As Questões Do Ateísmo e Do Materialismo Em Comte

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Ateísmo - Comte

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    AS QUESTES DO ATESMO E DO MATERIALISMO EM COMTE

    Sergio Tiski 1 RESUMO: O objetivo deste trabalho esclarecer se, ou quanto, e como Comte foi ateu e materialista, e a sua concepo em relao ao atesmo e ao materialismo; e assim contribuir questionando as afirmaes no to corretas sobre o assunto. As fontes so os escritos de Comte. Recolhemos, indutivamente, em vista de chegar sntese (sinteticamente), todas as referncias comtianas relevantes a respeito do atesmo e do materialismo; recolhemos, dedutivamente (posicionando-nos, portanto, analiticamente), o seu posicionamento indireto; e fazemos a sntese, que a descrio do seu posicionamento vital e da sua concepo a respeito deles. Naturalmente, esse processo metodolgico indutivo-dedutivo, sinttico-analtico, dirigido pela nossa reflexo filosfica. Conclumos que Comte admitiu um atesmo etimolgico em relao ao Deus sobrenatural e afirmou um tesmo no qual Deus a humanidade. Mas se exigirmos, como necessrio, que a Divindade deve ser eterna, ento podemos afirmar que Comte inteiramente, e no apenas etimologicamente ateu. Ele considerou o atesmo como uma soluo insuficiente, tanto intelectual quanto moral e politicamente, e nesse sentido trabalhou para super-lo com o seu positivismo. Conclumos tambm que ele nunca admitiu para si nenhum materialismo. Mas como afirmou (afirmao bastante mitigada, porm, pelo seu agnosticismo, fenomenalismo e fenomenismo) a perpetuidade da matria e a possibilidade de sua existncia sem a vida, pode ser considerado materialista. Apesar disso, melhor consider-lo ordem-ista, afirmador da anterioridade da ordem que, para ele, material e humana. Ordem-ista de uma ordem da qual pelo menos a base material perptua. Ordem-ista pantesta humanista, porque o vrtice mais nobre dessa ordem, apesar de ser mortal, divino. A humanidade deusa e os homens igualmente, pois so seus agentes. E, enfim, que o materialismo (em suas trs formas, prtica, terica e concreta), para Comte, a opo pela acentuao do menos nobre, pela dominao do inferior, porque eterno, mais forte, em relao ao superior. Em termos tericos ele a explicao do superior pelo inferior. Palavras-chave: Comte, Atesmo, Materialismo, Religio, Filosofia, Histria.

    ATHEISM AND MATERIALISM QUESTIONS IN COMTE ABSTRACT: The purpose of this work is to clear up whether or how much and how Comte was an atheist and a materialist, and his conception in relation to atheism and materialism; and thus contribute by questioning the not so correct statements about the subject. The sources are Comtes writings. It was gathered, inductively, in order to get to the synthesis (synthetically), all relevant Comtes references about atheism and materialism. It was gathered, deductively (taking an analytical position), his indirect position and a synthesis is made which is the description of his vital positioning as well as of his conception about them. Naturally this inductive-deductive, synthetic-analytical methodological process, is guided by our philosophical reflection. It is concluded that Comte admitted an etymological atheism in relation to the supernatural God and stated a theism in which God is humanity. But if we demand, as it is necessary, that the Divinity must be eternal, so it is possible to state that

    1 Professor do Dept de Filosofia da UEL. Graduado em filosofia pela PUC de Curitiba e em teologia pela PUG de Roma; especialista em filosofia pela UEL; mestre em filosofia pela PUC de SP; doutor em filosofia pela UNICAMP.

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    Comte is completely, and not just etymologically, atheist. He considered atheism as an insufficient solution, not only intellectually but also morally and politically, and in this sense he strove to overcome it with his positiveness. It is also concluded that he never admitted to himself any materialism. But as he stated (a rather mitigated statement, however, by his agnosticism, phenomenalism and phenomenism), the perpetuation of the material and the possibility of its existence without life, he can be considered a materialist. Despite that, it is better to consider him an order-ist, affirmer of the anteriority of order that, for him, is material and human. Order-ist of an order of which, at least, the material basis is perpetual. Order-ist pantheist humanist, because the most noble vertex of this order, despite being mortal, is divine. The humanity is a goddess and so are the men, for they are its agents. And, finally, that the materialism (in its three forms: practical, theoretical and concrete), for Comte, is an option by the stressing of the least noble, by the dominion of the inferior one because he/she is eternal, stronger in relation to the superior one. In theory it is the explanation of the superior by the inferior one. Key words: Comte, Atheism, Materialism, Religion, Philosophy, History. Introduo Primeiramente vamos situar o atesmo e o materialismo na vida de Augusto Comte (filsofo francs, criador do termo sociologia, fundador do positivismo: Montpellier, 1798 Paris, 1857). Depois vamos apresentar a posio de Comte a respeito do atesmo e do materialismo. Quando acharmos conveniente, vamos colocar tambm a nossa prpria posio. Utilizamos os termos atesmo e materialismo no seguinte sentido, respectivamente: posio que nega a existncia de Deus ou deuses e posio que afirma a anterioridade da matria. O atesmo e o materialismo na vida de Comte Comte nasceu de uma famlia catlica. Em aproximadamente 1812 teve um primeiro afastamento que mais tarde referiu como emancipao, e em fins de maio de 1817 sofreu o que depois chamou de converso relativista 2. Passou ao ou a um atesmo (ele diz etimolgico) que reconheceu em Carta a Stuart Mill. Esse ltimo escreve que a Carta filosfica sobre a comemorao social, de 2/6/1845, acarretar para Comte a denncia de ser ateu. Comte responde:

    ... confesso-vos que gostaria muito de que tal debate pblico comeasse logo e claramente; ento eu escreveria uma carta pblica sobre o atesmo, na qual desenvolveria as diversas indicaes incidentais que se encontram, a esse respeito, em duas ou trs passagens de minha obra fundamental [o Curso]. Ser necessrio terminar explicando a fundo sobre essas absurdas ou maldosas insinuaes. Em verdade, a qualificao de ateus no nos convm seno remontando estritamente etimologia, o que quase sempre um modo vicioso de interpretao dos termos mais usados; pois no

    2 Sobre isso ver o nosso texto intitulado A questo da religio em A. Comte.

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    temos verdadeiramente em comum com os assim chamados seno o fato de no crer em Deus, sem, alis, compartilhar de nenhuma maneira seus vos delrios metafsicos sobre a origem do mundo ou do homem, e ainda menos suas estreitas e perigosas tentativas de sistematizar a moral. Se essa coincidncia puramente negativa bastasse para nos fazer emparelhar racionalmente com essa ordem de espritos, seria quase to judicioso nos chamarem tambm de cristos, pelo fato de concordarmos com esses ltimos em no acreditar em Minerva ou Apolo. Assim, mesmo devendo ver historicamente os chamados ateus como sendo, com efeito, dentre todos os metafsicos, os menos afastados do estado verdadeiramente positivo, como j proclamei, devemos, creio, dar hoje muita importncia em rejeitar comumente essa caracterizao, fazendo aparecer, em toda ocasio favorvel, pblica ou privada, as diferenas radicais que separam evidentemente o verdadeiro positivismo sistemtico desse simples negativismo provisrio. Quanto a mim, j tive ocasio de convencer confidencialmente muitas pessoas de boa f, e inclusive senhoras, de que se pode hoje no crer em Deus sem ser, contudo, um ateu propriamente dito. (...). (...). (...) [creio que Marrast & Cia. acharam] minha epstola [a Carta filosfica sobre a comemorao social] muito catlica. (...) mostra que o positivismo to odioso metafsica negativa quanto teologia retrgrada. 3.

    Reconheceu, portanto, um atesmo etimolgico e jamais negou, mas diferia do atesmo desde 1817, pelo fato de desde essa poca j reconhecer o valor sociopoltico e moral do tesmo sobrenaturalista, e por tudo o mais que esse reconhecimento implicava. Essa crtica, esse antiatesmo (apesar de defender um atesmo etimolgico) tambm aparece nesse trecho acima a Stuart Mill. A partir de 1847 Comte reconheceu um Deus (thes), isto , uma deusa, a humanidade, e a partir de 1848 fundou a religio dela. Continuou atesta em relao ao Deus sobrenatural, mas tornou-se testa em relao deusa humanidade. Continuou atesta quanto Divindade sobrenatural, mas passou a propor um thes (deus) natural, isto , uma divindade natural, a humanidade. Comte nunca se disse testa ou teologista. Ele se disse humanista e realizador de teoria sobre a humanidade, e no testa ou realizador de teologia a respeito da deusa humanidade. Ele se distanciou tanto do atesmo quanto do tesmo: Essas diferentes aberraes, atias ou testas, ... 4. Portanto, resumindo, ele comeou testa sobrenaturalista catlico, passou a atesta, mas passou tambm a valorizar o aspecto sociopoltico e moral do tesmo; depois retomou um tesmo imanentista e, enquanto tal tornou-se tambm antiatesta. Atesta quanto ao sobrenatural, testa quanto humanidade e, ao mesmo tempo, antiatesta em relao aos que no reconhecem a divindade da humanidade 5. Comte nunca se disse materialista, nunca assumiu intencionalmente nenhum materialismo. A poca na qual ele esteve mais prximo do materialismo parece ter sido at 1819. De 1817 a 1819, influenciado por Saint-Simon, ele pensava as teorias sociais, morais e

    3 Carta a Stuart Mill, 14/7/1845, Correspondncia III, p. 58-59. A Carta filosfica sobre a comemorao

    social se encontra nas p. 27-33. Em todo este trabalho a traduo sempre nossa. Nas citaes transcrevemos os grifos dos prprios autores sempre em itlico. O que colocamos entre colchetes acrscimo nosso.

    4 Sistema III, 1853, p. 73. Na p. 164 ele fala de ... pensadores plenamente libertados de toda crena teolgica ou metafsica. e de ... todo leitor libertado tanto do atesmo quanto do tesmo..

    5 Como para Comte a humanidade mortal, apesar de ser o Ser superior, isto , Deus; e se exigirmos que a idia de Deus implique imortalidade, ento Comte, no limite, isto , tirando a conseqncia, pode ser dito inteiramente ateu, e no apenas etimologicamente ateu. O nosso tesmo sobrenaturalista, transcendente, ao contrrio do de Comte (desde 1847/1848) que naturalista, intranatural, imanentista, porque no nosso tesmo Deus no do universo, no est no universo. Pelo contrrio, de algum modo o universo que est em Deus, dentro de Deus.

