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A vocação didático-pedagógica do design: as exposições universais do século XIX The pedagogical-didactic vocation of design: the world fairs in the nineteenth century Cossio, Gustavo; Mestrando; Bolsista CAPES; Programa de Pós-Graduação em Design; Universidade Federal do Rio Grande do Sul PGDesign/UFRGS [email protected] van der Linden, Júlio Carlos de Souza; Doutor; Professor; Programa de Pós-Graduação em Design; Universidade Federal do Rio Grande do Sul PGDesign/UFRGS [email protected] Resumo Este artigo discorre sobre a relação entre educação e design a partir da gênese do campo. O recorte teórico-conceitual trata da fase inicial das exposições universais, fenômeno que se realiza na Europa na segunda metade do século XIX. O texto considera a estreita ligação entre design e educação como via de mão dupla, uma vez que as grandes feiras contribuem na formação dos novos designers. A idéia é destacar que o fator didático-pedagógico do design constitui sua natureza e amplia sua dimensão social. Palavras-chave: design e educação; história do design; exposições universais. Abstract This paper discourses on design and education in between the origins of the field. The initial phase of the world fairs, a phenomenon that takes place in Europe in the second half of the nineteenth century, is analyzed. The text refers to the link between education and design as a double meaning once the exhibitions collaborate with the young designers’ formation. The aim is to point out that the pedagogical-didactic aspect of design is part of its nature and widens its social dimension. Keywords: design and education; design history; world fairs.

A vocação didático-pedagógica do design: as exposições universais do século XIX

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  • A vocao didtico-pedaggica do design:

    as exposies universais do sculo XIX

    The pedagogical-didactic vocation of design: the world fairs in the nineteenth century

    Cossio, Gustavo; Mestrando; Bolsista CAPES;

    Programa de Ps-Graduao em Design;

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul PGDesign/UFRGS [email protected]

    van der Linden, Jlio Carlos de Souza; Doutor; Professor;

    Programa de Ps-Graduao em Design;

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul PGDesign/UFRGS [email protected]

    Resumo

    Este artigo discorre sobre a relao entre educao e design a partir da gnese do campo. O

    recorte terico-conceitual trata da fase inicial das exposies universais, fenmeno que se

    realiza na Europa na segunda metade do sculo XIX. O texto considera a estreita ligao entre

    design e educao como via de mo dupla, uma vez que as grandes feiras contribuem na

    formao dos novos designers. A idia destacar que o fator didtico-pedaggico do design

    constitui sua natureza e amplia sua dimenso social.

    Palavras-chave: design e educao; histria do design; exposies universais.

    Abstract

    This paper discourses on design and education in between the origins of the field. The initial

    phase of the world fairs, a phenomenon that takes place in Europe in the second half of the

    nineteenth century, is analyzed. The text refers to the link between education and design as a

    double meaning once the exhibitions collaborate with the young designers formation. The aim is to point out that the pedagogical-didactic aspect of design is part of its nature and

    widens its social dimension.

    Keywords: design and education; design history; world fairs.

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    9 Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design

    Introduo

    Antes de ser uma atividade vinculada a indstrias e ao mercado, o design est

    relacionado com a produo de significado. Nos primrdios da evoluo humana um objeto

    ganhava uma funo, um significado, na medida em que algum conseguia perceber ou

    inventar usos para ele (FLUSSER, 2007). Nas sociedades de consumo originadas das

    Revolues Industriais, o papel de articular, por meio da ordenao de elementos formais e

    estruturais, uma possibilidade tcnica com uma possibilidade de uso ou de experincia foi

    desenvolvido e ocupado pelo design (CARDOSO, 2008; KRIPPENDORFF, 2005).

    Ao observamos os artefatos desenvolvidos industrialmente, seja para uso individual ou

    coletivo, para consumo ou para produo, vemos o que Kroes (2002) denomina de dupla

    natureza: so objetos fsicos que podem ser usados para uma determinada funo e so

    objetos intencionais, portadores de significado em um contexto de ao humana intencional.

    Essa inteno e o contexto onde usado o artefato determinam a sua constituio e

    configurao fsica e esto por ela determinados. Esse processo de interao entre artefato e

    sujeito, moderado pelo contexto, remete idia de que os objetos no portam significados por

    si, mas so aprendidos, ou apreendidos, na experincia de uso.

