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O processo de canonização do filme 1984 no campo publicitário The canonization process of 1984 film in the advertising field RESUMO: Este trabalho traça a dinâmica do processo de consagração de 1984, filme publicitário que lançou o Macintosh da Apple. Com base na sociologia de Pierre Bourdieu, foi analisado o estado do campo publicitário e do espaço das obras dados naquele momento a fim de averiguar as condições do espaço social que tornaram seu surgimento possível. Através do levantamento e análise de dados contextuais e depoimentos, conclui-se que o lugar ocupado pelo filme é homólogo a posições que podem ser consideradas a vanguarda do campo publicitário, e que esse lugar de vanguarda está baseado sobretudo em uma associação entre o valor da inovação e a efetividade comercial. PALAVRAS-CHAVE: publicidade, campo publicitário, filme publicitário, 1984. ABSTRACT: This paper traces the dynamics of the consecration of 1984, advertising film that launched the Apple Macintosh. Based on the sociology of Pierre Bourdieu, we analyzed the state of the advertising field and the space of production at the time to ascertain the conditions of social space which made its emergence possible. Through the survey and analysis of contextual data and testimony, we conclude that the place occupied by the film is homologous to positions that can be considered the vanguard of the advertising field, and that at the forefront is based mainly on an association between the value of innovation and business effectiveness. KEYWORDS: advertising, advertising field, advertising film, 1984. 1

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O processo de canonizao do filme 1984 no campo publicitrioThe canonization process of 1984 film in the advertising fieldRESUMO: Este trabalho traa a dinmica do processo de consagrao de 1984, filme publicitrio que lanou o Macintosh da Apple. Com base na sociologia de Pierre Bourdieu, foi analisado o estado do campo publicitrio e do espao das obras dados naquele momento a fim de averiguar as condies do espao social que tornaram seu surgimento possvel. Atravs do levantamento e anlise de dados contextuais e depoimentos, conclui-se que o lugar ocupado pelo filme homlogo a posies que podem ser consideradas a vanguarda do campo publicitrio, e que esse lugar de vanguarda est baseado sobretudo em uma associao entre o valor da inovao e a efetividade comercial.PALAVRAS-CHAVE: publicidade, campo publicitrio, filme publicitrio, 1984.ABSTRACT: This paper traces the dynamics of the consecration of 1984, advertising film that launched the Apple Macintosh. Based on the sociology of Pierre Bourdieu, we analyzed the state of the advertising field and the space of production at the time to ascertain the conditions of social space which made its emergence possible. Through the survey and analysis of contextual data and testimony, we conclude that the place occupied by the film is homologous to positions that can be considered the vanguard of the advertising field, and that at the forefront is based mainly on an association between the value of innovation and business effectiveness.KEYWORDS: advertising, advertising field, advertising film, 1984.

Desde o aparecimento do primeiro anncio, veiculado em 1704 no Boston News Letter, at a formao de um mercado que movimenta 519,9 bilhes de dlares por ano[footnoteRef:1], o campo publicitrio global passou por muitas transformaes. O fortalecimento da imprensa, a abertura da primeira agncia de propaganda (Volney Palmer, em 1843), a primeira contratao de um redator (John Powers, empregado por John Wanamaker) e o surgimento do Cannes Lions International Advertising Festival, em 1954[footnoteRef:2], so apenas alguns dos fatos que concorrem para a consolidao deste campo ao longo de mais de trs sculos. [1: Nmeros relativos ao investimento global em mdia feito por anunciantes em 2014, de acordo com levantamento da Advertising Age disponvel em: http://adage.com/article/global-news/global-ad-market/296104/] [2: Fatos histricos extrados da timeline elaborada pela Advertising Age, disponvel em http://adage.com/century/timeline/index.html]

Com o advento da televiso, na dcada de 40, as prticas no interior do campo de produo de filmes publicitrios sofrem alteraes drsticas. Redatores habituados a elaborar ttulos e textos para o meio impresso incorporam a funo de roteiristas. Produtoras de vdeo, empresas de casting e estdios de udio passam a figurar como instituies atuantes no campo. As agncias tm seus lucros financeiros incrementados pelo BV bonificao sobre veiculao, um acordo de mercado atravs do qual os veculos repassam at 20% do investimento em mdia s agncias. E, apesar do surgimento recente de novas tecnologias, a televiso hoje ainda representa 39,6% deste mercado[footnoteRef:3]. [3: Dados de 2014, de acordo com relatrio da AdvertisingAge.]

