419
1

02- Lemuria-O Agente Do Tempo

Embed Size (px)

DESCRIPTION

ficção

Citation preview

Page 1: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

1

Page 2: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

2

Perry Rhodan O AGENTE DO TEMPO CLARCK DARLTON

K. H. SCHEER H. G. EWRS

WILLIAM VOLTZ

Page 3: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

3

SUMÁRIO: 1. Ofensiva no tempo e no espaço. Pág. 04 2. Caçada ao agente do tempo. Pág. 64 3. Ultimato ao desconhecido. Pág. 123 4. O mundo dos imateriais. Pág. 182 5. A nave capitânia em perigo. Pág. 240 6. Sob as geleiras de Nevada. Pág. 300 7. Entre o fogo e o gelo. Pág. 360

Page 4: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

4

1. Ofensiva no tempo e no espaço

1 O ultracouraçado General Deringhouse estava pairando a dez mil anos-luz de

distância do centro da Nebulosa de Andrômeda, nos limites da zona proibida. Orbitava um sol desconhecido, para escapar a todo e qualquer rastreamento.

Presentemente estávamos em fins de maio do ano 2.404 depois do nascimento de Cristo.

Entretanto, não era o presente que preocupava — inquietava mesmo — Reginald Bell, mas sim o passado.

Aquele passado ao qual Perry Rhodan fora catapultado com a sua nave-capitânia Crest III. Um passado que ficava há mais de cinqüenta mil anos para trás.

O traiçoeiro alçapão do tempo dos senhores da galáxia se fechara. Somente dois seres humanos haviam podido regressar ao presente: os gêmeos Rakal e Tronar Woolver. Eles haviam conseguido, no último instante, impedir Reginald Bell de atacar o alçapão do tempo — o planeta Vario — e destruí-lo. Com isto, se fecharia para Rhodan e seus cinco mil homens, para todo o sempre, o caminho de volta para o presente.

Bell andava de um lado para o outro, no seu camarote, espartanamente mobiliado, parecendo muito inquieto. De vez em quando, lançava um olhar para os gêmeos, como se não conseguisse entender tudo muito bem. E isso que já ouvira a história pelo menos umas três vezes.

— Quer dizer que os senhores da galáxia arranjam os seus reforços praticamente no passado? Isso é uma barbaridade! É inacreditável. Nunca se viu isso! Por que, afinal de contas?

— Não tivemos mais oportunidade de perguntá-lo a Regnal-Orton. Ele morreu depressa demais.

Regnal-Orton era um dos mestres da galáxia, com cuja ajuda involuntária os gêmeos haviam voltado ao presente. Quando o operaram para retirarem o ativador de células que tinha implantado, num minuto ele se transformou num ancião e morreu. Ele devia ter sido um membro importante de sua raça — e se parecia com um ser humano.

— Portanto nossa missão será a de trazer de volta Perry Rhodan e depois destruir o alçapão do tempo.

— É esta, exatamente, a seqüência, que não pode ser alterada de modo algum. Bell olhou para Tronar. — O senhor tem toda razão. Em poucos dias a Helpa chegará aqui. Nós podemos

confiar no Coronel Fracer Matenbac. Ele já recebeu suas instruções, e vai executá-las — Bell sorriu, ligeiramente. — Fico contente em poder rever Lemy Danger. E tomem cuidado para que ele não lhes fique debaixo dos pés!

Tako Kakuta, o teleportador japonês, sorriu suavemente. — O baixinho vai ficar surpreso quando souber do que se trata. Ele jamais fez uma

viagem no tempo. E ainda por cima, de cinqüenta mil anos. Aliás, nem eu. Rakal, que estivera silencioso até então, curvou-se para a frente.

Page 5: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

5

— Não se nota muita coisa, e tudo se passa relativamente depressa. Aliás, o passado não se diferencia especialmente do presente. Está bem, na Terra, a coisa é diferente, aí conhecemos a superfície, sua configuração, e o mundo animal de hoje. Os continentes, naqueles tempos, se situam de maneira bem diversa, e a grande Idade do Gelo se aproxima do fim. A civilização tem um progresso bem maior que o de hoje, por incrível que isso possa parecer. A formidável guerra contra os atacantes do espaço obriga os homens a abandonar o seu mundo.

— Um desdobramento, que ninguém poderia ter imaginado antecipadamente — disse Bell.

