A.conferencia.dos.Passaros_Farid Ud-Din Attar

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    FARIDUD-DINATTAR

    ACONFERNCIA

    DOS

    PSSAROS

    Crculo do Livro1988

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    CIRCULO DO LIVRO S.A.Caixa postal 7413 01051 So Paulo, BrasilEdio integralTtulo do original: The conference of the birds Copyright datraduo inglesa 1954 C. S. Nott Traduo: Octavio MendesCajado, a partir da traduo inglesa de C. S. NottCapa: layout de Natanael Longo de OliveiraTraduo cedida para o Crculo do Livro por cortesia da EditoraCultrix Ltda., mediante acordo com Routledge & Kegan PaulLtd.Venda permitida apenas aos scios do Crculo Composto pelaLinoart Ltda.Impresso e encadernado pelo Crculo do Livro S.A.246810975388 90 91 89

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    A conferncia dos pssaros

    A conferncia dos pssaros (Mantiq ut-tair)foiescrita pelo poeta persa do sculo XII Farid ud-Din

    Attar, um dos maiores sufis de todos os tempos.Conquanto pouco se sai ba, com certeza, a respeito dasua vida, parece que nasceu em 1120, perto de Nishapur, no noroeste da Prsia. Durante quasequarenta anos viajou por muitos pases, estudando emmosteiros e colecionando os escritos de sufis devotos, juntamente com lendas e histrias. Diz-se que possuaum conhecimento mais profundo das idias sufistas doque qualquer outra pessoa do seu tempo. A traduo para o ingls de C. S. Nott baseia-se na conhecidaedio francesa, em prosa, de Garcin de Tassy, averso que melhor transmite o sabor, o esprito e osensinamentos do poema de Attar.

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    Sumrio

    Prembulo

    I. InvocaoII. Renem-se os pssaros

    III. A conferncia dos pssarosEplogo

    AttarUma nota sobre os sufisGlossrio

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    Prembulo

    O grande poema filosfico-religioso de Attar, Mantiq ut-tair , foi composto provavelmente na segundametade do sculo XII. Desde esse tempo tem surgido,quase todos os anos, uma nova edio num ou noutro pasdo Oriente Prximo.

    A traduo foi empreendida, em primeiro lugar, paraentretenimento meu e de alguns amigos; mas, como averso mais completa que j apareceu em ingls, talvezinteresse a um pblico maior. Vali-me, na maior parte doscasos, da traduo de Garcin de Tassy para o francs,cotejada com textos rabes, hindus e turcos (Paris, 1863).Consultei tambm um texto persa, com a ajuda de um sufiamigo, e as trs tradues inglesas existentes, todas muitoresumidas. A primeira, em versos, feita por EdwardFitzgerald, a mais sentimental; a segunda uma traduomuito literal de 1 170 dsticos dos 4 674mathanawi originais, levada a cabo por Ghulam Muhammad AbidShaikh na ndia, em 1911; e a terceira (a melhor das trs),em prosa, a de Masani, que s traduziu a metade dooriginal; esse trabalho foi impresso e publicado emMangalor, na ndia, em 1924, tendo sido as folhasimportadas e publicadas pela Oxford University Press. Fazmuito tempo que as trs esto esgotadas. A traduo deGarcin de Tassy completa e, como ele mesmo diz, eu afiz to literal quanto possvel, sem comprometer-lhe a

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    inteligibilidade, conservando o sabor, o esprito e osensinamentos do poema de Attar.

    Deixei de lado a segunda metade da invocao excluda do texto hindu e abreviada no turco. O eplogo,totalmente omitido nos textos hindu e turco, varia emoutros manuscritos; dele inclu apenas a primeira parte,visto que o resto, que consiste apenas em anedotas, surgecomo anticlmax. Foram tambm eliminadas oucondensadas umas poucas anedotas na histria, ou por parecerem iterativas, ou pela obscuridade do sentido. Mastudo o que se relaciona com a conferncia, a fala, alinguagem, o discurso ou o parlamento (como variadamente chamado) dos pssaros, constante domanuscrito original, est aqui.

    Todas as notas sobre o texto esto includas no

    glossrio, a fim de no interromper a leitura; entre elas seincluem algumas de Tassy. Para as compilar e para redigir as notas sobre Attar e os sufis consultei, entre outras fontes,O dicionrio do Islame A enciclopdia do Islam. Naenumerao das sees, segui a traduo de Tassy dosmanuscritos originais. Se o leitor passar os olhos peloglossrio antes de ler o livro, entender melhor muitas

    aluses; embora, como observa o prprio Tassy, o sentidoseja, s vezes, obscuro.Os desenhos a pincel da srta. Adamson baseiam-se

    nos de um velho manuscrito persa de Mantiq ut-tair .C. S. Nott

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    I. Invocao

    Louvado seja o Santo Criador, que colocou o seutrono sobre as guas e fez todas as criaturas terrestres. AosCus concedeu o domnio e Terra, a dependncia; aos

    Cus deu o movimento e Terra, o descanso uniforme.Ergueu o firmamento acima da terra como umatenda, sem colunas para sustent-la. Em seis dias criou ossete planetas e com duas letras criou as nove cpulas dosCus.

    No princpio, iluminou as estrelas para que, noite,os Cus pudessem jogar triquetraque.

    Dotou a rede do corpo de diversas propriedades edespejou poeira na cauda do pssaro da alma.

    Fez lquido o Oceano como sinal de servido, e oscumes das montanhas cobrem-se de gelo com medo dele.Secou o leito do mar e de suas pedras tirou rubis, e de seusangue, almscar.

    As montanhas concedeu picos a modo de adagas, evalas a modo de cintos; por isso que elas erguem acabea, orgulhosas.

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    s vezes, faz cachos de rosas saltarem da face dofogo. s vezes, joga pontes de um lado para outro sobre aface das guas.

    Fez um mosquito picar Nenrode, seu inimigo, quesofreu durante quatrocentos anos.

    Em sua sabedoria, fez a aranha tecer sua teia para proteger o maior dos homens.

    Espremeu a cintura da formiga para que parecesseum fio de cabelo, e f-la companheira de Salomo.

    Deu-lhe os mantos negros dos abssidas e um trajede brocado destecido digno do pavo.

    Quando percebeu que o tapete da natureza eradefeituoso, emendou-o convenientemente.

    Tingiu a espada com a cor da tulipa; e do vapor fezuma cama de nenfares.

    Embebeu torres de terra em sangue a fim de poder tirar deles cornalinas e rubis.

    O Sol e a Lua um de dia, outra noite prosternaram-se no p em adorao; e da sua revernciaque lhes vem o movimento. Foi Deus quem estendeu o diaem alvura, e foi ele quem dobrou a noite e a enegreceu.

    Ao papagaio deu um colar de ouro; e da poupa fezum mensageiro do Caminho.

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    O firmamento como um pssaro que rufla as asasdo jeito que Deus lhe ensinou, batendo a cabea na Portacomo se fosse um martelo.

    Deus fez o firmamento para girar a noite segue-seao dia, e o dia, noite.

    Quando ele sopra o barro, cria o homem; e, com um pouco de vapor, forma o mundo.

    s vezes, faz o cachorro ir frente do viageiro; svezes, usa o gato para mostrar o Caminho.

    s vezes, d o poder de Salomo a um cajado; svezes, concede eloqncia formiga.

    De um cajado faz uma serpente; e, por meio de umcajado, faz jorrar uma torrente de gua.

    Colocou no firmamento o orbe do orgulhoso, e prende-o com ferro quando, incandescente, ele mngua.

    Tirou um camelo de uma rocha e fez mugir o bezerro de ouro.

    No inverno, espalha a neve de prata; no outono, oouro das folhas amarelas.

    Estende uma coberta sobre o espinho; e tinge-o coma cor do sangue.

    Ao jasmim d quatro ptalas e pe na cabea datulipa um gorro vermelho.

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    Depe uma coroa de ouro sobre a testa do narciso; edeixa cair prolas de orvalho dentro do seu santurio.

    idia de Deus a mente peleja em vo, a razosucumbe; merc de Deus, o cu gira, a terra cambaleia.Desde o dorso do peixe at a lua, cada tomo umatestemunha do seu Ser.

    Tanto as profundezas da terra como as culminnciasdo cu prestam-lhe sua homenagem particular.

    Deus produziu o vento, a terra, o fogo e o sangue, e por eles anunciou o seu segredo.

    Tomou do barro, amassou-o com gua e, depois dequarenta manhs, colocou nele o esprito que vivifica ocorpo.

    Deus deu-lhe inteligncia para que ele pudesse ter odiscernimento das coisas.

    Quando viu que a inteligncia tinha discernimento,deu-lhe conhecimento, para que ele pudesse pesar e ponderar. Mas quando o homem entrou na posse das suasfaculdades, confessou sua impotncia e foi dominado peloassombro, ao passo que seu corpo se entregou a atosexteriores. Amigos ou inimigos, todos inclinam a cabeasob o jugo que Deus, em sua sabedoria, impe; e, o que surpreendente, ele nos vigia a todos.

    No princpio dos sculos, Deus usou as montanhascomo pregos para fixar a Terra; e lavou o rosto da Terracom a gua do Oceano. Em seguida, colocou a Terra no

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    lombo de um touro, o touro num peixe, e o peixe no ar.Mas, em que descansava o ar? Em nada. Mas nada nada e tudo o que nada. Admira, pois, as obras do Senhor,embora Ele mesmo as considere nada. E, visto que sexiste a sua Essncia, certo que no h nada seno Ele. Oseu trono est sobre as guas, e o mundo est no ar. Masdeixa as guas e o ar, pois tudo Deus; o trono e o mundoso apenas um talism. Deus tudo, e as coisas s tmvalor nominal; o mundo visvel e o mundo invisvel soapenas Ele mesmo.

    No h ningum seno Ele. Infelizmente, porm,ningum pode v-lo. Os olhos so cegos, ainda que omundo seja alumiado por um sol brilhante. Se te fosse possvel vislumbr-lo, perderias o juzo, e se o vissescompletamente perder-te-ias a ti.

    Todos os homens que tm conscincia da prpriaignorncia arregaam a fralda das vestes e dizem, sinceros: tu, que no te deixas ver, embora nos faas conhecer-te,todo mundo tu, e ningum seno tu manifesto. A almase esconde no corpo, e tu te escondes na alma. tu, queests escondido naquilo que se esconde, s mais do quetudo. Todos se vem em ti e te vem em tudo. Visto que a

    tua morada est cercada de guardas e sentinelas, como poderemos aproximar-nos da tua presena? Nem a mentenem a razo tm acesso tua essncia, e ningum conheceteus atributos. Por seres eterno e perfeito, ests sempreconfundindo o sbio. Que mais poderemos dizer, se no podes ser descrito?

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    meu corao, se desejas chegar ao princpio dacompreenso, caminha com cuidado. Para cada tomo huma porta diferente, e para cada tomo h um caminhodiferente que conduz ao Ser misterioso de que estoufalando. Para nos conhecermos precisamos viver umacentena de vidas. Mas precisas conhecer a Deus por Elemesmo e no por ti; Ele que abre o caminho que conduz aEle, no a sabedoria humana. O conhecimento dEle noest na porta dos retricos. O conhecimento e a ignornciaso neste caso a mesma coisa, pois no explicam nemdescrevem. As opinies dos homens sobre isso surgemapenas na imaginao deles; e absurdo tentar deduzir alguma coisa do que dizem: bem ou mal, eles o disseram desi mesmos. Deus est alm do conhecimento e alm daevidncia, e nada pode dar idia da sua Sagrada Majestade.

    vs, que dais valor verdade, no procureis umsmile; a existncia desse Ser sem igual no admitenenhum. Uma vez que no lhe compreenderam a maismnima partcula, os profetas e os mensageiros celestesinclinaram a testa at o p, dizendo: No te conhecemoscomo realmente deves ser.