E tambm as prticas de criao, produo, veiculao e recepo de filmes publicitrios evoluram significativamente nestes 70 anos. O surgimento do video tape, por exemplo, permitiu que os comerciais, que antes eram inseres ao vivo, fossem gravados. Essa mudana, de natureza tecnolgica, altera no apenas a forma de fazer filmes publicitrios, mas promove uma srie de evolues formais dos produtos. Antes, um comercial se caracterizava geralmente pela presena de um ator ou personalidade que explicava as qualidades do produto, maneira das inseres de merchandising ainda hoje encontradas em alguns programas de auditrio. A partir do VT, abre-se uma brecha na estrutura do campo da produo publicitria, possibilitando novos padres estticos, e o comercial passa a se aproximar formalmente de outros produtos audiovisuais a exemplo do cinema. neste contexto que a Apple, empresa do ramo de informtica, vai encomendar um filme publicitrio para o lanamento do Macintosh, seu modelo de computador pessoal. Criado pela Chiat/Day, o comercial, intitulado 1984, foi um sucesso instantneo. Sua veiculao, em janeiro do mesmo ano, gerou grande repercusso na imprensa e no meio publicitrio. O filme ganhou diversos prmios e, trinta anos aps seu lanamento, ainda hoje considerado um cnone, uma obra-prima da publicidade moderna, citada na maioria dos livros sobre o assunto. De acordo com depoimentos da poca e posteriores, 1984 foi recebido como uma grande inovao, expresso de ousadia e criatividade que pautaria as produes seguintes. Compreender os motivos e fatores desse processo de consagrao no interior do campo publicitrio foi o principal desafio deste trabalho.1984 no campo publicitrio norte-americano: aproximaes Com uma anlise do lugar ocupado pelo filme e a reconstruo do campo publicitrio daquele momento, foram investigados os motivos que levaram 1984 a ser uma obra consagrada quase que imediatamente sobretudo pelos prprios agentes do campo. Nesse sentido, foram levantados dados contextuais relativos produo e recepo do filme, sobretudo recepo da crtica especializada. O objetivo localizar, maneira de Bourdieu, este filme especfico no espao das obras publicitrias com as quais concorria, como estratgia para compreender seu impacto no que diz respeito concepo do prprio campo do que seria um filme publicitrio legtimo e de qualidade. Para tanto, foi necessrio caracterizar o estado do campo naquele ponto da sua histria, as posies em disputa, os agentes e instituies envolvidos na sua criao e consagrao, alm de estabelecer premissas gerais sobre a gnese e funcionamento do campo publicitrio. Tal esforo permitiu vislumbrar como e por que 1984 pde representar a afirmao de um conjunto de valores necessrios ao campo naquele momento. Uma mudana no habitus que, por um lado j vinha sendo gestada por prticas anteriores e, por outro, iria de certa forma modificar o modo de funcionamento do campo, alterando as regras do jogo e conformando prticas futuras. Em suma, a questo que aqui se coloca : qual a frmula geradora de 1984? Qual foi a configurao de foras sociais que permitiu e tornou necessrio seu surgimento no campo publicitrio, e como esse estado se materializa em caractersticas do filme.Premissas terico-metodolgicasA sociologia de Pierre Bourdieu (1996, 2001) responsvel por fornecer o escopo terico-metodolgico deste trabalho, cujos parmetros e vantagens analticas so apresentados a seguir. Assim, sero aqui esboados os principais constructos tericos que serviram de guia anlise. O primeiro em importncia certamente a noo de campo. Para o socilogo, entende-se por campo uma rede de relaes que se estabelecem entre diferentes agentes, grupos e instituies que ocupam posies neste campo que esto em constante disputa por poder. As incessantes lutas classificatrias e a busca por ocupar as posies dominantes so traduzidas em prticas que mantm a dinmica interna do campo. Os diversos campos (artstico, econmico, poltico, publicitrio etc.) possuem suas prprias leis, seus prprios valores e crenas, suas instncias de consagrao e estratgias de legitimao. Mas h tambm homologias estruturais (1996, p. 208) entre os campos que decorrem da distribuio desigual de capitais e da conseqente existncia de posies dominantes e dominadas.Tambm as prticas dos agentes e das instituies de determinados campos possuem diferentes nveis de autonomia, diretamente proporcional capacidade de resistirem s ingerncias dos outros campos, rejeitando-as como ilegtimas ou adaptando-as sua prpria lgica. Bourdieu chama a isso efeito de refrao (1996, p. 250). Assim, no contexto da sociedade capitalista, o campo econmico tende a impor demandas prprias aos demais campos, dominando-os em maior ou menor grau. O espao social, assim como a estrutura dos campos, intensamente hierarquizado.A posio de agente ou instituio no campo, por sua vez, examinada a partir do volume e do peso dos capitais simblico, cultural, social, especfico e econmico que possuem. Para um agente, possuir capital simblico representa ter o reconhecimento dos seus pares e gozar de certo prestgio no interior do seu campo. O capital cultural est ligado sobretudo formao dos indivduos, enquanto que o capital social depende diretamente da sua rede de relaes famlia, amigos, aliados, parceiros, patrocinadores. J o capital especfico representa a habilidade prtica do agente o domnio de um diretor de arte sobre tcnicas de composio, por exemplo. E o capital econmico, como evidente, representa o acmulo de bens materiais.Para explicar a existncia de leis que orientam o funcionamento do campo e a ao dos seus agentes, Bourdieu vai introduzir a noo de habitus como um sistema de disposies, um