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    polticas em vista da produo, com um acento aparentemente bastante materialista que posteriormente no reaparecer mais 6. Se houve, por um lado, essa proximidade com o materialismo, houve tambm, por outro lado, e tambm desde 1817, uma revalorizao do aspecto sociopoltico da religio e a proposta de manuteno do poder moral, do poder espiritual vigente (mas j propondo tambm um novo poder espiritual). E desde 1818 Comte comeou a criticar o fato da ordem social estar fundada na fora 7 e a reivindicar uma poltica moral 8. Coerentemente com a sua preocupao principal de fundar uma nova teoria e um novo poder terico, separado e independente do poder temporal, a posio de Comte tornou-se cada vez mais afirmadora da necessidade de cultivo da vida terica, espiritual, e de afastamento da vida materialista, isto , vivida principalmente acentuando os aspectos materiais. Um bom exemplo pode ser visto em uma sua Carta a Gustave dEichthal, de 10/12/1824, na qual ele critica ... a fuso geral do espiritual no temporal operada desde Lutero., ... a enorme dificuldade em conservar o carter espiritual em toda a sua pureza no meio de uma sociedade toda temporal, ..., e o governo do dinheiro:

    ... no h doutrina, nem paixo, que possa unir os espritos nesta poca de anarquia. O governo domina sem contestao; cada um procura fazer seus negcios com ele ou de outro modo. O sistema poltico (se podemos dar-lhe esse nome) prprio ao estado presente da sociedade, isto , o governo do dinheiro, toma de mais em mais seu carter preponderante e se estabelece por toda parte. Isso inevitvel enquanto no h idias sociais, doutrina geral, pois o interesse pessoal o nico procedimento para agir politicamente sobre indivduos que no sabem mais o que o bem e o mal em poltica; que no tm, em uma palavra, nenhuma moralidade poltica organizada. Cabe a ns mudar esta situao deplorvel. 9.

    Comte nunca se disse materialista, e se at 1819 esteve prximo de uma posio materialista, a partir de ento o seu afastamento foi crescente. E a partir do Curso, que comeou a ser exposto oralmente em 1826, o materialismo dito aberrao, assim como o espiritualismo: ... o antigo antagonismo filosfico entre o materialismo e o espiritualismo. Pois essas duas tendncias inversas, mas igualmente viciosas, (...): dupla aberrao ... 10. A rejeio explcita do materialismo reaparece em todas as obras posteriores ao Curso. Enfim, do mesmo modo Littr admite para o seu positivismo apenas um materialismo mitigado, quase com os mesmos termos com os quais Comte, na Carta a Stuart Mill, acima, admite s o atesmo etimolgico: Na verdade, a filosofia positiva no precisa nem rejeitar a qualificao de materialista, nem assumi-la; pois, ao mesmo tempo, ela pensa como o materialismo sobre a sobrenaturalidade, e ela pensa totalmente diferente dele sobre a concepo do mundo. 11. Intencionalmente antimaterialista, explicitamente antimaterialista, mas afirmador da existncia ontolgica anterior e independente do inorgnico, em relao ao orgnico, ao vivo, que, por sua vez, aparece e desaparece sempre dependente do inorgnico. Existncia ontolgica independente que permite afirmar a posio comtiana como substancialmente materialista, apesar de Comte nunca ter assumido intencionalmente nenhum materialismo 12.

    6 Sobre isso ver no primeiro caderno, escrito por Comte, da Revista A Indstria (de Saint-Simon), de setembro de 1817. In: R. TEIXEIRA MENDES, Evoluo original, p. 108-109 e 125.

    7 Carta a Valat, 17/11/18, Correspondncia I, p. 47. 8 Carta de um antigo aluno da Escola Politcnica aos Senhores autores da revista O Poltico, 27/12/1818. In:

    crits de jeunesse ..., p. 109-111. 9 Correspondncia I, respectivamente p. 141, 141 e 146. 10 Curso VI, 60 lio, p. 773. 11 Augusto Comte e a filosofia positiva, p. 83. 12 Como para Comte a ordem no apenas material e sim tambm vital e humana, ento, no limite, isto ,

    tirando de novo a conseqncia, pode-se dizer que Comte acaba no sendo simplesmente materialista e sim

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    O que o atesmo para Comte Comte abandonou o tesmo a partir de 1812/1817; revalorizou o seu aspecto sociopoltico e moral a partir de 1817; em 1845 reconheceu o seu atesmo como apenas etimolgico; e retomou uma espcie de tesmo, imanentista, naturalista, humanista, a partir de 1847/1848, como alternativa ao tesmo sobrenaturalista. A partir dessa data surgiu, portanto, em Comte, um tesmo no sobrenaturalista. Tudo isso j vimos. No trecho da Carta a Stuart Mill, de 1845, acima, Comte se refere s diversas indicaes incidentais que se encontram, sobre o atesmo, em duas ou trs passagens do seu Curso. Trata-se de quatro trechos (p. 394-395, 441, 446 e 458) da 55 lio do Curso V e de dois trechos do Curso VI (lio 56, p. 568-569 e lio 57, p. 612). Nesses trechos Comte caracteriza o atesmo pr-sadio em relao ao seu, o etimolgico, considerado o atesmo sadio. Ele foi indispensvel, mas imperfeito. Tratou-se apenas da ltima fase da filosofia metafsica:

    Quanto ao carter prprio dessa filosofia transitria, cuja interveno crescente, durante os trs ltimos sculos, est agora demonstrada, em princpio, como no menos inevitvel do que indispensvel, ele [o carter] claramente determinado pela prpria natureza da destinao que reconhecemos para ela [para a filosofia transitria], e cuja [destinao] s podia ser convenientemente satisfeita por uma doutrina sistemtica de negao absoluta, sucessivamente estendida s principais questes morais e sociais, como j estabeleci suficientemente, embora com outra inteno, desde o incio do volume precedente. o que a razo pblica j reconheceu, essencialmente, h muito tempo, de uma maneira implcita mas irrecusvel, consagrando, unanimemente, a denominao muito expressiva de protestantismo, que, se bem que restrita normalmente ao primeiro estado de tal doutrina, no convm menos, no fundo, ao conjunto total da filosofia revolucionria. Com efeito, essa filosofia, desde o simples luteranismo primitivo, at ao desmo do sculo passado, e mesmo sem excetuar o que chamam de

    ordem-ista, e em um sentido pantesta (j que a vitalidade humana, a humanidade deusa, alm tambm da divindade da terra e do espao), lembrando Hegel, Spinoza etc. A ordem anterior no simplesmente material. A anterioridade da ordem (que ao mesmo tempo material e humana, essa ltima incluindo a vitalidade), cuja materialidade inclusive deve se contrair, retrair, para depois voltar a se expandir novamente (Sabemos, efetivamente, que apenas pela resistncia contnua do meio geral, nosso mundo deve, a longo tempo, reunir-se inevitavelmente massa solar de onde emanou, at que uma nova dilatao dessa mesma massa venha, na imensido dos tempos futuros, organizar, da mesma maneira, um mundo novo, destinado a fornecer uma carreira anloga.: Curso II, 1835, 27 lio, de 9/1834, p. 439.). No h, para Comte, criao da matria: A criao absoluta, na qual tudo viria do nada, deve ser descartada como incompatvel com o conjunto dos conhecimentos reais, a partir do qual no podemos conceber um grama de matria verdadeiramente introduzido ou suprimido. (Carta a Robinet, 27/2/1855, Correspondncia VIII, p. 32). Na Sntese subjetiva I, de 1856, p. 11, ele diz: No temos mais a necessidade do que a faculdade de conceber alguma criao absoluta, cuja noo diretamente contraditria, desde que a cincia demonstrou que a quantidade total de matria permanece sempre inaltervel ao meio das mutaes.. Apesar da afirmao da perpetuidade e da anterioridade da ordem e da matria, Comte opta pelo humanismo e pelo vitalismo contido nele: melhor estudar no prprio mestre [Barthez] o vitalismo provisrio que deve agora vos servir como corretivo em relao ao materialismo parisiense, at que o vitalismo definitivo prevalea a partir da escola sinttica que o positivismo far surgir plenamente, ... (a Audiffrent, 17/1/1856, Correspondncia VIII, p. 204). Na Carta a Audiffrent, de 16/1/1857, ele diz Esses vitalistas [de Montpellier] so, no fundo, mais prximos do positivismo do que os materialistas daqui, pois sempre sentiram a indivisibilidade da natureza humana, ... (p. 383). Na de 18/7/1857, ele diz Caracterizastes admiravelmente a principal comparao entre o vitalismo e o positivismo e sua comum rejeio do materialismo. (p. 529).

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    atesmo sistemtico, que constitui a sua fase mais extrema *, historicamente jamais pde ser seno um protesto crescente e cada vez mais metdico contra as bases intelectuais da antiga ordem social, ulteriormente estendido, por uma seqncia necessria de sua natureza absoluta, a toda e qualquer organizao verdadeira. Quaisquer que tenham sido os graves perigos a que esse esprito radicalmente negativo exps, preciso reconhecer nele uma condio fundamental da grande transio intelectual e social que tal filosofia devia finalmente dirigir. 13. * Embora essa fase final da filosofia metafsica deva ser, por isso mesmo, segundo nossa teoria, a mais prxima do estado positivo, e formar assim, sobretudo hoje, uma ltima preparao indispensvel ao verdadeiro regime definitivo do entendimento humano, somente uma apreciao superficial ou maldosa pode fazer confundir com a filosofia positiva uma doutrina assim eminentemente negativa, necessariamente mais transitria do que qualquer outra, que condena, de uma maneira dogmaticamente absoluta, toda cooperao essencial das crenas religiosas para a evoluo geral da humanidade, na qual a filosofia positiva lhes aponta racionalmente, ao contrrio, a partir da sua lei mais fundamental [a lei dos trs estados], uma funo inicial, indispensvel durante muito tempo, em todos os sentidos, se bem que necessariamente provisria. A preponderncia de tal sistema no poderia chegar, no fundo, na prtica, substituindo o culto da natureza ao culto do criador, seno a organizar uma espcie de pantesmo metafsico, do qual o esprito poderia retrogradar facilmente para as diversas fases sucessivas do sistema teolgico mais ou menos modificado, de maneira a constituir logo uma situao ainda mais afastada, de fato, do que a fase puramente catlica, do verdadeiro regime positivo. Acreditei conveniente indicar, de passagem, essa explicao especial, que se dirige exclusivamente aos juzes de boa f: quanto aos outros, seria evidentemente suprfluo ocupar-nos.

    Essa limitao a ser apenas pantesmo metafsico a mesma do tempo das escolas gregas:

    ... a tendncia notvel de certas escolas gregas, sob a decadncia do regime politico, a superar especulativamente os limites gerais do simples monotesmo. Um esforo assim claramente prematuro, em um tempo no qual toda s concepo de filosofia natural era evidentemente impossvel, no podia, sem dvida, chegar seno a uma espcie de pantesmo metafsico, no qual a natureza era, no fundo, abstratamente divinizada: mas tal doutrina diferia pouco, na realidade, do que depois se qualificou abusivamente de atesmo; ela se aproximava dele principalmente quanto oposio radical em relao a todas as crenas religiosas suscetveis de uma verdadeira organizao, o que aqui o mais importante, pois se trata de idias essencialmente negativas. 14.

    Comte fala tambm de pantesmo ontolgico e de pantesmo sistemtico: Essa doutrina [hobbesiana], to impropriamente qualificada de atesmo, no seno, no fundo, uma ltima fase essencial da antiga filosofia, que foi, no incio, puramente teolgica, depois de mais em mais metafsica, com os mesmos atributos essenciais, um esprito no menos absoluto, (...). (...): de modo que esse pretenso atesmo quase se reduz, no fundo, a inaugurar uma deusa [a natureza] no lugar de um deus, (...). (...) um ltimo prembulo crtico. (...). [faz parte da] filosofia plenamente negativa da qual se trata neste momento, e que ela [a filosofia verdadeiramente positiva] no pode ver seno como uma ltima transformao preparatria da filosofia primitiva, j igualmente elaborada (...), e enfim s diversas fases graduais da teologia metafsica, da qual essa espcie de pantesmo ontolgico constitui somente a mais extrema modificao. (...),

    13 Curso V, 55 lio, escrita de 10/1 a 26/2/1841, p. 394-395. 14 Ibidem, p. 441.

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    no mais decisiva que o desmo propriamente dito, (...). (...) pantesmo sistemtico ... 15.

