem observados na proposição do objeto em AD, dados pelo seguinte:
1) a AD relaciona-se com textos produzidos no quadro de instituições que restringem
fortemente a enunciação;
2) a AD relaciona-se com textos produzidos nos quais se cristalizam conflitos
históricos, sociais, etc.;
3) a AD relaciona-se com textos produzidos que delimitam um espaço próprio no
exterior de um interdiscurso limitado. (Cf. MAINGUENEAU, 1997, pp.13-14).
O conjunto dos aspectos acima referidos conduz Maingueneau a melhor precisar o
estatuto do objeto em AD, fazendo-o corresponder à noção foucaultiana de formação
discursiva, assim traduzida nas palavras do próprio Foucault:
Um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no
espaço que definiram em uma época dada, e para uma área social, econômica,
geográfica ou linguística dada, as condições de exercício da função enunciativa.
(FOUCAULT apud MAINGUENEAU, 1997, p.14).
Logo, não mais é admissível propor um corpus de estudo em AD como se produzido
autonomamente por um dado sujeito, quando, porém, seria mais fértil “considerar sua
enunciação como o correlato de uma certa posição sócio-histórica na qual os enunciadores
se revelam substituíveis”. (MAINGUENEAU, 1997, p.14). Desdobra-se do que foi posto
14
um duplo critério de exclusão ao trabalho da AD: não interessa à AD dispor dos textos em
sua estrita singularidade, bem como corpus tipologicamente pouco marcados.
Em virtude desses recortes de exclusão, não foram poucos os estudiosos que
entenderam como excessivamente restritiva a prática da AD. Todavia, à pertinência das
críticas por estes representados, Maingueneau compreende o núcleo destas a desviar-se do
verdadeiro foco do que constitui a tarefa da AD. Sugere-se, pois, que tais estudiosos teriam
como expectativa que a AD se formulasse em torno de uma linguística do discurso.
Maingueneau, polemizando contra tal compreensão, concebe a AD inteiramente
comprometida com a ideia da existência de uma multiplicidade de análises do discurso, que
tem por consequência um duplo aspecto: de um lado, a AD mantém uma relação
privilegiada com a história, os textos de arquivos, as instituições; por outro, a AD, quando
diretamente relacionada à sociologia, valer-se-á de pesquisas de campo, à mira de “(...)
enunciados cujas estruturas são reguladas com flexibilidade por fatores heterogêneos”.
(MAINGUENEAU, 1997, p.15). A situação em seu conjunto acaba por determinar o olhar
específico da AD sobre o domínio do discurso, ciente mesmo de que ocupa, num certo
sentido, o lugar deixado vago pela filologia.
Todo o esforço de demarcação dos limites próprios à AD não impede que suas
possibilidades se contem ilimitadas, como provam os estudos que se multiplicam na área,
dilatando-se além das tipologias funcionais e formais, representadas, respectivamente, pelos
discursos jurídico, religioso, etc. e, então, pelos discursos narrativo, didático, etc., que
estabeleceram a configuração pela qual a AD se fez mais conhecida do grande público.
Tal convicção funda-se no fato de que, variando os diversos parâmetros da AD, se
pode construir uma infinidade de objetos de análise.
Maingueneau antes explica o número relativamente pequeno de objetos até então
construídos pela AD em função das “preocupações que atravessam esta ou aquela
coletividade em uma conjuntura dada”. (MAINGUENEAU, 1997, p.17).
Sabe-se, em AD, que o discurso como tal não pode “ser apreendido diretamente,
salvo se quisesse limitar-se a generalidades filosóficas”. (Ibid.). Por isso, toda construção
teórico-metodológica da AD compromete-se com a instauração de artifícios mediadores
para que o discurso se materialize como objeto de estudo.
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A análise do discurso opõe-se ao “procedimento estruturalista”, baseado, mormente,
numa “teoria da „articulação‟ entre o texto e uma realidade muda, não-textual”.
(MAINGUENEAU, 2006, p.36). Em sentido contrário, posiciona-se o trabalho em AD: “a
enunciação se manifesta como dispositivo de legitimação do espaço de sua própria
enunciação, a articulação de um texto e uma maneira de se inscrever no universo social”.
