27
A mí(s)tica origem do Zero e a (r)evolução do Nada Franz Kreüther Pereira [email protected] Secretaria de Estado de Educação-SEDUC Look at zero and you see nothing; but look through it and you will see the world. - R. Kaplan Resumo: A história da evolução humana está diretamente relacionada à história dos números, mais precisamente a capacidade do homem de criar símbolos, atribuir-lhes significados e transmitir esses conhecimentos para outros. A Matemática - a linguagem simbólica por natureza - é a expressão máxima da evolução intelectual humana, tendo no Zero um dos símbolos matemáticos mais significativos e um marco nessa história, pois é a tradução gráfica de uma idéia altamente abstrata e assustadora para muitos povos e culturas: o vazio, o nada. Mais do que falar da história da Matemática, este artigo trata igualmente de coisas do pensamento e de cultura, fenômenos essencialmente humanos. Palavras-chave: História da Matemática, origem dos números, cultura. Apresentação Neste trabalho pretendo refletir sobre algumas questões a respeito do surgimento do zero, como por exemplo: “Por que demorou tanto para existir uma representação do nada?” (Kaplan. 200, p. 27); Será o zero a forma do nada? Há alguma relação entre a forma circular escolhida para representar o 1 *

A Mistica Origem Do Zero_fim

Embed Size (px)

DESCRIPTION

A história da evolução humana está diretamente relacionada à história dos números, mais precisamente a capacidade do homem de criar símbolos, atribuir-lhes significados e transmitir esses conhecimentos para outros. A Matemática - a linguagem simbólica por natureza - é a expressão máxima da evolução intelectual humana, tendo no Zero um dos símbolos matemáticos mais significativos e um marco nessa história, pois é a tradução gráfica de uma idéia altamente abstrata e assustadora para muitos povos e culturas: o vazio, o nada. Mais do que falar da história da Matemática, este artigo trata igualmente de coisas do pensamento e de cultura, fenômenos essencialmente humanos.

Citation preview

Page 1: A Mistica Origem Do Zero_fim

A mí(s)tica origem do Zero e a (r)evolução do Nada

Franz Kreüther [email protected]

Secretaria de Estado de Educação-SEDUC

Look at zero and you see nothing; but look through it and you will see the world. - R. Kaplan

Resumo:

A história da evolução humana está diretamente relacionada à história dos números, mais

precisamente a capacidade do homem de criar símbolos, atribuir-lhes significados e

transmitir esses conhecimentos para outros. A Matemática - a linguagem simbólica por

natureza - é a expressão máxima da evolução intelectual humana, tendo no Zero um dos

símbolos matemáticos mais significativos e um marco nessa história, pois é a tradução

gráfica de uma idéia altamente abstrata e assustadora para muitos povos e culturas: o vazio,

o nada. Mais do que falar da história da Matemática, este artigo trata igualmente de coisas

do pensamento e de cultura, fenômenos essencialmente humanos.

Palavras-chave: História da Matemática, origem dos números, cultura.

Apresentação

Neste trabalho pretendo refletir sobre algumas questões a respeito do surgimento do

zero, como por exemplo: “Por que demorou tanto para existir uma representação do nada?”

(Kaplan. 200, p. 27); Será o zero a forma do nada? Há alguma relação entre a forma

circular escolhida para representar o vazio e o zero? O zero pode ter sido

descoberto/inventado antes e mantido oculto por interesses herméticos? A construção do

conceito de Zero contribui para a aprendizagem matemática?

Aliamos, ainda, as hipóteses que norteiam esse artigo, a saber:

o zero surgiu como materialização de um processo não apenas matemático e com

base em entes materiais - como o que ocorreu para o surgimento dos números

naturais;

a compreensão desse conceito, isto é, a idéia de vazio/nada não era somente

assustadora como inalcançável para a população antiga;

que um caráter divino/mítico atribuído ao zero pode ter contribuído decisivamente

para retardar seu surgimento ou divulgação, e

1

*

Page 2: A Mistica Origem Do Zero_fim

o zero exigiu do ser humano o desenvolvimento de novas estruturas cognitivas

(subjetivas e culturais), sem as quais sua maturação seria impossível.

Este artigo aproxima-se, de forma mui modesta, de uma disciplina designada pela

Profª. Dra. Teresa Vergani1 de Matemática, Sociedade e Cultura-MSC. Esses três conceitos

encontram-se tão imbricados, num sentido antropológico, que ao se lançar um olhar

reflexivo sobre um deles, necessariamente enxergamos os outros; e ao fazer isso

adquirimos mais um pouco de compreensão da nossa história universal. E “talvez nada

seja tão inovador como as raízes das coisas: uma abordagem intercultural das antigas

realidades para-matemáticas só se justifica se visar uma compreensão crítica do presente

orientada para uma intervenção latente no porvir” (Vergani. 1991, p.22).

O medo do nada

Nas sociedades primitivas a tradição de transmitir oralmente os conhecimentos

tendo por base mitos, lendas, fábulas etc, era institucionalizada, entretanto observamos que

em todas os mitos cosmológicos e antropogônicos (os que tratam da criação do mundo e do

homem) não falam no nada, no vazio. Parece-nos claro que “la razón de este proceder es

obvia: el hombre tiene horror al vácio (grifo nosso) y necessita de uma seguridad que el

reconocimiento de esas tenieblas le impediría tener para actuar eficazmente em su

ambiente.” (Sagrera. 1967, p.40). De fato, “na vida cotidiana, não nos apercebemos dessa

unidade de todas as coisas; em vez disso, dividimos o mundo em objetos e eventos

isolados” (Capra. 2000, p.103).

