Aldous Huxley-As Portas Da Percepcao

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  • 5/21/2018 Aldous Huxley-As Portas Da Percepcao

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    Sobre a Obra:

    ESTE VOLUME RENE dois dos ensaios mais importantes de Aldous Huxley sobre osefeitos da ingesto de drogas alucingenas e as implicaes mentais e ticas dessaexperincia. A obra inclui ainda uma srie de pequenos textos sobre outros modificadores dapercepo humana, revelando a profunda dicotomia do autor que, ao buscar iluminaesmsticas inalcanveis pelo pensamento racional, no esconde seu inconformismo com aslimitaes do corpo humano.

    Em As portas da percepo, de 1954, o romancista e ensasta ingls descreve suasexperincias pessoais com a mescalina, alcalide extrado de um cacto mexicano, muitoempregado pelos xams. As experincias, realizadas sob rigoroso controle mdico, lheproporcionaram uma "viso sacramental da realidade".

    O exame das implicaes mentais e ticas dessa experincia tem continuidade emCu e inferno, de 1956, em que Huxley constata que, se as alucinaes produzidas pela drogapodem atingir uma esfera mstica inalcanvel pelo pensamento racional, tambm podemconduzir o paciente s margens da auto-aniquilao. A obra se encerra com uma srie depequenos ensaios sobre outros modificadores da percepo humana, como a falta devitaminas no crebro, o dixido de carbono e suas conseqncias txicas sobre a mente.

    Foi graas a estes ensaios que Huxley tornou-se uma espcie de guru entre os hippiesda contracultura californiana da dcada de 1970, tais como o roqueiro Jim Morrison, da bandaThe Doors. No entanto, como escreve Manuel da Costa Pinto em seu prefcio esta edio,estas "so meditaes escritas luz radiosa da razo, relatos de experincias com a mescalinaque no conduzem a uma adeso imediata aos parasos artificiais, mas sim a uma idia dealargamento da conscincia que no elide seu elemento reflexivo".

    Sobre a Digitalizao desta Obra:

    Esta obra foi digitalizada para proporcionar de maneira totalmente gratuita o benefciode sua leitura queles que no podem compr-la ou queles que necessitam de meioseletrnicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-livro ou mesmo a sua troca por qualquercontraprestao totalmente condenvel em qualquer circunstncia. A generosidade amarca da distribuio, portanto:

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    OOBBRR

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    ALDOUS LEONARD HUXLEYnasceu em 26 de julho de 1894 no condadode Surrey, na Inglaterra. Seu primeiro livro foi publicado em 1916, uma coletnea de

    poemas. Autor de uma linhagem de reconhecidos intelectuais em que sobressai o av, obilogo Thomas Henry Huxley, defensor das idias evolucionistas de Darwin, Aldousteve sua reputao literria estabelecida a partir de 1921 com a novela Crome Yellow.Imediatamente seguiram-se stiras brilhantes (Antic Hay, de 1923; Folhas inteis, de

    1925; Contraponto, de 1928), nas quais o autor analisa de maneira espirituosa pormimplacvel as agruras da sociedade contempornea.

    No perodo anterior Segunda Guerra Mundial, a obra de Huxley adquire umtom mais sombrio. So desse perodo Admirvel mundo novo (publicado em 1932,denuncia os aspectos desumanizadores do "progresso" cientfico e material) e Sem olhosem Gaza (novela pacifista de 1936), alm de uma srie de ensaios.

    Em 1937, no auge da fama, Huxley deixa a Europa e se muda para a Califrnia.No momento em que o Ocidente se preparava para a guerra, ele comea a acreditar quea chave para a resoluo dos problemas do mundo estaria na troca da razoindividualista ocidental pela "sabedoria perene", de carter mstico, centrada na idia daunidade. So dessa fase tanto as obras de fico O tempo deve parar, de 1944, e A ilha,

    de 1962 (uma espcie de seqncia de Admirvel mundo novo), quanto o famoso relatode sua primeira experincia com mescalina, Asportas da percepo, de 1954.

    Aldous Huxley morreu em 22 de novembro de 1963, por coincidncia o dia emque John F. Kennedy foi assassinado.

    MANUEL DA COSTA PINTO nasceu em So Paulo em 1966. Jornalista,editor da revista Cult, autor deAlbert Camus Um elogio do ensaio (Ateli Editorial)e organizador e tradutor da antologia A inteligncia e o cadafalso e outros ensaios, deAlbert Camus (Record).

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    PPRREEFFCCIIOO

    A ALUSO QUE ALDOUS HUXLEY faz ao poeta William Blake nos ttulos

    de seus dois ensaios sobre as drogas alucingenas no deve nos enganar: As portas dapercepo (1954) e Cu e Inferno (1956) so meditaes escritas luz radiosa da razo,relatos de experincias com a mescalina que no conduzem a uma adeso imediata aos

    parasos artificiais, mas sim a uma idia de alargamento da conscincia que no elideseu elemento reflexivo.

    Essa observao fundamental por causa da histria nada desprezvel darecepo de Huxley em um mbito que ultrapassa os limites da chamada "alta cultura"(na qual ele havia se consagrado como autor dos clssicos Contraponto e Admirvelmundo novo).No final dos anos 60, o compositor, cantor e poeta Jim Morrison criou naCalifrnia uma banda de rock chamada The Doors, cujo nome fora inspirado na leiturade As portas da percepo. Morrison morreria em Paris em 1971, provavelmente deoverdose, mas sua curta e fulminante trajetria marcada no apenas pelo sucessomusical e por escndalos comuns dentro do universo pop, como tambm por uma

    produo potica que chegou a ser comparada de Rimbaud acabaria estabelecendouma ponte entre a potica visionria de Blake, o erotismo sacrifi-cial dos concertos dos

    Doors e a obra de Huxley, que assim ganharia uma aura de guru da contracultura.

    Essa identificao estava sintetizada num trecho do clebre poema em prosa "Omatrimnio do cu e do inferno" "If the doors of perception were cleansed everything would appear to man as it is, infinite" ("Se as portas da percepo estivessemlimpas, tudo se mostraria ao homem tal como , infinito", segundo traduo de JosArantes publicada pela editora Iluminuras). E, no entanto, a imagem de Huxley comouma espcie de profeta aristocrtico da era hippie no parece resistir leitura de As

    portas da percepo e Cu e Inferno. bem verdade que ele mesmo alimentou a

    confuso ao colher os ttulos dos ensaios nos aforismos de um poeta "maldito", quemimetizou suas alucinaes tanto com as palavras quanto em telas que representam

    personagens bblicas em cenrios apocalpticos. E tambm verdade que Morrisonestava sendo fiel letra de Huxley ao conferir a suas experincias com mescalina ecido lisrgico um carter ritual inspirado no xamanismo: afinal, o escritor inglsescolhera a mescalina para seus experimentos justamente por causa da funo sagradaque o peiote (raiz da qual extrada a droga) desempenha nas religies dos ndiosamericanos.

    O fato, porm, que em nenhum momento Huxley parece buscar nosalucingenos uma converso mstica ou uma ruptura absoluta com o mundo ordinrio.Tampouco parece movido por um desacordo essencial em relao aos crceres

    psicolgicos e perceptivos da realidade emprica. Enquanto Blake era um gnstico paraquem "o caminho do excesso leva ao palcio da sabedoria",

    Huxley fez do excesso de sabedoria e de curiosidade um caminho para o palciodo xtase: a razo que, percebendo sua insuficincia perante a pluralidade do mundo,

    busca uma abertura para novas formas de percepo que sejam uma alternativa aosolipsismo (essa perverso do idealismo) e ao behaviorismo (perverso do empirismo).

    Nesse sentido, Aldous Huxley um perfeito agnstico.

    Vale a pena fazer aqui um pequeno desvio para explicar a origem desse termo.

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    Afinal, a expresso "agnstico" foi literalmente inventada pelo av de Aldous oeminente bilogo Thomas Henry Huxley durante as acirradas polmicas surgidasdepois da publicao de A origem das espcies, de Charles Darwin, em 1859. Ferrenhodefensor da teoria da evoluo, Thomas Henry se viu na obrigao de rebater as crticasdos criacionistas (religiosos que faziam uma leitura fundamentalista das Escrituras,defendendo a idia de que o homem foi gerado por Deus em sua conformao atual),

    formulando ento um conceito que passou a ser um estandarte do antidogmatismo e daemancipao do pensamento:

    Quando cheguei maturidade intelectual e comecei a perguntar-me se era ateu,testa ou pantesta, materialista ou idealista, cristo ou livre-pensador, percebi quequanto mais aprendia e refletia menos fcil era a resposta, at que por fim cheguei concluso de que nada tinha a ver com nenhuma dessas definies, com exceo daltima. A nica coisa em que todas essas excelentes pessoas estavam de acordo era anica coisa em que eu discordava delas. Estavam bastante seguras de que tinhamatingido uma certa 'gnose' haviam, com maior ou menor sucesso, resolvido o

    problema da existncia, enquanto eu estava bastante seguro do contrrio e possua umaconvico razoavelmente forte de que o problema era insolvel. [...] Portanto, meditei e

    inventei o que me parece ser um rtulo adequado: 'agnstico'. Pensei nele como umaanttese sugestiva dos 'gnsticos' da histria da Igreja, que professavam conhecer coisasem que eu era ignorante.

    Aldous Huxley foi um legtimo herdeiro do ethos iluminista e anti-religioso deseu av. As portas da percepo e Cu e Inferno so relatos pacficos de umaexperincia extraordinria e sugerem um autor que no transfere para a escrita as fendase as instabilidades de sua paisagem interior. Estamos longe do estilo candente de umThomas de Quincey ou de um Artaud para citar dois outros escritores que associaramdrogas a um estado de esprito demonaco. Com Huxley, estamos mais prximos doceticismo moderno de Montaigne ou Hume; ele desconfia igualmente do totalitarismoda razo e das quimeras de nossa imaginao e s se interessa por estas ltimas emsentido antropolgico, como uma fresta por onde se pode sondar a alma humana.Mesmo quando tematiza as drogas em obras de fico, o escritor ingls parece estar

    preocupado menos com o transe que elas provocam em personagens individuais do quecom seus efeitos sobre o mecanismo psicolgico das massas caso dos narcticosimaginrios consumidos no universo asfixiante de Admirvel mundo novo (osoma, que

    provoca um bem-estar politicamente anestesiante) e na sociedade utpica do romanceAilha (a moksha, uma plula que "liberta do cativeiro do prprio ego"). Talvez seja porisso, por essa falta de predisposio ao fantstico ("sou e, at onde minha memriaalcana, sempre fui pouco dado a devaneios"), que, ao provar pela primeira vez amescalina, em 1953, Huxley tenha descoberto no um novo continente, mas um novoolhar sobre cenrios familiares: "Nada de paisagens, espaos abissais, mgicocrescimento e metamorfose de edificaes,

    nada que lembrasse, por remoto que fosse, um drama ou uma parbola. O outromundo ao qual a mescalina me conduzira no era o mundo das vises; ele existianaquilo que eu podia ver com meus olhos abertos. A grande transformao se dava noreino dos fatos objetivos. O que tinha acontecido a meu universo subjetivo era coisaque, relativamente, pouco importava". A essa ausncia de figuras sobrenaturais, porm,corresponde a perplexidade diante do carter transcendente que os objetos adquirem a

    partir da alterao do estado de conscincia de quem os observa. Descrevendo astransformaes que sofrem as flores de um vaso, uma cadeira ou um simples pedao detecido na percepo de algum que ingeriu a droga, Huxley nos revela o "milagre do

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    inteiro desabrochar da existncia em toda sua nudez" e uma nova dimenso de tempo,"um perptuo presente, criado por um apocalipse em contnua transformao".

