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5/16/2018 Artaud Estetica Teatral p.447-460 - slidepdf.com
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66 - ARTAUD: 0 TEATRO E 0 SEU DUPLO (1938)
Antonin Artaud (1896-1948), escritor, encenador e actor fran-
ces, participou no movimento surrealista antes de se separar dele no
momenta da criacdo do Teatro Alfred Jarry, em 1926. Se nunca che-
gou a realizar esse «teatro da crueldade» que propoe em 0 teatro e
o seu duplo, ndo deixou menos de alimentar toda uma corrente do
teatro contempordneo pela [orca dessa visdo limite, nunca atingida,
que oferece. Esta visi io e a de um teatro ruio apenas libertado da li-
teratura e da psicologia, mas que reencontraria a eficacia original e
mdgica (quer dizer criadora de realidade) de uma linguagem de sig-
nos unificada, reconciliando, enfim, 0 corpo e 0 espirito, 0abstracto
e 0 concreto, 0 homem e 0 universo. 0 actor, portador de signos,
esta no centro: a sua respiracao e 0 seu corpo estdo na base desta
nova gramdtica. Eles animam os seus «hieroglifos». E fora do Oci-
dente - em direcciio ao Oriente (ele viu em Paris uma representacdo
do teatro de Bali em 1931) ou ao Mexico (faz uma viagem ao Me-
xico e ao pais dos Tarahumaras em 1936) - que Artaud olha para
encontrar modelos, em direccao a essas culturas «sintet icas» e uni-
tarias onde as formas nunca sao separadas das «forcas», Porque
para alem doprocesso do teatro ocidental, e 0processo de toda uma
cultura que Artaud faz, quer dizer, de uma certa prdtica da lingua-
gem e, atraves dela, de uma visdo do homem, do mundo e da vida.
1-0TEATROEACULTURA
o que a cultura nos fez perder, foi a nossa ideia ocidental daarte e 0 proveito que dela ret iravamos, Arte e cultura nao podem es-
ta r de a co rd o , o n rr ar iamen te ao uso que universalmente se faz,
!\ v nludclru '1I11l11'1lll pela ua exaltacao, pela sua forca, e 0
id III '1II'OP 'II "" II1II V \ lnucar 0 s pt ri to n uma a ti tu de s ep ar ad a da
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forca que assiste a sua exaltacao. E uma ideia preguicosa, imiti l e
que, a curto prazo, engendra a morte.
No Mexico, dado que se trata do Mexico, nao ha arte e as coisas
servem. E 0mundo encontra-se numa exaltacao perpetua.
A nossa ideia inerte e desinteressada da arte, uma cultura au-
tentica opoe uma ideia magica e violentamente egofsta , quer dizer
interessada. Porque os mexicanos captam os Manas, as forcas que
dormem em todas as formas e que nao podem sair de uma contem-
placao das formas por si mesmas, mas que saem de uma identif ica-
<;aomagic a com essas formas. E os velhos T6temes estao la para
acelerar a comunicacao.
Quando tudo nos incita a dormir, olhando com olhos fixos e
conscientes, e duro acordarmo-nos e olharmos como num sonho,
com olhos que nao sabem mais para que e que servem, e cujo olharesta virado para dentro.
E assim que se gera a ideia estranha de uma accao desinteres-
sada, mas que e accao apesar de tudo, e mais violenta por caminhar
ao lade da tentacao do repouso.
Toda a verdadeira eflgie tem a sua sombra que a duplica; e a
arte cai a partir do momenta em que 0 escultor que model a acredita
libertar uma especie de sombra cuja existencia dilacerara 0 seu
repouso.
Como toda a cultura magica que hier6g1ifos apropriados es-
coam, 0 verdadeiro teatro tambern tern as suas sombras; e de todas
as linguagens, e de todas as artes, e 0 i inico a ter ainda as sombras
que quebraram as suas limitacoes. E, desde a origem, pode dizer-se
que elas nao suportavam limitacoes.
