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5/21/2018 A Performance Da Folia de Sao Sebastiao
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS
FACULDADE DE CINCIAS SOCIAIS
MESTRADO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
A PERFORMANCE DA FOLIA DE SO SEBASTIO: ASPECTOS
SIMBLICOS DE UM RITUAL NA COMUNIDADE QUILOMBOLA
MAGALHESGO
Goinia
Maro/2013
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TERMO DE CINCIA E DE AUTORIZAO PARA DISPONIBILIZAR AS TESES E
DISSERTAES ELETRNICAS (TEDE) NA BIBLIOTECA DIGITAL DA UFG
Na qualidade de titular dos direitos de autor, autorizo a Universidade Federal de Goi(UFG) a disponibilizar, gratuitamente, por meio da Biblioteca Digital de Teses e Dissertae(BDTD/UFG), sem ressarcimento dos direitos autorais, de acordo com a Lei n 9610/98, o documento conforme permisses assinaladas abaixo, para fins de leitura, impresso e/ou download, a ttulo de divulgao da produo cientfica brasileira, a partir desta data.
1. Identificao do material bibliogrfico: [ X ] Dissertao [ ] Tese
2. Identificao da Tese ou DissertaoAutor (a): Reigler Siqueira PedrozaE-mail: [email protected] e-mail pode ser disponibilizado na pgina? [ X ]Sim [ ] No
Vnculo empregatciodo autor
Professor (Eseffego/UEG)
Agncia de fomento: Coordenao de Aperfeioamento de Pessoaldo Ensino Superior
Sigla: Capes
Pas: Brasil UF: DF CNPJ: 00889834/0001-08Ttulo: A performance da folia de So Sebastio: aspectos simblicos de um ritual na
Comunidade Quilombola Magalhes-GO.Palavras-chave: Ritual, Smbolo, Performance e Folia.
Ttulo em outra lngua: The performance of the folia of St. Sebastian: symbolic as-pects of ritual in the Community Quilombola Magalhes-GO.
Palavras-chave em outra lngua: Ritual, Symbol, Performance and Folia.
rea de concentrao: Antropologia SocialData defesa:(dd/mm/aaaa) 28/01/2013Programa de Ps-Graduao: PPGAS/UFGOrientador (a): Dr. Gabriel Omar AlvarezE-mail: [email protected]
*Necessita do CPF quando no constar no SisPG
3. Informaes de acesso ao documento:
Concorda com a liberao total do documento [X] SIM [ ] NO1
Havendo concordncia com a disponibilizao eletrnica, torna-se imprescindvel o envio do(s) arquivo(s) em formato digital PDF ou DOC da tese ou dissertao.
O sistema da Biblioteca Digital de Teses e Dissertaes garante aos autores, que os aquivos contendo eletronicamente as teses e ou dissertaes, antes de sua disponibilizaorecebero procedimentos de segurana, criptografia (para no permitir cpia e extrao dcontedo, permitindo apenas impresso fraca) usando o padro do Acrobat.
________________________________________ Data: ____ / ____ / _____Assinatura do (a) autor (a)
1Neste caso o documento ser embargado por at um ano a partir da data de defesa. A extenso deste prazo suscita
justificativa junto coordenao do curso Os dados do documento no sero disponibilizados durante o perodo de
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justificativa junto coordenao do curso. Os dados do documento no sero disponibilizados durante o perodo de
2
REIGLER SIQUEIRA PEDROZA
A PERFORMANCE DA FOLIA DE SO SEBASTIO: ASPECTOSSIMBLICOS DE UM RITUAL NA COMUNIDADE QUILOMBOLA
MAGALHESGO
Trabalho apresentado ao curso de
Mestrado em Antropologia Social da
Universidade Federal de Gois para a
obteno do ttulo de mestre.
Linha de pesquisa: Etnopoltica e
processos de excluso social.
Orientador: Prof. Dr. Gabriel Omar
Alvarez.
Goinia
Maro/2013
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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
GPT/BC/UFG
P372p
Pedroza, Reigler Siqueira.
A performance da folia de So Sebastio [manuscrito] :
aspectos simblicos de um ritual na comunidade Quilombola
MagalhesGO / Reigler Siqueira Pedroza. - 2013.
116 f. : il.
Orientador: Prof. Dr. Gabriel Omar Alvarez.
Dissertao (Mestrado)Universidade Federal de Gois,
Faculdade de Cincias Sociais, 2013.
Bibliografia.
1.
So Sebastio, Folia dePerformance. 2. Ritual
Comunidade quilombolaGois (GO). I. Ttulo.
CDU: 398.1(817.3)
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Dedicatria
Aos meus pais pela amizade, carinho,respeito, apoio e, principalmente, pelo amorcom que conduzem a minha educao.
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Agradecimentos
Ao meu Pai Oxal, senhor e arquiteto de todo o universo.
Ao Pai Joaquim de Aruanda, Pai Joaquim de Angola e Vov Joaquim das Flores,
pelo amor, carinho e luz com que guiam meus caminhos.
A So Sebastio (meu Pai Oxossi) por permitir realizar este trabalho em sua
folia, ao meu Pai Xang (guia de cabea), Vov Maria Conga, por me dar sustentao
para concluir este mestrado e ao Cavaleiro da Luz Dourada pela proteo.
Ao Prof. Dr. Gabriel Omar Alvarez pela pacincia, rigor e contribuies para a
minha formao intelectual.
Faculdade de Cincias Sociais da Universidade Federal de Gois (FCS/UFG),representada pelos professores do PPGAS (Programa de Ps-Graduao em
Antropologia Social), pelos alunos do curso, em especial: Ariel, Arthur, Cludia, Cinthia,
Estevo, Ftima, Igor, Mrcia, Marcelo, Nilauder, Olvia, e Rafael pelos momentos de
discusso acadmica e de alegria; e, por ltimo, funcionria tcnico-administrativa
Camila.
Capes pela bolsa de estudos que garantiu as condies materiais para a
realizao da pesquisa.
Ao Labphysis (Laboratrio Physis de Pesquisa em Educao Fsica, Sociedade e
Natureza), da Faculdade de Educao Fsica (FEF/UFG), em especial ao grupo de
pesquisadores que se debruaram na investigao das manifestaes da cultura
corporal em Comunidades Quilombolas de Gois.
A todos os moradores da Comunidade Quilombola Magalhes que, com carinho,
ateno e pacincia auxiliaram este pretenso antroplogo em seu trabalho de campo.
Aos meus amigos Lnin, Alessandra Barreiro, Arlindo, Fagner, Leonardo,
Fernando Garcez e Regiane pelo apoio.
Aos meus irmos, Danilo, Poliana e Ana Carolina, pela amizade, carinho e
demonstraes de confiana.
A todos os meus familiares pelo afeto e encorajamento nos momentos de
dificuldade.
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RESUMO
Esta pesquisa buscou analisar os aspectos simblicos do ritual de Folia de So
Sebastio da Comunidade Quilombola Magalhes realizada entre os dias 09 e 19 de
julho de 2011. Valeu-se das performances dos folies como ponto de partida para
entender esta alteridade, j que neste grupo social a transmisso da tradio ocorre, de
forma privilegiada, pela oralidade e pelas tcnicas corporais. O recurso metodolgico
utilizado foi a etnografia que, segundo Peirano (1995), no se restringe a uma mera
descrio cultural. Sendo assim, o trabalho de campo permitiu ao antroplogo tanto
(re)construir teorias, como tambm, refletir a realidade investigada. A folia um ritual
caracterizado pela ddiva, na qual suas trocas/intercmbios, sejam elas de ordemmaterial ou espiritual, ocorrem atravs do smbolo na sua menor unidade, ou seja, a
bandeira. Nessa folia, a bandeira no uma mera representao do santo perante os
homens, mas ele em si. Por isso, aqueles que compartilham dessa tradio cultural
possuem a obrigatoriedade de receb-lo em sua casa, tendo os folies a
responsabilidade de ofertar a reza aos donos da casa, os donos da casa a retribuem
com comida/bebida aos folies e o santo restitui aos donos da casa com o atendimento
de seus pedidos feitos bandeira. A polarizao dos smbolos rituais na folia ocorreu
atravs das performances, nas quais aquelas que so praticadas diante da bandeira
possuem, predominantemente, relao com o polo ideolgico (como o agasalho, o
canto para o dono da casa, o bendito de mesa etc) e aquelas praticadas sem a
presena da bandeira possuem, normalmente, relao com o polo sensorial (como a
curraleira e a sussa). A Folia de So Sebastio uma performance complexa no interior
da tradio cultural desta comunidade, oriunda do catolicismo campons e que
representa as relaes de poder, parentesco e afinidade desse grupo familiar.
Palavras-chave:Ritual, Smbolo, Performance e Folia.
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ABSTRACT
This research attempts to analyze the symbolic aspects of ritual Holy Revelry of San
Sebastian Community Quilombola Magalhes offered between 09 and 19 July 2011.
Seized the performances of the revelers as a starting point for understanding this
alterity. In this group social, the transmission of tradition moves privileged by orality and
the body techniques. The methodological approach used was the ethnography,
according Peirano (1995), is not restricted like a mere cultural description, so the
fieldwork allows the anthropologist both (re) construct theories, and reflect the reality
investigated. The holy revelry is characterized by a ritual of offering where the
exchanges / interchanges, whether they be material or spiritual, occur through thesymbol in its smallest unit: the flag. In this holy revelry the flag is not a mere
representation of divinity before men, but it itself. Therefore, those who belongs to this
cultural tradition, are obligated to receive him into your house, having the holy revelers
responsibility of offering a prayer to the owners of the house, the house owners to
reciprocate with food / drinks to holy revelers and the holy restores the home owners
with the care of their gifts to the flag. The polarization of ritual symbols in holy revelry
occurred through performances, in which those who are practiced in front of the flag
have predominantly related to the ideological pole (like the agasallho, the canto para o
dono da casa, and the bendito de mesa etc.) and those practiced in the absence
flag are related to the sensory polo(as Curraleira and Sussa). The Festival of San
Sebastian is a complex performance within the cultural tradition of this community,
coming from peasant Catholicism and represents power relations, kinship and affinity of
this family group.
Keywords:Ritual, Symbol, Performance and Folia.