    Quem sou eu, pois, para vangloriar-me de conhec-

    lo? filho ignorante do primeiro homem, o califa de Deusna terra, forceja por participar do conhecimento espiritualde teu pai. Todas as criaturas que Deus arranca do nada para a sua existncia prostram-se diante dele. Quando quiscriar Ado, f-lo sair de trs de uma centena de vus, edisse-lhe: Ado, todas as criaturas me adoram; s

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    adorado por tua vez. O nico que fugiu a essa adorao foitransformado de anjo em demnio. Amaldioado, no teveconhecimento do segredo. Enegreceu-se-lhe o rosto, e eledisse a Deus: tu, que possuis a independncia absoluta,no me desampares.

    Respondeu-lhe o Altssimo: tu, que estsamaldioado, sabe que Ado , ao mesmo tempo, meuadministrador e rei da natureza. Caminha hoje diante dele eamanh queima para ele oispand .

    Quando a alma se juntou ao corpo fez parte do todo;nunca houve to maravilhoso talism. Como a alma tinhauma poro do que superior e o corpo uma poro do que inferior, formavam uma mistura de barro pesado eesprito puro. Por essa mistura, tornou-se o homem o maissurpreendente dos mistrios. No conhecemos nem

    compreendemos coisa alguma do nosso esprito. Queresdizer alguma coisa sobre isso? Seria melhor que te calasses.Muitos conhecem a superfcie deste mundo, mas nadaentendem das suas profundidades; e o mundo visvel otalism que o protege. Mas esse talism de obstculoscorpreos acabar se quebrando. Encontrars o tesouroquando o talism desaparecer; a alma se manifestar

    quando o corpo for posto de lado. Mas tua alma outrotalism; outra substncia deste mistrio. Percorre, pois, ocaminho que eu te indicar, mas no peas explicaes.

    Neste vasto oceano, o mundo um tomo, e otomo, um mundo. Quem sabe o que vale mais aqui, acornalina ou o seixo?

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    Arriscamos nossa vida, nossa razo, nosso esprito,nossa religio, para compreender a perfeio de um tomo.Costura os teus lbios e nada perguntes sobre o empreo ouo trono de Deus. Ningum conhece realmente a essncia dotomo pergunta a quem quiseres. Os Cus so comouma cpula s avessas, sem estabilidade, que se move eno se move ao mesmo tempo. Um est perdido nacontemplao desse mistrio vu sobre vu; outro como a figura pintada na parede, e outro s conseguemorder o dorso da prpria mo.

    Pensa nos que entraram no caminho do Esprito.Reflete no que aconteceu a Ado; calcula os anos que ele passou a lastimar-se. Contempla o dilvio de No e tudo oque esse patriarca sofreu nas mos dos maus. ConsideraAbrao, cheio do amor a Deus: sofreu torturas e foi lanadoao fogo. V o desventurado Ismael, oferecido em sacrifcio pelo amor divino. Volta-te para Jac, que ficou cego detanto chorar pelo filho. Olha para Jos, admirvel tanto no poder como na escravido, no poo e na priso. Lembra-tedo infeliz J, estendido no cho, presa de vermes e lobos.Pensa em Jonas, que, tendo-se desviado do Caminho, foitransferido da lua para a barriga do peixe. AcompanhaMoiss desde o nascimento: uma caixa serviu-lhe de bero,e o fara o exaltou. Repara em Davi, que fez para si um peito de armas e cujos suspiros derreteram o ferro como sefosse cera. Atenta para Salomo, cujo imprio foisenhoreado por umdjim. No te esqueas de Zacarias, cujoamor a Deus era to ardente que ele permaneceu em

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    silncio quando o mataram; e Joo Batista, desprezado perante o povo, e que teve a cabea posta numa bandeja.Pasma diante do Cristo ao p da cruz, quando se salvou dasmos dos judeus. E, finalmente, pondera em tudo o que oChefe dos Profetas sofreu com os insultos e injrias dosmaus.

    Depois disso, achas que ser fcil chegares aoconhecimento das coisas espirituais? Significa nada mais enada menos do que morrer para tudo. Que posso dizer mais, se no h mais nada a dizer, e no sobrou um rosasequer na roseira! Sabedoria! No s mais que umacriana que mama; e a razo dos velhos e experientes sedesgarra nesta busca. Como serei eu, nscio, capaz dechegar Essncia? E ainda que chegue, como serei capazde transpor-lhe a porta? Sagrado Criador! Vivifica-me oesprito! Crentes e descrentes esto igualmentemergulhados no sangue, e minha cabea gira como os cus. No estou desesperanado, mas estou impaciente.

    Meus amigos! Somos vizinhos uns dos outros; euquisera repetir-vos meu discurso dia e noite, para que nodeixsseis, nem por um momento, de ansiar por sair procura da Verdade.

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    II. Renem-se os pssaros

    Benvinda sejas, Poupa! tu, que foste guia do reiSalomo e o verdadeiro mensageiro do vale, que tiveste a boa fortuna de chegar aos confins do reino de Sab! Tuafala gorgeada com Salomo foi deliciosa; por teres sido suacompanheira granjeaste uma coroa de glria. Precisas pr a

    ferros o demnio, o tentador e, feito isso, entrars no palcio de Salomo. Lavandisca, que te pareces com Moiss! Levanta

    a cabea e faze soar a charamela, para celebrar o verdadeiroconhecimento de Deus. Como Moiss, viste o fogo delonge; s, de fato, um pequeno Moiss no monte Sinai.Meu discurso sem palavras, sem lngua, sem som;compreendo-o, pois, sem mente, sem ouvido.

    Benvindo sejas, Papagaio! Em teu belo manto ecolar de fogo, o colar se ajusta a um habitante do mundoinferior, mas o manto digno do Cu. Pde Abrao safar-se do fogo de Nenrode? Quebra a cabea de Nenrode etorna-te amigo de Abrao, que era amigo de Deus. Quandote tiveres libertado das mos de Nenrode, veste o manto deglria e no temas o colar de fogo.

    Benvinda sejas, Perdiz! tu, que andas com tantagraa e te comprazes em voar sobre as montanhas doconhecimento divino! Ergue-te em alegria e reflete nos benefcios do Caminho. Bate com o martelo na porta da

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    casa de Deus; e derrete, humilde, as montanhas dos teusdesejos perversos para deixar sair o camelo.

    Saudaes, Falco Real! tu, que tens a vista penetrante, quanto tempo permanecers to violento eapaixonado? Finca tuas garras na letra do amor eterno, masno rompas o selo enquanto no chegar a eternidade.Mistura o esprito razo e v a eternidade anterior e a posterior como uma s. Quebra tua vil carcaa e instala-tena caverna da unidade, que Maom ir ter contigo.

    Saudaes, Codorna! Quando ouves em teuesprito oalast do amor, o teu corpo de desejo responde:bal , com desprazer. Consome o teu corpo de desejo comoo burro de Cristo e, logo, como o Messias, inflama-te como amor do Criador. Queima esse burro e toma o pssaro doamor, para que o Esprito de Deus possa chegar felizmente

    a ti.Saudaes, Rouxinol do jardim do Amor! Desfere

    tuas notas plangentes causadas pelas feridas e dores doamor. Arranca do corao meigos lamentos, como Davi.Descerra tua garganta melodiosa e canta as coisasespirituais. Com tuas canes, mostra aos homens overdadeiro Caminho. Torna o ferro do teu corao molecomo a cera e sers como Davi, ardente no amor de Deus.

    Saudaes, Pavo do jardim das Oito Portas! Tu teafligiste por causa da serpente de sete cabeas, por cujointermdio foste expulso do den. Se te livrares da serpentedetestvel, Ado te levar com ele ao Paraso.

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    Saudaes, Excelente Faiso! Enxergas o que estmuito longe e percebes o manancial do corao imerso nooceano de luz enquanto permaneces no poo da escurido ena priso da incerteza. Sai do poo e ergue a cabea para otrono divino.

    Saudaes, meiga Rolinha, que emites docesgemidos! Saste contente e voltaste com a tristeza nocorao para uma priso to estreita quanto a de Jonas. tu, que vagueias para l e para c como um peixe, podeslanguir com malevolncia? Corta a cabea desse peixe para poderes alisar tuas penas nos pncaros da lua.

    Saudaes, Pombo! Entoa tuas notas para que eu possa espalhar tua volta sete chapas de prolas. Visto queo colar da f te envolve o pescoo, no te ficaria bem ser infiel. Quando entrares no caminho da compreenso, Khizr

    te trar a gua da vida.Benvindo sejas, Falco! Tu, que alaste vo e,

    depois de te rebelares contra o teu amo, curvaste a cabea!Agenta-te convenientemente. Ests amarrado ao corpodeste mundo e, assim, longe do outro. Quando estivereslivre dos mundos, descansars na mo de Alexandre.

    Benvindo sejas, Pintassilgo! Vem com alegria.Anseia por agir e vem como o fogo. Quando tiveresrompido teus vnculos, a luz de Deus se manifestar cadavez mais. Visto

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    que o teu corao conhece os segredos de Deus, sfiel. Quando te houveres aperfeioado deixars de existir.Mas Deus subsistir.

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    III. A conferncia dos pssaros

    1 Abre-se a conferncia

    Todos os pssaros do mundo, conhecidos e

    desconhecidos, estavam reunidos. Disseram eles:Nenhum pas do mundo carece de um rei. Como sed, ento, que o reino dos pssaros no tenha um dirigente?Esse estado de coisas no pode continuar. Precisamoscongregar nossos esforos e sair procura de um soberano; pois nenhum pas pode ter uma boa administrao e uma boa organizao sem um rei.

    Principiaram, pois, a pensar em como planejar a busca. Emocionada e cheia de esperana, a Poupa adiantou-se e foi postar-se no meio dos pssaros reunidos emassemblia. Trazia no peito o ornamento que lhesimbolizava o ingresso no caminho do conhecimentoespiritual; a crista na cabea era como a coroa da verdade, eela possua o conhecimento do bem e do mal.

    Queridos pssaros, principiou, sou a que estempenhada na guerra divina, a mensageira do mundoinvisvel. Tenho o conhecimento de Deus e dos segredos dacriao. Quando algum carrega no bico, como eu, o nomede Deus, Bismillah, h de ter, por fora, conhecimento de

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    muitas coisas ocultas. Meus dias, contudo, passo-os naintranqilidade, e no me ocupo de pessoa alguma, poisestou inteiramente ocupada com o amor ao rei. Sou capazde encontrar gua por instinto e conheo muitos outrossegredos. Falo com Salomo, e sou a primeira entre seusseguidores. espantoso que ele no tenha perguntado nem procurado pelos que se achavam ausentes do seu reino, e,no entanto, quando fiquei longe dele por um dia, envioumensageiros a todos os lugares; e como ele no pode ficar sem mim nem por um momento, meu valor estconfirmado para sempre. Carreguei-lhe as cartas e fui suacompanheira e confidente. O pssaro que est sendo procurado pelo profeta Salomo merece ter uma coroa nacabea. Como pode arrastar as penas no p o pssaro bem-falado de Deus? Durante anos jornadeei por mar e por terra,sobrevoei montanhas e vales. Cobri imensa extenso notempo do dilvio; acompanhei Salomo em suas viagens emedi os limites do mundo.