— Ele coloca a questão — observou Tako — se não seria possível influenciar o presente. E naturalmente o futuro.

Bell ergueu ambos os braços, sacudindo a cabeça, assustado. — Esqueça o que disse, Tako. Esta é uma perspectiva tão monstruosa, que eu não

gostaria nem de pensar nela. — E mesmo assim, justamente o senhor quase que o fez — disse o teleportador

mutante. — Se tivesse conseguido destruir o planeta Vario — e com ele a gigantesca máquina do tempo dos senhores da galáxia — Perry Rhodan teria que ficar por toda a eternidade no passado da Terra. Ele poderia ter dado novos impulsos ao progresso da humanidade, e a fuga para a Nebulosa de Andrômeda talvez teria um fim. E como as coisas, então, se pareceriam por aqui? Como as coisas se pareceriam em nossa familiar Via Láctea? Estas são perguntas que nós jamais poderemos responder. Bell suspirou.

— Especulações, só isso. A realidade começa em poucas horas, quando a Helpa chegar. Há cinco dias estamos esperando por ela, e esses cinco dias já me parecem uma eternidade. Muito bem, Tronar e Rakal, o que planejamos agora é idéia sua. É uma idéia maluca, desesperada, mas talvez obtenhamos êxito com a mesma. Se não tivermos, nunca mais veremos Rhodan, a não ser que ele mesmo descubra o seu caminho de volta. Para mim é importante que ele seja tranqüilizado. Ele precisa saber que nós fomos avisados, e que os senhores da galáxia não mais estão com o fator surpresa do seu lado. Naturalmente eles agora sabem quem é o seu inimigo, mas com isso a guerra não está resolvida.

— Rhodan — o Rhodan existindo no passado — preocupa-se com a humanidade do presente. — Tronar balançou a cabeça, anuindo. — Aliás, esta é sua maior preocupação. Preciso voltar até onde ele se encontra, Rakal também. Precisamos dizer-lhe que não há perigo — pelo menos não há nenhum perigo maior do que o que já existia antes. Além disso, ele tem que saber que existe o caminho da volta! Também para ele e sua gente.

O videofone zuniu. Na tela apareceu o rosto enorme do epsalense, Coronel Rondo Masser. Ele era

comandante da Deringhouse. — Sir, tivemos o primeiro contato com a Helpa. Ela estará chegando dentro de poucas

horas. Já lhes passamos todas as coordenadas. — Obrigado, coronel — Bell parecia aliviado. — Obrigado. Quando a tela de vídeo se apagou, houve silêncio por algum tempo. Depois Tako falou: — Acho que vou arrumar minhas tralhas. Eles sorriram, meio constrangidos. Aquilo

parecia um pouco forçado.

* * *

O Tenente Stef Huberts, primeiro oficial da Deringhouse, era um homem alto e magro, que geralmente agia de modo frio e pensadamente. Ele estava no seu camarote, quando pelo intercomunicador recebeu a ordem para apresentar-se no cassino dos oficiais. Ali realizava-se a conferência decisiva sobre a entrada em ação.

Page 6: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

6

— Já estou a caminho, sir. Ele já ia desligar, quando o Coronel Masser ainda disse: — E não me venha novamente com o botão da gola aberto, Huberts. — Estará fechado, sir. Ele desligou definitivamente, e verificou o seu uniforme. Tudo estava na mais perfeita

ordem. Até mesmo as botas pretas estavam engraxadas e brilhantes, e o magazine de energia de sua arma de mão, no coldre, fora recarregado.

Ele deixou seu camarote, dirigindo-se ao cassino dos oficiais. Ali Reginald Bell explicaria, mais uma vez, os últimos detalhes daquele plano

audacioso, e depois pediria a opinião de todos os participantes sobre o mesmo. Elevadores antigravitacionais e esteiras rolantes possibilitavam um rápido

deslocamento da tripulação de uma parte da nave até outra, apesar do seu tamanho de dois mil e quinhentos metros de diâmetro. Esta perfeição técnica também era necessária, para, em casos de emergência, colocar o gigante em prontidão para o combate.

Stef Huberts ia justamente sair do corredor principal para abrir a porta do cassino, quando ouviu uma voz fininha, muito clara:

— Sir, poderia ter a grande gentileza de deixar suas ferramentas de locomoção exatamente no lugar em que agora se encontram?