    Esse conceito, que entendemos estar alm do funcionalismo estrito, remete idia da

    experincia de aprendizado sobre os artefatos que ocorre por meio do seu uso. Se em muitos

    casos essa experincia consciente e, por vezes sofrida, em outros se d de modo

    subconsciente e, mesmo, inconsciente. Aprendemos a usar um novo dispositivo tecnolgico,

    como um telefone celular, e falamos sobre as nossas descobertas e frustraes. Tambm

    aprendemos sobre a tecnologia e a sociedade apenas vivendo em uma sociedade dirigida pela

    tecnologia, especialmente em uma sociedade na qual a tecnologia o demiurgo.

    Ao retomarmos a histria desde o final do sculo XVIII, com as cermicas da

    Queensware, de Josiah Wedgwood, e com os eletrodomsticos da Arno em meados do sculo

    XX, vemos o papel do design como coadjuvante de importantes transformaes sociais

    (FORTY, 2007; CARDOSO, 2008). Nesse processo de aprendizado sobre a vida em

    sociedade o design sempre exerceu um papel educacional. Como interfaces entre tecnologias

    e pessoas, os artefatos construdos pelos humanos reconstroem os humanos, seja na sua

    dimenso fsica, seja na intencional, como definida por Kroes (2002).

    Portanto, percebemos o design no s como produtor de mercadorias, mas como

    produtor de objetos que constituiro sentidos. Vemos o design, pelo menos em uma de suas

    vertentes nascida na Europa na segunda metade do sculo XIX, como portador de uma misso

    educacional, talvez pretensiosa aos nossos olhos, mas coerente com o ideal de progresso

    daquela era.

    De modo a refletir sobre a relao entre educao e design a partir da essncia da

    atividade, este trabalho apresenta uma contextualizao histrica sobre o tema. O texto inicia

    com uma breve reviso sobre os primrdios do campo na Europa, em tempos de Revoluo

    Industrial. Assim, o estudo aborda o marco inicial da atividade poca do pioneirismo ingls.

    Concomitante afirmao do design enquanto profisso em meados do sculo XIX, a

    dinmica econmica e cultural da modernidade instaura as exposies universais da indstria.

    Ainda que as grandes feiras promovessem a inovao tecnolgica em uma relao

    direta com o capital, essa pesquisa realizada acerca do vis educacional do evento. A idia

    pontuar a insero do design no contexto das exposies enquanto difusoras do conhecimento

    cientfico, novos produtos e visualidade. Com efeito, o fator didtico-pedaggico entendido

    como vocao do campo.

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    Figura 1 A perfumaria. Exposio de Paris, 1889.

    Alm disso, o artigo discorre sobre a ligao entre design e educao como via de mo

    dupla. Os autores ressaltam a limitada criatividade dos estudantes de design em explorar as

    novas possibilidades da indstria de sua poca. Por isso, a produo atesta o exagero formal

    de influncia greco-romana, o que antecede o pensamento racionalista do alto modernismo.

    Observamos que o intercmbio entre pases proporcionado pelas feiras do sculo XIX de

    grande valia para os jovens designers.

    Este estudo apresenta uma reviso de literatura e integra a fundamentao terica de

    uma dissertao de mestrado1. Para contextualizar a incipincia do design na Europa,

    lanamos mo da bibliografia em histria do design. O referencial de Jlio Csar Caetano da

    Silva (2005), Rafael Cardoso (2008) e Wagner Braga Batista (2004) articula as exposies

    universais e suas relaes sintticas com a Revoluo Industrial. Ao abordarmos a face

    educacional das feiras, buscamos embasamento no referencial terico das historiadoras

    Heloisa Barbuy (1999) e Sandra Jatahy Pesavento (1997).

    A gnese do design na Europa

    Ao estudarmos a afirmao do design, observamos os fatores que favoreceram esta

    ocorrncia na Inglaterra. A I Revoluo Industrial, que teve incio por volta de 1750,

    caracterizou-se pela fabricao de tecidos de algodo como sua primeira rea de

    desenvolvimento. No comrcio mundial, prevalecia o domnio ingls. Os avanos na

    agricultura contribuam para a posio hegemnica do pas. No mbito europeu, havia o

    acmulo da riqueza lquida das naes. Cardoso (2008) e Silva (2005) mencionam que,

    juntamente com o dramtico aumento populacional, formou-se uma base de consumo e

    1 Dissertao de mestrado intitulada Investigao sobre a experincia esttica no sistema visual de exposies de

    design, do discente Gustavo Cossio, do Programa de Ps-Graduao em Design da Universidade Federal do Rio

    Grande do Sul PGDesign/UFRGS. Desenvolvida a partir de agosto de 2009, sob orientao dos professores Dr. Airton Cattani e Dr. Jlio Carlos de Souza van der Linden.