Assim, num mundo completamente preenchido por coisas dinâmicas e visíveis,

como seria possível ao homem mostrar o vazio, o nada? Essa “idéia de quantidade” não

encontrava correspondente em suas representações visuais, táteis ou mentais. O fato de ele

“não ter” era-lhe uma idéia bastante clara e facilmente transmissível para outros, o

impossível era associar essa “idéia” concreta de quantidade com outra, absurdamente

abstrata, o nada... até que surgiu o Zero.

O zero também não encontrava lugar nas reflexões dos filósofos da antiguidade, da

mesma forma que “a noção de repouso absoluto, ou inatividade estava quase inteiramente

1 Teresa Vergani é licenciada em Matemática pela Universidade de Lisboa e doutora em Antropologia.

2

Page 3: A Mistica Origem Do Zero_fim

ausente da filosofia chinesa” (Capra. 2000, p.34). Mas os mestres e sábios antigos

debruçavam-se sobre tudo que lhes conduzisse à compreensão do ser e do não-ser, na

busca de identificar diferenças, de estabelecer limites, de mensurar2 o real e o imaginário, o

vulgar e o maravilhoso, o tangível e o intangível.

Cronologicamente, o 1 foi o primeiro algarismo e o zero o último a compor a

escada do progresso do ser humano, um progresso que o tem levado cada vez mais

próximo do aniquilamento, do nada do qual tenta desesperadamente fugir, pois o homem é

o único ser da natureza que tem consciência que vai morrer. Essa filosofia nos remete ao

fluxo constante e universal de todas as coisas, aos ciclos que regem todas as manifestações;

e isso nos lembra a mensagem contida no símbolo do Yin e Yang: quando Yin atinge seu

ponto máximo cede lugar ao Yang; quando Yang atinge seu ponto máximo, cede lugar ao

Yin.

O zero eclodiu no momento em que o conceito de número havia atingido seu

clímax (seu ponto máximo para a época), daí necessitava sofrer uma transformação

evolutiva, um morrer e um renascer (a forma de ovo reforça a analogia). Ele marca o

momento da morte dos números e seu renascimento, reconfigurados em importância,

símbolo e significado. Na pesquisa que realizamos em 2003, com estudantes de 5ª a 8ª

série de uma escola particular em Belém, a aluna L.F. (6ª série-12 anos) apresenta uma

bem elaborada concepção quando diz que o “zero é o começo de tudo, não só dos números,

mas de tudo, pois tudo começa do zero, o que não começa do zero não começa, continua”.

A mí(s)tica origem do Zero

Lawlor (1996, p.20), atribui um poder revolucionário ao Zero ao afirmar que “com o

zero, temos no início das matemáticas modernas um conceito numérico que

filosoficamente é enganoso e que cria uma separação entre nosso sistema de símbolos

numéricos e a estrutura do mundo natural”, e esclarece que “a orientação teológica da

mentalidade hindu não permitiu que se colocasse o zero no início das séries. O zero foi

colocado depois do 9. Não foi senão em finais do século XVI na Europa, o alvorecer da

‘idade da razão’, quando o zero foi colocado na frente do 1, permitindo assim o conceito

dos números negativos” (idem, p.19).

2 Esse medir que aqui me refiro não deve ser entendido como o conceito matemático, mas como a idéia ou resultado que subjaz quando comparamos duas coisas.

3

Page 4: A Mistica Origem Do Zero_fim

O fato é que, antigamente, vivia-se num ponto histórico em que magia, filosofia,

ciências, artes e religião ainda não haviam se separado. Era uma época em que o mito

predominava sobre a razão e desempenhava a função de suporte “científico” 3. O que há

entre o mito e o zero é que ambos são criações culturais, como são os sistemas de

numeração ou uma manifestação artística. Porém, “foi o zero que tornou nossos numerais

chamados arábicos práticos, e revolucionou o uso dos números. É estranho que a

descoberta de um ‘nada’ pudesse ter tamanha repercussão mundial; e ainda mais estranho

que tantos matemáticos de renome nunca viram esse ‘nada’” (Asimov.1989, p.20).

A (r)evolução do nada

A maioria dos historiadores da Matemática afirma que o surgimento do O, como

símbolo matemático para representar o algarismo ausente numa notação numérica, não

parece ser prerrogativa de um único povo. Seu germe, e mesmo sua representação, estavam

presentes em diversas culturas4. Para Asimov (op.cit., p.19), “a grande inovação hindu foi

o invento de um símbolo especial para a fileira não tocada do ábaco”, mas segundo Kaplan

(2001, p.30), “provavelmente foram os gregos sob o domínio de Alexandre que

descobriram o papel crucial do zero na contagem, quando invadiram o que restara do

império babilônio em 331 a.C. e levaram o zero consigo...”.

Ochmann (2002, p.59) informa que “as 2400 lousas de argila, guardadas nos Museus

das Antiguidades, em Istambul, (...) tratam da observação dos céus e da doutrina sobre

corpos celestes; antecipam o ‘Teorema de Pitágoras’ e sistemas algébricos, o decimal

(grifo nosso) e o sexagesimal”, passando a coroa de louros para os Sumérios (c. 1800 a.C.).

Essa também parece ser a opinião de Georges Ifrah (2001, p.11) para quem “o inventor do

zero, escriba meticuloso e preocupado em delimitar um lugar numa série de algarismos

submetidos ao princípio da posição, provavelmente nunca teve consciência da revolução

que tornava possível”. De fato, foi o zero que tornou possível imaginar o quase infinito,

ou seja, números absurdamente grandes como o Gugol5 (Kasner & Newman. 1968, p.31).

