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8/4/2019 A POLTICA EXTERNA BRASILEIRA NA ERA FHC UM EXERCCIO DE AUTONOMIA PELA INTEGRAO
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R E V I S T A I N T E R N A C I O N A L I N T E R D I S C I P L I N A R I N T E R T H E S I S - PPGICH UFSC
A POLTICA EXTERNA BRASILEIRA NA ERA FHC: UM EXERCCIO DE AUTONOMIAPELA INTEGRAOTHE BRAZILIAN FOREIGN POLITICS IN THE CARDOSO GOVERNMENT: ANEXERCISE OF AUTONOMY FOR THE INTEGRATION.
Tullo Vigevani
Marcelo Fernandes de OliveiraResumo:As mudanas na poltica externa brasileira na dcada de 90 foram importantes. Durante
os dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso, buscou-se substituir aagenda reativa, da poltica externa brasileira, dominada pela lgica da autonomia peladistncia, por uma nova agenda internacional pr-ativa, determinada pela lgica daautonomia pela integrao. Segundo ela, o pas deve ampliar o poder de controle sobre oseu destino e enfrentar seus problemas atravs da adeso ativa elaborao das normase das pautas de conduta da gesto da ordem mundial, colaborando na formulao efuncionamento dos regimes internacionais. O trabalho analisa o perodo dos dois
mandatos do presidente Cardoso, com extenso para o perodo anterior, Sarney, Collorde Mello, Itamar Franco, e posterior, Lula da Silva. Busca-se fazer um balano de custose benefcios, insistindo sobre os constrangimentos estruturais, que acabam por influenciara ao internacional do pas. Nesse quadro, o esforo desenvolvido no se mostrasuficiente para alterar um quadro desfavorvel. As negociaes no tocante ALCA,buscando equilibrar realismo com defesa de interesses especficos, mostram asdificuldades desse quadro, que permanecem alm de uma gesto presidencial.
Palavras-chaves: Governo Fernando Henrique Cardoso; Poltica externa do Brasil;Autonomia pela integrao; Multilateralismo.
Abstract:The changes in the Brazilian foreign politics in the nineties were important. During thetwo terms of the president Fernando Henrique Cardoso, they tried to substitute thereactive agenda of the Brazilian foreign politics dominated by the logic of distanceautonomy with a new pro-active international agenda, determined by the logic ofintegration autonomy. According to it, the country must broaden the power of control over
Este artigo foi publicado inicialmente na revista Tempo Social, So Paulo: Revista de Sociologia da USP,Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de SoPaulo, Volume 15, n. 2, novembro 2003 (2004), pp. 31-61
Professor da UNESP e pesquisador do CEDEC Pesquisador do CEDEC e professor da Faculdade Ibero-americana
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its destiny and face its problems through the active adherence to the elaboration of therules and behavior policies of the worldwide management, cooperating in the formulationand functioning of the international regimes. The paper analyzes the period of the twoterms of the President Cardoso, with an extension backwards to the previous period,
Sarney, Collor de Mello, Itamar Franco, and forward, to Lula da Silva. We have tried tobalance costs and benefits, insisting on the structural embarrassments that wind upinfluencing the international action of the country. In this context, the effort developeddoes not seem to be enough to alter an unfavorable situation. The negotiations concerningALCA, trying to balance realism with the defense of particular interests, show thedifficulties of this picture, which remain beyond a presidential management.
Keywords: Fernando Henrique Cardoso Government; Brazilian foreign politics;Integration autonomy; Multilateralism.
Introduo
Nosso objetivo analisar o processo de adequao da Poltica Externa do Brasil
nos anos dos governos FHC (1995 1998 e 1999 - 2002) aos interesses nacionais, tais
como emergem no contexto mundial do ps-Guerra Fria. A hiptese central que um
determinado tipo de adequao teve incio no governo Collor de Mello, sofreu breve
retrocesso no governo Itamar Franco e foi retomado e aprofundado durante os dois
mandatos de FHC. Ao longo dos oito anos buscou-se substituir a agenda reativa da
poltica externa brasileira, dominada pela lgica da autonomia pela distncia, que
prevaleceu na maior parte dos anos em que durou a Guerra Fria, por uma nova agenda
internacional pr-ativa, determinada pela lgica da autonomia pela integrao. De acordo
com essa perspectiva, o pas deve ampliar o poder de controle sobre o seu destino e a
resoluo de seus problemas internos melhor viabilizada pela participao ativa na
elaborao das normas e das pautas de conduta da ordem mundial (Fonseca Jr., 1998, p.
363-374). Assim, a contribuio afirmativa, engajada, para a estabilidade e a paz(Lampreia, 1997, p. 14) no Ps-Guerra Fria serviria para afirmar o prprio poder nacional.
por meio da participao ativa na organizao e na regulamentao das relaes
internacionais, nas mais diversas reas, que a diplomacia brasileira poder contribuir para
o estabelecimento de um environment de convvio favorvel realizao do principal
objetivo do pas, ou seja, garantir o seu desenvolvimento econmico. Objetivo esse que
permaneceu como estruturador da ao externa do Brasil durante a maior parte do sculo
XX.
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A percepo que prevaleceu no governo FHC a da necessidade crescente,
devido s grandes transformaes do mundo no ps-Guerra Fria, de ajustar os interesses
especficos brasileiros s grandes tendncias do mundo contemporneo, da
modernidade, num entorno onde prevaleciam concepes liberais. Estas pareciam
associadas ao fortalecimento de valores considerados universais, como democracia,
direitos humanos, proteo ambiental, direitos sociais. Assim, o interesse nacional o de
captar as tendncias profundas, buscando ajustar-se s dinmicas da ordem mundial que
podem ser teis legitimao e concretizao dos prprios objetivos. Segundo Lafer
(2000), a diplomacia brasileira deveria aprofundar nos foros multilaterais a linha de poltica
externa inaugurada por Rui Barbosa, em Haia, em 1907. Para ele, essa poltica na
atualidade se traduz em obter no eixo assimtrico das relaes internacionais do Brasilum papel na elaborao e aplicao das normas e das pautas de conduta que regem os
grandes problemas mundiais, que tradicionalmente as grandes potncias buscam avocar
e, na medida do possvel, exercer com exclusividade (Lafer, 2000, p. 263).
Na percepo dos formuladores da poltica externa ao longo do governo FHC, dos
seus chanceleres, Lampreia e Lafer, dos diplomatas-intelectuais, a diplomacia brasileira
teria alcanado legitimidade internacional para exercer este papel graas ao seu legado
histrico-diplomatico e boa adequao de suas aes s foras profundas no decorrerdo sculo XX. Tudo isso teria embasado a atuao do pas na cena internacional,
buscando estabelecer consensos em torno de uma atuao e insero pautada no
pacifismo, no respeito ao direito internacional, na defesa dos princpios de auto-
determinao e no-interveno e, por fim, no pragmatismo como instrumentos
necessrios e eficazes legitimao dos interesses do pas no mundo.
Essa forma de insero internacional foi melhor elaborada e efetivamente
executada a partir do incio dos anos noventa e aprofundada nos dois mandatos de FHC.Buscou-se efetiv-la atravs de uma participao que o governo definia como construtiva
e propositiva no que tange aos assuntos da nova agenda internacional: meio ambiente,
direitos humanos, no proliferao nuclear, integrao regional na Amrica do Sul,
respeito democracia. Isso teve conseqncias concretas, por exemplo nas atuaes
concertadas contra diferentes tentativas de rompimento institucional no Paraguai e
tambm na Venezuela; na procura, tambm concertada, que alcanou xito, de resoluo
do conflito entre Equador e Peru. A defesa do multilateralismo no mbito da OMC
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enquadra-se na mesma perspectiva de atuao propositiva, de aceitao do jogo, dentro
dele buscando formas de legitimar suas prprias posies.
Esta atuao durante o governo FHC tendeu a se multiplicar nos foros multilaterais.
Segundo os formuladores da poltica exterior, o Brasil os considera o melhor tabuleiro
para gerar poder pela ao conjunta, permitindo ao pas exercitar a sua competncia na
defesa dos interesses nacionais. neste tipo de tabuleiro que reside o melhor do nosso
potencial para atuar na elaborao das normas e pautas de conduta da gesto do espao
da globalizao no campo econmico, no qual reside o nosso maior desafio (Lafer, 2000,
p. 265).
O estilo do governo na Era FHC levou procura das oportunidades possveis no
quadro de uma estratgia que pode ser classificada como moderada e conciliatria,fazendo reiterado uso da idia de tolerncia. Dessa forma, a maximizao das vantagens
permitidas pelo uso dos foros internacionais teve o limite de uma ao que sempre
buscou evitar a gerao de custos excessivos. A busca de normas e regimes
internacionais visando fortalecer um ambiente o mais possvel institucionalizado foi uma
constante. Nesse sentido, pode-se afirmar que os anos FHC mudaram, ainda que no
totalmente, uma longa fase da poltica exterior do Brasil, especialmente formulada por
Arajo Castro (1982). Essa poltica era decididamente resistente consolidao deinstituies e regimes, considerados engessadores na poca da Guerra Fria - da
hierarquia de poder existente. Portanto, em relao ao ambiente internacional onde o
poder do Estado brasileiro surge em situao de relativa debilidade, a perspectiva
institucionalista passa a ser entendida como favorecendo regras do jogo que uma vez
estabelecidas devem ser respeitadas por todos, portanto tambm pelos mais poderosos.
No desconhecido o fato que essas regras e instituies so fortemente influenciadas
pelas relaes de poder, mas sem elas os riscos sistmicos seriam maiores. No contextodo Mercosul e, depois, da Amrica do Sul, a perspectiva diferente, nesse caso, uma
relao de poder mais favorvel vista como til para alavancar uma insero universal
do tipo de global player.