    A despeito das referncias de Huxley ao taosmo e a msticos como so Joo daCruz ou Swedenborg, essa "viso sacramentai da realidade" proporcionada pelamescalina se restringe a um plano estritamente natural. Huxley admira os estados deesprito extticos porque eles proporcionam exemplos do carter irredutvel daexistncia e, sob esse aspecto, o uso argumentativo que Huxley faz de Buda e deMestre Eckhart tem uma surpreendente semelhana com o sentido que este grande nomeda mstica renana ou o filsofo japons Nishida adquirem na obra de Heidegger. Deresto, quando Huxley descreve sua percepo "narcotizada" de uma cadeira como"minha Despersonalizao na Desindividualizao que era a cadeira", a frase pareceremeter exatamente distino que o filsofo de Ser e tempo faz entre o entemanipulvel (tal qual institudo pela razo instrumental) e oser autntico (cuja eternairrupo fora encoberta pela dicotomia sujeito-objeto e seria redescoberta pelasuperao heideggeriana da metafsica).

    diferena de Heidegger, porm, Huxley considera que tanto o esquecimentoda totalidade do ser quanto seu oposto a abertura da conscincia para a irrupo dos

    acontecimentos - so um fenmeno do mundo biolgico. Para ele, o crebro e osistema nervoso seriam uma "vlvula redutora", que evita por meio do carterseletivo da memria e das restries impostas pela linguagem que o homem sejaesmagado pela torrente de informaes a que sua "oniscincia" potencial estaria sujeita.

    Seria um anacronismo tentar avaliar a correo dessas afirmaes a partir dasdescobertas recentes das neurocincias. Nem As portas da percepo nem Cu e

    Inferno so tratados cientficos. Huxley cita vrios pesquisadores de seu tempo, consultaespecialistas, explica a ao qumica dos diferentes tipos de drogas, defende suasvirtudes e aponta seus malefcios mas parece se guiar sobretudo por aquele espritode curiosidade intelectual formulado por Montaigne na aurora da modernidade. Cu e

    Inferno texto que d continuidade s experincias relatadas em As portas da

    percepo uma cartografia da mente cuja analogia entre os estados possveis daconscincia e as zonas do globo (com sua diversidade de fauna e flora) deve muito descrio, feita nos Ensaios de Montaigne, das "maravilhas" encontradas pelosnavegantes nos antpodas das terras civilizadas.

    Em Cu e Inferno, essas metforas geogrficas expressam "a dessemelhanaessencial das regies longnquas da mente" que as drogas permitem desbravar. Para oleitor de hoje, elas tm tambm um significado tico: ensinam a olhar com tolerncia ecompreenso para essas pequenas epifanias que nos consolam de um mundo em que o

    prazer mercantilizado pela indstria do combate ao narcotrfico e em que a mente agenciada pelos psicofrmacos. Alis, a proliferao atual das drogas normalizantes que reduzem o crebro a uma glndula e transformam a existncia num protocolo torna ainda mais urgente a necessidade de transcendncia que podemos detectar pelaonipresena do uso de alucingenos nas mais variadas culturas. Como escreve AldousHuxley: "Parece extremamente improvvel que a humanidade, de um modo geral,algum dia seja capaz de passar sem parasos artificiais. A maioria dos homens emulheres leva uma vida to sofredora em seus pontos baixos e to montona em suaseminncias, to pobre e limitada, que os desejos de fuga, os anseios para superar-se,ainda por uns breves momentos, esto e tm estado sempre entre os principais apetitesda alma".

    MANUEL DA COSTA PINTO

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    AS PORTAS DA PERCEPO

    FOI NO ANO DE 1886 que o farmacologista alemo Ludwig Lewin publicou o

    primeiro estudo sistemtico do cacto que, depois disso, haveria de receber seu nome. OAnhalonium lewin era novo para a cincia, embora fosse, na verdade, um amigo desdetempos imemoriais para as religies primitivas e para os ndios do Mxico e doSudoeste dos Estados Unidos. Era at muito mais que um amigo. Segundo as palavrasde um dos primeiros espanhis a visitar o Novo Mundo, "eles comem uma raiz a quechamam depeiote e que por eles venerada como a um deus".

    O porqu de tal venerao evidenciou-se quando psicologistas eminentes, taiscomo Jaensch, Havelock Ellis e Weir Mitchell, comearam suas experincias com amescalina o princpio ativo do peiote.No h dvida de que eles as interromperamem um ponto muito aqum da idolatria, mas tudo nos leva a situar a mescalina em

    posio mpar entre os demais alcalides. Administrada em doses adequadas, ela

    modifica mais profundamente a qualidade da percepo que qualquer outra droga disposio do farmacologista, a isso aliando o fato de ser menos txica que as demais.

    A pesquisa sobre a mescalina tem sido realizada esporadicamente, desde os diasde Lewin e Havelock Ellis. Os qumicos no se limitaram a isolar o alcalide;conseguiram tambm realizar-lhe a sntese, com o que no mais ficaram merc dasescassas e problemticas coletas de um cacto do deserto. Os alienistas tm, elesmesmos, feito uso da mescalina, buscando assim conseguir uma melhor e mais diretacompreenso dos processos mentais de seus pacientes. Infelizmente, por trabalharem

    baseados em um nmero muito reduzido de provas e dentro de uma faixa de condiespor demais estreita, os psicologistas apenas observaram e registraram alguns dos maisimpressionantes efeitos da mescalina. Os neurologistas e fisiologistas chegaram aalgumas concluses a respeito do mecanismo de sua ao sobre o sistema nervosocentral. E ao menos um filsofo militante tomou o alcalide, ante a luz que este poderialanar sobre antigos e insolveis enigmas, tais como o lugar da mente na natureza e arelao entre a inteligncia e o consciente.

    Assim estavam as coisas at que, h dois ou trs anos, foi observado um fatonovo, talvez de grande importncia.1Na verdade, havia muitas dcadas que esse fato seapresentava ao vivo, diante de todos, mas, a despeito disso, ningum se havia deleapercebido at que um jovem psiquiatra ingls, que atualmente trabalha no

    l. A esse respeito, veja-se: l. HOFFER, Abram; OSMOND, Humphry;SMYTHIES, John. "Schizophrenia: a new approach". Journal of Mental Science,100(418), jan. 1954. 2. OSMOND, Humphry. "On being mad". Saskatchewan

    Psychiatric Services Journal, 1(2), set. 1952. 3. SMYTHIES, John. "Schizophrenia: anew approach". Journal of Mental Science, 98, abr. 1952. 4. SMYTHIES, John. "Themescalin phe-nomena". The British Journal for the Philosophy of Science, 3, fev. 1953.

    Numerosos outros artigos sobre bioqumica, farmacologia, psicologia e neurofisiologiada esquizofrenia e dos efeitos da mescalina esto em preparao.

    Canad, se deu conta da grande semelhana de composio qumica existenteentre a mescalina e a adrenalina. Pesquisas posteriores revelaram que o cido lisrgico

    um onrico extremamente poderoso, derivado da ergotina apresenta afinidadescom essas duas substncias, em suas caractersticas bioqumicas. Veio em seguida a

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    descoberta de que o adrenocromo, produto de decomposio da adrenalina, podeproduzir muitos dos sintomas observados no inebriamento por mescalina. E bemprovvel que o adrenocromo seja o fruto de uma decomposio realizadaespontaneamente no corpo humano. Isto nos leva a concluir que cada um de ns capazde produzir uma substncia qumica da qual, como sabemos, doses diminutas podemcriar profundas alteraes na percepo. Algumas dessas alteraes so semelhantes s

    que acompanham essa praga to caracterstica do sculo XX que a esquizofrenia. Seressa doena mental uma decorrncia de um desequilbrio qumico:1 E estar odesequilbrio qumico, por seu turno, ligado a sofrimentos psquicos que atuem sobre asglndulas supra-renais? Ser arrojado e prematuro afirm-lo. O mximo que podemosdizer que isso constitui uma hiptese plausvel. Entretanto, o mistrio vem sendosistematicamente desvendado; os detetives bioqumicos, psiquiatras e psicologistas

    acham-se em sua pista.

    Em razo de uma srie de circunstncias que para mim foram extremamentefavorveis vi-me, na primavera de 1953, situado bem no meio de tal busca. Umdesses pesquisadores tinha chegado Califrnia, levado por suas investigaes. Adespeito dos setenta anos de pesquisas sobre a mescalina, o material psicolgico de que

    se dispunha era ainda incrivelmente reduzido, e ele estava ansioso por ampli-lo. Eu meatravessara em seu caminho e estava disposto ou melhor, decidido a servir decobaia. E foi assim que, em uma radiosa manh de maio, tomei quatro decigramas demescalina, dissolvidos em meio copo d'gua, e sentei-me para esperar pelos resultados.

    Vivemos, agimos e reagimos uns com os outros; mas sempre, e sob quaisquercircunstncias, existimos a ss. Os mrtires penetram na arena de mos dadas; mas socrucificados sozinhos. Abraados, os amantes buscam desesperadamente fundir seusxtases isolados em uma nica autotranscendncia; debalde. Por sua prpria natureza,cada esprito, em sua priso corprea, est condenado a sofrer e gozar em solido.Sensaes, sentimentos, concepes, fantasias tudo isso so coisas privadas e, a noser por meio de smbolos, e indiretamente, no podem ser transmitidas. Podemosacumular informaes sobre experincias, mas nunca as prprias experincias. Dafamlia nao, cada grupo humano uma sociedade de universos insulares.

    Muitos desses universos so suficientemente semelhantes, uns aos outros, parapermitir entre eles uma compreenso por deduo, ou mesmo por mtua projeo depercepo. Assim, recordando nossos prprios infortnios e humilhaes podemos noscondoer de outras pessoas em circunstncias anlogas; somos at capazes de nos

    pormos em seu lugar (sempre, evidentemente, em sentido figurado). Mas em certoscasos a ligao entre esses universos incompleta, ou mesmo inexistente. A mente oseu campo, porm os lugares ocupados pelo insano e pelo gnio so to diferentesdaqueles onde vivem o homem e a mulher comuns que h pouco ou nenhum ponto decontato na memria individual para servir de base compreenso ou a ligaes entreeles. Falam, mas no se entendem. As coisas e os fatos a que os smbolos se referem

    pertencem a reinos de experincias que se excluem mutuamente.Contemplarmo-nos do mesmo modo pelo qual os outros nos vem uma das

    mais confortadoras ddivas. E no menos importante o dom de vermos os outros talcomo eles mesmos se encaram. Mas e se esses outros pertencerem a uma espciediferente e habitarem um universo inteiramente estranho? Assim, como poder oindivduo, mentalmente so, sentir o que realmente sente o insano? Ou, na iminncia deser reencarnado na pessoa de um sonhador, um mdium ou um gnio musical, como

    poderamos algum dia visitar os mundos que para Blake, Swedenborg ou Johann

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    Sebastian Bach eram seus lares? E como poder algum, que esteja nos limites extremosdo ectomorfismo e da cerebrotonia, pr-se no lugar de outrem que ocupa o limite opostodo endomorfismo e da viscerotonia ou (a no ser dentro de certas reas restritas)compartilhar dos sentimentos de um terceiro que se situe no campo do mesomorfismo eda somatotonia? Para o behaviorsta inflexvel, tais proposies suponho eu sodesprovidas de sentido. Mas para aqueles que aceitam, do ponto de vista terico, aquilo

    que, na prtica, sabem ser verdade isto , que a experincia possui dois aspectos, umexterno e o outro interno , os problemas apresentados so reais e tanto mais srios porserem, alguns, inteiramente insolveis, e outros s poderem ser resolvidos emcircunstncias excepcionais e por mtodos que no se acham ao alcance de qualquerum. , pois, quase certo que jamais poderei saber o que sentem sir John Falstaff ou JoeLouis. Por outro lado, sempre me pareceu possvel que, por meio do hipnotismo, doauto-hipnotismo, da meditao sistemtica, ou ainda pela ao de uma droga apropriada,eu pudesse modificar de tal forma minha percepo normal que fosse capaz decompreender, por mim mesmo, a linguagem do visionrio, do mdium e at\ do mstico.