É surpreendente que Arquimedes (287-212a.C), sem essa ferramenta matemática, fosse

capaz de trabalhar com quantidades astronômicas e calcular que a cifra de 1063 grãos de

3 Aqui trabalhamos com a idéia de que o mito representa explicações do período tumultuoso e confuso da origem de todas as coisas imaginadas ou percebidas pelos sentidos físicos do Homem4 Confira os desenhos no início deste artigo.5 O número 1 seguido de 100 zeros ou, dizendo de outra maneira, o número 10 elevado a 100.

4

Page 5: A Mistica Origem Do Zero_fim

areia poderia encher o Universo! A existência do zero permitiu, igualmente, a compreensão

de quantidades infinitamente pequenas, números tão próximos do conceito de nada, que

possibilitou o estabelecimento de que existiam partículas extremamente diminutas, algo

inconcebível antes do zero. Tal raciocínio deu margem não somente ao avanço da ciência

moderna como ao próprio surgimento da Física quântica e relativista.

Ocultando o vazio

Parece-nos surpreendente que matemáticos como Pitágoras (séc. VI a. C) e seus

discípulos pudessem, a partir da relação entre os lados de um quadrado de lado 1 e sua

diagonal, de demonstrar que não existe um número racional cujo quadrado seja 2 (e assim

estabelecer as relações que levaram a descoberta dos números irracionais), mas não fossem

capazes de perceber o espírito do zero pairando sobre tudo. Tais revelações fizessem a

escola de Pitágoras ficar ameaçada? Talvez, mas para nos o espírito do zero já habitava

entre os povos antigos, sem agradar nem a gregos nem romanos, pois estava

substancialmente presente mas não era enxergado! Veja-se, p.ex. que “o algarismo romano

para o milhar” era “figurado por um círculo (grifo nosso) cortado por um traço vertical

( )” (Ifrah. 2001, p.202). Então, porque esse espírito não conseguiu manifestar-se numa

forma visível como um símbolo? E mais, se eles já conheciam a correspondência

biunívoca, por que não alcançaram a idéia de que o vazio/nada representava a situação

única e original em que o conjunto está sem elementos?

Sobre essa ausência do zero Kaplan (2001, p.38) apresenta uma possibilidade que

não podemos descartar: “Talvez sua singular ausência dos textos gregos, em vez de mostrar que

eles não o utilizaram nem pensaram sobre ele, indiquem exatamente o contrário. O sigilo escondia

os atos da fraternidade pitagórica...” Os pitagóricos sabiam que o nada era um elemento

presente ao redor das coisas e dos números; sabiam que “o vácuo, que distingue a natureza

dos números, é o intervalo de uma unidade que existe entre cada números e o precedente

ou o sucessivo” (1971, 57). Porém, imaginemos que o Zero aparecesse como representação

do lugar vazio num número, como o valor nulo ou indicando a quantidade “nada”- lembre-

se que qualquer fração, por menor que seja, ainda pode ser dividida. Isso levaria a seguinte

questão natural: Qual é o número menor que o zero? Ou como poderia “alguma coisa ser

menos do que nada, uma vez que nada é o mínimo possível? (1989, p.22). Como poderia

existir algo “menos que um”? - e acredite, esse raciocínio perdurou até o século XVI. Além

5

Page 6: A Mistica Origem Do Zero_fim

disso, havia a poderosa questão religiosa da criação e do Criador, a Unidade que gerou o

Todo. Com o zero tudo isso seria derrubado! Então, poderia Pitágoras ter percebido o caos

que a existência/descoberta do zero poderia provocar na mente da população inculta e ter

mantido oculto esse ente misterioso e mágico? É provável, mas nunca saberemos.

Saber é simbolizar o espanto

O nada tem consumido demasiado tempo de muitos filósofos e pensadores, que há

séculos argumentam sobre o nada bíblico (ex nihili nihil fit - o nada não pode gerar nada)

ou sobre a existência da protomatéria, que Santo Agostinho definiu como prope nihil, isto

é, “próximo do nada” (Gardner. 1994, p.20). O nada e o infinito são as duas posições mais

extremas da mente humana. Parmênides de Eléia (501-492 a.C) falava do ser e do não-ser,

do que é e do que não é, perguntando-se: “Pode algo que não é ser?” (1974, p.45). O zero

pode!... E em que pese a enorme complexidade desse conceito e a relatividade nele

contida, parece facilmente compreendido pelos alunos que entrevistamos:

- “Eu entendo que o zero não tem valor qualquer, mas quando ele e colocado com algum número ele começa a ter seu valor.” (5ªsérie-10 anos)- “O zero é um número que não tem valor sosinho quando ele esta com outro ele tem valor.” (5ªsérie-13 anos)- “O zero é um número neutro e que não tem valor nenhum, só quando se junta com outro número que não seja ele próprio.” (7ª série –14 anos)- “O 0 (zero) é um número neutro em algumas ocasiões, como um 0 (zero) a esquerda, mas se o 0 (zero), for a direita ele modifica mais ainda um número.” (7ª série – 12 anos)

A construção do conceito de zero por alguns estudantes pode atingir uma dimensão

desconcertante, mas real e lógica, transcendendo a Filosofia e a Matemática; indo além da

compreensão e importância dos números, de seu valor e de seu papel para a sociedade

moderna. O símbolo zero surge então como o não-ser que confere consciência ao ser:

- “Ele é um número que por si mesmo não vale nada, mas que ajuda muito a identificar o valor de um número, e se ele não existisse não seria possível chegar a 10, 20, 30, 40, 50, 100, 200, 300, 400,... Porque sem o 0 os números são quase igual a uma pessoa que não tem identidade (grifo nosso), o zero para mim é isso um número indispensável na matemática ou em tudo que precise dela.” (7ª série – 11 anos)

Como ato de combinar idéias, de refletir e avaliar, o ato de pensar é uma função do consciente, mas simbolizar é uma necessidade da mente. Porém, o mais extraordinário não está, p.ex., no simples fato de ver/tocar um objeto e pensar sobre ele, mas em admitir que este deve continuar existindo mesmo quando se está de olhos fechados. Está em saber que algo persiste, apesar de não se poder ver ou tocar, tal como o conjunto das coisas que não existem -o nada-, que de fato existe de per si (Caplan, 2001). E Lao-Tsé (VI a.C.), no Tao

6

Page 7: A Mistica Origem Do Zero_fim

Te Ching, já pregava uma noção altamente elaborada da importância do vazio que circunda as coisas:

Trinta raios compartilham o cubo da roda;É o buraco central que lhe dá utilidade.Molde uma jarra com argila;É o espaço interior que lhe dá utilidade.Corte portas e janelas para uma sala;São os buracos que lhe dão utilidade.O benefício vem do que existe;A utilidade do que não existe.

Uma quantidade de nada

Atribuir valor ao vazio/nada era uma idéia inconcebível para todas as culturas

antigas, pois o nada não era coisa, mas uma condição. Para os hindus sunya era um

adjetivo que significava vazio, deserto, estéril. Aplicava-se a uma pessoa solitária, sem

amigos (Caplan, 2001). Foi preciso acontecer uma evolução6 tanto de conceitos (cultura)

quanto da mente, para que se alcançasse a percepção do valor posicional para o zero, fosse

como um guarda-lugar da ordem vazio do ábaco ou como multiplicador. E, nesse

momento, ele excedeu seu papel de mero coadjuvante, de simples marcador, para atingir o

estrelato...

Como vimos, a presença do zero foi revelada quase concomitantemente e

isoladamente, entre os hindus, entre os maias, entre babilônios e entre os gregos; até que os

pragmáticos comerciantes árabes (c. VIII d.C.) perceberam as facilidades que o sistema

hindu oferecia para o cálculo e registro de números grandes, e introduziram na Europa

“tanto o símbolo que os indianos haviam criado para o zero quanto a própria idéia de

vazio, nulo, não-existente” (Vomero. 2001, p.56).

Os números representam idéias de quantidade, mas o zero representou inicialmente, e

provavelmente, a idéia de uma quantidade que não era representada. Isso é ou não é algo

complicado de se compreender? O zero é um número, um algarismo, um cardinal ou

todos? Malba Tahan (1999, p.45) afirma que “de início devemos ponderar que o zero é um

número que pode ser representado por um algarismo. (...) O zero, como número, tem por si

mesmo valor, que é o valor zero”. Por outro lado é correto afirmar que um número só

existe como resultado de um algoritmo e, ainda, que número é a expressão síntese de uma

6 Ou mudança de paradigma. Isso fica bem claro no livro “O nada que existe” de Robert Caplan.

7

Page 8: A Mistica Origem Do Zero_fim

dada quantidade, logo é finito e determinável, daí que não pode haver número

indeterminado. Dizer, pois, que o zero vale nada, que não tem valor, é atribuir-lhe uma

indeterminação como resultado e excluí-lo da categoria dos números, um erro comum e

freqüente tanto entre crianças quanto adultos. O que prova que não é tão simples assim

compreender o zero, seu valor e sua importância como ente matemático e como conceito.

Mas afinal, se o zero é o símbolo do nada, o nada existe? Lawlor (op.cit, p.20) diz

que “a ciência atual nos mostra uma contínua flutuação e alternância entre a matéria e a

energia, confirmando que no mundo natural não existe o zero”. Note-se que ele diz

“mundo natural”, daí que o zero não é criação da natureza, pois na natureza não existe o

vazio/nada. Porém, mais do que responder e afirmar, a principal função da ciência é

interrogar. Só interroga quem se espanta, e é no espanto que o conhecimento começa. Mas,

continuando com as interrogações, podemos colocar o nada como ausência de matéria e o

zero como símbolo do vazio?

O conceito mais rudimentar para matéria, que aprendemos logo no início dos anos

escolares, diz que matéria é algo que ocupa lugar no espaço, quer dizer, matéria é algo

finito que preenche o vazio. Vazio é um conceito atrelado ao conceito de espaço, que por

seu turno atrela-se a outro, o de matéria, que também relacionasse com outro, mais

complexo, o tempo. Matéria e espaço, então, são idéias que dependem de outra idéia, o

tempo. Assim, onde há o nada não há matéria como nos a concebemos. Por outro lado, os

conceitos matéria, nada/vazio/espaço e tempo, apesar dos avanços e conquistas nos

campos da mecânica quântica, ainda se encontram em construção.7 O zero torna-se, então,

a representação não apenas da ausência de matéria, mas também da ausência do espaço e

do tempo. A abstração atinge seu paroxismo! Para o aluno T.G.M. (8ªsérie – 15 anos)

“Zero é uma pequena pausa no tempo. Infinito é o tempo sem tempo.” Que bela imagem!

O zero e os Infinitos8

Vivemos num mundo tridimensional, por isso necessitamos de três números para

expressar as medidas das coisas, para especificar um ponto no espaço. Se usarmos dois

números apenas, entramos num universo abstrato denominado plano; se utilizarmos um

único número estamos no espaço unidimensional, na origem do plano, a linha. Assim, 7 Cf. Stephen Hawking em “Uma breve história do Tempo” e “O Universo numa Casca de Noz”.8 Pegando emprestado o título do Trabalho de Vergani, já citado.