conjunto de normas naturalizadas pertencentes aos diversos campos existentes no espao social. Uma espcie de razo prtica que orienta as formas de agir e de produzir sentido dos indivduos e est inscrita no espao dos possveis dado em certo momento histrico. As prticas sociais efetivamente so resultado do encontro deste habitus com as disposies individuais dos agentes, por sua vez traduzidas em sua trajetria social. E assim como o campo se modifica no tempo, o habitus tambm sofre alteraes.O habitus de certa forma se impe aos agentes e um dos pilares de sustentao da dinmica de funcionamento dos campos. o que Bourdieu ressalta com a noo de illusio. Ela sinaliza que a importncia e o interesse atribudos s prticas no interior do campo esto fundamentados na adeso ao jogo enquanto tal, na aceitao do pressuposto fundamental de que o jogo vale a pena ser jogado, ser levado a srio (1996, p. 365).A principal vantagem das premissas do mtodo aqui exposto certamente est na possibilidade de analisar o filme publicitrio a partir de um ponto de vista que busca privilegiar os aspectos relacionais do sistema especfico que o produziu e criou. O que significa dizer que se trata de um olhar nem exclusivamente voltado para o funcionamento interno da obra, nem somente interessado nos dados contextuais. Ao contrrio, Bourdieu prope que se observe a lgica por trs das coincidncias entre as manifestaes artsticas e o estado do campo no momento de sua ocorrncia. Dessa forma, embora os dados contextuais sejam indispensveis anlise, o resultado do esforo analtico no apenas um entendimento do contexto de produo, mas a compreenso do produto em si enquanto parte de um conjunto mais amplo enquanto um lugar especfico do espao das obras, por sua vez homlogo a uma posio dos agentes que realizaram o filme num campo especfico de sua produo. A noo de habitus traduz com preciso essa tendncia do pensamento de Bourdieu, uma vez que entende que esse princpio ao mesmo tempo estruturado pela histria da dinmica social de um campo, que cumulativa, e estruturante das prticas presentes e futuras dos agentes que o constituem. O agente social, em Bourdieu, no determinado apenas por fatores externos. Ele partilha, certamente, de categorias sociais pertencentes a um grupo e a um momento histrico e sobre as quais no tem controle. Mas h tambm um fator de individualizao: na trajetria, construda segundo as tomadas de posio ou escolhas que efetuou, transparece as margens de manobra com relao estrutura social na qual o agente est inserido. O campo publicitrio no espao socialAntes de partir para a caracterizao do campo publicitrio enquanto um mundo parte, sujeito s suas prprias leis (1996, p. 64), parece necessrio fazer algumas consideraes sobre as relaes entre ele e os demais campos do espao social. Diferentemente do que acontece com o campo literrio analisado por Bourdieu em As Regras da Arte, o campo da publicidade no surge com a autonomizao do campo econmico ou poltico. Isso porque a sua prpria natureza prev uma relao de dependncia com o mundo do dinheiro. A publicidade, de certa forma, uma inveno da economia, que surge para atender s suas necessidades essencialmente a criao de demanda de consumo. Por outro lado, impossvel pensar na evoluo econmica da sociedade tal como ela se deu sem a existncia da publicidade. No h, portanto, subordinao estrutural, no sentido que Bourdieu atribui relao entre arte e dinheiro. A relao com o campo econmico est no DNA do campo publicitrio e, sem ela, sua prpria existncia perde o sentido. E esse tipo de relao vai ter consequncias diretas no modo de funcionamento desse microcosmo. O principal deles o fato de que o retorno financeiro tomado como valor desejvel e fator de legitimao no interior do campo publicitrio. Objetivar o lucro econmico dos seus clientes no apenas permitido e necessrio ao publicitrio, como no implica sobremaneira em perda de autonomia ou capital simblico. No existe publicidade desinteressada, em suma. Uma campanha pode ser ousada, vanguardista, inovadora, mas no pode, em nenhuma hiptese, ir de encontro aos interesses do anunciante.Uma situao distinta vai ser encontrada ao observar-se a relao entre publicidade e cincia. Ao longo de sua histria, o campo publicitrio apropriou-se de tcnicas diversas para compreender o pblico e as formas mais eficientes de atingi-lo com suas mensagens. Da psicologia estatstica, passando pela lingstica e pela retrica, variadas foram as correntes de pensamento cientfico que forneceram e ainda fornecem as ferramentas para que publicitrios do mundo inteiro acertem o target com poucas margens de erro. Nesse caso, porm, no existe relao de dependncia no sentido contrrio. O campo publicitrio depende do campo cientfico para que possa revestir seus produtos e aes de um valor de objetividade. uma estratgia de legitimao direcionada sobretudo aos anunciantes agentes habituados doxa econmica que valoriza a eficcia quantificada.Por outro lado, evidente que o campo publicitrio mantm relaes estreitas com o mundo da arte e faz parte do grande campo da produo cultural contempornea. Seus produtos muitas vezes se assemelham formalmente a produtos artsticos. Parte de seus agentes utilizam tcnicas artsticas para a execuo do seu trabalho so escritores, diretores de arte, ilustradores, artistas e produtores grficos, msicos, diretores, fotgrafos, cinegrafistas. Mas o que parece mesmo determinar essa relao estratgica com o campo artstico a importncia atribuda a valores como criatividade e originalidade. Esta caracterstica do campo uma estratgia fundamental para marcar diferena, para legitimar sua existncia como mundo parte, e sem a qual se