A avaliao dos anos do governo FHC sugere que esta perspectiva de insero
no foi suficiente para garantir maior participao nas decises. O significado da trajetria
deve ser compreendido em perspectiva mais ampla, que no tem a ver diretamente com a
posio do pas na dcada de noventa. Ao longo de todo o sculo XX, a Amrica Latina,
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tambm o Brasil, teve reduzido seu peso internacional, em razo do crescimento do gap
frente aos pases ricos e pelo surgimento de reas de maior desenvolvimento,
particularmente a do Leste da sia. Para evitar essa trajetria, o Brasil tentou alguns
caminhos, o mais significativo foi o Mercosul, mas seus resultados no foram adequados
para contrastar a tendncia apontada. Na Era FHC o reconhecimento de nveis
crescentes de interdependncia, regional e global, reconhecimento sempre afirmado,
acabou no se traduzindo em instrumentos adequados a essas realidades. Nas relaes
internacionais a vontade de um Estado reporta-se capacidade da sociedade de dar
sustentao a determinadas polticas e vontade cooperativa dos partners. Como
veremos, em alguns casos a poltica exterior foi inteligentemente mobilizada para obter
resultados tangveis, mas a tendncia de longa durao de relativo encolhimento nopde ser revertida. A imagem do Brasil na Era FHC deteriorou-se no mundo, mesmo
naqueles aspectos em que a vontade do governo mostrava-se positivamente decidida.
Consolidou-se na opinio pblica internacional, que, como sabemos, afeta fortemente as
decises dos Estados, uma imagem negativa do pas em temas importantes: direitos
humanos, violncia, tratamento das crianas, das minorias, meio ambiente, narcotrfico. A
ao do governo foi ultrapassada pelo desenrolar dos acontecimentos no pas real,
influindo no papel que poderamos desempenhar e, em parte, em nossa capacidade dealcanar resultados. Na parte final do governo FHC, particularmente em 2001 e 2002,
tomaram-se medidas no sentido de proporcionar melhor adequao dos diplomatas e dos
grupos que devem dar-lhe sustentao para enfrentar a cada vez maior complexidade das
negociaes. Isso significa especializao e relaes mais intensas com especialistas,
universidades, empresas, escritrios de advocacia.
1 Movimentos de renovao e adaptao dos paradigmas da poltica exterior nadcada de noventa
As diretrizes da poltica externa brasileira na Era FHC respeitaram parmetros
tradicionais: pacifismo, respeito ao direito internacional, defesa dos princpios de auto-
determinao e no-interveno, pragmatismo como instrumento necessrio e eficaz
defesa dos interesses do pas. Esses princpios so suficientemente gerais, portanto
podem ser adaptados a diferentes circunstncias. Proporcionam aos tomadores de
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decises flexibilidade discursiva e conceitual, facilitando, de acordo com as mudanas
histricas ou conjunturais, o espao para inserir mecanismos de adaptao a novas
realidades ou a uma compreenso de mundo distinta.
At 1988, os parmetros tradicionais davam sentido para polticas protecionistas,
voltadas idia de autonomia pela distncia. Esse eixo influenciava o conjunto da poltica
exterior, tambm em temas no econmicos. Quando, no final do governo Sarney, no seio
do Estado foram-se desenhando mudanas importantes no sentido de absorver a
evoluo de cunho acentuadamente liberal que a globalizao introduzia, simbolicamente
representada pelo carter das negociaes na Rodada Uruguai do Gatt, os parmetros
no foram mudados, permaneceram, mas interpretados de outra forma. Ao longo do
governo FHC no se podem identificar mudanas nos parmetros bsicos, mascertamente deram-se inflexes importantes. A forma como so interpretados os
interesses nacionais sofreu mudanas, permanecendo intacta a idia, como escreveu
Ricupero, que o Brasil um pas fiel aos compromissos jurdicos, cioso da defesa de
direitos herdados, mas com moderao e equilbrio, disposto a transigir, sem intentos
agressivos ou de interferncia em relao a vizinhos (Ricupero, 2000, p. 51-53).
As gestes no ministrio das Relaes Exteriores, Lampreia (1995 - 2000) e Lafer
(2001 - 2002), sem deixar de ser incisivas em alguns casos, configuram-se como umestilo de comportamento diplomtico caracterizado pela busca da moderao construtiva,
expressa na capacidade de desdramatizar a agenda da poltica externa, ou seja, de
reduzir os conflitos, crises e dificuldades ao leito diplomtico, evitando que sejam
explorados ou magnificados por interesses conjunturais (Fonseca Jr., 1998, p. 356). Nas
palavras de Lafer, preferindo a resoluo das diferenas por meio da Diplomacia e do
Direito, reduzindo o mpeto da poltica de poder e da guerra (Lafer, 2001-b, p. 47). Ainda
nesta perspectiva, que poderamos classificar como intermediria entre o paradigmagrociano e o kantiano, buscou-se resguardar conquistas, confiando na capacidade de
convico, sem descuidar os temas do poder e da fora, mas confiando sobretudo no
dialogo. Os acontecimentos internacionais do derradeiro perodo do governo FHC,
especialmente o 11 de setembro de 2001, as caractersticas que tomou a administrao
George W. Bush, cujos impactos de longo prazo no esto definidos, sugerem que a
perspectiva de fortalecimento dos regimes internacionais exige uma articulao ainda no
existente. O governo FHC esteve preocupado com ela, insistiu nas relaes com China,
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ndia, frica do Sul, buscou equilibrar o dilogo com os Estados Unidos no quadro das
negociaes da ALCA e fora dela por meio do dialogo Mercosul Unio Europia. As
condies existentes para que o Brasil pudesse traduzir estes objetivos em realidades
mostraram-se insuficientes.
A partir de 1990, os eixos das relaes internacionais tais como configurados ao
fim da Segunda Guerra Mundial, o Norte-Sul e o Leste-Oeste, pareceriam estar sendo
substitudos por novas formas de estruturao da sociedade internacional. Essa
estruturao surgiria a partir da agenda emergente originada na idia dos novos temas,
polticos e econmicos. Durante o governo FHC os temas da agenda emergente
ganharam centralidade em nvel internacional e a poltica exterior do Brasil buscou
adaptar-se a eles. O Ministrio das Relaes Exteriores criou departamentos, divises,adequou as subsecretarias, visando responder aos novos temas. Com isso foi
consolidando-se a perspectiva multilateral, que ganha mais importncia. Como sugere a
teoria da interdependncia, os temas soft ganham mais peso na arena internacional
(Keohane e Nye, 1989). Na perspectiva brasileira, isso significa que a importncia
relativa de cada pas passa a ser medida menos por seu peso militar ou estratgico, e
mais por sua projeo econmica, comercial, cientfica ou cultural (Abdenur, 1994, p. 3).
De acordo com pesquisa em desenvolvimento (UNICAMP e CEDEC, 1999), emalguns pases, no mbito interno, parece haver um movimento de adequao,
engendrado por parte das elites polticas e econmicas responsveis pelos Estados, em
direo assimilao e adeso da agenda dos novos temas e do multilateralismo,
internalizando-se os valores fortes do environment internacional. Essa incorporao tem
diferentes canais, um deles tem referncia nos organismos internacionais. A construo
de um marco jurdico para a regulao dos temas universais contemporneos ganhou
relevncia como instrumento de induo da internalizao das percepes. Parte dadiplomacia brasileira no governo FHC teve um papel importante no sentido de chamar a
ateno da sociedade para os novos temas e para a agenda. Estruturas como a
SENALCA, como Ministrio do Meio Ambiente no tocante s questes ambientais, so
exemplos. Ao mesmo tempo, a adequao do Estado para o contexto negociador e a
capacidade dos atores privados de responder adaptando-se aos patamares novos
mostrou-se insuficiente. Muitas vezes, as posies brasileiras mantiveram-se defensivas.
Em outros, a deciso ofensiva concentrou-se em reas com competitividade, como a
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agricultura, mas que no podem representar o conjunto dos interesses nacionais, mesmo
quando muito importantes.
Em perspectiva histrica, este cenrio de mudanas teve como conseqncia
indireta o aumento na vulnerabilidade brasileira. Parte significativa dos principais temas da
nova agenda internacional so especificamente sensveis para o pas: meio ambiente,
direitos humanos, minorias, populaes indgenas, no proliferao, merecendo ateno.
Nos governos FHC consolidou-se uma posio no defensiva em relao a eles (Lafer,
2002), ainda que no tenha atenuado a atitude crtica da opinio pblica dos pases ricos
para com o Brasil. Esta nova realidade criou, mais uma vez, a necessidade de adequao
e readaptao do patrimnio da diplomacia brasileira e das necessidades internas. O
tema permanente da agenda externa brasileira, o desenvolvimento econmico,permaneceu central. Ao mesmo tempo, caracterstica da Era FHC foi a do movimento
pendular, buscando maximizar, por um lado, as vantagens que derivam da propenso a
ser um global tradere, por outro, a sinalizando adequao aos regimes liberais, ainda que
at o ponto em que, segundo a linguagem do governo, trariam vantagens tangveis. O
governo FHC buscou ajustar um movimento da poltica externa brasileira que, como
dissemos, havia-se iniciado na segunda metade do governo Sarney e ganhou perfil mais
elevado no governo Collor de Mello. A idia de levar o Brasil ao Primeiro Mundo por meioda modernizao e da insero competitiva na economia internacional fez da poltica
externa um tema importante nos anos de governo Collor de Mello. Ao longo da dcada de
noventa, alguns temas de poltica exterior foram absorvidos pela agenda interna, em
razo da crena, para alguns, de que contribuiriam para proporcionar desenvolvimento
ou, inversamente, pelas resistncias desencadeadas (Hirst e Pinheiro, 1995).
Segundo Hirst e Pinheiro, as metas prioritrias a serem alcanadas implicariam a
atualizao da agenda internacional do pas de acordo com os novos temas e prticasinternacionais (propriedade intelectual, meio ambiente, direitos humanos, tecnologias
sensveis), a construo de uma agenda positiva com os Estados Unidos e a
descaracterizao do perfil terceiro-mundista do Brasil (Hirst e Pinheiro, 1995, p. 6). Para
Cervo (1998) e Soares de Lima (1994), o perfil destas prioridades indicam um movimento
de ruptura com o modelo universalista da poltica externa brasileira. Em outros termos,
pode-se dizer que o processamento interno das mudanas do sistema internacional
ocorridas ao final da dcada de oitenta e na de noventa, deu-se buscando novas formas
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de insero. Reconheceu-se a realidade do unipolarismo e da preponderncia sistmica
nos mais diferentes campos dos valores norteamericanos e europeus, ainda que
insistindo na necessidade da no aceitao dos aspectos desfavorveis ao Brasil. Este
equacionamento permitiu a construo de polticas especficas, tanto na Amrica do Sul
quanto em relao a outras regies, os acordos em reas de alta tecnologia com a China
so um exemplo.