(Ibid.). Esta atitude assegura a unidade de conjunto quando da análise da constituição
discursiva, pressuposta pela AD, a partir das “operações enunciativas pelas quais se institui
o discurso, que constrói, assim, a legitimidade de seu posicionamento, e o modo da
organização institucional que o discurso ao mesmo tempo pressupõe e estrutura”(Ibid.).
Define-se, portanto, as balizas pelas quais se devem guiar o analista do discurso.
5. Heterogeneidade(s) Enunciativa(s) segundo Authier-Revuz
Jacqueline Authier-Revuz define, inicialmente, como objeto de debate a expressão
da moda, referente aos estudos linguísticos, “complexidade enunciativa”, construída a partir
do conjunto de fenômenos representado por discurso direto, indireto, indireto livre, aspas,
itálico, citações, alusões, ironia, pastiche, estereótipo, pressuposição, etc.. A “complexidade
enunciativa” põe-se em causa quando se tem em vista, no quadro da enunciação, sob o
suporte de diferentes matrizes teóricas, “formas linguísticas discursivas ou textuais
alterando a imagem de uma mensagem monódica”. (AUTHIER-REVUZ, 1990, p.25).
Ganham ora relevo os parâmetros de distanciamento, de graus de comprometimento, de
deslocamentos enunciativos, polifonia, de divisão do sujeito enunciador.
Sob a referida expressão, Authier-Revuz registra a incidência de uma realidade
constitutiva de todo e qualquer discurso, a atender pelos nomes de heterogeneidade
mostrada e heterogeneidade constitutiva.
No caso da heterogeneidade mostrada, destaca-se a inscrição do outro na sequência
do discurso, a partir de procedimentos como: discurso direto, aspas, formas de glosa,
discurso indireto livre, ironia, etc.. Resulta de tal noção que o discurso, enquanto categoria
científica, não mais deve ser definida, exclusivamente, sob a perspectiva interna da
linguística, visto que esta disposição revela-se pouco capaz para aprofundar a compreensão
da intervenção do outro na constituição de um determinado discurso.
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A atitude de Authier-Revuz torna patente a disposição da AD em problematizar
questões e fenômenos, a bem da verdade, situados ao exterior da linguística. Aspecto ainda
mais relevante quando se constata quão ingênua é a compreensão da linguística, num
domínio como o da enunciação, sempre diante da inevitável intervenção do exterior,
encarnado por um outro, antes de tudo, enquanto lugar, de modo implícito, na descrição
interna de sua própria constituição, senão antevendo em sua irrupção uma “forma „natural‟
de reprodução, na análise, das evidências vivenciadas pelos sujeitos falantes quanto a sua
atividade de linguagem”. (Ibid.).
Não se trata, mesmo postando-se do exterior da linguística, de condescender com
uma visão do sujeito, pensado, narcisicamente, como fonte e senhor de seu dizer, mas, sim,
“para recorrer a um exterior pertinente para o campo linguístico da enunciação”.
(AUTHIER-REVUZ, 1990, pp.25-26).
A ideia de uma heterogeneidade (tanto mostrada quanto constitutiva), a dar lugar ao
outro na instituição de qualquer produção verbal, atravessaria não só o discurso em sua
constituição, mas, também, o próprio sujeito. Dessa injunção, assenta-se uma primeira
coordenada a dispor, em especial, da pertinência da noção de heterogeneidade constitutiva.
Num tal contexto, Authier-Revuz socorre-se do dialogismo bakhtiniano e da concepção
lacaniana da psicanálise de Freud, para fundamentar sua posição.
Ambas as noções, heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva,
funcionam como índices dessa ordem exterior à linguística a modular os discursos e,
mesmo, os sujeitos em sua identidade.
A heterogeneidade constitutiva, em função de sua inespecificidade, faz-se condição a
priori de todo e qualquer discurso, sendo, talvez, o Adão bíblico, na gênese mítica, o único
a escapar de tal constrangimento, isto é, de uma alteridade ante a si mesmo.
Dirige-se, numa tal perspectiva, a atenção da AD para a emergência, no discurso, da
heterogeneidade mostrada, “como formas linguísticas de representação de diferentes modos
de negociação do sujeito falante com a heterogeneidade constitutiva do seu discurso”.
(AUTHIER-REVUZ, 1990, p.26).