Huberts parou, e não se mexeu mais. A voz saíra do nada, e também não se via ninguém. Sua mão, que já se aproximara do trinco da porta, recuou outra vez.

— Como disse, por favor? — perguntou ele, perplexo. — Ferramentas de locomoção? — Estou falando dos seus pés, sir. Abra a porta, mas fique parado e deixe-me passar. A voz vinha de baixo. Portanto Stef Huberts olhou para baixo. O que ele viu, deixou-o, por alguns segundos, sem fala, mas logo reconheceu o que via.

Tomou posição de sentido e fez continência. — Queira desculpar-me, General Danger. Eu não tinha reparado no senhor. — O que não é de se admirar — retrucou o general-de-divisão Lemy Danger,

generosamente, retribuindo a continência. — Agradeço-lhe a sua atenção, sir... — Tenente Stef Huberts, senhor general. Primeiro oficial da Deringhouse. Tenho

muito prazer em conhecê-lo. Huberts realmente falava sério. Ele já ouvira dizer muita coisa desse quase legendário

agente especial da USO, sempre aceitando as histórias sobre seus inacreditáveis atos heróicos, com um pouco de ceticismo. Mas tudo isso não era o que o deixava perplexo. O que o deixava muito admirado era o tamanho do siganês.

Lemy Danger era um ser humano, mas tinha somente vinte e dois centímetros e dois milímetros de altura. Em condições normais de gravidade ele pesava exatamente oitocentos e cinqüenta gramas, porém conseguia levantar, acima de sua cabeça, pesos de até cinco quilogramas, com a maior facilidade. Isto lhe proporcionara, no seu mundo, um título de campeão, do qual muito se orgulhava. Lemy tinha cento e setenta anos de idade, porém sua perspectiva de vida era de quase novecentos anos. Na realidade tratava-se, ainda, de um adolescente, quase.

— O prazer é todo meu — garantiu ele, cortesmente, apesar de estar muito acima do primeiro oficial, com sua patente de general. — O senhor, agora, poderia, por favor, abrir a porta? Nós vamos nos atrasar. E o chefe costuma ficar muito impaciente.

Huberts curvou-se para a frente e abriu a porta. Lemy Danger passou pelo umbral e entrou no cassino dos oficiais. Na mesa, em forma de ferradura, estavam sentados os homens que dirigiam a missão

planejada. Perto de Bell, o Coronel Fracer Matenbac, um homem louro, baixo, mas com

Page 7: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

7

tendência à obesidade, tomara lugar. Logo que viu Lemy Danger, levantou-se de um salto e gritou:

— Finalmente ele apareceu! Nós já estávamos imaginando, Lemy, que alguém o tivesse trancado, por engano, em alguma sala por aí.

Lemy Danger ficou frio. Caminhou até o meio do aposento, parou e fez continência. — Meus caros senhores terranos — disse ele, curvando-se ligeiramente na direção

dos oficiais e mutantes reunidos. — Fico muito satisfeito em poder ajudá-los. Nada de desesperar — é só o Lemy

chamar. Matenbac quase se engasgou, deixando-se cair novamente na cadeira, cujo estofo se

amoldou imediatamente às suas formas físicas arredondadas. Perto dele, Bell sorriu, ligeiramente, depois bateu no tampo da mesa.

— Sugiro, Lemy, que o senhor se acomode aqui em cima, para não se meter entre nossos pés.

— Se isso é uma alusão ao meu tamanho diminuto — retrucou Lemy solenemente — devo dizer-lhe, sir, que tudo é relativo. Aos meus olhos são os senhores que fogem às normas. Especialmente o senhor, Mr. Bell. Mesmo para os terranos o senhor é visto como... bem... digamos... rotundo. Para mim o senhor é simplesmente um colosso — ele limpou a garganta. — Alguém poderia fazer a gentileza de suspender-me para cima da mesa?

Stef Huberts, que seguira Lemy, abaixou-se rapidamente, estendendo as suas mãos abertas ao anão. Lemy aceitou o oferecimento, com um anuir agradecido, subiu nas mãos, segurando-se bem nos braços.

Segundos mais tarde, ele estava de pé, no tampo da mesa, diante de Bell. Rondo Masser, o comandante da Deringhouse, empurrou-lhe a caixa de charutos. — Sente-se, General Danger. Preste atenção nos enfeites de prata do tampo, para não

rasgar suas calças. Lemy ignorou o aviso e sentou-se. Depois olhou para Bell. — Por mim o senhor pode começar, sir. Também Huberts, entrementes, se sentara. A surpresa ainda estava estampada no seu

rosto. A mistura de bem-humorada zombaria e visível consideração e respeito, com que tratavam Lemy, era-lhe uma novidade.