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Sumrio
Introduo 08
1. CAP TULO I -
Os smbolos rituais como possibilidade de anlise da tradio cultural
.................................................................................................................................... 10
1.1 Corpo, ritual, performance e folia: elementos para anlise da tradio
cultural....................................................................................................................... 10
1.2 O conceito de folia e suas possibilidades para anlise da alteridade
.................................................................................................................................... 19
2. CAP TULO II
Comunidades Quilombolas: aproximaes de um debate .................................. 26
2.1 O conceito de quilombo: aspectos de uma discusso atual
.................................................................................................................................... 26
2.2 Comunidades Quilombolas em Gois.............................................................. 37
2.3 A Comunidade Quilombola Magalhes e o ritual de Folia de SoSebastio da famlia de Seu Loro e Dona Dominga ............................................. 42
3. Captulo III
O ritual de Folia de So Sebastio da famlia de Seu Loro e Dona Dominga da
Comunidade Quilombola Magalhes ..................................................................... 50
3.1 A preparao para a Folia de So Sebastio .................................................. 50
3.2 A solta da Folia de So Sebastio ................................................................ 563.3 O giro da Folia de So Sebastio ................................................................. 81
3.4 A entrega da folia de So Sebastio ............................................................ 101
Consideraes finais ............................................................................................... 108
Referncias .............................................................................................................. 110
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Introduo
O objeto de estudo desta etnografia comeou a se desenhar em 2009 quando
participei de um grupo de pesquisa na Faculdade de Educao Fsica da Universidade
Federal de Gois (FEF/UFG). Nessa ocasio, investigamos as manifestaes da cultura
corporal em comunidades quilombolas de Gois. E como esta pesquisa foi financiada
com recursos do Ministrio do Esporte, ela pretendia ser um diagnstico inicial para
incentivar a formulao de polticas pblicas de esporte e lazer junto s comunidades
do estado. Mas com a concluso do trabalho, ocorrida no final de 2010, houve a
aquisio de um novo recurso, dessa vez pelo do Ministrio da Educao, sendo dada
continuidade pesquisa, agora como projeto de extenso universitria. Em 2011,desenvolvemos este projeto nas cinco comunidades investigadas, sendo elas: a
Comunidade Quilombola Jardim Cascata (Aparecida de Goinia/GO), Comunidade
Quilombola Almeida (Silvnia/GO), Comunidade Quilombola do Cedro (Mineiros/GO),
Comunidade Quilombola Kalunga (Teresina de Gois/GO) e Comunidade Quilombola
Magalhes (Nova Roma/GO). Foram realizadas oficinas temticas1como possibilidades
educativas a partir das demandas diagnosticadas e analisadas na pesquisa.
A partir desse movimento, comecei em 2009 a me aproximar do debate sobre
"comunidades remanescentes de quilombo", tendo me interessado, em especial, pelos
rituais e festividades praticados nessas comunidades. Durante as atividades de coleta
de dados para a referida pesquisa, chamaram-me a ateno as performances
provenientes dos rituais e o conjunto de sentidos e significados que expressavam, bem
como a valorao social que tinham dentro do contexto cultural de cada comunidade
quilombola. A partir desse diagnstico, despertei o interesse em realizar uma pesquisa
que possibilitasse a anlise de um desses rituais.
Nesse momento, iniciou-se a delimitao do campo e a escolha da Comunidade
Quilombola Magalhes como possibilidade para realizao da etnografia. Na
comunidade so realizados anualmente quatro rituais, o que atenderia, a princpio, aos
1Sendo estas de: Capoeira; Contao de histrias; Alimentao saudvel; Construindo bonecas de pano; Jogos ebrincadeiras populares; Produo e edio de registros digitais de msica; Foto e vdeo; Ritmo e dana; Plantasmedicinais do brejo usos populares (Comunidade Almeida); Mulheres, associativismo, e gerao de renda(Comunidade Almeida); Reconstruindo a prtica esportiva do voleibol (Comunidade do Cedro); Educao de Jovense Adultos e Gnero e sexualidade: (des)construindo dilogos.
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anseios colocados pela problemtica de pesquisa. Outro critrio que contribuiu para a
escolha da comunidade foi a sua localizao geogrfica, j que est situada na regio
nordeste de Gois. Isso implica reconhecer que os municpios pertencentes a esta
localidade possuem um dos piores indicadores sociais, econmicos e culturais doestado, caso tomemos por referncia os dados disponibilizados pela Secretaria de
Cincia e Tecnologia do Estado de Gois (SECTEC, 2012). Por ltimo, sendo este um
critrio importante a ser considerado, refere-se abertura que obtive com alguns
interlocutores do campo, o que facilitaria a realizao da etnografia. O trabalho de
campo foi realizado durante todo o ano de 2010 (fase exploratria da pesquisa na qual
acompanhei os quatro rituais realizados na comunidade) e durante o ano de 2011
(donde fizemos um recorte para esta etnografia na Folia de So Sebastio realizadaentre os dias 09 e 19 de julho).
Dessa forma, a problemtica desenvolvida nesta etnografia investigou os
aspectos simblicos do ritual de Folia de So Sebastio, utilizando-se das
performances de "solta", "giro" e "entrega" da folia para a elaborao das anlises.
Possibilitando reconhecer os processos de transmisso/ressignificao da tradio
cultural desse grupo social, o ponto de partida foram as tcnicas corporais e as ddivas
pertencentes ao ritual de folia. Dessa forma, foi possvel identificar os smbolos
compartilhados por este grupo familiar e suas diferenas nas relaes com os outros
membros da Comunidade Quilombola Magalhes, bem como dos mesmos com os
moradores dos povoados e municpios da regio.
O trabalho foi dividido em trs captulos no intuito de facilitar a compreenso do
objeto de estudo pesquisado. No primeiro captulo, fizemos uma discusso sobre os
conceitos de corpo, smbolo, ritual e performance e suas possveis contribuies para a
anlise da folia. No segundo, debatemos o conceito de quilombo e os desafios que
esto colocados na atualidade para as investigaes junto s comunidades quilombolasde Gois, afunilando para a especificidade desta etnografia. Por ltimo, e j no terceiro
captulo, analisamos os aspectos simblicos do ritual de Folia de So Sebastio da
famlia de Seu Loro e Dona Dominga, tomando por referncia a performance dos
folies.
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Captulo I
Os smbolos rituais como possibilidade de anlise da tradio
cultural
1.1 Corpo, ritual e performance: elementos para anlise da
tradio cultural
A discusso a ser realizada neste captulo, em especial neste subitem, almeja
conceituar/compreender o corpo para alm de uma viso meramente
biologicista/mecnica, pelo contrrio, reconhece este como pertencente e produtor de
cultura, portanto fruto da mesma. Nessa perspectiva, iremos contextualiz-lo dentro de
rituais em que ocorrem os processos de transmisso da tradio e, consequentemente,
dos smbolos pertencentes a um determinado grupo social. A partir ento dessa
perspectiva, podemos observar como estes trs elementos se expressam dentro de
contextos de performance, em especial daqueles realizados dentro dos rituais de folia e
suas possibilidades para anlise dos smbolos.
Segundo Mauss (1974, p. 34), as tcnicas corporais so as maneiras eficazes
como os homens, de sociedade em sociedade e de maneira tradicional, sabem servir-
se de seus corpos. Existe um conjunto de gestos que compem a educao de nossos
corpos que comumente passam despercebidos e que podem ser exemplificados com os
atos de sentar, andar, correr, saltar etc. Cada uma dessas tcnicas corporais
apreendida de forma distinta nas diversas culturas, a depender do uso social que
dado a cada uma delas. Acerca desse ponto de vista, as tcnicas corporais podem ser
um meio para apreender fatos que ainda desconhecemos, pois comumente no soverbalizados ou sistematizados pela escrita, mas experienciados e vivenciados
corporalmente pelas culturas humanas (MAUSS, 1974).
Por isso, as tcnicas corporais possuem aspectos simblicos que se diferenciam
e so transmitidos pelos corpos, pois se constroem dentro de contextos culturais da
qual fazem parte. Isso nos permite compreender que a linguagem corporal, como nos
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destaca Escobar (1997), se manifesta de forma distinta em cada grupo social, pois sua
"eficcia e eficincia" so normalmente de ordem coletiva e no individual. Assim,
necessrio compreender que estamos entendendo o corpo numa totalidade, na qual a
linguagem corporal no se separa de forma dicotmica entre "corpo e mente", comonos aponta Silva (2001a), pelo contrrio, possui uma unidade. Isso pode ser
exemplificado atravs de manifestaes artsticas como a dana, a msica e o teatro.
Vejamos o caso especfico da msica, em que a comunicao ocorre de forma
concomitante na relao entre o ato de tocar o instrumento (violo, baixo, guitarra,
pandeiro, caixa etc) conjuntamente com a realizao do canto.
A partir dessa percepo, podemos compreender que o corpo, como nos
demonstra Silva (2001b), para alm de suas dimenses ligadas ao trabalho deproduo/criao da vida material, tambm se constitui de valores, de costumes e de
crenas que so produzidas culturalmente. Portanto, ao olharmos para o corpo nesta
etnografia refutamos suas perspectivas tradicionais de anlise, restringindo-o apenas
s dimenses biolgicas e/ou mecnicas, j que o entendemos como uma
manifestao da "cultura corporal". Segundo o Coletivo de Autores (1992), a cultura
corporal o conjunto de prticas corporais, manifestadas na forma de uma linguagem
corporal, com maior relevncia para as diversas culturas humanas. O que pode ser
exemplificado atravs dos esportes, dos jogos/brincadeiras populares, das lutas, das
danas, das artes circenses, das ginsticas etc. A partir dessa premissa e sustentado
em Dalio (1995), entendemos que o corpo produz saberes que almeja atender s
necessidades culturais do grupo ao qual faz parte. Portanto, o corpo elabora tcnicas,
valores, costumes e saberes dentro de contextos de organizao social, incluindo,
neste caso, os rituais. Por isso, escolhemos fazer um dilogo dessa perspectiva de
educao fsica com o conceito de performance da antropologia, no intuito de ampliar
as possibilidades de anlise das concepes de corpo e suas formas de construosimblica, tomando por referncia a tradio da Folia de So Sebastio da Comunidade
Quilombola Magalhes.