8

Page 9: A Mistica Origem Do Zero_fim

estabelecemos que “o espaço tem três dimensões, o plano tem duas, a linha tem uma e o

ponto, zero” (Freitas, 1993, p.36). Mas, um universo sem dimensões, ou mesmo

monodimensional, bidimensional ou multidimensional está fora do alcance de nossa

compreensão geométrica.

Para alcançar esse entendimento, a mente do homem deve antes atingir um estágio

búdico. É importante esclarecer que “o Buda [no Gandavyuha] não é mais aquele que vive

no mundo concebido em termos de espaço e tempo. Sua consciência não é a consciência de

uma mente comum que deve ser regulada de acordo com os sentidos e a lógica.[...] O Buda

do Gandavyuha vive num mundo espiritual que possui suas próprias regras.” (Capra, 2000,

p. 222). E para a mente humana, o conceito do interminável, do infinito, é uma das noções

mais perturbadoras, algo de cuja compreensão e entendimento estamos, atualmente, tão

distantes quanto estávamos no passado, o que levou Buda a afirmar que “o átomo não pode

compreender o Cosmo.” (1968, p.159).

Mas a mente humana, em sua incansável busca para entender e explicar o Infinito

pelo finito, fez surgir a Geometria Fractal9. Nela, a exemplo do que ocorre na física

relativista, tudo depende do ponto de vista do observador. Um belo exemplo é a curva de

Koch. “Se traçarmos um círculo ao redor do triângulo original, a curva de Koch jamais irá

além dele. Porém a curva em si é infinitamente longa” (Freitas, 1993, p.39). Por mais

absurda que possa parecer a idéia de o finito conter o infinito, pensamos que ela é

exemplarmente representada no floco de neve de Koch encerrado num círculo.

Um extraterrestre, o Zero

Acima, falamos que o zero surgiu primeiro entre os hindus, para quem o conceito de

zero estava associado a idéia de vazio e que “só os hindus parecem ter tratado o zero como

um número pleno, já em 800 d.C.” (Time-Life 1995, 29), pois

Uma das razões pelas quais os hindus se sentiam à vontade com o zero é que para eles o símbolo tinha uma conotação metafísica e matemática: assim como a iluminação era vista como um espaço vazio, mas dinâmico e repleto de possibilidades, o zero representava, mas podia criar outros números. As

9 Fractal (Latim fractus, quebrar), geometria criada pelo matemático Benoit Mandelbrot nos anos 60.

9

Curva de Koch

Floco de neve de Koch

Page 10: A Mistica Origem Do Zero_fim

conotações de nada, não-ser e infinidade do zero ofendiam a mente racional dos gregos (...). Os hindus, ao contrário, viam o não-ser sob uma luz positiva e não tinham esses pruridos, perseguindo até o fim as possibilidades matemáticas do zero... (idem, ibidem)

Dentre os hindus um caráter divino ou mágico era imanente ao zero. Parece-nos,

então, que por tal motivo, o zero foi revestido de uma propriedade anicônica, isto é, sem

representação em imagem, tal como certas divindades naturais adoradas por antigas

culturas, como certas leis matemáticas que não podem ser expressas através de fórmulas. E

isso nos remete a mais um questionamento: Não seria esse caráter místico o ponto fulcral

para que se mantivesse oculto o significado do Zero, posto que símbolo para o

conhecimento da própria essência de Deus?10 Teriam, então, atribuído ao Zero um aspecto

divino ou mágico?

Já dissemos que, cronologicamente, o 1 foi o primeiro algarismo e o zero o último a

compor a escada do progresso humano. Para nós, esse parto demorado foi devido,

provavelmente, ao fato de o zero estar associado a idéia altamente abstrata de vazio

absoluto, de nada, de vácuo, de infinito, de imóvel, de fim, de morte, de incognoscível.

Quem encerra tantos atributos senão Deus? Segundo Lawlor:

O advento do zero nos permite considerar qualquer coisa que esteja por baixo das series de números quantitativos como nulos ou insignificantes, enquanto qualquer coisa que esteja além da gama quantitativamente compreensível se torna uma extrapolação, oculta sob a palavra Deus e considerada religiosa ou supersticiosa. (idem, ibidem. p.19)A noção de zero também teve efeito nas nossas conceituações psicológicas. Idéias como a finalidade da morte e o medo de enfrentá-la, a separação do céu e da terra, toda a gama de filosofias existenciais baseadas no desespero e no absurdo de que um mundo desemboca no não-ser, todas elas muito devem à noção de zero.” (Op.cit. p.20)

Como sabemos, para os hindus o vazio era chamado sunya (nome sânscrito do zero),

que entre os árabes foi traduzido para sifr11, que deu origem ao termo cefer, o qual, por sua

vez, fez surgir o termo latino cifra. Cifra é um vocábulo já incorporado ao léxico moderno

para representar uma quantidade não determinada, mas real e finita. Ao ser introduzido na

Europa, o zero (e o sistema decimal com ele) provocou transformações profundas na

10 Parece que os hindus seguiam na contramão dos gregos, posto que “...Sankar, com o Budismo vigente durante certo período, estabelecesse o vazio como presença fundamental...” (Lawlor,1996, p.21) 11 Sifr existia no Alcorão para designar “livre, ou melhor, vazio” (Malba Tahan.1999, p.37)

1

Page 11: A Mistica Origem Do Zero_fim

mentalidade vigente que afetaram desde as concepções científicas e religiosas até as mais

mundanas, como os cálculos que envolviam as transações cotidianas. Essas transformações

deram origem a reações extremas, como a de “algumas ordens monásticas” que decidiram

“proclamar que o zero era uma invenção do Diabo” (Lawlor, op.cit. p.18).