Authier-Revuz passa a ter por meta, em AD, discutir as formas marcadas de
heterogeneidade mostrada, que se “manifestam, sob a forma da denegação, um
desconhecimento protetor da heterogeneidade constitutiva”. (Ibid.).
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Respalda-se Authier-Revuz na compreensão, oriunda de diversas abordagens teóricas,
de que “toda fala é determinada de fora da vontade do sujeito e que este „é mais falado
do que fala‟”. (Ibid.). Por conseguinte, esta ordem de fora se situa ao exterior do sujeito,
no discurso, como condição constitutiva de sua própria existência.
A partir de sua referência ao dialogismo de Bakhtin, reconhecendo nele uma reflexão
multiforme, semiótica e literária, a resultar numa teoria da dialogização interna do discurso,
Authier-Revuz avalia a fecundidade e as limitações deste conjunto de noções gestado por
Bakhtin. Exemplifica a posição de Bakhtin pela compreensão de que as palavras revelam-
se, sempre e inevitavelmente, como palavras dos outros.
Authier-Revuz ajuda-nos, portanto, a melhor pôr em perspectiva a contribuição de
Bakhtin à ordem do discurso, ressaltando-se o plurilinguismo, os jogos de fronteiras
constitutivas dos “falares sociais” – aspectos importantes para circunscrever com maior
precisão esta face discursiva ao exterior da linguística. Destaca-se, ainda, da exposição de
Authier-Revuz sobre Bakhtin, o reconhecimento de uma bivocalidade, cujo sentido é
permitir a representação no discurso do discurso do outro.
Ao completar a apresentação de Bakhtin, somado aos trabalhos de Althusser e
Foucault, Authier-Revuz sinaliza que a problemática do discurso como produto do
interdiscurso formula-se como um horizonte privilegiado do debate em AD.
Da psicanálise, em especial, de orientação lacaniana, Authier-Revuz reitera o
entendimento do sujeito como efeito da linguagem, tendo por consequência este vir a ser
pensado como clivado, descentrado, em suma, dividido (inconsciente vs. consciência). O
que contradita qualquer entendimento do sujeito como transparente a si mesmo. Desde
Freud, não é mais possível propor a consciência como centro da organização do sujeito. O
advento do inconsciente desaloja qualquer ilusão de um centro organizador para o sujeito.
Portanto, discurso e sujeito enlaçam-se mutuamente por uma heteronomia radical. O
que, afinal, não deixa de sugerir o lugar social que os imbricam como entes da práxis (e/ou
verbo).
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6. As Quatro Etapas da Análise do Discurso segundo Nelson Barros da
Costa
A partir do balanço histórico empreendido por M. Pêcheux sobre a AD como
disciplina científica, Nelson da Costa orienta-se pelas três etapas discriminadas pelo autor
francês, acrescentando uma quarta fase a coincidir com o presente momento da AD.
Promove-se, desse modo, um resumo da compreensão de Pêcheux sobre o percurso da AD,
privilegiando, em sua reconstituição, além da posição teórica e as consequências dos
procedimentos, os quatro seguintes aspectos a subjazer nestas mesmas etapas: i) a descrição
das propostas metodológicas; ii) a teoria do sujeito; iii) o fundamento filosófico; e iv)
interdisciplinas privilegiadas. E, ainda, a caracterização de uma quarta época da AD, sob o
epíteto de “o primado da prática”.
Identifica-se, sem hesitação, a primeira etapa da AD com a fundação da École
Française d’Analyse du Discours, em 1969, cuja ambição foi a construção de um
dispositivo de leitura automática de um conjunto de discursos previamente eleitos,
conferindo aos mesmos uma clara homogeneidade e, também, estabilidade, face às
“circunstâncias históricas e sociais de produção, numa palavra, em termos de condição de
produção”. (COSTA, 2005, p.17). Por estes termos, define-se, antes de tudo, o corpus que
consagrou a fase inicial da AD, também conhecida como “a primazia do mesmo”. Corpus
este operacionalizado enquanto arquivo.
Nesta mesma época, a AD já se afirma questionando a concepção idealista do sujeito,
na qual o discurso deixa-se compreender antes como expressão da subjetividade e, pois, de
um sujeito sempre senhor de seu dizer. O que significa ainda pensar o dizer como reflexo
direto ou imediato de um querer dizer necessariamente anterior. Ocorre, no entanto,
observando a indicação de Pêcheux, que não se pode mais conviver, em AD, com a idéia de
um sujeito determinado por suas intenções, onde estas cumpririam não menos que a função
de “origem enunciadora de seu discurso”. (PÊCHEUX apud COSTA, 2005, p.18).