Vejamos a seguinte citao que amplia esta discusso:
Esses hbitos variam no simplesmente com os indivduos e suasimitaes, mas, sobretudo, com as sociedades, as educaes, as
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convenincias e as modas, com os prestgios. (...) O ato se impe defora, do alto, ainda que seja um ato exclusivamente biolgico econcernente ao corpo. (...) precisamente nesta noo de prestgio dapessoa que torna o ato ordenado, autorizado e provado, em relao aoindivduo imitador, que se encontra todo o elemento social. (MAUSS,
2003, p. 214-215)
Dessa forma, preciso entender que as tcnicas corporais a ser transmitidas s
novas geraes so aquelas realizadas pelos sujeitos de maior prestgio, ou seja, que
possuem valorao dentro do grupo social do qual faz parte e dentre esses uma
posio de destaque. Ora, sendo assim, as marchas, as corridas, as formas de andar,
de danar so exemplos especficos de uso das tcnicas do corpo para representao
da cultura em que o sujeito est inserido. Sob essa tica, as manifestaes da cultura
corporal so estas expresses simblicas do corpo que se produz ao longo da histria,
nas quais suas formas de expresso vo sendo sistematizadas e transmitidas s novas
geraes pela tradio. Sobre a produo cultural dessas tcnicas corporais, Mauss
(1974) nos chama a ateno para a importncia dos objetos nesse processo que, no
caso da folia, ritual que iremos analisar mais adiante, interfere diretamente no tipo de
tcnica a ser utilizada na performance. Faamos a ilustrao dessa conceituao a
partir do pandeiro utilizado como instrumento na folia. Nos cantos realizados com o
pandeiro artesanal, utiliza-se uma tcnica corporal distinta daquela feita com o pandeiroindustrial devido s suas capacidades diferenciadas de amplificao do som, o que
interfere diretamente na forma de realizar o canto no ritual.
A educao do corpo, sob a tica de anlise apresentada, ocorre de forma
distinta em cada cultura para o atendimento de necessidades humanas, sejam elas de
ordem fisiolgica, cientfica, religiosa e/ou social. Como destaca Soares (2005), o corpo
fruto da cultura a qual ele pertence, produzindo imagens, gestos e saberes que so
transmitidos pelos processos educativos. Esses processos educativos, segundoBrando (2005), subdividem-se em formais (que ocorrem de forma sistematizada nas
instituies escolares) ou informais (atravs da famlia, da igreja, dos partidos polticos,
enfim). Portanto, o corpo, incluindo a sua constituio dentro de processos rituais,
parte constitutiva da educao pelo qual passa o sujeito na tradio ao qual pertence.
Dessa compreenso conceitual de corpo e da forma como este transmite/produz cultura
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atravs das tcnicas corporais, que nos parece oportuno adentrar no debate de ritual
e suas relaes com o corpo.
Segundo Radcliffe-Brown (1973), o ritual caracteriza-se por sua dimenso
comunicacional, pois tem uma ligao simblica com o que est sendo experienciadocoletivamente. Nessa tica, durante uma situao ritual que o sujeito vivencia
individualmente as emoes sentidas pela coletividade. o momento em que as
regras, os valores e os comportamentos sociais desejveis por aquela tradio cultural
so transmitidos, em especial aquelas que esto marcadas corporalmente atravs das
tcnicas corporais.
Para Gluckman (1966), o ritual est ligado, normalmente, a cerimnias de
proteo, propriedade, aquisio e purificao, ou seja, compe uma situao/parte davida social em seu cotidiano. Para o autor, a partir da relao simblica entre os
participantes de um ritual, possvel analis-lo socialmente. Isso pode ser observado
nos ritos de passagem, em que existe uma intencionalidade sustentada em
necessidades sociais, demonstrando existir uma relao ntima entre relaes sociais e
os rituais. Portanto, o ritual possui a capacidade de perpetuar valores da ordem social,
o que implica dizer que sua investigao possibilita fazer diferenciaes entre sujeitos
pertencentes ao mesmo grupo social ou entre grupos sociais distintos. Assim, a
linguagem corporal apresenta-se como possibilidade para identificar, diferenciar e
analisar os sujeitos a partir de suas tradies.
Para Leach (1966), o ritual um "aparelho comunicacional" que nos permite
colocar em contato os valores, as crenas e os costumes dos sujeitos participantes em
que ocorram processos de transmisso de saberes. a sua capacidade multimdia,
onde a cultura tanto legitima/estabelece ordens sociais desestabilizadas como tambm
apresenta suas fissuras e crises sociais da qual pode germinar mudanas. Aqui, o autor
se diferencia de seus predecessores, pois apresenta a possibilidade de transgressosocial nos rituais e no apenas a sustentao de uma situao social. Ainda assim
pondera que uma das principais funcionalidades do ritual a de perpetuar o
conhecimento necessrio para a sobrevivncia daquele grupo social, ou se preferirmos,
de sua tradio cultural. Nessa perspectiva, o corpo, atravs das tcnicas corporais,
pode ser considerado um dos aparelhos comunicacionais constituintes do ritual. Por
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isso entendemos que o ritual possui uma simbologia enormemente condensada, em
que "(...) uma grande variedade de significados alternativos so implcitos nos mesmos
grupos de categoria (LEACH, 1966, p. 4). Dessa forma, as tcnicas corporais
compem uma dessas categorias que possibilita a anlise dos smbolos. Isso pode serexemplificado atravs dos cnticos e danas realizadas durante uma folia.
Turner (2008) amplia este debate ao dizer que os smbolos culturais, incluindo a
os smbolos rituais, so a origem e a base de sustentao dos processos que envolvem
as mudanas temporais nas relaes sociais. Isso implica dizer que no so entidades
atemporais, pelo contrrio, os smbolos rituais esto envolvidos nesses processos de
transformao da cultura. Dessa forma, o smbolo instiga as aes sociais, pois
condensa um universo de referncias em que esto unidos tanto o campo cognitivocomo o afetivo. Por isso, de acordo com Turner (2008), os smbolos rituais so
"multivocais", pois representam vrios significados interligados entre si. O que permite
tanto a manuteno das "estruturas sociais" como tambm o germe de sua superao
ou resistncia, o que nomeou de communitas. Por isso, h aqui uma ampliao
conceitual em relao perspectiva de Radcliffe-Brown (1973), que considerava os
smbolos como expresso apenas da estrutura social e que promovia a ao de
integrao da sociedade, sendo um mecanismo de defesa social.
O smbolo a menor unidade de um ritual, por isso permite revelar elementos da
cultura e da sociedade ao qual fazem parte. De acordo com Turner (2005), estes se
apresentam por intermdio de trs caractersticas, sendo elas: a polissemia, a
multivocalidade e a polarizao. A polissemia so as diversas significaes que podem
ser dadas para um smbolo por intermdio de seus interlocutores dentro de uma
situao ritual. J a multivocalidade so as interconexes existentes, ou no, entre
estes significados apresentados pelos interlocutores sobre o smbolo. Por ltimo, temos
a polarizao que dividida na dimenso ideolgica (relacionada aos valores, regras ecomportamentos compartilhados pelo grupo social) e a dimenso sensorial (em que
predominam os fenmenos fisiolgicos, como o sangue, o coito, o nascimento, a morte
etc).
A partir dessa caracterizao dos smbolos, parece-nos oportuno entender sua
relao com o ritual, vejamos a seguinte citao:
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Por "ritual" entendo o comportamento formal prescrito para ocasies no
devotadas rotina tecnolgica, tendo como referncia a crena em
seres ou poderes msticos. O smbolo (...) a unidade ltima deestrutura especfica em um contexto ritual. (...) um "smbolo" uma
coisa encarada pelo consenso geral como tipificando ou representando
ou lembrando algo atravs da posse de qualidades anlogas ou por
meio de associaes em fatos ou pensamentos (TURNER, 2005, p. 49).
Sobre esse ponto de vista, o smbolo ritual est associado aos interesses, aos
propsitos, aos fins e aos meios humanos, sejam eles explcitos ou no. O smbolo
possui uma caracterstica dinmica dentro do contexto do qual est inserido,
elaborando ou reafirmando valores, comportamentos, costumes, regras sociais,
relaes de poder etc. Contudo, deve ser analisado dentro de um processo social
devido a sua capacidade de ao sobre a realidade, pois est diretamente relacionado
aos interesses, propsitos, fins e meios humanos, sejam estes deliberadamente
intencionais ou no, sendo necessrio, neste ltimo, uma observao rigorosa para sua
identificao e anlise. No caso desta etnografia, a centralidade do trabalho, ou seja, o
fio condutor da anlise est no(s) smbolo(s) do ritual de folia, tendo como referncia asperformances realizadas pelos folies e compartilhadas pelos seus expectadores.
De acordo com Turner (1957), durante a anlise de rituais, temos trs nveis ou
campos de significao. O primeiro deles nomeado de exegticoe se caracteriza pela
interpretao dos vrios informantes nativos sobre o ritual. O segundo conhecido por
operacional, no qual o observador/antroplogo descreve como realizado o ritual,
apresentando quem participa e quem no participa (se so homens ou mulheres, por
exemplo) e em qual contexto praticado que, em sntese, so as informaes do ritual.
Por ltimo, temos oposicional, em que, tomando por referncias as trs caractersticas
do ritual, o antroplogo realiza sua anlise e elabora uma explicao sobre a realidade
investigada.
Segundo Turner (1988), a performance durante o ritual possui quatro aspectos: o
primeiro a explicitao do domnio da tradio cultural; o segundo, o processo de
transmisso dos saberes compartilhados por este grupo social; o terceiro, a ao e
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capacidade transformadora deste sobre a realidade, e o quarto, a capacidade criativa
dos sujeitos para a manuteno/superao de relaes sociais estabelecidas. Estas
caractersticas so interdependentes e esto relacionadas diretamente com os
smbolos rituais, influenciando-se e sendo influenciadas a todo o momento, em queuma modifica, ou no, a realidade da outra.