    Baseado no que j havia lido a respeito das experincias com a mescalina, eu meconvencera antecipadamente de que a droga haveria de garantir minha admisso, ao

    menos por umas poucas horas, no tipo de mundo interior descrito por Blake e AE.* Maso que eu esperava no aconteceu. Contava ficar, de olhos cerrados, a contemplar visesde corpos geomtricos multicores, de formas arquitetnicas animadas, recobertas degemas e fabulosamente belas, de paisagens repletas de figuras hericas, de dramassimblicos e perpetuamente apaixonantes, no limiar da revelao derradeira. Mas estclaro que eu no levava em conta as idiossincrasias de minha formao mental, asrealidades de meu temperamento, educao e hbitos.

    *Pseudnimo literrio de George William Russell (1867-1935), poeta e pintorirlands.

    Sou e, at onde minha memria alcana, sempre fui pouco dado a devaneios. Aspalavras, mesmo as mais evocativas, empregadas pelos poetas, no conseguem produzir

    imagens em minha mente. No vm ao meu encontro vises hipnaggicas no limiar dosono. Quando me lembro de algo, a memria no se me apresenta como um fato ouobjeto vivido. Por um esforo da vontade, consigo evocar uma imagem no muitovivida do que aconteceu na tarde da vspera, de como era o Lungarno antes de as pontesterem sido destrudas ou da estrada de Bayswater quando os poucos nibus eram verdese pequeninos, puxados por velhos cavalos a uns seis quilmetros por hora. Mas essasimagens tero pouca substncia, e de forma alguma podero ter vida prpria. Guardam,

    para os objetos reais, a mesma proporo que os fantasmas homricos apresentam comrelao aos homens de carne e osso que vo visit-los nas sombras. S quando tenhofebre alta que minhas imagens mentais adquirem vida independente. Para aqueles cujaimaginao frtil, meu mundo interior ter de parecer curiosamente montono,limitado e desinteressante. Este era o mundo um pobre mundo, porm meu que eu

    esperava ver transformado em algo inteiramente diferente de si mesmo.A modificao que realmente ocorreu nesse mundo nada teve de revolucionria.

    Meia hora depois de ingerir a droga, comecei a perceber um lento bailado de luzesdouradas. Pouco depois surgiram imponentes superfcies rubras que cresciam e seavolumavam a partir de brilhantes ndulos de energia a assumir continuamente as maisvariadas formas. De outra feita, ao fechar os olhos, se me deparava um complexo deestruturas cinzentas, de dentro das quais brotavam, incessantemente, plidas esferasazuladas que se iam materializando e, medida que o faziam, deslizavam

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    silenciosamente para cima e fugiam de cena. Mas em tempo algum apareceram faces ouformas de homens ou animais. Nada de paisagens, espaos abissais, mgico crescimentoe metamorfose de edificaes, nada que lembrasse, por remoto que fosse, um drama ouuma parbola. O outro mundo ao qual a mescalina me conduzira no era o mundo dasvises; ele existia naquilo que eu podia ver com meus olhos abertos. A grandetransformao se dava no reino dos fatos objetivos. O que tinha acontecido a meu

    universo subjetivo era coisa que, relativamente, pouco importava.Eu ingerira minha poo s onze horas. Hora e meia mais tarde estava sentado

    em meu escritrio, contemplando atentamente um pequeno vaso de vidro. Continha eleapenas trs flores uma rosa-de-portugal, inteiramente desabrochada, com sua rseacorola onde a base de cada ptala apresentava um matiz mais quente e brilhante; umgrande cravo creme e arroxeado; e, arrogante em sua herldica beleza, de um prpura

    plido, a flor-do-ris. Por mero acaso, o pequeno ramalhete violava todas as regras dobom gosto tradicional. Pela manh, ao desjejum, ferira-me os olhos a vivida dissonnciade suas cores. Mas tal j no era mais minha opinio. No contemplava mais umaesquisita combinao de flores; via, agora, aquilo mesmo que Ado vira no dia de suacriao o milagre do inteiro desabrochar da existncia, em toda a sua nudez.

    Isso agradvel? perguntou algum. (Durante essa parte da experincia,todas as conversas foram gravadas, e foi-me assim possvel refrescar a memria arespeito do que fora dito.)

    Nem agradvel, nem desagradvel respondi. Apenas existe.

    Istigkeit "existncia" , no era essa a palavra que Meister Eckhart gostavade usar? O Existir da filosofia platnica com a diferena que Plato parecia tercometido o enorme, o grotesco erro de separar Existir de tornar-se e de identific-locom a abstrao matemtica a Idia. Ele, pobre mortal, talvez jamais tivesse visto umramalhete de flores a brilhar com sua prpria luz interior, quase que estremecendo sob atenso da importncia do papel que lhes fora confiado; jamais deveria ter-se apercebidode que essa to grande importncia da rosa, do ris e do cravo residia, to-somente,

    naquilo que eles representavam uma efemeridade que, no obstante, significava vidaeterna, um perptuo perecer que era, ao mesmo tempo, puro Existir; um punhado de

    pormenores diminutos e sem par no qual, por algum indizvel paradoxo, emboraaxiomtico, encontrar-se-ia a divina fonte de toda a existncia.

    Continuei a observar as flores e, em sua luz vivida, eu parecia captar oequivalente qualitativo da respirao mas de uma respirao sem retornos a um

    ponto de partida, sem refluxos peridicos, mas antes em um fluxo, repetido, da belezapara uma beleza mais sublime, de um significado profundo para outro ainda maior.Palavras tais como Graa e Transfigurao vieram-me mente, e isto, sem dvida, era oque, entre outras coisas, queriam elas significar. Meus olhos se encaminhavam da rosa

    para o cravo, e daquela incandescncia de plumas para as suaves volutas de ametista

    animada, que era o ris. A Beatfica Viso, Sat Chit Ananda Existncia-Conscincia-Beatitude , pela primeira vez entendi, no em termos de palavras, no por insinuaesrudimentares, vagamente, mas precisa e completamente, o que queriam significar essasslabas prodigiosas. E lembrei-me, ento, de uma passagem que lera em um dos ensaiosde Suzuki: "Que o Dharma-Corpreo do Buda?". (O Dharma-Corpreo do Buda outro modo de se referir Mente, Peculiaridade, ao Vazio, Divindade.) A perguntafoi feita, em um mosteiro zen, por ardente e perplexo novio. E, com a vivaz insensatezde um dos Irmos Marx, respondeu-lhe o superior: "A sebe ao fundo do jardim". "E

    poderia eu perguntar" retrucou timidamente o novio "qual o homem que

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    concebeu essa verdade?" A que Groucho, dando-lhe uma pancada nas costas com seubasto, responde: "Um leo de cabelos de ouro!".

    Quando li esse dilogo, achei-o pouco mais ou menos um amontoado deinsensatez. Agora, porm, tudo est to claro como o dia, to evidente quanto o

    postulado de Euclides. No h a menor dvida de que o Dharma-Corpreo do Budaseja a sebe do fim do jardim. Ao mesmo tempo, e com igual certeza, ele estas flores,ele qualquer coisa que desperte a ateno de meu ego (ou melhor, de minha bem-aventurada despersonalizao, liberta por um momento de meu abrao asfixiante).Assim tambm os livros, que recobrem as , paredes de meu escritrio: tais como asflores, eles tambm luziam, quando para eles olhei, com cores mais brilhantes, com umaimportncia mais profunda. Livros vermelhos de rubi; livros de esmeralda; livros degata, de gua-marinha, de topzio; livros de lpis-lazli de cor to intensa, tointrinsecamente importantes que pareciam a ponto de sair das estantes para melhor atrairminha ateno.

    Que me diz das relaes espaciais? perguntou o investigador enquanto euolhava os livros.

    Era difcil responder. Na verdade, a perspectiva se tornara bastante estranha e asparedes da sala j no mais pareciam encontrar-se em ngulos retos. Mas no eramesses os fatos realmente importantes. O que mais ressaltava era a constatao de que asrelaes espaciais tinham perdido muito do seu valor e de que minha mente tomavacontato com o mundo exterior em termos de outras dimenses que no as de espao. Emsituaes normais o olho se preocupa com problemas tais como Onde? A quedistncia? Como se situa em relao a tal coisa?. Durante a experincia com amescalina, as perguntas tcitas a que a viso responde so de outra ordem. Lugar edistncia deixam de ter muito interesse. A mente elabora a compreenso das coisas emtermos de intensidade de existncia, profundidade de importncia, relaes dentro deum determinado padro. Eu olhava para os livros, mas no me preocupava, em absoluto,com suas posies no espao. O que notava, o que se impunha por si mesmo a minha

    mente, era o fato de que todos eles brilhavam com uma luz viva e que, em alguns, oresplendor era mais intenso que em outros. Nesse instante, a posio e as trs dimenseseram questes de somenos. No, evidentemente, que a noo de espao houvesse sidoabolida. Quando me levantei e pus-me a andar, eu o fiz com toda a naturalidade, semerros de apreciao sobre a posio dos objetos. O espao ainda estava ali; mas havia

    perdido sua primazia. A mente se preocupava, mais do que tudo, no com medidas elugares, e sim com a existncia e o significado.

    E, de par com essa indiferena pelo espao, adquiri um descaso ainda maior pelotempo.

    Parece haver bastante foi tudo o que pude dizer quando o meu inquiridorme pediu que dissesse qual a noo que tinha dessa dimenso.

    Bastante; mas pouco se me dava saber, exatamente, quanto. Poderia, est claro,olhar para meu relgio; mas ele, sabia-o eu, estava em outro universo. Essa minhaexperincia tinha sido, e ainda era, de durao indefinida, tambm podendo serconsiderada um perptuo presente, criado por um apocalipse em contnuatransformao.