A concepção inaugural de sujeito em AD, segundo Pêcheux, caracteriza-se por
determiná-lo antes como falado do que por falar – à imagem de seu querer dizer. Nesse
âmbito, o discurso não assumiu outra formulação senão de “máquina autodeterminada e
fechada sobre si mesma”. (Ibid.). Existiria, portanto, sob o sujeito-enunciador a ação de um
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sujeito-estrutura, a subverter a ilusão corrente do primeiro acreditando-se senhor do próprio
discurso, enquanto, porém, não passaria de “servo” ou “suporte” deste último.
Quanto à proposta metodológica do período, elege-se um corpus fechado de
sequências discursivas, oriundas de um espaço discursivo também pensado como fechado,
aliás, apresentando, ou antes, exigindo por condição de sua produção uma clara estabilidade
e homogeneidade. A análise discursiva, de acordo com Pêcheux, no presente período, não
consistiria mais que “em detectar e em construir sítios de identidades parafrásticas
(proposições de base) características do processo discursivo estudado”. (Ibid.). O que
merece, com toda razão, ser descrito como um procedimento metodológico automático,
prescrevendo, inclusive, uma ordem fixa para o rito de sua aplicação, comprometida, afinal,
a trazer à tona as máquinas discursivas atuantes nas sequências discursivas referidas acima.
Neste aspecto, deve-se lembrar da significativa influência do método de Zelig Harris, a
buscar então “reduzir a frases de bases um conjunto de textos produzidos sob as mesmas
condições de produção a fim de relacionar dada materialidade discursiva correspondente a
uma matriz ideológica com um dado momento histórico”. (COSTA, 2005, p.18). Avança-
se, com isso, para a triangulação fundamental que todo estudo em AD, em geral, obedece: a
determinação de uma materialidade discursiva referida tanto a uma matriz ideológica
quanto a um dado momento histórico.
Para uma compreensão da época, não se podem ignorar as ideias marxistas,
principalmente, traduzidas pelo pensamento de Althusser, na definição teórico-
metodológica da AD. A partir desta referência, compreende-se a produção material da vida
humana fundada sobre formações sociais, consequentes com a divisão do trabalho
constitutiva de nossas sociedades. Divisão esta inicialmente dada pelas diferenças de
aptidões físicas dos indivíduos, a seguir, pela apropriação do excedente de produção por
certo grupo em oposição a outro, e, ainda, a separação entre trabalho manual e intelectual, o
que, por fim, redundará na divisão de classes que nossas sociedades evidenciam.
Na leitura marxista de Althusser, o Estado apresentar-se-á como “instância de poder
constituída pelas classes dominantes com a missão de <<assegurar (...) as condições
políticas da reprodução das relações de produção que são em última análise relações de
exploração>>”. (ALTHUSSER apud COSTA, 2005, p.18). Esta atuação do Estado ganha
corpo pela ação de duas ordens que, desde já, se sabem constituintes do que o define: a
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repressão e a ideologia. Resulta, em especial, desta última a relação constitutiva que se dá
entre uma formação social e uma formação ideológica, ponto de vista privilegiado para
avaliar as ações dos Aparelhos Ideológicos de Estado (AIEs). A referência de Althusser, em
AD, primeiro se justifica por sua sagacidade em entender a ideologia, antes de qualquer
coisa, como atitudes e gestos, do que tão-só um conjunto de ideias ou, enfim, uma visão de
mundo, simplesmente. Um segundo motivo da contribuição de Althusser, para a AD, deve-
se à ideia “de que os AIEs funcionariam por meio da interpelação ao indivíduo para que ele
cumpra uma função na estrutura de classes da sociedade”. (COSTA, 20005, p.19). A
ideologia então assimila o indivíduo, inscrevendo-o em um lugar prévio à ordem de nossa
sociedade de classes, destituindo-o de sua individualidade, ora convertida em sujeito, acima
de tudo, ideológico, comprometido senão com a reprodução das relações de produção da
sociedade em uma de suas classes antagônicas. Aspecto que nunca será de pronto
transparente ao próprio indivíduo.