Ainda segundo Turner (1988), a tradio, elemento constituinte do primeiro
aspecto da performance, so os processos pelos quais os saberes, os comportamentos
e as normas sociais so transmitidas dentro de um contexto cultural, incluindo, neste
caso, os rituais. Essa situao pode ser exemplificada nos rituais de crise de vida
(cerimnias de iniciao e cerimnias funerrias) e rituais de aflio (cultos de caa,
cultos de fertilidade das mulheres e cultos curativos). A forma em que esta tradio ouos smbolos, se preferirmos, so perpassados s novas geraes atravs da
performance. Entretanto, a tradio, neste caso, entendida como dinmica, portanto
no somente refora os costumes e hbitos do grupo social atravs do ritual, como
tambm expressa os anseios, discordncias e disputas simblicas de mudanas na
tradio para atender a novas necessidades sociais. Nos rituais de folia, por exemplo,
isso se torna visvel durante as curraleiras, fato que descreveremos/analisaremos na
etnografia.
A performance possui, de forma concomitante, tanto um componente verbal
como um no verbal, em que, dependendo da situao ritual, pode haver um processo
de predominncia de um sobre o outro. No caso da folia, a depender do momento, o
componente no verbal, manifestado prioritariamente atravs do corpo, tem
predominncia em relao ao componente verbal. O que no significa que um anule o
outro, pelo contrrio, coexistem durante a realizao da performance, havendo,
inclusive, um sincronismo entre ambos que necessrio para a explicitao do smbolo
ritual.
De acordo com Alvarez (2011, p. 11):
A performance (...) involucra retrospeco e reflexo, umpassado, uma histria. O significado a nica categoria queapreende a relao da parte com o todo. O significado serelaciona com a consumao do processo. O homem como
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animal atuante, este homo performticus, opera numcontexto social, onde a reflexo plural.
A performance dialoga em todo momento com a polarizao do ritual, tanto nocampo sensorial como no campo ideolgico (TURNER, 1988). Aqui necessrio
destacar uma ampliao conceitual do autor no que tange ao seu entendimento de
polarizao, terceira caracterstica do smbolo ritual, em especial no campo sensorial.
Vejamos abaixo como se processou esta construo conceitual.
Na obra Floresta dos Smbolos (TURNER, 2005), o autor relaciona o polo
sensorial aos fenmenos e processos fisiolgicos, apesar de utilizar a palavra
usualmente na conceituao. Entretanto, afirma que no polo sensorial concentram-se
aquelas significatas dos quais se pode esperar que suscitem desejos e sentimentos
(TURNER, 2005, p. 59). Nesse sentido, o polo sensorial tem uma dupla acepo, por
um lado, relacionado dimenso fisiolgica e na outra s emoes. Em Dramas,
campos e metforas (TURNER, 2008), ao trabalhar o conceito de communitas, j
conceituado anteriormente, destaca sua importncia para os estudos da religio, da
literatura e das artes, apesar de pouco estudado nas cincias sociais, bem como sua
necessria considerao nos estudos de rituais, pois representa os smbolos da
antiestrutura, dos anseios de alterao/mudanas que so claramente refutados pelanormativa do polo ideolgico. Por ltimo, em Antropologia da performance (TURNER,
1988), ao retomar esta discusso, afirma que o ritual uma performance com
complexa sequncia de atos simblicos (TURNER, 1988, p. 75), o que implica dizer
que o ritual, dependendo da ocasio, pode ser uma performance transformadora que
revela classificaes, categorias e contradies do processo cultural. Nessa tica,
afirma que a performance, ao expressar o polo sensorial, pode publicizar, para alm da
dimenso fisiolgica e emotiva, traos da antiestrutura, ou seja, a communitas.
Portanto, utilizaremos, em nossas anlises do ritual de folia, esta concepo ampliada
do conceito de polarizao explicitada pelo autor, em especial na sua aluso ao polo
sensorial.
No entanto, compreendemos que o polo sensorial e o polo ideolgico coexistem
na relao, portanto, assim como a performance suscita os smbolos rituais do polo
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sensorial (sejam eles intencionais ou no), o faz da mesma forma com o polo
ideolgico. Este ltimo, caracterizado pelos fenmenos normativos, pode ser
exemplificado pelos valores morais de generosidade entre parentes, obedincia s
autoridades polticas e s regras sociais. Por isso est relacionado com os princpios deorganizao social: matrilinearidade, patrilinearidade, afiliao por sexo, dentre outros.
Dessa forma, em situaes rituais, a dana, a festa, a vestimenta, os instrumentos
musicais, as pinturas corporais, o uso de alucingenos (externalizados nas
performances) provocam, eminentemente, essa polarizao que explicita o smbolo na
sua menor unidade. Normalmente, "os referentes biolgicos so enobrecidos e os
referentes normativos, carregados de significado emocional" (TURNER, 2008, p. 60).
Nesse contexto, ambos os polos (o sensorial e o ideolgico) banham-se desentidos e significados, podendo tornar o obrigatrio desejvel ou o desejvel
obrigatrio, pois o smbolo ritual opera atravs dessa polarizao e sua resposta de
eficcia, ou no, advm da performance no ritual. Isso implica perceber que a
performance compartilhada coletivamente. Entretanto, tambm pode e, normalmente
possui, uma dimenso autoral. De qualquer forma, sua aprovao perpassa pelo
pblico, podendo referend-la ou no atravs do "ato comunicativo", que, neste caso,
evidenciado atravs das performances da folia, composta pelos momentos de solta,
giro e entrega. Da unidade destas trs performances que temos a totalidade do ritual
de folia.
A performance uma ao intencional, seja individual ou coletiva, construda
subjetivamente ou racionalmente, dentro da situao ritual. Esta possui um simbolismo
verbal (exemplificado na folia pelos cantos e rimas) e outro no verbal (expresso na
folia atravs das coreografias, das danas e nas formas de tocar os instrumentos dando
sntese a esta linguagem corporal). Seu simbolismo pode representar tanto a
transmisso/reafirmao de valores, hbitos, costumes e normas de um determinado
grupo social como tambm suas intenes de transgresso ou anseios de
transformao, evidenciados na polarizao do ritual (TURNER, 1989). Podemos
exemplificar esta situao atravs de uma passagem da folia. Segundo Brando (1987),
durante o giro da folia no permitido a nenhum folio ter relaes sexuais, somente
aps a sua entrega para o dono da festa que este desejo pode ser satisfeito. Caso a
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relao sexual se concretize e seja descoberta pelo grupo de folies, dependendo da
regio em que pertence a tradio da folia, o folio ir sofrer repreenses fsicas ou
morais.
Em sntese, entendemos que o smbolo a menor unidade de um ritual.
Portanto, para ser analisado, preciso identific-lo atravs das caractersticas do
smbolo ritual (polissemia, multivocalidade e polarizao), valendo-se da performance.
Performance esta que se expressa na forma de uma linguagem corporal, num corpo
que comunica, (re)produz e (re)cria smbolos dentro de processos rituais. A partir dessa
concepo, necessrio conceituarmos folia e suas possibilidades de anlise a partir
da proposio apresentada acima.
1.2 O conceito de folia e suas possibilidades para anlise da
alteridade
A folia ou dana da folia, como tambm conhecida, de acordo com Brando
(1983), surge no perodo medieval nos sales nobres em conjunto com as igrejas
medievais. Foi trazida para o Brasil pelos missionrios jesutas na forma de versos e
danas que abordavam os dramas de piedade crist, faziam parte do repertrio de
teatro catequtico e, por esse motivo, eram impostos aos indgenas. Dos aldeamentos
indgenas se espalharam por confrarias e irmandades religiosas de todo o pas, em
especial, de grupos negros localizados nas regies norte, nordeste e centro-oeste do
pas, alm de Minas Gerais. No perodo de romanizao do catolicismo brasileiro, os
ritos considerados festivos aos poucos vo sendo expulsos dos templos e ganham as
ruas, as praas, as periferias das cidades e as estradas e terreiros do meio rural. Esta
apropriao popular de cultos e crenas trazidas pela Igreja Catlica leva a uma prticareligiosa autnoma, diminuindo o controle da hierarquia eclesistica.
Sendo assim, a folia
(...) Sobrevive em redutos de cultura camponesa, multiplica-se entreincontveis equipes, grupos e confrarias de folies. Unidades populares
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de trabalho religioso, equipes estveis de especialistas camponeses querealizam uma frao do trabalho popular de fazer com que circule nacomunidade e entre comunidades rurais (depois urbanas, quando olavrador comea a migrar para a beira das cidades) o saber coletivo decrenas de f, ritos de piedade e regras de vida (BRANDO, 1983, p.
16; grifos do autor).
Por conta disso, as folias so organizadas hierarquicamente de acordo com o
saber/poder que cada um possui a respeito daquela tradio cultural. A partir dessa
perspectiva, a anlise das situaes rituais da folia permite interpretar aspectos da
organizao social do "homem campons". Como nos aponta Brando (1993, p. 26),
"(...) preciso levar em conta outras modalidades subjacentes do pensado-e-vivido, at
aqui desqualificadas como ponto de partida para olhar o mundo campons". Dessaforma, parece-nos oportuno elaborar uma etnografia sobre a Folia de So Sebastio da
famlia de Seu Loro e dona Dominga da Comunidade Quilombola Magalhes. Isso
porque, nas situaes rituais, os aspectos simblicos esto mais propensos a se
externalizarem, apresentando perspectivas e traos dessa alteridade do grupo social.
A folia "um espao campons simbolicamente estabelecido durante um perodo
de tempo igualmente ritualizado, para efeito de circulao de ddivas - bens e servios
- entre um grupo precatrio e moradores do territrio por onde ele circula" (BRANDO,
1981, p.35). Como afirma o autor, esta no uma tentativa de definio da folia, mas
um aspecto importante relacionado ao ritual. Para efeito de exemplificao, a
organizao das casas por onde passam os folies no giro do almoo ou o giro do
pouso feita meses antes pelo encarregado da festa, o que ilustra esta situao. A
escolha/definio dessas casas est relacionada aos aspectos polticos, econmicos,
sociais e religiosos desses sujeitos, seja com a famlia responsvel pela folia ou com o
santo de devoo da mesma. Por isso as casas so, geralmente, de parentes, de
parceiros, de vizinhos, de lideranas polticas, de companheiros de trabalho e desujeitos de uma mesma confisso religiosa que compartilham das mesmas prticas
ritualsticas.