    Dos livros, meu interlocutor desviou-me a ateno para o mobilirio. No centroda sala havia uma pequena mesa para mquina de escrever. Junto a ela, do lado opostoao meu, estava uma cadeira de vime e, alm dela, uma escrivaninha. As trs peas

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    formavam um intricado desenho de horizontais, verticais e oblquas desenho tantomais interessante por no estar sendo interpretado em termos de suas relaes deespao. Mesa, cadeira e escrivaninha constituam uma composio que se assemelhavaa algo por Braque ou Juan Gris: uma natureza-morta nitidamente relacionada com omundo objetivo, mas onde no havia profundidade, nada de realismo fotogrfico. Euexaminava minha moblia, no como o utilitrio, que tem de sentar-se em cadeiras,

    escrever em escrivaninhas e em mesas; no como o operador cinematogrfico ou oinvestigador cientfico, mas como o esteta puro, cuja nica preocupao se cinge sformas e suas relaes dentro do campo visual ou dos limites de um quadro. Mas, medida que prosseguia em minha investigao, essa anlise puramente esttica decubista foi sendo substituda pelo que poderei apenas definir como sendo a visosacramentai da realidade: voltei ao estado em que me encontrava quando contemplavaas flores a um mundo onde tudo brilhava, animado pela Luz Interior, e era infinitoem sua importncia. Assim, os ps daquela cadeira quo miraculosa a suatubularidade, quo sobrenatural seu suave polimento! Consumi vrios minutos ouforam vrios sculos? no apenas admirando aqueles ps de bambu, mas em verdade

    sendo-os, ou melhor, sentindo-me neles; ou, empregando linguagem talvez mais precisa(pois "eu" no estava em jogo, do mesmo modo como, at certo ponto, "eles" tampouco

    o estavam), sendo minha Despersonalizao na Desindividualizao que era a cadeira.Refletindo sobre minha experincia, vejo-me levado a concordar com o

    eminente filsofo de Cambridge, dr. C. D. Broad, "que ser bom considerarmos, muitomais seriamente do que at ento temos feito, o tipo de teoria estabelecida por Bergson,com relao memria e ao senso de percepo. Segundo ela, a funo do crebro e dosistema nervoso , principalmente, eliminativa e no produtiva. Cada um de ns capazde lembrar-se, a qualquer momento, de tudo o que j ocorreu conosco, bem como de seaperceber de tudo o que est acontecendo em qualquer parte do universo. A funo docrebro e do sistema nervoso proteger-nos, impedindo que sejamos esmagados econfundidos por essa massa de conhecimentos, na sua maioria inteis e semimportncia, eliminando muita coisa que, de outro modo, deveramos perceber ou

    recordar constantemente, e deixando passar apenas aquelas poucas sensaesselecionadas que, provavelmente, tero utilidade na prtica".

    De acordo com tal teoria, cada um de ns possui, em potencial, a Oniscincia.Mas, visto que somos animais, o que mais nos preocupa viver a todo o custo. Paratornar possvel a sobrevivncia biolgica, a torrente da Oniscincia tem de passar peloestrangulamento da vlvula redutora que so nosso crebro e sistema nervoso. O queconsegue coar-se atravs desse crivo um minguado fio de conhecimento que nosauxilia a conservar a vida na superfcie deste singular planeta. Para formular e exprimiro contedo dessa sabedoria limitada, o homem inventou, e aperfeioa incessantemente,esses sistemas de smbolos com suas filosofias implcitas a que chamamos idiomas.Cada um de ns , a um s tempo, beneficirio e vtima da tradio lingstica dentro da

    qual nasceu beneficirio, porque a lngua nos permite o acesso aos conhecimentosacumulados oriundos da experincia de outras pessoas; vtimas, porque isso nos leva acrer que esse saber limitado a nica sabedoria que est a nosso alcance; e isso subvertenosso senso da realidade, fazendo com que encaremos essa noo como a expresso daverdade e nossas palavras como fatos reais. Aquilo que, na terminologia religiosa,recebe o nome de "este mundo" apenas o universo do saber reduzido, expresso e comoque petrificado pela limitao dos idiomas. Os vrios "outros mundos" com os quais osseres humanos entram esporadicamente em contato no passam, na verdade, de outrostantos elementos componentes da ampla sabedoria inerente Oniscincia. A maioria das

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    pessoas, durante a maior parte do tempo, s toma conhecimento daquilo que passaatravs da vlvula de reduo e que considerado genuinamente real pelo idioma decada um. No entanto, certas pessoas parecem ter nascido com uma espcie de desvioque invalida essa vlvula redutora. Em outras, o desvio pode surgir em cartertemporrio, seja espontaneamente, seja como resultado de "exerccios espirituais"voluntrios, do hipnotismo ou da ingesto de drogas. Mas o fluxo de sensaes que

    percorre esse desvio, seja ele permanente ou temporrio, no suficiente para quealgum se aperceba "de tudo o que esteja ocorrendo em qualquer lugar do universo"(uma vez que o desvio no destri a vlvula de reduo, que ainda impede que se escoe

    por ela toda a torrente da Oniscincia), embora possibilite a passagem de algo mais esobretudo diferente do que aquelas sensaes utilitrias, cuidadosamenteselecionadas, que a estreiteza de nossas mentes considera uma imagem completa (ou, nomnimo, suficiente) da realidade.

    O crebro dotado de um certo nmero de sistemas enzimticos que servempara coordenar seu funcionamento. Algumas dessas enzimas visam a regular o fluxo deglicose destinado a alimentar as clulas cerebrais. A mescalina, inibindo a produodessas enzimas, diminui a quantidade de glicose disposio de um rgo que tem uma

    fome constante de acar. E o que acontece quando o metabolismo do acar no crebro reduzido pela mescalina? O nmero de casos observados diminuto e, pois, ainda nonos possvel apresentar uma resposta conclusiva. Mas o que tem acontecido maioriadaqueles que tomaram o alcalide, sob controle, pode ser assim resumido:

    1. A capacidade de lembrar-se e de raciocinar corretamente no sofre reduoperceptvel. (Ouvindo os registros de minha conversao, quando sob o efeito da droga,nada me leva a concluir que estivesse mais estulto do que sou sob condies normais.)

    2. As impresses visuais tornam-se grandemente intensificadas e o olhorecupera um pouco da inocente percepo da infncia, quando o senso no se achavadireta e automaticamente subordinado concepo. O interesse pelo espao diminui e aimportncia do tempo cai quase a zero.

    3. Embora o intelecto nada sofra e a percepo seja grandemente aumentada, avontade experimenta uma grande transformao para pior. O indivduo que ingeremescalina no v razo para fazer seja o que for, e considera profundamenteinjustificvel a maioria das causas que, em circunstncias normais, seriam sufi-

    cientes para motiv-lo e faz-lo agir. Elas no o preocuparo, pela simples razode ter ele melhores coisas em que pensar.

    4. Essas melhores coisaspodem ser experimentadas (tal qual se deu comigo) lfora, aqui dentro ou em ambos os mundos o interior e o exterior, simultnea ousucessivamente. Que elas so melhores, isso parece axiomtico a quem quer que tomemescalina, desde que possua um fgado so e uma mente isenta de angstias.

    Esses efeitos da mescalina constituem o tipo de reao que se poderia esperar deuma droga com o poder de reduzir a eficincia da vlvula redutora que o crebro.Quando esse rgo atingido pela carncia de acar, o subnutrido ego se enfraquece,

    j no mais se pode permitir empreender suas tarefas rotineiras e perde todo o interessepor essas relaes de tempo e espao que possuem to grande valor para um organismopreocupado com a vida neste mundo. Assim que a Oniscincia vence a barreira daquelavlvula, comeam a ocorrer todas as espcies de fatos desprovidos de utilidade

    biolgica. Em certos casos, podero dar-se percepes extra-sensoriais. Outras pessoaspodem descobrir um mundo de visionria beleza. Ainda outras tm a revelao da

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    glria, do infinito valor e da significao da existncia primeva, do fato objetivo e noconceituado. No estgio final da despersonalizao h uma "obscura noo" de queTudo est em todas as coisas de que Tudo , em verdade, cada coisa. Isso , no meuentender, o mximo a que uma mente finita pode alcanar em "aperceber-se de tudo oque est acontecendo em qualquer parte do universo".

    A esse respeito, quo significativa a enorme ampliao da percepo das coressob o efeito da mescalina! Para certos animais, a capacidade de distinguir determinadosmatizes possui grande importncia biolgica. Mas, alm dos limites de seu espectroutilitrio, a maior parte dos seres vivos apresenta completa insensibilidade s cores.Assim as abelhas, que consomem quase todo o seu tempo "desflorando as frescasvirgens da primavera", s conseguem distinguir umas poucas cores, conforme VonFrisch o demonstrou. A grande percepo s cores de que o olho humano capaz umluxo biolgico inestimavelmente precioso para ns, como seres intelectuais eespirituais, mas desnecessrio nossa sobrevivncia como animais. A julgar pelosadjetivos que Homero lhes ps nas bocas, os heris da Guerra de Tria malultrapassavam as abelhas em sua capacidade para distinguir cores. Ao menos sob esseaspecto, o progresso da humanidade tem sido prodigioso.

    A mescalina aviva consideravelmente a percepo de todas as cores e torna opaciente apto a distinguir as mais sutis diferenas de matiz que, sob condies normais,ser-lhe-iam totalmente imperceptveis. Poder-se-ia dizer que, para a Oniscincia, oschamados caracteres secundrios das coisas seriam os principais. Contrariamente aLocke, ela consideraria as cores dos objetos como mais importantes e, pois,merecedoras de maior ateno que suas massas, posies e dimenses. Tal como ocorrecom os consumidores de mescalina, muitos msticos percebem cores de uma intensidade

    preternatural, no s em seu mundo interior como tambm no das coisas objetivas queos rodeiam. Fato idntico ocorre com os indivduos suscetveis a ou que sofrem de

    psicoses. H certos mdiuns para os quais as revelaes que se manifestam, por brevesperodos, nos indivduos que ingerem mescalina so uma experincia diria, de todas ashoras, por longos espaos de tempo.

    Podemos agora, aps esta longa mas indispensvel excurso ao reino da teoria,voltar quela maravilhosa realidade quatro ps de cadeira, de bambu, no meio deuma sala. Quais narcisos silvestres de Wordsworth, eles me proporcionaram toda sortede riquezas a inestimvel ddiva de uma concepo nova e direta da verdadeira

    Natureza das Coisas, bem como um tesouro mais modesto, sob a forma decompreenso, particularmente no campo das artes.

    Uma rosa uma rosa, e nada mais que uma rosa; mas esses quatro ps decadeira, alm de ps de cadeira eram So Miguel e todos os anjos. Quatro ou cincohoras aps o incio da experincia, quando comeavam a cessar os efeitos da deficinciade acar no meu crebro, levaram-me para um pequeno passeio pela cidade, no qualestava includa uma visita, ao cair da tarde, ao que era modestamente considerado omaior drugstore do mundo. Nos fundos do estabelecimento, entre brinquedos, cartesde felicitaes e revistas de histrias em quadrinhos, havia por estranho que pudesse

    parecer toda uma prateleira de livros de arte. Apanhei o primeiro volume ao alcanceda mo. Continha obras de Van Gogh, e o quadro que surgiu quando o livro se abriu foi

    A cadeira aquele assombroso retrato de uma realidade metafsica que o pintor loucoviu, com uma espcie de reverente terror, e buscou reproduzir em sua tela. Mas essa erauma tarefa em que at o poder do gnio revelou-se totalmente impotente. Estava claroque a cadeira vista por Van Gogh era, em essncia, a mesma que eu vira. Mas, ainda

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    que incomparavelmente mais real do que aquela que a percepo comum deixa entrever,mesmo assim a cadeira do quadro continuava a ser nada mais que um smbolo do fato,embora extraordinariamente expressivo. O fato fora uma manifesta Peculiaridade; istoera apenas um emblema. Esses emblemas so fontes de conhecimentos seguros sobre a

    Natureza das coisas, e tais conhecimentos podem servir para preparar a mente que osaceita para ilaes imediatas sobre essa mesma natureza. Mas isso tudo. Por

    expressivos que sejam, os smbolos jamais se podem converter nas coisas querepresentam.

