14
Arquitectura da Participação, Lições urbanas de territórios emergentes O debate chileno sobre a Légua de Emergência EURAU’12 ABSTRACT. This paper intends to provide an articulation of ideologies and urban participation theories, with the purpose of finding conceptions that can help us get through the adversities of the Portuguese cities, which are currently increasing thanks to the economic crisis and big cities continuous growth. As a collaborator of an architecture office settled in Santiago de Chile, that offered to help the Chilean government solving a dramatic problem of urban violence in the neighborhood of “La Legua”, I have had the opportunity of learning about an attitude and operational method which are more pro-active and participated, than the ones I knew from Portugal. Supported by this practical experience and the ideological legacy of the Latin American 1960-decade, rich in new theories and different ways of intervention, that is still in the genesis of the actual south-american architect, I try to identify the main problems of Legua de Emergencia and to understand how this spontaneous neighborhood consolidated into one of the major problems of the Chilean metropolis. Finally, I conclude some methodological lessons that could be useful solving some current Portuguese cities' problems. KEYWORDS. participation, infrastructure, public space, social equity, Légua de Emergência. Vitório Vasconcelos Leite Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto – Mobil Arquitectos [email protected]

Arquitectura da Participação, Lições urbanas de territórios emergentes

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Arquitectura da Participação, Lições urbanas de territórios emergentes

Arquitectura da Participação,

Lições urbanas de territórios emergentes O debate chileno sobre a Légua de Emergência

EURAU’12

ABSTRACT. This paper intends to provide an articulation of ideologies and urban participation theories, with the purpose of finding conceptions that can help us get through the adversities of the Portuguese cities, which are currently increasing thanks to the economic crisis and big cities continuous growth. As a collaborator of an architecture office settled in Santiago de Chile, that offered to help the Chilean government solving a dramatic problem of urban violence in the neighborhood of “La Legua”, I have had the opportunity of learning about an attitude and operational method which are more pro-active and participated, than the ones I knew from Portugal. Supported by this practical experience and the ideological legacy of the Latin American 1960-decade, rich in new theories and different ways of intervention, that is still in the genesis of the actual south-american architect, I try to identify the main problems of Legua de Emergencia and to understand how this spontaneous neighborhood consolidated into one of the major problems of the Chilean metropolis. Finally, I conclude some methodological lessons that could be useful solving some current Portuguese cities' problems. KEYWORDS. participation, infrastructure, public space, social equity, Légua de Emergência.

Vitório Vasconcelos Leite

Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto – Mobil Arquitectos [email protected]

Page 2: Arquitectura da Participação, Lições urbanas de territórios emergentes

1. Introdução

Chegamos a um importante momento, crítico e simbólico, onde pela primeira vez o número dos habitantes das cidades é maior que o número de habitantes nas áreas rurais. Simultaneamente, a crise do subprime de 2006 propaga-se, deixando no mundo um rastro de grandes incertezas, enfatizado pela recessão económica e pela escassez de recursos.

Estas novas realidades reflectem-se no discurso arquitectónico e urbanístico de forma evidente. De novo, arquitectos e pensadores reagem a esta situação mediatizando e discutindo sobre práticas com incidência em preocupações politicas, económicas e sociais. Parece estar a perfilar-se um renascer de certas reflexões, talvez menos ideológica e politicamente pouco assumidas, mas que valorizam a postura ética do arquitecto e a participação do habitante na construção do seu entorno.

“Para os arquitectos, a descoberta do seu declínio como ideólogos activos, a constatação das enormes possibilidades tecnológicas utilizáveis para racionalizar as cidades e os territórios, juntamente com a constatação diária da sua dissipação, o envelhecimento dos métodos específicos do projectar, mesmo antes de poder verificar as suas hipóteses na realidade, geram um clima de ansiedade que deixa entrever no horizonte um panorama muito concreto e temido como o pior dos males: o declínio do “profissionalismo” do arquitecto e a sua inserção, já sem obstáculos tardo-humanísticos, em programas onde o papel ideológico da arquitectura é mínimo.” (TAFURI, 1985. 115)

Ao contrario do que se passou na Europa e nos EUA, onde os arquitectos, influenciados pelo espírito consumista e pop se tornaram cada vez socialmente menos preponderantes, no contexto latino-americano, desde a década de 1960, a atitude pró-activa de arquitectos e urbanistas permanece relevante e a crítica arquitectónica e o activismo académico estendem-se dos campos artísticos e estéticos para o ético, o politico e o económico.