Segundo Soares de Lima (1994), a orientao do governo Collor de Mello decorreu
de fortes restries externas, tendo motivaes tanto ideolgicas quanto pragmticas. No
plano ideolgico, segundo Mello tratava-se de afirmar as possibilidades da modernizao
pela adoo dos padres e prticas dominantes nos pases desenvolvidos (Mello, 2000,
p.75). A idia era internalizar na realidade brasileira valores e prticas atinentes globalizao. De acordo com Fonseca, trata-se de desdramatizar a agenda da poltica
externa, ou seja, de reduzir os conflitos, crises e dificuldades (Fonseca Jr., 1998, p.
323). A restaurao da credibilidade do pas nas vrias dimenses, comercial, financeira,
poltica, por meio de um engajamento seletivo, pretendia uma integrao competitiva da
economia nacional globalizao (Hirst e Pinheiro, 1995). As reformas econmicas
condensadas no plano de estabilizao, liberalizao cambial, fim de subsdios, adoo
de nova legislao sobre propriedade intelectual, liberalizao de importaes, aberturacomercial, liberalizao de investimentos, privatizao de empresas estatais e
renegociao da dvida externa, eram entendidas como medidas internas adequadas
melhor insero internacional.
A perspectiva representada por esse projeto refletiu uma viso que ampliava-se
nos pases pobres, inclusive na Amrica Latina, associada a uma compreenso de mundo
em que percebiam-se as mudanas que prevaleceriam com o fim da Guerra Fria e da
bipolaridade. Foi o perodo de crise do conceito de Terceiro Mundo, quando novas regrasno sistema internacional, inclusive aquelas em discusso na Rodada Uruguai do Gatt,
sinalizavam possibilidades de influncia nos novos regimes em construo. Assim, a
questo da insero autnoma ganharia outra forma, fortalecendo-se o peso do debate
sobre o significado das tendncias predominantes do cenrio internacional. A
interpretao de Bull (2002) sobre as razes da existncia de uma sociedade
internacional, combinando comunidade de interesse com conflito, tem algo de parecido
idia da coincidncia de aspiraes, o que deveria garantir uma maior cooperao por
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parte dos pases desenvolvidos (Azambuja 1990, p. 6). O aspecto pragmtico relaciona-
se com a idia de que isso traria maior credibilidade nas negociaes internacionais para
a obteno de crditos e investimentos, assim como tambm acesso a tecnologia e aos
mercados, visando a gerao do desenvolvimento (Azambuja, 1990).
As mudanas efetivamente implementadas foram as relacionadas ao comrcio
exterior, s tecnologias sensveis incidentes sobre as questes de segurana
internacional e ao meio ambiente. Todas indicativas da busca de readaptao dos
paradigmas da poltica exterior ao mundo ps-Guerra Fria. De uma lgica da autonomia
pela distncia para uma nova agenda internacional pr-ativa, determinada pela lgica da
autonomia pela participao. O presidente Collor de Mello afirmou que em seu modelo de
insero internacional no se trata somente de conseguir uma vaga no chamadoPrimeiro Mundo. ... Temos de participar at mesmo para que as questes de nosso
interesse faam parte da agenda e sejam tratadas de forma equilibrada (apudAzambuja,
1990, p. 18). No tocante poltica comercial, o governo Collor de Mello implementou
unilateralmente um programa de liberalizao que, ao mesmo tempo, visava tanto
eliminar barreiras no-tarifrias e proibies importao como reformulava o sistema de
incentivos exportao, reduzindo as tarifas brasileiras para menos da metade daquelas
praticadas at ento (Abreu, 1995, p. 398-399).No tocante poltica comercial multilateral, na fase final das negociaes da
Rodada Uruguai do Gatt, o governo Collor de Mello consolidou um novo posicionamento
que vinha sendo gestado no mbito da diplomacia brasileira e dos ministrios ligados ao
comrcio exterior: segundo alguns, um alinhamento s posies dos Estados Unidos
(Mello, 1992), julgado necessrio para a consolidao de regras e instituies de
regulamentao do comrcio multilateral que poderiam ser benficas na abertura de
novos mercados para as exportaes brasileiras.Na rea de tecnologias sensveis e segurana internacional, as novas diretrizes
emergiram inequivocamente. A cerimnia simblica de fechamento dos campos de provas
nucleares da Serra do Cachimbo mostrava a deciso unilateral de renncia ao direito de
realizar exploses nucleares, mesmo com fins pacficos. Nessa direo outras medidas: a
assinatura do acordo de criao da Agncia Brasileiro-Argentina de Contabilidade e
Controle de Materiais Nucleares (ABACC); a assinatura do Acordo Quadripartite de
Salvaguardas Nucleares entre o Brasil, a Argentina, a ABACC e a Agncia Internacional
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de Energia Atmica; a proposta de reviso do Tratado de Tlatelolco, uma iniciativa
conjunta de Brasil, Chile e Argentina, que abriria caminho para que estes pases
finalmente ratificassem o acordo; uma legislao especfica de controle de exportao de
armas de tecnologia sensvel; o compromisso assumido com os Estados Unidos de
comear a considerar a possibilidade de aderir ao Regime de Controle de Tecnologia de
Msseis (MTCR) (Hirst e Pinheiro, 1995, p. 6-7).
No contexto desses objetivos, ganhou importncia a questo do meio ambiente. A
realizao da Conferncia das Naes Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento
(ECO-92) no Rio de Janeiro, na qual foram aprovados diversos documentos - Declarao
do Rio, Agenda 21, Conveno Sobre Mudanas Climticas, Conveno Sobre
Diversidade Biolgica, Declarao de Princpios Sobre Florestas tem o sentido simblicode marca do auge do novo protagonismo internacional do pas como ator eficaz no
gerenciamento de conflitos, articulador de consensos e catalisador e propositor de novas
agendas. Buscava-se e em parte foi alcanado, conferir ao Brasil uma nova relevncia no
tratamento das questes ambientais em nvel global. A iniciativa da Conferncia fora
tomada no governo Sarney, mas concretizada em 1992. A crise poltica deflagrada ainda
no primeiro ano de mandato inviabilizaram o aprofundamento das polticas, conjugando-
se ao fracasso do plano de estabilizao e aos problemas na superao dosdesequilbrios macroeconmicos. Tudo isso configurou o debilitamento, inviabilizando que
o primeiro acordo sobre a dvida externa, alcanado em abril de 1991, alcanasse
credibilidade (Mello, 2000).
Numa demonstrao das dificuldades na implementao dessa estratgia de
poltica exterior, a expectativa de aproximao com os Estados Unidos sofreu significativo
abalo com a Guerra do Golfo no primeiro trimestre de 1991. O governo brasileiro no
enviou tropas, ainda que solicitado, nesse caso contrastando com a poltica Argentina,que mandou para a rea do conflito duas fragatas. Nesse mesmo perodo, em abril de
1991, o Brasil foi includo na lista de investigao da United States Trade Representative
(USTR) por violao s regras de proteo de patentes. Apesar dos esforos do governo
para o estabelecimento de melhores nveis de credibilidade pela adeso aos valores que
vinham mais e mais apresentando-se como universais, as expectativas por parte dos
pases ricos sobre a possibilidade de rpida recuperao brasileira foi-se esvaziando.
Pode-se afirmar, em certo sentido, que o esforo de mudanas empreendido esteve longe
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de alcanar os resultados esperados, apesar da profundidade das mudanas.
Provavelmente possa ser atribudo o dbil resultado convergncia de dois vetores, de
um lado, a incapacidade interna de mobilizao de recursos materiais e simblicos, de
outro, a existncia de um ambiente internacional no qual a adeso a valores no o
elemento decisivo para obter as vantagens esperadas dessa atitude. Rezek, ento
ministro das Relaes Exteriores, afirmou que a contrapartida no veio na intensidade e
no ritmo desejados por um pas que quer trabalhar depressa (Jornal do Brasil, 1991).
Collor de Mello na mesma ocasio afirmava que no h apoio para nada do mundo
desenvolvido (Jornal do Brasil, 1991). A partir de ento, houve por parte do governo uma
progressiva reduo da retrica da cooperao e da convergncia com o Primeiro Mundo,
enquanto as crticas aos pases desenvolvidos tornaram-se freqentes (Mello, 2000, p.96).
A crise poltica em 1991 e 1992, debilitando o papel da presidncia, portanto de
qualquer veleidade de diplomacia presidencial, pde parcialmente fortalecer o ministrio
das Relaes Exteriores na retomada de seu papel. Na reforma ministerial de abril de
1992, Lafer assumiu o ministrio, propondo-se, no novo quadro poltico que ia-se
desenhando, a tarefa de adequao de paradigmas, buscando restabelecer alguns
elementos de continuidade com as tendncias histricas da diplomacia brasileira. Aomesmo tempo, manteve aderncia a posies que pareceram prevalecer na elite
brasileira, a da aceitao de regras, procedimentos, regimes que surgiam como
universais. Esses refletiam a evoluo do perodo ps-Guerra Fria, onde equilbrio, freios
e contra-freios esgaravam-se crescentemente. O fortalecimento do multilateralismo
parecia como uma possibilidade a favorecer um mnimo de regras contratadas.
2 Premissas da poltica
A poltica exterior do Brasil dos dois mandatos de FHC deve ser analisada no
contexto das mudanas de paradigmas vistos no subttulo anterior. Dissemos que o incio
do processamento das mudanas deu-se na fase final da administrao Sarney,
estimuladas pelas novas formas que ia tomando a economia internacional, na fase
chamada de globalizao. Funcionrios do Estado, encarregados da formulao da
poltica comercial, industrial e de desenvolvimento, de forma coordenada com segmentos
importantes do setor empresarial, passaram a interpretar que a relao custo/benefcio
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para o Brasil seria mais benfica num ambiente de abertura, adequado ao entendimento
que, sem capacidade competitiva, s restaria o aprofundamento da defasagem em
relao aos pases ricos e mesmo aos outros pases subdesenvolvidos, mas que
pareciam habilitar-se a uma decolagem sustentada.