Reginald Bell, lugar-tenente de Rhodan no presente, começou: — Todos os senhores conhecem a situação. Trata-se, em primeira linha, de informar

Rhodan de que nós fomos avisados. He não deve preocupar-se com a humanidade de hoje, e tem que saber que nós estamos dando conta dos senhores da galáxia. Com isto, ele ganha tempo para fazer a tentativa de regressar com a Crest para o tempo presente. Que isto é possível, já foi comprovado pelos Woolvers. Também para a Crest será encontrado um caminho. A cinqüenta mil anos no passado, está em andamento uma guerra violenta entre terranos da antigüidade e os halutenses. Rhodan precisa tomar cuidado para não ficar entre dois fogos.

Rakal ergueu a mão. Bell fez-lhe um sinal com a cabeça, para que falasse. — A Crest encontra-se numa órbita em torno do sol gigante vermelho, Redpoint, a

mais de dois mil e quinhentos anos-luz de Kahalo. É um lugar ideal para proteger-se contra rastreamentos. É lá que a nave espera. E garantidamente está em segurança, contra qualquer descoberta.

— Ótimo — disse Bell. — Assim estavam as coisas, pelo menos, quando os senhores conseguiram regressar. Se Rhodan for sensato, ele esperará ali. Espera até receber alguma notícia nossa — espera por uma notícia do afastado futuro, que já foi o seu presente. E para conseguirmos isso, vamos ter que fazer uso do alçapão do tempo dos senhores da galáxia, mais uma vez. Nós vamos ter que, simplesmente, surpreendê-los. Ninguém deve sequer

Page 8: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

8

imaginar que estamos nos metendo, de livre e espontânea vontade, na armadilha deles. Coronel Matenbac, poderia fazer-nos a gentileza de explicar até onde o senhor pôde executar minhas ordens, até agora...?

Fracer Matenbac juntou as mãos, como se assim quisesse impedi-las de fazer gestos demasiadamente vivos, ao falar.

— A bordo da Helpa, nós modificamos a Helltiger de conformidade com suas sugestões, sir. Peças de aço soldadas dão à pequena nave a aparência de uma peça de sucata. Camuflado deste modo, Lemy certamente conseguirá iludir o mais atento observador — ele olhou em volta, atentamente. — Não sei se todos os presentes sabem o que a Helltiger significa realmente...

— Algumas explicações certamente ajudariam — achou Bell. Matenbac anuiu. — A Helltiger é uma nave espacial especial, que somente pode ser usada pelo General

Danger. Tem apenas três metros de comprimento, com um diâmetro de setenta e cinco centímetros. Esta minúscula nave espacial tem propulsão ultraluz. O microkalup siganês tem um alcance de duzentos e cinqüenta mil anos-luz. O canhão conversor, embutido na proa da nave, tem a capacidade de disparar tiros com um desenvolvimento energético de uma gigatonelada. No depósito da Helltiger encontra-se o equipamento especial do General Danger. Um segundo equipamento especial enche uma sacola do tamanho de uma mochila. Trata-se da reserva, que deve ser levada por Tako Kakuta, para que Danger, numa eventual perda da Helltiger, possa fazer uso da mesma.

Sobre a mesa ouviu-se um ruído estranho. Era a caixa de charuto de Masser. Lemy levantou-se de um salto. Os seus olhos faiscavam de raiva.

— A Helltiger, meu prezado senhor coronel, não se perderá, se me permite a observação. A mesma é, para seu entendimento, pequena demais para ser atingida. Além disso, por favor não subestime a sua força de combate. Não foi por simples acaso que mandei batizar a nave com o nome de “Tigre do Inferno”.

Matenbac curvou-se para a frente, e olhou Lemy atentamente. — Eu apenas mencionei uma vaga possibilidade, nada mais. Nesta missão temos que

levar em conta qualquer eventualidade. Inclusive o fato da Helltiger ser destruída. Lamento muito, general, mas nós somos realistas. Se não o fôssemos, a coisa estaria preta. Portanto, sente-se novamente, por favor.