Esta forma de pensar a arquitectura está na base da criação de escritorios/grupos de arquitectos actuais, como o “do-tank” Elemental ou o colectivo Supersudaka, e está na génese do arquitecto latino-americano, que se apoia no legado ideológico de teorias e formas de intervir, como o trabalho teórico de John F.C. Turner ou as intervenções urbanas de Carlos Nelson dos Santos.

Como colaborador de uma empresa de arquitectura em Santiago do Chile, que se propôs ajudar o governo chileno na resposta a uma reacção popular que se vem intensificando no bairro La Legua, formalizada no pedido de ajuda do pároco local, Gerado Ouisse, tive a oportunidade de conhecer uma postura disciplinar e um método de actuação mais pró-activo, politizado e participado, do que aquele que se foi observando em Portugal nos últimos anos.

Partindo desta experiência prática que vivi, e apoiado no legado ideológico mencionado, tento identificar os principais problemas da Légua, procurando ainda perceber como se consolidou este bairro, de natureza espontânea, na malha de Santiago, e como se tornou um dos principais problemas da urbe chilena.

Sustentado neste diagnóstico, tento elaborar algumas premissas metodológicas, que poderiam auxiliar na resolução do problema específico da Légua de Emergência, e tirar algumas lições e concepções que poderiam ajudar a superar as adversidades das cidades portuguesas, que são hoje enfatizadas pela crise e pelo contínuo crescimento das cidades.

Page 3: Arquitectura da Participação, Lições urbanas de territórios emergentes

Fig|1

2. História e Antecedentes

O bairro da “Legua”, que se estabeleceu em 1931, com a chegada de trabalhadores provenientes das salitreiras do norte do Chile, foi o resultado de um processo natural de ocupação de solos agrícolas, que se transformavam em zonas habitacionais. O paralelismo e alguma conectividade com a malha existente revela alguma planificação desta primeira fase de ocupação heterodoxa, que segundo o historiador Mário Garcés é a mais antiga do Chile. (GARCÉS, 2005)

A segunda fase da ocupação só aconteceu já na década de 1940 com a chegada de vários grupos provenientes de tomasi antigas e outras ocupações informais de Santiago, que formaram a Légua Nova e deram ao bairro uma maior organização, permitindo a confirmação de um lugar urbano definitivo.

A terceira fase inicia-se em 1951 com um loteamento da Caja de Habitación,ii que seria inicialmente uma ocupação provisória de habitação de emergência. Mais tarde, o provisório transformou-se em definitivo e este assentamento tornou-se no que hoje é vulgarmente apelidado de La Légua de Emergência, o sector mais problemático do bairro.

Nesta etapa chegaram grupos de identidades muito distintas, compostos por dois estratos: 200 famílias provenientes de um antigo bairro operário configurado por conventillosiii muito degradados, que se fixavam a oriente de Santiago; E um segundo grupo de famílias das ocupações callampas,iv da zona norte. Uma organização que ainda hoje se percebe nas disputas pelo domínio territorial, entre as famílias que habitam o bairro.

“A una “legua del centro de la ciudad, esta población ubicada en el sector de Santa Rosa y San Joaquín, detrás de los grandes depósitos de la Coca Cola, fue escenario de uno de los mayores combates del 11 de septiembre.” (GARCÉS, 200. 5)

Page 4: Arquitectura da Participação, Lições urbanas de territórios emergentes

Fig|2

SANTIAGO CENTRO

LÉGUA

Mais tarde, já nos anos 1970, a comunidade “legúina” destacou-se politicamente por uma força maioritariamente de esquerda, que em Setembro de 1973, durante o golpe militar, fez frente as forças de segurança pública, tornando a Legua num dos bairros mais reprimidos pelo regime militar dos anos 70 e 80.

Segundo o sociólogo Rodrigo Ganter, esta situação contextual transformou a Légua num enclave isolado com uma vasta e potente rede de organizações sociais, culturais, económicas, de direitos humanos, politicas e religiosas, que lhe permitiram criar estratégias para sobreviver à fome, ao desemprego e à repressão e opressão do estado.