    Seria interessante, sob esse aspecto, realizar um estudo das obras de arte queprenderam a ateno dos grandes apreciadores da Peculiaridade. Que tipo de pinturateria Eckhart admirado? Quais quadros e esculturas contriburam para a experinciareligiosa de San Juan de Ia Cruz, de Hakuin, de Huineng ou de William Law? Essasindagaes esto alm de minhas possibilidades de resposta, mas tenho a convico deque a maioria dos grandes amantes da Peculiaridade pouco se preocupou com a arte alguns, recusando-se pura e simplesmente a lev-la em conta; outros, contentando-secom trabalhos que olhos de crtico classificariam como obras de segunda, ou mesmo dedcima classe. (Para uma pessoa, cuja mente transfigurada e transfiguradora capaz de

    descobrir o Tudo em cada isto, a classificao de uma pintura como sendo de primeiraou de dcima categoria, ainda tratando-se de pintura religiosa, ser coisa que lhe h deprovocar a mais soberana indiferena.) A arte, creio eu, interessa apenas a principiantes,ou ento a essas obstinadas mediocridades que decidiram satisfazer-se com acontrafao da Peculiaridade, com smbolos em lugar daquilo que estes significam, como cardpio elegantemente apresentado em vez da prpria refeio.

    Devolvi Van Gogh prateleira e apanhei o volume seguinte. Era um livro sobreBotticelli. Folheei-o. O nascimento de Vnus, que nunca figurou entre minhas telas

    prediletas; Vnus e Marte, aquela beleza to apaixonadamente denunciada pelo pobreRuskin, no ardor de sua enfadonha tragdia sexual; maravilhosamente rica e intricada,seguiu-se a Calnia de Apeles. Por fim, deparei com um quadro menos conhecido e nomuito bom Judite. Minha ateno foi despertada e eu me quedei embevecido, no

    pela plida e neurtica herona ou por sua serva; no ante a hirsuta cabea da vtima oupela paisagem primaveril que formava o fundo do quadro, mas ante a purprea seda docorpete pregueado e das longas saias que o vento ondulava.

    Aquilo era algo que eu j havia visto, e naquela mesma manh, entre as flores eos mveis quando, por acaso, olhei para baixo e minha vista se extasiara ao fixar minhas

    prprias pernas cruzadas. Essas dobras de minhas calas que labirinto de infinitacomplexidade simblica! E a textura da flanela cinzenta quo rica, profunda emisteriosamente suntuosa era ela! E l estava isso tudo, de novo, no quadro deBotticelli!

    Os seres humanos civilizados usam roupas e, pois, no pode haver quadro, sejaele retrato, narrativa mitolgica ou histrica, onde no haja representao de dobras detecido. Mas, embora podendo caber-lhe o mrito da origem, jamais poderemos atribuirao hbito do vesturio o exuberante tratamento que a roupagem vem merecendo comotema principal em todas as artes plsticas. evidente que os artistas sempre lheconferiram um valor intrnseco (ou, qui mais propriamente, sempre se aperceberamdo valor que ela representava para eles). Quem pinta ou esculpe roupagens est pintandoou esculpindo formas que, em ltima instncia, no possuem simbolismo intrnseco formas no condicionadas que os artistas, mesmo os mais fervorosos adeptos donaturalismo, deixam entregues a si mesmas. No comum das Madonas ou dos Apstolos,

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    os elementos estritamente humanos, inteiramente simblicos, constituem cerca de dezpor cento da obra. O restante formado por um sem-nmero de variaes coloridas doinexaurvel tema de linhos e ls amarfanhados. E esses nove dcimos no-simblicos deuma Madona ou um Apstolo podem ser to importantes, qualitativamente, quanto oso em quantidade. No raro, so eles que do o tom do conjunto da obra de arte, queestabelecem a nota mestra dentro da qual o tema est sendo executado, que exprimem a

    disposio de esprito, o temperamento, a atitude do artista diante da vida. A serenidadeestica se revela por superfcies suaves, pelas amplas dobras das roupagens de Piero.Esmagado entre realidade e vontade, entre cinismo e idealismo, Bernini ajusta averossimilhana quase caricatural das faces que modela com vastas abstraes de panoque so a corporificao, em pedra ou bronze, dos eternos lugares-comuns da retrica

    o herosmo, a santidade, a sublimidade a que a humanidade perpetuamente aspira,quase sempre em vo. E h ainda as saias e os mantos perturbadoramente viscerais de ElGreco; as dobras vivas, retorcidas quais chamas, em que Cosimo Tura envolvia seus

    personagens. No primeiro, a espiritualidade tradicional se dilui em annimo anelofisiolgico; debate-se, no segundo, um sentimento torturado ante a reserva e ahostilidade caractersticas deste mundo. Examinemos, agora, as obras de Watteau; seushomens e suas mulheres empenham-se em lutas, aprontam-se para bailes, embarcam,

    em relvas de veludo e sob vetustas rvores, para a Citera dos sonhos de todos osamantes; a imensa melancolia que os envolve, bem como a pungente sensibilidade deseu criador, encontram expresso, no nas aes, atitudes ou semblantes dos

    personagens, mas no relevo e na textura de suas saias de tafet, de seus mantos e gibesde cetim. No h nelas nem uma polegada sequer de superfcies suaves; tudo umemaranhado de sedas em incontveis e minsculas pregas e rugas em incessantemodulao reflexo de uma incerteza interior reproduzida com a perfeita segurana deuma mo de mestre de tom para tom, de uma cor indefinvel para outra. Na vida, "ohomem pe e Deus dispe". Nas artes plsticas, quem prope o assunto; mas quemdispe , em ltima instncia, o temperamento do artista, e em primeira ao menos emretratos, pintura histrica e descritiva as roupagens e tapearias criadas pelo pincelou pelo buril. Esses dois elementos podem fazer com que uma festa galante nos faa virlgrimas aos olhos; que uma crucificao tenha uma tal serenidade que nos alegre aalma; que uma cena de suplcio seja quase que intoleravelmente lbrica; que o retrato deum prodgio de insensatez feminina (penso, neste instante, no incomparvel Mme.

    Moitessier, de Ingres) possa exprimir a mais austera, a mais inflexvel intelectualidade.

    Mas isto no tudo. As roupagens, percebo-o agora, so muito mais que simplesartifcios para a introduo de formas desprovidas de simbolismo nas pinturas eesculturas naturalistas. O que ns outros s vemos sob a influncia da mescalina pode, aqualquer tempo, ser visto pelo artista, graas a sua constituio congnita. Sua

    percepo no est limitada ao que biolgica ou socialmente til. Algo do saberinerente Oniscincia flui atravs da vlvula redutora do crebro e do ego e atinge suaconscincia. Isso lhe d um conhecimento do valor intrnseco de tudo o que existe.

    Tanto para o artista como para quem ingere mescalina, o tecido um hierglifo vivoque representa, de certo modo singularmente expressivo, os insondveis mistrios daexistncia. Ainda mais que a cadeira, embora talvez menos que aquelas floresabsolutamente preternaturais, as dobras de minhas calas de flanela cinzenta estavamimpregnadas de existncia.No sei dizer a que deviam elas sua privilegiada situao.Seria porque as formas assumidas pelas dobras dos tecidos so to esquisitas edramticas que atraem nosso olhar e, assim, produzem esse milagre de pura existnciasobre a ateno? Quem poder dize-lo? Mas importa menos a razo para a experinciado que esta em si mesma. De olhos fitos nas saias de Judite, no maior drugstore do

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    mundo, fiquei sabendo que Botticelli e no somente ele como tambm muitos outros havia contemplado as roupagens e tapearias com os mesmos olhos transfigurados etransfiguradores que eu possua naquela manh. Eles haviam visto o Istigkeit, aTotalidade e o Infinito das dobras de um tecido e haviam empregado ao mximo seutalento para represent-las na tela ou no mrmore. evidente que no poderiam, deforma alguma, triunfar, pois o esplendor e a maravilha da existncia pura pertencem a

    uma ordem superior ao poder de expresso, mesmo da arte mais sublime. Mas, nas saiasde Judite, pude ver claramente aquilo que, fosse eu um pintor de gnio, teria feito comminhas velhas calas de flanela cinzenta. No seria muito sabe-o o cu emcomparao com a realidade, mas bastaria para deliciar geraes e geraes de amantesda arte, para faz-los compreender, um pouco que fosse, o verdadeiro valor daquilo que,em nossa pattica imbecilidade, chamamos simples coisas e desprezamos em troca dateleviso.

    assim que precisamos ver fiquei dizendo enquanto olhava para minhascalas ou relanceava os olhos pelos livros recamados de jias nas estantes e pelos ps deminha cadeira infinitamente mais que vangoghiana. assim que precisamos ver ascoisas tal como elas so! E ainda havia reparos a fazer. Pois se algum visse

    sempre as coisas sob esse aspecto, jamais desejaria fazer algo diferente. Haveria apenasde olhar, de ser to-somente a sublime Desindividualizao da flor, do livro, da cadeira,das calas. Isso bastaria. Mas, nesse caso, e as outras pessoas? E as relaes humanas?

    No registro da conversao daquela manh, encontrei, a cada passo, a repetio dapergunta: "Que me diz das relaes humanas?". Como poderia algum conciliar essainfinita bno de ver as coisas, tal como elas devem ser vistas, com os deverestemporais de agir como se deve agir e sentir como mister que se sinta? precisoque sejamos capazes respondi eu de considerar estas calas infinitamenteimportantes, e os seres humanos

    ainda mais infinitamente importantes. preciso! mas na prtica isso mepareceu impossvel. Essa participao no manifesto esplendor das coisas no deixavalugar, por assim dizer, para as preocupaes comuns, necessrias, com a vida humana e,acima de tudo, para as preocupaes com os indivduos. Pois as pessoas possuemindividualidade e (ao menos sob um aspecto) naquele momento eu no era eu mesmo, aum s tempo percebendo e sendo a Desindividualizao das coisas ao meu redor. Paraessa Desindividualizao recm-nascida, o comportamento, a aparncia, o prprioraciocnio do indivduo que ela momentaneamente deixara de ser, assim como os dosoutros indivduos seus companheiros de at ento , se no lhe eram desagradveis(pois a averso no figurava entre as categorias em termos das quais eu raciocinava),estavam, no entanto, bastante longe de suas cogitaes. Compelido pelo pesquisador aanalisar e relatar o que estava fazendo (e como desejaria ser deixado a ss com aEternidade em uma flor, com o Infinito em quatro ps de cadeira e com o Absoluto nas

    pregas de urnas calas de flanela!), verifiquei que estava, deliberadamente, evitando os

    olhares daqueles que me faziam companhia naquela sala; que, intencionalmente,procurava no tomar conhecimento de sua presena. E, no entanto, um deles era minhaesposa, e o outro, um homem que eu considerava e de quem muito gostava. Mas ambos

    pertenciam a um mundo do qual, naquela ocasio, a mescalina me havia tirado omundo dos personalismos, da dimenso tempo, dos julgamentos morais e dasconsideraes utilitrias; o mundo e era esse aspecto da vida humana que, acima detudo, mais desejava esquecer o mundo da auto-afirmao, da convico, dasupervalorizao da palavra e das noes idolatra-mente cultuadas.