Esta evoluo deu-se paulatinamente, tendo-se ampliado na fase final da gesto
Abreu Sodr no ministrio. Teve continuidade na de Rezek. Na de Lafer, em 1992, houve
a elaborao conceitual mais refinada dessa poltica, podendo ser considerado o
momento de consolidao do paradigma da autonomia pela integrao. Sem dvida esse
foi o leitmotivnos dois mandatos de FHC. Formularam-se as diretrizes, inserindo-as no
contexto da tradio diplomtica do pas sem rompimentos radicais. A mudana de rumo
da primeira fase do governo Collor de Mello passa a ser vista como necessidadeconjuntural, logo depois reenquadrada no leito maior da histria. Essa interpretao
permaneceu ao longo da dcada de noventa, provavelmente at o final do governo FHC.
Lafer relatou que ao tomar posse no ministrio das Relaes Exteriores em abril de 1992,
encontrou uma viso de poltica externa com mudanas, mas ainda sem um contorno
ntido.... No havia ainda total clareza quanto ao por que, ao como e ao quanto,
sobretudo, se deveria mudar (Lafer, 1993-b, p. 274).
O relatrio anual do ministrio das Relaes Exteriores de 1993, apresenta essaidia, quando aponta que no ano de 1992 o esforo concentrou-se na construo de uma
moldura conceitual apropriada, para levar adiante a ao estratgica do Brasil (MRE,
1993, p.347). O governo Itamar Franco - inicialmente ministro das Relaes Exteriores
FHC, em seguida Celso Amorim - operacionaliza para a poltica externa os objetivos
traados. A busca de inteligibilidade envolveu ativamente o ministrio da Fazenda,
quando a adeso aos valores prevalecentes no cenrio internacional traduziu-se em
aes centradas na busca da estabilidade econmica. Em 1993 e 1994 encerra-se adesgravao tarifria iniciada pelo governo Collor de Mello em 1990, mas cujos
pressupostos estavam nos estudos da CACEX de 1988 e 1989. A deciso final de assinar
a Ata de Marrakesh, tornando-se assim um dos fundadores da OMC, a discusso da
Tarifa Externa Comum (TEC) no Mercosul, consolidando-se no Protocolo de Ouro Preto
de dezembro de 1994, a participao na Cpula de Miami de dezembro de 1994 que deu
incio s negociaes para a criao da ALCA, so as aes que acabaram por consolidar
a perspectiva traada. A aplicao das tarifas prevista pela TEC, que vinha sendo
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negociada ao longo do perodo de transio do Mercosul pelos sucessivos ministros da
Fazenda, na parte conclusiva por Ciro Gomes, e pelo secretrio de Poltica Econmica
Winston Fritsch, foi mesmo adiantada como estratgia de combate inflao.
O conceito de mudana com continuidade, que prevalece na era FHC, significa,
segundo seus formuladores, que a renovao do paradigma deve caracterizar-se por
viso de futuro e por adaptao criativa. Na perspectiva de FHC, tambm de Lampreia e
de Lafer, a viso de futuro fundamental frente a um ambiente desfavorvel, contra o
qual a diplomacia deve atuar a longo prazo, buscando adaptar-se s mudanas. O
objetivo no seria a adaptao passiva, mas, no limite do prprio poder, articulado com o
interesse de outros Estados e foras, redirecionar e reformar o ambiente, buscando a
possibilidade de participao nos assuntos internacionais por meio da elaborao deregimes mais favorveis aos interesses brasileiros. Regimes internacionais que, mesmo
no sendo ideais, representam um inequvoco aprimoramento na matria (Lafer 1993-a,
p. 46-47). Ao aderir, o Brasil estaria garantindo um marco legal internacional para a busca
da concretizao dos seus interesses nacionais. A reiterao de conceitos como o de
global trader, a interpretao do Mercosul como plataforma de insero competitiva no
plano mundial, sendo prioritrio mas no excludente, a idia da possibilidade de
integrao com outros pases e regies (MRE, 1993), representam o lado pragmtico doparadigma renovado que permaneceria ao longo da era FHC.
A consolidao de conceitos ou sua renovao, no neutra. Global trader
exprime a idia que o Brasil tem interesses globais, podendo assumir posies e agendas
diversificadas, buscando mercados e relaes sem vincular-se a um nico parceiro.
Nesse sentido, ganharia explicao o comportamento no institucionalista no caso do
Mercosul e, ao mesmo tempo, institucionalista na agenda multilateral, particularmente
frente s organizaes mundiais, como ONU ou OMC (Pinheiro, 2000). A opo de umglobal trader pela liberalizao comercial multilateral onde seus ganhos podem ser
maximizados. O ministrio das Relaes Exteriores manteve na dcada de noventa, at o
final da gesto FHC, o princpio de que a soluo global deve ser o objetivo (MRE, 1993,
p. 199), ou seja, na formulao de diplomatas, optar pela ALCA ou pela rea de livre
comrcio com a Unio Europia implica contribuir para o estabelecimento e para o pleno
funcionamento de um regime internacional de liberalizao comercial. Na Era FHC,
simbolicamente isso traduziu-se no modelo dos dois degraus da piscina. Acordos
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especficos, seriam como entrar na piscina, passando por um local de menor
profundidade, para adaptao profundidade maior. Dessa forma, a perspectiva
consolidada ao longo da gesto foi a do entendimento que os aspectos negativos da
globalizao deveriam ser freados temporariamente pela ao do Estado, numa viso de
futura plena adequao e insero.
O universalismo est presente h muito na poltica brasileira. Podemos encontr-lo
em perodos remotos, mais recentemente na Poltica Externa Independente e no
Pragmatismo Responsvel. A atualizao, pelo revigoramento da expresso global trader,
significa diversificao das relaes externas, agregando a elas a vertente regionalista.
Portanto, na gesto FHC consolidou-se a poltica j praticada nos governos Collor de
Mello e Itamar Franco, pela qual o Mercosul seria prioritrio na agenda brasileira porconstituir uma proposta indita na Amrica do Sul e, ao mesmo tempo, ter carter de
regionalismo aberto, sem excluso de outros parceiros. Abandonou-se a idia de
desenvolvimento que prevaleceu de 1985 a 1989, na fase de construo dos acordos
entre Argentina e Brasil, quando o papel do mercado interno ampliado teve forte
significado. Apesar da importncia que o bloco representou para os governos brasileiros,
na formulao de Lafer, para ns, destino, parte das nossas circunstncias. A ALCA no
destino, opo (Lafer, 2001), o interesse brasileiro no foi suficientemente amplo aoponto de favorecer a elevao de sua institucionalidade e aumentar a disposio a arcar
com o custo de sua consolidao. O Mercosul seria importante por viabilizar, a partir de
uma posio de maior poder, a incorporao dos pases s grandes tendncias
internacionais. A opo manifestada pelo governo Menem, fortalecida em seu segundo
mandato, a partir de 1995, de manter a Argentina em condies de optar por outras
alternativas, acabou contribuindo para as escolhas do governo FHC, ao verificar as
dificuldades para o aprofundamento da interdependncia no plano regional.
3 O legado intelectual
A partir de 1995, na Era FHC, o processo de renovao e adaptao do paradigma
da poltica externa foi absorvido, traduzindo-se nos pronunciamentos presidenciais de
Stanford, Colgio do Mxico, ndia, Assemblia Nacional francesa e outros. Em processo
de formulao desde 1992, passou a ser tratado de modo sistemtico, incorporado
poltica de Estado. No discurso de posse, FHC afirmava a necessidade de mudanas que
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garantissem uma participao mais ativa do Brasil no mundo, destacando o objetivo de
influenciar o desenho da nova ordem... e a necessidade ...de atualizar nosso discurso e
nossa ao externa (Presidncia da Repblica, 1996, p. 137). Lampreia complementa
afirmando que o pas soube fazer as alteraes de poltica que melhor respondiam s
mudanas em curso no mundo, no continente e no prprio pas. Essas alteraes
prosseguiro (Lampreia, 1995, p. 11). Ainda na interpretao do ministro, prosseguiro
por meio da promoo e completa adeso aos regimes internacionais, possibilitando a
convergncia da poltica externa brasileira com tendncias mundiais, evitando o
isolamento frente ao mainstreaminternacional.
Para o governo brasileiro, convergncia e evitar o isolamento nada tem a ver com
posio subordinada, ao contrrio, seria o caminho para o fortalecimento da prpriaposio relativa no sistema internacional. Para FHC, outra caracterstica importante de
seu governo seria a coincidncia entre os valores universalmente prevalecentes e a
identidade nacional. O Brasil que entra no sculo XXI um pas cujos objetivos
prioritrios de transformao interna, de desenvolvimento, esto em consonncia com os
valores que se difundem e se universalizam no plano internacional (Cardoso, 2000-b). A
adeso acabar se transformando em benefcio, pois no mundo globalizado,
incontornvel na histria contempornea, o mesmo sistema que nos impe um revsfunciona, no longo prazo, a nosso favor (Cardoso, 2000-b), desde que o pas tenha
competncia para transformar as oportunidades externas em benefcios internos (Lafer,
2001-a).
De forma mais precisa, a poltica externa na Era FHC seguiria uma linha que eu
chamaria de convergncia crtica em relao ao conjunto dos valores, compromissos e
prticas que hoje orientam a vida internacional.... Convergncia, porque as
transformaes ocorridas no Brasil nos aproximaram, por deciso prpria, desse cursocentral da histria mundial, em uma era na qual a democracia poltica e a liberdade
econmica so as referncias fundamentais (Lampreia, 2001). A justaposio dos termos
convergncia e crtica justificar-se-ia porque na realidade das relaes internacionais
contemporneas, a observncia dos valores e compromissos que compem esse
mainstream continua a padecer de graves distores e incoerncias, alimentadas e
facultadas pela prevalncia das assimetrias de poder sobre o princpio da igualdade
jurdica (Lampreia, 2001). Relevante essa interpretao porque explica de forma clara o
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entendimento do governo. Desse modo, a adequao ao mainstream, em termos de
princpios, correta. O que o Brasil critica, insistindo a respeito ao longo dos dois
mandatos, so as distores. Sobre elas, o discurso e a ao fazem-se sentir. As crticas
s polticas de imposio surgiram no contexto de uma linguagem e de uma ao
diplomtica voltada ao entendimento. Buscou-se a todo momento evitar tenses
irremediveis, seja com os Estados Unidos, seja com outros pases. No caso das relaes
com a Argentina, mesmo no momento onde as divergncias ganharam maior intensidade,
em janeiro de 1999, com a desvalorizao do real, a poltica do governo FHC foi a de
tentar formas de entendimento.