Simultânea e paralelamente a este desenvolvimento social interno, a história oral e testemunhal também identifica a Légua como uma ocupação de choros,v que inscrevem a contra-cultura urbana “legúina” no campo do delito a uma escala urbana e internacional. Uma prática latente no tecido comunitário, muito marginalizado e estigmatizado.

3. A emergência da Légua de Emergência

Apesar de se encontrar apenas a uma légua do sul do centro “santiaguino”, o bairro da Légua tem uma qualidade de vida muito distinta da maior parte dos outros bairros que se encontram à mesma distancia, apresentando problemas de isolamento, descontinuidade urbana e ausência de espaço público de qualidade. Factores que provocam a violência urbana, a falta de apropriação espacial e a falta de um sentido comunitário.

Hoje em dia, a Légua é um bairro com cerca de 14000 habitantesvi e, a Légua de Emergência, com cerca de 3000 habitantes, é o seu segmento mais marcado pelo deterioro de redes associativas, tanto de sobrevivência, como de acção politica, o que transformou o bairro numa comunidade fragmentada e debilitada nas suas capacidades de produzir novas redes sociais e sociabilidades.

Page 5: Arquitectura da Participação, Lições urbanas de territórios emergentes

Fig|3

3.1. Segregação Urbana

A Légua de Emergência tem uma morfologia urbana muito particular caracterizada por um perímetro fortemente delimitado, um “carácter encajonado” (GANTER, 2007), resultado de uma situação geográfica marcada por grandes avenidas e a preponderância da malha industrial, que conforma o alçado dessas avenidas, isolando a malha habitacional e provocando algumas características muito complicadas e perigosas para alguns sectores do bairro, como as ruas sem saída, as extensas fachadas não habitadas ou zonas muito ruidosas.

O tema dos terrenos industriais é um dos paradigmas mais complexos do território “legúino”. Se por um lado se sustenta que estes territórios devem ser expropriados para dar continuidade às ruas sem saída e criar menores sectores mono funcionais, por outro lado deve entender-se que a indústria é um importante gerador de fundos para o governo local e de trabalho para os moradores.

Para além deste problema físico, existe hoje em dia, um problema de estigmatização, devido aos antecedentes sociais e aos acontecimentos mais recentes, que resultaram em incidentes entre facções/famílias que lutam pela hegemonia do tráfico de droga e as consequentes intervenções policiais.

Apesar de este estigma, construído por uma retórica social e institucional, os habitantes na sua maioria tem vidas cheias de grandes lutas e sacrifícios, que geraram a construção de algumas infra-estruturas básicas necessárias, e criaram uma trama de afectos e inteligências colectivas que agora se articulam em novos projectos de luta contra a exclusão social e as diferentes formas de violência impostas.

Alguns colectivos como a Fúria Legúina,vii a OLEviii e eventos como o Carnaval de La Legua,ix criam a ideia de que começam a existir alguns sinais de um “querer”mudar a realidade actual.

3.2. Qualidade do espaço público

“ (…) nos encontramos en presencia de un territorio donde funciona un espacio público que difícilmente se puede asociar con aquel lugar ideal de encuentro e intercambio social multi-identitario, operando más bien como un espacio de conflicto urbano entre fuerzas sociales de diverso linaje;” (GANTER, 2007)

Page 6: Arquitectura da Participação, Lições urbanas de territórios emergentes

Fig|4

Como nos esclarece Rodrigo Ganter, o espaço público da Légua é, hoje, um espaço de disputa quase militar, de onde se pode observar uma guerra constante entre moradores, Estado, policia e crime organizado.

Esta disputa, pela hegemonia cultural e urbana, contribui para a degradação de todo o espaço público do bairro, o que por sua vez colabora para a degradação das relações sociais e para a crescente dificuldade de apropriação espacial por parte dos habitantes.

Como consequência, deixam-se as ruas ao abandono, quando estas poderiam ser o ponto de encontro fundamental para dar força aos movimentos de reacção e superação das dificuldades inerentes a todos os habitantes.