tornaria mero instrumento a servio de necessidades econmicas. O publicitrio enquanto agente neste campo de foras no apenas um vendedor contratado por um anunciante, mas um ser criador, que ocupa uma posio relevante no campo da produo cultural. Uma posio a partir da qual so gerados produtos que, por um lado, fazem girar o motor da economia e, por outro, influenciam as formas de pensar, de sentir e perceber dos indivduos. Existe, obviamente, alguma tenso entre as duas dimenses da atividade publicitria. H posies no interior do campo que privilegiam mais uma ou outra das duas dimenses, e existem tambm posies centrais. Mas sua coexistncia o princpio bsico de funcionamento deste microcosmo, e seu ideal a convergncia e acomodao destes dois mundos.Dessa forma, possvel afirmar que a criatividade um valor inscrito no habitus publicitrio que ir se manifestar de maneira mais ou menos intensa nos seus produtos. critrio fundamental de valorizao de um produto diante de seus pares. fator de acumulao de capital simblico. uma habilidade que determina a entrada dos agentes neste campo. E uma doutrina que se expressa at mesmo na hierarquizao interna das agncias nas quais o setor de criao invariavelmente o centro da produo, e onde esto os cargos mais valorizados e os melhores salrios. possvel, portanto, localizar o campo publicitrio como um lugar de encontro de relaes de dependncia e apropriaes necessrias. Por um lado, existe uma dependncia estrutural de mo dupla com relao ao campo econmico. E, por outro, apropriaes fundamentais com relao ao campo artstico e ao campo cientfico. Pilares estruturais do campo publicitrio americanoPara compreender o conjunto de foras que constituam a publicidade quando do lanamento de 1984 necessrio retornar alguns anos mais precisamente, at fins dos anos 50. O esprito libertrio dos movimentos genericamente chamados de contracultura" tambm iria se manifestar no modo de pensar e criar dos publicitrios de todo o mundo.Naquele momento, figuras como Bill Bernbach[footnoteRef:4], Leo Burnett[footnoteRef:5] e David Ogilvy[footnoteRef:6] inventam a publicidade moderna e os seus principais cnones. Foi a poca da Revoluo Criativa (TUNGATE, 2007; FOX, 1997), movimento que se caracterizou sobretudo pela mudana extrema dos padres vigentes. O epicentro foi a cidade de Nova York, onde se encontravam as maiores agncias do mundo. [4: Fundador da Doyle Dane Bernbach (DDB), uma das maiores agncias do mundo, atualmente parte do grupo Omnicom, maior organizao do ramo no mundo, com rendimentos de 13,3 bilhes de dlares e mais de 68 mil funcionrios (nmeros de 2008).] [5: Fundador da agncia homnima, aberta em 1935 em Chicago. Atualmente a Leo Burnetr Worldwide faz parte do grupo francs Publicis, que est entre os trs maiores conglomerados de comunicao do mundo.] [6: O publicitrio ingls foi um dos fundadores da Hewitt, Ogilvy, Benson & Mather, em Nova York, 1948. Atualmente a empresa se chama Ogilvy & Mather Worlwide e possui filiais em 169 cidades.]

A partir desta gerao, a publicidade deixa de ser regida pelo pensamento branco protestante anglo-saxo (TUNGATE, 2007, p. 50), e abre espao para o dilogo com outras culturas. H intenso trnsito de profissionais de outros estados e pases, a exemplo de Paul Rand, designer grfico ingls que traz para os layouts americanos influncias do cubismo e do De Stijl. O mesmo Rand seria responsvel, ao lado de Bernbach, por estabelecer um dos esquemas bsicos de organizao do trabalho no interior da agncia publicitria: a dupla de criao, formada por um redator e um diretor de arte que trabalham em parceria. Antes desta experincia, os dois cargos estavam em departamentos distintos, e o processo criativo se dava sem discusso ou brainstorm. Hoje, em qualquer agncia do mundo existe ao menos uma dupla criativa. O seu surgimento tem ligao direta com a valorizao do processo criativo na produo publicitria. Movimento expresso literalmente no depoimento de Bernbach: publicidade fundamentalmente persuaso, e persuaso no uma cincia, mas uma arte[footnoteRef:7] (traduo nossa). [7: Disponvel no website da DDB http://www.ddb.com]

Esse esprito de poca decalcado na afirmao do publicitrio revela ainda uma das principais estratgias de legitimao desse novo modo de pensar e fazer publicidade: a negao do valor cientfico. Se hoje o campo se equilibra com relativa tranquilidade entre arte e cincia, criao e business, aquele foi um momento de ruptura com o segundo termo da equao. Foi um movimento necessrio para que o campo se renovasse saa de cena a publicidade conservadora, convencional, enfadonha na opinio dos recm-chegados, preocupada exclusivamente com as vendas e os negcios. E a vanguarda chega s posies dominantes, desdenhando da exatido da pesquisa e depositando toda a sua crena na big idea.No espao das obras, essa disposio encontrava suas homologias materializadas em campanhas como Think Small, que apresentou o Beetle da Volkswagen aos americanos em 1959. Os anncios impressos, assinados pelo time de Ogilvy, estabeleceram um padro ainda hoje muito utilizado: peas formadas por foto, ttulo e texto em tipografia preta sobre fundo branco, com destaque para o ttulo. Os layouts eram compostos por poucos elementos de alto impacto visual. O texto, expresso de forma pouco convencional, inseriu o humor e o trocadilho nos costumes profissionais de qualquer redator nos 50 anos seguintes.O estado do campo publicitrio de 1984: agentes e posies em disputaManhattan j era um centro de excelncia que reunia as melhores cabeas da publicidade mundial quando Jay Chiat se associou a Guy Day, em outubro de 1968, para fundar a Chiat/Day na cidade de Los