A nossa ideia petrificada do teatro associa-se a . nOSS'1 idcia p -
trificada de uma cultura sem sombras, onde, qualqucr que R ju 0
lade para que se vire 0 nosso sprriro, I1t 0 S 11xmtru muis qu 0
vaz io , enquan to 0 spnc;o H i l l 'II lu,
44 9
Mas 0verdadeiro teatro, porque mexe e porque se serve de ins-
trumentos vivos, continua a agitar as sombras onde nao deixou de
estrebuchar a vida. 0 actor que nao faz duas vezes 0mesmo gesto,
mas que faz gestos, mexe-se e seguramente brutal iza as formas, mas
por detras dessas formas e pela sua destruicao, rel ine 0 que sobrevi-
veu as formas e produz a sua continuidade.
o teatro que nao esta dentro de nada, mas se serve de todas as
linguagens: gestos, sons, palavras, fogo, gritos, encontra-se exacta-
mente no ponto em que 0 espfrito tern necessidade de uma lingua-
gem para produzir as suas manifestacoes,
E a fixacao do teatro numa linguagem: palavras escri tas , rrni-
sica, luzes, ruidos, indica a breve prazo a sua perda, a escolha de
uma linguagem provando 0 gosto que se tem pelas facilidades dessa
linguagem; e 0 definhar da linguagem acompanha a sua limitacao,
Para 0 teatro, como para a cultura, a questao continua a ser a de no-
mear e dirigir as sombras: eo teatro, que nao se fixa na linguagem e
nas formas, destr6i, por esse facto, as falsas sombras, mas prepara 0
caminho a um outro nascimento de sombras em tome das quais se
agrega 0 verdadeiro espectaculo da vida.
Quebrar a linguagem para tocar a vida e fazer ou refazer 0 tea-
tro; e 0 importante e nao acreditar que este acto deva contin~ar
sagrado, quer dizer reservado. Mas 0 importante e acreditar que nao
e qualquer um que 0pode fazer, que e preciso uma preparacao.
Isto leva a rejeitar as limitacoes habituais do homem e dos po-deres do homem, a tornar infinitas as fronteiras do que se chama
realidade.
E preciso acreditar num sentido da vida renovado pelo teatro,
onde 0 homem, impavidamente, se toma 0 senhor do que ainda nao
e e 0 faz nascer. E tudo 0 que nao nasceu pode ainda nascer, desde
que nao nos contenternos em ser simples orgaos de gravacao.
I 'I 1 ' 1 ' 1 smu mUI1 l r u , quun 1 0 pronunciarnos a palavra vida, sera
1 1 " f iN 10
1 0 ouvlr t i l l I I ( ) f o i l trurn dn vi la r conhecida pelo exterior
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dos factos, mas dessa especie de fragil e irrequieta chama a qual
nao chegam as formas. E se ha ainda qualquer coisa de infernal e de
verdadeiramente maldito neste tempo, e 0 dernorar-se artisticamente
sobre as formas, em vez de se ser como os supliciados que sao
queirnados, e que lancam sinais das suas fogueiras.
2 - 0 TEATRO E ALQUIMIA
Talvez antes de ir mais longe nos pecam que definamos 0 que
entendemos por teatro tfpico e primitivo. E por aqui entraremos
mesmo no seio do problema.
Se de facto se coloca a questao das origens e da razao de ser
(ou da necessidade primordial) do teatro, encontra-se, de um lado e
metafisicamente, a materializacao, ou antes, a exteriorizacao de
uma especie de drama essencial que conteria, de uma maneira
simultaneamente mult ipla e unica, os princfpios essenciais de todo
o drama, ja eles pr6prios orientados e divididos, nao 0bastante para
perderem 0 seu caracter de principios, mas 0 suficiente para conter,
de modo substancial e activo, quer dizer, cheio de descargas, pers-
pectivas infinitas de conflitos. Analisar filosoficamente urn tal drama
e impossivel e na o e senao poeticamente, e arrancando 0que podem
ter de comunicativo e de magnetico nos princfpios de todas as artes,
que se pode, pelas formas, pelos sons, rmisicas e volumes, evocar,
passando atraves de todas as simili tudes naturais das imagens e das
semelhancas, nao as direccoes primordiais do espfrito, que 0 nosso
intelectualismo 16gico e abusivo reduziria a nada mais que esque-
mas imiteis, mas umas especies de estados de uma acuidade tao in-
tensa, de urn decisivo tao absoluto, que sentimos, atraves dos tremo-
res da rmisica e da forma, as ameacas subterraneas de lim caos tao
decisivo quanto perigoso.