    Alm da doutrina hobbesiana, Comte cita tambm a escolstica: ... assim deve causar pouca surpresa que o instinto popular tenha ento perseguido tantos doutores [escolsticos] com a acusao de atesmo; pois a doutrina transitria, assim qualificada ulteriormente, no pde consistir seno, no fundo, em impelir at a inteira entronizao da Natureza, primeira restrio escolstica da concepo monotica [da total majestade de Deus ... pois assim Ele no poderia mais nada contra a Natureza qual teria dado mecanismo independente], como j expliquei no captulo precedente. 16.

    Mas, de qualquer modo, tratou-se de emancipao religiosa, de plena libertao teolgica:

    Quanto decadncia intelectual da organizao teolgica, a crise revolucionria a agravou profundamente, propagando junto a todas as classes a inteira emancipao religiosa. Uma nao que, durante muitos anos, ao invs de reclamar seriamente contra a supresso legal do culto pblico por uma assemblia eminentemente popular, escutou pacificamente, nas suas velhas catedrais, a predileo direta por um audacioso atesmo ou um desmo no menos hostil s antigas crenas, certamente constatou suficientemente sua plena libertao teolgica; ... 17.

    O texto fundamental de Comte sobre o atesmo , sem dvida, o Discurso preliminar, de julho de 1848 18. Assim como o materialismo, o atesmo dito um erro grave, muito freqente e muito perigoso (p. 46). Comte afirma que a plena emancipao teolgica uma preparao indispensvel, uma condio prvia para o estado positivo. Que se tratou e que se trata de uma situao puramente negativa que apresentava um carter verdadeiramente progressista, mas que agora se torna obstculo, naqueles nos quais se torna permanente. E que confundir o verdadeiro positivismo com o que chamam atesmo constitui uma falsa apreciao: Embora eu tenha rejeitado formalmente, h muito tempo, toda solidariedade, seja dogmtica, seja histrica, entre o verdadeiro positivismo e o que chamam atesmo, devo aqui indicar ainda, sobre essa falsa apreciao, alguns esclarecimentos sumrios, mas diretos. (p. 46). Todo o conjunto dos esclarecimentos se concentra em um s e longo pargrafo, que vai do final da p. 46 at o final da p. 49. Primeiro Comte analisa longamente o atesmo sob o aspecto intelectual (p. 46-48); depois o analisa, em apenas duas frases, sob os aspectos moral e poltico ou social (p. 48); enfim, faz uma longa concluso (p. 48-49). Comte opta, teoricamente, pelo agnosticismo e pelo fenomenalismo (e, praticamente, apenas praticamente, tambm pelo fenomenismo, como aparecer mais adiante) 19: Mesmo sob o aspecto intelectual, o atesmo no constitui seno uma emancipao muito insuficiente, porque ele tende a prolongar indefinidamente o estado metafsico buscando sem cessar novas solues para os problemas teolgicos, ao invs de descartar como radicalmente vs todas as pesquisas inacessveis. (p. 46-47).

    15 Ib., p. 446. 16 Curso VI, 56, escrita de 20/5 a 17/6/41, p. 568-9. 17 57, escrita de 25/6 a 14/7/41 e de 23/12/41 a 15/1/42, p. 612. 18 Utilizamos o texto republicado como primeira metade do Sistema I, em 1851, p. 46-49. 19 Agnosticismo a posio que declara a impossibilidade de conhecimento seguro a respeito de um assunto

    em pauta; fenomenalismo a posio que afirma que s conhecemos fenmenos, isto , s conhecemos o que se nos aparece e que de algum modo pode ser mensurado. Fenomenismo, por sua vez, a posio que afirma que s existem fenmenos, isto , s h o que aparece e de algum modo pode ser mensurado. Sobre isso ver no nosso texto A questo da religio em A. Comte, Introduo, notas 5 e 7.

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    Contra os espritos teolgicos e metafsicos, que explicam atravs de causas e abstraes, e que querem penetrar o mistrio inacessvel da produo essencial dos fenmenos, Comte prope o agnosticismo e o fenomenalismo:

    O verdadeiro esprito positivo consiste principalmente em substituir sempre o estudo das leis invariveis dos fenmenos ao estudo de suas causas propriamente ditas, primeiras ou finais, em uma palavra, a determinao do como quela do por que. Ele , portanto, incompatvel com os orgulhosos delrios de um tenebroso atesmo sobre a formao do universo, a origem dos animais, etc. Em sua apreciao geral de nossos diversos estados especulativos, o positivismo no hesita em ver essas quimeras doutorais como muito inferiores, mesmo em racionalidade, s inspiraes espontneas da humanidade. Pois o princpio teolgico, consistindo em explicar tudo por vontades, no pode ser plenamente descartado seno quando, tendo reconhecido como inacessvel toda pesquisa das causas, limitamo-nos a conhecer as leis. Enquanto se persiste em resolver as questes que caracterizaram nossa infncia, faz-se mal em rejeitar o modo ingnuo que nossa imaginao aplica em relao a elas, e que o nico que convm, com efeito, sua natureza. Essas crenas espontneas no podiam se extinguir radicalmente seno na medida em que a humanidade, mais bem esclarecida sobre seus meios e suas necessidades, mudasse irrevogavelmente a direo geral de suas pesquisas contnuas. Quando se quer penetrar o mistrio inacessvel da produo essencial dos fenmenos, no se pode supor nada mais satisfatrio do que os atribuir a vontades interiores ou exteriores, pois assim so assimilados aos efeitos dirios das afeies que nos animam. S o orgulho metafsico ou cientfico pde persuadir os ateus, antigos ou modernos, de que suas vagas hipteses sobre tal assunto so verdadeiramente superiores a essa assimilao direta, nica que devia exclusivamente satisfazer nossa inteligncia at que se tivesse reconhecido a inanidade radical e a inteira inutilidade de toda pesquisa absoluta. (p. 47-48) 20.

    Mas, teoricamente, Comte no prope o fenomenismo: Embora a ordem natural seja, em todos os sentidos, muito imperfeita, sua produo se conciliaria bem melhor com a suposio de uma vontade inteligente do que com um cego mecanismo. (p. 48) 21. Por isso e pelo anterior, Os ateus persistentes podem ser vistos, portanto, como os mais inconseqentes dos telogos, porque eles perseguem as mesmas questes, mas rejeitando o nico mtodo que se adapta a elas. (p. 48). Mas o atesmo puro muito raro: Contudo o puro atesmo , mesmo hoje, muito excepcional. (p. 48). O atesmo ao qual estamos acostumados, Comte continua, no passa de ltima fase de destruio, de dissolvente, atesmo pr-sadio:

    Freqentemente se chama assim um estado de pantesmo, que no , no fundo, seno uma retrogradao doutoral para um fetichismo vago e abstrato, de onde podem

    20 No Catecismo positivista, de 1852, Comte diz que a soluo dos pensadores teologistas, e mesmo

    fetichistas , era a nica possvel, naquele tempo e naquela situao, e ... muito superior em relao s tenebrosas fices de nossos ateus ou pantestas, cujo estado mental se aproxima mais da loucura do que da ingnua situao dos verdadeiros fetichistas. (p. 88).

    21 Sobre a opo prtica pelo fenomenismo, vejamos, por exemplo, no Captulo 1, de 1/1851, do Sistema II, 1852, p. 57: Ora, tal convico autoriza suficientemente cada um de ns a dirigir para a Humanidade todo seu justo reconhecimento, mesmo se existisse uma providncia ainda mais eminente, da qual emanaria a potncia de nossa me comum. O conjunto dos estudos positivos exclui radicalmente essa ltima hiptese. Mas, no fundo, sua discusso especial tornou-se ociosa, tanto para o corao quanto para o esprito; ou melhor, ela oferece perigos equivalentes aos dois. Nossas verdadeiras necessidades intelectuais, tericas e prticas, exigem somente o conhecimento da ordem universal, que devemos sofrer e modificar. Se sua fonte nos pudesse ser conhecida, deveramos nos abster de procur-la, a fim de no desviar nossos esforos especulativos de sua verdadeira destinao, o aperfeioamento contnuo de nossa condio e de nossa natureza. Sob o aspecto moral se d o mesmo, e em um grau mais alto..

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    renascer, sob novas formas, todas as fases teolgicas, quando o conjunto da situao moderna cessa de conter o livre desenvolvimento das aberraes metafsicas. Tal regime indica, alis, naqueles que o adotam como definitivo, uma valorizao muito exagerada, ou mesmo viciosa, das necessidades intelectuais, e um sentimento demasiado imperfeito das necessidades morais ou sociais. Ele se combina freqentemente com as perigosas utopias do orgulho especulativo quanto ao pretenso reino do esprito. (p. 48) 22.

    Na seqncia Comte passa ao julgamento desse atesmo sob o aspecto moral: Na moral propriamente dita, ele propicia uma espcie de consagrao dogmtica aos ignbeis sofismas da metafsica moderna sobre a dominao absoluta do egosmo. (p. 48). Como se v, para Comte esse atesmo condena o homem a no enxergar a possibilidade de superar a lei do mais forte, insupervel no caso dos outros animais e dos vegetais. No caso do homem os instintos sociocntricos civilizam e a civilizao exigida pela vida prtica. Essa civilizao o antdoto contra a especializao produzida pela diviso social do trabalho. A cooperao exigida pela necessidade de satisfazer as necessidades prticas, concretas, materiais, fazem o abandono do egosmo, da simples lei do mais forte. Os revolucionrios ateus da poca, segundo Comte, exageravam a diviso e agravavam a anarquia. Faziam o inverso, portanto, do que era necessrio, isto , a desunio: se existe a dominao absoluta do egosmo, no nos resta seno continuar na guerra de todos contra todos. Em 1848 Comte, invertendo essa inverso, comea a afirmar a sua religio, que definir na seqncia como sendo essencialmente unidade, sntese e conciliao. E a acusao se repete sob o aspecto poltico e social: Em poltica, ele tende diretamente a tornar indefinida a situao revolucionria, pelo dio cego que inspira em relao ao conjunto do passado, do qual ele impede toda explicao verdadeiramente positiva, prpria a nos desvelar o futuro humano. (p. 48). Esse atesmo impede o trmino da Revoluo. Impede a unidade, a sntese e a conciliao positivas. Bem ao contrrio de Marx, por exemplo, Comte fala de incorporao do proletariado na sociedade moderna, e no de tomada do poder pelo proletariado, o que justificaria a continuidade da Revoluo 23. Enfim, Comte comea a concluir:

    O atesmo no pode dispor hoje, portanto, verdadeira positividade seno aqueles nos quais ele constitui somente uma situao muito passageira, a ltima e a menos durvel de todas as fases metafsicas. Como a propagao atual do esprito cientfico facilita bastante essa extrema transio, aqueles que chegam idade madura sem t-la espontaneamente cumprido anunciam assim uma espcie de impotncia mental,

    22 Socialmente a utopia do reino do esprito a sofocracia, isto , o governo dos sbios. Individualmente

    o governo do intelecto, da inteligncia, da razo, ou, simplesmente, do esprito. Comte separa trs partes tanto no indivduo quanto no coletivo: sentimento (sete sentimentos ou instintos egocntricos, que normalmente governam desde dentro, e trs sentimentos ou instintos sociocntricos, que devem tender sempre a governar, mas sem nunca conseguir plenamente), inteligncia ( e deve ser sempre apenas conhecimento, esclarecimento) e carter ou praticidade (vontade), que governa fora, a vida prtica. inteligncia e ao carter correspondem os dois principais poderes sociais, respectivamente, o poder espiritual e o poder temporal, material, poltico.