    Conheo bem o meu rei, mas, sozinha, no posso planejar encontr-lo. Abandonai vossa timidez, vossa presuno e vossa descrena, pois quem converte em luz a prpria vida est liberto de si mesmo; est liberto do bem edo mal no caminho do amado. Sede generosos com a vida.Ponde os ps na terra e parti, alegres, para a corte do rei.Temos um rei de verdade, que vive atrs das montanhaschamadas Kaf. Chama-se Simurgh e o rei dos pssaros.Est perto de ns, mas ns estamos longe dele. O stio quehabita inacessvel, e nenhuma lngua consegue

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    pronunciar-lhe o nome. Diante dele pendem cem mil vusde luz e treva, e nos dois mundos ningum tem o poder dedisputar-lhe o reino. Ele o senhor soberano e banha-se na perfeio da sua majestade. No se manifesta abertamentenem mesmo no local da sua habitao, e a esta nenhumconhecimento e nenhuma inteligncia podem chegar. Ocaminho desconhecido, e ningum possui constncia para procur-lo, embora milhares de criaturas passem a vidaanelando por isso. Nem mesmo a alma mais pura capazde descrev-lo, nem pode a razo compreend-lo: essesdois olhos esto cegos. No dado ao sbio descobrir-lhe a perfeio nem ao homem de entendimento perceber-lhe a beleza. Todas as criaturas tm desejado chegar a essa perfeio e a essa beleza pela imaginao. Mas como palmilhar o caminho com o pensamento? Como medir a lua pelo peixe? Destarte, milhares de cabeas movem-se paral e para c, como a bola no jogo de plo, e s se ouvemlamentaes e suspiros de desejo. Muitas terras e maresesto no caminho. No imagineis que o percurso seja curto;e cumpre ter um corao de leo para percorrer essa estradainslita, pois ela muito longa e o mar fundo. Anda-selaboriosamente num estado de assombro, s vezes sorrindo,chorando s vezes. Quanto a mim, sentir-me-ei feliz se

    descobrir, pelo menos, um vestgio dele.Isso seria, com efeito, alguma coisa, mas viver sem

    ele uma desgraa. O homem no precisa proteger suaalma do amado, mas precisa estar preparado para lev-la corte do rei. Lavai as mos desta vida se quiserdes ser

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    chamados homens de ao. Por vosso amado, renunciai vida a que tanto quereis, como homens dignos. Se vossujeitardes com graa, o amado dar a vida por vs.

    Primeira manifestao do Simurgh

    Espantoso! A primeira manifestao do Simurghverificou-se na China, no meio da noite. Uma de suas penascaiu na China e sua fama encheu o mundo. Todos fizeramum desenho da pena e dela formaram seu prprio sistemade idias, do que resultou carem numa confuso. A penaainda est na galeria de quadros daquele pas; da o dito:Busca o conhecimento at na China!

    No fora essa manifestao e no se teria feito tanto barulho no mundo em torno do misterioso Ser. Este sinal de

    existncia um testemunho de glria. Todas as almaslevam uma impresso da imagem da pena. Visto que a suadescrio no tem ps nem cabea, nem princpio nem fim, j no e necessrio falar sobre ela. Agora, se algum de vsestiver disposto a enfrentar a estrada, preparai-vos e pondeos ps no Caminho.

    Assim que a Poupa terminou, os pssaros se

    puseram a discutir, emocionados, a glria desse rei, e,ansiando por t-lo como seu prprio soberano, mostraram-se todos impa cientes por partir. Resolveram ir juntos; cadaqual se tornou amigo do outro e inimigo de si mesmo. Masquando comearam a compreender quo longa e penosaseria a viagem, hesitaram e, apesar da aparente boa

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    vontade, entraram a escusar-se, cada qual de acordo com oseu tipo.

    2O Rouxinol

    O amoroso Rouxinol foi o primeiro a adiantar-se,quase fora de si de paixo. Cada uma das mil notas do seu

    cantar extravasava emoo; e cada qual encerrava ummundo de segredos. Quando ele cantava esses mistrios, os pssaros silenciavam.

    Conheo os segredos do amor, disse. Repito anoite inteira meus cantos amorosos. No haver um Daviinfeliz para quem eu possa cantar os salmos ansiosos deamor? Por minha causa emite a flauta seus meigosqueixumes e o alade, seus lamentos. Crio um tumultoentre as rosas e no corao dos amantes. Ensino sempremistrios novos e, a cada instante, repito novos cantos detristeza. Quando o amor me subjuga o corao, meu canto como o suspiroso mar. Quem me ouve deixa de lado arazo, ainda que figure entre os sbios. Quando me separode minha querida Rosa fico desolado, deixo de cantar e no

    conto a ningum meus segredos. Meus segredos no soconhecidos de todos; s a Rosa os conhece com certeza.Estou to enamorado dela que no penso sequer na minhaexistncia; pois s penso na Rosa e no coral das suas ptalas. A jornada em demanda do Simurgh est acima dasminhas foras; o amor da Rosa basta ao Rouxinol. para

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    mim que ela floresce com suas cem ptalas; que mais, portanto, posso desejar? A Rosa que hoje se enflora estcheia de desejo e sorri para mim com alegria. Quandomostra o rosto sob o vu, sei que o mostra para mim. Como pode, pois, privar-se o Rouxinol, nem que seja por uma snoite, do amor de sua feiticeira?

    3 A Poupa

    A Poupa replicou: Rouxinol, tu, que serias capaz de ficar para trs,

    deslumbrado pela forma exterior das coisas, no te deleitesmais com um apego to ilusrio. O amor da Rosa tem muitos espinhos; ela te perturbou e dominou. Embora seja bela,sua beleza logo se esvai. Quem procura a prpria perfeiono deve deixar-se escravizar por um amor to fugaz.Embora o sorriso da Rosa te desperte o desejo, ele s teencher os dias e as noites de lstimas. Abandona a Rosa eenrubesce-te por ti mesmo: pois ela se ri de ti a cada nova primavera e depois j no sorri.

    A Poupa conta a histria da princesa e do dervixe

    Um rei possua uma filha linda como a lua, que eraamada de todos. Seus olhos lnguidos e a suaveembriaguez da sua presena despertavam paixo. Tinha orosto alvo como a cnfora, e seus cabelos negros recendiam

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    a almscar. A inveja dos seus lbios ressecava um rubi damais pura gua, ao passo que o acar se derretia neles devergonha. Por vontade do destino, um dervixe a viu, e o po que trazia lhe caiu das mos. Ela passou por ele comouma chama e, ao passar, riu-se. Ao v-lo assim, o dervixecaiu ao cho, quase sem vida. No conseguia descansar nem de dia nem de noite e chorava sem parar. Quando pensava no sorriso dela, derramava lgrimas como asnuvens derramam chuva. Esse amor desvairado durou seteanos, durante os quais ele viveu na rua com os cachorros.Afinal, os criados dela resolveram mat-lo. Mas a princesa,falando-lhe em segredo, disse:

    Como possvel que haja relaes ntimas entremim e ti? Vai-te incontinenti ou sers morto; no fiquesnem por mais um minuto minha porta, mas levanta-te evai. O pobre dervixe replicou:

    No dia em que me apaixonei por ti deixei de preocupar-me com a vida. Milhares como eu se sacrificam pela tua beleza. Visto que teus homens esto dispostos amatar-me injustamente, responde a s uma pergunta: Por que sorriste para mim no dia em que te tornaste a causa daminha morte?

    nscio, volveu ela, quando vi que estavas a pique de te humilhares, sorri de piedade. Posso sorrir de piedade, mas no de escrnio.

    Dito isso, desvaneceu-se como um penacho defumaa, deixando o dervixe desolado.

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    O PapagaioVeio depois o Papagaio, com acar no bico,envergando uma roupa verde e trazendo ao pescoo umcolar de ouro. O Falco no passava de um mosquito aolado do seu esplendor: o tapete verde da terra o reflexodas suas penas, e suas palavras so acar destilado.Ouam-no: Homens vis com corao de ferro fecharam-

    me numa gaiola por ser eu to encantador. Enclausuradonesta priso, ambiciono a fonte da gua da imortalidadeguardada por Khizr. Como ele, visto-me de verde, pois souum Khizr entre os pssaros. Eu quisera ir fonte dessagua, mas uma mariposa no tem foras para alar-se grande casa de Simurgh; basta-me a primavera de Khizr.

    Retrucou a Poupa: tu, que no tens idia da felicidade! Aquele que

    no est disposto a renunciar vida no homem. A vidate foi concedida para que possas, por um instante, ter umdigno amigo. Comea a percorrer o Caminho, pois no snenhuma amndoa, s apenas a casca. Entra na companhiade homens dignos e segue livremente o Caminho deles.

    O louco de Deus e Khizr

    Havia um homem louco de amor a Deus. Disse-lheKhizr:

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    homem perfeito, queres ser meu amigo? Ointerpelado retrucou:

    Tu e eu no somos compatveis, pois bebestegrandes sorvos da gua da imortalidade, de modo queexistirs para sempre, ao passo que eu desejo renunciar vida. No tenho amigos e nem sei como sustentar-me. Eenquanto te ocupas em preservar tua vida, sacrifico a minhatodos os dias. melhor que eu te deixe, como os pssarosescapam da armadilha; por isso, adeus.

    5O Pavo

    Em seguida veio o Pavo, com penas de cem como direi? de cem mil cores. Exibia-se, virando-se deum lado para outro, como se fosse uma noiva.

    O pintor do mundo, jactou-se ele, pegou na moo pincel dodjimpara modelar-me. Mas se bem eu seja umGabriel entre os pssaros, minha sina no ser invejado.Eu me dava bem com a serpente no paraso terreal, e por isso fui ignominiosamente escorraado de l. Os queconfiavam em mim privaram-me de uma posio deconfiana, e meus ps foram minha priso. Mas estousempre espera de um guia benevolente que me conduza para fora desta escura morada e me leve s manseseternas. No espero chegar ao rei de que falais, bastar-me-chegar ao seu porto. Como podeis esperar que me esforce

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    por alcanar o Simurgh se j vivi no paraso terreno? Notenho outro desejo seno voltar a morar l. Nada mais temqualquer sentido para mim.

    Redargiu a Poupa: Ests te desviando doverdadeiro Caminho. O palcio deste rei muito superior ao teu paraso. No podes fazer nada melhor do que teesforares por alcan-lo. a morada da alma, aeternidade, o objeto de nossos verdadeiros desejos, amorada do corao, a sede da verdade. O Altssimo umvasto oceano; o paraso da bem-aventurana terrena no passa de uma gotinha; tudo o que no for esse oceano serloucura. Se podes ter o oceano, por que procuras uma gotado aljfar vespertino? Aquele que partilha dos segredos dosol deve, acaso, perder tempo com um grozinho de poeira?O que tem tudo preocupa-se com a parte? Ocupa-se a almados membros do corpo? Se queres ser perfeito busca otodo, elege o todo, s total.

