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As guerras dos índios KAINGANG A história épica dos índios Kaingang no Paraná (1769 - 1924) 2a. Edição Revisada e ampliada Liv-Lucio As Guerras (2a. ed. - 07 3a. prova).indd 1 Liv-Lucio As Guerras (2a. ed. - 07 3a. prova).indd 1 19/5/2009 11:26:09 19/5/2009 11:26:09

As Guerras Dos Indios Kaingang

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  • As guerras dos ndios KAINGANG

    A histria pica dos ndios Kaingang no Paran (1769 - 1924)

    2a. EdioRevisada e ampliada

    Liv-Lucio As Guerras (2a. ed. - 07 3a. prova).indd 1Liv-Lucio As Guerras (2a. ed. - 07 3a. prova).indd 1 19/5/2009 11:26:0919/5/2009 11:26:09

  • Editora da Universidade Estadual de MaringReitor: Prof. Dr. Dcio Sperandio

    Vice-Reitor: Prof. Dr. Mrio Luiz Neves de Azevedo

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  • Lcio Tadeu Mota

    As guerras dos ndios KAINGANG

    A histria pica dos ndios Kaingang no Paran (1769 - 1924)

    2a. EdioRevisada e ampliada

    Maring-PR2008

    GOVERNO DO ESTADO DO PARANSECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAO

    DEPARTAMENTO DE ENSINO MDIOPROGRAMA EXPANSO, MELHORIA E INOVAO

    NO ENSINO MDIO DO PARAN PROEMPROJETO BIBLIOTECA DO PROFESSOR

    Liv-Lucio As Guerras (2a. ed. - 07 3a. prova).indd 3Liv-Lucio As Guerras (2a. ed. - 07 3a. prova).indd 3 19/5/2009 11:26:5119/5/2009 11:26:51

  • Imagem da capa: Cena 33: vem os Indios em grande quantidade dispostos traio, que tinho premeditado. Guache e aquarela atribudo a Joaquim Jos de Miranda, sculo XVIII (42,5 x 55 cm).

    Capa arte final: Luciano Wilian da Silva

    Projeto grfico e editorao: Marcos Kazuyoshi Sassaka

    Fonte: Dutch811 BT

    Tiragem: 1.800 exemplares

    Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP) (Biblioteca Central - UEM, Maring PR., Brasil)

    Mota, Lcio TadeuM917i As guerras dos ndios Kaingang : a histria pica dos

    ndios Kaingang no Paran (1769-1924) / Lcio Tadeu Mota, apresentao de Carmem Sylvia de Alvarenga Junqueira. -- 2. ed. rev. e ampl. -- Maring : Eduem, 2008.

    298 p. : il., fots., mapas

    ISBN 85-85545-06-2 (1. ed.) ISBN 978-85-7628-113-9 (2. ed.) Livro indexado no Geodados. http://www.geodados.uem.br

    1. Paran - Histria - ndios Kaingang - 1769-1924. 2. ndios Kaingang - Paran - Resistncia - 1769-1924. I. Ttulo.

    CDD 21.ed. 981.62004984

    Copyright 2008 para o autor

    Todos os direitos reservados. Proibida a reproduo, mesmo parcial, por qualquer processo mecnico, eletrnico, reprogrfico etc., sem a autorizao, por escrito, do autor.

    Todos os direitos reservados desta edio 2008 para Eduem.

    1. edio 19941. reimpresso 2005

    Eduem - Editora da Universidade Estadual de MaringAv. Colombo, 5790 - Campus Universitrio, 87020-900 - Maring-Paran-BrasilFone: (0XX44) 3261-4527 - Fax: (0XX44) 3261-4253Site: www.eduem.uem.br - E-mail: [email protected]

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  • Agradecimentos

    Agradeo a paciente e perseverante orientao da professora Dra. Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira, sem a qual no seria possvel o desenvolvimento deste trabalho.

    O apoio recebido pelos colegas da Universidade Estadual de Maring, os professores Hermenegildo Fabiano e Marta Bellini, na leitura dos originais, e o professor Leonildo Carnevalli, pela correo final.

    E o atendimento recebido, sempre que necessrio, dos funcionrios da Biblioteca Central da Universidade de Maring, da Biblioteca da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, da Biblioteca Pblica de Curitiba, do Arquivo Pblico do Estado do Paran, do Museu Paranaense e do Instituto Histrico e Geogrfico do Paran.

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  • Sumrio

    Agradecimentos ...................................................................... 5

    Apresentao .......................................................................... 9

    Introduo ............................................................................... 11

    PARTE 1 A construo do vazio demogrfico .......... 17Captulo I ESPAO, NATUREZA E IDIAS ................................... 19

    Captulo II OS GEGRAFOS E A CONSTRUO DO VAZIO DEMOGRFICO .................................................................................. 27

    Captulo III A SOCIOLOGIA, A HISTORIOGRAFIA E O VAZIO DEMOGRFICO ................................................................................. 39

    Captulo IV A REPETIO DO VAZIO DEMOGRFICO NOS LIVROS DIDTICOS .......................................................................... 55

    Captulo V O VAZIO DEMOGRFICO NAS OBRAS QUE FAZEM A APOLOGIA DA COLONIZAO DA REGIO ............................. 63

    PARTE 2 A presena indgena no Paran ............ 73Introduo ............................................................................................ 75

    Captulo I AS PRIMEIRAS POPULAES NO PARAN ............. 77

    Captulo II O TERRITRIO DO GUAYR ..................................... 87

    Captulo III A LITERATURA ETNOLGICA E PRESENA INDGENA NO PARAN .................................................................... 91

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    LourenoSelecionar

  • 8As guerras dos ndios Kaingang

    Captulo IV A PRESENA INDGENA NOS RELATOS DE VIAJANTES, RELATRIOS DE PRESIDENTES DA PROVNCIA E OFCIOS DAS REPARTIES PBLICAS .................................. 95

    PARTE 3 A resistncia Kaingang no Paran............. 111Introduo ............................................................................................ 113

    Captulo I AS ARMAS KAINGANG ................................................. 117

    Captulo II AS EXPEDIES DO TENENTE-CORONEL AFONSO BOTELHO E A RESISTNCIA KAINGANG NOS CORAN-BANG-R ......................................................................................................... 129

    Captulo III DIOGO PINTO E A GRANDE EXPEDIO MILITAR DE OCUPAO DOS CORAN-BANG-R .......................................... 147

    Captulo IV AS GUERRAS DOS KAINGANGS EM OUTRAS PARTES DA QUINTA COMARCA DE CURITIBA ......................... 161

    Captulo V A GUERRA CONTINUA NO PARAN PROVNCIA . 167

    Captulo VI OUTRAS FORMAS DE RESISTNCIA ALM DAS AES AMADAS ................................................................................. 197

    Captulo VII OS CACIQUES KAINGANG ....................................... 231

    Consideraes Finais ............................................................ 281

    Referncias ............................................................................ 285

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  • Apresentao

    Foi com satisfao que aceitei o convite para apresentar ao leitor este livro de LCIO TADEU MOTA. Trata-se de um trabalho realizado com muita seriedade intelectual e que demandou vrios anos de estudo e pesquisa.

    Lcio Tadeu ingressou no Programa de Estudos Ps-Graduados da PUC de So Paulo discretamente, na condio de estudante do interior, sem ostentar os enganosos lampejos de jovem moderno! Dono de uma capacidade de trabalho considervel e de uma vontade imbatvel, ele durante os primeiros anos procurou se inteirar das contribuies mais relevantes da Antropologia. Conjugou seus estudos prtica da investigao de documentos sobre o Estado do Paran e os ndios Kaingang. Alm das atividades docentes, sua vida passou a girar, de um lado, em torno de papis empoeirados, cartas rebuscadas, fragmentos de difcil leitura, relatos incompletos e, de outro, em torno de paradigmas, questes tericas, metodolgicas e tcnicas. Pouco a pouco, de dentro do jovem do interior nascia um competente pesquisador.

    As Guerras dos ndios Kaingang um texto de muitas qualidades: enriquece a histria do Estado do Paran, ao preencher uma lamentvel lacuna que h mutilava o sentido do encontro entre civilizaes diferentes, entre o ndio e o branco. O autor demonstrou ainda que com pacincia, disciplina de trabalho e entusiasmo pelo saber possvel encontrar entre relatrios, cartas, informes etc o fio condutor da trajetria de um povo. Com isso, trs coisas ficaram evidentes: 1) a riqueza que os documentos histricos significam e sua propriedade de preservar a memria; 2) a importncia poltica, social e cultural dos estudos sobre etno-historia; e 3) o registro da histria Kaingang, que a eles retorna para avivar lembranas

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    As guerras dos ndios Kaingang

    passadas, e tambm como testemunho do cruel destino que o colonizador lhes imps. Seguramente, o leitor atento saber colher outros ensinamentos do livro de Lcio Tadeu Mota.

    Carmen Junqueira

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  • Introduo

    comum todos os anos, no ms de abril, quando da comemorao do Dia do ndio, a imprensa do norte do Paran publicar reportagens sobre os ndios Kaingang da regio. So reportagens ilustradas com fotografias e ttulos dramticos como: O RESTO DE UMA RAA; NDIOS KAINGANG FORAM TRANSFORMADOS EM BIAS FRIAS NO NORTE DO PARAN1, Aparecem, ainda, matrias especiais com manchetes como: SEM MATAS E SEM LENDA2, MANGUEIRINHA SEM CRET3 que discorrem sobre a morte do lder Kaingang ngelo Cret em 1980, e a situao da Terra Indgena de Mangueirinha invadida por pistoleiros a servio de grupos empresariais interessados nas matas de araucrias da rea.

    Essas notcias relatam o que sobrou dos Kaingang no Paran, confinados em reservas, s margens dos rios Tibagi, Iva, Piquir, Iguau e outros menores, em torno das grandes cidades como Londrina, Maring, Guarapuava e outras, tanto do extremo norte do Estado como em direo ao sul at Palmas, acompanhando as serras que separam o segundo do terceiro planalto paranaense. Vivem numa situao de pobreza comparvel das populaes dos grandes centros urbanos. Vivem do cultivo de suas terras com roas familiares e coletivas, da fabricao e comercializao artesanato nas cidades vizinhas, do trabalho temporrio nas fazendas das redondezas e complementam seu sustento com o que recebem dos programas sociais dos governos federal e estadual.