E este drama es se nc ial, ~ 1 11 -1 ' 1 P rfcitum nte, x i S I i' t
imagem de qualquer oisu mnl" N uh (il 'Ill U pl'I (win jl"ill~ 0, lin
451
e bern necessario que 0 representemos como 0 resultado de uma
Vontade una - e sem conflito,
E preciso acreditar que 0 drama essencial, aquele que estava na
base de todos os Grandes Misterios, se casa com 0 segundo tempo
de Criacao, 0 da dif iculdade e do Duplo, 0 da materia e do espessa-
mento da ideia.
Parece bern que ali, onde reina a simplicidade e a ordem, nao
possa haver nem teatro nem drama. Eque 0 verdadeiro teatro nasce,
como a poesia, alias, mas por outras vias, de uma anarquia que se
organiza, ap6s as lutas filosoficas, que sao 0 lado apaixonante des-
tas unificacoes primitivas.
Ora, estes conflitos que 0 Cosmos em ebulicao nos oferece de
uma maneira filosoficamente alterada e impura, a alquimia propoe-
-no-los em toda a sua intelectualidade rigorosa, dado que ela nospermite reatingir 0 sublime, mas com 0 drama, depois de urn tri tu-
rar minucioso e exacerbado de todas as formas insuficientemente
afinadas, insuficientemente amadurecidas, dado que esta no princf-
pio mesmo da Alquimia nao permitir ao espfri to que tome 0 seu im-
pulso senao depois de ter passado por todas as canalizacoes, todos
os envasamentos da materia existente, e ter refei to este trabalho em
duplicado nos limbos incandescentes do futuro. Porque dir-se-ia
que, para merecer 0 ouro material, 0 espirito tera tido primeiro que
provar a si mesmo que era capaz do outro, e que nao tinha ganho
este, que ele nao 0 teria atingido senao em condescendendo nisso,
em considerando-o como um simbolo segundo da queda que teve
que dar para reencontrar, de uma mane i ra s6lida e opaca, a expres-
sao da pr6pria luz, da raridade e da irredutibilidade.
A operacao teatral de fazer 0 ouro, pela imensidade dos conflitos
que provoca, pete ruirnero prodigioso de forcas que atira uma contra
a ourru qu .lu cornov , par esse apelo a u ma e sp ec ie de pre-
,II lido LINNlllll'llIlllllXII'IIYtlHlll' de ons s q u mc ia s ~ sob re car re gado de
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espiritualidade, evoca finalmente, ao espfrito, uma pureza absoluta e
abstracta, ap6s a qual nao ha mais nada, que se poderia conceber
como uma nota unica, uma especie de nota l imite, apanhada em voo
e que seria como a parte organic a de uma vibracao indescritfvel.
3- SOBRE 0 TEATRO DE BALI
o primeiro espectaculo do teatro de Bali que tern muito de danca,canto, e pantomima, rm is ic a - e demasiado pouco de teatro psicol6gico
tal como 0 entendemos aqui na Europa, recoloca 0 teatro no seu plano
de criacao aut6noma e pura, sob 0angulo da alucinacao e do medo.
E notavel que a prime ira das pequenas pecas que cornpoern
este espectaculo - e que nos faz assistir as admoestacoes de urn pai
a sua filha que se insurge contra as tradicoes -, comeca por uma
entrada de fantasmas ou, se 0quiserem, que as personagens, homens
e mulheres que van servir para 0 desenvolvimento de urn assunto
dramatico mas familiar, aparecem-nos primeiro no seu estado
espectral de personagens, ou seja, vistas sob 0 angulo da aluci-
nacao, que e 0 pr6prio a toda a personagem de teatro, antes de per-
mitir as situacoes deste tipo de sketch simb6lico que evoluam. Aqui,
alias, as situacoes nao sao mais do que urn pretexto. 0 drama nao
evolui entre os sentimentos, mas entre os estados de espfrito, eles
mesmos ossificados e reduzidos a gestos, - a esquemas. Em suma,
os balineses realizam, com 0 mais extremo rigor, a ideia do teatro
puro, onde tudo, concepcao como realizacao, nao vale, nao tern
existencia, senao pelo seu lado de objectivacao sobre a cena. De-
monstram vitoriosamente a preponderancia absoluta do encenador
cujo poder de criacao elimina as palavras. Os temas sao vagos, abs-
tractos, extremamente gerais. Apenas lhe s d a vida 0 p u lu la r c or np li -
cado de todos os artiffcios cenicosque imp6em ao 110SS0 spfril'o
como que a ideia de uma metaffsica retirada de u r n a uli lizt l '(o novu
do gesto e da voz,
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Com efeito, 0 que ha de curioso em todos estes gestos, nestas
atitudes angulosas e brutalmente cortadas, nas modificacoes sincopa-
das guturais, nas frases musicais que mudam repentinamente, nos
voos de elitro, esse rocagar de ramos, esses sons de caixas vazias, es-
ses rangeres de aut6matos, essas dancas de manequins animados, e:
que atraves do seu dedalo de gestos, de atitudes de gritos at irados no
ar, atraves das evolucoes e das curvas que nao deixam nenhuma por-
yao do espaco cenico por utilizar, se liberta 0 sentido de uma nova
linguagem ffsica a base de signos e nao mais de palavras. Estes acto-
res, com os seus vestidos geometricos, parecem hier6glifos animados.