Dessa forma, podemos dizer que a folia um ritual no qual se faz presente a
ddiva que, segundo Mauss (2003), o fundamento de toda sociabilidade e
comunicao humana. A ddiva (trocas) possui a capacidade de gerar alianas, sejam
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elas de ordem matrimonial, poltica, econmica, religiosa etc. Portanto, fundamenta-se
nas obrigaes de dar, de recebere de retribuir. A obrigao de dar, por assim dizer,
pode transparecer um carter voluntrio e despretensioso, do qual podemos
exemplificar atravs de um presente. No entanto, de um dado presente se espera outroem troca, e desta aparente gratuidade temos a obrigao de retribuir. Entre as
obrigaes de dar e retribuir, coloca-se a de receber, que possibilita a relao de
reciprocidade entre as duas primeiras. Alm disso, o objeto de troca no ,
exclusivamente, bens economicamente teis, podendo estes serem tambm
banquetes, ritos, danas, festas, enfim. Na folia, isto pode ser demonstrado, dentre
inmeros outros exemplos, pelas trocas existentes entre a performance da curraleira e
da sussa com as bebidas alcolicas oferecidas pelo dono da casa. Alis, numaperspectiva mais ampla, podemos dizer que a reciprocidade orienta parte significativa
das relaes sociais durante a performance da folia e isto poder ser demonstrado na
etnografia, quando analisamos os aspectos simblicos da bandeira, da comida e da
festa, por exemplo. Nesse sentido, sustentado em Mauss (2003), foi possvel perceber
a construo das alianas, bem como as relaes de poder que se estabelecem entre
os grupos sociais.
Nesse contexto, parece-nos oportuno perceber a relao existente entre estas
trs caractersticas da ddiva com o ritual de folia. A obrigao de dar ocorre,
normalmente, quando os folies rezam para os donos da casa que recebeu em seu lar
a bandeira do santo. J a obrigao de receberseria a necessidade que tm os donos
da casa de acolher o santo e oferecer aos seus folies bebida e comida. Por ltimo,
temos a obrigao de retribuir, na qual os donos da casa devem ofertar esmolas ao
santo e este de atender aos seus pedidos (sejam eles de ordem material ou espiritual)
(BRANDO, 2004).
Este um espao de trocas cerimoniais em que o smbolo da bandeira, condutordas aes no ritual, realiza atravs do ato comunicativo as formas/momentos em que
ocorrero as ddivas do ritual de folia. Portanto, possui significado dentro da
organizao social da qual fazem parte, local onde os smbolos so constantemente
(re)construdos. Caso um grupo de folies migre do campo para a cidade, a tendncia
que esses elos comunicativos se percam ou se transformem para atender a novos
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cdigos culturais, o que implica ocorrer alteraes na forma de realizar a performance.
Por isso, performances de folia fora do contexto social em que so ritualizadas tendem
a adquirir uma linguagem mais geral, uma forma mais simplificada, pois o ato
comunicativo, como diria Leach (1966), alterado. Isso pode ser exemplificado poresses tipos de espectadores que, normalmente, no compartilham dos smbolos rituais
expressos pela performance dos folies, j que sua ritualizao est
descontextualizada.
Entretanto, quando a performance realizada dentro do contexto no qual as
simbologias so compartilhadas, os cantos, por exemplo, tendem a retratar situaes
do cotidiano e as transformaes nas relaes sociais daquele grupo. comum, por
exemplo, fazerem uso de nomes das pessoas para explicitar estas novas percepes ecrticas sobre a realidade. A partir dessa percepo, parece-nos oportuno destacar os
sistemas de smbolos relacionados "promessa" dentro do ritual de folia.
Para entender a situao do promesseirodentro da folia, necessrio analisar
qual o papel do festeiro, um dos atores da folia e, provavelmente, o principal deles, por
ser o responsvel pelo ritual. O festeiro possui a tradio do ritual que foi herdada dos
seus antepassados, ficando a seu cargo a responsabilidade de garantir que este ocorra
periodicamente, devendo organizar a comunidade local (conseguindo doze homens
para um terno de folies) e aglutinando pessoas que compartilham daquela tradio
cultural para a realizao do ritual. Portanto, possui um papel coletivo na conduo do
processo e acaba investindo tempo e dinheiro no ritual. J o promesseiro, pelo
contrrio, tem um papel individual e investe em si prprio ou no nome daquele que lhe
custou a dvida junto ao santo. Entretanto, o promesseiro precisa acompanhar todos os
dias de giro da folia junto com os folies, bem como participar das rezas feitas em todas
as casas para seus donos, realizando junto com eles as mesmas performances.
Iniciada esta apresentao das personalidades sociais dentro da folia, creio quepodemos passar aos seus outros atores de forma mais detalhada.
O encarregado de uma folia definido a partir da ltima realizada, ou seja, sua
escolha feita pelo festeiro logo aps a entrega da ltima folia. de sua
responsabilidade organizar os pousos da folia (casas onde os folies iro dormir no
prximo ano), os almoos e conseguir o meio de transporte dos folies (cavalo ou
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veculo a motor). Este trabalho feito, geralmente, alguns meses antes do incio da
folia, j que aps sua solta o encarregado dar todo o suporte logstico para o
andamento da folia. quem est sempre frente dos folies solucionando problemas e
garantindo, por exemplo, que os prximos pousos e almoos ocorrero como previsto.Durante o ritual, os folies so divididos em trs agrupamentos, desigualmente
distribudos e nomeados por mestres, contramestres e discpulos folies.
Os mestres so aqueles que possuem o maior acmulo de saberes sobre a folia,
quem conhece toda a estrutura e os elementos constitutivos do rito (os cnticos, as
danas, as rezas enfim), sendo o responsvel por garantir que a performance atender
aos anseios da tradio cultural. O mestre quem transfere os saberes da folia aos
artistas-devotos, tendo a responsabilidade de distribuir as posies de comando etrabalho entre os folies. Os contramestres so aqueles que respondem/completam os
versos cantados pelos mestres. Por ltimo, temos os discpulos folies, representados
pelo gerente(subordinado aos mestres e quando solicitado deve controlar a equipe de
devotos para o descanso dos mestres), o alfere (aquele que carrega a bandeira do
santo devoto, geralmente por conta de uma promessa), o regente(violeiros e tocadores
de caixa que do a sonoridade do ritual) e os devotos-artistas(que tocam os pandeiros
e danam). Esses papis no so rigidamente fixos e inflexveis, pois possuem uma
maleabilidade que, inclusive, prpria dos processos de transmisso da tradio
cultural (BRANDO, 1983), pois implicam numa forma de organizao social.
Vejamos a seguinte citao:
No mundo do ritual coletivo do catolicismo popular, fala mais quemesquece menos e o mestre sempre aquele que aprendeu de pequeno,no esqueceu at depois de velho, e soube fazer discpulos do seuensino e do seu exemplo (BRANDO, 1981, p. 233).
Nesta passagem, ficam evidentes os motivos pelos quais se
organizam/estruturam a disposio das performances dentro do ritual de folia. O local
que cada folio ocupa na hierarquia da folia (mestres, contraguias e discpulos folies)
depende dessas trs caractersticas. A primeira delas est relacionada com o domnio
que possui da performance num determinado ritual de folia, em especial dos smbolos
compartilhados por este grupo social, sendo estes apreendidos na experincia com
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outros folies desde tenra idade. A segunda est relacionada ao acompanhamento da
dinamicidade dessa tradio cultural no seu processo de ressignificao dentro do
grupo social. Por ltimo, se possui um respeito perante o grupo devido a sua
capacidade de realizao e transmisso dos processos de performance dos smbolosrituais, o que significa, tambm, a prevalncia da sua viso de mundo perante o grupo
social e um posto importante nas suas relaes de poder.
A folia, de acordo com Pessoa et al (2005), assim como os rituais religiosos
numa perspectiva mais ampla, so espaos de relaes de foras, atuais e potenciais,
em que se busca aumentar ou legitimar interesses de um determinado grupo social.
Dessa forma, a folia, segundo Silva et al(1983), pode-se configurar como uma metfora
de dramatizao do Estado, na qual se representam os poderes legislativo, executivo ejudicirio, podendo ser agregado a estes o poder militar e o poder da igreja,
dependendo da tradio da folia. Dessa forma, possvel relacionar esta definio com
algumas personalidades sociais descritas acima sobre a estruturao da folia. O
encarregado representaria o poder executivo, o alfere representa o poder legislativo e o
judicirio, numa nica personalidade social, os folies como representantes dos
soldados do exrcito e os mestres e os contramestres como representantes da igreja.
No entanto, parece-nos importante analisar em que medida esta proposio de anlise
se sustenta nas tradies de folia na contemporaneidade, em especial na da
Comunidade Quilombola Magalhes que investigamos. Entretanto, o que nos parece
consensual na literatura o fato de estes postos constiturem espaos de poder que
possibilitam aos seus eleitos escolher/definir quais smbolos rituais iro prevalecer na
viso de mundo daquele grupo social.
Em sntese, entendemos que o ritual de folia, segundo Pessoa et al (2007), ao
fazer referncia a folcloristas e antroplogos como Cmara Cascudo e Carlos
Rodrigues Brando, possui trs caractersticas fundamentais. A primeira delasclassifica-a como pertencente ao catolicismo popular, a segunda e, relacionada com a
primeira, a reconhece como sendo de origem camponesa e, por ltimo, a descreve
como um peditrio de cortejo que feito em nome de um padroeiro. Portanto, tem nas
performances concernentes sada, o giro e o arremate sua peregrinao que possui
um ponto inicial e final previamente estabelecidos. Desse conjunto de performances
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que se apresenta a inteireza do ritual, sendo possvel, a partir desses dois pontos do
festejo, analisar os smbolos relacionados s dimenses organizativa, artstica, religiosa
e cultural da folia.
Aps a realizao desse debate, no qual apresentamos as relaes entre osconceitos de corpo, de ritual, de smbolo e de performance, bem como suas
possibilidades para a anlise do ritual de folia, parece-nos pertinente adentrarmos na
discusso de quilombo. Como j dito, esta etnografia foi realizada numa comunidade
quilombola de Gois, o que resulta na necessidade de debater o processo de
constituio/formao dessas comunidades tradicionais dentro do cenrio brasileiro. H
tambm a necessidade de apresentar as especificidades dessa discusso no caso de
Gois e, principalmente, no contexto scio-histrico-cultural relacionado formao daComunidade Quilombola Magalhes, local onde foi realizada esta pesquisa. Isso resulta
no entendimento de que a anlise da alteridade deste ritual deve levar em considerao
o contexto social do qual pertence esta folia. Por isso, este debate se faz necessrio
no somente para justificar o objeto de estudo, mas tambm para qualificar suas
possibilidades de anlise.