    1 Revista Pois , n. 20, abril de 1988.

    2 Jornal Folha de Londrina. 20/4/1990. p. 30.

    3 Jornal Folha de Londrina. 22/4/1990. p. 28.

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    As guerras dos ndios Kaingang

    Terras Indgenas Etnias Municpio(s)

    Situao Fundiria1

    (Funai)

    rea (Ha)2

    (Funai)

    Popu-lao3

    (Funasa)

    Bacia do Rio das Cinzas/Laranjinha

    Pinhalzinho Guarani -Nhandewa Tomazina Registrada no CRI em 1986 593 139

    LaranjinhaGuarani - Nhandewa Kayow

    Santa Amlia Registrada no CRI (1997) e SPU (1998) 284 259

    YvyPor Laranjinha

    Guarani - Nhandewa

    Abatia, Cornlio Procpio e Ribeiro do Pinhal

    Declarada (19/4/2007)Portaria 796 1.238 238

    Bacia do Rio Tibag

    Apucarana Kaingang Tamarana Registrada no CRI (1955) 5.575 1.323

    Baro de Antonina Kaingang

    So Jernimo da Serra

    Registrada no SPU (1977) e no CRI (1992) 3.750 376

    So Jernimo Kaingang Guarani XetSo Jernimo da Serra

    Registrada no CRI(1992) e no SPU (1977) 1.339 562

    Tibagy/Mococa Kaingang Ortigueira Registrada no SPU (1996) 859 114

    Queimadas Kaingang Ortigueira Registrada no CRI (1996) e no SPU em (1998) 3.077 453

    Bacia do Rio Iva

    Faxinal Kaingang Cndido de Abreu Registrada no CRI (1992) 2.043 420

    Iva Kaingang Manoel Ribas e PitangaRegistrada no CRI (1992)e SPU (1994) 7.306 1.155

    Marrecas Kaingang Turvo e Guarapuava Registrada no CRI em 1985 16.839 505

    Bacia do Rio Piquir

    Boa Vista Kaingang Laranjeiras do SulDeclarada (29/10/2007)Portaria 1.794 7.344 43

    Bacia do Rio Iguau

    Mangueirinha Kaingang/Guarani

    Mangueirinha, Chopinzinho e Coronel Vivida

    Registrada no CRI, Comarca de Palmas em 1961 16.375 1.848

    Rio das Cobras Kaingang/Guarani

    Nova Laranjeiras e Espigo Alto do Iguau

    Registrada no CRI da laranjeiras do SUl (1984 e no SPU (1988) 18.681 2.796

    Palmas KaingangPalmas (PR) e Abelardo Luz (SC)

    Em identificao 2.944 743

    Rio Areia Guarani - Nhandewa Incio MartinsRegistrada no CRI (1993) e no SPU (1999) 1.352 141

    Bacia do Rio Paran III

    Av-Guarani do Oco

    Guarani - Nhandewa

    So Miguel do Iguau

    Tabelionato da Comarca de So Miguel do Iguau, Lv n 18-Nfls.125/129, de 25/08/83

    231 572

    Tekoh Aetete Guarani - Nhandewa Diamante DOesterea adquirida pela Itaipu para Unio (1997) 1.744 287

    Litoral

    Cotinga Guarani - Mby Paranagu Registrado no CRI e SPU (1994) 1.701 72

    Cerco Grande Guarani - Mby Guaraqueaba A ser identificada 56 35

    Ilha do Superagui

    Guarani - Mby Guaraqueaba A ser identificada 28

    Terras indgenas 3 Etnias

    1. www.funai.gov.br. 2. www.funai.gov.br. 3. Funasa.

    Quadro 1. Terras indgenas no Paran em 2007 por bacias hidrogrficas.

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    Introduo

    Figura 1. Mapa do Paran com a localizao das terras indgenas no Estado.

    Liv-Lucio As Guerras (2a. ed. - 07 3a. prova).indd 13Liv-Lucio As Guerras (2a. ed. - 07 3a. prova).indd 13 19/5/2009 11:26:5719/5/2009 11:26:57

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    As guerras dos ndios Kaingang

    Existem hoje no Paran, conforme dados da FUNAI, vinte e uma (21) Terras Indgenas, ocupando as diversa regies do estado desde o litoral at as margem do rio Paran. A Terras Kaingang localizam-se na rea central do Estado, cortando-o transversalmente no sentido nordeste/sudoeste, acompanhando as serras que dividem o segundo do terceiro planalto paranaense.

    A evidente presena indgena no Paran no , entretanto, registrada pela histria da regio, e o objetivo da primeira parte deste trabalho mostrar como se construiu a idia do vazio demogrfico.

    Pois, na maioria dos discursos oficiais, em livros didticos, nas obras sobre o pioneirismo no norte do Estado, nos trabalhos acadmicos que tratam da ocupao da regio a partir de 1930, comum encontrar-se a afirmao de que essas terras eram devolutas, selvagens, desabitadas, estavam abandonadas, virgens, selvticas, serto bravio. As terras do setentrio, do oeste e sudoeste paranaense, para o colonizador dos anos de 1920 aos anos de 1950 estavam desabitadas, vazias, prontas para serem ocupadas e colonizadas. o mito do vazio demogrfico.

    Ao lado dessa falcia, a classe dominante apaga um dos sujeitos da histria: os povos indgenas. A ocupao da regio tida como pacfica, sem lutas ou resistncias, uma vez que, segundo a verso oficial, os povos indgenas simplesmente no existiam.

    Na segunda e terceira parte, buscaremos resgatar a presena e resistncia indgena em meio s suas relaes com o civilizado, marcadas pela violncia4.

    Abordaremos essas formas de luta e resistncia dentro da perspectiva antropolgica que considera as aes das sociedades indgenas enquanto aes polticas:

    El processo de descolonizacion ha tenido consequencias inmediatas en la prctica cientfica peculiar de la antropologia social y de la sociologa de las sociedades no europeas, sobre la representacon clssica de esta categoria de sociedades. Ha alterado las costumbres, provocando el pudor terminolgico (respecto a calificativos como arcaico, primitivo, etc) e introducido la duda en cuanto al alcance actual de la empresa antroplgica. Repentinamente,

    4 Carmem JUNQUEIRA, Edgard de Assis CARVALHO. Antropologia e Indigenismo na Amrica Latina. p. 5.

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    Introduo

    de golpe, las sociedades consideradas estticas, o limitadas, a la repeticion, se han abierto al cambio o a la revolucon; han vuelto a encontrar una histria; han dejado de pertencer al orden de la passividad y de los objetos inanimados5.

    Esta uma perspectiva que pe em relevo o pluralismo das sociedades humanas. Supera o ponto de vista etnocntrico e reintroduz na histria as sociedades que foram excludas pelo colonialismo, registrando o seu movimento dinmico.

    A percepo crtica do sistema de dominao colonial resulta na elaborao de uma teoria que coloca a relao da sociedade europeia, crist e industrializada com as sociedades indgenas da sia, frica, Amrica e Oceania centrada no binmio dominao/subordinao que compe uma totalidade.

    As formulaes de Balandier nos indicam um caminho para melhor entender os processos histricos e as relaes interculturais dos Kaingang diante da expanso da sociedade nacional, como um projeto poltico de longo alcance. Projeto que rejeita o avano da sociedade nacional sobre suas terras e defende seu modo de vida e sua liberdade. Os conflitos internos e as ambigidades vividas pelos Kaingang permeiam seu projeto, fazendo eclodir cises, e alianas contraditrias.

    Dentro dessa orientao, vamos, primeiro, resgatar a presena dos Kaingang por todo o territrio paranaense e adjacncias, contrapondo-a idia construda pelas classes dominantes do vazio demogrfico. Essa presena ser resgatada a partir de 1760, atravs dos relatos das expedies militares do coronel Afonso Botelho e Diogo Pinto, que tentaram ocupar os campos de Guarapuava e Palmas; pelos relatos dos viajantes que por aqui transitaram no sculo XIX; pelos ofcios, comunicados, cartas e relatrios dos governos da Colnia, do Imprio, da Provncia e do Estado do Paran e pelos registros das primeiras crnicas sistemticas sobre os ndios, como, por exemplo os textos dos padres Francisco das Chagas Lima e Luiz de Cemittille, e de Telmaco Borba.

    Resgatada a presena dos ndios Kaingang no Paran contrapondo a idia do vazio demogrfico, passaremos a demonstrar que a conquista dos territrios Kaingang foi feita em meio a reao permanente dos ndios s vilas que brotavam em suas terras, s

    5 Georges BALANDIER. El Concepto de Situacion Colonial. 1972. As aspas e os grifos no texto so do autor.

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    As guerras dos ndios Kaingang

    fazendas implantadas em seus campos, aos viajantes, tropeiros, comerciantes e aventureiros que cruzavam suas matas e campinas, s patrulhas da guarda nacional e provincial que percorriam suas terras. Esses ataques se prolongaram durante os sculos XVIII XIX e incio do sculo XX, em todos os territrios ocupados.

    Os choques contra as populaes conquistadoras foram uma constante na vida Kaingang desde o sculo XVIII. Nessa relao conflituosa, criaram tcnicas de combate, refinaram tticas de luta, aperfeioaram formas de atacar e de manter o inimigo sobre presso, enfim, desenvolveram tcnicas de guerra, de guerrilhas, de emboscadas e ataques capaz de fazer frente a um inimigo muito superior a eles. Confirmando a idia de Florestan Fernandes que desmistifica a pseudo pacificidade dos ndios durante a conquista e a ocupao europeia.

    Ainda hoje se mantm o mito de que os aborgenes, nesta parte da Amrica, limitaram-se a assistir ocupao da terra pelos portugueses e a sofrer, passivamente, os efeitos da colonizao. [...] Todavia, nada est mais longe da verdade, a julgar pelos relatos da poca. Nos limites de suas possibilidades, foram inimigos duros e terrveis, que lutaram ardorosamente pelas terras, pela segurana, pela liberdade, que lhes eram arrebatadas [...]6.

    Nossa anlise sobre a resistncia Kaingang no Paran inicia-se com os relatos da expedio do tenente-coronel Afonso Botelho em 1768 e termina com os acontecimentos na serra da Pitanga em 1924.

    Trabalhamos com documentao primria, manuscrita e impressa, proveniente de relatrios de expedies militares e cientficas, relatrios oficiais de presidentes de provncia bem como ofcios e documentos da burocracia governamental existentes no Arquivo Pblico do Paran. Com inmeros relatos de viajantes, cientistas e aventureiros que por aqui passaram nos sculos XVIII, XIX e XX, bem como com o rico material da literatura etnolgica existentes sobre os Kaingang no sul do pais, destacando os trabalhos e crnicas sistemticas sobre os ndios dos padres Francisco das Chagas Lima e Luiz de Cemitille e de Telmaco Borba o primeiro a elaborar uma monografia sobre os Kaingang.