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    demanda capaz de absorver as novas escalas produtivas e gerar receitas crescentes que eram

    ento aplicadas em oficinas artesanais e equipamentos.

    Esta evoluo implica numa separao entre o responsvel pela forma do objeto e sua

    fabricao, o que se d a partir do surgimento dos livros de padres2 na Alemanha e Itlia. O

    modelo de desenvolvimento baseado na indstria e no capitalismo suplantava o trabalho

    manual (BATISTA & PRET, 2004; CARDOSO, 2008; SILVA, 2005). Entretanto, vale

    resgatarmos o conceito de Heskett (1998). O autor no considera o surgimento do design

    como uma evoluo linear do trabalho artesanal at a produo mecnica, mas sim como

    atividade formada a partir de uma crescente de fatores e influncias, medida que a

    concepo esttico-formal se distanciava da fabricao.

    Com efeito, o design resulta da diviso social do trabalho fruto do desenvolvimento do

    capitalismo. Segundo Batista & Pret (2004), suas tendncias sero interpretadas luz dos movimentos descontnuos da industrializao capitalista e estaro sujeitas a digresses e

    avanos provocados pela dinmica da cultura e do acmulo de capital. O aumento das populaes urbanas, o surgimento de indstrias com tecnologias que

    permitiam o incremento de sua produtividade e a ampliao da concorrncia internacional,

    so alguns fatores que levaram ao investimento em profissionais que de alguma forma eram

    capazes de agregar valor aos produtos. Como mais tarde ocorreria nos Estados Unidos aps a

    Depresso, na Inglaterra o design contribuiu para o estabelecimento da sociedade de

    consumo.

    As novas possibilidades produtivas formadoras da cultura material europia na

    modernidade abriam espao para os eventos que Pesavento (1997) classifica como

    fenmenos tpicos do sculo XIX: as exposies universais3. No se pode estudar os primrdios do design sem abordar as grandes feiras, no apenas pelo papel que exercem hoje

    como referncias quanto ao estado-da-arte de sua poca, mas tambm pelo papel educacional

    que tiveram.

    As exposies universais:

    visualidade no novo cenrio industrial

    Com o desenvolvimento alicerado no trip carvo-vapor-estradas de ferro, as feiras

    ganham dimenso propriamente econmica ao introduzir mercadorias e mostrurios de

    produtos com o objetivo de abrir oportunidades de negcio. As exposies eram promovidas

    pela burguesia e visavam ampliar as vendas pelos renovados contatos entre produtores e

    consumidores. Dessa forma, estimulava-se o consumo atravs do conhecimento dos novos

    produtos e processos, alinhados a uma estratgia publicitria.

    2 Os livros de padres constituam-se de colees de gravuras que apresentavam as formas decorativas para

    atividades txteis e de marcenaria. Eram produzidos em quantidades graas aos novos mtodos de impresso

    mecnica (CARDOSO, 2008). 3 Os autores denominam o fenmeno de maneiras diversas. Neste artigo, os termos exposies universais,

    exposies mundiais e grandes exposies se equivalem, assim como o termo exposio ora substitudo por feira. O referencial terico de Barbuy (1999) menciona tambm a expresso exposio universal internacional, devido abrangncia dos itens expostos e a participao ativa das naes estrangeiras alm da que promovia e sediava a exposio.

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    Dada sua posio de liderana no que se refere ao desenvolvimento econmico e

    industrial, naturalmente a Inglaterra sedia a primeira feira mundial. Em maio de 1851, era

    inaugurada em Londres a Grande Exposio dos Trabalhos de Indstria de Todas as Naes4.

    Figura 2 Cartazes da Exposio de Paris, 1889.