Lemy sentou-se. E ficou olhando as mãos de Matenbac, muito perto dele, apoiadas na mesa, como se quisesse mordê-las.

Matenbac prosseguiu: — A bordo da Helpa estão duas naves-auxiliares do tipo dos velhos girinos. A R-10,

trata-se de uma nave-robô, dirigida de forma inteiramente automática, que, num caso de emergência, também pode ser comandada por dois pilotos experientes. A segunda nave foi inteiramente modificada, externamente, de modo que parece um transportador da frota dos tefrodenses. Como os tefrodenses estão em guerra com os maahks, a mesma, sem dúvida, será imediatamente atacada e perseguida pelos respiradores de metano, logo que for rastreada. Esta é a razão da camuflagem. A Talla fugirá para Vario.

— Havia mais uma coisa — começou Bell, mas foi imediatamente interrompido pelo chefe da defesa:

— Eu sei. A designação “Talla” é um truque. Trata-se de um nome tefrodense. A bordo, encontram-se os cadáveres de trinta e quatro tefrodenses, que nós recolhemos de destroços à deriva. O Capitão Arnulf Kapenski, com mais cinco outros oficiais da defesa, levará a Talla até bem próximo das linhas de guerra dos Maahks, fugindo depois com três caças-mosquito que se encontram a bordo, logo que os maahks abrirem fogo. Todo o resto, então, acontecerá automaticamente, pois a navegação automática da Talla contém

Page 9: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

9

informações falsas sobre o planeta do tempo Vario. Se os maahks forem iludidos, eles atacarão Vario, desviando a atenção dos tefrodenses até um ponto, em que nós podemos penetrar, sem sermos notados, no campo do tempo. E é esta a função da manobra ardilosa.

Mais uma vez Lemy Danger ergueu-se na sua altura total de vinte e dois centímetros. Notava-se que ele tinha plena consciência de sua importância.

— Se eu entendi corretamente, os gêmeos, Tako e eu, devemos viajar ao passado. Isso não poderá levar a complicações? Quero dizer — afinal de contas, a nossa presença ali provocará uma instabilidade da matéria. Nós deixamos de existir no tempo atual...

Bell interrompeu-o: — Lemy, o senhor se preocupa desnecessariamente. Não quero que tome isso

pessoalmente, mas lembre-se de que Rhodan, com cinco mil homens, está no passado. Isto é mais massa do que o senhor e três mutantes. Até agora nós ainda não conseguimos notar quaisquer efeitos.

— As leis que regem o tempo ainda são muito pouco exploradas — disse Matenbac. — Nós nem sequer sabemos como é que funciona o alçapão do tempo sobre Vario.

Reginald Bell lançou um olhar inquiridor para Matenbac, depois disse, muito lentamente:

— Nós já elaboramos diversas teorias a esse respeito. Estamos convencidos que a transposição do tempo efetua-se com a ajuda da geração de um campo de zero-absoluto. Trata-se de um mutador de tempo, como o chamam nossos cientistas. As linhas de curvatura da sexta dimensão e o plano de tempos diferenciais simplesmente são atravessados, provocando-se uma ruptura nos mesmos. Não ocorre nenhuma modificação do plano relativo.

— Ah — fez Tako Kakuta, anuindo, sem fazer uma careta. — Isso me parece muito ilustrativo.

Bell sorriu, irônico. — Como plano relativo nós entendemos um plano de tempo física e biologicamente

igual. Além disso, nossos cientistas também chegaram à conclusão de que a transposição do tempo não ocorre apenas na coisa referida, mas que também continua sendo constante no seu movimento. Portanto, se terranos caem no alçapão do tempo, eles sempre serão catapultados, em todos os casos, para exatamente duzentos e cinqüenta mil e trezentos e noventa e dois anos ao passado. Isto é importante, pois deste modo nunca poderá acontecer uma transposição do tempo imprevista. Para nós está claro que esta máquina do tempo, do tamanho de um planeta inteiro, consome quantidades inimagináveis de energia. E esta é fornecida pelo sol azul gigante.

Lemy sentara-se novamente. — Posso permitir-me uma pergunta? — Quando Bell anuiu, ele quis saber: — Tudo

isso eu procuro entender — máquina do tempo, viagem ao passado, existência simultânea de passado e presente, talvez até de futuro... mas, ainda assim, eu me pergunto como foi possível que o Administrador-Geral pôde, ao mesmo tempo, estar presente numa modificação de local — de espaço — ao ser catapultado ao passado.