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Captulo II
Comunidades Quilombolas: aproximaes de um debate
2.1 O conceito de quilombo: aspectos de uma discusso atual
Neste incio de captulo, realizaremos um debate sobre o conceito de quilombo,
buscando relacion-lo s problemticas enfrentadas pelas comunidades quilombolas na
contemporaneidade, em especial na sua relao com as polticas pblicas, j que este
o responsvel por atender s reivindicaes de posse da terra e de atendimento de
direitos humanos bsicos como sade, moradia, educao, cultura etc. Em seguida,
aprofundaremos este debate nas comunidades quilombolas de Gois, apresentando os
avanos e retrocessos que veem enfrentando esses grupos sociais no que tange os
aspectos legais e de seu reconhecimento social. Por ltimo, apresentamos um
panorama da organizao social e da historicidade da Comunidade Quilombola
Magalhes, dando destaque famlia de Seu Loro e Dona Dominga, responsveis pela
Folia de So Sebastio, ritual em que foi realizada esta etnografia.
De acordo com Almeida (2002), necessrio superar a concepo de que os
quilombos eram grupos estticos, sem resistncia e negadores do sentido de
mobilidade, interrelaes e diversidade no seu interior. Pelo contrrio, estes possuam
diversidade tnica e social caracterizada pelo quadro de excluso e conflito social com
a colnia. O quilombo tornou-se emblemtico no processo de resistncia ao regime
escravista, que se sustentava na fora fsica e no poder simblico.
Levando em considerao o papel social e histrico dos quilombos nasdiversas sociedades latino-americanas, no se pode deixar de perceberque o conceito de quilombo sofreu um deslocamento. (...) No entanto, oquilombo no deixou de existir como lugar etnicizado, redefinindo-senos aspectos sociocultural e poltico, o que sugere uma interpretaocaso a caso para que se compreenda como constituem sua identidadeno embate poltico e institucional no Brasil (ALMEIDA, 2002, p. 45).
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Os quilombos, mocambos como tambm eram conhecidos (ambas as palavras
de origem africana), existiram em todas as provncias do Brasil. Os primeiros registros
histricos datam de 1575 na regio da Bahia. Os quilombos eram vistos com
desconfiana e de forma desagradvel pela vizinhana de fazendeiros, poisameaavam o poder constitudo. Eram constantes os conflitos, sem falar no fato de os
quilombos terem um poder simblico que instigava nos negros, ainda escravizados, a
vontade de fugir. Esse efeito psicolgico sobre os cativos era uma das maiores
preocupaes do regime escravista, segundo os apontamentos feitos nos estudos de
Lara (1996) e Silva (1998).
A ao dos mocambeiros era um enclave ao regime escravista, por constituir
uma microssociedade dentro do regime. De acordo com Reis e Gomes (1996),Palmares (um dos mais emblemticos quilombos do perodo escravista) surgiu com as
primeiras invases holandesas a Pernambuco em 1630. Isso provocou uma grande
fuga de escravos que, ao longo dos anos, permitiu a constituio daquele que seria um
dos maiores quilombos de resistncia do Brasil, chegando a ser nomeado pelas foras
militares da capitania de Pernambuco de Estado Negro.
No quilombo de Palmares, segundo Carneiro (1966), a organizao social era
semelhante s existentes na frica do sculo XVII. Dito de outra forma, era um Estado
baseado na eletividade do chefe, o "mais hbil e o mais sagaz" liderava o grupo.
Obtinha este ttulo aquele que tivesse maior prestgio e felicidade na guerra ou no
"mando" perante o quilombo. Uma peculiaridade de Palmares, em relao a outros
quilombos do Brasil, o fato de este ter sobrevivido por quase um sculo, apesar das
diversas expedies brancas enviadas para reduzi-lo ou extingui-lo por completamente.
Por esse motivo, possivelmente que tenha se tornado emblemtico em nosso pas
dentro dos movimentos negros na luta para a obteno de direitos sociais.
Apesar das controvrsias existentes nos estudos histricos, supomos que a
maior liderana do quilombo de Palmares tenha sido o negro Zumbi, nome este que,
provavelmente, advenha de uma simplificao de um nome maior, que significava
"deus da guerra". De acordo com Carneiro (1966), Zumbi chefiou o quilombo na fase
mais decisiva da luta, chegando a ser citado pelo Conselho Ultramarino, em 1689,
como um adversrio a ser respeitado e temido pela sua hostilidade e estratgias de
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resistncia. O quilombo de Palmares s foi suprimido com a combinao de foras
entre Estado e coronelistas em 1694. No entanto, para a populao negra da poca,
Zumbi tornou-se uma forma de resistncia ao regime escravista e incitava, no
imaginrio de outros negros, rebelies e a formao de novos quilombos. Naatualidade, sua simbologia se reconfigura e ganha novos contornos, exemplo disso foi a
criao/estipulao do dia da Conscincia Negra em 20 de novembro. Esta coincide
com a data na qual, possivelmente, faleceu Zumbi no ano de 1665, sendo
comemorado neste dia no sua morte, mas, ao contrrio, a sua imortalidade como
smbolo do movimento negro. Durante a semana em que se comemora essa data, so
organizados, normalmente, atos de resistncia e reivindicaes polticas de direitos
sociais por todo o pas por intermdio de vrios segmentos do movimento negro.No entanto, no somente de negros fugidos eram constitudos os quilombos,
mas tambm de nativos americanos, mulatos, fugitivos da justia e, tambm, brancos.
Apesar desse dado histrico, esses grupos eram uma minoria numrica nos quilombos
e seu poder na organizao social era pequeno, de acordo com Schwartz (1996).
Segundo nos relata Reis e Gomes (1996), ao longo de todo o territrio nacional, os
quilombos iam se formando com caractersticas distintas de acordo com cada regio,
levando em considerao seus aspectos polticos, econmicos, sociais e culturais.
Silva (1998) afirma que os quilombos eram um agente de mudana social e de
busca pela liberdade. O que levava a um segundo estgio de luta pela liberdade tnica
e poltica, possibilitando aquilo que se nomeou de quilombagem, ou seja, a luta coletiva
contra o sistema escravista. Vejamos a seguinte citao:
Entendemos por quilombagem o movimento de rebeldiapermanentemente organizado e dirigido pelos prprios escravos que se
verificou durante o escravismo brasileiro em todo o territrio brasileiro.Movimento de mudana social provocado, ele foi uma fora de desgastesignificativo ao regime escravista, solapou as suas bases em diversosnveiseconmico, social e militar e influiu poderosamente para queeste tipo de trabalho entrasse em crise e fosse substitudo pelo trabalholivre. (SILVA, 1998, p. 17)
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Essa forma de organizao social caracterizou-se por um movimento
emancipador que antecede ao movimento liberal abolicionista. Tinha um carter mais
radical e constituiu-se como um mdulo de resistncia ao regime escravista, seja por
sua quantidade, seja por sua continuidade histrica. Foi uma resposta aos processosde opresso e subordinao social que sofriam os negros nesse perodo histrico.
Por outro lado, como j citado anteriormente, preciso compreender que os
quilombos constituam diversidade tnica, mobilidade, comunicao e interrelaes, e,
portanto, no podem ser vistos apenas como o local de negros fugidos ou isolados.
Dessa forma, segundo Almeida (2002), limitaramos a complexidade do conceito de
quilombo, j que estes se formavam a partir das peculiaridades de cada parte do
territrio nacional. Por isso no podemos fazer generalizaes a respeito dessascomunidades, sendo necessrio compreender os processos que levaram formao de
cada uma dessas, perpassando desde sua organizao social at seus aspectos
culturais. Isso implica reconhecer, por exemplo, as relaes que possuem com os
grupos sociais que os cercam (povoados, municpios, outras comunidades etc).
O termo quilombo, a partir da Constituio de 1988, adquire uma interpretao
atualizada, ao ser contemplado no artigo 68 do Ato das Disposies Constitucionais
Transitrias (ADCT). Isso porque se reconheceu o direito territorial s comunidades
remanescentes de quilombo que ainda ocupavam suas terras, cabendo s polticas
pblicas o dever de garantir o reconhecimento e titulao dessas terras. Essa nova
configurao poltica, como nos aponta O'Dwyer (2002), confere ao termo quilombo a
conotao de direitos territoriais, reconfigurando o conceito de quilombo e seu uso
social na contemporaneidade, pois se desloca de uma dimenso histrica para uma
possibilidade de reivindicao de direitos sociais.
Essa nova tica leva a uma reorientao das polticas pblicas, fato
exemplificado pela criao da Fundao Cultural Palmares na Constituio de 1988,
sendo esta vinculada ao Ministrio da Cultura. A fundao possui como
responsabilidade a criao de propostas e o acompanhamento de questes relevantes
para a promoo e preservao de valores culturais, sociais e econmicos advindos da
cultura negra que influenciaram na formao da sociedade brasileira. Com relao s
comunidades quilombolas do pas, quem reconhece a identidade dessas
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comunidades tradicionais. J a SEPPIR (Secretaria de Polticas de Promoo da
Igualdade Racial) foi criada em 21 de maro de 2003 e atua mais diretamente no
mbito do poder executivo, no que tange a formulao, coordenao e articulao de
polticas pblicas e diretrizes para a promoo da igualdade racial, bem como naproteo dos direitos de indivduos e grupos tnicos, em especial da populao negra.
atravs desse rgo que passamos a vislumbrar, dentro do Estado, aes para
minimizar ou superar as desigualdades sociais geradas pelos preconceitos e os
processos de excluso social sofridos por essas comunidades quilombolas. Entretanto,
apesar de notarmos alguns avanos significativos, principalmente atravs das aes
afirmativas, a discrepncia de oportunidades de ascenso social que separa brancos de
negros ainda enorme.Essas duas instituies, que em suma so rgos de formulao, articulao e
implementao de polticas pblicas, contribuem para a luta de reconhecimento e
titulao das terras quilombolas. Elas possuem, apesar dos seus limites, condies de
pressionar as trs esferas do poder e, em especial o INCRA (Instituto Nacional de
Colonizao e Reforma Agrria) para a titulao das terras. O INCRA foi criado em
1970 para atender s competncias, atribuies e responsabilidades estabelecidas na
Lei n 4.504, de 30 de novembro de 1964 (Estatuto da Terra). uma autarquia federal
vinculada ao Ministrio do Desenvolvimento Agrrio que formula os processos de
reconhecimento e titulao das terras dessas comunidades tradicionais. Em especial,
a partir do governo Lula, no ano de 2002, que o INCRA passa a incorporar em suas
incumbncias, de forma mais decisiva, aes relacionadas reforma agrria. No
entanto, os avanos nessa disputa poltica, principalmente no enfrentamento do
agronegcio, tm sido pequenos e insatisfatrios para essas populaes, como
debateremos adiante.