    Batista & Pret (2004) comparam as exposies universais do sculo XIX aos

    shoppings centers de hoje. Sobre o espetculo das feiras5, os autores fazem o seguinte

    comentrio:

    As feiras internacionais sero organizadas para exibir a produo industrial. Nelas,

    os produtos tornar-se-o objetos de atrao e entretenimento. As feiras

    internacionais convertem-se no pinculo das mercadorias. Graas ao seu fascnio,

    consumidores declinam do valor de uso dos objetos deixando-se seduzir pelas suas

    formas atraentes. Nesses eventos, a exuberncia das mercadorias produzidas pela

    indstria divide a cena com novos protagonistas sociais. Ciosa de suas realizaes,

    a burguesia ascendente utiliza-se das feiras internacionais como patamar

    econmico, poltico e cultural. Adquire visibilidade como classe promotora do

    progresso social. (BATISTA & PRET, 2004).

    Ainda que os produtos estivessem agora acessveis camada emergente e classe

    trabalhadora, os autores reconhecem a face excludente da sociedade industrial. Alm das

    condies precrias de habitao, uma parcela da populao sofria tambm com a situao

    4 The Great Exhibition of the Works of Industry of All Nations. Seu modelo foi logo copiado, com uma srie de

    exposies universais em Paris (1855, 1867, 1878, 1889, 1900), Londres (1862), Viena (1873), Filadlfia (1876) e Chicago (1893). A primeira exposio, realizada em Londres em 1851, contabilizou cerca de seis

    milhes de visitantes, o dobro da populao da capital inglesa na poca. J a exposio de Paris no final do

    sculo ultrapassou a marca de cinqenta milhes de visitantes (BATISTA & PRET, 2004, CARDOSO, 2008,

    PLUM, 1979, SILVA, 2005). 5 De acordo com Cardoso (2008), as feiras logo inspiraram o surgimento das lojas de departamento, numa

    transformao das compras em atividade de lazer. Para o autor, tanto as exposies universais quanto as lojas de departamento viraram cenrio e palco de uma vivncia parte da existncia comum, aproximando-se assim

    do espetculo e do hbito moderno de olhar como forma de consumir.

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    insalubre das novas fbricas. No entanto, compreendemos o lucro como apenas um dos

    aspectos pelos quais podemos estudar as exposies. Neste trabalho, refletimos sobre a

    dimenso scio-cultural do evento.

    Figura 3 Porta da Seo Dinamarquesa. Exposio de Paris, 1889.

    Conforme Cardoso (2008), as exposies universais so de enorme interesse para a

    histria do design, pois os numerosos relatrios, relatos e imagens gerados por elas revelam muito sobre a percepo tanto popular quanto oficial da indstria. O autor corrobora a face educacional das feiras mundiais ao afirmar que proporcionavam a muitos visitantes um

    primeiro contato com mquinas e mecanismos. Os documentos da poca descrevem o fascnio

    da populao diante dos aparelhos e seus produtos, em demonstraes prticas de mquinas

    postas a funcionar dentro da sala ou palcio de exposies. Sobre o efeito pedaggico

    daqueles eventos, o autor pontua:

    As feiras serviam de estmulo aos prprios industriais, pois o confronto direto com

    os concorrentes expunha as foras e fraquezas de cada produtor. Por ltimo,

    criavam uma instncia mpar de transmitir aos visitantes noes quase didticas

    sobre indstria, trabalho, prosperidade, ordem cvica, poder nacional e outros temas

    de apreo do Estado. (CARDOSO, 2008).

    Nesse sentido, Pesavento (1997) destaca que eram transmitidos valores e idias, como

    solidariedade entre as naes e harmonia entre as classes. Alm disso, o fenmeno

    representava a crena no progresso ilimitado e a confiana nas potencialidades do homem no

    controle da natureza, sua f nas virtudes da razo e no carter positivo das mquinas. Desse

    modo, nos remetemos fala da autora sobre a funo didtico-pedaggica explcita das

    exposies universais:

    Como misso manifesta, elas objetivam informatizar, explicar, inventariar e

    sintetizar. Partilhando da preocupao enciclopdica vinda do sculo das luzes, de

    tudo catalogar, classificando segundo critrios cientficos, as exposies receberiam

    ainda os influxos de uma proposta comtiana, nascida no sculo XIX e que

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    identificava a difuso dos saberes como um dever positivista. Catlogo do

    conhecimento humano acumulado, sntese de todas as regies e pocas, a exposio

    funcionava para seus visitantes como uma janela para o mundo. Ela exibia o novo, o extico, o desconhecido, o fantstico, o longnquo. Nelas se exibiam as

    mais complexas mquinas, os mais recentes inventos, classificados cuidadosamente

    e organizados segundo preocupao didtica e enciclopdica. (PESAVENTO,

    1997).