    6 Florestan FERNANDES. Investigao Etnolgica no Brasil e Outros Ensaios. Petrpolis, Vozes, p. 11.

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  • PARTE 1

    Construo do vazio demogrfico:

    (uma forma de ocultar os conflitos indgenas no Paran

    Liv-Lucio As Guerras (2a. ed. - 07 3a. prova).indd 17Liv-Lucio As Guerras (2a. ed. - 07 3a. prova).indd 17 19/5/2009 11:26:5819/5/2009 11:26:58

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  • Captulo IESPAO, NATUREZA E IDIAS

    A princpio tudo representava um panorama selvtico. O seio da terra virginal, recoberto de florestas seculares, abrigava tesouros inestimvel de fecundao e fertilidade prontos para fornecerem colheitas dadivosas. [...] Havia, de primeiro, a terra protegida pela floresta imensa. E lentamente a floresta, a floresta to exuberante e impenetrvel cedia lugar queles homens intrpidos e valentes (MARING ILUSTRADA, 1972, p. 194).

    Frases como essas de diferentes autores so comuns nos escritos, oficiais ou no, sobre o norte e o oeste paranaense colonizados nos sculos XIX e XX.

    Neste tpico vamos discutir a ideologia da construo de um territrio vazio, desabitado, no terceiro planalto paranaense. Vamos falar da produo desse espao dentro dos marcos da expanso capitalista, que incorpora uma nova rea ao seu sistema produtivo. Desmistificando a idia de um processo harmonioso e pacfico elaborado pela tica colonialista.

    Procuraremos mostrar como esse espao, habitado por comunidades indgenas, passa a ser projetado como um espao vazio improdutivo, pronto a ser ocupado pela economia nacional produtiva.

    Os agentes dessa projeo so vrios: a histria oficial das companhias colonizadoras; as falas governamentais e sua incorporao nos escritos que fazem a apologia dessa colonizao exaltando seu pioneirismo; os gegrafos que escreveram sobre a ocupao nas dcadas de 30 a 50 do sculo XX; a historiografia sobre o Paran

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    produzida nas universidades e, por fim, os livros didticos, que so uma sntese das trs fontes, repetindo para milhares de estudantes do Estado a idia da regio como um imenso vazio demogrfico, at o incio da dcada de 30 deste sculo, quando comea, ento, a ser colonizada.

    A ideologia corrente alimenta um conceito de natureza externa sociedade, espera de ser possuda. Assim, o norte e oeste paranaense, da metade do sculo XIX em diante, com suas florestas, campos, rios, rochas, terras roxas, climas amenos, aguardariam a sua internalizao no processo de produo da sociedade industrial moderna.

    Essa viso dualista aparece de forma fragmentria na tradio intelectual judaico-crist, mas toma forma em Kant, e se cristaliza, nos dois sculos seguintes, enquanto espinha dorsal do pensamento burgus sobre a natureza7.

    A ns interessa, mais particularmente, como essa ideologia de natureza se desdobra no momento em que a sociedade industrial incorpora novas reas ao sistema de produo, explicando o olhar dominante sobre as terras indgenas paranaenses.

    Neil Smith, focalizando o desdobramento da ideologia dualista da natureza, no espao geogrfico norte-americano, chama-a de natureza potica8. Comentando a literatura da conquista do territrio norte-americano, Smith diz:

    Embora a linguagem fosse refinada, a imaginao menos ativa, e focalizasse mais nfase sobre a conquista que sobre aquilo que era conquistado, a literatura de conquista do sculo dezenove reflete a mesma antipatia com relao natureza selvagem. O serto a anttese da civilizao; ele estril, terrvel, at mesmo sinistro, no tanto por ser a morada do selvagem, mas por ser seu habitat natural. O natural e o selvagem eram uma coisa s; eles

    7 Sobre a histria dos conceitos da natureza da antigidade at o sculo dezoito, ver os trabalho de Clarence GLACKEN: Traces on the Rhodiam Shore, Berkeley, 1967, Frederick TURNER: O Esprito Ocidental Contra a Natureza, Rio de Janeiro: Campus, 1990. Com relao a Kant, ver: R.G. COLLINGWOOD, The Idea of Nature, Londres, 1945. Mais especificamente sobre o pensamento kantiano ver, entre outros, o trabalho de Ernst CASSIRER, El Problema del Conocimiento, vol II, Fondo de Cultura Econmica, Mxico, 1986, e ainda Raymond VANCOURT, Kant, edies 70, Lisboa, 1986.

    8 Cf. Neil SMITH, Desenvolvimento Desigual, p. 35-47.

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    eram obstculos a serem vencidos na marcha do progresso e da civilizao9.

    Como na literatura da conquista americana, a literatura que faz a apologia da colonizao paranaense trata a natureza de forma hostil, como um perigo a ser vencido numa longa jornada de lutas e sacrifcios, pois na misso de domar matas virgens necessrio, sobretudo, estoicismo. A natureza hostil, construda pelo pioneirismo colonizador, tinha uma funo que, conforme Smith, era: a de legitimar o ataque natureza10. Mas to logo conquistada, posta ao cho a golpes de machado, reduzida a cinzas, a natureza sofre uma transformao tanto fsica como no discurso.

    A floresta cheia de perigos se transforma nas terras roxas, prontas para fornecerem colheitas dadivosas de frutos destinados alimentao e preservao da espcie humana11. Misto de hostilidade e idolatria12, a natureza como algo exterior ao social, ao homem que a subjuga.

    Concluindo, Smith afirma:

    O conceito de natureza um produto social e ns vimos que, em conexo com o tratamento da natureza na frente pioneira americana, esse conceito tinha uma clara funo social e poltica13.

    Isto , justifica a ocupao dos espaos que faziam parte de uma outra forma de relao homem/natureza. Isso ocorre em especial a partir do sculo XVII, no bojo do processo de acumulao capitalista, quando florestas, rios, terras, rochas e minerais so transformados em matrias-primas e meios de produo.

    Apesar de correr o mundo em busca de lucro, o capital no vai com suas prprias pernas, so os homens seus agentes e emissrios. Homens imaginativos, como o ingls Lord Lovat, que percebem a existncia de qualquer coisa de irresistvel na contemplao de mapas onde aparecem grandes reas de terras desabitadas,

    9 Op. cit., p. 37.

    10 Op. cit., p. 39.

    11 Cf. Maring Ilustrada, Maring, maio de 1972, p. 194.

    12 Cf. Neil SMITH, op. cit., p. 39.

    13 Op. cit., p. 45.

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    mas com grandes potencialidades14. Homens que viram grandes potencialidades em extensas pores de terras nos continentes americano, africano e asitico e partiram para coloniz-las e desenvolv-las como se fossem terras desabitadas. As terras do norte paranaense, habitat imemorial de comunidades indgenas, foi no incio deste sculo uma dessas reas.

    O gegrafo Reinhard Maack, numa palestra realizada em junho de 1959, no Instituto Federal de Pesquisa para Economia de Florestas e Madeiras em Hamburgo na Alemanha, discutiu a questo da colonizao do norte do Estado do Paran e as suas conseqncias na paisagem natural da regio:

    Desde aqueles dias, quando a mata ainda dominava as reas de Londrina e Rolndia e preparavam-se as primeiras terras de cultura, muita coisa transformou-se no Norte do Paran. Quem diria naqueles tempos que as matas pluviais virgens desapareceriam to rapidamente e em tal extenso? J ao se organizar as primeiras fazendas, stios e chcaras chamei a ateno sobre as consequncias de uma desmatao irrefreada, exigindo correspondentes reservas florestais em cada propriedade. Sobrevoando-se atualmente o Norte do Paran pode-se ver que esta exigncia foi melhor atendida pelos habitantes de Rolndia. Em outras reas a mata foi destruida completamente. A reserva florestal mnima exigida de 15 a 20% somente foi mantida em poucas propriedades. As consequncias j se manifestam numa assustadora extenso a qual pode-se verificar pelas cifras baseadas em observaes objetivas, que apresentarei posteriormente15.

    Maack apresentou dados importantes sobre a modificao da natureza na regio:

    14 Cf. depoimento de Arthur Thomas, gerente da Companhia de Terras Norte do Paran, at 1949. In: Cia. Melhoramentos Norte do Paran. Colonizao e Desenvolvimento do Norte do Paran. So Paulo, p. 7.

    15 Reinhard MAACK. A Modificao da Paisagem Natural pela Colonizao e suas Conseqncias no Norte do Paran. In: Boletim Paranaense de Geografia, n. 2/3, 1961, p. 29.

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    Resumindo, constatamos as seguintes conseqncias como resultado da modificao da paisagem natural causada por exagerada desmatao:1) - Perturbao do limite normal entre as zonas climticas Cfa e Cwa. Conseqentemente, uma tendncia cada vez maior dos extremos, uma vez um inverno muito seco com aridez catastrfica e temperaturas elevadas, e outra vez perodos muito extensos de chuvas hibernais com excessiva umidade e as conseqentes entradas da frente polar e alterao do coeficiente de variao das precipitaes de 1,6 para 2 a 2,9.2) - Perturbao do ciclo normal da gua em conseqncia da alterao dos fatores climticos: diminuio do nvel fretico, esgotamento das fontes e conduo irregular da gua pelos rios, carregados de sedimentos e com enchentes extremas.3) - continuada eroso do solo, regionalmente em grandes extenses16.

    Ainda em relao s modificaes ocorridas no solo considerado de grande fertilidade, o autor aponta:

    O esgotamento da terra roxa legtima em substncias nutritivas vegetais torna-se evidente pelas seguintes cifras:1 alqueire de solo da mata virgem primitiva exibe na zona do Norte do Paran de uma maneira geral, as seguintes substncias nutritivas:

    Matria orgnica (hmus) .............. 412.000 kgNitrognio (N) .................................... 11.000 kgClcio absorvvel (CaO) .................... 20.000 kgPotssio absorvvel (K2O) ................... 1.400 kgFsforo solvel (P2O5 ) ...................... ... 1.600 kg

    Aps o cultivo de caf durante 20 anos o mesmo solo revelou apenas ainda a seguinte substncia nutritiva com perda de 35 cm da melhor camada da superfcie:

    Matria orgnica (hmus) ................ 26.000 kgNitrognio (N) ...................................... 1.400 kgClcio absorvvel (CaO) ......................... 900 kg

    16 Op. cit., p. 44.

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    Potssio absorvvel (K2O) ...................... 115 kgFsforo solvel (P2O5 ) ......................... 600 kg

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    Conforme essas indicaes, as transformaes ocorridas na natureza foram enormes. As modificaes de clima e solo, afetando imediatamente os sistemas hdricos, devem ter atuado nos sistemas de flora e fauna impactando o ecossistema da regio. Em outras palavras, a ocupao acelerada da regio para a produo de caf18 fez com que se produzisse uma outra natureza, diferente daquela conhecida pelas comunidades indgenas e com a qual se relacionavam, e construam a sua sociedade.