Esta realidade deve-se ao pouco investimento das instituições públicas, mas fundamentalmente, à não apropriação espacial, que motivou o mau trato e o abandono de tudo o que existe fora das suas casas.

Por estes motivos, agora, os habitantes tentam a pacificação do dito espaço, através de alguns eventos culturais e manifestações criativas, no entanto, a segregação urbana e a falta de qualidade do espaço público continuam a provocar a sensação de estar longe de tudo, apesar da localização cêntrica.

Page 7: Arquitectura da Participação, Lições urbanas de territórios emergentes

4. (Re)solução urbana

4.1. Uma metodologia participativa

Nestas difíceis realidades, não existe uma receita que permita uma intervenção simples e imediata e não se deve voltar a cair no errante legado moderno da tabula rasa e da simples expropriação – construção, porque o foco problemático irá trasladar-se para qualquer outro local. Estes bairros são um problema social e urbano complexo, que deviam ser tratados dessa mesma forma, sendo fundamental a participação efectiva da população. Não uma participação dogmática, ou apenas uma busca de opiniões, mas uma co-produção no desenho e na toma de decisões.

Tal como defende o arquitecto John F.C. Turner, é nas zonas urbanas mais complexas que importa desenvolver uma participação mais profunda no desenho do espaço urbano e da habitação própria, e não, como acontece normalmente, uma mera recolha de dados e opiniões que funcione como um teste de modelos estabelecidos ou um esclarecimento de algumas dúvidas mais funcionais.

Segundo Jorge Jáuregui, arquitecto do programa Favela Bairro,x não se deve falar de uma resposta directa do arquitecto em relação as demandas dos habitantes, mas sim de uma interpretação das necessidades e exigências que se devem traduzir de uma forma coerentes no desenho final, criando assim uma maior relação entre o especialista, o objecto de estudo e o produto final. (Jáuregui, 2011) Só assim, fará sentido falar de sustentabilidade, ecologia urbana, cidadania e sentimento de apropriação.

“Personal and local resources are imagination, initiative, commitment and responsibility, skill and muscle-power; the capability for using specific and often irregular areas of land or locally available materials and tools; the ability to organize enterprises and local institutions; constructive competitiveness and the capacity to co-operate. None of these resources can be used by exogenous or supra-local powers against the will of the people.” (TURNER, 1976. 48)

Um projecto que tenha uma efectiva participação, seja na escolha de soluções e materiais, na ajuda de definição de processos de desenho ou mesmo na construção e decoração da obra, poderá provocar a assimilação de novos conceitos contextuais. Um projecto em que a participação da população passe apenas pela validação ou aprovação, dificilmente vai proporcionar um desenho de qualidades sociais e arquitectónicas que levam as pessoas a apropriar-se dos espaços que habitam.

Turner acreditava que esta liberalização e responsabilização poderiam mesmo criar dinâmicas produtivas e racionais que levassem a uma transformação social. Uma ensinança para outras liberações e emancipações, não estritamente relacionadas com a melhora dos espaços que habitam, mas que poderia resultar na superação de contextos adversos.

4.2. Integração urbana

Hoje, integrar a Légua na cidade de Santiago é um projecto urgente.

Apesar do contexto complicado, deverá apostar-se numa inteligente negociação territorial entre habitantes, indústrias envolvidas e autoridades.

Page 8: Arquitectura da Participação, Lições urbanas de territórios emergentes

Fig|5

“Do jogo entre esses princípios espera-se o desempenho de uma infinidade de discursos mais ou menos simples, mas sempre abertos, carregados de possibilidades de eficiência funcional e poética. Desde o início, todos os agentes produtores/moradores terão domínio das cartas que estarão jogando. Poderão sentar-se à mesa sem muito medo. Ficará por sua conta providenciar jogadas cada vez mais complexas.” (NELSON DOS SANTOS, 1988.67)

É, por isso, fundamental integrar o habitante na decisão e co-produção do projecto e ganhar a sua confiança. Como defende Carlos Nelson dos Santos, existem alguns aspectos vitais para que isso aconteça: ter bons informadores, visitar recorrentemente o local de intervenção, apresentar as propostas de forma clara, propor a participação e trabalho dos habitantes na obra e ajudar na manutenção e no pós-obra.