    Ainda a respeito do vis educacional, Silva (2005) acrescenta a influncia das feiras na

    formao dos jovens estudantes das recm-inauguradas escolas de design, originadas na

    reforma empreendida pelo governo ingls. Para esta nova gerao de designers, a viso de

    outras naes passava a representar uma nova viso da arte. At ento, estava centrada

    exclusivamente no aspecto expressivo-plstico da esttica greco-romana.

    Figura 4 Armrio de colunas e caritides em nogueira esculpida e encerada. direita, Barmetro em madeira esculpida. Exposio de Paris, de 1889.

    O autor considera que os estudantes se confrontavam com a baixa qualidade de projeto

    do design ingls, pois os profissionais no estavam conseguindo explorar de forma

    imaginativa o processo industrial. Batista & Pret (2004) corroboram a questo ao mencionar

    que os desenhistas industriais surgem em meio a dilemas da produo industrial e ressalta as

    discrepncias da forma dos produtos manufaturados. Aos projetistas caberia decidir pela

    simplificao ou exasperao formal. De acordo com o autor, a racionalidade funcional no se

    faz ver nas feiras do sculo XIX. A opulncia dos produtos e a grandiosidade dos eventos

    convertem-se em espetculos para as elites. A forma dos objetos coadjuvante nesse

    espetculo.

    Sobre este aspecto, ressaltamos o senso de enormidade e de escala monumental do

    industrialismo transmitido pelos edifcios construdos poca das exposies, com destaque

    para o Palcio de Cristal em Londres em 1851, e a Torre Eiffel em Paris, no ano de 1889.

    Silva (2005) afirma que, no caso da capital inglesa, a construo do colossal edifcio pr-

    fabricado em ferro e vidro, o transporte de seus componentes realizados atravs das recm

    implantadas ferrovias e sua montagem no Hyde Park em sete meses, demonstraram a imensa confiana reinante nas possibilidades do novo mundo industrial e cientfico.

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    Figura 5 Inaugurao do Palcio de Cristal. Aquarela. Exposio de Londres, 1851.

    Os estudos de Heloisa Barbuy (1999) acerca da Exposio Universal de 1889 em Paris

    reforam a tese de que o evento possui um fator didtico relevante. Esta edio se d numa

    conjuntura especfica: a comemorao do centenrio da Revoluo Francesa e, assim, da

    prpria Repblica. A feira torna-se smbolo de modernidade para culturas extra-europias. Ao

    mesmo tempo, as manifestaes de desempregados denotavam o declnio positivista e uma

    presena crescente do socialismo.

    Essa edio do evento se diferenciava das anteriores pelo seu carter popular. Para

    Barbuy (1999), pretende-se veicular algo para algum e por meio de formas determinadas de representao; o algo, a prpria praxis da sociedade industrial; o algum, em 1889, a

    massa. Segundo a autora, a exposio um fenmeno de visualidade, com grande poder de difuso de imagens, sobrepondo-se aos meios escritos. Ao mesmo tempo em que concorda

    com a idia das exposies como manifestaes ricas da sociedade do espetculo, a autora

    enfatiza seu didatismo.

    A exposio celebra os progressos alcanados pela indstria, apresentando a prpria

    sociedade industrial como pice de um processo evolutivo, em padres desejveis para toda a

    humanidade. Em meio ao avano da mquina, h uma nova concepo de tempo dadas as

    transformaes urbanas, os novos meios de transporte e de comunicao, o que ocorre em

    uma nova experincia visual de mundo. A esse sentimento de descontinuidade atribuda a

    onda de nostalgia que domina o sculo XIX, o romantismo e a proliferao dos museus. Este

    sentimento constitui a exposio e corrobora seu vis educativo.

    Organizam-se na edio da feira em Paris em 1889, com grande nfase, as chamadas

    exposies retrospectivas, que pretendem reconstruir materialmente o passado (em alguns

    casos desde a pr-histria) e permitir comparaes da capacidade humana, entre os vrios

    perodos, no caminho evolutivo do progresso. Destacam-se duas principais: a Exposio

    Retrospectiva do Trabalho e das Cincias Antropolgicas, dividida em quatro partes

    (arqueologia e cincias antropolgicas; artes liberais; meios de transporte; artes e ofcios), e a

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    Exposio Retrospectiva da Habitao Humana, com quarenta e quatro reconstituies de

    habitaes, da pr-histria ao Renascimento (BARBUY, 1999).