(... )
Os temas propostos partem, poder-se-ia dizer , da cena. Sao tais
e estao num tal ponto de materializacao objectiva, que nao se po-
dem imaginar, par mais que se escave, fora desta perspectiva densa,
desse globo fechado e limitado do palco.
Este espectaculo da-nos urn composto maravilhoso de imagens
cenicas puras, para a cornpreensao das quais toda uma nova lin-
guagem parece ter sido inventada: os actores, com as suas roupas,
compoem verdadeiros hier6glifos que vivem e se movem. E estes
hier6glifos em tres dimensoes, por sua vez, estao sobreornados com
urn certo mimero de gestos, de signos misteriosos, que correspon-
dem a nao se sabe que realidade fabulosa e obscura que n6s, gentes
do ocidente, definitivamente reprimimos. Ha qualquer coisa que
participa do espiri to de uma operacao magica nesta intensa liberta-
yao de signos, primeiro retidos e depois subitamente lancados no ar.
Uma efervescencia ca6tica, cheia de referentes e por momen-
tos estranhamente ordenada, crepita nesta efervescencia de ri tmos
pintados, em que 0 caldeirao I toea sem cessar e intervem como urn
silencio bern calculado.
I In~[J'llllll'lllIllnll"Ii'III, ( N , ' I ' , )
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A esta ideia de teatro puro, que entre nos e puramente teorica e
a qual nunca ninguem tentou dar a minima realidade, 0 teatro de
Bali propoe-nos uma realizacao espantosa, no sentido em que su-
prime toda a possibilidade de recurso as palavras para a elucidacao
dos temas mais abstractos; - e que inventa uma linguagem dos
gestos feitos para evoluir no espaco e que nao podem ter sentido
fora dele.
o espaco da cena e utilizado em todas as suas dimensoes e,
poderia dizer-se, sobre todos os pIanos possfveis. Porque ao lado de
urn sentido agudo da beleza plastica, esses gestos t iveram sempre
por objectivo final a elucidacao de urn estado, ou de urn problema,
de espfrito.
Pelo menos e assim que nos aparecem.
(... )E certo que este lado do teatro puro, esta ffsica do gesto abso-
luto, que e a ideia em si e que obriga as concepcoes do espirito a
passar, para serem percebidas, pelos dedalos e entrancados fibrosos
da materia, tudo isto nos da como que uma ideia nova do que
pertence propriamente ao dominio das formas e da materia manifes-
tada. Aqueles que conseguem dar urn sentido mistico a simples
forma de urn vestido, que, nao contentes de por ao lado do homem
o seu Duplo, atr ibuem a cada homem vestido 0 seu duplo de roupa-
gens, - aqueles que atravessam essas vestimentas i lusorias, essas
vest imentas mimero dois, com urn sabre que lhes da ares de grandes
borboletas picadas no ar, essas pessoas, muito mais do que nos, tern
o sentido inato do simbolismo absoluto e magico da natureza e dao-
-nos uma Iicao da qual, f icamos demasiado certos, os nossos tecni-
cos de teatro estarao impotentes para tirar partido,
(.. .)