    O mestre e o discpulo Um discpulo perguntou ao mestre:Por que foi Ado obrigado a sair do Paraso? O

    mestre respondeu:Quando Ado, a mais nobre das criaturas, entrou no

    Paraso, ouviu uma voz vibrante vinda do mundo invisvel: vs, que estais atados ao paraso terrestre por umacentena de laos, sabei que priva de tudo o que existevisivelmente aquele que, nos dois mundos, estiver

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    identificado com o que surge entre mim e ele, de modo quevenha a atar-se apenas a mim, seu verdadeiro amigo. Parao amante, cem mil vidas nada so sem o amado. Quemviveu para alguma coisa que no fosse Ele, ainda que setratasse do prprio Ado, foi expulso. Os habitantes doParaso sabem que a primeira coisa a que devem renunciar o corao.

    6O Pato

    Envergando o seu manto mais belo, o Pato saiu,tmido, da gua e subiu at a assemblia.

    Ningum jamais falou a uma criatura mais lindanem mais pura do que eu, disse ele. A cada hora fao asablues costumeiras, e depois estendo sobre a gua otapete da orao. Que pssaro capaz de viver e mover-sena gua como eu? Nisto possuo um poder maravilhoso.Entre os pssaros sou um penitente de vista clara e roupaslimpas; e vivo num elemento puro. Nada me mais proveitoso do que a gua, pois nela encontro meu alimentoe nela tenho minha morada. Se me vexam dificuldades,

    lavo-as na gua. guas claras alimentam a corrente em quevivo, no amo a terra seca. Assim sendo, se o meu nicocuidado a gua, por que haveria eu de deix-la? Tudo oque vive vive pela gua. Como poderei cruzar os ares evoar at o Simurgh? Como haver algum como eu, que se

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    contenta com a superfcie da gua, de ter a ambio de ver o Simurgh?

    Contraveio a Poupa: tu, cujo deleite reside na gua, que te ocupa toda

    a vida! Modorras, indolente, ali mas l vem uma onda ete leva de roldo. A gua s boa para os que tm boacompostura e o rosto limpo. Se assim s, muito bem! Mas por quanto tempo permanecers limpo e puro como a

    gua?

    A histria do homem piedoso

    Algum perguntou a um santo idiota: Quais so osdois mundos que sempre nos ocupam o pensamento?

    E o idiota respondeu: Tanto o mundo superior quanto o inferior so como a gota dgua, que e no . Foiuma gota dgua que se manifestou no princpio, e depoisassumiu inmeras formas encantadoras. Todas asaparncias so como a gua. Nada mais duro do que oferro e, no obstante isso, ele sabe que se origina da gua.Mas nada do que tem por base a gua, incluindo o ferro, mais real do que o sonho. A gua no estvel.

    7 A Perdiz

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    A Perdiz aproximou-se a seguir, graciosa masenfatuada. Acanhada, levanta-se do seu tesouro de prolasem suas vestes de aurora. Com os olhos orlados de sanguee o bico vermelho, voa com a cabea ligeiramente virada,carregando o cinto e a espada. Disse ela:

    Gosto de errar por entre as runas, pois amo as pedras preciosas. Elas me acenderam um fogo no corao,e isso me satisfaz. Quando ardo em desejo por elas, as pedras que engoli como que se tingem de sangue. Muitasvezes, porm, vejo-me entre pedras e fogo, inativa e perplexa. meus amigos, vede como vivo! Ser possveldespertar algum que dorme sobre pedras e engolecascalho?

    Meu corao est ferido por uma centena de dores porque meu amor s pedras preciosas me prendeu

    montanha. O amor s outras coisas transitrio; o reino das jias eterno, pois elas so a essncia eterna da montanha.Conheo as montanhas e as pedras preciosas. Com meucinto e minha espada estou sempre cata do diamante, eainda no descobri uma substncia de natureza maissublime do que as pedras preciosas nem a prola to bela. Ademais, o caminho para o Simurgh difcil, e meus

    ps esto presos s pedras como se estivessem enterradosno lodo. Como poderei esperar chegar corajosamente presena do poderoso Simurgh com a mo na cabea e os ps no barro? Descobrirei pedras preciosas ou morrerei.Minha nobreza evidente, e quem no pensa como eu nomerece considerao.

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    Acudiu a Poupa: tu, que tens as cores de todas as pedras, mancas um pouco e ds desculpas coxas. O sanguedo corao mancha-te as garras e o bico, e tua busca teavilta. As jias no so mais do que pedras coloridas, e, noentanto, o amor delas te endurece o corao. Sem as suascores, no passariam de seixozinhos ordinrios. Quem temo perfume no procura a cor; quem possui a essncia no adeixa pelo brilho da forma exterior. Procura a verdadeira jia de boa qualidade e no te contentes com a pedra.

    A anel de Salomo

    Nenhuma pedra foi to famosa quanto a do anel deSalomo, embora fosse muito simples e no pesasse maisdo que meio daneque. Mas quando Salomo fez dela umselo, toda a terra ficou sob o seu imprio. Estabeleceu-se-lhe o domnio, e sua lei se estendeu at os horizontesdistantes. Conquanto o vento lhe carregasse a vontade atodos os quadrantes, ele s possua uma pedra de meiodaneque. E disse:

    J que o meu reino e o meu domnio dependemdesta pedra, daqui por diante ningum ter tamanho poder.

    Embora Salomo tenha se tornado um grande rei custa do seu selo, este lhe atrasou o progresso no caminhoespiritual; e ele chegou ao Paraso do den quinhentos anosdepois dos outros profetas. Se uma pedra foi capaz de surtir esse efeito em relao a Salomo, que no poderia ela fazer a um ser como tu, pobre Perdiz? Afasta o corao das jias

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    comuns. Procura a jia verdadeira e continua no encalo doBom Joalheiro.

    8O Humay

    Agora era o Humay que se erguia diante daassemblia, o Doador da Treva cuja sombra confere pompa

    aos reis. Por isso recebeu o nome de Humayan, ofelizardo, visto que de todas as criaturas a maisambiciosa. E disse:

    Pssaros da terra e do mar, no sou uma ave comovs. Move-me alta ambio, e, para satisfaz-la, separei-medas outras criaturas. Sujeitei o co do desejo, portanto souFeridon e Jamshid dignificados. Erguem-se reis sobinfluncia da minha sombra, mas os homens que tm anatureza dos mendigos no me agradam. Dou um osso aoco do meu desejo e ponho meu esprito no seguro contraele. Como podem os homens voltar o rosto quele cujasombra cria reis? Toda gente procura abrigo debaixo dasminhas asas. Necessito, porventura, da amizade do nobreSimurgh se tenho a realeza ao meu dispor?

    Redargiu a Poupa: escravo do orgulho! Noestendas mais a tua sombra e no te vanglories mais de ti. Neste momento, longe de conferir poder a reis, pareces umcachorro entretido com um osso. No consinta Deus que ponhas um Chosres no trono. Mas supondo que a tua

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    sombra entronize governantes, amanh eles sero presa doinfortnio e despojados da realeza, ao passo que, se nuncativessem visto a tua sombra, no teriam de enfrentar umajuste de contas to terrvel no ltimo dia.

    Mahmud e o sbio

    Um homem piedoso, que estava no verdadeiro Caminho,viu em sonhos o sulto Mahmud e disse-lhe:

    auspicioso rei, como vo as coisas no Reino daEternidade?

    Ao que o sulto replicou:Espanca-me o corpo, se quiseres, mas deixa a

    minha alma em paz. No digas nada, e parte, pois aqui nose fala em realeza. Meu poder era apenas vaidade e presuno, fantasia e erro. Pode a soberania exaltar um punhado de terra? A soberania pertence a Deus, Mestre doUniverso. Agora que me dei conta de minhas fraquezas ede minha impotncia, envergonho-me de minha realeza. Sequiseres dar-me um ttulo, d-me o de atormentado. Deus o Rei da Natureza, por isso no me chames de rei. Oimprio pertence a ele; e eu seria feliz agora se fosse umsimples dervixe na terra. Oxal tivesse ele uma centena de poos em que pudesse enfiar-me para que eu nunca fosseum soberano. Fora melhor ter sido respigador nummilharal. Chama Mahmud de escravo. D minhas bnosa meu filho Masud, e dize-lhe: Se tiveres entendimento,

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    toma ensino com o estado de teu pai. Que sequem as asas eas penas daquele Humay que lanou sua sombra sobremim!

    9O Falco desculpa-se

    Veio, a seguir, o Falco, de cabea erguida e porte

    de soldado. E disse:Eu, que me deleito na companhia de reis, no douateno a outras criaturas. Cubro os olhos com um capelo para poder pr os ps na mo do rei. Estou perfeitamenteadestrado nas regras do proceder polido e pratico aabstinncia como qualquer penitente, de sorte que, levado presena de um rei, cumpro minhas obrigaes exatamentecomo se espera que eu as cumpra. Por que haveria eu dever Simurgh, ainda que fosse em sonhos? Por que haveriade correr desatinadamente para ele? No me sinto chamadoa participar dessa jornada. Satisfao-me com um petiscodas mos do rei; sua corte tudo o que quero. Quem gozados favores reais v realizado o seu desejo; e para ser agradvel ao rei, basta-me voar atravs dos vales sem

    limites. No tenho outro desejo seno passar a vidafestivamente deste modo esperando pelo rei ou caando para agradar-lhe.

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    Resposta da Poupa

    Disse a Poupa: tu, que ests apegado forma exterior das coisase no curas dos valores essenciais, o Simurgh um ser cujarealeza lhe assenta bem porque nico no poder. Nenhumrei verdadeiro exercita nesciamente a sua vontade. O reiverdadeiro criterioso e magnnimo. Conquanto possaamide ser justo, o rei terreno tambm pode ser culpado de

    injustia. Quanto mais perto estivermos dele, tanto maisdelicada ser a nossa posio. O crente no pode deixar deofender o rei, de modo que sua vida est, no raro, em perigo. Visto que se compara o rei ao fogo, mantende-vosdistantes! vs, que tendes vivido ao p de reis, cuidado!Prestai ateno a isto: Era uma vez um nobre rei que tinhaum escravo cujo corpo se diria feito de prata. Amava-o

    tanto que no podia separar-se dele nem por um minuto.Deu-lhe os mais belos trajes e colocou-o acima dos seusiguais. As vezes, porm, o rei divertia-se disparando setas;colocava uma ma na cabea do favorito e usava-a comoalvo. E quando o rei desfechava o tiro, o escravo ficavaamarelo de medo. Um dia, algum lhe perguntou:

    Por que teu rosto tem a cor do ouro? No s ofavorito? Por que, ento, essa palidez mortal?

    E o escravo respondeu:Se o rei me atingisse em vez de atingir o alvo, diria:

    Este escravo a coisa mais intil que h na minha corte; mas quando a flecha atinge o alvo, todos atribuem o

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    feito sua percia. Pelo que me toca, nesta penosa situao,s me resta esperar que o rei continue a atirar bem!