A ideologia ser-nos-ia constitutiva como uma zona de sombra em nossa consciência.
Decorre de tudo isso, a proposição, avalizada por Pêcheux, de que o discurso revela a
materialidade da ideologia. O que, por sua vez, (de) cifra a materialidade discursiva filiada
ao gênero ideológico, sendo este, ainda, nomeado de formação ideológica.
Pêcheux patrocinou a conjunção de uma teoria da subjetividade, de natureza
psicanalítica, ao tripé interdisciplinar que epistemologicamente define até então a AD como
disciplina – o materialismo histórico, a linguística e a teoria do discurso. Em causa está:
entender a relação do indivíduo com a sociedade em que se faz inserido, marcada pela
posição de sujeito que, discursivamente, por ele se anima. Neste arranjo de AD, a
inconsciência do falante surge como fator decisivo à produção da própria fala – nas
palavras de Nelson da Costa, é mesmo “condição para o exercício da função enunciativa”.
(COSTA, 2005, p.21).
Caracterizam-se, pois, as propostas inaugurais da AD como um projeto a perseguir e
desvelar os diversos condicionamentos que constrangem a produção discursiva. Recorte
pelo qual se exclui do campo de seu primeiro interesse as produções mais espontâneas,
ilustradas pela conversação ordinária e pela linguagem do cotidiano, por exemplo. Em
contrapartida, o discurso político foi o alvo preferencial deste momento de afirmação da
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AD – como bem se demonstra pelo trabalho de Maldidier, correlacionando o discurso
político e a guerra da Argélia.
Para concluir a apresentação desse primeiro momento da AD, convém não olvidar de
certa cumplicidade firmada entre a AD que se instaura pela iniciativa de um filósofo e a
linguística estruturalista. Cumplicidade plenamente justificável pela reiterada pretensão da
AD em constituir-se “como um instrumento mediador capaz de dessubjetivar a análise de
textos”. (COSTA, 2005, p.23). Basta, para tanto, entender a linguística estruturalista, na
definição do sentido da produção verbal, sob o viés, senão de exclusão, mas de pôr entre
aspas o sujeito.
O segundo momento da AD se deixa formular pelo papel desempenhado por
Foucault, ocasionando um efeito desestabilizador sobre a primazia do mesmo, definidora da
etapa anterior, desde a introdução por este da noção de formação discursiva. Proposição
fundamental à implosão da noção de máquina estrutural fechada, dispositivo linguístico-
discursivo então perseguido pela análise (automática) do discurso. O que pôs em causa a
percepção da interinfluência entre duas ou mais formações discursivas. Fato decisivo ao
aparecimento da noção de interdiscurso, designando um “exterior específico” de uma
formação discursiva. A percepção de que o espaço definidor de uma dada formação
discursiva faz-se forçosamente invadido pelo que vem de outro lugar torna insustentável a
manutenção de uma máquina discursiva fechada, tal qual compreendida e formulada,
inicialmente, por Pêcheux.
Foucault evidencia que “a economia dos enunciados que compõem um campo de
saber funciona não como um << domínio de objetos cheio, fechado, contínuo,
geograficamente bem recortado>> (p.42), mas como sistemas de dispersão”. (FOUCAULT
apud Costa, 2005, p.24). O que traz, como nova preocupação para o analista do discurso, o
reconhecimento da tensão constitutiva, de um dado campo de saber, entre “índices de
regularidade (ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações) e de
dispersão (heterogeneidade, diferenças, assimetrias, lacunas, desvios)”. (Ibid.). A este
espaço de tensão, constituído por dispersão, que se equaciona como formação discursiva.
Com tal forma de proceder, atesta-se que a segunda fase da AD instaurou uma prática
sob o primado da relação. Aspecto que se verifica e consuma entre uma formação
discursiva e seu exterior, desdobrando-se, em última análise, numa relação interdiscursiva.
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Um dos procedimentos preferenciais desta etapa consistiu no confronto entre FDs.
Destacam-se, ainda, o estabelecimento da relação de uma FD com o seu exterior discursivo
que a dispõe como um lugar e, por último, da relação de uma FD com a sua memória.