Este espaco de ar in te le ctu al, s t· [e go p sfq ui '0, HI' Hil nclo
am assado d pensam ntos que 'xii'll' ntr os 11 \ 'lilt 1 ' 0 1 ' 1 d 1 I 1 1 1 l 1 I'I'lHl
455
escrita, aqui, e tracado no ar cenico, entre os membros, 0 ar, e as
perspectivas de urn certo mimero de gritos, de cores e movimentos.
4 - TEATRO ORIENTAL E TEATRO OCIDENTAL
A revelacao do teatro de Bali foi fornecer-nos do teatro uma
ideia fisica e nao verbal, em que 0 teatro e contido nos limites de
tudo 0 que se pode passar sobre uma cena, independentemente do
texto escrito, enquanto 0 teatro, tal qual 0 concebemos no Ocidente,
esta ligado ao texto, e encontra-se l imitado por ele. Para nos, no tea-
tro a Palavra e tudo, e naoMpossibilidades fora dela; 0 teatro e urn
ramo da literatura, l ima especie de variedade sonora da linguagem
e, se admitimos uma diferenca entre 0 texto falado em cena e 0
texto lido pelos olhos, se fechamos 0 teatro nos limites do que apa-rece entre duas replicas, nao conseguiremos separar 0 teatro da
ideia do texto realizado. Esta ideia da supremacia da palavra no tea-
tro esta tao enraizada em nos, e 0 teatro aparece-nos tanto como 0
simples reflexo material do texto, que tudo 0que no teatro ultrapassa
o texto, tudo 0 que nao esteja conti do nos seus limites e estrita-
mente condicionado por ele, nos parece fazer parte do dominio da
encenacao considerada como qualquer coisa de inferior relativa-
mente ao texto.
Sendo dada esta sujeicao do teatro a palavra, podemos pergun-
tar-nos se 0 teatro, por acaso, nao possuiria a sua linguagem pro-
pria, se seria absolutamente quimerico considera-lo como uma arte
independente e autonoma, com 0mesmo titulo que a miisica, a pin-
tura, a danca, etc.
Em todo 0 caso descobre-se que, se esta linguagem existe, con-
funde-se necessariamente com a encenacao considerada:
1 - POI' tim ludo, 'OInO u mat rializacao visual e plastica da
pulnvra,
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2 - Como a linguagem de tudo 0 que se pode dizer e signif icar
sobre uma cena independentemente da palavra, de tudo 0 que en-
contra a sua expressao no espaco, ou que pode ser atingido ou desa-
gregado por ele.
Esta linguagem da encenacao considerada como linguagem
teatral pura, trata-se de saber se e capaz de atingir 0mesmo objecto
interior que a palavra, se do ponto de vista do espfrito e teatral-
mente pode aspirar a mesma eficacia intelectual que a linguagem
articulada. Noutros termos, podemos perguntar-nos se ela pode,
nao particularizar os pensamentos, mas fazer pensar , se pode levar
o espfrito a tomar atitudes profundas e eficazes do seu pr6prio
ponto de vista.
Numa palavra, colocar a questao da eficacia intelectual da
expressao pelas formas objectivas, da eficacia intelectual de uma
linguagem que nao utilizaria mais que as formas, ou 0 ruido, ou 0
gesto, e colocar a questao da eficacia intelectual da arte.
Se chegamos ao ponto de atribuir a arte apenas urn valor de
aprovacao e repouso, de faze-la conter-se numa utilizacao puramente
formal das formas, na harmonia de algumas relacoes exteriores, isto
em nada corrompe 0 seu valor expressivo profundo; mas a enfermi-
dade espiritual do Ocidente, que e 0 lugar por excelencia onde se
pode confundir a arte com 0 esteticismo, e pensar que poderia exis-
tir uma pintura que nao servisse para mais nada senao pintar, uma
danca que nao fosse senao plastic a, como se tivessem querido cortar
as formas da arte, cortar os seus laces com todas as atitudes mfsti-
cas que podem tomar confundindo-se com 0 absoluto.
Compreende-se entao que 0 teatro, na medida mesmo em que
se mantem encerrado na sua linguagem, em que fica em correlacao
com ela, deve romper com a actualidade, qu 0 S Uobj tivo I1t0
resolver os conflitos socials ou psi '016 rj 'OS, scrvir d 'tllnp( de
batalha as paixo S moruis, mUll t' prlmlr oi1jxtivumc nil ' Vll'dlldt'ti
457
secretas, fazer vir a luz, por gestos activos, essa parte de verdade
enterrada sob as formas nos seus encontros com 0Devir.