    10 A Gara

    A Gara chegou toda apressada e ps-se, de pronto,a falar de si:

    Minha linda casa fica beira do mar, entre aslagoas, onde ningum me ouve cantar. Sou to inofensivaque ningum se queixa de mim. Triste e melanclicaquedo-me, pensativa, beira do mar salgado, com ocorao cheio de desejo da gua, pois se no houvessenenhuma que seria de mim? Mas como no sou das quemoram no mar, bem possvel que eu morra um dia na praia, com a boca seca. Conquanto as guas fervam e asondas venham quebrar-se a meus ps, no posso engolir uma s gota; entretanto, se o oceano viesse a perder um pouco da sua gua, meu corao arderia de aflio. Parauma criatura como eu, a paixo pelo mar bastante. Notenho foras que me permitam sair em busca do Simurgh, por isso peo que me dispensem. Como poderia algum

    como eu, que busca apenas uma gota dgua, atingir possivelmente a unio com o Simurgh?Disse a Poupa: ignorante do mar, no sabes que

    ele est cheio de crocodilos e outras criaturas perigosas? Asvezes sua gua amarga, s vezes salgada; s vezes

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    calma, s vezes turbulenta; est sempre mudando, nunca estvel; s vezes flui, s vezes reflui. Muitos grandes foramengolidos pelo seu abismo. O mergulhador nas profundezas prende a respirao para no ser vomitado como uma hastede palha. O mar um elemento sem lealdade. No te fiesnele, pois poder acabar te afogando. inquieto por causado amor que dedica ao amigo. As vezes, rola grandesvagalhes, s vezes ruge. J que o mar no encontra o quedeseja, como encontrars nele um lugar de descanso para ocorao? O oceano um riacho que se ergue no caminhoque conduz

    ao amigo; por que, ento, ficarias aqui contente eno forcejarias por ver o rosto do Simurgh?

    O sbio e o oceano

    Um sbio que tinha por hbito ponderar nosignificado das coisas dirigiu-se ao Oceano e perguntou-lhe por que usava vestimentas azuis, j que o azul era a cor doluto, e por que fervia sem fogo.

    O Oceano respondeu ao homem contemplativo:Sinto-me perturbado porque estou separado do meu

    amigo. Em virtude da minha insuficincia, no sou dignodele, por isso visto roupas azuis como sinal do remorso queme tortura. Na minha aflio, as praias dos meus lbiosesto secas, e em razo do fogo do meu amor estoualvoroado. Pudesse eu encontrar uma s gota da guacelestial do Kausar e estaria de posse da porta da vida

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    eterna. A mngua dessa gota, morrerei de desejo, como osmilhares de outros que perecem no caminho.

    11 A Coruja

    Adiantou-se a Coruja com ar perplexo e foi logodizendo:

    Escolhi para morar uma casa em runas e que estcaindo aos pedaos. Nasci entre runas e nelas me aprazo mas sem beber vinho. Conheo centenas de lugareshabitados, mas alguns se acham em estado de confuso eoutros em estado de dio. Quem quiser viver em paz dever procurar as runas, como fazem os loucos. S me sintodeprimida entre elas por causa do tesouro oculto. O amor ao tesouro arrasta-me para l, pois ele se acha entre asrunas. Alm disso, posso esconder minha busca ansiosa eespero encontrar um tesouro que no esteja protegido por nenhum talism; se o meu p topar com algum, estarrealizado o desejo do meu corao. Acredito que o amor doSimurgh no seja uma fbula, pois no o sentem osdesatentos; mas sou fraca e estou longe de ser constante no

    seu amor, visto que s amo meu tesouro e minhas runas.A Poupa respondeu-lhe: tu que ests bbeda do amor das riquezas, supe

    que encontres um tesouro! Pois bem, morrers sobre ele, etua vida se ter esvado sem que tenhas alcanado o alto

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    propsito de que, afinal, ests ciente. O amor do ouro uma caracterstica dos pagos. Aquele que faz do ouro umoutro outro Thar. No te tornars, acaso, igual a umsamiri dos israelitas, que fabricaram o bezerro de ouro? No sabes que todo aquele que se deixa corromper peloamor ao ouro, ter, no dia da ressurreio, o rosto mudado,qual moeda falsa, e ficar com cara de camundongo?

    O avarentoUm bbedo escondeu um cofre de ouro e, logo

    depois, morreu. Um ano mais tarde, seu filho viu-o emsonhos, na forma de um camundongo, com os olhos rasosdgua, correndo de um lado para outro no local em que oouro fora escondido. Perguntou-lhe o filho:

    Que ests fazendo aqui?Escondi um pouco de ouro e vim ver se algum odescobriu, retrucou o pai.

    Mas por que assumiste a forma de umcamundongo?, volveu o filho.

    Porque a alma do homem que renuncia a tudo por

    amor ao dinheiro assume essa forma, respondeu o pai.Atenta para mim, filho, e tira proveito do que ests vendo.Renuncia ao amor ao ouro!

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    12

    O Pardal Veio ento o Pardal, de corpo frgil e terno corao,tremendo da cabea aos ps, como se fora uma chama. Edisse:

    Estou atnito e desanimado. No sei como existir esou frgil como um fio de cabelo. Ningum me ajuda, e notenho sequer a fora de uma formiga. Tampouco possuo penugem ou penas nada. Como h de um covarde comoeu viajar at onde est o Simurgh? Um simples pardalnunca o faria. No faltam no mundo os que procuram essaunio, mas ela no se coaduna com um ser como eu. Nodesejo encetar uma jornada trabalhosa como essa por algoque jamais alcanarei. Se eu partisse em busca da corte doSimurgh acabaria morrendo no caminho. Portanto, j queno estou, de modo algum, em condies de levar a cabo oempreendimento, contentar-me-ei com procurar aqui o meuJos no poo. Se o encontrar e tirar dali, alarei vo comele do peixe lua.

    A Poupa recalcitrou: tu que em teu desalento s por vezes triste, por

    vezes alegre, no me iludem tuas alegaes artificiosas.Pequeno hipcrita! At na humildade mostras uma centenade sinais de vaidade e orgulho. Nem mais uma palavra!Fecha o bico e pe-te a caminho. Se morreres, morrerscom os outros. E no te compares a Jos!

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    A histria de JacQuando levaram Jos, seu pai, Jac, perdeu a vista conta das lgrimas de sangue que vertiam seus olhos. Onome de Jos no lhe saa dos lbios. Por fim, o anjoGabriel foi ter com ele e ameaou-o:

    Se tornares a pronunciar, mais uma vez, a palavraJos, riscarei o teu nome do rol dos profetas emensageiros.

    Quando Jac recebeu essa mensagem de Deus, onome de Jos foi levantado da sua lngua, mas ele nocessou de repeti-lo no corao. Certa noite, vendo Jos numsonho, quis cham-lo, mas lembrou-se da ordem de Deus,golpeou o peito e arrancou um suspiro triste do corao

    imaculado. Voltou, ento, Gabriel:Deus disse que, se bem no tenhas pronunciado onome Jos com a lngua, suspiraste e com isso destrustetodo o efeito do teu arrependimento.

    13

    Discusso entre a Poupa e os pssarosTodos os pssaros, um depois do outro, comearam,

    ento, a apresentar justificaes tolas. Desculpa-me, leitor,se no as repito, pois isso levaria muito tempo. Mas como

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    podem tais pssaros enredar o Simurgh em suas garras?Assim sendo, a Poupa continuou o seu discurso:

    Quem prefere o Simurgh prpria vida precisalutar corajosamente consigo mesmo. Se o teu estmago nodigere sequer um gro, como participars do festim doSimurgh? Quando hesitas diante de um golezinho de vinho,como bebers a grande taa, paladino? Se te falta aenergia de um tomo, como encontrars o tesouro do sol?Se podes afogar-te numa gota dgua, como irs das profundezas do mar s alturas celestiais? Este no umsimples perfume, nem tarefa para quem no tem o rostolimpo.

    Quando os pssaros acharam que o discursoterminara, voltaram a falar Poupa:

    Tu te encarregaste de mostrar-nos o caminho, tu, omelhor e mais poderoso dos pssaros. Mas somos frgeis,sem penugem nem penas, e, assim, como conseguiremosalcanar o Sublime Simurgh? S por um milagre. Dize-nosalguma coisa sobre esse maravilhoso Ser, nem que seja por meio de um smile, seno, cegos que somos, nada perceberemos do mistrio. Se houvesse alguma relaoentre esse Ser e ns, ser-nos-ia muito mais fcil encetar a jornada. Mas do jeito que o vemos, ele pode comparar-se aSalomo, e ns, a formigas mendicantes. Como h de uminseto no fundo de um poo alar-se at o grande Simurgh?Ser a realeza o quinho do mendigo?

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    Resposta da Poupa

    Disse a Poupa: pssaros sem aspirao! Como poder saltar vontade o amor num corao privado de sensibilidade?Considerar a questo dessa maneira, que parece agradar-vos, no redundar em nada. Quem ama parte de olhosabertos rumo sua meta e brinca com a prpria vida.

    Quando o Simurgh se apresentou fora do vu,radioso como o sol, projetou milhares de sombras sobre aterra. E quando olhou para essas sombras, surgiram pssaros em grande quantidade. Portanto, os diferentestipos de aves que se vem no mundo so apenas a sombrado Simurgh. Sabei, pois, ignorantes, que, quandocompreenderdes isso, compreendereis exatamente a vossarelao com o Simurgh. Refleti sobre o mistrio, mas no oreveleis. Quem adquire este conhecimento afunda-se naimensidade do Simurgh, embora no deva pensar, por isso,que Deus.

    Se vos tornardes isso de que vos falo no sereisDeus, mas estareis mergulhados em Deus. Um homemassim imerso transubstancia-se? Quando compreenderdesde quem sois a sombra tornar-vos-eis indiferentes vida ou morte. Se o Simurgh no pretendesse manifestar-se, noteria lanado a sua sombra; se tivesse desejado permanecer escondido, sua sombra no teria aparecido no mundo. Tudoo que produzido por ela torna-se visvel. Se o vossoesprito no estiver afinado para ver o Simurgh, tampouco

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    ser o vosso corao um espelho brilhante, ajustado pararefleti-lo. Na verdade, nenhum olho capaz de contemplar-lhe a beleza e maravilhar-se dela, nem capaz deentendimento; no podemos sentir-nos, em relao aoSimurgh, como nos sentimos em relao beleza destemundo. Mas por sua graa abundante ele nos deu umespelho onde ele se reflete, e esse espelho o corao.Olhai para o vosso corao e nele vereis a imagem doSimurgh.

    O rei encantador

    Era uma vez um rei dotado de encanto e belezaincomparveis. A aurora era um relampejar do seusemblante; o anjo Gabriel, uma emanao da suafragrncia; e o reino da beleza, o Coro dos seus segredos.Sua fama espalhava-se por todo o mundo, e todas ascriaturas o amavam. Quando passava pela cidade a cavalo,cobria o rosto com um vu carmesim; mas at os queolhavam para o vu perdiam a cabea, e os que lhe pronunciavam o nome de repente cortavam a lngua.Milhares morriam por amor a ele; outros davam a prpriavida, crentes de que era melhor morrer naquele instante doque viver cem anos longe dele. Assombroso! No podiamsuportar-lhe a presena por muito tempo e, contudo, no podiam viver sem ele. Entretanto, ele se mostrava aos queconseguiam suportar-lhe a vista; os que no o conseguiamtinham de contentar-se com ouvir-lhe a voz. Em vista disso,o rei ordenou que se confeccionasse um espelho para que

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    seu rosto fosse visto indiretamente. O espelho foi colocadono alto do palcio, e o rei ia mirar-se nele para que todos pudessem ver-lhe o reflexo.