As primeiras manifestações científicas do homem tem a ver com as observações

astrológicas, e encontramos no excelente trabalho de Horst Ochmann12 referências que

colocam a Astrologia como surgida entre os Sumérios (c. 4.000.a.C.) e o primeiro sistema

matemático do qual se tem notícia. Para Ochmann (op.cit. p.160), seria “natural” se as

bases de um sistema matemático emergente entre povos primitivos, tivesse correlação com

a anatomia humana13: base 2 (mão/pé); base 10 (dedos) e base 20 (todos os dedos). Porém,

curiosamente o sistema sumério tinha por base o número 6014. Base 60?! Esse espanto é

justificável, pois é “impossível idear um sistema computacional, de alta complexidade, sem

um plano muito bem elaborado” (Otto Neugebauer, apud Ochmann. p.161).

Ochmann desperta mais ainda nossa curiosidade e espanto quando demonstra o

hibridismo do sistema ‘base 60’, informando que nesse sistema os números prosseguem

entre 1 e 59 a maneira do sistema decimal e “depois de 59, a série ascende de ‘60 em 60’

(...). A seqüência de ambas as séries apresenta uma surpreendente omissão: não existe

símbolo para ‘zero’!” (op.cit. pp.162-3). A evidência de que a mais de 4.500 anos antes da

era cristã havia um avançado saber matemático, um complexo sistema de notação e

contagem15 indica que aquela civilização possuía desenvolvido o conceito de zero (como

guarda-lugar); mas então, porque não lhe deram uma representação simbólica? Ochmann

apontam para a hipótese de “Civilizadores extraterrestres” (sic) interferindo na evolução

humana. Será o 0 um símbolo extraterrestre? Há muito ainda que se descobrir sobre o zero!

O círculo era a representação que os primitivos faziam para a natureza, era um ícone

para a idéia de um todo único. Segundo Lawlor (1996, p.21), “a unidade original,

representada por um círculo, se reafirma no conceito da ‘real idéia’, o pensamento de

Deus, que os hindus chamavam bindu ou semente, o que nós denominamos por ponto

12 Cf. O Instinto Geométrico: o processo astrológico a partir de Kepler.13 Georges Ifrah (2001, p.33) traz uma ilustração que mostra como os papua da Nova Guiné utilizavam a técnica corporal de contagem, simplesmente tocando partes do corpo.14 A esse respeito veja-se Ifrah (1997 p.186-90).15 Veja as possibilidades contidas nos divisores de 60: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 10, 12, 15, 20 e 30.

1

Page 12: A Mistica Origem Do Zero_fim

geométrico.” Ora, observado à distância tudo e qualquer coisa pode ser um ponto, seja um

homem, um planeta ou uma galáxia!16 Para os sábios e místicos das grandes civilizações do

passado, tudo tinha origem num centro divino, um ponto sagrado de onde tudo partia. Para

os pitagóricos era o Um; já os hindus acreditam que o centro de tudo está no mítico monte

Meru e entre os maias a gênese tinha origem num ponto onde nada existia. Para outra

magnífica cultura, os astecas, o centro era tão importante quanto os quatro pontos cardeais.

Esse foco central era Xiuhtecutli, deus do fogo, que correspondia ao quinto ponto cardeal.

Como podemos perceber o ponto - o zero - simboliza(va) as forças e energias condensadas

do universo que a tudo originaram.

Esses conceitos se opõem a idéia instituída pelo milenar “provérbio hermético que

todas as coisas existiram a partir do Um, pela meditação do Um” (Vergani, 1991, p.128).

“A Mônada, ou o número Um, representa tudo o que não pode ser dividido” (Bayard, 1993,

p.51). E sendo “Deus, princípio e o fim de todas as coisas, é indivisível por essência.”

(idem, ibidem), daí porque é associado ao 1. O mesmo pensava Platão, Sócrates e os

pitagóricos, que conferiam ao 1 o atributo de ser a essência de todas os números, pois teria

dado origem aos demais pela partição de si mesmo; similar ao que está no Gênesis (I,1):

“No princípio Deus (o 1) criou os céus e a terra (os muitos)”. Note-se que “na cabala, o

Deus Transcedental se chama AYN. AYN significa em hebraico ‘nada’(...) Deus é o Nada

Absoluto” (Halevi. 1997, p.5). Alie-se a isso o fato de que o círculo é um dos símbolos

mais antigos associados à figura feminina e a idéia de proteção. Assim, o mais apropriado

seria conferir os atributos divinos ao Zero, pois este sim não pode ser divisível por nenhum

outro e nem por si próprio, e nele está contida a idéia de princípio e fim, de cheio e vazio.

A deusa Maya e o deus Zero

Pitágoras, o primeiro a relacionar os números com o Universo manifestado, partiu do

princípio que tudo tem uma forma, um peso e uma medida, e tudo que contribuísse para

modelar a forma, continha o conhecimento de sua existência. Assim, reduzindo tais

elementos as proporções numéricas, o resultado representaria o conhecimento almejado.

Para os gregos a percepção da realidade estava na mente [Platão (428-347 a.C) e os

idealistas]; para os chineses a realidade era cíclica e apresentava padrões distinguíveis em

suas mudanças, a isso chamavam Tao, ou o caminho. Para os hindus a idéia de que a 16 Para quem tem dúvida “a teoria inflacionária diz que o universo surgiu do nada há 15 bilhões de anos, como uma partícula 1 bilhão de vezes menor que um próton” (Moraes, 2002, p.70).