Fazer isto, ligar 0 teatro as possibi lidades da expressao pelas
formas e por tudo 0 que sao gestos, ruidos, cores, plastic a, etc., e
faze-Io regressar ao seu destino primit ivo, e recoloca-Io no seu as-
pecto religioso e metafisico, e reconcilia-lo com 0universo.
Mas as palavras, dir-se-a, tern faculdades metaffsicas, nao e
proibido conceber a palavra como 0 gesto no plano universal e e
nesse plano, alem disso, que ela adquire a sua eficacia maior, como
uma forca de dissociacao das aparencias materiais , de todos os esta-
dos nos quais se estabilizou e que teria tendencia a repousar-se 0 es-
pfrito. E facil responder que este modo metaffsico de considerar a
palavra nao e aquele em que a emprega 0 teatro ocidental, que a
emprega, nao como uma forca activa e que parte da destruicao dasaparencias para subir ate ao espfrito, mas pelo contrario, como urn
grau acabado do pensamento que se perde ao exteriorizar-se.
A palavra no teatro ocidental nunca serve senao para exprimir
os conflitos psicol6gicos particulares ao homem e a situacao na
actualidade quotidiana da vida. Os seus confli tos sao claramente
justicaveis pel a palavra articulada e, quer fiquem no dominio psico-
16gico, quer saiam dele para reentrar no dominio social, 0 drama
manter-se-a sempre de interesse moral pelo modo como os conflitos'
a tacarao e desagregarao os caracteres. E tratar-se-a sempre de urn
domfnio em que as resolucoes verbais da palavra conservarao a sua
melhor parte. Mas estes conflitos morais, pela sua pr6pria natureza,
nao tern de modo algum necessidade da cena para se resolverem.
Fazer dominar em cena a linguagem articulada, ou a expressao
pelas palavras sobre a expressao objectiva dos gestos e de tudo 0
que atinge 0 e.pfr ito P 10 meio dos sentidos no espaco, evirar as
ORtas us n ' IIHidnd'H r H i ' as cia c na e insurgir-se contra as suas
P O HHibllldnd ,
\
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o dominio do teatro, tern que se dizer, nao e psico16gico, mas
plastico e ffsico. E nao se trata de saber se a linguagem ffsica do
teatro e capaz de chegar as mesmas resolucoes psico16gicas que a
linguagem das palavras, se pode exprimir sentimentos e paixoes tao
bern quanta as palavras, mas se nao havera no domfnio do pensa-menta e da inteligencia ati tudes que as palavras sao incapazes de ta-
mar e que as gestos, e tudo a que participa da linguagem no espaco,
atingem com maior precisao que elas.
Antes de dar urn exemplo das relacoes do mundo ffsico com as
estados profundos do pensamento, permiti que nos citemos a n6s
pr6prios:
«Todo a verdadeiro sentimento e , na realidade, intraduzivel.
Exprimi-lo e trai-Io. Mas traduzi-lo e dissimula-lo. A expressao ver-
dade ira esconde a que ela manifesta. Opoe 0 espir ito ao vazio real
da natureza criando, par reaccao, uma especie de pleno no pensa-
menta. Ou, se a preferirem, relat ivamente a manifestacao-i lusao da
natureza ela cria urn vazio no pensamento. Todo a sentimento po-
deroso provoca em n6s a ideia do vazio. E a linguagem clara que
impede esse vazio, impede tambem a poesia de aparecer no pensa-
menta. E por isso que uma imagem, uma alegoria, uma figura que
mascara a que ela quereria revelar, tern mais significado para a
espfrito que as claridades trazidas pelas analises da palavra.
E assim que a verdadeira beleza nunca nos toea directamente.
E que urn sol-per e bela par causa de tudo 0que nos faz perder» I.