    Nesse ponto da experincia passaram-me s mos uma grande produo em

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    cores do conhecidssimo auto-retrato de Czanne, o busto de um homem cuja cabeaestava coberta por um grande chapu de palha; rosado, de lbios corados, ostentandoopulentas suas negras e dono de olhos escuros e inamistosos. uma obra excelente;mas no era como obra de arte que eu a encarava, naquele instante. Pois a cabeaimediatamente adquiriu relevo e ganhou vida sob a forma de um homenzinho quelembrava um duende, olhando atravs de uma janela que era a pgina diante de mim.

    Comecei a rir. E, quando me perguntaram a razo, disse, e continuei repetindo: Que pretenso! Quem pensa ele que ? Essa exclamao, eu no a

    endereava a Czanne, em particular, mas a toda a espcie humana. Quem pensavameles todos que eram?

    Isso me faz lembrar Arnold Bennett nos Dolomitas disse eu,repentinamente, recordando uma cena que um instantneo feliz imortalizara, cerca dequatro ou cinco anos antes de sua morte, quando tateava atravs de uma trilha gelada emCortina d'Ampezzo. Ao seu redor, a neve virgem; ao fundo, a atrao irresistvel dosrubros despenhadeiros. E l estava o caro, afvel e infeliz Arnold Bennett, exagerando,conscientemente, o papel de seu personagem favorito, corporificando-o ele mesmo. Lvinha ele, vagarosamente, sob o brilhante sol dos Apeninos, os polegares metidos na

    cava do colete amarelo que se avolumava, um pouco mais abaixo, na curva graciosa deuma janela estilo Regncia a cabea jogada para trs, como que tentando vencer umacrise de gagueira, sob a cerlea abbada celeste. J no me lembro de quais tenhamrealmente sido suas palavras; mas seu porte, seu ar e sua atitude pareciam proclamar:"Sou to bom quanto essas montanhas do inferno!". E, de fato, sob certos aspectos, elelhes era infinitamente superior; mas e ele bem o sabia no o era pela formasegundo a qual seu personagem predileto, no reino da fico, gostava de ser.

    Feliz ou infelizmente (dependendo do significado que se der palavra) todos nsexageramos ao viver o papel de nosso personagem favorito. E o fato quase infinitamenteimprovvel de se tratar de Czanne, de pouco lhe valia. Pois o renomado pintor, comseu pequeno conduto para a Oniscincia a burlar a ao da vlvula redutora formada

    pelo crebro e o filtro do ego, era tambm, e to-somente, um duende de grandes suase olhar inamistoso.

    Para descansar, voltei s pregas de minhas calas.

    E assim que precisamos ver as coisas tornei a repetir. E bem que poderiater acrescentado: "Isto o tipo de coisa que precisa ser vista". Coisas sem pretenses,satisfeitas com serem apenas elas mesmas, conformadas com suas peculiaridades, noagindo de per si, no tentando, loucamente, isolar-se do Dharma-Corpreo, emdiablico desafio graa de Deus.

    O que mais se aproximaria disso disse eu seria um Vermeer.

    Sim, um Vermeer. Pois esse misterioso artista foi triplamente bem aquinhoado

    com a viso que identifica oDharma-Corpreo com a sebe ao fundo do jardim; como talento para reproduzir, com a mxima fidelidade, essa viso, dentro das limitaesimpostas pela capacidade humana; com a prudncia para se ater, em suas pinturas, aosaspectos da realidade mais suscetveis de serem reproduzidos. Pois, embora Vermeerrepresentasse seres humanos, sempre foi um pintor de naturezas-mortas. Czanne, quedizia a seus modelos femininos que se esforassem por parecer-se com mas, buscava

    pintar seus retratos dentro do mesmo esprito. Mas suas raparigas com ar-de-maassociam-se mais s idias de Plato que ao Dharma-Corpreo na sebe. Elas so aEternidade e o Infinito, no em areia ou por flores, mas pelas abstraes de alguma

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    espcie de alta geometria. Vermeer jamais pediu a seus modelos que buscassemparecer-se com mas. Ao contrrio, insistia em que fossem o mais femininas possvelmas sempre abstendo-se de se comportarem com infantilidade. Poderiam sentar-se ouficar de p, mas no deveriam apresentar-se com risos zombeteiros ou com arrogncia,

    jamais deveriam rezar ou suspirar por amores ausentes, tagarelar, olhar com inveja osfilhos de outras mulheres, namorar, amar, odiar ou trabalhar. Se fizessem quaisquer

    dessas coisas iriam, indubitavelmente, mostrar-se mais intensamente elas mesmas; masdeixariam, por essa mesma razo, de apresentar sua sublime e essencialDespersonalizao. de Blake a opinio de que as portas da percepo de Vermeerestavam apenas parcialmente limpas. Um nico painel atingira uma transparncia quase

    perfeita; o resto da porta continuava enlameado. A Despersonalizao essencial pode serperfeitamente percebida em coisas e em criaturas vivas, no divisor entre o bem e o mal.No homem, s podemos vislumbr-la quando ele est em repouso, com a mentedesanuviada, o corpo esttico. Nessas circunstncias, Vermeer pde ver a Peculiaridadeem toda a sua celestial beleza pde v-la e, at certo ponto, represent-la em sutil esuntuosa natureza-morta. Vermeer , indubitavelmente, o maior pintor de sereshumanos no estilo natureza-morta. Mas houve tambm outros contemporneos deVermeer na Frana, tais como os irmos L Nain. Eles pretendiam, creio eu, dedicar-se

    pintura descritiva; mas, o que em verdade produziram, foi uma srie de retratos, tiponatureza-morta, nos quais sua aguda percepo do infinito valor de todas as coisas est

    presente, no como nos de Vermeer, por um sutil enriquecimento das cores e texturas,mas por uma intensificao das luzes, uma obsessiva distino das formas, dentro deuma tonalidade austera e quase que monocromtica. De nossos dias Vuillard, o pintorinexcedvel, com suas esplndidas e inesquecveis pinturas do Dharma-Corpreo sob aforma de um quarto de dormir burgus; do Absoluto consumindo-se em chamas no seioda famlia de um comerciante hora do ch, em um jardim suburbano.

    Ce qui fait que 1'ancien handagiste reme L comptoir dont l faste allchait lspassants C'est son jardin d'Auteuil, ou veufs de tout encens, Ls Zinnias ont l'air d'treen tle vemie*

    *O que faz com que o antigo lojista despreze/ O faustoso balco que atraa osfregueses/ seu jardim de Auteuil onde, lisonja imunes,/As znias lembram flores delata envernizada.

    Para Laurent Taillade, o espetculo era simplesmente obsceno. Mas, se o antigocomerciante de material ortopdico se houvesse sentado suficientemente imvel,Vuillard teria visto nele, to-somente, o Dharma-Corpreo; teria pintado, entre asznias, o tanque dos peixinhos dourados, a torre mourisca e as lanternas chinesas da vila

    um recanto do den ao romper do outono.

    E, entretanto, minha pergunta continuava sem resposta. Como conciliar essapercepo aguada com uma justa preocupao pelas relaes humanas, com os deverese as tarefas inadiveis, para no mencionar a caridade e a piedade atuantes? A velhadisputa entre ativos e contemplativos estava sendo renovada e renovada, creio eu,com uma violncia sem precedentes. Pois, at aquela manh, eu s conhecera acontemplao sob suas formas mais humildes e encontradias a divagao do

    pensamento; a arrebatada abstrao na poesia, na pintura ou na msica; a pacienteespera pela inspirao, sem a qual mesmo o mais prosaico escritor no pode pretenderrealizar coisa alguma; como vislumbres acidentais da natureza "de algo muito mais

    profundamente interligado", no dizer de Wordsworth; como o silncio sistemtico queleva, por vezes, noo de um "obscuro saber". Mas, desta feita, conheci a

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    contemplao em sua pujana. Em sua pujana, sim, mas no em toda a sua plenitude.Pois, quando esta atingida, a estrada que leva a Maria inclui a de Marta* e eleva acontemplao, por assim dizer, a seu mais alto poder. A mescalina nos abre o acesso aMaria, mas fecha a porta que leva a Marta. Ela nos permite chegar contemplao, masa uma contemplao que incompatvel com a ao e at mesmo com a vontade de agir,com a prpria idia de ao. Nos intervalos entre suas revelaes, quem toma mescalina

    capaz de sentir que, embora de certo modo tudo tenha a sublimidade que devera ter,por outro lado h nisso qualquer coisa de errado. Seu problema , essencialmente, omesmo com que se defronta o eremita, o arfoat** e, em outro plano, o paisagista e o

    pintor de retratos inanimados. A mescalina jamais poder resolver tal problema; servirapenas para situ-lo, em termos obscuros, para aqueles aos quais ele jamais seapresentou. Sua soluo plena e definitiva s poder ser encontrada por quem esteja

    preparado para reforar a verdadeira Weltanschauung***por meio do comportamentoadequado e de uma vigilncia constante, natural e apropriada. Ao eremita se ope ocontemplativo-ativo, o santo, o homem que, na frase de Eckhart, est pronto a descer dostimo cu para levar de beber a seu irmo doente. Ao arhat, refugiando-se do mundoexterior em um Nirvana inteiramente transcendental, ope-se o Bodhisattva****, paraquem a Peculiaridade e o mundo das contingncias so uma mesma coisa, e para cuja

    piedade sem limites, a cada uma dessas contingncias correspondem outras tantasoportunidades, no s para meditaes transfi-guradoras, como tambm para praticar acaridade mais objetiva. E, no universo da arte, a Vermeer e aos outros pintores deretratos inanimados, aos mestres do paisagismo chins e japons, a Constable e aTurner, a Sisley, Seurat e Czanne, ope-se a arte integral de Rembrandt. Esses sonomes clebres, inacessveis eminncias. Pelo que me toca, nessa memorvel jornada demaio pude to-somente ser grato a uma experincia que me revelou, mais claramente doque eu jamais pudera discernir, a verdadeira natureza do desafio e o cunho inteiramenteemancipador da resposta.

    * Marta e Maria, irms de Lzaro, citadas no Novo Testamento, Evangelho deSo Lucas. Nas alegorias crists, Marta simboliza a vida ativa; Maria, a contemplativa.

    ** Arfoat - monge budista que atingiu a luz; santo budista.

    *** Weltanschauung ("viso do mundo") uma concepo filosfica douniverso como decorrncia do rumo dos acontecimentos no mundo como um todo.

    **** Bodhisattva - santo budista; aquele que, seguindo as pegadas do Buda,dever, em encarnao futura, tornar-se tambm um Buda.