1

Page 13: A Mistica Origem Do Zero_fim

realidade está em permanente mutação aparece contida no conceito de que esse mundo

fenomênico, o mundo dos sentidos, é o “mundo de Maya”. Maya, deusa da Ilusão, lembra

que tudo obedece a ciclos e que todas as coisas são mutáveis.

Na visão hindu este mundo está cheio de nada, de aparências e ilusão, de

relatividades. Sendo este um mundo necessariamente onde tudo se move, o tempo é

fundamental, mas Einstein dizia que o tempo é uma ilusão, e a mecânica quântica parece

indicar que a realidade concreta possui uma contrapartida irreal, ilusória (maya). Os

orientais concebiam e expressavam o mundo baseado na dualidade, na existência de

opostos, conceitos adotados até hoje. Então, em oposição à ação temos a reação; ao

positivo deve haver o negativo17; ao Bem, o Mal; ao material deve haver o imaterial; ao

ínfero, o súpero; ao Caos, o Cosmo; ao cheio, o vazio. Eis o germe do zero repousando

como a larva em seu casulo, como semente que aguarda a umidade fecundante. Talvez

mesmo eles já apontassem para um conceito de zero muito anterior as outras culturas.

A herança de Pitágoras também trazia o vazio/nada como um elemento real e

necessário para que houvesse não somente a separação como também a distinção entre as

coisas. Segundo Mondolfo (1971, pp.56-7), para os pitagóricos “o vácuo permite distinguir

as naturezas dos corpos, por ser o vazio uma separação e distinção das cousas colocadas

uma após a outra, e estes dizem que isto acontece, antes de tudo, nos números, uma vez

que o vácuo distingue a natureza dos mesmos”. Lawlor (1996, p.18) informa-nos que

“Aristóteles e outros mestres gregos tinham se referido ao conceito do zero

filosoficamente, mas as matemáticas gregas, fundadas como estavam nos ensinamentos

pitagóricos dos egípcios, resistiram a incorporação do zero em seu sistema”.

Anaxágoras - diz-nos Nietzsche (1974, p.47)- pregava a doutrina “de que tudo

nasce de tudo”, ou seja, que o nada não pode dar origem à coisa alguma, o que está em

conformidade com as mais recentes descobertas da mecânica quântica, onde o nada é o

vácuo e o tudo é o Universo: “Nada é capaz de determinar o destino de tudo. Assim como

está escrita, a frase pode soar trivial, mas substitua as palavras ‘nada’ e ‘tudo’,

respectivamente por ‘vácuo’ e ‘Universo’ e teremos uma das mais profundas afirmações

que podemos estar prestes a confirmar” (Scientific American, 2003, p.37). 17 Uma lógica para o surgimento dos números negativos, tornada possível somente após a incorporação do zero ao conjunto dos números naturais.

1

Page 14: A Mistica Origem Do Zero_fim

Zero: “lona” ou o Tao?

Esvaziar, tirar a matéria contida num lugar, era algo que o homem percebia

claramente, desde seus primórdios. Sabia os aspectos práticos e as vantagens do vazio.

Uma “casa” vazia, um “lugar” vazio são idéias presentes em todos os jogos de tabuleiro.

Alguns jogos, que datam de 1.500 a.C., utilizava nove buracos (nine holes), que eram

preenchidos por uma pedrinha. Outros jogos de tabuleiro (china, c. 2.500 a.C.) tinham a

mesma estrutura (Pennick, 1992). Os buracos vazios estavam ao seu redor ou ele os

construía com algum objetivo concreto e real (os túmulos são um exemplo), logo a idéia do

zero sempre esteve presente. No jogo de palitinhos conhecido como porrinha, a mão aberta

e estendida sem palitos, ou seja, vazia, é denominada de “lona”. E a antiga expressão

“Estou na lona!” tem o mesmo significado de outra moderna e atual, conforme nos mostra

a aluna R.F:

“No meu conceito a palavra zero pode ter muitos sentidos; um deles é o numeral (0,1,2,3...) LOGICO! Também pode ser usado como expressões, gírias como: “Pó, hoje eu estou zerada” (sem dinheiro).” (16 anos – 8ª série)

É surpreendente essa capacidade da mente humana de simbolizar e atribuir “muitos

sentidos” para aquilo que ela não pode apreender de todo. É o que chamamos de formas de

representação. Em matemática o tudo e o nada são expressos em termos de O para este, e

Xn+1 para aquele. A forma e o significado guardam relações fundamentadas na lei das

correspondências ou analogias, que devem ser aprendidas pela mente do indivíduo, porém

é tão impossível para a mente humana normal conceber o vazio quanto o é conceber o

infinito pleno e preenchido. É curioso observar que o conjunto dos números naturais pode

ser indicado de duas maneiras, N e N*. O primeiro símbolo representa os infinitos números

naturais e o segundo simboliza o mesmo conjunto sem o zero, donde se conclui que o zero

não é natural.

Quando acrescentamos o zero aos naturais (1, 2, 3, 4, 5,...) este passa a se chamar

Conjunto dos Inteiros Positivos. Por que essa distinção? E ao integrar esse conjunto, o zero

torna-se a origem de outro conjunto, os Inteiros Relativos (os números negativos), que

surgem como uma contrapartida do conjunto dos números positivos; o zero passa a ser o

umbigo dos números reais.