Só considerando estes aspectos se poderão conhecer as principais necessidades da população e traduzi-las num desenho coerente, que ajude a criar uma maior relação entre especialista, objecto de estudo e o produto final.

Segundo Jorge Jáuregui, este desenho deverá iniciar-se por obras de confiança: o melhoramento dos principais espaços públicos e a reabilitação das zonas mais perigosas, para que o projecto se torne perceptível, tanto para os habitantes, como para o exterior.

Page 9: Arquitectura da Participação, Lições urbanas de territórios emergentes

No caso da Légua, o eixo Jorge Canning/Comandante Riesle e a praça S. Allende são os espaços mais visitados que podem, mais rapidamente, enriquecer a auto-estima e o orgulho comunitário no espaço público do bairro.

Mais tarde, poderá pensar-se uma proposta de “expropriação cirúrgica” das indústrias envolventes, que permita a permanência destas e que possibilite ao mesmo tempo a conexão do bairro com as ruas importantes e avenidas próximas, através de ruas de “fachadas habitadas”, da inserção da rede de transportes públicos e a organização e reabilitação dos equipamentos culturais ou produtivos importantes que contribuem para o desenvolvimento de economias locais.

“Ou seja, procurou-se intervir no sentido de suprir carências objectivas quanto aos serviços e equipamentos necessários ao viver contemporâneo sem a imposição de modelos preconcebidos, substituídos então pela preservação de valores e espaços reconhecidos pela comunidade.” (CONDE, MAGALHÃES, 2004. 63)

Como defende Jorge Jáuregui,xi a localização e o carácter dos equipamentos que são pensados para esta zonas são um tema muito complexo. E que deveriam sempre mostrarem-se visíveis, centrais e capazes de criar novos pólos reunião, e que não se encerrem por detrás de muros e redes, como acontece hoje em dia com maioria dos equipamentos presentes no bairro.

Tal como acontece em casos actuais paradigmáticos,xii na Légua também se poderiam propor equipamentos, ou outras soluções ou intervenções, que se fixassem nas zonas mais perigosas, como o cruzamento de Pedro Alarcón com Santa Rosa ou a passagem Mário Lanza. O novo espaço de recreação, que já está programado realizar-se, o Raipillán,xiii poderia ser uma boa oportunidade para ensaiar esta alternativa.

Nestes contextos, onde o espaço público é uma extensão da própria casa, é por isso vital aliar à estratégia territorial um plano de uma rede de espaços públicos bem articulados, que partilhem uma mesma linguagem, demonstrem um carácter confortável e que se adaptem aos antigos costumes dos habitantes, como as feiras livres,xiv os jogos, os estendais ou as parrillasxv e às mais específicas manifestações artísticas, culturais ou religiosas, como os murais e os pequenos memoriais.

Uma estratégia que englobe todas estas premissas poderá não alterar de um dia para o outro sociabilidades e realidades demasiado enraizadas no bairro, todavia poderiam resultar num mecanismo importante para a revitalização da história, da identidade e da auto-estima do bairro, que ajudasse a uma melhor e efectiva integração social e espacial.

5. Lições e Conclusões

Os conceitos de cidade densa e integracionista e os princípios de arquitectura participada parecem desvanecer-se, mas como nos explica o pensador urbano François Ascher (ASCHER, 2001. 59), cada vez mais a cidade é determinada pelos desejos e vontades dos habitantes. Esta espontaneidade urbana, que é a resposta natural ao quotidiano das cidades, manifesta-se mais notoriamente nos bairros estudados e trabalhados pelos arquitectos mencionados no artigo.

Na Légua, ao contrário do que acontece em outras zonas problemáticas das grandes urbes latino-americanas, parecem já existir alguns elementos

Page 10: Arquitectura da Participação, Lições urbanas de territórios emergentes

fundamentais para a integração urbana e social, como trabalho, espaços para desporto e um projecto de construção de um espaço cultural influente.

No entanto, o que pareceu escassear num certo momento foi o apoio para que acontecesse o fenómeno integrador que identifica Ascher, ou seja, que se envolva a população nas principais obras, para que finalmente se integre o bairro na cidade envolvente e se chegue a um plano claro, que consiga reunir todos os agentes e se inicie um processo que melhore a relação dos habitantes com o espaço público, que mude de uma vez a imagem negativa que o bairro tem hoje.