    Seja-me permitido acrescentar, antes de abandonar este assunto, que no hforma de contemplao, mesmo a mais passiva, que no possua seu contedo tico. Nomnimo a metade de toda a moral negativa, e consiste em evitar o erro. O pai-nossocontm menos de cinqenta palavras, e seis delas so dedicadas a pedir a Deus que nonos deixe cair em tentao. O contemplativo-passivo deixa de fazer muitas coisas que

    teria de realizar; mas para se dispor a uma tal atitude, ele precisa abster-se de praticaruma srie de aes que no deveriam ser levadas a efeito. O mal, acentuou Pascal, seriamuito diminudo se os homens aprendessem a permanecer serenamente em seusaposentos. Mas o contemplativo cuja percepo haja sido esclarecida no precisar

    permanecer encerrado em seus aposentos. Poder sair para seus afazeres, toperfeitamente satisfeito em contemplar e em ser uma parte da divina Ordem das Coisas,que nunca ver-se- tentado a entregar-se ao que Traherme chamou de "impurosArtifcios do mundo". Quando nos sentimos como se fssemos os nicos herdeiros douniverso, quando "o mar corre em nossas veias [...] e as estrelas so nossas jias",

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    quando todas as coisas parecem infinitas e sagradas, que motivos poderemos ter para acobia ou a soberba, para a fome de poder ou para as formas mais doentias de prazer?Os contemplativos no so propensos a se tornarem jogadores, alcoviteiros ou brios;como regra, no pregam a intolerncia nem promovem guerras; no so levados aoroubo, fraude ou opresso dos fracos. E, a essas grandes virtudes negativas, podemosainda acrescentar outra que, embora difcil de definir, no s importante como

    tambm positiva. O arhat e o contemplativo sereno podem no praticar a contemplaoem sua plenitude, mas mesmo assim nos podero proporcionar informaesesclarecedoras sobre outra e transcendente regio da mente. E, se praticarem-na comelevao, tornar-se-o os condutos atravs dos quais poder advir uma certa influncia

    benfica, dessa regio ignota, para um mundo de personalidades atormentadas, emconstante agonia por falta desse auxlio.

    Enquanto isso, eu me voltara, a pedido de meu interlocutor, do retrato deCzanne para o que se passava em minha mente ao cerrar os olhos. E o que pude entoobservar foi curiosamente decepcionante: meu campo de viso estava repleto deestruturas de cores vivas, em constante mutao, que pareciam feitas de plstico ou defolha esmaltada.

    Vulgar comentei. Ordinrio. Como os objetos de uma loja americana.Todas essas quinquilharias existiam em um universo acanhado, atulhado.

    E como se algum estivesse, debaixo do convs, em um navio exclamei. Uma loja americana flutuante.

    E, medida que eu a observava, tornou-se bem patente que essa loja americanaflutuante estava, de certa forma, relacionada com as pretenses humanas. Esse interiorsufocante de loja barata embarcada era meu prprio ego; esses vistosos mobilesvulgares, de lata e de matria plstica, eram minhas contribuies pessoais para ouniverso.

    Achei a lio salutar, embora no deixasse de ser constrangedor que ela me

    tivesse sido ministrada nesse momento e sob tal forma. De modo geral, quem tomamescalina descobre um mundo interior to claramente definido, to axiomaticamenteinfinito e sagrado quanto aquele mundo exterior transfigurado que eu havia visto deolhos abertos. A princpio, minha prpria experincia fora diferente. A mescalina me

    proporcionara, temporariamente, o poder de ter vises de olhos cerrados; mas nopudera ou, ao menos naquela ocasio, no o fez revelar-me uma viso interiorremotamente comparvel s minhas flores, cadeira ou s calas de flanela "l de fora".O que ela me permitira perceber, interiormente, no fora o Dharma-Corpreo porintermdio de imagens, e sim minha prpria mente; no um padro de Peculiaridade,mas um conjunto de smbolos em outras palavras, um substituto caseiro dessaPeculiaridade.

    Os indivduos de imaginao frtil so, em sua maioria, transformados emvisionrios pela mescalina. Alguns deles e seu nmero talvez seja bem maior do quegeralmente se admite no necessitam de transformao; so permanentementevisionrios.

    A espcie mental a que Blake pertencia acha-se razoavelmente bem distribuda,mesmo nas sociedades urbano-industriais da atualidade. A singularidade do artista-poetano consiste no fato de, para citar seu Descriptive Catalogue, haver ele realmente visto"aquelas maravilhosas entidades que a Sagrada Escritura denominava Querubins". Noreside em que "estes maravilhosos entes, surgidos em minhas vises, tivessem, alguns

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    deles, cem ps de altura [...] todos repletos de mitolgico e recndito significado". Estapenas em sua habilidade para traduzir, por palavras ou (com um pouco menos de xito)com traos e cores, ao menos certos aspectos de uma experincia algo incomum. Ovisionrio desprovido de talento pode se aperceber de uma realidade interior no menosassombrosa, bela e valiosa que o mundo observado por Blake; mas faltar-Ihe- porcompleto habilidade para exprimir, por meio de smbolos plsticos ou literrios, aquilo

    que viu.Conclui-se perfeitamente, luz dos documentos e rituais religiosos, bem como

    dos monumentos da poesia e das artes plsticas que chegaram at ns, que, na maioriadas pocas e dos lugares, os homens tm atribudo maior importncia a suas visesinteriores que s coisas objetivas que conhecem. Tm julgado que o que vem, quandode olhos cerrados, possui maior importncia espiritual que o visto luz do dia. Qual arazo para isso? A familiaridade gera indiferena, e o problema da sobrevivncia deuma premncia que vai da tediosa rotina tortura. para o mundo exterior que abrimosos olhos todas as manhs, nele que, de bom ou de mau grado, temos de procurar viver.

    No mundo interior no h trabalho nem monotonia. Visitamo-lo apenas em sonhos edevaneios, e sua singularidade tal que nunca encontramos o mesmo mundo em duas

    ocasies sucessivas. Que h, pois, de espantoso em preferirem os seres humanos, via deregra, olhar para dentro de si mesmos, em sua busca do sublime? Isso, de fato, sucedecomo regra geral, mas no necessariamente: no somente em sua religio, comotambm em sua arte, os taostas e os budistas Zen procuravam ir alm de suas vises, aoencontro e atravs do Vazio, at as "dez mil coisas" da realidade objetiva. Graas a suadoutrina da Palavra tornada carne, poderiam os cristos, desde o incio, adotar umaatitude semelhante com relao ao universo que os circundava. Mas, em razo dadoutrina do Pecado Original, viram-se em grande dificuldade para faz-lo. H apenastrezentos anos, uma expresso de completa fuga ao mundo, e mesmo de suacondenao, era no s ortodoxa como compreensvel: "Nada h na Natureza quemerea a nossa admirao, a no ser a encarnao de Cristo". No sculo XVII, essafrase de Lallemant parecia ter sentido. Hoje, encontramos nela a aura da demncia.

    Na China, a ascenso do paisagismo categoria de arte importante ocorreu hum milnio; no Japo, h uns seis sculos; na Europa, h uns trezentos anos. Aidentificao da Divindade com a sebe foi obra desses mestres zen, que consorciaram onaturalismo taosta com o transcendentalismo budista. Foi, pois, apenas no ExtremoOriente que os paisagistas, conscientemente, encararam sua arte como obra religiosa.

    No Ocidente, a pintura religiosa consistia em representar personagens sacros e ilustrartextos sagrados. Os paisagistas tinham-se na conta de secularistas. Hoje reconhecemosem Seurat um dos supremos mestres do que pode ser denominado o paisagismo mstico.E, no obstante, esse homem que era capaz, mais do que outro qualquer, de representaro Impar em sua pluralidade, ficou indignado quando algum lhe elogiou a poesia desuas obras. "Limito-me a aplicar o Sistema", protestou ele.

    Em outras palavras, ele se considerava um praticante do pointillisme* e nadamais. Passagem semelhante conta-se de Constable: Blake, j no fim de sua vida,conheceu-o em Hampstead e examinou alguns de seus esboos. A despeito de seudesprezo pela arte naturalista, o velho visionrio soube dar-lhe o devido valor, embora

    pensasse tratar-se de obra de Rubens. "Isto no desenho", exclamou ele, "isto inspirao!" Ao que Constable lhe teria retrucado, de modo bem caracterstico: "Fi-lo

    para que fosse desenho". Ambos estavam certos. Aquilo era desenho, preciso e fiel, masao mesmo tempo era inspirao inspirao no mnimo to elevada quanto a deBlake. Os pinheiros na Urze foram realmente identificados com a Divindade. O esboo

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    era uma reproduo, necessariamente imperfeita, mas assim mesmo profundamenteimpressionante, do que uma percepo sem peias revelara aos olhos abertos de umgrande pintor. De uma contemplao segundo os moldes de Wordsworth e Whitman,identificando a Divindade com a sebe, e das vises introspectivas, tais como as deBlake, das "maravilhosas entidades", os poetas contemporneos recuaram para umainvestigao do que pessoal, como oposto ao mais do que pessoal, subconsciente, e

    para uma reproduo, em termos altamente abstratos, no dos fatos reais, objetivos, masde meras noes cientficas e teolgicas. Coisa algo semelhante ocorreu no campo dapintura. Nela verificamos uma fuga generalizada da paisagem forma predominantedessa arte no sculo XIX. Essa fuga no se deu para aquele sublime Princpio interior ao qual se achavam ligadas, em sua maioria, as escolas tradicionais do passado , paraaquele Mundo Modelo, onde os homens tm sempre ao seu dispor estas duas matrias-

    primas: mito e religio. No; o que houve foi uma fuga para o Princpio exterior, para osubconsciente individual, para um mundo intelectual mais esqulido e ainda maisestreitamente fechado que o da personalidade consciente. Essas quinquilharias de lata ede plstico, de cores berrantes, onde eu as havia visto antes? Em qualquer galeria de arteonde se exibam as ltimas criaes da arte no-representativa.

    *Tcnica de pintura da escola neo-impressionista, fundada por Seurat, na qualas tintas so aplicadas sobre fundo branco, em pequenos pontos, seguindo um rigorososistema.

    Naquele momento, algum acabava de ligar um fongrafo e de pr um disco noprato. Ouvi com prazer a msica; mas nada h que se equipare viso apocalptica quetive das flores e de minhas calas. Poderia um msico, prodigamente aquinhoado pela

    Natureza, ouvir as revelaes que, para mim, foram exclusivamente visuais? Seriainteressante fazer essa experincia. Entretanto, embora no transfigurada, emboramantendo a qualidade e a intensidade normais, a msica contribuiu, e no pouco, para acompreenso do que se passara comigo e dos problemas mais amplos que essesacontecimentos suscitaram.

    A msica instrumental, por estranho que parea, deixou-me bastante indiferente.O Concerto para piano em d-menor, de Mozart, foi interrompido aps o primeiromovimento e substitudo por um disco de madrigais de Gesualdo.

    Essas vozes disse eu com prazer , essas vozes so uma espcie de ponteque nos permite regressar ao mundo dos homens.

    E como ponte continuaram, mesmo quando cantando as composies maispovoadas de variaes cromticas dentre as obras do prncipe louco. A msicaprosseguiu atravs das frases irregulares ; dos madrigais, jamais batendo na mesma teclaem dois compassos l consecutivos. Em Gesualdo aquele personagem fantstico de

    um melodrama de Webster a desintegrao psicolgica exagerara, levara aoslimites extremos uma tendncia inerente msica modal, em contraposio inteiramente tonai. Da suas obras darem a impresso de terem sido escritas pelo ltimoSchoenberg.