1

Page 15: A Mistica Origem Do Zero_fim

Considerações finais

Na pesquisa que realizamos com alunos de 5ª a 8ª séries, a cardinalidade do zero não

foi percebida por eles, e dentro de uma perspectiva construtivista isso pode ser um indício

de problemas que envolvem não apenas a transmissão de conteúdos como também a

seleção e a ênfase ao que o professor deseja transmitir. Percebemos ainda, ao analisar as

respostas dos alunos, que ao contrário da idéia de infinito, o conceito de zero ainda se

encontra muito confuso e indefinido em suas mentes. Eles aparentam possuir uma melhor

compreensão (ou mais facilidade de conceituação) do Infinito do que do Zero.

Podemos supor, pela impossibilidade da existência material de uma representação

gráfica ou símbolo para o zero até o século VI ou VII, que o homem não tinha capacidade

mental para dar forma a essa idéia, ou que para isso acontecer foi imprescindível o

desenvolvimento de processos cognitivos demasiados lentos, por conta dos necessários

estágios de ordem cerebral, psicológica, filosófica, cultural, lingüística, coletiva e

individual que o ser humano deveria passar até a sistematização do zero. Noutras palavras,

era necessário que houvesse uma mudança de mentalidade, de paradigma, para que se

estabelecessem as bases de aceitação do zero como ente matemático real e como símbolo

do nada, do vazio; a ponto de possibilitar a inquietante indagação formulada por Robert

Kaplan (2001, p.201) no capítulo final de seu livro: “(...) como uma coisa tão esquisita

como o conjunto do que não existe pode existir?”

Para nós, o parto demorado do zero foi devido ao fato dele estar associado a idéia,

altamente abstrata, de vazio absoluto, de nada, de incognoscível, de vácuo, de infinito, de

imóvel, de fim, morte e de Deus. Acreditamos que a existência do zero permitiu não

apenas que o homem pudesse representar/ler/compreender números tão próximos da idéia

de infinito e de nada - quantidades infinitamente grandes ou infinitesimais -, mas também

que seu surgimento foi capaz de permitir o mais significativo avanço na escalada humana

rumo a sua origem. Quem eu sou? De onde vim? Para onde vou? São perguntas sempre

feitas e que se relacionam com o zero na exata medida em que buscam o Criador escondido

no Ovo Cósmico, no Zero.

Referências bibliográficas

ASIMOV, Isaac. No mundo dos números. Francisco Alves Editora, 4ª ed. Rio de Janeiro, 1989.

1

Page 16: A Mistica Origem Do Zero_fim

BAYARD, Jean-Pierre. Os Talismãs. Editora Pensamento. São Paulo. 1993CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. Ed. Cultrix. São Paulo, 22ª ed. 2000.DIACOV, V. & COVALEV, S. História da Antiguidade. Vol. I. São Paulo: Editora Fulgor. 1965GARDNER, Martin. O Festival Mágico da Matemática. Coleção “O Prazer da Matemática”. Lisboa: Gradiva Publicações. 1994. HALEVI, Z’ev ben Shimon. A Cabala. Edições Del Prado. Madrid, 1997.IFRAH, Georges. Os Números: história de uma grande invenção. São Paulo: Globo, 2001. 10ª ed. _____________. História universal dos números. Tomo 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1997.JABOUILLE, Victor. Iniciação à Ciência dos Mitos. Cadernos Culturais. Lisboa: Inquérito, 1986.KAPLAN, Robert. O nada que existe: uma história natural do zero. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.KASNER, Edward. & NEWMAN, James. Matemática e Imaginação. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.LAWLOR, Robert. Geometria Sagrada. Madrid: Edições Del Prado, 1996.LISSNER, Ivar. Assim viviam nossos antepassados. B. Horizonte: Livraria Itatiaia, 1968. 5ª ed.MONDOLFO, Rodolfo. O Pensamento Antigo. São Paulo: Editora Mestre Jou. 3a. ed. 1971.MORAES, Jomar. O Ponto Zero. in Super Interessante. Editora Abril. Outubro de 2002.NIETZSCHE, F. in OS PENSADORES. Vol. XXXII. São Paulo: Abril, 1974. 1ª. ed.PENNICK, Nigel. Jogos dos Deuses. Editora Mercuryo, São Paulo, 1992.PERRENOUD, Philippe. 10 Novas competências para ensinar. Artes Médicas, Porto Alegre, 2000.FREITAS, Lucia. A Geometria Sagrada. Revista PLANETA. Editora Três. Março de 1993.OCHMANN, Horst. O Instinto Geométrico: o processo astrológico a partir de Kepler. Porto Alegre: Editora Sulina, 2002.PENNICK, Nigel. O Jogo dos Deuses. Mercuryo, São Paulo. 1992.SAGRERA, Martín. Mitos y Sociedad. Editorial Labor, Barcelona. 1967.SCIENTIFIC AMERICAN. Duetto Editorial. Ano 2, nº 15, São Paulo. Agosto/2003.TAHAN, Malba. Os números governam o mundo: folclore da Matemática. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999. 2ª ed.TENÓRIO, Robson Moreira (org.). Aprendendo pelas raízes: alguns caminhos da matemática na história. Centro Editorial e Didático da UFBA. Salvador, 1995.TIME-LIFE. Tempo e Espaço. Série Mistérios do Desconhecido. Rio de Janeiro: Abril. 1995VERGANI, T. O Zero e os Infinitos: uma experiência de antropologia cognitiva e educação matemática intercultural. Lisboa: Minerva, 1991.VOMERO, Maria Fernanda. O tudo que o nada tem. Revista Super Interessante, abril de 2001c.

1