Atuar dentro do sistema para a soluo de divergncias permaneceu como objetivo
constante do governo ao longo dos dois mandatos. As incoerncias entre o discurso e aprtica dos atores mais poderosos e influentes da sociedade internacional em diferentes
cenrios, nas relaes entre Estados, no comrcio mundial, no funcionamento dos
organismos internacionais, nos temas de segurana, na questo do meio ambiente,
surgiram como realidades frente s quais no haveria outra forma de superao a no ser
pelo entendimento. O ativismo em algumas instncias, como na OMC, buscou fortalecer a
posio brasileira.
Ao longo do governo FHC, aumentou a compreenso dos limites de uma estruturade governo na rea internacional no preparada para as mudanas em curso, que exigem
altos nveis de especializao e melhor articulao entre a sociedade e as diferentes
instncias pblicas. O ativismo assinalado, em alguns casos, como veremos, produziu
resultados tangveis em favor do Brasil. Nos ltimos anos, o governo buscou formas de
superao dos limites, mas no chegou a alterar, no nvel necessrio e desejado, a
competncia negociadora do pas. O constante recurso a escritrios estrangeiros para a
defesa dos interesses econmicos de empresas brasileiras serve como exemplo.Na perspectiva do governo FHC, o fim a ser alcanado, no contexto da autonomia
pela integrao, uma agenda pr-ativa, segundo a qual o pas deve ampliar o poder de
controle sobre o seu destino. A poltica externa deve contribuir para a resoluo da
agenda interna de desenvolvimento e de crescimento, ajudando a superar os problemas
sociais. Reiteram-se nesse caso as formulaes a respeito do significado dessa poltica
construdas a partir de 1930. Diferentemente de outras fases, segundo Fonseca Jr.
(1998), isso seria melhor alcanado pela participao ativa na elaborao das normas e
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dificuldades de consolidao que teve aquele governo. O legado da poltica exterior da
Era FHC foi desenvolver, consolidar em nvel conceitual, fazendo com que fosse
assimilada pelo aparelho de Estado, a renovao e a readaptao que vinha-se
processando desde o final do governo Sarney. Na breve passagem de Lafer pelo
ministrio das Relaes Exteriores, em 1992, a busca pelo refinamento terico do novo
modelo avanou, afirmando-se uma poltica que se caracterizaria pela busca de relaes
externas universais, sem alinhamentos ou opes excludentes, com vistas a preservar a
autonomia [pela integrao] do pas na sua atuao internacional (Mello, 2000, p. 75). Na
Era FHC prevaleceu uma perspectiva cooperativa para a anlise das relaes
internacionais. A reiterada denncia das assimetrias, a insistncia na crtica das polticas
apoiadas no poder, a busca pela atenuao do uso do unilateralismo, particularmente dosEstados Unidos a partir de janeiro de 2001, no governo George W. Bush, o fustigamento
do uso distorcido dos princpios, tudo isso deve ser compreendido na perspectiva da luta
por um ordenamento voltado para a cooperao. Este legado parece ter sido a resposta
s possibilidades de mudanas introduzidas numa determinada fase histrica, quando o
fim da Guerra Fria fazia pressupor novas oportunidades.
Na prxima seo analisaremos desdobramentos concretos da poltica de FHC,
sua operacionalizao, como influenciou nos resultados de negociaes onde interessesreais estiveram em jogo.
4 O legado concreto
No campo das formulaes, a poltica externa teve como eixo central, mantido ao
longo dos oito anos, a retrica do fortalecimento do Mercosul e, sobretudo no segundo
mandato, as relaes com a Amrica do Sul. Esse eixo central, na perspectiva do
governo, permitiria um melhor exerccio do universalismo, fortalecendo a diretriz daautonomia pela integrao. Nos temas da agenda que mantiveram-se constantemente
presentes, haveria fortalecimento da capacidade negociadora do pas se o pressuposto
da consolidao do Mercosul e a maior integrao sul-americana pudessem efetivar-se. A
ao brasileira deu-se em inmeros cenrios, mostrando uma perspectiva multifacetada,
ainda que a importncia de cada tema fosse profundamente distinta. Tiveram maior ou
menor destaque: acordo de livre comrcio com a Unio Europia, integrao hemisfrica
e negociaes da ALCA, alianas no mbito da OMC, ampliao das relaes bilaterais
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com parceiros importantes, China, Japo, ndia, Rssia, frica do Sul, questo da no
proliferao nuclear, desarmamento, terrorismo, meio ambiente, direitos humanos, defesa
da democracia, candidatura a uma vaga permanente no Conselho de Segurana, crtica
aos atuais regimes financeiros internacionais, relao com Portugal e os pases que
compem a CPLP, relao com Cuba. A questo democrtica e o principio da
autodeterminao foram valores defendidos na Era FHC. Nessa perspectiva a posio
assumida em diferentes crises no Paraguai, em 1996, 1999 e 2001, a incluso da
Clusula Democrtica no Mercosul e a posio assumida na crise institucional
venezuelana, no final de 2002, no final do mandato FHC, quando a posio brasileira
resultou de certa convergncia com o governo Lula da Silva, logo empossado. A posio
assumida quando da eleio de Fujimori no Peru, em 2000, para seu terceiro mandato,assinalaria, segundo o governo, a defesa do principio da autodeterminao.
Aspecto no resolvido da poltica externa, detectado pelo governo, mas no
superado, o da adequao institucional e administrativa. Isso tem a ver com a formao
dos diplomatas e, crescentemente importante, com o fortalecimento da capacidade social
para explorar os ganhos que seriam alcanados pela nova poltica. Na perspectiva do
governo FHC, os ganhos decorrentes do binmio participao/integrao, corolrio da
adeso ao mainstream internacional, deveria traduzir-se em capacitao em termos dealtos nveis de especializao, particularmente para as negociaes comerciais e
econmicas. Portanto, alcanar resultados favorveis ao pas e a cada um dos setores
interessados, seria contemporaneamente o resultado da adeso aos regimes e da
competncia em utilizar-se deles.
Iremos a seguir discutir aspectos do legado concreto da Era FHC para a poltica
externa brasileira em temas escolhidos em razo de sua representatividade.
4.1 A diplomacia presidencial e a reconstruo da imagem do pas
De acordo com Genono, o governo FHC teve como meta constante da sua poltica
externa refundar a credibilidade externa sobre a estabilidade interna (Genono, 1999).
Consolidando esta interpretao, Danese afirma que desde o incio, o governo FHC
buscou combinar, por um lado, maior poder nacional do pas, graas estabilizao e
aos atrativos representados pelas suas dimenses econmicas, incluindo sua
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participao no Mercosul, e pela abertura da sua economia; e, de outro, a vocao e a
disposio pessoais do Presidente para protagonizar uma diplomacia presidencial no
estilo hoje consagrado pelas melhores lideranas mundiais (Danese, 1999, p. 7). De
certa forma, a ao do presidente, chamada, como vimos, diplomacia presidencial, aliada
ao relativo sucesso do Plano Real, contribuiu para a reconstruo e a solidificao de
uma imagem melhor do Brasil entre governos de inmeros pases, tambm entre os ricos,
e junto s instituies multilaterais. Esta melhora da imagem brasileira no exterior, no
entanto, representa apenas parcialmente o quadro no qual se apresenta o pas frente
opinio pblica internacional, fortemente influenciada pelas percepes existentes nos
pases ricos. Como dissemos acima, temas sensveis, como direitos humanos, de
minorias, das crianas, dos ndios, criminalidade, meio ambiente, trfico de drogas,constituem-se em fatores de deteriorao da imagem brasileira, dificilmente compensados
pelo ativismo governamental ou mesmo pela adequao aos padres hegemnicos
exigidos no campo da estabilidade macroeconmica. No se trata de problemas
diretamente atribuveis responsabilidade dos governos, generalizam-se em muitos
pases pobres, particularmente na Amrica Latina, mas contribuem para enfraquecer a
posio do pas no mundo.
Entre os resultados das mudanas favorveis ao Brasil na Era FHC, podemos citar:a confiabilidade despertada pelo pas no exterior, possibilitando a atrao de
investimentos externos diretos, significativamente importantes para o sucesso da
estabilidade macroeconmica; o apoio de organismos multilaterais e de governos de
pases desenvolvidos em momentos de ameaa de crise financeira e econmica, como a
crise cambial de 1999. Entretanto, tendncias profundas, sobretudo as ligadas
debilidade do crescimento econmico no Brasil ao longo dos dois mandatos, com exceo
do ndice 4.4% alcanado em 2000 (INTAL, 2003, p. 7), limitaram a possibilidade demelhor utilizao da poltica externa para alavancar os objetivos estratgicos, de carter
poltico e econmico. A participao do Brasil em alguns debates, como o da tentativa de
elaborar uma nova arquitetura financeira internacional, isto , como adaptar-se nova
realidade dos crescentes fluxos internacionais de capitais volteis, que contribuem para o
desencadeamento de crises financeiras, refletiu as dificuldades de incidir na construo
de uma agenda no desejada por atores relevantes, de maior poder. De fato, estes no
desejam introduzir controles ou limitaes.
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No governo FHC parece ter significativamente aumentado, provavelmente em
sintonia com o que sucede em outros pases, a nfase das relaes externas na agenda
interna. As relaes internacionais, por distintas razes, algumas relacionadas crtica da
poltica governamental, despertaram maior ateno e interesse por parte da sociedade e
dos meios de comunicao. Nunca antes associaes empresariais, sindicatos,
organizaes no-governamentais, o Congresso Nacional, a opinio pblica, em suma,
haviam se engajado tanto no debate sobre as relaes do Brasil com o mundo (Silva,
2002, p. 302).
As relaes com Estados Unidos e Argentina foram temas que preocuparam
permanentemente o governo FHC, tendo sido dedicado intenso esforo para alcanar o
objetivo da melhoria das relaes, o que nem sempre foi possvel. O reconhecimento deuma imagem positiva do Brasil no exterior e especificamente do papel poltico e intelectual
de FHC, deu-se, em determinadas circunstncias, de parte de governantes e estadistas
como Bill Clinton ou Tony Blair. Por exemplo, em ocasio das reunies informais, com
participao de chefes de Estado e de governo, em que se debateu a idia da Terceira
Via. Mesmo assim, no parece ter sido suficiente para alterar a viso negativa da opinio
pblica dos pases desenvolvidos em relao ao Brasil.