    23 Sobre esse aspecto sociopoltico e moral, vejamos o que Comte escreve no Sistema IV, 1854, p. 388: Deve-se doravante relegar ao ltimo lugar dos teologistas, os deistas, os pantestas, e os ateus, que, no menos incapazes de juntar do que de regrar, nunca puderam criar igreja, e perderam toda funo depois do sculo da demolio.. E no Apelo, 1855, p. 74-75: Deve-se hoje situar no ltimo lugar da escala teolgica todas as seitas indisciplinveis que, sob as vagas denominaes de desta, pantesta, e mesmo atia, no concordam, mantendo a sntese absoluta, seno em priv-la de todas as garantias mentais e morais. Quando essas crenas sem culto se tornam suficientemente intensas para evitar o estado puramente negativo, elas permanecem to imprprias a juntar quanto a regrar, e no chegam seno a consagrar o individualismo completo. Mais hostis do que todas as outras religio positiva, essas almas, felizmente excepcionais, aspiram mais profunda retrogradao, sonhando a confuso dos dois poderes..

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    freqentemente ligada insuficincia moral, e pouco concilivel com o positivismo. (p. 48-49).

    Comea a concluir, e duramente, como se v. Chegar idade madura sem t-lo superado revela impotncia intelectual e insuficincia moral. Se no Curso Comte mostrava que a filosofia revolucionria foi historicamente inevitvel e indispensvel, agora o acento na provisoriedade e, portanto, superao:

    As afinidades puramente negativas sendo sempre fracas ou precrias, a verdadeira filosofia moderna no pode se contentar mais com a no-admisso do monotesmo do que com aquela do politesmo ou do fetichismo, que ningum julgaria suficientes para motivar relaes simpticas. Semelhante preparao no tinha importncia, no fundo, seno para aqueles que tiveram que tomar a iniciativa na tendncia direta da humanidade para uma renovao radical. Ela j cessou de ser verdadeiramente indispensvel, pois a caducidade do regime antigo no deixa mais nenhuma dvida essencial sobre a urgncia da regenerao. (p. 49).

    Deve-se superar do monotesmo apenas o sobrenatural, e no a unidade, a sntese e a ordem que ele conseguiu. Tudo o que o monotesmo catlico fez em termos de relaes simpticas deve ser mantido e continuado, aprofundado 24. Politicamente a persistncia desse atesmo acaba, agora, para Comte, sendo pior do que a manuteno do sobrenaturalismo monotesta catlico:

    A persistncia anrquica, caracterizada principalmente pelo atesmo, constitui doravante uma disposio mais desfavorvel ao esprito orgnico, que j deveria prevalecer, do que pode ser um sincero prolongamento dos antigos hbitos. Pois esse ltimo obstculo no impede mais a verdadeira colocao direta da questo fundamental, e ele at tende muito a provoc-la, obrigando a nova filosofia a no combater as crenas atrasadas seno a partir de sua aptido geral a satisfazer melhor todas as necessidades morais e sociais. Ao invs dessa salutar concorrncia, o positivismo no poder receber seno uma estril reao da oposio espontnea que o atesmo lhe apresenta hoje em tantos metafsicos e sbios, cujas disposies antiteolgicas no chegam mais seno a entravar, por uma rejeio absoluta, a regenerao que prepararam, em certos sentidos, no sculo precedente. (p. 49).

    Enfim, a ltima frase do trecho volta ao aspecto intelectual (opinies) e ao aspecto moral (orgulho, um dos sete instintos egocntricos): Longe de contar com o apoio dos ateus atuais, o positivismo deve, portanto, encontrar neles adversrios naturais, embora o pouco de consistncia de suas opinies permita, alis, converter facilmente aqueles cujos erros no so devidos essencialmente ao orgulho. (p. 49). Depois do Discurso preliminar Comte s voltou a escrever sobre o atesmo incidentalmente, de passagem. Dessas passagens, vejamos quatro que nos permitem esclarecer certa irmandade entre o atesmo e o materialismo, em Comte 25.

    24 Os trs sentimentos ou instintos sociocntricos, venerao, apego e bondade, voltados, respectivamente, ao passado, presente e futuro, so resumidos por Comte no amor, ou altrusmo, ou, como nesse trecho, na simpatia.

    25 Dos quatro textos o primeiro da Introduo fundamental, escrita de 10/1849 a 24/2/1850: principalmente l [na cosmologia atual] que reside o atesmo propriamente dito, mais hostil hoje verdadeira filosofia do que qualquer outro teologismo, como o meu Discurso preliminar explicou. O materialismo tambm apanha nela as suas principais foras intelectuais, apesar de que a biologia desenvolve mais os seus perigos morais. , portanto, em cosmologia, que a religio demonstrada deve cumprir as mais vastas eliminaes e as retificaes mais difceis e mais urgentes. (Sistema I, p. 456). O segundo do Catecismo positivista, p. 101-102: Percebo espontaneamente os perigos intelectuais e morais prprios dessa cultura objetiva, enquanto ela permanece desprovida da disciplina subjetiva que acabais de me explicar. Ento a sucesso necessria das diversas fases enciclopdicas obriga provisoriamente o gnio cientfico a seguir um regime de especializao dispersiva, diretamente contrrio plena generalidade que deve caracterizar as vises tericas. De l resultaram cada vez mais, sobretudo entre os sbios, e na seqncia at no pblico, por um lado o materialismo e o atesmo, e por outro lado o desprezo pelas afeies ternas e o esquecimento das belas-artes. H muito tempo sei quanto,

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    Os dois primeiros textos permitem ver que o atesmo e o materialismo surgiram e surgem, para Comte, na medida em que se abandona a sociologia e a moral, isto , a filosofia moral, e o caminho descendente do homem ao mundo, para fazer o caminho inverso, ascendente do mundo ao homem, a partir da filosofia natural (matemtica, astronomia, fsica, qumica). Nesse encontro com a realidade mundana aparece a materialidade, a matria, o fenmeno, e a sua mensurabilidade. Eis que despontam o materialismo e o atesmo em relao vida e vida humana, e em relao ao sobrenatural. Os dois ltimos textos mostram que se antes se explicava o fsico pelo moral, o materialismo e o atesmo materialista cometem o erro inverso, explicando o moral (o homem) pelo fsico (o mundo), e, no fundo, eliminam igualmente um dos plos do dualismo irredutvel (o tesmo e o espiritualismo acabam negando o mundo; o atesmo e o materialismo acabam negando o homem). Uma ltima questo em relao ao atesmo de Comte, quanto s razes dessa opo. Pelo aspecto terico, em primeiro lugar devemos levar em conta o seu posicionamento agnstico-fenomenalista e fenomenista: Deus no se nos aparece e, portanto, tambm no pode ser mensurado. Conseqentemente, na tica de Comte, Ele, no mnimo, no existe para ns 26. Ele foi e criatura da humanidade:

    A teoria subjetiva de Deus nos permite conciliar tudo sem concesso, mostrando que as crenas teolgicas foram instituies espontneas da Humanidade, para se criar, em sua infncia, guias imaginrios, que a espcie preponderante no podia encontrar na ordem real. Nossos precursores imediatos, os enciclopedistas do sculo passado, retidos, pela metafsica, no ponto de vista puramente individual e, desde ele, incapazes de sentimentos histricos, tinham viciosamente atribudo essas crenas a legisladores incrdulos, que as tinham forjado para dominar. Contudo podemos passar desse falso sistema apreciao normal substituindo a espcie ao indivduo, de maneira a representar o pretenso Criador como uma verdadeira criatura, no do homem, mas da Humanidade, cujas instituies tm o poder de submeter a razo pessoal com tanta fora quanto as leis exteriores do Destino universal. Assim, os positivistas honram, segundo os tempos e os lugares, primeiro os deuses, depois o seu nico herdeiro, como criaes provisrias do Grande-Ser. Em relao ao ltimo estado do catolicismo, eles devem glorificar especialmente a Virgem como a precursora mstica da Humanidade. Seu culto ser facilmente transformado de maneira a agregar as almas catlicas, sobretudo femininas, adorao positivista. sobretudo dirigindo essa transio que os jesutas, regenerados como inacianos, podero nos ajudar a reorganizar o Ocidente, contanto que

    sob todos os aspectos, o verdadeiro positivismo, longe de oferecer qualquer solidariedade real com seu prembulo cientfico, constitui, ao contrrio, o melhor corretivo em relao a ele.. Os dois ltimos so do Sistema III, p. 73: Essas diferentes aberraes, atias [postular um positivismo primitivo] ou testas [postular um monotesmo primitivo], no resultam seno do empirismo que, sobretudo sob o regime do absoluto, dispe cada um a aplicar em todas as questes as suas prprias opinies. e p. 91: ... os ateus e pantestas, que, parodiando a positividade, so, no fundo, os ltimos representantes do esprito teolgico. Tornados, sem nenhuma desculpa social, os mais inconseqentes rgos do regime das causas, eles continuam a pesquisa do absoluto, mas proscrevendo a nica soluo que ela permite. Eles desnaturam profundamente a sntese inicial, fazendo-a perder sua feliz subjetividade, e tornando-a inutilmente objetiva, a partir de seu materialismo caracterstico, que se esfora por explicar a natureza moral pelo mundo fsico, abusando da verdadeira subordinao enciclopdica..

    26 O aspecto terico, na citao a seguir, da Carta a George Frederick Holmes, de 10/3/1853, aparece nos termos filosofia e dvida. Os aspectos morais e polticos, que aparecem, respectivamente, nos termos moral e poltica, corrupo e anarquia, sero abordados adiante: Qualquer um que creia em Deus, nos nossos dias, torna-se, por isso mesmo, incapaz de construir qualquer coisa seriamente em filosofia, em moral e em poltica; pois todas as crenas sobrenaturais no fazem seno desenvolver, h muito tempo, a dvida, a corrupo e a anarquia, tanto na prtica quanto na teoria. (Correspondncia VII, p. 51).

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    reconheam a superioridade normal da Religio fundada sobre a existncia natural das inclinaes benevolentes, que o catolicismo foi forado a negar para fazer prevalecer plenamente o Egosmo divino. 27.