Tal como aparenta ter sucedido durante a elaboração do plano da Légua de Emergência, as instituições governativas deveriam deixar de vez as propostas top down de soluções habitacionais obsoletas, ainda regularmente planeadas e construídas pelo MINVU (Ministério de Vivienda y Urbanismo) quase sempre na periferia de Santiago; E os planos reguladores, que, segundo o urbanista chileno Ivan Poduje (PODUJE, 2011), parecem apenas funcionar como meros gestores de edificação. Devendo antes, estar mais abertas a opções bottom-up, de maior complexidade e adaptação contextual. Só assim, conseguirão criar intervenções menos incipientes e se poderá criar uma consciência urbana colectiva que ajude as cidades a crescer sustentadamente.

Tal como antecipa o sociólogo Alain Bourdin, o urbanismo renovar-se-á apenas quando repensar as suas certezas. Nesse momento poderá começar a compreender e organizar a sua ignorância em relação aos mosaicos das relações sociais e às distintas paisagens culturais que formam a cidade. É, portanto, a partir de uma postura pedagógica e com um carácter mais contextualista, que se poderá fazer com que as intervenções urbanas e arquitectónicas contribuam para que a cidadania crie uma consciência urbana e a cidade deixe de ser apenas um objecto de especialistas.

A arquitectura e o urbanismo poderão não ser, nem oferecer, a solução para o problema da Légua de Emergência, mas hoje, o facto de se não considerar estas disciplinas de uma forma válida é também um dos motivos para este problema.

Este bairro em particular, por não ter sido pensado, nem tratado como parte da cidade, levou a que se agravassem todos os problemas que já lhe seriam inerentes. A existência de uma estratégia clara e coordenada segundo um desenho conjunto entre habitantes, projectistas e autoridades, poderá levar a uma possível mudança da imagem do bairro e alterar drasticamente a qualidade das ruas, praças e, consequentemente, a vida das pessoas.

Na incerteza dos tempos actuais poderá sugerir um repensar e reinventar da nossa postura e dos nossos métodos de trabalho, enquanto arquitectos ou urbanistas.

Neste contexto, talvez seja possível voltar a aprender com exemplos vindos de outras realidades, que cada vez se assemelham mais à nossa, mas que demonstram a importância de um postura mais pró-activa e política do arquitecto, enquanto mediador e actor urbano, que procura estabelecer alguma equidade social e ajudar na melhoria das cidades e da qualidade de vida das pessoas.

Talvez assim, se volte a acreditar numa arquitectura com um carácter mais social e na importância de um método mais participativo, como forma de conseguir alcançar novos limites para os processos arquitectónicos e urbanísticos e, quem sabe, criar quotidianos mais humanistas e colectivos.

Page 11: Arquitectura da Participação, Lições urbanas de territórios emergentes

Bibliografia

ASCHER, François (2001). Novos princípios do Urbanismo seguido de Novos Compromissos Urbanos. Lisboa: Livros Horizonte.

ARAVENA, Alejandro (2007) Charla de Alejandro Aravena en los QuintosEncontrosInternacionalesdeArquitectura en Santiago de Compostela (Consult. em 15 Outubro 2011), disponívelem http://www.vimeo.com/649598

BOURDIN, Alain (2011). O urbanismo do pós-crise. Lisboa: Livroshorizonte.

CASTELLS, Manuel (1973). Movimiento de pobladores y lucha de clases en Chile. Revista EURE, Volumen 3, n°7,. pp. 9-35.

CONDE,Luiz Paulo, MAGALHÃES, Sérgio (2004). Favela-Bairro: uma outra história da cidade doRio de Janeiro. Rio de Janeiro: Viver-Cidades. Centro de estudos

DAVIDOFF, Paul (1965). Advocacy and pluralism in planning. In The City Reader.Edição de Richard LeGates e Frederic Stout. (1996) Londres, Nova Yorque: Taylor and Francis Group. p.424-433

DE CARLO, Giancarlo (1980). An Architecture of Participation. In (Re)readingperspecta, The First 50 years of the Yale Architectural Journal. Edição de Stern, Robert, Plattus Alan e Deamer Peggy (2004). Cambridge: The MIT Press. p.396-400

GANTER, Rodrigo (2007). Territórios de la Fúria. In revista Arq, nº65. Abril. Santiago: edição PUC pp 22-24

GANTER, Rodrigo (2010). Escenas de la vida urbana enlaLeguaEmergencia: narcocultura y ambivalenciasidentitarias. Tesis de doctorado apresentada en la P.U.C.