4.2 Relaes com os Estados Unidos e autonomia pela integrao
A busca de melhores relaes bilaterais com os Estados Unidos teve incio no
primeiro ano do mandato de FHC, em 1995. Essa busca alcanou resultados visto o
esforo do governo no sentido de superar alguns contenciosos existentes h muito,
alguns deles originados nos governos militares. A poltica de estabilizao
macroeconmica foi um objetivo apreciado positivamente em Washington. No plano dasrelaes internacionais e especificamente das bilaterais, a adeso do Brasil ao MTCR e a
promessa do encaminhamento de adeso ao TNP, concluda em 1998, assim como a
nfase em considerar importantes as relaes construtivas com os Estados Unidos para
os interesses do Brasil, foram fatores que alimentaram uma relativa melhoria. Em 1995
FHC situava o significado dessa relao ao afirmar que os Estados Unidos so nosso
parceiro fundamental, por causa da posio central desse pas (O Estado de So Paulo,
1995).
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Na anlise das relaes com os Estados Unidos, pode-se compreender melhor o
significado da renovao e da adaptao dos paradigmas da poltica exterior. A busca da
melhora nas relaes bilaterais foi acompanhada da nfase na autonomia da atuao
internacional do pas e da afirmao de sua condio de global playere de global trader.
Os conflitos havidos nos governos militares, as questes da dvida externa que tanto peso
tiveram nos governos Figueiredo, Sarney e Collor de Mello, alm de intensas disputas
comerciais ou polticas strictu sensu, pareceram deixar de existir, ou ao menos entraram
no leito da conflitualidade ordinria nas relaes entre Estados. Ou seja, a opo pela
autonomia pela integrao proporcionaria uma maior aproximao sem alinhamento
automtico nem opes excludentes. Manter-se-ia a possibilidade de dissenso quando
os interesses brasileiros fossem ameaados pela ao dos Estados Unidos que, apesarde detentores de poder global e regional, teriam cerceado sua capacidade de ao pelo
cenrio internacional multipolar em emergncia na dcada de 1990, que abriria novas
possibilidades para uma nova insero do Brasil (Soares de Lima, 1999). Nos dois ltimos
anos da Era FHC, particularmente depois de 11 de setembro de 2001, a evoluo das
relaes internacionais que parece distinguir o incio do sculo XXI, colocou novas
interrogaes, em certa medida exigindo, para a manuteno da melhora nas relaes
bilaterais, uma intensidade de energias maior e, talvez, riscos.A poltica de FHC, para buscar melhores formas de insero do Brasil, levou em
considerao a preponderncia dos Estados Unidos. Da o explcito reconhecimento da
importncia de boas relaes com este pas, para garantir o espao de autonomia do
Brasil e para viabilizar seu papel na Amrica do Sul. Para o presidente, Temos de manter
boas relaes com os Estados Unidos e ter capacidade de organizar o espao sul-
americano, o Mercosul (Cardoso, 1996). Trata-se de entendimento geral, assumido por
todos os governos, nos diferentes pases, possuidores de poltica pragmtica, que incluias realidades existentes entre os dados do problema e no como objetivos a serem
minimizados ou removidos. Em outros termos, a poltica cooperativa explicitou-se
claramente no caso das relaes com os Estados Unidos de parte do Brasil.
Boa relao bilateral e autonomia pela integrao com os Estados Unidos foram
fatores considerados necessrios para a ampliao do papel do Brasil no cenrio
internacional, a partir do espao sul-americano. Esta perspectiva nem sempre prevaleceu
na ao diplomtica do pas, mas manifestou-se em outros perodos histricos, entre eles
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na gesto de Rio Branco (Bueno, 2003) e na de Aranha (Vigevani, 1989). Segundo FHC,
a prioridade para o Brasil a consolidao do Mercosul, que no s o mbito da
integrao realizvel no curto prazo, mas tambm a plataforma a partir da qual
reforaremos a nossa articulao com outros centros da economia internacional
(Cardoso, 1993-c, p. 9). Ao prevalecer a estratgia do regionalismo aberto, a
necessidade de mantermos sempre abertas as nossas opes (Cardoso, 1993-c, p. 9)
um desdobramento lgico. A busca de melhores relaes bilaterais com os Estados
Unidos significa, ao mesmo tempo, que no podemos nos limitar a parcerias excludentes
ou a critrios reducionistas de atuao internacional. Temos que atuar em diferentes
tabuleiros, lidar com diferentes parcerias, estar em diferentes foros (Cardoso, 1993-c, p.
9). A elaborao de FHC em 1993, quando ministro das Relaes Exteriores de ItamarFranco, contribuiu para balizar a ao presidencial nos seus dois mandatos.
A diretriz da atuao em diferentes foros foi implementada. A anlise da atitude
frente ALCA em seu primeiro mandato serve ao mesmo tempo para verificar o peso dos
constrangimentos externos implcitos a essa posio. De forma simplificada, pode-se
afirmar que aps a Cpula de Miami de dezembro de 1994, quando Cardoso acompanhou
o ento presidente em concluso de mandato, Itamar Franco, a deciso de governo foi a
de buscar protelar a ALCA o mximo possvel, poltica finalmente reformulada aps asegunda cpula da ALCA, de abril de 1998, em Santiago. Ao longo das negociaes,
entre 1995 e 1998, a defesa do principio da autonomia ganha expresso pela lgica do
protelamento, assim como a manuteno da prioridade do Mercosul, apesar das
dificuldades crescentes neste bloco. Segundo FHC, a Amrica do Sul deveria ser
considerada como nosso espao histrico-geogrfico (Cardoso, 1997), nela, para o
Brasil, o Mercosul o peo, mas no basta: precisamos dessa integrao mais ampla
(Cardoso 2000). No se trata de um jogo em dois tabuleiros. Na percepo do governobrasileiro, diferentes negociaes so complementares e no contrapostas. Porm faz
parte do comportamento do estadista, no entendimento do governo, saber desenhar
diferentes cenrios. Caso a ALCA no fosse operacionalizada e caso as dificuldades no
Mercosul persistissem, o tema de um espao sul-americano voltaria a adquirir significado,
como o havia sido na gesto de Celso Amorim no Ministrio das Relaes Exteriores na
segunda fase do mandato de Itamar Franco. No se trata de uma diminuio da
importncia das relaes com os Estados Unidos, que mantm sua centralidade, mas de
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melhorar a capacidade negociadora, o poder de barganha no processo negociador
hemisfrico. Alm disso, a opo sul-americana do Brasil poderia ser til s aspiraes
brasileiras a um assento permanente no Conselho de Segurana da ONU. Pois daria ao
Brasil o reconhecimento como potncia regional (Soares de Lima, 1996, p. 152).
No segundo mandato FHC, a poltica brasileira em relao ALCA sofreu de forma
mais direta o impacto dos constrangimentos. Depois da cpula de Santiago, sobretudo no
ministrio das Relaes Exteriores, com respaldo na presidncia, fortaleceu-se a anlise
que aponta para os riscos do isolamento, num contexto em que no apenas para o Brasil,
mas para todos os pases americanos e do mundo, o mercado dos Estados Unidos
representa um diferencial considerado de fundamental importncia. Neste caso, a opo
pela cooperao e a diretriz da autonomia pela participao acabaram fortalecendo aperspectiva da insero mais ativa no processo negociador. A preocupao pela
participao ativa nos debates sobre os regimes especficos que regeriam a ALCA, levou
a uma atitude propositiva, com ganhos no sentido da insero de itens e conceitos de
interesse do Brasil e do Mercosul, como o single undertaking, mas sem poder mudar
substantivamente a pauta em discusso, onde o arcabouo jurdico bsico deixa espao
restrito para temas no adequados ao interesse norte-americano. Outros temas na pauta
das relaes com os Estados Unidos, como o tratamento a ser dado s patentesfarmacuticas no caso dos remdios genricos, foram remetidos OMC onde o Brasil
pde articular uma frente mais ampla em defesa das prprias posies. O pragmatismo e
a busca de uma atitude cooperativa, sem abdicar da defesa de interesses, permitiu um
razovel equilbrio nessas relaes, evitando-se perdas de maior importncia, mesmo
quando os ganhos no chegaram a alcanar nveis desejados da parte brasileira.
4.3 Mercosul e Amrica do Sul
Ao longo da Era FHC consolidou-se uma poltica brasileira voltada ao entorno
geogrfico, que se torna referncia constante da ao externa. Isso poderia parecer
simples, mas sabemos que no passado, at o governo Sarney, a poltica regional no
teve propriamente centralidade, mesmo quando o universalismo prevaleceu, como nos
perodos da Poltica Externa Independente, de 1961 a 1964, e do Pragmatismo
Responsvel, de 1974 a 1978. A interpretao dada ao Mercosul, nisso coincidindo com
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os interesses do governo argentino nos mandatos de Menem, de regionalismo aberto,
possibilitou ao Brasil, sem exclusivismo ou alinhamento, simultaneamente, aderir s
normas e regimes internacionais de seu interesse e, ao mesmo tempo, garantir a
preservao de uma reserva de autonomia (Pinheiro, 1998, p. 61) que se objetivaria
pelo espao de manobra regional. A adeso a algumas normas e regimes significou, em
certos casos, fortalecimento do soft powerpelo retorno sob forma de melhoria da imagem
brasileira. Na perspectiva de Mello, a relao entre o universalismo e o regionalismo pode
ser estabelecida da seguinte forma: o universalismo dos anos noventa se expressa
primordialmente no regionalismo: nesta rea que o Brasil encontrou seu principal
espao de reafirmao de autonomia, na resistncia integrao hemisfrica, no
processo de integrao sub-regional do Mercosul e nas suas novas iniciativas na Amricado Sul (Mello, 2000, p. 98). A discusso sobre a rea de livre comrcio entre Mercosul e
Unio Europia, a busca de parceiros estratgicos, como China e ndia, so temas que
devem ser compreendidos conjuntamente com o reconhecimento do papel regional. Nesta
mesma posio, Lampreia insiste no significado para o Brasil da prioridade da integrao
regional. Embora, por um lado, signifique efetivamente alguma perda de autonomia, por
outro, o Mercosul aumenta nossa capacidade de atuar de modo mais afirmativo e
participativo na elaborao de regimes e normas internacionais de importncia essencialpara o Brasil (Lampreia, 1999-a, p. 12). Particularmente no segundo mandato FHC, a
preocupao pela manuteno de consenso mnimo entre os pases do Mercosul foi
importante, em vista das negociaes da ALCA e, depois da reunio de Braslia de agosto
de 2000, para a busca de um espao integrado da Amrica do Sul.