Essas comunidades quilombolas necessitam da formulao/construo de
polticas pblicas que atendam a demandas mais amplas de reivindicaes. As
transformaes sociais da qual necessitam so emergenciais, o que pode ser
exemplificado, segundo os estudos realizados pelo Centro de Documentao Eloy
Ferreira da Silva (CEDEFES, 2008), pela falta de assistncia bsica sade, educao,
moradia, saneamento bsico etc. Entretanto, para a melhoria/ampliao desses
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servios pblicos nas comunidades quilombolas, poderamos ter uma maior agilidade
nos processos de reconhecimento, desapropriao e titulao das terras tradicionais
quilombolas.
Apesar do reconhecimento legal que tiveram a partir da Constituio de 1988,
importante conquista poltica para esse segmento, os desdobramentos desse
parmetro legal nas trs esferas do poder pblico tm ficado aqum das reivindicaes
feitas por essas comunidades. O que pode ser exemplificado pela insatisfao expressa
no "Manifesto de Lanamento do Movimento Nacional em Defesa da Titulao e
Desenvolvimento Sustentvel dos Territrios Quilombolas e Comunidades Tradicionais
- Impactos Institucionais" (FRUM SOCIAL MUNDIAL, 2010). Dentre as bandeiras
levantadas pelo movimento no manifesto, damos destaque:
Considerando que no Balano de 10 anos do FSM-2010 em PortoAlegre as comunidades Quilombolas tem muito pouco a comemorar, eesse pouco se d graas luta insistente e cotidiana das comunidadesquilombolas, pois se aprofundam cada vez mais os ataques aosterritrios negros, Quilombolas, Comunidades Tradicionais e Indgenasem todo Pas. (...) Considerando a negociata em torno do Estatuto daIgualdade Racial com a retirada da temtica Quilombola privilegiando osinteresses do Agronegcio. (...) Considerando a demora emimplementao e execuo dos processos de titulao das comunidadesQuilombolas, bem como a existncia de Ao Direta deInconstitucionalidade patrocinada pelo DEM atacando o Decreto4487/2003 e o Projeto de Decreto Legislativo da lavra do DeputadoValdir Collato (PMDB-SC) tambm atacando o Decreto 4887/2003.Considerando que tais fatos, em especial, a demora na implementaodas Polticas Pblicas e na Titulao das Comunidades as expem a umagravamento da situao de opresso e explorao j existentes e quetal situao no fruto de mero desmando administrativo, mas de umaopo poltica a favor dos interesses do agronegcio e contrrios aosinteresses das comunidades tradicionais. Deliberamos:1- Lanamento do Movimento Nacional em Defesa da Titulao eDesenvolvimento Sustentvel dos Territrios Quilombolas. (...) PelaTitulao Imediata das Terras de Quilombo. (FRUM SOCIALMUNDIAL, 2010).
Esse manifesto apresenta o grau de indignao das comunidades quilombolas
com o andamento dos processos de titulao de suas terras. Dentre os principais
entraves enfrentados, sem sombra de dvida, tem sido a disputa com o Agronegcio e
seus interesses polticos/econmicos pela posse das terras. A ADIN (Ao Direta de
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Inconstitucionalidade), apresentada na Cmara Federal pelo DEM (Partido Democrata),
uma das formas de concretizao dessa organizao poltica no campo legislativo.
Segundo o INCRA (2012a), em seu Relatrio de Regularizao Quilombola,
instrumento de prestao de conta aos movimentos sociais dos processos de titulaodas terras, foram abertos 1167 processos no rgo desde o ano de 2003. Este ano no
ocasional, pois nesse perodo que, atravs do Decreto 4.487/2003, vimos retornar
para o INCRA a responsabilidade de titulao das terras quilombolas, ao revogar o
Decreto 3.912/2001. Desse montante de processos abertos, apenas 121 ttulos foram
emitidos, beneficiando 109 territrios e 190 comunidades.
Esses nmeros no representam 10% da demanda apresentada ao INCRA pelas
comunidades quilombolas at o ms de junho de 2012, como destaca o relatrio. Nomesmo documento, apresentado que esses ttulos representam 0,12% do territrio
nacional. De forma hipottica, caso todas as comunidades quilombolas que atualmente
reivindicam o direito posse da terra tivessem seus ttulos emitidos, esse percentual
ainda no atingiria 1% das terras pertencentes ao territrio nacional. Em contrapartida,
as terras dos agropecurios atingem, de acordo com o mesmo relatrio, 40% desse
mesmo territrio. Atravs desses dados, ficam evidentes os motivos de insatisfao
apresentados no manifesto citado acima, pois j se passaram 24 anos desde que a
Constituio Brasileira de 1988 iniciou o processo de reconhecimento, regularizao e
titulao das terras quilombolas. Ainda assim, os avanos no campo da poltica pblica
foram poucos no que tange a essa problemtica.
A compreenso dessa situao parece-nos importante, pois as vidas desses
grupos tnicos esto vinculadas diretamente sua territoriedade. Dito de outra forma,
estamos entendendo que as dimenses polticas, econmicas, culturais, sociais e
biolgicas do cotidiano dessas comunidades so interdependentes das relaes que
construram ao longo do tempo com as terras onde vivem. O que implica em reconhecer
que as disputas que veem realizando com o agronegcio pelo direito posse da terra
tendem a alterar sua organizao social. Alis, suas produes culturais (costumes,
valores, crenas, rituais, mitos etc) possuem relao direta com essa territoriedade.
Portanto, essas relaes conflituosas de disputa pela terra, sendo mais acirradas ou
menos acirradas a depender da localizao da comunidade quilombola, interferem no
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cotidiano dessas relaes sociais. Essas mudanas, que advm de processos
opressivos ou de resistncia, do novos contornos s manifestaes culturais desses
grupos tnicos.
Apesar da importncia desse contexto social, no podemos restringir as
manifestaes artstico-culturais dessas comunidades quilombolas a uma
representao das relaes de disputa com o agronegcio. Existem outros aspectos
que circundam e contribuem para os processos criativos de representao simblica
dessa realidade, construda por outros prismas e formas distintas de relao social que
vo para alm desta primeira. De acordo com Anjos (2009, p. 148), "nos territrios
quilombolas do Brasil est materializada um conjunto amplo de importantes referncias
oriundas do continente africano". Essas referncias materializam-se nas danas, rituais,festejos, agricultura, religio, lngua/dialetos etc. Alm da necessidade de entender que
essas comunidades, como j dito, no esto isoladas, elas estabelecem relaes com
os povoados e cidades que as circundam e com o tipo de meio natural que
compartilham com esses sujeitos, o que contribui/interfere nas representaes que
faro dessa realidade.
Entretanto, como nos identifica Anjos (2009), nos quilombos contemporneos, as
referncias africanas tm perdido espao para as de origem europeia. Os motivos que
levam a isso so de vrias ordens, o autor destaca 22 pontos que tm provocado essa
situao. Mas, nesta anlise, daremos destaque a quatro deles. Primeiro, a
desfigurao da paisagem quilombola, em que projetos de infraestrutura bsica
implementados nos territrios quilombolas tm alterado sua geografia tradicional.
Segundo, a mobilidade espacial provocada pela precariedade existente nas
comunidades, levando a uma migrao dos jovens para cidades ou capitais prximas
atrs de educao formal ou oportunidades de trabalho. Terceiro, a chegada da
televiso e da internet,que tem levado um volume grande de informaes e imagens,
principalmente para as crianas/jovens sem passarem por um filtro, gerando um conflito
com o tempo da oralidade, no qual, geralmente, so transmitidos os valores nessas
comunidades quilombolas. E quarto, a educao quilombola, em que tanto nas escolas
construdas nas comunidades quilombolas, que so raras, como nas escolas dos
povoados ou cidades vizinhas, a matriz curricular no contempla
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saberes/conhecimentos advindos de matriz africana, apesar da existncia da Lei
10.639/2003, que obriga o ensino de Histria e Cultura Africana nos estabelecimentos
de educao bsica.
Essa problemtica tem levado a um maior desmantelamento das comunidades
quilombolas e dificultado a articulao das suas lideranas na organizao poltica
desses grupos tnicos. Sobre este aspecto, necessrio
(...) o fortalecimento das lideranas polticas tradicionais, especialmentedas mais jovens e das mulheres, que, no movimento quilombola, porfora de suas caractersticas peculiares, so mais participativas, porvezes preponderantes, em determinados povoados (PEDROSA, 2005,p. 78).
Chama-nos a ateno essa participao mais efetiva das mulheres e dos jovens
no movimento quilombola, fato que pode ser explicado pelas contingncias que sofrem,
na atualidade, relacionados ao processo de migrao para as cidades em busca de
educao formal. Dessa forma, o pai fica na terra cuidando da lavoura e das criaes
de animais e sua esposa e filhos vo para a cidade, permanecendo por l durante a
semana e retornando para o campo nos fins de semana. Este um dos fatores que,
segundo Cunha et al (2012), tem sensibilizado esses sujeitos a participarem do
movimento quilombola, em especial para reivindicar condies de vida e de
permanncia na terra onde vivem. Em alguns casos, necessria a mudana de parte
da famlia para a cidade por conta das dificuldades financeiras ou de deslocamento
provocados pela falta de transporte. Por conta disso, comum grupamentos familiares
ficarem perodos superiores a uma semana sem se verem.