Angeles, Califrnia (DERDAK; KEPOS, 1995).Desde o incio da Revoluo Criativa, a publicidade americana apresentou uma tendncia que dividia o mercado entre as pequenas agncias que investiam em criatividade e inovao, e as grandes corporaes que dispunham da estrutura necessria para atender clientes globais em seus vrios pases de atuao. Definitivamente, a Chiat/ Day era uma das pequenas geniais, disputando espao em um mercado dominado por agncias como BBDO, Young & Rubican e J. W. Thompson, todas faturando centenas de milhes de dlares por ano.Jay Chiat, presidente da empresa, era um homem de criao, e acreditava piamente que boa publicidade original, provocadora e impactante. A trajetria da agncia se confunde com a sua prpria Chiat morreu em 2002 e a Chiat/Day foi incorporada pela TBWA em 1993. Ao longo de sua histria, a agncia californiana (originria portanto de fora do eixo Londres Paris Nova Yorque), foi celebrada pela criao de campanhas memorveis para clientes como Nissan, Nike, Honda, Fox, Oral B, alm da prpria Apple. E foi tambm muito criticada por adotar uma conduta irresponsvel, por investir mais na criatividade das peas e menos na venda dos produtos efetivamente.O epitfio de Karen Stabiner publicado na Los Angeles Magazine de julho de 2002 resume bem a personalidade controversa de Chiat: ele poderia destruir o ego de algum com poucas e bem escolhidas palavras, e era inescrupuloso a ponto de faz-lo na frente de qualquer audincia. Sobre sua importncia para a publicidade mundial, afirma que aqueles que sobreviviam o amavam mais do que o odiavam seus inimigos, pois tinham a oportunidade de fazer o melhor trabalho das suas vidas. Por um longo perodo, no houve agncia melhor do que a Chiat/Day (traduo nossa).Assim como ocorre com frequncia com as agncias que decidem adotar estruturas menores e filosofias mais radicais, a carteira de clientes da Chiat/Day variava intensamente. A partir do momento em que se tornavam empresas maiores e passavam a investir mais dinheiro em comunicao, seus clientes migravam para agncias full-service maiores e mais srias. Foi assim tambm com a Apple que, apesar do grande sucesso das campanhas criadas por Chiat e sua equipe, passou a ser atendida pela BBDO em 1986. Em algumas ocasies, a agncia se viu em situaes pouco confortveis como em 1975, quando perdeu a conta da Honda, ento responsvel por metade do seu faturamento. Mas, em geral, a Chiat/Day se manteve financeiramente saudvel no tanto quanto suas concorrentes multinacionais engessadas por operaes gigantescas, mas o suficiente para pagar as contas e garantir a liberdade criativa de seu staff.Dentre os funcionrios da agncia, se destacava Lee Clow, diretor de arte contratado em 1971. Sua evoluo na empresa se deu rapidamente, devido sobretudo sua capacidade de criar. Em 1982, j era presidente de criao da empresa. Foi ele quem liderou o time que concebeu 1984, formado ainda pelo redator Steve Hayden e pelo diretor de arte Brent Thomas, com superviso do prprio Chiat. Como possvel notar, o processo criativo na publicidade se caracteriza pela cooperao, presente desde os estgios iniciais, geralmente executados ainda dentro da agncia concepo da ideia, confeco do roteiro e do storyboard.Clow era um tpico jovem surfista californiano, f de Walt Disney, e j era exmio ilustrador quando entrou para o quadro da Chiat/Day. Conforme descreve seu perfil publicado no Hall of Fame do Art Directors Club, organizao que rene os melhores diretores de arte da Amrica, Clow foi responsvel por criar um estilo californiano de publicidade. Um estilo que, segundo a ADC, no pode ser ignorado ou reproduzido nos corredores caretas da Madison Avenue () uma fora muito sria e vivel que a publicidade no tem como deixar de reconhecer (traduo nossa). Nas adjacncias do campo publicitrio, proliferava o mercado das produtoras de vdeo para suprir a demanda por comerciais. Um conjunto de agentes provenientes do cinema e da televiso se especializa na produo de filmes publicitrios e passam a transitar entre os campos. assim que diretores, produtores, cinegrafistas, diretores de fotografia, coloristas, atores, figurinistas, designers de produo, cengrafos, msicos, editores, maquiadores, eletricistas e operadores de maquinrio, dentre outros profissionais, passam a trabalhar ocasionalmente para as agncias.No por acaso, a produtora por trs da execuo de 1984 se localiza em um espao desse subcampo reservado s empresas reconhecidas pela excelncia. Quando foi contratada para a empreitada, a RSA (sigla para Ridley Scott Associates), fundada e dirigida pelos cineastas Ridley e Tony Scott, j tinha 20 anos de mercado. De origem britnica, a empresa mantinha sedes em Londres, Nova York e Los Angeles, e produzia frequentemente filmes para clientes como Nike e Levis. Junto com concorrentes como a Propaganda e a HSI, a RSA dominava o mercado de produo audiovisual publicitria europeu e possuia grande volume de negcios tambm nos Estados Unidos (KNAPP; KULLAS, 2005).1984 foi dirigido por Ridley Scott e gravado nas proximidades de Londres, no Shepperton Studios, tambm de propriedade dos Scott. O ento jovem cineasta ingls j havia alcanado alguma glria com a realizao de Alien (1979) e tinha acabado de lanar Blade Runner (1983). Ele comeava a ser reconhecido no campo do cinema sobretudo por suas belas composies visuais e por sua habilidade em projetar mundos ficcionais fantsticos com esmero em especial os universos distpicos tpicos da fico cientfica. Nesse sentido, 1984 um filme coerente com o projeto autoral de Scott daquele momento, e se inspira intensamente nas suas realizaes anteriores no campo cinematogrfico. Diferentemente