    O desenvolvimento do capitalismo, entretanto, envolve no um desenvolvimento quantitativo mas qualitativo da relao com a natureza. [...] Com a produo da natureza em escala mundial, a natureza progressivamente produzida de dentro e como parte da chamada segunda natureza. A primeira natureza destituida do fato de sua primitividade, sua originalidade19.

    Seguindo a linha de raciocnio de Smith de que a produo do espao um resultado lgico da produo da natureza20, podemos afirmar que, ao produzir uma segunda natureza no norte do Paran, o capitalismo estava produzindo um novo espao geogrfico21 prprio sua atuao e diferente do espao tradicional das comunidades indgenas. O norte do Paran, a partir do final do sculo passado, passa a ser o espao da produo de mercadorias, da acumulao de riquezas. Nesse movimento de expanso, a sociedade nacional vai destruindo o espao das comunidades e construindo o seu prprio, de modo acelerado.

    A partir dos anos de 1930 a velocidade torna-se ainda maior com a ocupao do chamado Norte Novo e Novssimo22, na margen

    17 Op. cit., p. 40-41.

    18 Sobre essa questo do caf no Norte do Paran, ver Nadir CANCIAN, Cafeicultura Paranaense - 1900/1970. Pedro Calil Padis, Formao de uma economia perifrica: o caso do Paran, principalmente os captulos de 7 a 10 que tratam da economia do norte do Estado.

    19 Neil SMITH, op. cit., p. 93.

    20 Op. cit., p. 109.

    21 Existe uma longa discusso sobre essa questo de espao na geografia. Ver principalmente as obras de Milton SANTOS: Metamorfoses do espao habitado; Espao e sociedade; Pensando o espao do homem; Espao e dominao. Ver ainda de Henri LEVEBVRE, La production de lespace. Tonino BETTANINI, Espao e cincias humanas.

    22 Sobre a histria dos trs nortes paranaenses ver Ruy C. WACHOWICZ, Norte Velho, Norte

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    esquerda do rio Tibag, pela ao da Companhia de Terras Norte do Paran, que funda as principais cidades da regio.

    Se a natureza existente na regio muito diferente da que existia h vinte anos, conforme nos mostrou Maack, o espao que vai tomando forma com a colonizao tambm muito diferente daquele ocupado pelas comunidades indgenas. Conforme Robert Sack, o espao para as sociedades tradicionais tinha um significado muito maior e abrangente, carregado de contedo social, histrico e at mesmo religioso.

    Na viso primitiva, a terra no algo que pode ser dividido em partes e vendida como lotes. A terra no uma parte do espao existindo dentro de um sistema maior. Pelo contrrio, ela vista em termos de relaes sociais. As pessoas, como uma parte da natureza, esto intimamente ligadas terra. Pertencer a um territrio ou a um lugar um conceito social que exige, primeiramente e antes de tudo, pertencer a uma unidade social. A terra, por si mesma, est em poder do grupo como um todo. No privativamente dividida nem possuida. Alm disto, ela viva como os espritos e a histria das pessoas, e os lugares sobre ela so sagrados23.

    O espao da sociedade industrial caminha em outra direo: o espao onde se retalha a terra, etiquetando-a com valores, transformando-a em mercadoria pelo potencial produtivo que carrega. o espao onde rvores e animais tambm tm o seu preo, tambm so mercadorias. Por isso mesmo ele diferente do espao das comunidades Kaingang, Guarani, Xokleng e Xet que a viviam, e cujas terras foram divididas, cercadas e vendidas.

    Cria-se o vazio demogrfico a ser ocupado pela colonizao pioneira. Vazio criado pela expulso ou eliminao das populaes indgenas que, desse modo, so colocadas margem da histria.

    Pioneiro.

    23 Robert SACK. Conceptions of space in social thought. In: Neil Smith, op. cit., p. 112.

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  • Captulo IIOS GEGRAFOS E A CONSTRUO DOVAZIO DEMOGRFICO

    A partir da segunda metade da dcada de 1930 at o incio dos anos 1960, o Paran, principalmente o norte, foi alvo de visitas, excurses, passeios cientficos, etc. Os relatrios das visitas, artigos, comunicaes, ensaios e outros escritos dos gegrafos foram publicados, em sua maior parte, pela Revista Brasileira de Geografia. Esses trabalhos foram e so bastante utilizados como fonte de referncia para inmeros textos acadmicos sobre a regio, principalmente no que tange questo demogrfica e ao pioneirismo. Nesse sentido, procuraremos ver como esses trabalhos tratam o norte do Paran no momento da sua ocupao, com especial nfase sobre como visualizaram a regio antes da ocupao, e at que ponto contriburam para criar a idia de que a regio era um enorme vazio demogrfico, quase despovoada.

    Cinco anos aps a fundao de Londrina, Pierre Monbeig, ento professor de Geografia da Universidade de So Paulo, discutia a questo da zona pioneira no norte do Paran. Focalizando a atuao da Companhia de Terras Norte do Paran em Londrina, afirmava que, sem sombra de dvida, j havia no local um povoamento, no caso a Colnia Militar de Jata, e logicamente culturas e caminhos. No entanto, chama a ateno para o nvel de primitivismo desse povoamento e para o que havia a oeste de Jata:

    [...] Se de um lado, a colonia Jatai figura no mapa do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro, dai em diante para oeste no h indicao alguma de povoamento, salvo alguns ranchos de caboclos perto das aguadas, com uma derrubada

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    insignificante e uma cultura que se limita ao milho24.

    O relato sugere que a oeste de Jata, onde estava sendo construda Londrina, nada havia. A preocupao de Monbeig centra-se nos ncleos urbanos, na origem dos povoamentos. Sua pergunta sobre que massa humana iam apoiar-se os recm-chegados, ignorando assim a existncia de ndios alm ou nos arredores de Jata.

    Leo Waibel, estudioso da colonizao europia no Brasil, excursionou pelo sul do pas em fins dos anos 40, fazendo trabalho de campo sobre a colonizao. Seu projeto foi a elaborao de um Atlas da colonizao do Brasil, cujo objetivo era mostrar os fatos relacionados com a colonizao. Em 1949, sintetiza suas observaes sobre a colonizao mais significativa que ocorre no Brasil, a europia, nos trs estados do sul. Com relao ao norte do Paran, na rea colonizada pela Companhia de Terras Norte do Paran (CTNP), afirma: Cerca de 200.000 pessoas vivem na rea da companhia que h 20 anos atrs era desabitada25.

    Num texto de 1950, a pesquisadora do Conselho Nacional de Geografia, Lysia Maria C. Bernardes, analisa a distribuio da populao no Estado do Paran de acordo com o censo demogrfico de 1940. Logo na introduo, escreve:

    A maior parte da populao do Paran situa-se no planalto, concentrando-se a sudeste e reduzindo-se considervelmente para oeste onde ainda se encontram, atualmente, reservas de terras virgens, muitas das quais devolutas26.

    Adiante, analisando a distribuio da populao do terceiro planalto, mais precisamente nas terras colonizadas pela CTNP, relata o que era a regio antes de 1930.

    24 Pierre MONBEIG. A Zona Pioneira do Norte do Paran. In: Boletim Geogrfico, ano III, n. 25, abril de 1945, p. 12.

    25 Leo WAIBEL. Princpios da Colonizao Europia no Sul do Brasil. In: Revista Brasileira de Geografia. ano XI, n. 2, abril/junho de 1949. p. 177. Apesar de considerar o norte desabitado ao tratar do inicio da colonizao no sculo passado, no Sul do pas, ele afirma que as enormes florestas do Sul eram o dominio indiscutvel desses ndios, os Botocudos. Indios esses que foram afastados das florestas pela colonizao implementada pelo governo, principalmente nas florestas que ficam nas imediaes dos campos criadores de gado, ou por onde passavam as estradas das tropas.

    26 Lysia M. C. BERNARDES. Distribuio da Populao no Estado do Paran em 1940. Revista Brasileira de Geografia. n. 4 out./dez. de 1950, p. 57.

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    Captulo II OS GEGRAFOS E A CONSTRUO DO VAZIO DEMOGRFICO

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    Em 1940, depois de dez anos de atividades da Companhia, Londrina apresentava uma populao urbana e suburbana de 10.531 habitantes e os dois distritos Rolndia e Nova Dantzing, respectivamente 2.988 e 3.493 almas. A populao rural subia ento a 56.196 habitantes. Atualmente j foi essa extensa rea desmembrada em vrios municpios novos, cujas sedes nem figuravam ainda nesse mapa, calculando-se que, nas terras da Companhia, onde em 1930 no havia um s habitante, vivem hoje duzentas mil almas27.

    Continuando em direo ao oeste do Estado, a autora conclui que, apesar da qualidade do solo e de suas florestas pode-se consider-lo um vazio demogrfico28.

    Um ano depois, a autora, comparando os recenseamentos paranaenses de 1920 e 1940, fala do extraordinrio crescimento da populao do Estado verificada no espao de vinte anos, e que isso corresponde, pois, em sua maior parte ao avano do povoamento para oeste e ocupao das zonas at ento desabitadas29.

    J em 1951, os gegrafos ligados Associao Brasileira de Geografia produzem os primeiros trabalhos de geografia urbana de cidades do norte paranaense. Neyde Prandini publica nos Anais da Associao Brasileira de Geografia um texto sobre a geografia urbana de Londrina. Vejamos como ela percebe a regio antes da fundao da cidade:

    Eis por que essa regio, que era em 1929 um serto desconhecido, teve suas florestas quase inteiramente devastadas, e em seu lugar sucedem-se, a perder de vista, os cafezais; ela esta atualmente em grande parte colonizada30.