Na perspectiva do governo FHC, duas realizaes sinalizam favoravelmente
consolidao poltica do Mercosul: a) a adeso conjunta de Argentina e Brasil ao TNP, no
contexto de um acordo com a AIEA, encerrando a fase onde o uso militar da energianuclear permanecia como incgnita nas relaes bilaterais e como ponto de preocupao
na relao com outros pases. Os dois governos comprometeram-se ao desenvolvimento
da pesquisa nuclear apenas para fins pacficos e controlados. b) a defesa da democracia
nos episdios das crises institucionais no Paraguai em 1996, 1999 e 2001, atitude que
ajustou-se aos debates sobre a Clusula Democrtica no Mercosul j inserida em
Declarao dos quatro presidentes em 1996 e consolidada em 1998 pelo Protocolo de
Ushuaia. O significado da insero no quadro regional de bens pblicos internacionais
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(Gama e Valado, 2001) teria como corolrio imediato a induo da estabilidade na regio
(Silva, 2002, p. 316) e o fortalecimento das prprias posies na comunidade
internacional. Nessa mesma linha devem ser consideradas outras aes, como a
contribuio para a soluo do conflito fronteirio entre Peru e Equador; a defesa da
democracia na Venezuela na crise de final de 2002, quando o governo de FHC atuou de
forma coordenada com o governo de Lula da Silva a ser empossado.
Na perspectiva de Pinheiro (2000), a combinao de uma poltica grociana no
mbito global, a utilizao de uma perspectiva universalista e cooperativa, em
consonncia com os valores que se difundem e se universalizam no plano internacional
(Cardoso, 2000), deve ser comparada com a poltica implementada regionalmente. Nesse
ltimo caso, o diferencial de poder parece ter sido utilizado na perspectiva de evitarformas de supranacionalidade, de modo a garantir autonomia frente a parceiros externos
regio. Haveria a busca da maximizao de benefcios, implicando em polticas
diferenciadas, no homogneas.
Na Era FHC, a Amrica do Sul confirmou sua centralidade para a poltica brasileira:
o Mercosul, mesmo sem alcanar o estgio de Unio Alfandegria plena, manteve o
objetivo de tornar-se mercado comum. Parece tratar-se de tendncia no conjuntural,
tendo sido uma poltica inaugurada por Sarney, com continuidade no governo ItamarFranco e nos dois mandatos de FHC. O governo atuou em relao regio com alguns
sinais de relativa coordenao, ainda que no completa. Ministrios e empresas foram
mobilizados, assim como o projeto de eixos estratgicos. No governo FHC consolidou-se
o redirecionamento da matriz energtica. At o final dos anos oitenta, muito dependente
das importaes do Golfo Prsico, sobretudo Arbia Saudita e Iraque. Na dcada de
noventa, as importaes voltaram-se particularmente Argentina e Venezuela. Grandes
projetos de integrao fsica, como a interligao das redes de energia eltrica egasodutos foram concretizados. Ao mesmo tempo, as instituies regionais no se
fortaleceram adequadamente, ao contrrio, o Mercosul a partir de 1998 e 1999 entrou em
significativa crise.
Dito de outro modo, ao longo do governo FHC no avanou significativamente na
sociedade brasileira e no Estado a percepo de que a busca de objetivos no plano
internacional implica custos, portanto nus. A desvalorizao do Real em janeiro de 1999,
apoiada pela imensa maioria no Brasil, teve conseqncias graves nos pases vizinhos do
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Mercosul e associados, inclusive a Bolvia. Ainda que as razes das crises especficas
tivessem diferentes origens, uma iniciativa brasileira buscando formas de compensao,
poderiam ter tido resultados benficos para as estratgias regionais. No plano poltico,
pode-se encontrar timidez em determinadas situaes, como no tema Colmbia. A no
participao no grupo integrado pela ONU, pela Unio Europia e alguns pases latino-
americanos que buscava criar condies para um acordo por meio de negociaes entre
o governo e as FARC e o ELN, limitou a presena brasileira.
Dito de outro modo, na percepo do governo FHC, o crescimento do papel na
regio aumenta o poder de barganha extra-regional, mas houve dificuldades em aumentar
proporcionalmente o esforo nacional dedicado consolidao desse objetivo. No se
trata de tema de governo apenas, sabendo que as resistncias internas, de tipo regional esocial, so muito importantes e constituem-se em obstculos poderosos. A opo pelo
fortalecimento do Mercosul e, no segundo mandato, o retorno com fora da questo sul-
americana, constituram um pressuposto necessrio. Resultados mais significativos no
so fceis. As negociaes da ALCA demonstram a centralidade norte-americana para
inmeros pases, centralidade no apenas comercial, mas estratgica, financeira,
tecnolgica, cultural. A preocupao demonstrada pelo governo FHC na efetivao de
instrumentos reais de ao, utilizando recurso da Corporao Andina de Fomento, doBNDES, do Fonplata, sugerem patamares mais realistas para a poltica regional. Todo
debate conceitual sobre integrao, a comear pelos funcionalistas nos anos cinqenta,
assinalam a importncia dos interesses, mas particularmente a idia de alguma forma de
identidade, uma comunidade de segurana ou epistmica, uma viso comum da regio.
4.4 OMC, Unio Europia e ALCA
Na perspectiva da autonomia pela integrao, na Era FHC prevaleceu a poltica
pela qual considerou-se como melhor opo para os interesses do pas atuar
simultaneamente nos trs tabuleiros das negociaes comerciais multilaterais nas quais o
pas estava envolvido: OMC, Mercosul-Unio Europia e ALCA. Houve uma clara
orientao na Era FHC no sentido de dar prioridade s negociaes multilaterais sobre
as bilaterais, por considerar aquelas as que ofereciam maiores possibilidades de xitos
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para uma nao com as caractersticas do Brasil (Silva, 2002, p. 325). Dentre as
negociaes, as desenvolvidas no quadro da OMC foram consideradas o foro por
excelncia, e o que melhor atende a nossos interesses, no que tange formulao de
regras de regulamentao, no plano internacional, das atividades econmicas (Lafer,
2001).
O entendimento do governo FHC, contando para isso com amplo respaldo poltico
e social, a preferncia justifica-se porque a OMC enseja coligaes de geometria
varivel, em funo da variedade dos temas tratados; por isso, no multilateralismo
comercial no prevalecem alinhamentos automticos. Na OMC, na formao destas
coligaes, no s os Estados Unidos tm peso. [Todos pases tm e] possuem poder de
iniciativa pela fora da ao conjunta e finalmente, a regra e a prtica do consenso no
processo decisrio tem um componente de democratizao que permeia a vida da
organizao (Lafer, 1998, p. 14 - 15). Por isso, trata-se de um objetivo do Brasil injetar
vigor renovado na OMC (Lafer, 2002). Essas possibilidades no so automticas, devem
ser compreendidas, analisadas e canalizadas pelo Estado e pela sociedade brasileira em
prol dos seus interesses. Isso exige esforo e recursos adequados. Esta poltica em
diferentes casos levou a resultados claramente satisfatrios.
A OMC foi considerada a melhor opo para os interesses brasileiros nas questes
econmicas, j que protegeria contra abusos e lhe ofereceria recursos adequados para a
resoluo razoavelmente justa de conflitos que, de outra forma, seriam resolvidos pela lei
do mais forte (Silva, 2002, p. 325). O principal recurso o mecanismo de soluo de
controvrsias, utilizado pelo governo e pelas empresas nos contenciosos comerciais em
que os todos procedimentos diplomticos usuais foram esgotados sem que se alcanasse
qualquer resultado satisfatrio para os interesses do pas. Na utilizao desses
instrumentos, o Brasil alcanou algumas vitrias: foi a questo da gasolina, com deciso
favorvel ao pas e desfavorvel aos Estados Unidos.
A disputa talvez mais conhecida pela opinio pblica, pela sua importncia, foi
contra o Canad, envolvendo Bombardier e Embraer. O fulcro do conflito eram os
subsdios fabricao das aeronaves brasileiras, que contrariariam as regras da OMC
estabelecidas pela Ata de Marrakesh. Inversamente, o Brasil acusava a Bombardier do
uso de mtodos contrrios s regras da OMC na comercializao de suas aeronaves.
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Depois de vrios anos de litgio, ambos os pases se declararam satisfeitos com a
arbitragem. A resoluo adotada pela OMC implicou direito de retaliao de parte do
Brasil com compensao de prejuzos, ao mesmo tempo recomendou-se a reestruturao
do financiamento s exportaes, o PROEX, adequando-o s regras da prpria OMC,
conforme solicitou o Canad.
Contencioso de grande relevncia social, alm de econmica, no qual o Brasil
obteve saldo nitidamente favorvel, foi a disputa entre o Brasil e as grandes empresas
farmacuticas, especialmente norte-americanas, onde o governo exigia o reconhecimento
do direito de quebra de patentes de remdios para o tratamento da AIDS, por tratar-se de
necessidade de relevncia internacional e nacional, com fortes impactos para as
populaes. O governo norte-americano questionou a posio brasileira na OMC.
Utilizando o argumento de que o bem pblico deve prevalecer sobre o lucro, o Brasil
legitimou sua demanda e obteve simpatia da maioria dos outros pases, da ONU,
particularmente da OMS, e de ONGs envolvidas com os temas de sade pblica e direito
humanitrio. Os Estados Unidos aceitaram o acordo, admitindo a possibilidade de quebra
de patentes em questes de sade pblica de pases em desenvolvimento. Na reunio
ministerial da OMC em Doha, onde lanou-se nova rodada de negociaes comerciais, foi
finalmente formalizado o acordo. Segundo autoridades do ministrio da Sade no governo
FHC, a elaborao e a execuo da estratgia vencedora foi claramente levada adiante
por agncias estatais envolvidas na questo. Independentemente da questo poltica
eleitoral conexa, visto ser o ministro da Sade, Jos Serra, candidato presidncia nas
eleies de 2002, esta experincia demonstra o papel que possui a articulao entre as
agncias na formulao e implementao de aspectos da poltica exterior do pas.