— Também isso nós deciframos, e os dois cavalgadores de ondas nos ajudaram muito no assunto. O trabalho de nossos cientistas, combinado com as experiências dos gêmeos, resultou numa imagem muito clara dos acontecimentos. O planeta Vario não possui um transmissor de matéria, mas, em seu lugar, um verdadeiro transmissor situacional. Ele transmite toda a matéria captada para o hexágono de Andrômeda, no centro da nebulosa. Dali acontece a transmissão para o centro da Via Láctea, por quase meio milhão de anos-luz. O hexágono solar cuida de uma retransmissão para o planeta Kahalo, que todos nós conhecemos por sua base de pirâmides. E sobre Kahalo ocorre a rematerialização definitiva no passado.

Page 10: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

10

— Obrigado — disse Lemy, cortês. — Agora eu compreendi tudo, portanto não tenho mais perguntas. De minha parte, a coisa pode começar.

— Calma — admoestou Reginald Bell. —Nossos preparativos ainda não foram terminados. A bordo da Helpa está a Talla. E nela ainda estão trabalhando. A nave-robô já deve estar pronta para sua missão. A Helltiger já foi instalada de tal modo, que possa deixar a R-10 a qualquer momento, desaparecendo com aceleração máxima. O Capitão Kapenski e seus homens estão informados. Apesar disso — de certo modo, eu concordo com o General Danger: A coisa pode começar. Até chegarmos nas proximidades de Vario, podem passar-se pelo menos ainda dois ou três dias. Talvez até mais. Tempo suficiente, portanto, para terminar os preparativos.

Matenbac disse: — Só mais uma pergunta... os Woolvers prenderam um membro daquela raça que se

diz dos senhores da galáxia. Era um ser humano? Tronar fez que sim. — Um homem como nós. Além dos tefrodenses ainda temos outros irmãos gêmeos na

Nebulosa de Andrômeda. Primeiro foi uma pequena decepção, pois nós esperávamos outra coisa, mas depois ficamos aliviados. Nós também somos seres humanos. Por que não poderíamos chegar a uma união se os outros também a quisessem?

“Ele trazia, implantado, um ativador de células, portanto era relativamente imortal. Isso é estranho. O mistério em torno dos senhores de Andrômeda ainda persiste.”

— Agora é até bem maior — concordou Bell. — Não sabemos que idade Regnal-Orton tinha na realidade. Ele vivia no tempo atual, mas andava normalmente a cinqüenta mil anos antes de Cristo, pela Terra, ou, pelo menos, na Via Láctea. Os senhores da galáxia, portanto, têm a capacidade de influenciar passado e futuro — uma raça que me parece cada vez mais monstruosa. Talvez, sem a máquina do tempo de Vario, ela nem existisse.

Matenbac empalideceu. — O que é que o senhor quer dizer com isso, sir? — É só uma vaga insinuação, mais nada. Posso imaginar que não existam paradoxos

de tempo, mas a suposição de que posso estar errado é bastante real, não é mesmo? Talvez, algum dia, o saberemos.

Ele olhou para os outros, como questionando-os. Mas todos apenas lhe devolveram o olhar, em silêncio.

* * *

A General Deringhouse zarpou. Junto com a Helpa o ultracouraçado deixou a proteção do brilhante sol verde,

penetrando na zona proibida da Nebulosa de Andrômeda. Aqui eram os tefrodenses humanóides que faziam às vezes de guardiões, a serviço dos senhores da galáxia. Eles impediam que naves estranhas penetrassem na zona proibida. O perigo de serem descobertos, portanto, aumentou consideravelmente.

Aliás, um efeito favorável para eles, foi o fato de que os maahks, que viviam na nebulosa Andro-Alfa, haviam decidido sair numa ofensiva de grandes proporções contra os tefrodenses, atacando com frotas gigantescas. As imensas batalhas espaciais diminuíram a atenção dos tefrodenses, pois agora tratava-se de lutar simplesmente por sua existência. Os senhores da galáxia não lhes davam ajuda. E ao que parecia, os maahks achavam, inclusive, que os próprios tefrodenses eram os misteriosos senhores da galáxia.