    27 Op. cit., p. 72.

    28 Op. cit., p.73.

    29 Lysia M.C. BERNARDES. Crescimento da Populao do Estado do Paran (Comparao entre os recenseamentos de 1920-1940). In: Revista Brasileira de Geografia, abr./jun. de 1951, p. 102.

    30 Neyde PRANDINI. Aspectos da Geografia Urbana de Londrina. In: Anais da ABG, 6(1), p. 61, 1951/52.

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    Figura 2. Mapa do Paran em 1940 com os principais centro urbanos. Observa-se que as cidades da fronteira oeste so ao norte Rolndia, ao centro Pitanga, Guarapuava e Laranjeiras, e ao sul Palmas. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica no considera, no seu mapa, os ncleos de populaes indgenas existentes e os seus territrios. Constri um mapa com imensos espaos considerados vazios, desabitados.Fonte: Lysia Maria Cavalcanti BERNARDES. Distribuio no estado do Paran em 1940. In: Revista Brasileira de Geografia, n. 4, out./dez. 1950, p. 59.

    Mais adiante, discorrendo sobre o crescimento da populao londrinense:

    Essa populao cresceu a princpio muito lentamente, o que natural: Londrina era uma cidade Bca de Serto, a primeira que se construia numa zona praticamente desconhecida31.

    Trabalhando na perspectiva do professor Leo Waibel de construir um Atlas da Colonizao no sul do pas, Nilo Bernardes elabora um artigo em 1950 com o objetivo de apresentar um quadro claro das condies de povoamento do Estado do Paran. Nesse trabalho so apresentados mapas que mostram como vo sendo preenchidas as

    31 Op. cit., p. 74.

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    zonas desabitadas do Estado no decorrer dos anos. O mapa mostra o avano da sociedade nacional no territrio paranaense, detalhando a ocupao a partir de meados do sculo passado:

    Embora no comeo do sculo os povoadores espontneos j dessem incio ao alastramento sbre o oeste paranaense, no segundo planalto a encosta longe das rotas de Guarapuava e de Palmas ainda estava desabitada. Todo o oeste dos atuais municpios de Tibaji e Reserva era ainda parte do vasto serto que se continuava at o Rio Paran32.

    O autor coloca todo o norte e oeste do Estado como um vasto serto. Mas o que significa para o autor o conceito de serto? Ele mesmo o define numa nota de rodap: O termo serto aqui empregado sempre no sentido de vazio demogrfico33. A definio clara. Bernardes concebe a regio no incio do sculo como desprovida de populao; em termos geogrficos, um vazio demogrfico.

    O que se verificou na ocupao da maior parte do oeste foi um vasto assalto s terras devolutas do estado34.

    Quanto ao norte do Estado, ele escrevia;

    Assim, em 1929, apesar de alguns povoados que apontavam mais alm, na mata virgem, Cambar ainda era considerada boca do serto35.

    32 Nilo BERNARDES. Expanso do Povoamento no Estado do Paran. In: Revista Brasileira de Geografia, v. 14, n. 4, p. 68, out./dez. 1952.

    33 Op. cit., p. 58. grifo do autor.

    34 Op. cit., p. 71.

    35 Op. cit., p. 75.

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    Figura 3. Mapa da regio noroeste do Paran, municpio de Londrina na poca, entre os rios Bandeirantes, Pirap, Paranapanema, Paran e Iva, elaborado em 1938. Podemos observar a linha de ocupao com as cidades recm fundadas at Lovat, hoje Mandaguari, dai em diante at o antigo Porto So Jos aparece o territrio vazio pronto a ser ocupado.Fonte: Orion VILLANUEVA. Rolndia: terra de pioneiros. Londrina, Grfica Yp, 1974, p. 24.

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    Figura 4. Mapa do municpio de Tibagi organizado por Edmundo Alberto Mercer em 1918. Uma grande extenso dos antigos territrios indgenas entre os rios Pirap, Paranapanema, Paran e Iva aparecem denominados de Terras Devolutas e Desconhecidas.Fonte: Edmundo Alberto MERCER & Luiz Leopoldo MERCER. Histria de Tibagi. Curitiba, Cenicom, 1977, p. 156.

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    Os termos variam, serto, terras devolutas, boca de serto, em outras passagens mata virgem, mas o sentido geral o de uma regio desabitada.

    A dcada de 50 frtil em estudos sobre o povoamento do Paran. Em 1953, a gegrafa Lysia M.C. Bernardes publica um estudo sobre a questo das Frentes Pioneiras no Paran, no qual os conceitos que sustentam a idia do vazio demogrfico perpassam todo o texto:

    [...] resolveu o governo do estado em 1939 iniciar os servios de colonizao em terras devolutas situadas nos ento municipios de Guarapuava e Londrina36.Encravada em um serto longnquo e despovoado, ameaada de ficar com suas relaes completamente cortadas com o resto da provncia, a colnia Jata no pode alcanar nenhum progresso. [...] permaneceu o norte do Paran, at o ultimo quartel do sculo XIX como serto desconhecido e desabitado37.Em conseqncia da colonizao promovida nos ltimos vinte anos, por particulares, como tambm recentemente, pelo Estado, o norte do Paran que at ento no passava de um vasto serto desabitado , atualmente, uma das zonas mais prsperas do estado38.

    A massa humana, que j tinha chegado aos contrafortes do terceiro planalto no fim do sculo passado, inicia a ocupao das serras que dividem o segundo e terceiro planaltos. Chegando ao seu topo por volta de 1920, estende seu avano pelo interior do terceiro planalto rumo ao rio Paran nas dcadas seguintes, como ilustram os mapas de estudos do povoamento do Paran.

    Mas nenhum mapa acusa a presena indgena, as colnias indgenas que j existiam desde meados do sculo XIX, e muito menos os toldos indgenas que se espalhavam por toda a regio nos vales dos rios Tibagi, Iva e Piquiri.

    36 Lysia M.C. BERNARDES. O Problema das Frentes Pioneiras no Estado do Paran. In: Revista Brasileira de Geografia, ano XV, n. 3, jul./set. de 1953, p. 18.

    37 Op. cit., p. 26.

    38 Op. cit., p. 39.

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    Captulo II OS GEGRAFOS E A CONSTRUO DO VAZIO DEMOGRFICO

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    A produo desses gegrafos vai subsidiar trabalhos acadmicos nas dcadas seguintes, que repetem a mesma idia do vazio demogrfico.

    Num artigo elaborado para a Revista Paranaense de Desenvolvimento, William H. Nicholls faz um resumo do II captulo do livro Noventa e Nove Fazendas: A estrutura e a Produtividade da Agricultura Brasileira, que ele escreveu com Ruy M. Paiva:

    Apesar de que o planalto ocidental do Paran (distante de 200 a 400 milhas do litoral atlntico) j tivesse sido garantido desta forma pelos portugueses em meados do sculo 16, permaneceu porm virtualmente despovoado at quase 250 anos depois39.

    Mais adiante:

    Quando o governador do Paran asssumiu a direo desta nova provncia, extensa mas quase vazia, que em 1853 ainda era pouco mais do que um lugar de passagem entre So Paulo e o Rio Grande do Sul, ele imediatamente voltou os seus esforos para o estimulo imigrao e colonizao40.

    O autor trata o norte do Estado como um prolongamento fsico de So Paulo, com solo de terras roxas extremamente frteis, solo por excelncia prprio para o plantio do caf; essas terras, limitadas s partes norte e ocidental do estado por longo tempo despovoadas, tinham sido pouco tocadas at 192041. E a quem pertenciam essas ricas terras que ficavam a oeste do Tibagi? De acordo com Nicholls, elas pertenciam em sua maior parte ao domnio pblico42. Mas a colonizao realizada pela CTNP e a cultura do caf modificam radicalmente o norte do Paran, que evolura em poucas dcadas de rea desabitada para a mais

    39 William H. NICHOLLS. A Fronteira Agrcola na Histria Recente do Brasil: O Estado do Paran, 1920-65. In: Revista Paranaense de Desenvolvimento, n. 26, set./out. 1971, p. 28.

    40 Op. cit., p. 30.

    41 Op. cit., p. 32.

    42 Op. cit., p. 32.

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    prspera regio do estado43. A argumentao a mesma dos gegrafos da dcada de 50; terras devolutas na poca, agora so de domnio pblico, o serto longnquo e desconhecido agora virtualmente desabitado, quase vazio.

    Um outro americano escreve sobre o tema. Keith Derald Muller, preocupado com o que chama de fronteira final do sul do Brasil. Efetuando um estudo de caso na cidade de Toledo, no oeste do Estado, colonizada pela Marip Land Company no ps-segunda guerra, desenvolveu igualmente a idia do vazio demogrfico. Ao explicar a ausncia de disputas pela terra, Muller aponta como uma das razes o fato de a regio

    [...] ser totalmente desocupada com exceo de alguns quilometros ao longo do rio Paran, que incluiam exparsos estabelecimentos associados, que produziam erva mate e extraiam madeira44.

    Mais uma vez se concebe a regio, anterior colonizao, como um local desabitado, desocupado, embora na dcada de 50 tivesse sido contactada a ltima tribo indgena do Paran, os Xet, na serra dos Dourados, a menos de 150 km ao norte das terras de Toledo.

    A palavra devoluto definida como desocupado, desabitado, vago, conforme o Novo Dicionrio Aurlio. O conceito largamente utilizado nos trabalhos acadmicos para definir o territrio paranaense em fase de ocupao pela sociedade nacional. No Paran, as chamadas terras devolutas obedeciam a uma classificao. Conforme sua localizao em relao a centros urbanos, portos martimos, fertilidade, utilizao, eram definidas como terras devolutas de primeira, segunda e terceira categorias.

    A dissertao de mestrado em histria demogrfica, defendida em 1978 na Universidade Federal do Paran, por Peraro, coloca, na introduo, a questo da seguinte forma:

    J na dcada de 1930, teve incio a ocupao demogrfica e econmica de novas zonas do Norte do Paran, em virtude de uma conjuntura poltica-econmica propcia a essa expanso, sendo a Regio do Norte Novo at ento quase

    43 Op. cit., p. 36.

    44 Keith D. MULLER. Colonizao Pioneira no Sul do Brasil: O Caso de Toledo, Paran. In: Revista Brasileira de Geografia, ano 48, n 1, jan./mar. 1986, p. 110.