    O mesmo sucede conosco. Se amas a beleza do teuamigo, entende que o teu corao o espelho, v nele o teurei na manso da sua glria. As aparncias todas nada maisso do que a sombra misteriosa do Simurgh. Se ele tehouvesse revelado a sua beleza, tu a terias reconhecido nasua sombra. Ainda que existissem trinta pssaros Simurgh,ou quarenta, s lhe verias a sombra. O Simurgh no sedistingue da prpria sombra, e afirmar o contrrio laborar em erro; um e outro existem juntos. Busca a reunio; oumelhor, deixa a sombra e descobrirs o Segredo; se tiveressorte vers o Sol na sombra; mas, se te perderes na sombra,como realizars a unio com o Simurgh?

    Mahmud e Ayaz

    Perseguido pelo mau-olhado, Ayaz precisou deixar acorte do sulto Mahmud. Desesperado, caiu em profundamelancolia, deitou-se na cama e ps-se a chorar. QuandoMahmud soube disso, ordenou a um dos seus serviais:

    Vai ter com Ayaz e dize-lhe: Sei que ests triste,mas eu tambm estou no mesmo estado. Embora meucorpo esteja longe de ti, meu esprito est perto. tu queme amas, no me ausento de ti nem por um momento. Comefeito, o mau-olhado fez mal afligindo uma criatura toencantadora! E, logo, acrescentou:

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    Vai incontinenti, vai como o fogo, vai como a guaque jorra, vai como o raio antes do trovo!

    Partiu o servial como o vento e, num instante,chegou aonde estava Ayaz. Mas ali j encontrou o sulto,sentado diante do escravo. E, tremendo, disse para si: Queinfelicidade ter de servir a um rei! Meu sangue, semdvida, ser derramado hoje! Em seguida, dirigindo-se aosulto, afirmou:

    Asseguro-vos que no parei nem por um momento,nem sentado nem de p; como foi, ento, que o rei chegouaqui antes de mim? O rei no me acredita? Se fuinegligente de algum modo, penitencio-me.

    No s Mahram, respondeu Mahmud, como poderias, pois, viajar como eu? Vim por um caminhosecreto. Quando pedi notcias de Ayaz, meu esprito jestava com ele.

    14 A Poupa lhes fala da viagem proposta

    Quando ela concluiu o seu discurso, os pssaros

    comearam a entender alguma coisa dos mistrios antigos eda relao entre eles e o Simurgh. Mas conquantosentissem o desejo de fazer a viagem, hesitavam em partir, pois as dvidas ainda lhes perturbavam a mente. Por issodisseram Poupa:

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    Queres que abandonemos, desde j, a nossaexistncia tranquila? Ns, frgeis pssaros, no podemosesperar encontrar, sozinhos, o caminho da sublime moradaem que o Simurgh tem o seu ser.

    A Poupa replicou:Falo-vos como vosso guia. Quem ama no pensa na

    prpria vida; para amar de verdade o homem precisaesquecer-se de si, ser asceta ou libertino. Se os vossos

    desejos no esto de acordo com o vosso esprito,sacrificai-os, e chegareis ao termo da viagem. Se o corpode desejo obstrui o caminho, rejeitai-o; em seguida, dirigi avista para a frente e olhai. Um ignorante perguntar: Qual a conexo entre crena ou descrena e amor? Pois eudigo: Os amantes, acaso, do valor vida? O amante ateiafogo a toda esperana de colheita, encosta a lmina na

    garganta, perfura o corpo. Com o amor vem a tristeza e osangue do corao. O amor ama as coisas difceis. Escano! Enche-me a taa com o sangue do

    meu corao e, se no restar mais nada, d-me a borra. Oamor uma dor cruel que tudo devora. s vezes rasga ovu da alma, s vezes puxa-o. Um tomo de amor prefervel a quanto existe entre os horizontes, um tomo dasua dor melhor do que o amor feliz de todos os amantes.O amor a prpria medula dos seres; mas no pode haver amor verdadeiro sem verdadeiro sofrimento. Quem quer que esteja bem alicerado no amor renuncia f, religio, descrena. O amor abrir a porta da pobreza espiritual, e a pobreza mostrar o caminho da descrena. Quando no

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    subsistirem nem a descrena nem a religio, vosso corpo evossa alma desaparecero, e sereis ento dignos dosmistrios esta a nica maneira de sond-los, se oquiserdes.

    Avanai, pois, sem medo. Abandonai as coisasinfantis e, acima de tudo, tende coragem; pois uma centenade vicissitudes vos saltear de surpresa.

    A histria do xeque SanAn O xeque Sanan era no seu tempo um santo homem

    que se aperfeioara em alto grau. Durante cinquenta anos permanecera em seu retiro, em companhia de quatrocentosdiscpulos, que trabalhavam dia e noite o prprio esprito.

    Seus grandes conhecimentos eram beneficiados pelarevelao exterior e interior. Levara grande parte da vidarealizando peregrinaes a Meca. Eram sem nmero suasoraes e jejuns, e ele no omitia uma prtica sequer dossunitas. Levava a cabo milagres e, com o hlito, curavadoentes e deprimidos.

    Uma noite sonhou que fora de Meca Grcia, ondeadorara um dolo; e, acordando, pesaroso, do sonhoopressivo, comunicou aos discpulos:

    Preciso partir imediatamente para a Grcia a fim dedescobrir o significado desse sonho.

    Deixou a Caaba em companhia dos quatrocentosdiscpulos e, afinal, chegaram Grcia. Percorreram o pas

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    de um extremo a outro e, um belo dia, entraram num lugar em que viram uma moa sentada num balco. A moa eracrist, e a expresso de seu rosto mostrava que ela possuaa faculdade de ponderar nas coisas de Deus. Sua beleza eracomo o sol no auge do esplendor, e sua dignidade a fazia parecida com os signos do Zodaco. Invejosa da suaradincia, a estrela-dalva se demorava acima de sua casa.Quem quer que prendesse o corao nos fios de seuscabelos cingia o cinto de cristo; e aquele cujo desejo pousava no rubi dos seus lbios perdia a cabea. A luaassumia um tom mais escuro custa do negrume de suasmelenas, a terra da Grcia se arrugava em razo da belezadas suas sardas. Seus olhos eram uma cilada para osamantes; suas sobrancelhas arqueadas formavam foicesmelindrosas sobre luas gmeas. Quando o poder lhealumiava as pupilas dos olhos, cem coraes se tornavam presa sua. Brilhava-lhe o rosto qual chama viva, e osmidos rubis de seus lbios seriam capazes de deixar comsede o mundo inteiro. Seus clios langorosos lembravamuma centena de adagas, e sua boca era to pequena quenem as palavras conseguiam passar por ela. Sua cintura,esguia como um fio de cabelo, vivia apertada pelo zunnar ;e a covinha de prata de seu queixo vivificava tanto quanto

    os sermes de Jesus.Quando ela erguia um cantinho do vu, incendiava-

    se o corao do xeque; e um s fio dos seus cabelos atava-lhe o lombo com cem zunnars. Ele no conseguiadespregar a vista da moa crist, e tamanho era o seu amor

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    que a vontade lhe escorregou das mos. Dos cabelos dela, adescrena espargiu-se-lhe sobre a f. E ele gritou:

    Oh, como terrvel o amor que sinto por ela!Quando a religio nos desampara, para que presta ocorao?

    Quando os companheiros compreenderam o que se passava e viram o estado a que ele ficara reduzido, levaramas mos cabea. Alguns tentaram raciocinar com ele, mas

    o xeque recusou-se a prestar-lhes ateno. No fazia outracoisa o dia inteiro seno ficar de p, com o olhar pregadono balco e a boca aberta. As estrelas, que brilhavam comolmpadas, tomavam emprestado o calor daquele santohomem, cujo corao se conflagrara. O seu amor foicrescendo at deix-lo fora de si.

    Senhor, orou ele, tenho jejuado e sofrido navida, mas nunca sofri como agora; estou em tormento. Anoite to longa e to negra quanto os cabelos dela. Ondeest a lmpada do Cu? T-la-o apagado os meus suspirosou ela se escondeu de inveja? Onde est a minha boafortuna? Por que no me ajuda a conquistar o amor dessamoa? Onde est a minha razo para que eu possa fazer usodos meus conhecimentos? Onde esto minhas mos parame cobrirem de cinzas a cabea? Onde esto meus ps paralevar-me minha amada, e meus olhos para ver-lhe orosto? Onde est a minha amada para dar-me o seucorao? Que este amor, este sofrimento, esta dor?

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    Os amigos do xeque foram procur-lo de novo.Disse um deles:

    digno xeque, ergue-te e afugenta a tentao. Ssenhor de ti e executa as ablues ordenadas.

    No sabeis que esta noite fiz uma centena deablues e todas com o sangue do meu corao?, replicouele.

    Outro acudiu:Onde est o teu tero? Como podes orar sem ele?E o xeque respondeu: Atirei fora o meu tero para

    poder cingir-me com o zunnar cristo. santo velho, se pecaste, arrepende-te sem

    demora, sobreveio outro.

    Arrependo-me agora, retrucou ele, de haver seguido a verdadeira lei, e s desejo abrir mo dessaabsurdidade.

    Deixa este lugar e vai adorar a Deus, insistiuoutro.

    E ele retrucou:

    Se o meu dolo estivesse aqui, prosternar-me-iadiante dele.E outro: Queres dizer que no tentars sequer

    arrepender-te? J no s um seguidor do Islam?

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    Ningum se arrepende mais do que eu de s agorahaver-me apaixonado, replicou o xeque.

    E outro ainda: As regies infernais estaro tuaespera se teimares em palmilhar este caminho; mas vigia-tee as evitars.

    O inferno s est a por causa dos meus suspiros,que seriam capazes de alimentar sete infernos.

    Vendo que suas palavras no produziam efeito sobreo xeque, se bem o tivessem seguido a noite toda, os amigosse foram. Entrementes, o Turco da Manh, de sabre eescudo de ouro, cortou a cabea da Noite Negra, de modoque o mundo da razo se banhou na radincia do Sol. Oxeque, joguete do seu amor, vagabundeou com oscachorros e ficou sentado, durante um ms, na rua, esperade uma ocasio que lhe permitisse ver o rosto dela. O pera a sua cama, e o degrau da porta da casa da moa crist,o seu travesseiro.

    Vendo, ento, que ele estava irremediavelmenteapaixonado, a formosa crist cobriu o rosto com o vu edisse-lhe:

    xeque, como se d que tu, um asceta, estejas to

    bbedo do vinho do politesmo e te assentes numa ruacrist nesse estado? Se me adorares desse jeito acabarsficando louco.

    Ao que o xeque respondeu:

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    Isso foi porque me roubaste o corao. Devolve-moou aceita o meu amor. Se quiseres, sacrificarei minha vida por ti, mas podes recuperar essa vida com um toque dosteus lbios. Por tua causa meu corao est conflagrado.Derramei lgrimas como chuva, e meus olhos perderam avista. Onde existia um corao agora s existe sangue. Seeu me unisse a ti recobraria a vida. s o sol, eu sou asombra. Sou um homem perdido, mas, se te inclinares paramim, tomarei debaixo das asas as sete cpulas do mundo.Imploro-te, no me deixes!

    velho tolo!, contraveio ela. No tens vergonhade usar a cnfora por sudrio? Deverias corar por sugerir intimidade comigo com o teu hlito frio! Fora melhor quete envolvesses numa mortalha do que perderes tempocomigo. No podes inspirar amor. Vai-te!