    Figura 6 Exposio Retrospectiva do Trabalho, pr-histria: trabalhadores de madeira, em abrigo de rocha, na Vzre (Idade da Rena). Exposio de Paris, 1889.

    Na primeira, grupos escultricos em cera representam cenas de trabalho (as idias da

    indstria humana nas idades do slex, da rena, da pedra polida e do ferro, segundo a

    organizao feita). O tamanho natural, a ambientao em reconstituies de locais realmente

    existentes, o realismo das expresses de rosto, do gestual e a impresso de um movimento que

    se desenrola so as tcnicas utilizadas na busca da verossimilhana (BARBUY, 1999). Na

    Exposio Retrospectiva da Habitao Humana, se pretendia instruir as massas sobre as

    tcnicas de produo industrial. Dividiam-se entre histria das tcnicas construtivas (com a

    arquitetura do ferro encontrando seu auge na Torre Eiffel), tcnicas de higiene (Pavilho da

    Higiene e Pavilho da Cidade de Paris) e exposies coloniais, que eram reconstituies de

    aldeias de colnias francesas, com presena de nativos. O sentimento era de uma caminhada

    evidentemente positiva em direo a mais conforto, mais luz e mais refinamento (BARBUY,

    1999).

    Enfatizamos que, alm do realismo plstico, o teor de veracidade que se quer conferir

    s representaes encontra uma avalista de peso: a cincia. Conforme Barbuy (1999), essas

    exposies eram construdas com base no conhecimento cientfico, alm de serem dirigidas

    pelos prprios cientistas. A exposio sobre a pr-histria, por exemplo, foi montada a partir

    de documentao recolhida em escavaes arqueolgicas e de anlises elaboradas pelo Dr.

    Jules-Thodore Enerst Hamy, etnlogo e arquelogo, ento diretor do Museu Etnogrfico de

    Paris (mais tarde transformado em Museu do Homem). A autora assinala a montagem dessas

    exposies conforme procedimentos cientficos da poca, baseados na analogia e na idia de

    evolucionismo.

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    O objetivo principal da Exposio Universal de 1889 em Paris o de instruir (ou

    industriar) sobre a vida moderna da sociedade industrial. Em outras palavras, ensinar massa

    um modelo de mundo. As grandes feiras romantizam o passado, mas tambm celebram a

    excelncia do tempo presente. Dado o carter instrutivo das exposies e todo o seu material fsico, textual e iconogrfico elas podem ser classificadas como museus (BARBUY, 1999; PESAVENTO, 1997).

    Figura 7 Quiosque da Casa Gall, de Nancy, na Galeria Central.

    Exposio de Paris, 1889.

    Consideraes finais

    De acordo com Helosa Barbuy (1999), o perodo entre 1851-1915 corresponde

    primeira fase do fenmeno. A realizao da Exposio Internacional de So Francisco em

    1915 e o incio da Primeira Guerra Mundial constituem um momento de ruptura. A etapa

    seguinte apresenta mudanas no conceito de feira. Observa-se a diminuio do poder de

    difuso das exposies. Devido aos limites que impe a crena na ideologia do progresso

    (absoluta nas mentalidades burguesas ocidentais do sculo XIX), o evento perde seu carter

    essencialmente industrial-comercial e seus anseios universalistas. As feiras se tornam mais

    especializadas na dcada de 1930 e ganham contornos aparentemente humanistas, como

    ocorre atualmente.

    Ao comentar o legado das exposies universais, Cardoso (2008) aponta que, alm da

    conscientizao da existncia de uma era industrial e moderna, as feiras tambm exerceram

    um papel importante em termos da codificao das normas e caractersticas da nova

    sociedade. Segundo o autor, pela primeira vez os fabricantes sujeitavam inspeo do pblico

    e tambm dos concorrentes no somente os seus produtos, mas tambm os seus processos de

    fabricao.

    Os eventos eram marcados por discusses sobre pirataria, inclusive de peas especiais,

    s vezes nicas, produzidas especialmente para as feiras a fim de mostrar os limites mximos

    da capacidade da indstria. A legislao de patentes e propriedade intelectual foi revista,

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    ampliada e definida em nvel internacional. Alm disso, foram padronizados os pesos,

    medidas e especificaes tcnicas (CARDOSO, 2008).