de muitos dos seus colegas, Scott no via o trabalho na publicidade como limitador ou artisticamente inferior: eu amava fazer comerciais, amava o fato de poder lidar com belas imagens. Para mim, filmes publicitrios so pequenas cpsulas de perfeio (traduo nossa), afirmou em entrevista ao jornalista Paul Sammon (1999).Scott j no era um recm-chegado no campo da publicidade da dcada de 80. Seu portiflio j contava mais de trs mil produes e as estantes do escritrio londrino da RSA eram enfeitadas com algumas dezenas de prmios e trofus incluindo cinco Lions. Durante os 70, foi a fora gestora e criativa por trs dos glamorosos filmes da Chanel (SAMMON, 1999). O fato de ter trnsito livre entre os dois campos do cinema e da publicidade certamente aproximou Scott e suas realizaes como publicitrio da dimenso artstica da atividade.A posio ocupada no espao publicitrio pela Chiat/Day e seus parceiros pode ser entendida, portanto, como uma herana daquela construda anteriormente por Bernbach e seus colegas uma posio de vanguarda, mais prxima do plo artstico do campo. Por outro lado, a agncia, em sua trajetria, evoluindo segundo uma tendncia lgica na qual a inovao a principal norma, seria responsvel por introduzir uma novidade no campo publicitrio mais especificamente, no subcampo da produo audiovisual publicitria. Se at o fim dos anos 70, toda a ebulio criativa gestada desde o ps-guerra se expressava sobretudo em anncios impressos, a partir da dcada de 80 a Chiat/Day estabelece, com 1984, novos parmetros para a produo de filmes publicitrios para a televiso americana.1984 e a introduo do novo no espao das obras publicitriasO filme da Chiat/Day para a Apple foi ao ar uma nica vez[footnoteRef:8], durante o Super Bowl XVIII um jogo entre Los Angeles Raiders e Washington Redskins assistido pela metade dos lares americanos na noite de 22 de janeiro de 1984. Ainda hoje, o Super Bowl a maior audincia da televiso norte-americana. O propsito do filme era anunciar o lanamento do Macintosh, o computador pessoal da Apple. A empresa californiana, fundada e dirigida por Steve Wozniak e Steve Jobs, brigava com a gigante IBM pelo mercado de tecnologia. Naquele tempo, os computadores ainda eram inacessveis para a maioria das pessoas sua utilizao era exclusivamente corporativa e governamental. [8: Na verdade, foi a nica insero paga pela Apple. Houve uma insero anterior a 1h da madrugada do dia 15 de dezembro de 1983 na KMVT de Twin Falls (Idaho), paga pela agncia e programada apenas para garantir a participao do filme nos festivais do ano seguinte. Aparentemente, havia certa conscincia do seu valor potencial por parte dos seus realizadores.]

So diversos os aspectos que devem ser considerados para compreender a consagrao de 1984. O primeiro deles certamente a prpria natureza do filme, em comparao ao que se produzia na poca[footnoteRef:9] - a sua posio no espao das peas publicitrias audiovisuais. A publicidade televisiva dos primeiros anos da dcada de 80 ainda adotava uma postura muito didtica com relao aos seus consumidores. Um comercial deveria apresentar objetivamente um produto e suas qualidades, de forma leve, talvez cmica, mas nunca perturbadora ou provocadora. [9: Uma boa amostra dessa produo pode ser encontrada em http://adland.tv ]

Assim, um comercial da Xerox de 1983 apresentava uma comparao entre seu ltimo lanamento e um modelo mais antigo, elencando suas vantagens muito diretamente. Na mesma noite da exibio de1984, a IBM veiculou um filme de apoio equipe dos Estados Unidos nas Olimpadas, e a Sharp, ento fabricante de televisores, demonstrou a resistncia do seu produto em um teste de laboratrio. A indstria automobilstica, que j era grande anunciante, no abria mo de exibir preos e condies de pagamento nos seus comerciais.1984 no era nada disso. O filme foi baseado na obra homnima de George Orwell e apresentava uma pequena narrativa habitada por dezenas de seguidores de um Big Brother (interpretado por David Graham) que escutam apaticamente seu discurso assustadoramente totalitrio atravs de uma grande tela. Uma jovem loira vestida com roupas atlticas (a modelo Anya Major) entra correndo na sala de exibio e arremessa um martelo olmpico em direo tela, que explode diante da reao embasbacada do seu pblico. Um letreiro e uma locuo em off arrematam o filme: Em 24 de janeiro, a Apple vai lanar o Macintosh. E vocs vero porque 1984 no vai ser como 1984 (traduo nossa).1984 foi um filme que marcou diferenas de maneira muito intensa. Uma delas foi o fato de que o produto em si no estava no filme algo impensvel naquele momento. O efeito imediato do comercial foi o de instalar uma interrogao na cabea do pblico, que ainda no fazia ideia do que seria o Macintosh e nunca havia visto um comercial como aquele. No havia preos, indicaes de onde encontrar o produto, informaes tcnicas, taxas de juros nada que se adequasse ao padro de produo estabelecido e ao modelo de apreciao em vigncia.O tratamento visual da narrativa foi tambm alvo de muitos comentrios no meio sua aparncia afinal o aproximava mais do cinema e menos da publicidade. Muito do estilo desenvolvido por Ridley Scott em seus filmes se encontra na atmosfera de 1984: enquadramentos, cores e fotografia, movimentos de cmera, montagem e cenrios concorrem para criar o mundo opressivo no qual o Macintosh representa a soluo. O inovador spot teve uma influncia esmagadora sobre o visual da publicidade nos anos seguintes, similar ao impacto de Alien e Blade Runner sobre os filmes de fico cientfica, escreveu Richard Natale para a revista Madison em maio de 1999[footnoteRef:10]. [10: Artigo reproduzido em Knapp e Kullas (2005).]