No entanto, essa nova dinmica de vida, preponderante no meio urbano, tende a
afastar esses jovens do conjunto de significados e valores compartilhados pela suacomunidade, chegando, em alguns casos, a um afastamento e juzo negativo vida
que levavam no campo. Isso provoca uma oposio entre a educao letrada/branca,
que esses jovens recebem na educao formal, e a educao informal, transmitida pela
oralidade dos mais velhos, que caracterstica dessas comunidades tradicionais
(BRANDO, 2005).
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Nesse sentido, como propem Falco et al (2011), necessrio no somente
que as pesquisas, mas que as polticas pblicas junto s comunidades quilombolas
construam aes interministeriais/intersetoriais. Os pontos de partida devem ser as
necessidades apontadas por cada comunidade quilombola e, a partir dessaperspectiva, possvel atender s suas demandas. Nessa tica, de acordo com
O'Dwyer (2002), preciso outro conceito de quilombo e, inevitavelmente, no tipo de
etnografia realizada nessas comunidades quilombolas, permitindo reconhecer suas
transformaes e mudanas na contemporaneidade. Isso permite novos olhares sobre
suas bandeiras de luta e da (re)criao de suas vidas no cotidiano.
Dessa forma, as singularidades entre os vrios grupos tnicos passam a ter
visibilidade, mesmo havendo proximidade geogrfica entre as mesmas e diferenas naforma de luta pela posse da terra, visto que os aspectos culturais e a forma de
organizao social de cada comunidade quilombola se agregam na disputa
poltico/judiciria. Entretanto, isso no representa uma desarticulao coletiva no
movimento quilombola, pelo contrrio, tem possibilitado seu fortalecimento.
Diante desse quadro, os quilombos so
grupos tnicos que existem ou persistem ao longo da histria como umtipo organizacional, segundo processos de excluso e incluso quepossibilitam definir os limites entre os considerados de dentro e os defora. Isso sem qualquer referncia necessria a preservao dediferenas culturais herdadas que sejam facilmente identificveis porqualquer observador externo, supostamente produzidas pelamanuteno de um pretenso isolamento geogrfico e/ou social ao longodo tempo (O'DWYER, 2002, p. 14).
Esta conceituao amplia o debate sobre quilombo, ao situar esses grupos
sociais no presente, facilitando seu processo de reconhecimento identitrio. Assim, oolhar sobre essas comunidades se desloca para outro patamar, desmistificando
perspectivas conservadoras que, em suma, contribuem para processos discriminatrios,
racistas e de excluso social. Para exemplificar, podemos destacar os processos de
disputa fundiria em que fazendeiros exigem na justia uma comprovao, mediante
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exames biolgicos, de uma ancestralidade africana dos sujeitos pertencentes s
comunidades quilombolas para terem o direito posse da terra.
As diversas comunidades negras e rurais espalhadas por este pas,
remanescentes de quilombo, se preferirmos a terminologia legal, precisam ser vistas
como grupos tnicos dinmicos. Ao longo do tempo, desenvolveram prticas cotidianas
de resistncia, tanto para manuteno/reproduo/criao de seus modos de vida como
tambm para a consolidao de um territrio prprio que lhes garantissem a produo
da vida material. Dessa forma, as ocupaes territoriais desses grupos tendem a no
serem feitas em loteamentos individuais, pois h um predomnio de uso comum da terra
para o extrativismo e a agricultura de subsistncia. Por isso as proposies de
titulaes feitas pelo INCRA so de posses coletivas e inalienveis, j que outroaspecto importante de definio da ocupao da terra so as relaes de parentesco
(BRASIL, 2005).
Almeida (2002) aponta que as primeiras articulaes polticas dessas
comunidades surgiram no I Encontro de Comunidades Negras Rurais, que ocorreu no
ano de 1995, em Braslia. Dessa data em diante, esse movimento social toma fora,
principalmente em estados federativos da regio norte, nordeste e centro-oeste,
levando ao surgimento de associaes que buscavam articular de forma coletiva suas
disputas polticas. Isso possibilitou o reconhecimento de diversas comunidades
quilombolas pela Fundao Cultural Palmares. No entanto, os processos de
demarcaes e titulaes feitos pelo INCRA, como j dito, esto sendo realizados de
forma demasiadamente lenta.
Esse parece ser um retrato daquilo que nos aponta Alvarez e Santos (2006), na
crescente fora que conquistou o movimento negro durante a dcada de 1990. O que
possibilitou, em 2003, como j citado anteriormente, a criao da SEPPIR. Por fora da
esfera estatal, o lanamento de um movimento nacional quilombola, como apresentado
no documento publicizado no Frum Social Mundial (2010), demonstra que essas
comunidades tm buscado se (re)organizadar, tomando novos flegos e fora a nvel
nacional diante das disputas que travam cotidianamente. Apesar desse aparente
quadro de melhoria, os embates que essas comunidades quilombolas enfrentam para
ter seus direitos reconhecidos so enormes, dados j apresentados nesta discusso
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confirmam esta anlise. Passaremos agora a um debate localizado, apresentando o
contexto e a realidade das comunidades quilombolas em Gois.
2.2 Comunidades Quilombolas em Gois
Na regio centro-oeste, especificamente em Gois, de acordo com a Fundao
Cultural Palmares (2012), temos atualmente 22 comunidades quilombolas reconhecidas
dentro do estado. Sabemos que esse nmero est aqum da realidade, pois, se
tomarmos como exemplo o estado vizinho de Minas Gerais, de acordo com a mesma
fonte de consulta, este j possui 158 comunidades quilombolas reconhecidas. A partir
deste dado, se comparado com a realidade de Gois, possvel termos uma dimenso
do tamanho da invisibilidade social que veem enfrentando essas comunidades
tradicionais em nossa localidade.
Dentre essas 22 comunidades quilombolas que tiveram seu reconhecimento pela
Fundao Palmares, a nica que conseguiu conquistas significativas na disputa poltica
pela posse da terra foi a Comunidade Quilombola Kalunga. Seu territrio, segundo
demarcao feita pelo INCRA (2012a), abrange parte dos municpios de Cavalcante,
Monte Alegre e Teresina de Gois, situados na regio Nordeste do estado. Com a
assinatura do decreto que autorizou a desapropriao e a titulao das terras feito pelo
presidente Luiz Incio Lula da Silva, em 2009, o rgo teria o prazo de dois anos para
realizar a desapropriao e dar o ttulo coletivo de posse da terra para a comunidade.
Esse prazo venceu no fim do ano passado e o INCRA ainda no conseguiu finalizar o
trmite burocrtico. Foi ento que pediram a prorrogao do prazo por mais dois anos a
fim de terminarem o trabalho, alegando, para isso, dificuldades tcnicas.
Enquanto isso, vemos cerca de seis mil pessoas, atual estimativa do IBGE(2011) da populao Kalunga, lutando para terem seus direitos sociais garantidos pelo
Estado brasileiro. A posse da terra essencial para a melhoria e chegada de outras
polticas pblicas para essas comunidades. O sucesso ou insucesso do caso Kalunga,
maior territrio quilombola do pas e caso emblemtico da luta quilombola, pode
significar avanos ou retrocessos no movimento social como um todo.
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Segundo Karasch (1996), o censo de 1779 para Gois apontava que,
dependendo da regio, o nmero de negros chegava a 80% da populao local. Nos
municpios de Cavalcante, Arraias e So Domingos, situados no nordeste do estado,
esses percentuais na poca eram de, respectivamente, 75,9%, 70,4% e 45,5%. No poracaso, nessas imediaes territoriais existem hoje diversas comunidades quilombolas,
sendo que vrias delas ainda no possuem o seu reconhecimento pela Fundao
Cultural Palmares, provavelmente devido falta de estudos e pesquisas na regio
(BAIOCCHI, 1999).
O surgimento dos quilombos em Gois, de acordo com Karasch (1996), ocorreu
por volta do sculo XVII com a fuga de escravos indgenas dos centros de extrao do
ouro localizados no norte do estado. Silva (1998) relata que, nesse perodo, vierampara c africanos fugidos do Maranho, Bahia e Pernambuco, percorrendo a rota do
serto com destino s regies norte e nordeste do estado. Almeida (2007) afirma que
esses quilombos se autossustentavam por meio da minerao de ouro e do cultivo de
alimentos. Sem dvida, a minerao uma diferena que marca as comunidades
surgidas em Gois, pois realizavam garimpo em montanhas remotas da regio e
trocavam esse ouro por mercadorias nos municpios prximos para utiliz-las nos
quilombos, tais como armas, munio, cachaa e tecidos.
De acordo com Silva (1974), esses sujeitos eram nomeados no final do sculo
XIX e at segunda metade do sculo XX, de negros do leste goiano. Esta
nomenclatura perdurou at a diviso do norte de Gois em 1989 para a criao de um
novo estado, nomeado de Tocantins. A partir desse momento, os negros do leste
goiano passam a pertencer ao nordeste de Gois. Vejamos a seguinte citao:
No municpio de Posse h uma colnia de negros no lugar denominadoBaco-Pari, at hoje se mantendo segregada parte, em seu sistema devida semiprimitiva. Na fazenda Extrema, municpio de Iaciara, h outracolnia de negros no mesmo estilo desta. Em Flores de Gois grandeo coeficiente de pessoas de cor, ainda em maior quantidade na zonado Paran. Pintam algumas manchas negras nos municpios de SoDomingos e Galheiros e outras localidades menores, mas j emprocesso de miscigenao (VIEIRA, 1962 apudSILVA, 1974, p. 87).
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Aqui possvel ver o preconceito social sofrido pelos negros moradores dessa
regio de Gois, ficando visvel, inclusive, o tom negativo/pejorativo ao descrever o
processo de miscigenao na regio. Os municpios citados acima so vizinhos do
municpio de Nova Roma, onde reside atualmente a Comunidade QuilombolaMagalhes, bem como fazem margem com os municpios de Cavalcante, Teresina de
Gois e Monte Alegre, onde est situada a Comunidade Quilombola Kalunga. Ambas
as comunidades esto localizadas nas margens do rio Paran, que na regio tornou-se
uma referncia de localizao dos arraias