GARCÉS, Mário, LEIVA,Sebastián (2005). El Golpe de La Legua. Santiago: LOM Ediciones.

HIDALGO,Rodrigo (2007). Cienaños de politica de vivienda social, cienaños de expulsión de lospobres a la periferia de Santiago. Edição de Maria José Castillo y Rodrigo Hidalgo: 1906-2006. Cien años de politica de vivienda en Chile. UNAB-UC, GEO Libros, Santiago.p.51-63

JÁUREGUI, Jorge Mario (2011). La “escucha” de la demanda y de la participación de la comunidad. (Consultado em 5 de Novembro de 2011), disponível em http://www.plataformaurbana.cl/archive/2011/11/02/la-“escucha”-de-la-demanda-y-la-participacion-de-la-comunidad/

MAGALHÃES, Sérgio (2002). Sobre a Cidade, habitação e democracia no rio de Janeiro. São Paulo: Proeditores Associados Ltda.

PODUJE, Ivan (2011). Conferencia sobre Bairros Críticos, durante um seminário, em 2 de Setembro de 2011, na Universidade Adolfo Ibañez, Santiago do Chile.

Page 12: Arquitectura da Participação, Lições urbanas de territórios emergentes

PORTAS, Nuno (1987). Conceitos de Desenvolvimento Urbano. Jornal dos Arquitectos, da TRAÇA ao TRAÇADO, 56/57.

SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos (1981). Movimentos Urbanos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiros: Zahar Editores S.A.

SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos (1988). A cidade como um jogo de Cartas. São Paulo: ProjetoEditores Associados Ltda.

TAFURI,Manfredo (1985). Projecto e utopia, arquitectura e desenvolvimento do capitalismo. (Conceição Jardim e Eduardo Nogueira trad.) Lisboa: Editorial Presença

TURNER,John F.C., FICHTER,Robert, editors (1972). Freedom to Build, Dweller Control of theHousing Process. New York: The Macmillan Company.

TURNER, John F.C. (1976). Housing By the people: towards autonomy a building environments.NovaIorque: Marion Boyers.

LEITE,Vitório (2010). Arquitectura da Participação. O debate do habitat participado entre o Primeiro e o Terceiro Mundo, 1960-2010. Tese de mestrado apresentada na F.A.U.P. em Dezembro de 2010.

http://furialeguina.blogspot.com (Consultado em Março de 2012)

http://quillahuaira.blogspot.com/2008/12/carnaval-la-legua-2008.html  (Consultado em Março de 2012)  http://www.lalegua.cl/ (Consultado em Março de 2012)

http://www.elementalchile.cl/ (Consultado em Março de 2012)

http://www.supersudaca.org (Consultado em Março de 2012)

http://www.minvu.cl (Consultado em Março de 2012)

http://www.jauregui.arq.br/ (Consultado em Março de 2012)

http://www.plataformaurbana.cl/archive/2011/11/18/la-legua-emergencia-catalizador-de-un-proceso-de-recuperacion-del-territorio-urbano/?from=portada1 (Consultado em Julho de 2012)

http://www.plataformaurbana.cl/archive/2012/04/27/gobierno-expropia-42-ha-para-transformacion-de-la-poblacion-la-legua/ (Consultado em Julho de 2012)

http://www.theclinic.cl/2011/12/18/hinzpeter-se-reunio-con-alcalde-de-san-joaquin-y-organizaciones-sociales-y-culturales-de-la-legua/ (Consultado em Julho de 2012)

i Tomas são ocupações informais de terrenos agrícolas em volta de Santiago, motivadas pela falta de habitação urbana, que fora provocado, segundo o sociólogo Manuel Castells, pela crise das minas e do artesanato provinciano, pelo êxodo rural,