Mas o aspecto mais ressaltado de 1984 definitivamente foi o seu contedo e a forma como ele marca a posio da Apple no mercado de tecnologia. Nenhuma empresa naquele momento teria apostado na representao da tecnologia m. Como afirmou Ted Friedman, os fabricantes de computadores tinham medo de intimidar seus consumidores (traduo nossa). E sua publicidade refletia esse receio. A Apple apostou acertadamente que seu pblico estava pronto para digerir um filme que apresentava as possveis consequncias negativas da tecnologia e tira vantagem disso, se posicionando como a possibilidade de resistncia opresso e ao controle das mquinas. De acordo com Bob Garfield (2001), crtico da Advertising Age, A Apple posicionou a si mesmo e ao seu Macintosh como uma alternativa heroica a um outro sinistro (naquela poca, esse outro era a IBM), definindo a marca essencialmente por aquilo que ela no era(traduo nossa). Alm de introduzir essa estratgia, indita at ento e largamente utilizada no presente, 1984 abriu espao para a produo de filmes mais conceituais (ou institucionais, no jargo publicitrio), preocupados com a construo da imagem do anunciante. Uma imagem que no composta por parcelas e descontos, mas por valores, sentimentos, ideais, sonhos, vises de mundo. O filme de Chiat/Clow/Scott libertou a publicidade audiovisual da necessidade de ser literal, professoral e politicamente correta, revelando um vasto horizonte de possibilidades criativas.O processo de criao de 1984 revela uma convergncia de disposies da parte de duas instituies a agncia e a empresa de tecnologia. De acordo com depoimento de Lee Clow a Owen Linzmayer (1994), o anncio j estava pronto seis meses antes de conhecermos o Mac. O diretor de criao conta que a pea foi inspirada na filosofia da Apple: "ele explicava a filosofia e o propsito da Apple; que pessoas, e no apenas o governo e as grandes corporaes, deveriam ter acesso tecnologia (traduo nossa). A ma ocupava possivelmente uma posio de vanguarda no campo econmico homloga da Chiat/Day na indstria publicitria embora nem sempre o encaixe das homologias seja perfeito.O fato de 1984 ter sido veiculado uma nica vez subverte naquele momento uma regra bsica da produo publicitria: a repetio. A inovao, nesse caso, aplicada tambm programao de mdia, tida como a atividade mais objetiva da cadeia produtiva. No toa, o filme considerado o mais efetivo de todos os tempos: uma nica exposio foi suficiente para produzir impacto e retorno alm de longo alcance temporal. De acordo com consulta realizada por Ed Castillo, colunista da Adweek.com, em 16 de fevereiro de 2009 o comercial era o filme mais linkado das ltimas 48 horas. Com sua apario nica, portanto, 1984 desconstrua a verdade publicitria que ditava que o consumidor precisava ser exposto continua e repetidamente aos anncios para ser afetado.A construo do Super Bowl como um lugar de consagrao prprio do campo publicitrio outra face desse fenmeno. Assim como a posio ocupada na grade um fator de diferenciao para as narrativas de fico seriadas, existe um critrio de valorizao relacionado com a localizao das inseres publicitrias. Em 1994, o colunista de business do The New York Times Stuart Elliot escreveu: Foi em 22 de janeiro de 1984 que o Super Sunday se transformou em um ad bowl. Durante o jogo (...) 38,9 milhes de espectadores assistiram um comercial chamado 1984 (...) A partir dali, os anunciantes comearam a enxergar o Super Bowl como uma grande vitrine (traduo nossa). Em um artigo de 2001 para o The Wall Street Journal, o publicitrio Jerry Della Femina sentenciou: no meu mundo a publicidade o Super Bowl o dia do julgamento. Assim como os polticos tm as eleies e o cinema tem o Oscar, a publicidade tem o Super Bowl[footnoteRef:11](traduo nossa). [11: Citado por ODONELL (2004).]