    Em segundo lugar, a prpria idia de deuses ou Deus sobrenatural, para Comte, uma noo autocontraditria. Os trs assim chamados atributos de Deus, onipotncia, oniscincia e bondade total so contraditrios entre eles. Do seguinte modo: se Ele pode tudo e mantm a imperfeio no mundo, porque no v ou no quer; se vir e no pode, no onipotente; se vir, se pode aperfeioar, completar, mas no quer, isto , mantm a imperfeio (e, portanto, o mal, a dor, a morte, etc.), ento no total bondade 28. Como se pode ver parece que essa posio comtiana no leva em conta principalmente a noo de liberdade da criatura humana (e outras possveis criaturas racionais ou at mais que racionais, se isso for possvel), e a noo de criao no terminada, ainda em processo (condio da liberdade). Supondo isso, parece ento que Deus pode e v, mas no quer, porque quer antes a liberdade que criou; e mantm a incompletude para que a liberdade possa ser exercida. E isso indefinidamente ou com um trmino. Pelo aspecto moral Comte diz que o Deus do monotesmo um Deus caprichoso (que age por capricho, isto , sem necessidade), arbitrrio (pode fazer assim ou inversamente, conforme o seu arbtrio, sem nenhuma submisso a nenhuma lei ou leis, obedecendo somente a si prprio) e egosta. Capricho e arbitrariedade que acabam funcionando como testemunhos de sua inexistncia, pois o universo tem regularidade legal, de tal modo que, por exemplo, sempre chove para baixo e evapora para cima. A espontaneidade e a liberdade previstas pelo determinismo, muito maiores para a humanidade e para os homens, sempre segundo Comte, no chegam at o ponto de permitir caprichos e arbitrariedades 29. Entretanto, infelizmente para Comte e felizmente para ns, contamos com a possibilidade dos milagres, se no no sentido de negao do determinismo, ao menos no sentido de inspirar para o aproveitamento das oportunidades, para escapar da trajetria de um projtil, etc., sem que no cmputo geral tenha havido interferncia. Mas de fato afirmamos

    27 Carta a John Metcalf, 28/2/1856. In: Correspondncia VIII, p. 231-232. 28 Quanto aos teologismos em geral, vejamos no Discurso preliminar: A natureza absoluta, indefinida e

    imutvel dos tipos teolgicos nunca permitiu conciliar neles as condies essenciais de bondade, sabedoria e poder, ... (In: Sistema I, p. 341). Em relao ao monotesmo, vejamos no Sistema III, p. 431-432: Mas o monotesmo, (...), cumpriu uma concentrao necessariamente contraditria. Pois ele teve que conceder ao motor supremo uma onipotncia incompatvel com os outros atributos intelectuais e morais que tal tipo exigia. (...). Mas a unidade divina forou a instituir um tipo de perfeio absoluta, englobando ao mesmo tempo os trs atributos da humanidade, a afeio, a especulao e a ao. Ora, essa concepo se torna necessariamente contraditria, por causa da impossibilidade de conciliar a onipotncia de tal chefe com sua inteligncia e sua bondade igualmente infinitas. Para que esse ser todo poderoso no fosse inferior a ns pelo corao e pelo esprito, o mundo que ele tinha construdo no deveria oferecer nenhuma dessas imperfeies radicais que os sofismas monoticos jamais puderam dissimular..

    29 Quanto ao capricho, vejamos, por exemplo, no Discurso preliminar: ... a sublime inrcia do antigo Ser Supremo, cuja existncia passiva no era suspensa seno por inexplicveis caprichos. (Sistema I, p. 335); no Catecismo positivista, p. 116: O que seria dessa ordem admirvel, (...), se fosse preciso introduzir uma potncia infinita, cujos caprichos, no comportando nenhuma previso, ameaariam-na sempre de uma inteira subverso?; no Sistema III, p. 125-126: Se (...), as espcies (...) pudessem se substituir mutuamente ao bel prazer das potncias divinas, os acontecimentos poderiam comportar alguma outra fixidez seno aquela que conviria aos supremos caprichos? e p. 446: Seus desejos estando sempre realizados, no se pode conceber-lhes outra fonte seno puros caprichos, .... Com relao arbitrariedade, vejamos, por exemplo, no Sistema III, p. 197: Pois o corao e o esprito deviam acolher melhor uma nobre hierarquia de divindades independentes [do politesmo] do que a arbitrria dominao de um s deus. e p. 495: ... e substituir as vontades arbitrrias pelas leis imutveis.. Quanto ao capricho e arbitrariedade juntos, vejamos, por exemplo, na Carta a Henry Dix-Hutton, de 8/12/1853: Ao contrrio, os segundos [isto , os adoradores de Deus] adoram um Ser absoluto, cujo poder sem limites, de tal sorte que suas vontades permanecessem necessariamente arbitrrias. Se eles fossem realmente conseqentes, deveriam ver-se, portanto, como a verdadeiros escravos, submetidos aos caprichos de uma potncia impenetrvel. (Correspondncia VII, p. 147-148).

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    mais do que essa ltima possibilidade; achamos que o prprio determinismo pode ser mudado pelo Criador: de fato achamos que Deus criou o universo assim e poderia, pode recri-lo inversamente. Deus, se quiser, pode refazer toda a lgica, totalmente. Pode, por exemplo, refazer, inverter a lgica moral, digamos, tornando bom punir o inocente e premiar o culpado 30. O que para Comte capricho, para ns liberdade e ou poder; e o que arbtrio, para ele, para ns prerrogativa totalmente legtima do Criador que, como tal, tambm rbitro ou Juiz. Mas pior a afirmao do egosmo. O monotesmo, segundo Comte, prega um Deus auto-suficiente, majestoso, impassvel (no sentido de no precisar ser ativo), inerte (no sentido de no precisar se mover), que orienta os seus fiis a serem individualmente como Ele. Cada fiel sozinho com Deus. E eles no tm em si mesmos as tendncias benevolentes. Precisam que a graa de Deus venha pux-los do externo. Isso, segundo Comte, inviabiliza o coletivo, a comunidade, a sociedade. Mas, sempre segundo Comte, como a cooperao exigida pela diviso social do trabalho, e ocorre (o que prova a existncia natural dos instintos sociocntricos), superamos o egosmo, seu Deus e sua religio 31. Dizer que Deus necessrio, que continua imprescindvel, no negar que sejamos naturalmente bons, que tenhamos os instintos benevolentes. s dizer que sem Deus no d, que sem Ele voltamos ao nada. E o monotesmo no to mono: falamos em um Deus em trs pessoas, e ou, de Deus com anjos, homens, animais, vegetais, outras tantas possveis criaturas. Mas o mais importante, na nossa concepo, exatamente a negao do egosmo: o motivo para o Deus completo e feliz criar no teria sido seno criar felizes em torno a si,

    30 Bem ao contrrio, portanto, desta afirmao de Comte: Essas anomalias [isto , poder suspender as leis

    naturais] eram espontaneamente restritas s leis fsicas, mais indutivas do que dedutivas, sem poder superar a indivisibilidade da economia humana, nenhuma fico tendo ousado dispensar Deus at em relao s leis lgicas. (Sistema III, p. 434).

    31 Quanto ao egosmo e s inclinaes benevolentes, vejamos, por exemplo, no Sistema III, p. 446: ... a frmula metafsica viver em si e por si convm igualmente aos dois modos extremos da vitalidade. O tipo divino se aproxima assim do ltimo degrau de animalidade, o nico no qual a existncia, reduzida vida nutritiva, permanece inteiramente individual. Essa sublime consagrao do egosmo absoluto tende diretamente a neutralizar o desenvolvimento simptico do crente monotesta, cuja sade eterna deve consistir em tal contemplao, qual cada um se prepara durante a vida temporria. Mas, mais ainda, a existncia terrestre estando ento voltada para a sua destinao celeste, as inclinaes altrustas produzem nela uma distrao culpvel, proibida ao verdadeiro devoto em nome de seus melhores interesses, sempre necessariamente pessoais. Alm da impotncia geral do teologismo para representar o ponto de vista social, o monotesmo se encontra assim impelido especialmente a negar a espontaneidade das afeies benevolentes, compatveis com o politesmo. e p. 447: Nem o egosmo absoluto do tipo supremo, nem a negao dogmtica das afeies desinteressadas, nem a consagrao direta de uma insupervel personalidade puderam, todavia, impedir o catolicismo de participar admiravelmente na evoluo afetiva da idade mdia.. Com relao graa, vejamos, por exemplo, na Carta a Barbot de Chement, de 23/8/1850: ... o positivismo se apodera definitivamente do antigo domnio da graa, (...). Esse terreno outrora sobrenatural (...). (...). (...), inicialmente como regidos por vontade impenetrveis, depois como sujeitos a leis demonstrveis. (...). Para ele [o catolicismo] a graa, isto , no fundo, o amor (segundo o admirvel autor da Imitao gratia sive dilectio) no dependia seno dos caprichos divinos; teria sido mesmo um sacrilgio buscar as suas leis. Ns, ao contrrio, vemos essas sublimes funes cerebrais como ainda mais susceptveis do que todas as outras de ser dignamente regradas, porque elas devem em seguida servir de regulador normal para o resto do organismo nervoso. (Correspondncia V, p. 180-181) e no Sistema II, p. 378: Segundo os pressentimentos cavaleirescos, ele [o sexo afetivo] deve possuir para sempre o departamento supremo da graa, que a antiga divindade tinha se reservado especialmente em suas ltimas concesses.. Enfim, quanto vida prtica e material exigir o coletivo, vejamos no Sistema III, p. 444: Mas o monotesmo, exclusivamente ocupado em ligar cada homem a Deus, fez completa abstrao de nossa existncia material, na qual a colaborao social no pode jamais ser descartada. (...). O verdadeiro tipo da existncia crist sanciona diretamente a inrcia prtica, especialmente recomendada a partir da maldio divina do trabalho e da reprovao absoluta da guerra..

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    expandindo e repartindo a felicidade, coletivizando, fazendo eklesia, isto , comunidade. S que isso, ao que parece, ainda est em processo. Politicamente, segundo Comte, os monotesmos e suas inmeras ramificaes esto desunindo (lembremo-nos de que religio, para Comte, unidade!) cada vez mais a humanidade. Promovendo a anarquia. Isso leva Comte a rejeitar Deus em nome da religio 32. Esse um problema, a nosso ver, dos homens e no de Deus. Cada grupo descobre, experiencia algo de Deus ou em relao a Deus e acaba reduzindo-o a essa parte que privilegiou. E quer impor isso (e outras coisas!) aos demais. Mas parece que isso no pode ser debitado para Deus! E essa situao acaba justificando que em nome do Deus completo ou, ao menos em nome de outra parte de Deus, se faa um atesmo legtimo contra o dolo e a guerra contra ele. Acabamos construindo dolos em relao ao Deus completo e verdadeiro e isso acaba justificando que os outros, apoiando-se nele ou em outra experincia em relao a Ele, em outra parte dele, tenham que denunciar nossa imposio (e nosso deus falso, um dolo, portanto). Nesse sentido a idia de Deus como um ser perfeito acaba sendo uma idia altamente positiva, como subversiva das situaes imperfeitas. Mas ainda h mais. Alm de tudo isso, desse lado, digamos, negativo, h ainda o lado positivo do atesmo de Comte. Ele diz que, mesmo que no houvesse esses problemas, e mesmo se houvesse o Deus do monotesmo, ns devamos nos abster de encontr-lo, em nome da moral, do aperfeioamento moral. Devemos trabalhar por ns mesmos, sem interferncia externa. Esse o nosso dever e essa a nossa felicidade. Nossa obrigao com o Ser superior mais prximo de ns, isto , os outros, a humanidade:

    Ora, tal convico autoriza suficientemente cada um de ns a dirigir para a Humanidade todo o seu justo reconhecimento, mesmo se existisse uma providncia ainda mais eminente, de onde emanasse a potncia de nossa me comum. (...). Nossas verdadeiras necessidades intelectuais, tericas e prticas, exigem somente o conhecimento da ordem universal, que devemos sofrer e modificar. Se sua fonte nos pudesse ser conhecida, deveramos nos abster de procur-la, a fim de no desviar nossos esforos especulativos de sua verdadeira destinao, o melhoramento contnuo de nossa condio e de nossa natureza. E o mesmo se d, e em um grau mais alto, sob o aspecto moral. Nosso reconhecimento, pessoal ou coletivo, pelos benefcios da ordem real deve se limitar ao seu autor imediato, cuja existncia e atividade nos so continuamente apreciveis. Assim dirigido, ele se expandir de maneira a desenvolver plenamente o grande melhoramento moral que essas justas homenagens devem nos oferecer. Mesmo que nossa me comum encontrasse, na ordem real, uma providncia superior sua, no caberia a ns fazer chegar diretamente a ela nossa gratido. Pois tal descontinuidade moral, alm de sua injustia evidente, tornar-se-ia logo contrria principal destinao de nosso culto, desviando-nos da adorao imediata, nica plenamente conforme a nossa natureza afetiva. O regime provisrio que termina nos nossos dias manifestou

    32 Quanto promoo da anarquia, vejamos, por exemplo, no Discurso preliminar: O monotesmo se

    encontra hoje, no Ocidente, to esgotado e corruptor quanto se encontrava o politesmo quinze sculos atrs. (...). Cada tendncia teolgica, catlica, protestante ou desta, colabora realmente para prolongar e agravar a anarquia moral, impedindo o ascendente decisivo do sentimento social e do esprito de conjunto, nicos que podem reproduzir convices fixas e costumes seguros. No h atualmente nenhuma utopia subversiva que no apanhe sua base ou sua sano no monotesmo. (Sistema I, p. 397-398). Quanto a descartar Deus em nome da religio, vejamos nas Cartas a Pierre Laffitte, de 26/9/1849: ... pude constatar enfim que o emprego sistemtico do indispensvel termo religio com seus derivados no ofusca mais Littr, bastante tocado at pela esperana de descartar finalmente Deus como irreligioso. e de 18/10/1849: Enquanto que os protestantes e os destas sempre atacaram a religio em nome de Deus, ns devemos, ao contrrio, descartar finalmente Deus em nome da religio. (Correspondncia V, p. 87 e 98), e na Carta a Benedetto Profumo, de 17/5/1851: Essa plena harmonia com as principais necessidades atuais nos permite uma atitude extremamente firme em relao a Deus, que no hesito em descartar claramente em nome da religio, pois ele no apresenta, h trs sculos, seno uma influncia corruptora e perturbadora. (Correspondncia VI, p. 89).

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    bastante esse grave perigo, pois nele a maior parte dos agradecimentos dirigidos ao ser fictcio constitua atos de ingratido em relao Humanidade, nica autora real dos benefcios correspondentes. (Sistema II, p. 57-58).

    O que o materialismo para Comte Como j vimos, para Comte, o materialismo, assim como o atesmo, um erro grave, muito freqente e muito perigoso. Eles foram e so desvios, efeitos colaterais do caminho ascendente da escala enciclopdica. Quando se fazia e se refaz a matemtica, a astronomia, a fsica e a qumica, isto , a filosofia natural, foi e comum enxergar s o mundo, e, sobretudo, a sua materialidade, a matria. Se em relao ao atesmo a contraposio era o tesmo, o desmo e outros correlatos, aos quais Comte ope um tesmo especfico seu, em relao ao materialismo o contraposto principal, em Comte, o espiritualismo 33, aos quais ele ope o seu humanismo, o seu positivismo humanista. Como tambm j vimos, desde a 60 e ltima lio, escrita de 9 a 13/7/1842, do Curso, Comte j fala do antigo antagonismo filosfico entre o materialismo e o espiritualismo como coisa superada. Se o espiritualismo a acentuao da independncia e da dignidade das cincias ou estudos superiores em relao s cincias ou estudos inferiores, o materialismo a tendncia das cincias ou estudos inferiores a absorver, a impedir a independncia das cincias ou estudos superiores:

    Embora esse regime definitivo deva evidentemente aumentar bastante a independncia e a dignidade de todas as cincias, o estudo dos corpos vivos , contudo, aquele que deve naturalmente tirar mais vantagens, pois foi at agora o mais exposto a desastrosas usurpaes, contra as quais ele no parece poder encontrar garantias efetivas seno sob a proteo, ainda mais perigosa, e, todavia, muito insuficiente, das concepes teolgico-metafsicas. O deplorvel conflito que resulta, em biologia, de tal oposio, constitui hoje a nica influncia sria que o antigo antagonismo filosfico entre o materialismo e o espiritualismo ainda pde conservar. Pois essas duas tendncias inversas, mas igualmente viciosas, cuja ntima correlao as destina a desaparecer simultaneamente sob a preponderncia final do verdadeiro esprito positivo, no representam seno, no fundo, uma, a disposio natural das cincias inferiores a absorver abusivamente as superiores, a outra, o entusiasmo espontneo dessas ltimas em supor a manuteno de sua justa dignidade, sempre ligada tenebrosa conservao da antiga filosofia: dupla aberrao que agora no tem mais gravidade profunda seno em relao aos estudos biolgicos, nos quais ela ser necessariamente superada pela feliz aptido da filosofia final para regrar convenientemente cada constituio cientfica, ao mesmo tempo sem opresso e sem anarquia. 34.

    33 O nosso espiritualismo v o humano, o vital, o vegetal e o material como criaturas. Do contrrio, teramos

    que aceitar a divindade deles e do universo, ou de algo ou algum dele, como Comte faz. 34 Curso VI, p. 772-773. No Discurso, de 1844, ele diz que se trata de acentuar, respectivamente, a realidade

    ou a dignidade: Em seu desenvolvimento preliminar, nico cumprido at agora, o esprito positivo, tendo se estendido gradualmente dos estudos inferiores aos estudos superiores, esses ltimos foram inevitavelmente expostos opressiva invaso dos primeiros, contra cujo ascendente a indispensvel originalidade deles no encontrava inicialmente garantias seno em um prolongamento exagerado da tutela teolgico-metafsica. Essa deplorvel flutuao, muito sensvel ainda em relao cincia dos corpos vivos, caracteriza hoje o que contm de real, no fundo, as longas controvrsias, alis, to vs em todo outro sentido, entre o materialismo e o espiritualismo, como representantes, de maneira provisria, sob formas igualmente viciosas, das necessidades,

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    O primeiro texto mais completo de Comte sobre o materialismo foi o trecho das p. 49 a 54 do Discurso preliminar, de 1848. Nesse texto o materialismo o ascendente exagerado do mtodo e da doutrina prpria da cincia anterior em relao seguinte: em tal exagerao que consiste, aos meus olhos, a aberrao cientfica qual o instinto pblico aplica sem injustia a qualificao de materialismo, pois ele tende, efetivamente, a degradar sempre as mais nobres especulaes assimilando-as nas mais grosseiras. (In: Sistema I, 1851, p. 50). Nesse sentido, continua Comte, o materialismo constitui um perigo inerente iniciao cientfica, tal como at agora ela se cumpriu, cada cincia tendendo a absorver a seguinte em nome de uma positividade mais antiga e melhor estabelecida. (p. 50-51). Ele existe, alm de entre as cincias fundamentais, tambm entre as partes de cada uma delas:

    Um verdadeiro filsofo reconhece o materialismo tanto na tendncia comum dos matemticos atuais em absorver a geometria ou a mecnica pelo clculo, quanto na usurpao mais acentuada da fsica pelo conjunto da matemtica, ou da qumica pela fsica, sobretudo da biologia pela qumica, e enfim na disposio constante dos mais eminentes biologistas em conceber a cincia social como um simples corolrio ou apndice da sua. Trata-se do mesmo vcio radical, o abuso da lgica dedutiva; e do mesmo resultado necessrio, a iminente desorganizao dos estudos superiores sob a cega dominao dos inferiores. Todos os sbios propriamente ditos so, portanto, hoje, mais ou menos materialistas, conforme a simplicidade e a generalidade mais ou menos acentuada dos fenmenos correspondentes. (p. 51).

    Esse abuso da deduo impede as indues que fundam a especificidade da cincia seguinte: Mas os biologistas, que mais reclamam contra tal usurpao [dos sbios das cincias anteriores, e principalmente dos gemetras] merecem, por sua vez, as mesmas repreenses, quando pretendem, por exemplo, explicar tudo em sociologia pelas influncias puramente secundrias de clima ou de raa, pois ento eles desconhecem as leis fundamentais que apenas uma combinao direta das indues histricas pode desvelar. (p. 51). O espiritualismo tem tentado inutilmente barrar o materialismo:

    At agora o mal no foi contido seno pela resistncia espontnea do esprito teolgico-metafsico; e esse ofcio provisrio tem constitudo a destinao, indispensvel embora insuficiente, do espiritualismo propriamente dito. Mas tais obstculos no podiam impedir a enrgica ascenso do materialismo, assim investido, aos olhos da razo moderna, de certo carter progressista, por sua ligao prolongada com a justa insurreio da humanidade contra um regime que se tornou retrgrado. Assim, apesar desses impotentes protestos, a opressiva dominao das teorias inferiores compromete muito, hoje, a independncia e a dignidade dos estudos superiores. Satisfazendo, para alm de toda possibilidade anterior, ao que h de legtimo nas pretenses opostas do materialismo e do espiritualismo, o positivismo os descarta irrevogavelmente de uma s vez, um como anrquico, e o outro como retrgrado. Esse duplo servio resulta espontaneamente da simples fundao da verdadeira hierarquia enciclopdica, que assegura para cada estudo elementar seu livre desenvolvimento indutivo, sem alterar sua subordinao dedutiva. (p. 52).

    igualmente graves, embora infelizmente opostas entre si, de realidade e de dignidade das nossas especulaes. Chegado agora sua maturidade sistemtica, o esprito positivo dissipa de uma s vez essas duas ordens de aberraes terminando esses estreis conflitos, pela satisfao simultnea dessas duas condies viciosamente contrrias, como indica j primeira vista nossa hierarquia cientfica combinada com nossa lei de evoluo, pois cada cincia no pode chegar a uma verdadeira positividade a no ser que a originalidade de seu carter prprio esteja plenamente consolidada. (In: Trait philosophique dastronomie populaire, p. 108-109). Na Carta a Stuart Mil, de 21/1/1846 ele diz ... estril antagonismo ainda subsistente entre a escola materialista ou fsico-qumica e a escola espiritualista ou teolgico-metafsica. (Correspondncia III, p. 298).