Page 13: Arquitectura da Participação, Lições urbanas de territórios emergentes

pela concentração administrativa e de serviços, pela busca por uma oportunidade na industrializada capital. ii A “Caja de habitación popular” é uma organização criada pelo governo chileno para ajudar a conseguir créditos para a construção de habitação social. iii Conventillo é um tipo de habitação colectiva urbana, semelhante aos cortiços brasileiros, em que famílias inteiras ou grupos de homens dividem quartos. iv “Población Callampa”, em português “bairro seta”, é o nome porque são conhecidos alguns assentamentos informais chilenos, devido à rapidez com que se multiplicaram nas décadas de 1960 e 1970. v A definição inicial para Choros, no Chile, é delinquentes com fama de valentes. vi Segundo Rodrigo Ganter (GANTER, 2007), a Légua tem una população total de 14.011 habitantes, 6.218 na parte mais antiga - Légua Vieja, 4.915 na parte mais recente - Nueva Legua y o resto na Légua de Emergência. vii A Furia Legüina é um grupo de jovens que praticam a batucada, uma banda que actua principalmente durante o Carnaval da Légua. viii OLE, rede de Organizaciones Sociales de La Legua de Emergencia, é formada por várias organizações que operam no território, como os Amigos pela Paz, uma organização que tem como objectivo acabar com o medo de usar o espaço público, gerado pelas tiroteios e pelos grupos de narcotraficantes. ix O Carnaval dos 500 tambores pela Paz y a vida do bairro Légua, é um evento muto participado, que, pelo menos durante 1 dia inteiro, volta a oferecer a rua aos habitantes. x Favela bairro é um programa brasileiro de recuperação de favelas, naturalmente descendente das intervenções de Carlos Nelson dos Santos no Rio de Janeiro. xi Comunicação pessoal com Jorge Mário Jáuregui, 1 de Setembro de 2011. xii O exemplo do Favela Bairro, em que Jáuregui trabalhou, é o exemplo mais paradigmático destas inserções cirúrgicas. Servindo como exemplo para outras estratégias que se seguiram por toda a América do Sul, como o plano de Medellín, que levou a que esta cidade da Colômbia, outrora uma das mais perigosas do mundo, começasse a ser um exemplo de como se poderia transformar radical e positivamente um território urbano dominado pela violência e o crime organizado. xiii Raipillán é um grupo do bairro da Légua de folclore chileno. xiv Ferias libres ou Persas, são feiras que se organizam por todo o Santiago em vários dias de semana, onde qualquer pessoa pode vender qualquer tipo de produtos. Estas feiras são hoje mais de 200 e representam um parte importante da economia urbana da cidade. xv Parrilla é o utensílio ou local onde se fazem os assados, refeições/comemorações populares, que no Chile têm particular importância devido ao carácter mais domestico e familiar dos hábitos lúdicos da população chilena.

Legendas de imagens

Fig|1 Planta inicial da ocupação Légua de Emergência. In GANTER, Rodrigo (2010).

Fig|2 Planta de Santiago. Marcado o centro (negro) e o bairro da Légua (vermelho).

Fig|3 Fotografias de ruas sem saída. Esq: Mário Lanza; Dir: Rua Santa Catalina. (Fotografias cedidas por Carole Gurdon, Mobil arquitectos).

Fig|4 Diagrama de diagnóstico. Planta do bairro da Légua.

Fig|5 Diagrama das premissas metodológicas. Planta do bairro da Légua.

Page 14: Arquitectura da Participação, Lições urbanas de territórios emergentes

Vitório Vasconcelos Leite is an architect, graduated in Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. In 2010, he presented his master degree thesis, which was named: Architecture of Participation, the debate about the participated habitat between the first and the third world, 1960-2010. During the developing of his master degree, he took part in the organization of conferences and contests about Oporto’s historic centre, he participated in urban intervention groups and he wrote some articles about urban intervention and participation of inhabitants and Oporto city. In November of 2011, he presented an article at Universidad Federico Santa Maria, during the seminary “Megacities, the classic informal phenomenon in the Latin-American megacities.” Between March of 2011 and august of 2012 he labored in a young office in Santiago, Chile, “Mobil Arquitectos”, working mainly in the area of urban planning and housing.