    Portanto, entendemos que o fator educacional das exposies universais transcende o

    refinamento do gosto, a instaurao de novos padres estticos e o comrcio. Somos levados a

    refletir sobre a dimenso deste fenmeno na construo de uma conscincia da populao

    acerca da cultura material que ento se formava e passaria a constituir o entorno e, por

    conseqncia, o prprio homem. Barbuy (1999) destaca:

    Parece-nos imprprio pensar que as exposies do sculo XIX vendessem apenas

    produtos, quando aquilo que se vendia, primordialmente, era a idia da sociedade

    industrial, do progresso material como caminho da felicidade, no qual todos se

    deveriam congraar, em harmonia universal; o sonho hegemnico, enfim, da classe

    burguesa. O que se vendia era sim um gnero de vida, uma construo poltica e ideolgica, e vises de uma sociedade futura idealizada. (...) A indstria e a

    produo em escala no eram o eixo de um conceito de sociedade e cultura? (...) O

    que eram as exposies retrospectivas (montadas com tanta nfase na Exposio de

    1889) seno representaes de uma viso histrica, conceitual? O que eram as

    exibies dos inventos mais recentes seno a demonstrao da capacidade criativa

    do homem? O que era o significado de toda uma exposio, como panorama

    evolutivo do progresso (...) seno uma promessa de futuro?

    Em outras palavras, as feiras internacionais revelavam ao pblico as transformaes da

    modernidade e seus efeitos na sociedade industrial, ao oportunizar a compreenso a respeito

    das novas possibilidades produtivas. Pela concretizao de metforas como as engrenagens da sociedade ou a mquina humana (CARDOSO, 2008), as exposies introduziram a tecnologia no mbito das relaes entre as pessoas e a cultura material.

    Somos levados ao entendimento da vocao didtico-pedaggica do design ao

    refletirmos sobre a afirmao da atividade na Europa poca das grandes exposies. As

    feiras colocavam o iderio moderno em confrontao com o repertrio do homem, que o leva

    a assimilar um novo mundo de progresso, e isto se dava atravs de produtos, mquinas,

    cartazes e construes, num contexto de rica visualidade. Dada a importncia do momento

    para o design com a influncia do fenmeno tambm na formao dos jovens profissionais daquele tempo conclumos a respeito da relao entre educao e design alicerada nas essncias da profisso.

    Referncias

    BARBUY, H. A exposio universal de 1889 em Paris. So Paulo: Loyola, 1999.

    BATISTA, W. B. & PRET, T. C. As feiras do sculo XIX e a digresso da cultura de

    projetos. In: Anais do 8 Simpsio Internacional Processo Civilizador, Histria e

    Educao. Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal da Paraba:

    2004.

    CARDOSO, R. Uma introduo histria do design. So Paulo: Edgard Blcher, 2008.

    FORTY, A. Objetos de desejo design e sociedade desde 1750. So Paulo: Cosac & Naify, 2007.

  • A vocao didtico-pedaggica do design:

    as exposies universais do sculo XIX

    9 Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design

    FLUSSER, V. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicao. So

    Paulo: Cosac & Naify, 2007.

    HESKETT, J. Desenho Industrial. Rio de Janeiro: Livraria Jos Olympio Editora, 1998.

    KRIPPENDORFF, K. The semantic turn. Boca Raton (FL): CRC Press, 2005.

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    PESAVENTO, S. J. Exposies Universais: espetculos da modernidade do sculo XIX. So

    Paulo: HUCITEC, 1997.

    PLUM, W. Exposies mundiais no sculo XIX: espetculos da transformao scio-

    cultural. Bonn: Friedrich-Ebert-Stiftung, 1979.

    SILVA, J. C. C., O desenvolvimento do design e a evoluo do pensamento artstico na

    Europa at o incio do sculo XX. Dissertao de Mestrado. 168f. Programa de Ps-

    graduao em Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    (PROPAR/UFRGS): 2005.

    ____________________ Crditos das imagens:

    Figuras 1, 3, 4, 5 e 7 Referencial terico de Sandra Jatahy Pesavento (1997). Figuras 2 e 6 Referencial terico de Helosa Barbuy (1999).