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    Alm dessa necessidade de superao filosfica, Comte passa crtica do materialismo sob o aspecto poltico: ele dispe a desconhecer o princpio mais fundamental da poltica (arte social), isto , a diviso sistemtica dos dois poderes, espiritual e temporal (p. 53). O materialismo acentua o mundo, e, portanto, o temporal, em detrimento do homem, do espiritual. Desse modo, continua ele, Reconhecer-se- assim que o positivismo no menos radicalmente oposto ao materialismo por sua destinao poltica do que por seu carter filosfico. (p. 53). Moralmente, enfim, o materialismo dispe a descartar ou desconhecer os fenmenos afetivos:

    A partir de sua relao provisria com o conjunto do movimento de emancipao, as aberraes materialistas foram, ao contrrio, freqentemente ligadas, entre os modernos, s mais generosas inspiraes. Mas, alm de que essa solidariedade passageira j cessou, preciso reconhecer hoje que, mesmo nos melhores casos, tal tendncia intelectual sempre alterou, em certo grau, o desenvolvimento espontneo de nossos mais nobres instintos, dispondo a descartar ou a desconhecer os fenmenos afetivos que essas grosseiras hipteses no podiam representar. (p. 53).

    Resumindo o que vimos at agora sobre o que o materialismo para Comte, j temos uma distino importante, entre materialismo prtico e materialismo terico, apesar de at agora ele usar somente o termo materialismo, sem nenhum dos dois adjetivos. Eles aparecem juntos apenas em 1856: Quando o estado normal tiver prevalecido assaz, (...). Tal maturidade dispensar o sacerdcio dos cuidados contnuos que ele deve tomar ainda para preservar os Ocidentais do materialismo terico e prtico, ao qual eles so espontaneamente inclinados a partir do conjunto de seus antecedentes, e mesmo de sua existncia. (Sntese subjetiva I, p. 372). Isolada, a expresso materialismo terico aparece desde a Stima Circular anual, de 15/1/1856 (Correspondncia VIII, p. 197), e desde o comeo da Sntese subjetiva I (p. 83, 102, 106, 117, etc.). O materialismo prtico simplesmente o modo de viver que acentua os aspectos materiais, imediatos, concretos, tal como aparece, por exemplo, na expresso ... preponderncia crescente do ponto de vista puramente material e imediato ... 35. Trata-se de viver quase sem levar em conta os aspectos subjetivos, espirituais, tericos e afetivos. Trata-se de viver acentuando apenas os objetos das cincias inferiores, ou, de viver acentuando apenas o lado mais objetivo, mais prtico, mais concreto do objeto de qualquer cincia ou estudo. Ou de impor o objeto especfico de uma cincia inferior, por exemplo, o objeto da biologia, estando situado na sociologia, ocasio na qual se deve acentuar o objeto especfico da sociologia (manipular um fenmeno social como se fosse biolgico, ou um fenmeno moral como se fosse social). Segundo Comte, o modo de vida mais normal dos prticos, do poder temporal, justamente do qual ele deve sair a partir do trabalho scio-moralizador, civilizador do poder espiritual. O materialismo terico, por sua vez, o que acabamos de ver at o Discurso preliminar, de 1848. Trata-se do contedo terico, da teoria em relao ao materialismo prtico. Se esse ltimo acentua os objetos das cincias ou estudos inferiores em detrimento dos objetos das cincias ou estudos superiores, o materialismo terico acentua as cincias ou estudos inferiores em detrimento das cincias ou estudos superiores, como vimos 36.

    35 Curso IV, escrito de 1/3 a 1/7/1839, lio 46, p. 56. Na Carta a Audiffrent, de 21/2/1856, Comte fala ... a tendncia crescente a tudo materializar. (...), a religio que deve super-la, ... (Correspondncia VIII, p. 226). Rever, sobre o materialismo prtico, os pargrafos referentes s notas 6 a 9, acima.

    36 Falamos de cincias e de estudos, porque Comte faz toda uma diferenciao: as coisas particulares so estudadas e temos conhecimento delas, mas no cincia (manipulamos as coisas e situaes conscientemente: tcnica?); quanto s nossas prticas (a educao, por exemplo: arte?), elas esto a meio caminho em relao a poderem ser cientficas; cincia ou filosofia (ou filosofia da cincia, ou filosofia cientfica) s possvel das semelhanas e similitudes, das regularidades dos fenmenos e, portanto, so abstratas, abstraes,

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    Nesse sentido, como se pode falar de materialismo prtico em relao aos objetos de todas as cincias e estudos, isto , viver acentuando os objetos das cincias ou estudos inferiores, ou, viver acentuando os lados mais inferiores de todos os objetos, pode-se falar tambm de materialismo terico matemtico, materialismo terico astronmico, fsico, qumico, biolgico (ou materialismo mdico: Sistema IV, p. 319; Sntese subjetiva I, p. 722; Prefcio, da Sntese subjetiva I, p. X), sociolgico, e, at, digamos, no limite, isto , tirando a conseqncia, de materialismo terico moral (em relao prtica) e prtico (em relao ao concreto), sempre a cincia ou o conhecimento anterior usurpando a especificidade da cincia ou do conhecimento posterior. Ou, pode-se falar de materialismo (empirismo) terico material, em relao ao espiritual, de materialismo (empirismo) terico cientfico, em relao filosofia, e de materialismo terico filosfico, em relao religio, como se pode inferir da seguinte passagem do Sistema IV, p. 532: Aspirando reorganizao material isoladamente da reconstruo espiritual, o empirismo prtico se torna mais vo e mais perturbador do que o empirismo terico que se esfora para instituir a cincia independentemente da filosofia, ou essa sem a religio. 37. Na Sntese subjetiva I, de 1856, na qual Comte faz a sntese subjetiva da matemtica, superando o materialismo terico matemtico, ele distingue nesse materialismo terico matemtico um materialismo terico matemtico abstrato (ou algbrico) e um materialismo terico matemtico concreto (ou mecnico), como veremos. Antes percorramos os escritos de Comte do Discurso preliminar, de 1848, at 1857. Nesses escritos o materialismo (terico, mas tambm prtico, obviamente) e o espiritualismo aparecem tambm em sinnimos. Na Introduo fundamental, escrita de 10/1849 a 24/2/1850, Comte usa empirismo e dogmatismo (In: Sistema I, 1851, p. 427), e empirismo e misticismo (p. 518). No Sistema III, de 1853, o empirismo dito excesso de objetividade e idiotismo, enquanto o misticismo dito excesso de subjetividade e loucura. excesso, respectivamente, de matria (objeto, ordem exterior) e forma (sujeito, representar), entre as quais se localiza a normalidade, o equilbrio:

    Sem dvida a antiga preponderncia da subjetividade tenderia agora para a loucura, negligenciando os dados exteriores, em nome da dignidade. Mas, apesar de nossos preconceitos cientficos, preciso igualmente reconhecer que o moderno ascendente da objetividade impele atualmente ao idiotismo, reprimindo a espontaneidade mental, sob pretexto de realidade. Entre esse empirismo e esse misticismo, escolhos permanentes da razo humana, o verdadeiro esprito positivo institui hoje a via normal, a partir de uma

    generalizaes: S uma judiciosa abstrao gradual permitiu e pode manter o desenvolvimento contnuo do verdadeiro esprito filosfico, descartando de incio as exigncias prticas, a seguir as impresses estticas e, enfim, as condies concretas, para organizar pouco a pouco o ponto de vista mais simples, mais geral e mais elevado, para alm do qual no se poderia reduzir mais a apreciao racional sem cair logo em uma v ontologia. (Curso VI, 58 lio, escrita de 17/5 a 16/6/1842, p. 739). Comte segue Aristteles no sentido de no ser possvel cincia do particular, do concreto. Ento as cincias fundamentais so generalizaes. E do mais geral para o menos: a matemtica a mais geral e a mais abstrata. Este conhecimento desta rvore que est na minha frente s meu. Cincia do concreto, portanto, maneira imprpria de falar do conhecimento que os prticos efetivamente tm dos seus objetos concretos. Cincia das prticas j mais possvel, mas apenas imperfeitamente.

    37 Dissemos acima que os adjetivos prtico e terico s aparecem juntos, em Comte, a partir de 1856. Aqui, nessa citao de trecho de 1854, eles aparecem aplicados a empirismo, que estamos considerando como sinnimo de materialismo, em Comte. Eles podem ser considerados sinnimos dos que aparecem na expresso ... os prejuzos morais do materialismo industrial e cientfico., da Sexta [7, segundo R. T. Mendes] Confisso anual para Clotilde de Vaux, comeada a 30/5, terminada a 2/6, mas com acrscimos de 10 e 11/6/1851 (Correspondncia VI, p. 101). No Sistema III, de 1853, p. 524, Comte inverte a ordem, colocando primeiro a cincia e em segundo a indstria: Ela [a influncia esttica] modificou, contudo, as influncias materialistas emanadas do movimento cientfico e as tendncias egostas resultadas do desenvolvimento industrial..

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    exata apreciao da natureza e da destinao de nossas ss teorias. Subordinando sempre a imaginao observao, esse regime final desenvolve, todavia, toda a atividade de nossa inteligncia, nica que pode instituir um comrcio no qual o exterior no fornece seno os materiais. Afastado do absoluto tanto em relao ao objeto quanto em relao ao sujeito, ele reduz todos os nossos esforos tericos a representar suficientemente a ordem exterior, para que nossa sabedoria prtica possa melhor-la sistematicamente. (p. 24-25) 38.

    O Sistema IV, de 1854, traz materialismo e ontologismo (p. 436). E tambm materialismo analtico e espiritualismo sinttico, respectivamente anrquico e retrgrado, democrtico e aristocrtico, entre os quais Comte declara preferir o segundo:

    Embora mais positiva do que qualquer cincia, a religio universal saber teoricamente preferir o espiritualismo sinttico, vago quanto seja, ao materialismo analtico, mais afastado do verdadeiro regime especulativo. Do mesmo modo ela far as disposies retrgradas prevalecerem praticamente sobre as tendncias anrquicas, at que ela possa dignamente transformar umas e outras, convertendo os aristocratas e os democratas em sociocratas. (p. 533-534) 39.

    Enfim, na Sntese subjetiva I, de 1856, Comte fala de materialismo anrquico e espiritualismo retrgrado: ... nica que pode superar os preconceitos suscitados h muito tempo por um espiritualismo retrgrado, inutilmente dirigido contra um materialismo anrquico. (p. 674). Nesses escritos de Comte do Discurso preliminar, de 1848, at 1857, tambm, o materialismo (terico, mas tambm prtico) recebe vrios adjetivos: materialismo cientfico (Discurso preliminar, 1848, Sistema I, 1851, p. 258; Sntese subjetiva I, p. 365 e 367); materialismo sistemtico, materialismo emprico e materialismo cosmolgico (Introduo fundamental, Sistema I, p. 472, 569 e 593); materialismo industrial e cientfico (Sexta Confisso anual, Correspondncia VI, p. 101); materialismo acadmico (Catecismo positivista, 1852, p. 212; Sntese subjetiva I, p. 172; Carta a Alexander J. Ellis, 6/4/1857, Correspondncia VIII, p. 437); empirismo materialista (Carta a Audiffrent, 11/12/1854, Correspondncia VII, p. 278); materialismo cientfico, esttico e poltico (Stima Circular Anual, 15/1/1856, Correspondncia VIII, p. 191); materialismo universal (Oitava Circular Anual, 15/1/1857, Correspondncia VIII, p. 380). Enfim, na Sntese subjetiva I, Comte usa os adjetivos especulativo e geral para o materialismo:

    ... as pretenses da lgebra presidncia enciclopdica constituem a fonte despercebida do materialismo especulativo. Ele no surge em aritmtica, (...). (...). Vemos assim comear em lgebra a disposio a tratar as especulaes superiores como simples conseqncias das inferiores, abusando da subordinao dedutiva e desconhecendo a independncia indutiva, por falta de ligao subjetiva. Sob esse aspecto, os gemetras mais retrgrados se tornaram freqentemente, a partir dos seus prprios trabalhos, os promotores especiais do materialismo geral do qual eles deploravam cegamente a influncia anrquica. (p. 169-170).