Ainda no quadro da OMC, pouco tempo depois do 11 de setembro de 2001, iniciou-
se em Doha uma nova rodada de negociaes comerciais multilaterais, cujo ponto de
partida seriam as questes no resolvidas e adiadas na Rodada Uruguai. A interveno
brasileira centrou-se, como tem sido ao longo de toda a dcada de noventa, na defesa da
liberalizao do comrcio agrcola, visando o desmonte de barreiras no alfandegrias e
dos subsdios, como uma condio para o xito da rodada.
A referncia ao longo da Era FHC no que tange s relaes econmicas com a
Unio Europia, foi o acordo-quadro Mercosul-Unio Europia. A realizao em 1999, no
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Rio de Janeiro, da cpula de chefes de Estado e de governo da Unio Europia e da
Amrica Latina deu novos contornos s negociaes. Superadas as dificuldade internas,
a Unio Europia em julho de 2001 fez novas propostas visando o avano das
negociaes. A oferta detalhada e abrangente para a liberalizao comercial entre os
blocos no foi bem recebida pelos pases do Mercosul, seja pela crise dos anos 2001 e
2002, mas sobretudo por ser insatisfatria no ponto central para qualquer avano:
concesses significativas no tocante aos produtos agrcolas.
A tentativa europia de acelerar a negociao de uma rea de livre comrcio em
2001, pode ser parcialmente explicada pela preocupao com a possvel expanso da
influncia norte-americana, cuja poltica de reordenamento das relaes econmicas
internacionais por meio de uma mirade de acordos de livre comrcio bilaterais, poderia
levar ao enfraquecimento do multilateralismo, mas sobretudo da posio da Unio como
maior potncia comercial do mundo contemporneo. A ALCA poderia ter conseqncias
seja de cunho econmico, seja de cunho poltico para as relaes entre a Unio Europia
e o Mercosul. Para o Brasil, a relao com a Unio possuiu na Era FHC uma vertente
estratgica, que poderia ser utilizada como alternativa no caso de fracasso nas
negocies com os Estados Unidos, alm do reconhecimento que a posio europia,
diferentemente da norte-americana, sempre privilegiou a negociao bloco a bloco, o que
interessava ao pas.
A perspectiva da autonomia pela participao encontrou nas negociaes com a
Europa um obstculo significativo, uma barreira onde vislumbram-se os limites opostos
busca da participao, permitindo distinguir os limites da estratgia. O governo FHC
encontrava em governos europeus partnersmuitas vezes com viso de mundo de traos
semelhantes. Ao mesmo tempo, a possibilidade de ampliao das relaes no frutificou
adequadamente. O compartilhamento de valores, democracia, direitos humanos, meio
ambiente, welfare state, multilateralismo, no foram suficientes para tambm
compatibilizar interesses estatais e das sociedades, muitas vezes colocados de forma
contraposta num e noutro estado.
A parceria com a Unio Europia com vistas harmonizao de posies e aes
nos foros internacionais, poderia significar um incremento no poder do Brasil. Um eixo
do bem euro-mercosulino teria um razovel peso poltico dentro da comunidade
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internacional, fechando o tringulo atlntico e servindo de interface construtiva entre o
hegemon norte-americano e o resto do planeta (Gama e Valado, 2001, p. 14). Na
perspectiva brasileira, isso poderia assegurar, de modo construtivo, sem romper a lgica
da autonomia pela participao, a manuteno da possibilidade do multilateralismo na
poltica internacional, atravs do encaminhamento de regras e cdigos de conduta
globais, importantes para o estabelecimento, a implementao e a defesa de bens
pblicos internacionais. Segundo FHC, isso seria vantajoso para a boa conduo da
poltica externa, j que sozinho o Brasil no teria condies de propor (Cardoso, 2001).
Os resultados fracos nesta direo resultam, por um lado, da diversidade de interesses
reais, por outro, da alocao da Europa no sistema internacional ps-Guerra Fria. No
caso europeu, a percepo negativa da opinio pblica em relao aos pases pobres,inclusive o Brasil, pesa no debilitamento de polticas mais favorveis aos pases do
Mercosul. Inversamente, parte das dificuldades do governo FHC para fortalecer a relao
com a Unio, surge do fato de que o Brasil e seus parceiros do Mercosul abriram suas
economias nos anos noventa, propiciando fortes investimentos, particularmente
espanhis e portugueses, mas no tiveram reciprocidade dos pases desenvolvidos. Para
Cardoso, outro choque de liberalizao sem abertura nos pases desenvolvidos,
certamente dizimaria muitos setores econmicos no mundo em desenvolvimento, legandoum passivo ainda mais negativo do que o existente hoje (Cardoso, 2000).
Isto ajuda a compreender porque para o governo FHC, de forma mais acabada no
segundo mandato, a ALCA surge sim como ameaa, mas tambm oportunidade, opo e
no destino como o Mercosul (Lafer, 1997). Para FHC, ao falar na Terceira Cpula da
ALCA, em Qubec, em abril de 2001, a Alcaser bem-vinda se sua criao for um passo
para dar acesso aos mercados mais dinmicos; se efetivamente for o caminho para
regras compartilhadas sobre antidumping; se reduzir as barreiras no tarifrias; se evitar adistoro protecionista das boas regras sanitrias; se, ao proteger a propriedade
intelectual, promover, ao mesmo tempo, a capacidade tecnolgica dos nossos povos; e,
ademais, se for alm da Rodada Uruguai e corrigir as assimetrias ento cristalizadas,
sobretudo na rea agrcola. No sendo assim, seria irrelevante ou, na pior das hipteses,
indesejvel (Cardoso, 2001). No se trata de adeso no crtica, nem mesmo de adeso,
mas de uma possibilidade desejvel se servir para melhorar a posio relativa do pas.
Trata-se de uma exigncia que surge de um pas que procura uma presena internacional
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relevante, capaz de incidir na ordem mundial e, sobretudo, de influenciar nas regras e
decises que pesaro sobre o prprio destino, num meio assimtrico, por vezes inspito.
Ao mesmo tempo, elementos estruturais, ligados a tendncias histricas, como o
debilitamento da posio do Brasil e da Amrica do Sul na economia mundial, acabam por
ter peso negativo na capacidade negociadora.
4.5 Relaes com outros parceiros estratgicos
O governo FHC buscou estabelecer relaes intensas ou privilegiadas com outros
Estados, considerados estratgicos ou importantes por diferentes motivos. Trata-se de
exercer concretamente o universalismo, buscando os interesses do pas. Entre os pasesaos quais o pas dedicou particular ateno, em distintas dimenses e com intensidade
diversificada esto China, ndia, Rssia, Japo, Portugal, Comunidade de Pases de
Lngua Portuguesa (CPLP), Cuba, Mxico.
As relaes com a China tiveram expressivo incremento na Era FHC, crescendo
em importncia ao longo dos oitos anos, alcanando em 2002 a significativa posio de
segundo partnercomercial do Brasil. O significado desse desenvolvimento abrangente,
no apenas econmico, mas poltico e estratgico. Essa relao, do ponto de vistabrasileiro, concretiza as idias de universalismo, global player e global trader. O Brasil
apresenta-se como interlocutor global, buscando maximizar vantagens em diferentes
reas, no apenas no comrcio, mas tambm na rea de cincia e tecnologia. Ganhou
destaque nessa relao a cooperao bilateral no desenvolvimento de tecnologia de
satlites. As relaes diplomticas foram consolidadas. FHC viajou China e recebeu
duas vezes Jian Zemin. Na viagem ao Brasil do presidente chins, em meio crise do
contencioso sino-americano provocado pela invaso do espao areo chins por umavio dos Estados Unidos, o governo de Washington solicitou a interveno brasileira
para facilitar uma soluo. O Brasil manifestou claramente, e foi entre os primeiros, apoio
entrada da China na OMC, desenvolvendo-se as negociaes visando adaptar as
preferncias bilaterais s regras da organizao, o que implicou concesses recprocas.
Em Genebra, houve esboos de coordenao de polticas na organizao, visto o parcial
paralelismo de interesses que se origina em algumas caractersticas comuns, como a
existncia em ambos os pases de amplos mercados consumidores, e pelos dois serem
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receptores de grandes fluxos de investimentos externos diretos.
As exportaes brasileiras para a China cresceram fortemente na Era FHC,
duplicando. O protocolo de cooperao para pesquisa espacial, no mbito do Acordo de
Cooperao Cientfica e Tecnolgica de 1982, rendeu seus primeiros frutos com a
colocao em rbita do primeiro satlite sino-brasileiro Cebris de uma srie de quatro,
produzindo conhecimento e riqueza para os dois pases. Feiras de empresas brasileiras
foram realizadas na China, o mesmo ocorrendo no Brasil de parte chinesa.
No caso da ndia, algumas coincidncias nas posies internacionais, no campo
poltico e comercial, expressas em fruns multilaterais indicam a potencialidade nas
relaes. Entretanto, nos dois mandatos de FHC no se traduziram em resultadosconcretos, apesar do interesse manifestado. Os resultados no tocante ao intercmbio
foram pfios, numa demonstrao das dificuldades objetivas na relao entre pases em
desenvolvimento, onde a no complementaridade e as dimenses da economia
constrange o fortalecimento de possibilidades desejadas de cooperao. Acrescente-se
que no plano poltico surgiram problemas, resultantes da posio da ndia em poltica
internacional. Quando esse pas realizou experincias com armas nucleares, num
momento de negociao do CTBT (Comprehensive Test Ban Treaty), o ministro Lampreia
manifestou em nota diplomtica o desagrado brasileiro e houve a denncia do protocolo
de cooperao na rea nuclear. Tambm houve certa dificuldade na coordenao de
posies nas negociaes comerciais internacionais, em vista de uma posio mais dura
daquele pas do que a do Brasil.
Nas relaes com a Rssia, deve-se assinalar um aumento substancial do
intercmbio comercial na dcada de noventa, ainda que pequeno frente totalidade dos
fluxos dos dois pases. Da parte brasileira, aumentaram substancialment