    Dize o que quiseres, que ainda assim te amo,voltou o xeque. Que importa que sejamos moos ouvelhos se o amor toca todos os coraes?

    Muito bem, disse ela, ento. J que no te deixasconvencer, ouve o que te digo. Lava as tuas mos do Islam; pois o amor que no se identifica com a amada no passade cor e perfume.

    Farei quanto quiseres, conveio ele. Empreendereitudo o que ordenares, tu, cujo corpo igual prata. Souteu escravo. Enrola um anel dos teus cabelos no meu pescoo para lembrar-me da minha escravido.

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    Se s homem de ao, tornou a jovem crist,ters de fazer quatro coisas: prostrar-te diante dos dolos,queimar o Coro, beber vinho e fechar os olhos para a tuareligio.

    Ele respondeu:Beberei vinho em homenagem tua beleza, mas

    no posso cumprir as outras trs exigncias.Muito bem, assentiu ela, vem beber vinho

    comigo, que dentro em pouco aceitars as outrascondies.

    E conduziu-o a um templo de magos, onde se lhedeparou estranhssimo ajuntamento. Sentaram-se mesa deum banquete, a que a convidaram por sua beleza. Elaestendeu-lhe uma taa de vinho, e quando ele pegou na taa

    e olhou para os risonhos rubis dos lbios dela, como duastampas de um escrnio, o fogo ardeu-lhe no corao e umatorrente de sangue afluiu-lhe aos olhos. Tentou lembrar-sedos livros sagrados que lera e escrevera sobre religio, e doCoro, que to bem conhecia; mas quando o vinho lhe passou da taa para o estmago, esqueceu-os todos;desvaneceu-se-lhe o saber espiritual. Perdeu o livre-arbtrioe deixou o corao cair-lhe das mos. E quando tentou pr a mo no pescoo dela, a moa refugou-o:

    Apenas finges amar. No compreendes o mistriodo amor. Se estiveres seguro do teu amor encontrars ocaminho das minhas madeixas. Perde-te na descrena coma ajuda dos meus cabelos; segue-lhes as mechas e poders

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    pr a mo no meu pescoo. Mas se no quiseres seguir omeu caminho, levanta-te e vai; e leva a tua capa e o teucajado de faquir.

    Ouvindo isso, o amoroso xeque sentiu-sedesalentado; e cedeu, sem mais cerimnias, ao seu destino.O vinho que bebera tornara-lhe a cabea to varivelquanto uma bssola. O vinho era velho e o seu amor era jovem. Em que outra coisa poderia ele ter-se transformadoseno num bbedo apaixonado?

    Esplendor da Lua, exclamou, dize-me o quedesejas. Se eu no era um alcolatra antes de perder o juzo, agora que estou embriagado queimarei o Corodiante do dolo.

    Disse a jovem beldade:

    Agora, sim! Agora s verdadeiramente o meuhomem.s digno de mim. At este momento eras cru no

    amor, mas a experincia cozeu-te. timo!Quando os cristos ouviram dizer que o xeque

    abraara sua crena, levaram-no, ainda brio, igreja edisseram-lhe que amarrasse um zunnar cintura. Eleobedeceu, lanou ao fogo o manto de dervixe, abdicou daf e entregou-se s prticas da religio crist.

    E disse moa: dama encantadora, ningum jamais fez tanto por

    uma mulher quanto eu. Adorei os teus dolos, bebi vinho e

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    renunciei verdadeira f. Tudo isso fiz por amor de ti e para poder possuir-te.

    E ela respondeu-lhe:Velho bobo, escravo do amor, como pode uma

    mulher como eu unir-se a um faquir? Preciso de prata eouro, e, visto que no tens nada disso, vai-te embora.

    mulher adorvel, retrucou o xeque, teu corpo um cipreste e teus seios so prata. Se me repelires, levar-me-s ao desespero. A idia de possuir-te alvoroou-me.Por tua causa meus amigos se tornaram meus inimigos.Como o s, assim o so eles; que farei? minha amada, euquisera antes estar no inferno contigo do que no cu semti.

    Por fim, ela se abrandou e acabou aceitando o xeque

    como seu homem, comeando tambm a sentir a chama doamor. Mas, para p-lo um pouco mais prova, disse-lhe:Agora, por meu dote, homem imperfeito, vai

    guardar meus porcos pelo espao de um ano; depois disso, passaremos juntos a vida inteira, na alegria ou na tristeza!

    Sem um protesto, o xeque da Caaba, o santo,concordou em transformar-se em porqueiro.

    Na natureza de cada um de ns h uma centena de porcos. vs, que sois no-entidades, estais pensandoapenas no perigo que corria o xeque! O perigo se encontraem cada um de ns e ergue a cabea a partir do momentoque enveredamos pelo caminho do conhecimento de ns

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    mesmos. Se no conhecerdes vossos prprios porcos noconhecereis o Caminho. Mas se de fato vos puserdes acampo, encontrareis um milhar de porcos um milhar dedolos. Enxotai os porcos, queimai os dolos na plancie doamor; pois, do contrrio, ficareis como ficou o xeque,desonrado pelo amor. Pois bem, quando correu a voz deque o xeque se fizera cristo, todos os seus companheiros,tomados de profunda angstia, se afastaram; todos, menosum, que lhe disse: Conta-nos o segredo dessa histria paraque possamos nos tornar cristos contigo. No queremosque s tu cometas apostasia, de modo que tambm noscingiremos com o zunnar cristo. Se no concordares,retornaremos Caaba e passaremos o tempo imersos emoraes a fim de no vermos o que vemos agora.

    Disse o xeque:

    Minha alma est cheia de tristeza. Vai para onde televarem os teus desejos. Quanto a mim, a igreja o meulugar, e a moa crist, o meu destino. Sabes por que slivre? Porque no ests na minha posio. Se estivesses, euteria um companheiro no meu desditoso amor. Regressa, pois, querido amigo, Caaba, que ningum pode participar do meu estado atual. Se perguntarem por mim, responde:

    Seus olhos esto cheios de sangue, sua boca, cheia deveneno. Ele continua preso nas fauces dos drages daviolncia. Nenhum infiel consentiria em fazer o que fezesse orgulhoso muulmano por efeito do destino. Uma jovem crist prendeu-lhe o pescoo num anel dos seuscabelos. Se me censurarem, dize-lhes que muitos caem no

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    meio da estrada, que no tem comeo nem fim, mas alguns,mais afortunados, se refazem da queda e do perigo.

    Dito isso, desviou o rosto do amigo e voltou varade porcos.

    Seus seguidores, que o observavam distncia,choraram amarguradamente. Por fim, puseram-se acaminho, de volta Caaba, e, corridos de vergonha econfuso, foram esconder-se num canto.

    Ora, estava na Caaba, naquela ocasio, um amigo doxeque, que era vidente e trilhava o caminho verdadeiro. Ningum o conhecia melhor do que ele, se bem no otivesse acompanhado Grcia. Quando esse homem pediunotcias do amigo, os discpulos lhe contaram tudo o queacontecera ao xeque e perguntaram-lhe que feio galho dervores traspassara o peito dele, e se aquilo sucedera por vontade do destino. Contaram, mais, que uma jovem infielo amarrara com um nico fio de cabelo e lhe fechara oscem caminhos do Islam.

    Ele brinca com suas madeixas e suas sardas,acrescentaram, e queimou a prpriakhirka. Abandonou areligio, e agora, com um zunnar cintura, apascenta umaaduada de porcos. Mas, conquanto tenha empenhado a prpria alma, quer-nos parecer que ainda h esperana.

    Ouvindo isso, o rosto do discpulo fez-se cor de ouroe ele entrou a lamentar-se, atribulado. Depois disse:

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    Companheiros de infortnio, em religio no hhomem nem mulher. Quando um amigo infeliz precisa deauxlio, sucede muita vez que s uma pessoa em mil podeser-lhe de alguma utilidade.

    Em seguida, censurou-os por haverem abandonado oxeque, dizendo que at deviam ter-se feito cristos por amor a ele. E ajuntou:

    O amigo deve continuar amigo. no infortnio que

    descobrimos em quem podemos confiar; pois na prosperidade tereis um milhar de amigos. Agora que oxeque caiu na goela do crocodilo, todos se afastam dele,ciosos da prpria reputao. Se o evitardes conta desseestranho sucesso, sereis julgados e condenados.

    Ns nos oferecemos para ficar ao seu lado,responderam os outros, e at concordamos em tornar-nosidlatras. Mas como ele um homem experimentado esbio, e temos nele absoluta confiana, quando nosaconselhou a voltar, voltamos para c.

    O discpulo fiel replicou:Se realmente desejais agir, precisais bater porta

    de Deus; a seguir, pela orao, sereis admitidos sua

    presena. Deveis estar pedindo a Deus pelo vosso xeque,cada qual recitando uma prece diferente; e Deus, vendo ovosso estado de confuso, t-lo-ia devolvido a vs. Por quevos abstivestes de bater porta de Deus?

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    Ouvindo-o, os outros tiveram vergonha de erguer acabea. Mas ele insistiu:

    Esta no a hora de lamentaes. Vamos agora aotribunal de Deus. Dei temo-nos no p e cubramo-nos comas vestes da splica a fim de podermos recuperar o nossochefe!

    Partiram os discpulos sem demora para a Grcia e,ali chegados, ficaram perto do xeque. Rezaram quarenta

    dias e quarenta noites, no comeram nem dormiram; no provaram po nem gua. Afinal, a fora das rezas desseshomens sinceros fez-se ouvir no Cu. Anjos, arcanjos etodos os santos vestidos de verde nas alturas e nos valesenvergaram, ento, as vestes do luto. A seta da oraoatingiu o alvo. Ao despontar da manh, um zfiroalmiscarado ps-se a soprar suavemente sobre o discpulo

    fiel, que orava em sua cela, e o mundo desvelou-se-lhe aoesprito. Viu o profeta Maom aproximando-se, radiosocomo a lua, com duas madeixas de cabelo a cair-lhe sobre o peito; a sombra de Deus era o sal do seu semblante, odesejo de uma centena de mundos estava preso a cada umdos seus fios de cabelo. A graa do sorriso atraa todos oshomens para ele. Ergueu-se o discpulo e disse:

    mensageiro de Deus, guia de todas as criaturas,ajuda-me! O nosso xeque desencaminhou-se. Mostra-lhe ocaminho, imploro-te, em nome do Altssimo!

    Replicou Maom:

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    tu, que vs coisas com o olho interior, graas aosesforos que envidaste, teus desejos puros sero atendidos.Entre o xeque e Deus houve, por muito tempo, um pontonegro; mas fiz jorrar o orvalho da splica e espalhei-osobre o p da sua existncia. Ele se arrependeu, e o seu pecado foi lavado. As faltas de uma centena de mundosdesaparecem no vapor de um instante de arrependimento.Quando o oceano da boa vontade se movimenta, suas ondaslavam os pecados de homens e mulheres.

    O discpulo soltou um grito que comoveu todo ocu. Correu para transmitir aos companheiros a boa nova e,logo, chorando de alegria, endereou-se ao lugar onde oxeque guardava os seus porcos. Mas o xeque se diria umfogo, um iluminado. Lanara de si o cinto cristo, arrancarada cabea o gorro da embriaguez e renunciara aocristianismo. Via-se tal qual era, e, derramando lgrimas deremorso, ergueu as mos para o cu; tudo o que abandonara o Coro, os mistrios e profecias voltaram-lhe, e elese libertou da sua misria e da sua loucura.