    38 No Apelo, de 1855, Comte fala da conciliao entre corpo e crebro (p. 75-76): Instituindo o

    dualismo entre o corpo e o crebro, a nova sntese supera igualmente o materialismo e o espiritualismo, cujas pretenses legtimas so assim conciliadas sem nenhuma consagrao de seus respectivos vcios.. Sobre a conciliao entre exterior e interior, matria e forma, ver tambm no Cap. 1 do Sistema II, p. 32-33. Vejamos ainda, enfim, no Catecismo positivista, p. 85: ... todas as nossas concepes resultam necessariamente de um comrcio contnuo entre o mundo, que lhes fornece a matria, e o homem, que lhes determina a forma..

    39 Na Carta a Audiffrent, de 20/10/1856, Comte diz: A partir da preponderncia que agora a sntese deve obter, o espiritualismo menos afastado do positivismo do que o materialismo, em qualquer um que tenha feito os estudos cientficos. (Correspondncia VIII, p. 325).

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    Nesses escritos de Comte do Discurso preliminar, de 1848, at 1857, finalmente, a definio de materialismo (terico) reaparece vrias vezes. Vejamos na Introduo fundamental: Meu discurso preliminar j assinalou a tendncia materialista que se liga necessariamente s especulaes inferiores desprovidas de toda disciplina superior. (p. 421). No Sistema III, p. 43: Ela [a hierarquia das cincias] sistematiza a nobre mentalidade que sempre adverte, sob o justo ttulo de materialismo, a tendncia espontnea das cincias inferiores a dominar e mesmo absorver as superiores, em nome da influncia dedutiva., e p. 333, onde o materialismo aparece com a nuance de ser a tentativa irrealizvel de uma sntese objetiva:

    Alguns pensadores muito abstratos puderam, entretanto, dar crdito, de incio, sntese objetiva, que, desde seu incio astroltrico, esforava-se gradualmente para explicar todos os fenmenos a partir das leis j surgidas em relao existncia matemtica, base necessria de todas as outras. Mas essa sistematizao materialista logo se tornou, como entre os modernos, o refgio dos espritos incapazes de esperar e de duvidar. Sua insuficincia necessria foi ordinariamente reconhecida pelos verdadeiros diretores do movimento cientfico e filosfico. Eles sentiram prontamente que sua extenso mais hipottica no poderia jamais englobar a ordem humana, e mesmo que ela fracassaria sempre em relao ordem vital, permanecendo limitada ao domnio inorgnico, no qual sua preponderncia persistiu longo tempo, com certa utilidade. (...). Mas eles no tentaram instituir, entre essas vrias apreciaes, uma ligao objetiva, da qual pressentiam a frivolidade..

    Na Sntese subjetiva I a definio de materialismo reaparece cinco vezes. A primeira na p. 83: Todos os prejuzos da anarquia matemtica resultaram do ofcio cientfico, que suscitou o materialismo terico, que consiste em fazer prevalecer os estudos inferiores sobre os superiores, invocando a universalidade das leis mais grosseiras.. A segunda na p. 102: ... a irracionalidade radical do materialismo terico, que tende sempre a subordinar o superior ao inferior.. A terceira na p. 361: Baseada sobre as leis gerais da evoluo intelectual, a teoria positiva do materialismo o faz consistir sempre em violar a independncia enciclopdica impelindo os estudos inferiores a dominar os superiores, em nome da influncia dedutiva e da prioridade necessria.. A quarta na p. 366: Atentamente considerado, o materialismo terico deve consistir, portanto, em fazer sempre prevalecer o ponto de vista matemtico, por causa de sua generalidade cientfica e de sua simplicidade lgica. Comum aos dois modos, abstrato e concreto, de tal aberrao, sua presidncia objetiva no podia ser racionalmente superada seno pela supremacia subjetiva do ponto de vista moral, .... A quinta, enfim, na p. 728: ... materialismo terico, que dispunha a reduzir todos os fenmenos s condies geomtricas e mecnicas.. O maior e mais importante conjunto de textos de Comte sobre o materialismo se encontra na Sntese subjetiva I, de 1856, ltima grande obra que conseguiu escrever antes de falecer, em 5/9/1857. Segundo Comte, a origem do materialismo (prtico e terico) espontnea 40. Trata-se de um desvio natural da evoluo da conscincia humana, na medida em que se comeou e desenvolveu o caminho ascensional da tomada de conscincia na direo que vai do mundo para o homem; na medida em que se comeou e desenvolveu o caminho ascensional de posse cognoscitiva quantitativa na direo que vai do exterior para o interior, isto , para o homem. O incio do materialismo terico coincide com o incio do materialismo terico matemtico. Por sua vez, o materialismo terico principalmente o materialismo terico matemtico e,

    40 Limitado durante muito tempo ao domnio matemtico, no qual reside sua fonte espontnea, o

    materialismo prevaleceu gradualmente, durante esses cinco sculos, em todas as partes da filosofia natural. (Sntese subjetiva I, p. 362-363).

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    essencialmente, o seu primeiro modo, o abstrato ou algbrico (veremos adiante os modos do materialismo matemtico). O comeo, o incio efetivo na lgebra: Restrita ao seu domnio independente, a aritmtica se encontra constantemente preservada dos contatos que dispuseram a lgebra s usurpaes cientficas, em que o meio era tomado por fim. Desse ponto de vista, reconhece-se que, embora o materialismo terico tenha emanado necessariamente do clculo, da lgebra que ele resultou, sem que a aritmtica tenha jamais participado nisso; seu carter a aproxima da teologia, enquanto que a lgebra se inclina para a metafsica. (p. 106). E o motivo o abuso da subordinao dedutiva e o desconhecimento da independncia indutiva, por falta de ligao subjetiva:

    Bem apreciadas, as pretenses da lgebra presidncia enciclopdica constituem a fonte despercebida do materialismo especulativo. Ele no surge em aritmtica, apesar da universalidade direta das noes numricas, pois todos sentem que, embora aplicveis por toda parte, elas permanecem por toda parte subordinadas aos atributos correspondentes. Elas no aspiram a dominar seno quando a lgebra, tornando-as indeterminadas, tira delas o nico carter que lhes fornecia uma positividade subalterna mas direta. Vemos assim comear na lgebra a disposio a tratar as especulaes superiores como simples conseqncias das inferiores, abusando da subordinao dedutiva e desconhecendo a independncia indutiva, por falta de ligao subjetiva. (p. 169-170).

    Da lgebra o materialismo se alastra, avana adiante: Pode-se assim qualificar de metafsico o modo direto do materialismo matemtico [isto , o abstrato]; ele o mais antigo e o mais difundido, sem ser o mais perigoso, pois nele os termos so freqentemente tomados como coisas. Ligada geometria pela renovao cartesiana, a lgebra fez surgir logo um modo mais especial, embora indireto [isto , o concreto], fundando sua presidncia enciclopdica sobre a universalidade necessria das leis da extenso e do movimento. Ela desde ento ligou o materialismo matemtico quele que as diversas partes da filosofia natural desenvolvem, as quais cada uma tende a dominar as seguintes, a partir de uma viciosa apreciao da subordinao normal dos fenmenos correspondentes. Sob essa impulso, prpria ao desenvolvimento emprico das especulaes positivas, os dois modos sucessivos da usurpao algbrica finalmente se combinaram, quando a lgebra tentou absorver a geometria e a mecnica, de cujos tericos os outros tericos no ousavam contestar a supremacia. Estendido por toda parte, e mesmo sistematizado, a partir de sua dupla fonte matemtica, o materialismo terico permaneceu diretamente insupervel at surgimento da religio da Humanidade. (p. 171-172) 41.

    41 Na p. 360 Comte fala da ... utopia matemtica na qual todas as explicaes cientficas resultariam das leis

    da extenso e do movimento, que s a lgebra podia desenvolver.. A principal fonte do materialismo terico concreto a mecnica (p. 607), como veremos. Nas p. 623-624 ele escreve: Examinadas a partir do conjunto da preparao normal, as tendncias materialistas naturalmente ligadas aos estudos mecnicos sero facilmente superadas pelo sacerdcio iniciador. (...). (...) graves perturbaes intelectuais e morais. Examinando com mais preciso o desenvolvimento histrico dessas aberraes, v-se que elas no emanaram diretamente da mecnica, mas do esprito algbrico, que, sempre agente, quer dirigir tudo. Durante o grande sculo (...) a mecnica permaneceu pura dos desvios que em seguida ela fez surgir, (...). Ela, contudo, foi disposta, desde o incio, a fazer penetrar por toda parte um materialismo audacioso, mas progressista e mesmo orgnico, sempre fundado sobre uma irracional apreciao da universalidade necessria das leis matemticas. (...).Bem apreciado, o materialismo matemtico no se tornou essencialmente prejudicial seno quando a lgebra prevaleceu, por causa da insuficincia da disciplina (...). Examinada filosoficamente, a mecnica celeste ajudou esses desvios (...). (...). Todavia, o principal desenvolvimento das aberraes tericas resultou do crdito que a elaborao da mecnica celeste deu lgebra, e das irracionais esperanas surgidas assim em relao extenso universal do esprito matemtico. Ento o materialismo geomtrico e mecnico, que foi, no sculo XVII, orgnico e progressista, tornou-se irrevogavelmente anrquico e retrgrado, mesmo na teoria geral do movimento e do equilbrio,

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    A histria do materialismo tem no seu comeo e no seu final a cincia, mas com o incio e o final intermediados pela metafsica e pela teologia; os trs estados intelectuais contriburam:

    A fim de apreciar melhor um vcio cuja natureza e gravidade so desconhecidas por aqueles que o deploram mais, preciso reconhecer de incio que os trs estados intelectuais contriburam com ele, cada um a sua maneira, durante todo o curso da evoluo terica. O esprito cientfico sempre foi a sede direta do materialismo, a partir da sua marcha necessria do mundo para o homem, at que sua preparao objetiva foi inteiramente terminada. Todavia, o esprito metafsico tendeu espontaneamente a desenvolver essa aberrao, mesmo a combatendo, porque ele constituiu o mtodo isoladamente da doutrina, e consagrou o abuso da deduo. Deve-se enfim ver o esprito teolgico como tendo involuntariamente secundado, sobretudo depois do monotesmo, um desvio hostil sua supremacia, impelindo a construir uma sntese objetiva, e suscitando uma falsa apreciao de unidade terica. Sob essa tripla influncia, o materialismo cresceu sempre at que o Ocidente cumpriu a transio necessria entre a teocracia e a sociocracia inaugurando o positivismo, que fez cessar as duas aberraes opostas. (p. 361-362).

    Como a Sntese subjetiva inteira devia