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    Captulo II OS GEGRAFOS E A CONSTRUO DO VAZIO DEMOGRFICO

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    que completamente coberta de matas, motivo de interesse de companhias particulares. Uma delas, a Paran Plantations Ltda. e sua subsidiria no Brasil - Companhia de Terras do Paran, em posses de terras devolutas adquiridas do governo do estado45.

    A autora conclui seu trabalho utilizando o mesmo conceito, devolutas, para as terras do setentrio parananense: Visava o governo Estadual o incremento do povoamento das terras devolutas situadas ao norte do Estado46. A bibliografia utilizada inclui os trabalhos dos gegrafos das dcadas de 30, 40 e 50, as obras da CTNP e textos clssicos da historiografia paranaense, que analisaremos adiante.

    45 Maria Adenir PERARO. Estudo do Povoamento, Crescimento e Composio da Populao do Norte Novo do Paran de 1940 a 1970. Dissertao de mestrado em Histria do Brasil, opo Histria Demogrfica. UFPr, mimeografado, p.11.

    46 Op. cit., p. 170.

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  • Captulo IIIA SOCIOLOGIA, A HISTORIOGRAFIA E O VAZIO DEMOGRFICO

    Na dcada de 1950, o Paran passa por um perodo de desenvolvimento ancorado na cafeicultura de exportao praticada no norte do Estado47.

    Enquanto os gegrafos de So Paulo e Rio excursionam pela regio tentando compreender o seu rpido povoamento, os intelectuais paranaenses pensam o Paran, refletem sobre o homem paranaense na busca de uma identidade para a sociedade local. Dentre os autores que colocaram o paranismo em questo nos anos 50, destacam-se dois trabalhos que, nos anos seguintes, vo ser referncia para os estudiosos da sociedade paranaense. O primeiro o de Temstocles Linhares, Paran Vivo: sua vida, sua gente, sua cultura, publicado por ocasio das comemoraes do centenrio da emancipao poltica da provncia do Paran, em 1953. O segundo um clssico da sociologia local: Um Brasil Diferente (ensaio sobre fenmenos de aculturao no Paran) de Wilson Martins, publicado em 1955.

    As duas obras procuram dar uma identidade ao homem paranaense, responsvel pelo impulso desenvolvimentista por que passa o Paran nesse momento. Nossa inteno apontar como Linhares e Martins vem a ocupao do espao chamado Paran48.

    47 Cf. Nadir A. CANCIAN. Cafeicltura Paranaense - 1900/1970. Curitiba, Grafipar, 1981.

    48 Ver a anlise dessas duas obras feitas pelos pesquisadores do Ipardes, A. M. de O. BURMESTER, F. PAZ, M. D. B. DE MAGALHES. O Paranismo em Questo: O Pensamento de Wilson Martins e Temistocles Linhares na Dcada de 50. Texto apresentado no I Encontro Regional de Histria - Cultura e Sociedade promovido pela Anpuh, Ncleo Regional do Paran, em Curitiba, outubro de 1986, mimeografado.

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    No tempo das vacas magras, ttulo de um dos captulos do livro de Linhares, trata da pecuria no Paran, da ocupao dos campos gerais do segundo planalto e dos campos de Guarapuava pelas grandes fazendas de gado. Linhares v a instalao dos latifndios de criao de gado nos campos paranaenses da seguinte forma:

    claro que no comeo havia espao de sobra. Mas foi inquestionavelmente o gado que trouxe o domnio da terra, varejada e esquadrinhada em todas as dimenses, pois a criao, por demais preciosa, exigia a vigilncia contnua e atenta49.Estes, (lafifundios) se de fato existiram em abundncia, como tudo indica, foram sendo ocupados sem excessos nem lutas belicosas, mais como fruto de esforos pacientes e humildes50.

    Para Linhares, os campos gerais do sul do Estado eram infindos, e havia espao de sobra para a instalao dos grandes criadores, espaos que foram ocupados sem excessos nem lutas belicosas, tudo pacientemente, pacificamente, sem atitudes hercas, apesar de a criao do gado exigir uma vigilncia continua e atenta. S no esclarece por que era necessria uma vigilncia atenta: se contra os ladres de gado das outras fazendas, os felinos que abundavam aqueles campos ou se contra os ndios, que, conforme a literatura da poca, infestavam os campos paranaenses.

    Descrita a pacfica ocupao dos campos do sul vejamos como o autor de Paran Vivo v a ocupao das matas do norte do Estado.

    Descoberta a regio de terras roxas, estava descoberto o caf paranaense, eis a concluso lgica51.

    O norte do Estado descoberto, primeiro pelos mineiros que atravessam o rio Itarar e fundam as primeiras cidades do Norte Velho. Os mineiros vo ocupando as terras em direo ao rio Tibagi, a oeste.

    49 Temstocles LINHARES. Paran Vivo, p. 44.

    50 Op. cit., p. 47.

    51 Op. cit., p. 90.

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    Captulo III A SOCIOLOGIA, A HISTORIOGRAFIA E O VAZIO DEMOGRFICO

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    Depois vieram paulistas e nordestinos que, com os paranaenses tambm j disseminados por ali, deram incio marcha para o oeste, espraiando-se em iniciativas de verdadeiro descobrimento52.

    Vejamos o que move esses mineiros, paulistas, nordestinos e estrangeiros em direo ao norte paranaense:

    Sensveis perspectiva, esperana e promessa de uma terra virgem, de uma casa modesta, mas farta, de algumas vacas e outras coisas indispensveis, sem ningum para lhes dar ordens ou lhes arrecadar a parte do leo, a verdade que eles foram chegando e se fixando, para se tornarem uma legio53.

    So os pioneiros que, movidos pela perspectiva da propriedade privada, ocuparam as terras onde era preciso fazer tudo e que, vencidas as primeiras dificuldades, viram realizados seus esforos, pois a terra correspondera em escala assombrosa aos seus novos desejos54.

    Discutindo o Homem paranaense, Wilson Martins, no seu Um Brasil Diferente, volta ao momento da emancipao poltica do Paran, em 1853, preocupado com o que pensa o primeiro presidente da provncia, Zacarias de Goes e Vasconcelos, sobre o povoamento do territrio. De acordo com o autor, a questo do povoamento a principal preocupao do presidente, j que todos seus problemas administrativos se resumem na falta de gente num territrio de duzentos mil km2. Dessa forma, para Martins,

    [...] a provncia era nesse momento, do ponto de vista humano, um ilimitado deserto, interrompido irregularmente por dezenove pequenos osis, situados a distncias imensas um dos outros - e distncias literalmente intransponveis, pois, alm dos caminhos histricos, que iam revelar dentro de pouco no serem caminhos econmicos, nada existia

    52 Op. cit., p. 91.

    53 Op. cit., p. 107.

    54 Op. cit., p. 107.

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    que pudesse prenunciar uma rede qualquer de comunicaes. [...] Em compensao, na maior parte do territrio o vazio era absoluto: eram os campos gerais, era a floresta, era a Serra do Mar55.

    Martins enfatiza a idia do territrio despovoado, com as imagens de ilimitado deserto, ou vazio absoluto, para em seguida introduzir o imigrante estrangeiro e explicar o homem paranaense. Sublinha a extraordinria premonio de Zacarias de Goes com o futuro do Paran, ao baixar a lei n 29, de 21 de maro de 1855, promovendo a imigrao estrangeira para a provncia.

    Na concluso, Martins define o seu Paran, o Paran que ele idealizou, plasmado no migrante europeu, principalmente germnico. Um Paran no incio vazio, depois preenchido com pedaos de outras civilizaes, que formam uma sociedade original, diferente da do resto do pas.

    Assim o Paran. Territrio que, do ponto de vista sociolgico acrescentou ao Brasil uma nova dimenso, a de uma civilizao original construda com pedaos de todas as outras. Sem escravido, sem negro, sem portugus e sem indio, dir-se-ia que a sua definio humana no brasileira56.

    O autor funde as populaes indgenas na formao da sociedade paranaense por ele idealizada, as dissolve na sua civilizao original, e opera a construo de um Paran novecentista enquanto um territrio que se caracteriza por ser um vazio absoluto, um ilimitado deserto, apagando da histria a presena indgena.

    Se nos anos 1950 temos uma produo de carter sociolgico como as obras de Martins e Linhares, nos anos 1960 vamos ter, na Universidade Federal do Paran, um ncleo de professores preocupados com a Histria do Paran. Esse ncleo vai ser responsvel pela produo de textos relacionados com a histria regional do Paran e tambm por uma linha de pesquisa desenvolvida no departamento de Histria, orientando ainda trabalhos de mestrado e doutorado nas dcadas seguintes.

    55 Wilson MARTINS. Um Brasil Diferente, p. 71.

    56 Op. cit., p. 468.

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    Captulo III A SOCIOLOGIA, A HISTORIOGRAFIA E O VAZIO DEMOGRFICO

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    Em 1951, Brasil Pinheiro Machado publicou um pequeno estudo denominado Esboo de uma Sinopse da Histria Regional do Paran, que pressupunha um modelo de explicao da histria regional do Paran. A sinopse constituiu-se num marco da historiografia paranaense, como aponta o editor da revista Histria: Questes & Debates:

    Portanto, quase quarenta anos aps a sua primeira publicao, seu contedo continua atual, alm de sua importncia para a historiografia paranaense. Dessa forma, explica-se a deciso do Conselho Editorial em republicar o artigo, com anuncia do Autor, justificando tambm sua insero na Revista como documento57.

    Vamos ver o lugar do ndio no modelo de Machado:

    um momento culminante da histria brasileira, aquele em que os descendentes de europeus, africanos e indgenas, tomam conscincia de que no so mais nem europeus, nem africanos e nem ndios, mas qualquer coisa diferente deles todos58.

    A metamorfose do ndio em cidado nacional se d pela tomada de conscincia em um momento da histria. A identidade nacional forjada na medida em que se deixa para trs a identidade indgena. A existncia de uma pressupe a eliminao da outra. E qual vai ser o momento culminante da tomada de conscincia onde o ndio deixa de ser ndio para ser cidado nacional? Ele no explicita, mas deixa pistas:

    A histria do Paran , pois, um captulo da histria regional do Brasil, e consiste na histria da formao de uma comunidade que, como tal, adquiriu individualidade distinta, de qualquer forma, das outras comunidades regionais do

    57 Cf. Nota do editor In: Histria: Questes & Debates, Revista da Associao Paranaense de Histria, ano 8, n. 14, dezembro de 1987, p. 177.

    58 Brasil Pinheiro MACHADO. Esboo de uma Sinopse da Histria Regional do Paran. In: Histria: Questes & Debates, ano 8, n. 14, dezembro de 1987, p. 178.