O colunista de entretenimento da CNN, Todd Leopold, em um artigo de 2006 intitulado Why 2006 wont be like 1984, fala sobre a recepo da poca e sua experincia enquanto espectador. Ningum jamais ir conseguir reproduzir seu impacto: foi inesperado, chocante, unicamente distinto dos anncios usuais de carros e cervejas que passavam nos intervalos do Super Bowl daquela poca (traduo nossa). possvel que 1984 tenha sido tambm responsvel por induzir a adaptao dos padres de apreciao, elevando o nvel de exigncia do pblico com relao a todo o gnero da publicidade audiovisual. Alm, claro, de estabelecer a moldura do Super Bowl.O percurso da consagrao de 1984 tambm passou pelas instncias de reconhecimento estabelecidas no campo publicitrio: o filme ganhou mais de 30 prmios e festivais mundo afora. O mais representativo deles certamente foi o Grand Prix na categoria Film do Festival de Cannes na poca, o trofu mais importante e cobiado da publicidade mundial. A Advertising Age, importante publicao especializada no mercado publicitrio, elegeu-o o melhor comercial da dcada de 80; e o TV Guide classificou 1984 como o melhor comercial de todos os tempos. O filme figura ainda no Hall of Fame do Clio Awards e foi eleito o melhor filme do Super Bowl nas comemoraes de 40 anos do jogo, em 2007.Os sinais de consagrao de 1984 podem ser encontrados tanto nas expresses do calor da hora como em textos posteriores. Na noite de sua exibio, as trs redes nacionais de televiso (ABC, NBC e CBS) retransmitiram o filme em seus noticirios noturnos incluindo o programa Entertainment Tonight. A Apple estima que a mdia espontnea gerada pelo filme chegue casa dos 5 milhes de dlares. O ento gerente de marketing da Apple, John Sculley, batizou o fenmeno de marketing event estratgia que se tornaria comum anos adiante. E embora no incentivasse a compra diretamente, muito do sucesso de vendas do Macintosh nos meses seguintes foi creditado ao comercial foram 6 milhes de dlares apenas no dia do lanamento. Alm da crtica jornalstica, a crtica acadmica cumpriu igualmente a funo de perpetuar o lugar ocupado por 1984. O filme citao obrigatria em qualquer trabalho sobre a histria da publicidade. Fox (1997), em The Mirror Makers: a History of American Advertising and its Creators, o classifica como o comercial mais discutido da dcada. Curiosamente, o comercial aparece na Hollywood Timeline elaborada por David Bordwell (2006, p. 219). J Joseph Jaffe avalia o papel de 1984 no surgimento da era do engajamento da publicidade moderna (2005, p. 98). Burke e Briggs (2009) caracterizam o filme como a mais memorvel propaganda de todos os tempos (p. 250). O filme serve ainda de case a diversos manuais prticos, como o Artful Persuasion: how to command atention, change minds and influence people, de Harry Mills (2000). O autor avalia o seu sucesso como consequncia de sua capacidade de enquadrar (to frame) a percepo das pessoas com relao ao produto (p. 119).Como possvel perceber, no foram apenas a beleza formal e as caractersticas cinematogrficas que levaram 1984 consagrao. As estratgias propriamente publicitrias inauguradas naquele momento e as mudanas nas prticas de produo e recepo de filmes publicitrios, alm da instaurao de um novo lugar de reconhecimento do campo, so alguns dos aspectos que levaram o filme a ser to comentado e discutido e, principalmente, classificado como uma grande inovao. Nesse sentido, a crtica acadmica e a mdia especializada tm papel fundamental, sobretudo na manuteno desta posio. E os prprios agentes do campo tambm cumprem essa funo, ao fazerem circular no campo e fora dele a noo de que aquela era uma obra que merecia ser valorizada.Consideraes finaisRetomando a proposta inicial, o objetivo foi compreender o processo de consagrao de 1984, mediante a anlise das suas condies de produo, do estado do campo publicitrio e do espao das obras dados no momento da sua ocorrncia.A anlise permite concluir que, de forma similar ao que costuma ocorrer no campo artstico, a introduo do novo no campo publicitrio representada por 1984 parte de posies consideradas vanguardistas. Ou seja, aquelas mais prximas do plo artstico do campo, ocupadas por agentes dispostos a apostar alto em empreitadas arriscadas em nome da crena na inovao. Nesse caso, o risco seria o da no efetividade do filme enquanto instrumento de venda ou o de uma interpretao equivocada por parte do pblico.O amplo reconhecimento obtido pelo filme, por sua vez, tem relao direta com, primeiro, a valorizao dos critrios de originalidade, impacto e criatividade no interior do campo, promovida por prticas antecedentes a ele. E, segundo, com a transformao definitiva da forma de fazer filmes publicitrios que possivelmente o produto mais considerado pelos agentes do campo. Se foi permitido a 1984 vir a existir foi porque, certamente, havia uma brecha no espao dos possveis daquele momento que foi vislumbrada por seus realizadores embora, evidentemente, isso no significasse a ausncia de riscos. Seu surgimento passa ento a ser necessrio, a partir do momento em que corresponde materializao, no espao das obras, de uma tendncia que vinha sendo tensionada no campo da produo publicitria americana desde a Revoluo Criativa.Interessante notar ainda que, como era pressuposto, o sucesso comercial do produto anunciado pelo filme (o Macintosh) serve tambm como fator de legitimao de 1984. No h uma incompatibilidade, portanto, entre sucesso artstico e sucesso econmico. Ao contrrio, ambos, e em especial a sua combinao, proporcionam acmulo de capital simblico aos agentes envolvidos na sua produo. Prova disso o fato de que, nos textos consultados, a exaltao das suas qualidades estticas e narrativas caminha lado a lado com o elogio sua efetividade.Por fim, preciso ressaltar o fato de que 1984 abriu caminho para muito do que se conhece hoje na publicidade audiovisual, inaugurando uma nova etapa desse campo de produo e possibilitando novas prticas de criao e recepo. As alegorias e metfora visuais, as narrativas ficcionais cada vez mais elaboradas e as belas imagens hoje to comuns na publicidade televisiva certamente devem muito a essa obra inaugural.REFERNCIAS BIBLIOGRFICASART DIRECTORS CLUB Website. 1990s Hall of Fame: Lee Clow.Disponvel em Acesso em: 05 mar. 2015.BORDWELL, David. The Way Hollywood tells it. Berkeley: University of California Press, 2006.BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte: gnese e estrutura do campo literrio. Traduo: Maria Lcia Machado. So Paulo: Cia. Das Letras, 1996.BOURDIEU, Pierre. Meditaes Pascalianas. Traduo: Srgio Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Social History of the Media: from Gutenberg to internet. Cambridge: Polity Press, 2009.CASTILLO, Ed. The Song Remains the Same. Adweek, 16 Fev. 2009. Disponvel em Acesso em: 05 mar. 2015.DERDAK, Thomas; KEPOS, Paula. International Directory of Company Histories. Vol. 11. Los Angeles: St. James Press, 1995.DOUGHERTY, Phillip. 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