    Disseram-lhe os discpulos:Esta a hora da gratido e do agradecimento. O

    Profeta intercedeu por ti. Graas a Deus, ele te ergueu deum oceano de piche e colocou-te os ps no caminho doSol.

    Nisso, o xeque tornou a vestir akhirka, fez suasablues e ps-se a caminho do Hejaz.

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    Enquanto tudo isso acontecia, a moa crist viu emsonhos o sol descendo at ela, e ouviu estas palavras:

    Segue o teu xeque, abraa-lhe a f, s o seu p. Tu,que ests maculada, s pura como ele agora. Tu oconduziste ao teu caminho, entra agora no dele.

    Assim que ela acordou, fez-se luz no seu esprito;ansiava por encetar a jornada. A mo segurou o corao, eo corao caiu-lhe da mo. Mas, quando compreendeu que

    estava s e no tinha a menor idia do caminho, a alegriamudou-se-lhe em pranto, e ela saiu correndo para atirar cinzas sobre a cabea. Em seguida, saiu procura do xequee dos amigos dele; mas, cansada e angustiada, coberta desuor, deixou-se cair ao cho e gritou:

    Possa Deus, o Criador, perdoar-me! Sou umamulher desgostosa da vida. No me firas, pois eu te feri por ignorncia, e por ignorncia cometi muitos erros. Esqueceo mal que te fiz. Aceito a verdadeira f.

    Uma voz interior informou disso o xeque. Ele sedeteve no meio da caminhada e disse:

    Aquela moa j no uma infiel. A luz a visitou, eela entrou em nosso Caminho. Voltemos. Podemos agora

    manter-nos intimamente ligados ao nosso dolo sem pecado.Os companheiros, porm, objetaram-lhe:Mas, ento, para que todo o teu arrependimento e

    remorso? Queres voltar para o teu amor?

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    Ele falou-lhes da voz que ouvira e recordou-lhes querenunciara aos seus caminhos anteriores. Por issoretrocederam at chegar ao stio em que jazia a moa. Orosto lhe assumira a cor do ouro amarelo, os ps estavamdescalos, as vestes rasgadas. Quando o xeque se inclinousobre ela, a moa desmaiou. Ao tornar a si, as lgrimas lhesaltaram dos olhos como o orvalho das rosas, e ela disse:

    A vergonha me consome por tua causa. Ergue ovu do segredo e instru-me no Islam para que eu possa palmilhar o Caminho.

    Quando o formoso dolo se achou finalmente entreos fiis, os companheiros derramaram lgrimas de jbilo.

    xeque, disse ela, j no tenho foras. Querodeixar este mundo poeirento e ensurdecedor. Adeus, xequeSanan. Confesso meus erros. Perdoa-me e deixa-me ir.

    Assim, aquela lua de beleza, que no vivera mais doque a metade de uma vida, escapou de sua mo. O solescondeu-se atrs das nuvens enquanto a sua alma gentilse separava do corpo. Ela, uma gota no oceano da iluso,regressara ao verdadeiro oceano.

    Todos partimos como o vento; ela se foi, e ns

    tambm nos iremos. Essas coisas ocorrem amide nocaminho do amor. H desespero e misericrdia, iluso esegurana. Conquanto o corpo de desejo no compreendaos segredos, a adversidade no pode atirar longe a bola de plo da boa fortuna. Precisamos ouvir com o ouvido damente e do corao, e no com o do corpo. A luta do

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    com o risco da prpria vida, jurando no poupar a almanem o corpo. A Poupa adiantou-se e cingiram-lhe a cabeacom uma coroa.

    No stio indicado para a partida, eram tantos os pssaros reunidos que ocultavam a lua e o peixe; mas,quando viram a entrada do primeiro vale, ergueram-se,assustados, at as nuvens. Depois, com muito adejar deasas e penas e muito encorajamento recproco, retomou-osa nsia de desistir de tudo. Pois a tarefa que tinham pelafrente era pesada e o percurso, assaz comprido. O silncio pairava, prximo, sobre o caminho que se estendia diantedeles, e um pssaro perguntou Poupa por que a estradaestava to deserta.

    Por causa do temor que inspira o rei a cuja moradaela conduz, explicou a interpelada.

    Anedota de Bayazid Bistami

    Uma noite, ao sair da cidade, o xeque Baya2idreparou que um profundo silncio se estendia sobre a plancie. A lua alumiava o mundo, tornando a noite toclara quanto o dia. As estrelas agrupavam-se de acordo

    com suas simpatias, e cada constelao tinha uma funoespecial. O xeque caminhava sem perceber nenhummovimento e sem avistar vivalma. Com o corao abalado,disse:

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    Senhor, uma tristeza penetrante me oprime. Por queuma corte to sublime carece de adoradores ardentes?

    No te surpreendas, respondeu-lhe uma vozinterior, o rei no admite toda a gente sua corte. Adignidade no lhe permite receber vagabundos sua porta.Quando o santurio do nosso esplendor fulgura, eledesdenha os dorminhocos e desatentos. s um dos mil queanseiam por admisso, e precisas aguardar com pacincia.

    16Os pssaros comeam a jornada

    O medo e a apreenso arrancaram gritos plangentesdos pssaros quando se viram diante de uma estrada semfim, onde o vento forte do alheamento das coisas terrenasrachou a abbada do cu. Na sua ansiedade, juntaram-se eforam pedir conselho Poupa. Disseram:

    No sabemos como teremos de apresentar-nos aorei com o devido respeito. Mas tu estiveste em presena deSalomo e conheces os primores da etiqueta. Tambmsubiste e desceste esta estrada e voaste muitas vezes aoredor da terra. s o nosso im para o que der e vier.Pedimos-te, portanto, que vs aominabar e nos instruas.Fala-nos da estrada e da corte do rei, e das cerimnias queali se realizam, porque no desejamos fazer m figura.Alm disso, todo tipo de dificuldade nos conturba a mente,e, para essa jornada, mister que estejamos livres de

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    preocupaes. Temos muitas perguntas a fazer e desejamosque nos dissipes as apreenses, pois de outro modo noconseguiremos enxergar claro nesta longa estrada.

    A Poupa colocou a coroa na cabea, sentou-se notrono e disps-se a falar-lhes. Quando o exrcito de pssaros se enfileirou diante dela, o Rouxinol e a Rolinhasubiram ao slio e, como dois leitores com a mesma voz,desferiram um canto to doce que todos os que o ouviramse sentiram elevados para fora de si mesmos. Ato contnuo,um depois do outro, diversos pssaros subiram at ela paraexpor suas dificuldades e desculpar-se.

    17O discurso do primeiro pssaro

    O primeiro pssaro disse Poupa: tu, que foste escolhida para nosso chefe, dize-nos

    o que faz com que te destaques entre ns. J que parecesser como ns, e ns como tu, onde reside a diferena? Que pecados do corpo ou da alma cometemos para sermosignorantes, ao passo que tu tens entendimento?

    A Poupa replicou:Sabe, pssaro, que Salomo, certa vez, me viu por acaso; e que minha boa fortuna no resultou do ouro nemda prata, seno desse encontro feliz. Como h de umacriatura tirar proveito apenas da obedincia? O prprio Iblisobedece. Sem embargo disso, se algum aconselhar a

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    rejeio da obedincia, ser maldito para sempre. Pratica aobedincia e logrars um vislumbre do verdadeiroSalomo.

    Mahmud e o pescador

    O sulto Mahmud, certa vez, separado do seuexrcito, galopava sozinho com o vento. No demoroumuito e viu um menininho sentado beira de um rio, noqual lanara a sua rede. O sulto abeirou-se dele e, vendo-otriste e deprimido, perguntou-lhe:

    Querida criana, que que te faz to triste? Nuncavi ningum to sorumbtico.

    ilustre prncipe, replicou o menino, somos seteao todo; no temos pai, e nossa me muito pobre. Tododia venho aqui e tento pegar uns peixes para o jantar. Squando consigo pescar alguns que fazemos uma refeionoturna.

    No queres que eu faa uma tentativa?, perguntouo sulto. E como o menino consentisse, atirou a rede, aqual, compartindo da proverbial boa sorte do sulto, em pouco tempo apanhou cem peixes. Diante disso, falou omenino consigo: Minha boa fortuna espantosa. Que sorteque todos esses peixes tenham vindo cair na minha rede!

    Atalhou, contudo, o sulto:No te iludas, meu filho. Sou eu a causa da tua boa

    sorte. Foi o sulto quem pegou esses peixes para ti.

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    Dizendo isso, montou a cavalo. O menino rogou-lheque levasse a sua parte, mas o sulto no aceitou a oferta,dizendo que ficaria com a pesca do dia seguinte.

    Amanh pescars para mim, disse ele.E retornou ao palcio. No dia seguinte, mandou um

    dos seus oficiais buscar o menino. Quando eles chegaram,fez o menino sentar-se no trono, ao seu lado.

    Senhor, acudiu um dos cortesos, esse menino um mendigo!

    No te preocupes, redarguiu o sulto, ele agora meu companheiro. E, visto que somos parceiros, no possomand-lo embora.

    Assim sendo, o sulto tratou-o como a um igual. Por fim, algum perguntou ao menino:

    Como foi que vieste a lograr tamanha distino?E o menino respondeu:A alegria chegou e a tristeza se foi, porque

    encontrei um monarca afortunado.

    Mahmud e o lenhadorDe outra feita, quando cavalgava sozinho, o sulto

    Mahmud encontrou um velho lenhador que conduzia um burro carregado de espinheiros. A um dado momento, oanimal tropeou e, quando caiu, os espinhos feriram a

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    cabea do velho. Ao ver os espinheiros no cho, o burro de pernas para o ar e o homem esfregando a cabea, o sulto perguntou:

    infeliz, ests necessitando de um amigo?Estou sim, replicou o lenhador. Bondoso

    cavaleiro, se quiseres ajudar-me, ainda colherei meuslucros, e, a ti, nenhum mal te advir disso. Teu semblante um bom pressgio para mim.

    O bondoso sulto apeou do cavalo e, tendo puxado o burro para obrig-lo a levantar-se, ergueu o feixe deespinheiros e amarrou-o ao lombo do animal. Em seguida,retornou, a cavalo, para onde estava o exrcito. E disse aossoldados:

    Um velho lenhador est vindo para c com um

    burro carregado de espinheiros. Barrai-lhe o caminho paraque ele tenha de passar diante de mim.Ao aproximar-se dos soldados, disse o lenhador para

    si: Como passarei por eles com este frgil animal?Entrou, assim, por outro caminho, mas, avistando o pra-sol real distncia, ps-se a tremer: a estrada que se viraforado a tomar o levaria a passar bem defronte do sulto.

    Ao aproximar-se um pouco mais, sua confuso aumentou, pois avistou debaixo do pra-sol um rosto familiar. Deus, exclamou, em que situao me vejo!

    Hoje tive Muhmud por carregador!

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    Quando o homem chegou sua frente, o sultoMahmud perguntou-lhe:

    Meu pobre amigo, que fazes para viver?Ao que o lenhador replicou:J o sabeis. Sede sincero. No me re