OS pesadelos da pintura flamenga marc am-nos pela justa-
posicao, ao lado do mundo verdadeiro, daquilo que nao e mais
que uma caricatura desse mundo; oferecern larvas que poderlamos
ter sonhado. Tern a sua fonte nesses estados meio sonhados que
I 0 tcxro d o q u o A r tu u d 1 l1 'J '( )~ ~ nl ll ll ql ll ll 1 1 11 1 ,1) ru 0 ! ' o l ~IIYIlIIII'l1(i(l. (N,f/,)
\\
\rovocam as gestos falhados e os irris6rios lapsos da lingua. E ao
lado de uma crianca esquecida levantam uma garra que salta; ao
lado de urn embriao humano nadando em cascatas subterraneas
459
mostram, sob uma fortaleza temivel, a avancar de urn exercito ver-
dadeiro. Ao lado da incerteza sonhada a marchar da certeza e, para
alem de uma luz amarela de cave, a raio alaranjado de urn enorme
sol de Outono a retirar-se. Nao se trata de suprimir a palavra no tea-
tro, mas de lhe fazer mudar a seu destino e, sobretudo, de reduzir a
seu lugar, considera-la como outra coisa diferente de urn meio para
conduzir as caracteres humanos para as seus fins exteriores, dado
que nunca se trata, no teatro, senao do modo como os sentimentos e
as paixoes se opoem umas as outras e de homem a homem na vida.
Ora, mudar a destino da palavra no teatro e servir-se dela num
sentido concreto e espacial e por tanto que ela se combine com tudo
a que a teatro contem de espacial e de significacao no domfnio con-
creto; e manipula-la como urn objecto s6lido e que desmorona as
coisas, primeiro noar, depois num dominio infinitamente mais mis-
terioso e mais secreta mas que ele pr6prio admite a extensao, e este
dorninio secreta mas extenso, nao sera muito diffcil identif ica-lo
com a da anarquia formal par urn lado, mas tambem da criacao for:'
mal continua par outro.
E assim que esta identif icacao do objecto do teatro com todas
as possibi lidades da manifestacao formal e extensa, faz aparecer aideia de uma certa poesia no espaco que se confunde, ela mesma,
com a feiticaria.
No teatro oriental de tendencias metaffsicas, oposto ao teatro
ocidental de tendencias psico16gicas, ha uma tomada de posse, pe-
las formas, dos seus sentidos e das suas signif icacoes sabre todos as
planes possfv Is: ali s quiserem, as suas consequencias vibrat6rias
111[0St 0 ImdllM Mol)!' urn unlco plano, mas sabre todos os planas do
Np(l'iI(lJlO iii Hilll' 1 ' 1 1 \ 1 1 1 1 ,
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E e por esta multiplicidade de aspectos sob os quais as pode-
mos considerar que elas adquirem a sua capacidade de perturbacao
e encantos, e que elas sao uma excitacao continua para 0 espfrito.
E porque 0 teatro oriental nao toma os aspectos exteriores das coisas
num so plano, que nao se limita ao simples obstaculo e ao encontro
solido desses aspectos com 0 sentido, mas e porque nao cessa de con-
siderar 0 grau de possibil idade mental dos quais sairam, que ele par-
t icipa da poesia intensa da natureza e que conserva as suas relacoes
magic as com todos os graus objectivos do magnetismo universal.
E sob este angulo de utilizacao magica, de feiticaria, que e pre-
ciso considerar a encenacao, nao como 0 reflexo de um texto escrito
e de toda essa projeccao de duplos fisicos que emana do escrito,
mas como a projeccao ardente de tudo 0 que pode ser t irado de con-
sequencias objectivas de um gesto, de uma palavra, de um som, de
uma rmisica e das suas combinacoes entre si. Esta projeccao activa
nao se pode fazer senao em cena e as suas consequencias encontra-
das diante da cena e sobre a cena; e 0 autor que usa exclusivamente
palavras escritas nao tem at que fazer, e deve ceder 0 seu lugar aos
especialistas desta feiticaria objectiva e animada.
Extrafdo de Le thet/lre et SOli doubte, 'UVI 'OM compl teH Iv. A. Arruud, PIlI 'iM, I t )M" I: pp, I h·
-lil; 2: pp. 6 0 -6 2; 3 : pp, 7 :1 -7 5 ; 4 : pp, H .K H,) , P OI' 1 1 1 1 1 v I [ t ll l (l I 'l ~ ,uQ u r ln , (1 11 10 1 1 1IIIIIinul'tl,