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    Brasil. Sua formao, em traos gerais, se processa do seguinte modo: a) pela formao de um centro social de irradiao, que se localizou em Curitiba;b) pela expanso dirigida desse centro, de onde resultou a conquista, pela posse, de determinado territrio;c) pela constante subordinao social e poltica dos ncleos resultantes da expanso ao centro social inicial de Curitiba, de modo a formar um conjunto59.

    O modelo destaca a dinmica centro - periferia, tendo Curitiba como polo irradiador e subordinador dos ncleos resultantes da expanso pelo resto do territrio. A partir de Curitiba, no final do sculo XVII, temos nos sculos seguintes, XVIII e XIX, a conquista: primeiro dos campos do planalto curitibano nos arredores da cidade, em seguida dos campos gerais do segundo planalto e, por ltimo, dos campos de Guarapuava j no terceiro planalto. A posse desses territrios pelos nacionais com fazendas de gado significou a expulso das sociedades indgenas a existentes para as matas, ou para as florestas do oeste e norte do Estado. Ser este talvez o momento da tomada de conscincia do indgena, de que ele no mais um ndio mas alguma coisa diferente? Ser este o momento, o momento das perdas das terras para os nacionais, em que ele percebe que est deixando de ser ndio? O processo de posse das terras indgenas seria o cadinho metamorfoseador do ndio em nacional, de que nos fala o autor?

    Depois das consideraes iniciais, onde coloca as questes da metodologia de uma histria regional, destacando a dinmica centro - periferia e o estudo das comunidades diferenciadas na formao da sociedade paranaense, Pinheiro Machado passa a periodizar a histria do Paran, propondo captulos especficos para cada perodo. Apresentado o que seriam o terceiro, quarto e quinto captulos da histria paranaense, Pinheiro Machado afirma que, a partir de 1640, restaurao de Portugal, tem incio a conquista da regio sul pelas populaes luso-brasileiras, e coloca a expanso dessas populaes, at esse momento, em direo ao oeste, como sendo:

    [...] nem defensiva nem ofensiva, mas simples migrao de nomadismo aproveitador de

    59 Op. cit., p. 183.

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    riquezas existentes. [...] a histria de um povo consumidor de riquezas naturais que, por revivncia cultural e pela influncia da terra, aliou o nomadismo destruidor com os mtodos imprevidentes do indgena, sob a orientao do lucro imediato que era a forma peninsular do capitalismo nacente60.

    Para o autor, a expanso luso-brasileira em direo ao oeste no defensiva nem ofensiva. Se pensarmos nos castelhanos que esto do outro lado do rio Paran ou nas margens ocidentais dos campos gachos, essa expanso no tinha o sentido defensivo ou ofensivo como coloca o autor. Mas, se pensarmos na tica das comunidades indgenas espalhadas pelos campos e florestas da regio sul, essa expanso altamente ofensiva, um ataque direto aos seus territrios. No bastasse isso, o autor ainda coloca como aliado o nomadismo destruidor dos luso-brasileiros com os mtodos imprevidentes do indgena no saque natureza, impetrado pela sociedade colonial na sua busca pelo lucro imediato. Conforme o autor, o ndio ainda tem sua parcela de culpa pela ao do branco no processo de depredao da natureza.

    Prosseguindo sua exposio sobre a ocupao do sul do pas a partir da determinao do Estado portugus em ampliar suas fronteiras, o autor nos diz:

    O processo consiste, primeiro, no esmagamento dos localismos e liberdades locais, depois o descobrimento dos lugares desabitados e seu povoamento compulsrio, pela fundao de vilas e criao de fazendas e estncias e pelas construes de estradas de ligao dos vrios ncleos61.

    Mais adiante:

    Entre Portugal e Espanha tinha-se conseguido um acordo, que parecia a todos provisrio. As fronteiras seriam demarcadas por onde houvesse ocupao e posse. Era preciso, ento, povoar. Distender as populaes em mais vilas.

    60 Op. cit., p. 185

    61 Op. cit., p. 188.

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    Chegar antes que os espanhois nas terras desabitadas. Tomar posse62.

    Permeando o texto esto os conceitos de lugares desabitados, terras desabitadas e, finalmente, utiliza-se de Oliveira Viana para apresentar o bugreiro como ponta de lana do processo civilizatrio:

    O bugreiro surge nas zonas de atrito do civilizado com nossa selvageria remanescente: no Paran, em Santa Catarina e, principalmente, no Paranapanema e no traado da Nordeste... Nessa obra de conquista civilizadora da terra, o bugreiro vence o obstculo material, que o ndio nmade, povoador infecundo da floresta fecunda63.

    Dessa forma, o autor desenvolve sua proposta para um modelo explicativo da histria do Paran, propondo vinte e dois captulos para a mesma. Modelo este que a editoria da revista Histria: Questes & Debates64, da Associao Paranaense de Histria, considera atual, pois:

    [...] vrias geraes de professores e estudantes de histria tem utilizado [...] tanto na investigao como no ensino da Histria do Paran65.

    No entanto, nesse modelo, apesar dos vinte e dois captulos propostos, no existe lugar para as sociedades indgenas existentes no territrio paranaense. A perspectiva dessa histria a da sociedade nacional. O referncial , sempre, a ao do branco luso-brasileiro no

    62 Op. cit., p. 191.

    63 Op. cit., p. 199.

    64 Sobre o texto de Pinheiro MACHADO, Esboo de uma sinopse da histria regional do Paran, publicado originalmente no Boletim do Instituto Histrico Geogrfico e Etnogrfico Paranaense, em Curitiba, em 1951, a Revista Histria: Questes & Debates publicou dois estudos sobre o mesmo. O primeiro, de Jayme Antonio CARDOSO, O modelo de explicao histrica proposto por Brasil Pinheiro Machado; o segundo de Marionilde Dias B. MAGALHES, Acerca do modelo Pinheiro Machado: uma leitura sobre a histria regional. Os dois estudos foram publicados n. 2 em junho de 1981, dessa revista. Temos ainda um outro estudo publicado na Revista Paranaense de Desenvolvimento n. 73, de dezembro de 1980, intitulado Consideraes sobre teoria geral e modelos de explicaes, de Marina Lourdes RiITTER.

    65 Cf. nota do editor In: Histria: questes & debates, Revista da Associao Paranaense de Histria, ano 8, n. 14, dezembro de 1987, p. 177.

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    seu movimento demogrfico de expanso que se assenhoreia de largos tratos do territrio66.

    O grupo de pesquisadores do Departamento de Histria da Universidade Federal do Paran, que desenvolve linhas de pesquisa sobre a histria regional, publicam, nos anos 60, vrios textos tratando de questes relacionadas com a ocupao do Paran. Em 1968, os professores Pinheiro Machado, Ceclia Maria Westphalen e Altiva P. Balhana publicam um artigo que trata da ocupao das terras paranaenses, ressaltando as concesses dos governos estaduais s grandes empresas colonizadoras estrangeiras e dos movimentos agrrios ocorridos no momento. Faz ainda um levantamento dos principais conflitos de terras no Paran nas dcadas de 40, 50 e 60, constituindo-se num dos primeiros trabalhos sobre a ocupao das terras do Estado numa perspectiva crtica. No entanto, enfocam as terras ocupadas pelos ndios como desabitadas. Ao tratar do Paran tradicional, a regio dos Campos Gerais, a perspectiva a seguinte:

    Alm dos ervateiros que, desde o primeiro quartel do sculo XIX, criaram, pela exportao, o principal negcio da Provncia, ganhava expresso, no fim do sculo, a industria da madeira.No entanto, com a explorao dos ervais e das matas de araucrias, pouco fora acrescida, no decorrer do sculo, a rea do territrio j ocupado. Por sua vez, o plano de colonizao com imigrantes estrangeiros, posto em pratica pelo Governo Provincial, tambm no visara o preenchimento de largos espaos vazios, mas tambm a agricultura de abastecimento67.

    Um pouco mais adiante:

    A marcha da ocupao do territrio, porm, cessara com a estabilizao e decadncia da sociedade campeira dos Campos Gerais. Restavam, pois, ao final do sculo, desocupadas as regies do Norte, Oeste e Sudoeste paranaense, afora a presena de

    66 Brasil Pinheiro MACHADO. Op. cit. p. 182.

    67 Cecilia M. WESTPHALEN, Brasil P. MACHADO e Altiva P. BALHANA. Nota prvia ao estudo da ocupao da terra no Paran Moderno. In: Boletim da Universidade Federal do Paran, Departamento de Histria, n. 7, 1968, p. 10.

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    rarefeitos posseiros caboclos, nos seus confins, que no organizaram em comunidades68.

    Os autores consideram que os planos de migraes desenvolvidos nos governos provinciais da segunda metade do sculo XIX no tinham como objetivo o preenchimento de largos espaos vazios. Consideram ainda as terras do norte, oeste e sudoeste do Estado desocupadas, apesar de alguns rarefeitos posseiros caboclos.

    A mesma perspectiva continua quando tratam da ocupao do Paran no sculo XX. Trabalhando com a questo das concesses feitas pelos governos do Estado s companhias colonizadoras utilizam o conceito de terras devolutas:

    A mais conseqente, no entanto, dessas concesses foi a realizada, por meio de venda, feita pelo Governo do Estado do Paran, de terras consideradas devolutas Paran Plantations Limited com sede em Londres69.

    Ou ainda,

    [...] o Governo do Estado, proprietrio, ainda, de grandes reas de terras devolutas e de terras de antigas concesses anuladas que haviam retornado ao seu patrimnio, iniciou tambm, a partir de 1939, diretamente, um programa de colonizao de muitas dessas reas no Norte paranaense70.

    Encontramos tambm no texto, alm das idias de largos espaos vazios, regies desocupadas, terras devolutas, a afirmao de que o oeste paranaense permanecia, at os anos 20 deste sculo, praticamente despovoado e desconhecido71.

    68 Op. cit., p. 11.

    69 Op. cit., p. 18. A Paran Plantation Limited foi a companhia que colonizou 545 mil alqueires de terras no norte do Estado, criando as principais cidades da regio como Londrina, Maring, Cianorte, Umuarama e uma dezena de outras cidades menores. No Brasil ela recebe o nome de Companhia de Terras Norte do Paran. No perodo da segunda guerra mundial, um grupo brasileiro compra a CTNP, que passa a ser denominada Companhia Melhoramentos Norte do Paran.