A terceira etapa da AD entra em cena, compreendida por Pêcheux, sob o signo do
outro, momento em que não mais se sustenta a ideia de um algoritmo analítico como se
uma máquina discursiva estrutural. Nesse contexto, irrompem enfáticas críticas às práticas
da AD, tendo por eixo quatro principais aspectos: i) a promoção da busca por “pontos de
relação semântica entre uma série de textos e suas condições de produção a fim de revelar
uma estrutura de sentidos de base geradora dos diferentes discursos” (COSTA, 2005,
pp.26-27); ii) a perspectiva restritiva e, mesmo, especializante, pela qual se construiu os
corpora estudados em AD; iii) a exclusão no sentido de eliminar dos avatares de sua
pesquisa toda a heterogeneidade dos mecanismos que atuam nas produções de linguagem; e
iv) recai sobre a questão do sujeito, denunciando uma excessiva redução do papel que tal
noção pode e deve cumprir na definição teórico-metodológica do que cabe à prática de AD.
O quadro teórico-metodológico da quarta etapa em AD, proposta por Nelson Barros
da Costa, define-se pela atitude em defesa da noção de posicionamento, desenvolvida por
Maingueneau, como pivô de um dispositivo analítico discursivo. Ao problematizar as
mútuas determinações entre sujeito, a sua enunciação e o seu contexto discursivo, a noção
de posicionamento, cunhada por Maingueneau, desvela a posição ocupada por uma prática
discursiva no interior de uma região delimitada do universo discursivo maior. Passo
decisivo para, definido o corpus submetido à análise, levá-lo a uma satisfatória
investigação, entendendo-o antes como “uma tomada de palavra com um percurso, uma
trilha já aberta, ou fundada no próprio gesto da enunciação dessa obra, no âmbito do campo
discursivo” (COSTA, 2005, pp. 42-43). O que significa retratar o sujeito (da enunciação)
ligado necessariamente à coordenada dupla que é mesmo pressuposta por tal
posicionamento: de um lado, uma posição é tomada num campo discursivo determinado;
por outro, esta mesma posição, ancorando-se num tal campo discursivo, deve, muito
oportunamente, se fazer conceber enquanto produto discursivo num espaço
constitutivamente conflitual.
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7. Considerações Finais
Entende-se como solidários o desenvolvimento das disciplinas da linguagem e o
declínio da pretensão hegemônica da filosofia frente aos demais saberes. Nesse tocante, o
projeto analítico-discursivo dos textos quanto práticas discursivas aprofundaria muitos
aspectos que as teorias do reflexo de Lukàcs, do sintoma de Althusser e do arquivo de
Foucault não foram capazes de explicitar com maior precisão.
Para tornar evidente a constituição dos discursos, deve-se propor como horizonte
fenomênico de análise linguístico-discursiva o espectro compreendido entre o
intradiscursivo e o extradiscursivo, a revelar, portanto, “a imbricação entre uma
representação do mundo e uma atividade enunciativa”. (MAINGUENEAU, 2006, p.36).
Testemunha-se, portanto, a duplicidade que trespassa os discursos: de um lado, os
“discursos representam o mundo”, por outro, “suas enunciações são parte integrante desse
mundo que eles representam”. (Ibid.). Afirma-se, com isso, o caráter indissociável que se
formula entre a enunciação e o enunciado, a ser ora pensado como o acontecimento de fala
que os instituem.
Conclui-se, por último, que a Análise do Discurso, sob a perspectiva de disciplina
científica, ajuíza-se enquanto estudo da (inter)discursividade, a rastrear, pois, a articulação
necessária entre uma prática enunciativa e o lugar social dos sujeitos dessa prática.
A partir desta breve retrospectiva das etapas constituintes da Análise do Discurso
enquanto disciplina científica, avulta-se a elaboração teórica do conceito de
interdiscursividade, consubstanciando-se no próprio movimento de tal percurso histórico,
que, inclusive, reflete a sua crescente e consequente complexificação teórico-metodológica,
como demonstram as mesmas etapas, cujo sentido, definido pela articulação de uma prática
enunciativa ao lugar social encarnado pelos sujeitos dessa mesma prática, circunscreve e
defende o horizonte próprio das práticas de Análise do Discurso.
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8. Referências
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D.M. Significado, Verdade e Ação. Rio de Janeiro: EDUFF, 1986.
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