    E no entanto senti-me forado a dizer, enquanto ouvia esses estranhosprodutos de uma psicose da Contra-Reforma atuando sobre um estilo de arte do fim daEra Medieval , e, no entanto, pouco importa que ela seja toda em pedaos. O conjunto catico, mas cada fragmento, de per si, ordenado, a representao de uma OrdemSuperior. Essa Ordem Superior sobrepuja a prpria desintegrao. Sente-se a unidadeat nos fragmentos. Talvez ela seja mais sensvel do que em uma obra inteiramente

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    coerente. Ao menos, no seremos levados a um sentimento de falsa segurana porqualquer impulso meramente humano e artificial. Temos de confiar em nossa percepodireta, de natureza fundamental. Portanto, at certo ponto, a desintegrao pode ter suasvantagens. Mas fora de dvida que ela perigosa; terrivelmente perigosa.Suponhamos que no mais possamos voltar, fugir ao caos...

    Dos madrigais de Gesualdo pulamos, num salto de trs sculos, para Alban Berge sua "Suite Lrica".

    Isto avisei antecipadamente ser o inferno.

    Mas, quando a msica comeou, verifiquei que me enganara. Na verdade, amelodia parecia at alegre. Vindo do fundo do meu subconsciente, o enlevo semultiplicava pelos outros tantos tons da orquestra; contudo, o que realmente meimpressionou foi a incongruncia essencial entre uma desintegrao psicolgica talvezainda mais completa que a de Gesualdo e os prodigiosos recursos, tanto em talentocomo em tcnica, empregados em sua expresso.

    No parece que ele est triste consigo mesmo? comentei

    com zombeteiro desagrado. E logo depois: Katzenmusik!, doutaKatzenmusik!* Finalmente, aps mais uns poucos minutos de tortura: Quem seimporta com quais sejam seus sentimentos? Por que no pode ele dedicar-se a qualqueroutra coisa?

    Como crtica de uma obra indubitavelmente notvel, ela era injusta e parcial,mas no creio que fosse despropositada. Cito-a, no s pelo valor que possa ter, comotambm por ter sido assim que, em um estado de pura contemplao, reagi ante a "SuiteLrica".

    * Literalmente, "msica de gatos"; expresso alem empregada para definiruma msica desagradvel.

    Quando acabou sua execuo, sugeriu-me o pesquisador que passessemos pelo

    jardim. Gostei da idia e, embora meu corpo parecesse ter-se separado quase porcompleto de minha mente (ou, para ser mais preciso, embora minha perceptibilidade dotransfigurado mundo exterior j no mais se fizesse acompanhar da de meu prprioorganismo), do ponto de vista fisiolgico verifiquei ser capaz de levantar-me, abrir a

    porta e sair para o jardim com um mnimo de hesitao. Era, na verdade, estranho sentirque eu no era a mesma coisa que esses braos e pernas l de fora; que esse tronco, esse

    pescoo, essa cabea mesma. Era estranho; mas em breve acostumamo-nos a isso. E,seja como for, o corpo parecia perfeitamente apto a tomar conta de si prprio. Naverdade, ele quem sempre toma conta de si. Tudo o que o ego consciente pode fazer formular desejos, que so ento transmitidos ao corpo por foras que ele controla muito

    pouco e absolutamente no compreende. Quando faz algo mais por exemplo, quandose esfora em demasia, quando se aborrece ou se torna apreensivo sobre o futuro ,

    reduz a eficincia dessas foras e pode mesmo fazer com que o debilitado corpo adoea.Em meu estado, no momento, a perceptibilidade no era encaminhada a um ego; estava,

    por assim dizer, entregue a si mesma. Isso significava que a inteligncia fisiolgica quecontrola o organismo tambm estava entregue a si mesma. Nessa ocasio, aqueleimportuno neurtico que, nas horas de viglia, se esfora por "dirigir o espetculo"estava, felizmente, fora de ao. Transpondo a porta, sa para uma espcie de prgula,em parte coberta por uma roseira, em parte por ripas de uns dois centmetros de largo, aintervalos de um centmetro umas das outras. O sol brilhava, e a sombra das ripasformava um zebrado claro-escuro no cho da varanda, no assento e no encosto de uma

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    cadeira de jardim que se achava prxima casa. Aquela cadeira! Poderei algum diaesquec-la? As alternncias de sombra e luz formavam, sobre a lona de seu estofo,listras de um anil intenso, porm luzente, sucedidas por outras de uma incandescnciato intensamente brilhante que era difcil acreditar no fossem produzidas por chamasazuis. Por um tempo, que me pareceu intensamente longo, fitei-a sem saber, sem mesmodesejar saber que que tinha diante de mim. Em outra ocasio qualquer teria visto

    apenas uma cadeira com barras alternadas de luz e sombra. Mas, no momento, apercepo sensorial dominara a idia. Eu estava to absorto na contemplao, toestupefato pelo que via, que no pude ter conscincia de nada mais. Mobilirio, ripas,luz do sol, sombra tudo isso no passava de nomes e noes; de meras verbalizaes

    para o aproveitamento cientfico ou utilitrio dos resultados. O resultado era essasucesso de portas de fornalha azul-celeste, separadas por insondveis abismos degenciana. Aquilo era indizivelmente maravilhoso; de uma sublimidade que tocava asraias do terrfico. E ento, repentinamente, tive uma vaga noo do que seja sentir-selouco. A esquizofrenia tem seus parasos, de par com seus infernos e purgatrios.Lembro-me do que um velho amigo, de h muito falecido, contou-me sobre a doena daesposa. Um dia, nos primeiros estgios da enfermidade, quando ela ainda desfrutavaintervalos de lucidez, tinha ido visit-la no hospital e dar-lhe notcias dos filhos. Ela o

    ouviu por algum tempo e ento, de sbito, interrompeu-o: como poderia ele perdertempo com um casal de crianas ausentes quando tudo o que verdadeiramenteimportava, ali e naquele instante, era a indizvel beleza dos desenhos que ele criava, emseu casaco marrom de xadrez, a cada movimento de braos? Infeliz! Esse paraso de

    percepo ilimitada, de contemplao pura, parcial, no iria durar. Os intervalos felizestornaram-se mais raros, mais breves, at que, finalmente, desapareceram de vez; srestou o horror...

    Muitos dos que ingerem mescalina experimentam apenas as sensaes celestiaisda esquizofrenia. A droga s leva o purgatrio ou o inferno queles que tenham tido umacesso recente de ictercia ou que sofram de depresses peridicas ou ansiedade crnica.Se, como acontece com outras drogas de poder incomparavelmente menor, a mescalina

    fosse reconhecidamente txica, sua ingesto seria suficiente para provocar ansiedade.Mas o indivduo razoavelmente saudvel sabe antecipadamente que, para si, essealcalide ser completamente incuo e que seus efeitos tero cessado aps oito ou dezhoras, sem deixar sensaes desagradveis nem, conseqentemente, nsias por novasdoses. Fortalecido por essa convico, ele pode entregar-se experincia sem temores

    em outras palavras, sem qualquer predisposio para converter um ensaio de umasingularidade sem precedentes, inumano, em algo de aterrador, de verdadeiramentediablico.

    Diante de uma cadeira que parecia um Juzo Final ou, para ser mais preciso,ante um Juzo Final que, depois de longo tempo e com considervel dificuldade, pudereconhecer como sendo uma cadeira , eu me senti, de uma hora para outra, no limiar

    do pnico. Aquilo, percebi repentinamente, estava indo muito longe. Longe demais,muito embora marchasse para uma beleza sempre maior, para um sentido cada vez maisprofundo. O temor, analisando-o retrospectivamente, foi o de me ver esmagado,desintegrado sob uma presso de realidade muito superior que uma mente,acostumada a viver a maior parte do tempo em um confortvel mundo de smbolos,talvez pudesse suportar. Na literatura da experincia religiosa, abundam referncias aossofrimentos e terrores que esmagam os que se defrontam, com demasiada rapidez, facea face com qualquer manifestao do Mysterium Tremendum. Em linguagem teolgica,esse temor funo da incompatibilidade entre o egotismo do homem e a pureza divina;

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    entre a mesquinhez auto-agravada do homem e o Deus infinito. Segundo Boheme eWilliam Law, podemos dizer que a Divina Luz, em toda a sua intensidade, s pode ser

    percebida pelas almas pecadoras sob a forma de chamas do purgatrio. Doutrinapraticamente idntica a exposta noLivro tibetano dos mortos,pelo qual a alma que sedesprega foge atormentada da Serena Luz do Vazio, e at mesmo das Luzes menosintensas, indo lanar-se, precipitadamente, na confortadora escurido da personalidade,

    reencarnando-se em um recm-nascido, transformando-se at em animal, em um infelizfantasma ou indo ter ao inferno. H de preferir qualquer coisa ao gneo refulgir daimplacvel Realidade qualquer coisa!

    O esquizofrnico uma alma, no s impura, como tambm desesperadamentedesgostosa com sua situao. Seu tormento consiste na incapacidade de proteger-secontra a realidade, seja ela interior ou exterior (como faz normalmente o indivduo so)refugiando-se no universo do senso comum, por ns mesmos construdo esse mundoestritamente humano das noes teis, dos simbolos compartilhados pelos demais, dasconvenes socialmente aceitveis. O esquizofrnico qual homem sob a influnciacontnua da mescalina e,pois, incapaz de deixar de experimentar uma realidade que eleno pode suportar por lhe faltar pureza; que no pode interpretar por ser ela o mais

    inflexvel dos fatos fundamentais e que, por jamais permitir-lhe encarar o mundo comolhos simplesmente humanos, fora-o a interpretar suas incessantes singularidades, suacandente intensidade de valores, como a manifestao da maldade humana ou atcsmica, levando-o s mais desesperadas contramedidas que vo da violncia assassina,de um lado da escala, at a catatonia ou suicdio psicolgico , do outro. E, uma veziniciada a descida pela rampa infernal, ningum poder mais deter-se. Isso, nomomento, era por demais evidente para mim.

    Quem enveredar pelo caminho errado disse eu em resposta s perguntasde meu inquiridor encontrar, em tudo o que acontecer, uma prova da conspiraoque se articula contra si. Tudo servir de confirmao. A prpria respirao estarfazendo parte do sinistro plano.

    Com que ento voc acha que sabe onde se aloja a loucura? Minha respostafoi um convicto e profundo "Sim".

    E no poderia control-la?

    No; no poderia faz-lo. Quem comea com medo e dio, como principaispremissas, ter de ir at o fim.

    Voc seria capaz perguntou-me minha esposa de fixar sua atenonaquilo que oLivro tibetano dos mortos chama de Serena Luz?

    Fiquei em dvida.

    Seria ela capaz de manter o mal afastado, caso voc pudesse encar-la? insistiu ela. Ou ser que voc no poderia fit-la?

    Pensei por algum tempo para poder responder e, por fim, disse:

    Talvez; talvez o conseguisse. Mas s se houvesse l algum que pudesseesclarecer-me a respeito da Serena Luz. No possvel fazer-se isso a ss. Da a razo,creio eu, para o ritual tibetano assentar-se algum ao nosso lado, durante todo otempo, para dizer o que vai ocorrendo.

    Depois de escutar a gravao dessa parte d