    70 Cecilia M. WESTPHALEN, Brasil P. MACHADO e Altiva P. BALHANA. Op. cit., p. 19.

    71 Op. cit., p. 20.

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    Balhana publica na Revista Paranaense de Desenvolvimento, de maio/junho de 1969, um artigo sobre a poltica migratria do Paran, que traz como um dos subttulos; Imigrao para povoar vazios demogrficos. De acordo com Balhana, com a Independncia acentua-se a preocupao pelos vazios demogrficos72. Este foi o caso dos ncleos coloniais de Thereza Cristina, fundada em 1847 pelo francs Joo Maurcio Favre, nas margens do rio Iva, e da colnia Superaguy, de suos, franceses e alemes, fundada por Carlos Perret Gentil, em 1852, em Guarequeaba.

    Estes ncleos, estabelecidos ambos em funo da poltica de povoar os vazios demograficos, no tiveram condies de prosperidade e quase mesmo de sobrevivncia73.

    A partir do incio dos anos 70 comeam aparecer trabalhos acadmicos sobre o Paran. So trabalhos de Histria, Geografia, Economia, Poltica, Sociologia, e que tm como substrato comum uma bibliografia bsica ancorada nos textos dos gegrafos/socilogos que refletiram o Paran nos anos 50, e o ncleo de historiadores da Universidade Federal do Paran, com sua produo nos anos 60.

    Alguns desses trabalhos apresentam a configurao demogrfica de determinadas regies do Paran no momento da sua ocupao, e a idia do vazio demogrfico tambm est presente.

    Trabalho considerado importante nas ltimas duas dcadas na rea de economia, foi a tese de doutoramento de Pedro Calil Padis - Formao de uma Economia Perifrica: O Caso do Paran, defendida em 1970 e publicada dez anos depois. Padis coloca a economia paranaense como perifrica de um sistema maior, o brasileiro, e, mais especificamente, na periferia da economia paulista. Considera que, com a ocupao do norte do Estado, a implantao da economia

    72 Altiva Pilatti BALHANA. Poltica Imigratria do Paran. In: Revista Paranaense de Desenvolvimento, maio/junho de 1969, p. 68.

    73 Op. cit., p. 70. A produo desse grupo de professores do departamento de Histria da Universidade Federal do Paran muito vasta. WESTPHALEM, BALHANA e MACHADO participaram conjuntamente do primeiro volume de Histria do Paran, 4 vols., organizado por Faissal EL-KHATIB, pblicado em 1969, obra clssica da historiogrfia paranaense. MACHADO e BALHANA ainda escrevem para o Boletim da Universidade do Parana, n. 3, junho de 1963, o artigo, Contribuio ao estudo da histria agrria do Paran, alm de varios outros estudos individuais publicados nos ltimos anos.

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    cafeeira, a partir dos anos 30, uma verdadeira revoluo ir ocorrer na economia do Estado e transformar-lhe a fisionomia74.

    Enfocando a regio norte do Estado, diz:

    Em menos de quarenta anos uma rea de aproximadamente 71.637 quilometros quadrados, ou seja, cerca de 36 por cento do territrio paranaense transforma-se de densa mata, absolutamente despovoada, em regio que, em 1960, contava com cerca de 1.843 mil habitantes (34 por cento da populao do Estado) distribuidos em 172 cidades, algumas de porte consideravel75.

    A partir da tese de Padis, muitas das explicaes sobre a economia paranaense anterior a 1930 passam a adotar a perspectiva de economia perifrica proposta por ele.

    O primeiro trabalho acadmico realizado especificamente sobre uma cidade fundada pela Companhia de Terras Norte do Paran foi a dissertao de mestrado em histria social da professora France Luz, da Universidade de Maring, denominado O Fenmeno Urbano numa Zona Pioneira: Maring. Como o prprio nome indica, a preocupao central estudar a fundao, crescimento e desenvolvimento de uma cidade numa zona considerada pioneira. Ao fazer consideraes sobre o povoamento do norte do Paran, a autora afirma:

    Ao se investigar o povoamento do Estado do Paran, verifica-se que at o incio deste sculo grande parte do seu territrio ainda no fora ocupado76.

    As tentativas de colonizao desenvolvidas a partir da segunda metade do sculo passado com europeus no tiveram tanto sucesso, como d a entender a mesma autora, e:

    Assim, no tendo recebido grande contingente de imigrantes estrangeiros, nem atrado a migrao interna, o Paran se manteve em

    74 Cf. Pedro Calil PADIS. Formao de uma economia perifrica: o caso paranaense. p. 82.

    75 Op. cit., p. 83.

    76 Cf. France LUZ. O fenmeno urbano numa zona pioneira: Maring, p. 84.

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    grande parte despovoado at o incio deste sculo77.

    Dentro dessa perspectiva, o texto, se desenvolve em meio a expresses como; boca do serto, terras virgens, que sugerem a idia de um Paran vazio espera da colonizao, seja via migraes proporcionadas pelo Estado, pela ao de companhias colonizadoras, ou at mesmo pelo povoamento espontneo.

    Outra dissertao de histria social sobre o Paran, tambm defendida na Universidade de So Paulo em 1980, discorre sobre o papel das sesmarias no sculo XVIII, na ocupao dos campos gerais paranaenses, e igualmente assume a idia de terras devolutas para denominar as terras indgenas. As Sesmarias do Paran no Sculo XVIII, de Marina L. Ritter, coloca a questo da seguinte forma:

    O confronto sesmaria - fazenda, na soluo encontrada pela ocupao efetiva do espao paranaenses, demonstra o retalhamento da terra devoluta que permanecia nos contornos das Fazendas, proporcionando o aparecimento de uma infinidade de Stios78.

    Primeiro, requerem-se as sesmarias, quer dizer, ocupam-se terras pertencentes s comunidades indgenas h centenas de anos, atravs de concesses da coroa portuguesa, que se acha dona de parte dessas terras. Em seguida, denominam-se as terras existentes entre as sesmarias, que tambm pertencem aos ndios, de terras devolutas, isto , desocupadas, sem dono, para logo em seguida retalh-las em stios, fazendo a ocupao definitiva.

    Ao discutir a conjuntura ocupacional do norte paranaense, Ivani Rogati Omura, numa dissertao sobre comportamento poltico em Maring, demonstra que a ocupao da regio norte do Estado se deu em conseqncia do avano da cultura cafeeira na sua forma empresarial, dirigida tanto pela Companhia de Terras Norte do Paran como pelo prprio Estado, e que a questo do fenmeno migratrio por que passou a regio naquele instante foi uma decorrncia da expanso do capital. No entanto, a autora

    77 Op. cit., p. 85.

    78 Cf. Marina Lourdes RITTER. As Sesmarias do Paran no sculo XVII, p. 207.

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    enfoca as grandes reas do Paran como um imenso vazio a ser ocupado:

    A investigao do povoamento do Estado do Paran, permite constatar que grande parte de seu territrio no fora ainda ocupado at o incio deste sculo. [...] Assim, apesar das tentativas oficiais de colonizao j mencionadas, o norte do Paran permaneceu at o ltimo quartel do sculo XIX, como serto desconhecido e desabitado79.

    Ao tratar da aquisio das terras da regio pela Paran Plantations Ltd, a autora afirma que isso se deu atravs da compra de terras devolutas ao Estado80. E ao discutir o pioneirismo, o enfoque o mesmo:

    A frente cafeicultora no Paran pode ser vista como uma frente capitalista competitiva, e no como frente pioneira, pois admitindo que pioneiro o que vai adiante, o que abre caminho, o lavrador e o pequeno proprietrio so pioneiros; na estrutura em estudo, porm, no coube ao lavrador a deciso de migrar: os fluxos foram determinados pelo movimento do capital, ou seja, a frente capitalista, ao fazer a prvia ocupao dos espaos vazios por grandes propriedades, antes que l chegassem os lavradores e os pequenos proprietrios, cumpriu o pioneirismo81.

    Ainda em 1981, uma outra dissertao de mestrado sobre a colonizao agrcola de Assa por uma empresa japonesa a partir de 1930, tambm acaba por repetir a idia do vazio demogrfico. Tratando da colonizao do Estado no sculo passado, o texto discorre82 sobre as vrias formas de colonizao levadas adiante, que vo desde a colonizao oficial, promovida pelo governo, as particulares, que contam com estmulos governamentais, at os estabelecimentos das

    79 Cf. Ivani Rogatti OMURA. Eleitores e Eleitos - Composio e Comportamento Maring, 1956-1964, mimeografado, p. 37.

    80 Op. cit., p. 41.

    81 Op. cit., p. 53.

    82 Os tipos de colnias apresentados aqui tm como referncia o texto Poltica Imigratria do Paran, da professora Altiva P. BALHANA, j discutido por mim anteriormente.

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    colnias militares com objetivos defensivos. Em seguida, aponta para os objetivos dos esforos dos governos central e provincial para a colonizao do Estado.

    Estes esforos sero feitos para aumentar a entrada de novos contingentes populacionais preenchendo os vazios demogrficos83.

    A argumentao continua como a matriz terica dos anos 60. Junto criao das colnias fazia-se a penetrao pelo serto em vrios rumos84. No se penetra nos territrios indgenas, e sim no serto, serto este que, como j definiu o gegrafo Nilo Bernardes, sinnimo de vazio demogrfico85.

    Poderamos continuar mostrando como a idia do vazio demogrfico uma presena constante nos trabalhos acadmicos sobre a sociedade paranaense86, aparecendo ora como terras devolutas, ora como serto desabitado, ou outras variadas formas de expresso.

    Essas formulaes passam a ser reproduzidas nas escolas, em livros didticos ou trabalhos acadmicos, passando a ser aceitas como um pressuposto que acaba por retirar da histria social paranaense a presena indgena, presena que resistiu e continua resistindo, das mais diversas formas, ocupao de suas terras e sua destruio enquanto comunidade diferenciada da sociedade nacional.

    83 Cf. Evandir CODATO. Colonizao Agrcola: A Colnia Trs Barras - 1932/1970, p. 10, mimeografado.

    84 Op. cit., p. 16.

    85 Ver Nilo BERNARDES. Expanso do Povoamento no Estado do Paran. In: Revista Brasileira de Geografia, 14(4): 58, out./dez. 1952.

    86 Cf. ainda: Ruy C. WACHOWICZ. Histria do Paran, 1967, p. 85, onde fala das terras do Paran como terra de ningum, entregue ao gentio, apesar de nesta mesma obra descrever em vrios momentos conflit