A Deringhouse e a Helpa entraram conjuntamente no espaço linear, para adiantar-se milhares de anos-luz. Depois voltaram, também conjuntamente, ao espaço normal, para orientar-se e executar rastreamentos. As telas de vídeo mostravam, repetidamente, as

Page 11: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

11

naves dos tefrodenses, mas também, com bastante freqüência, as gigantescas formações de combate dos maahks. Geralmente o fator surpresa ficava do lado dos tefrodenses, que usavam seus transmissores de situação para materializar, repentinamente, nos lugares mais inesperados. Como lobos famintos eles então caíam em cima dos maahks, ocasionando-lhe pesadas perdas.

A simpatia dos terranos ficava com os maahks. Eles eram seus aliados secretos, mas por razões diplomáticas, eles já não mais podiam levar isso em consideração. Tratava-se da vida de Rhodan e do seu regresso do distante passado.

Durante o vôo, foram tomadas as últimas providências para a missão arriscada. O Capitão Kapenski e seus cinco homens dirigiram-se logo a bordo da Talla, que ainda estava estacionada no hangar da Helpa. A R-10 foi preparada para o lançamento. Não tinha tripulação, só os passageiros Tako Kakuta, Rakal e Tronar Woolver — e Lemy Danger, com seu “Tigre do Inferno”.

Tako era teleportador. Os gêmeos eram chamados de cavalgadores de ondas, que desmaterializavam até mesmo com a ajuda de uma simples onda de rádio, através da qual podiam viajar. Em casos de emergência eles chegavam a usar até o raio energético de uma nave. Lemmy Danger — bem, Lemy, simplesmente era Lemy. Sua formidável vantagem era o seu porte diminuto.

Dois dias depois da partida, os rastreamentos anunciaram uma grande frota de naves atacantes dos maahks.

Havia chegado a hora.

* * *

O sargento Malagutti, especialista da defesa, bem como também os outros cinco homens da Talla, olharam, enojados, para todos os lados.

— Se existe uma coisa de que não gosto, é de cadáveres a bordo de uma nave — disse ele, decidido. — Apesar de saber muito bem que morto não morde.

— É que você é supersticioso — disse seu amigo Cozzini, também sargento. — Tanto faz que tenhamos trinta e quatro tefrodenses mortos a bordo, ou não. O principal é que os maahks sejam iludidos com o truque.

— Se eles examinarem os cadáveres, logo vão verificar que eles já são cadáveres há alguns dias.

— Eles podem ser de ataques anteriores, meu irmão. Eu, no seu lugar, não me preocuparia tanto. O negócio é esperar.

Eles estavam na sala de comando e haviam ligado as telas de imagem. Não havia muito que ver, somente o interior do imenso hangar, no qual a Talla esperava para ser lançada.

O Capitão Kapenski entrou no recinto. E pigarreou. — Chateados, é isso? Lá fora está sendo travada a maior batalha espacial de todos os

tempos, e vocês estão chateados. — Batalhas espaciais são chatas — disse Malagutti, indignado. — Além disso, não se

vê nada, daqui. — Logo vamos ver muito mais — consolou-o Kapenski, um tanto zombeteiro. —

Daqui a poucos minutos seremos lançados. E então vai começar nosso grande ato. Malagutti, o senhor fica aqui. Cozzini, o senhor vai juntar-se aos outros. Os mosquitos terão que estar prontos para zarpar, logo que recebermos o primeiro balaço direto. Tudo claro?

Cozzini foi até a porta. — Isso também eu nunca vi em minha vida — deixar que lhe metam um balaço nos

costados, de livre e espontânea vontade! Mas, naturalmente tem que ser. Só espero que não nos destruam, logo de saída, de tal modo que não mais tenhamos possibilidade de escapar.

Page 12: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

12

— Precisamos de um pouco de sorte — disse Kapenski, seco. Ele colocou-se atrás dos controles do girino, e esperou pela ordem de iniciar a missão.

Malagutti sentou-se junto dele, mas podia-se ver que, neste momento, ele teria preferido estar no pequeno hangar com os caças-mosquito.

— Manobra de lançamento! A Helpa e a Deringhouse estavam menos de dois anos-luz distantes das facções em

luta. Graças à situação caótica dos combates eles ainda não haviam sido rastreados. A Talla deixou a nave-mãe, desenvolvendo imediatamente aceleração máxima. Em vôo

direto ela aproximou-se das naves dos tefrodenses e dos maahks envolvidos em combates solitários, e afastou-se novamente. O truque fora um sucesso. Uma grande nave dos maahks iniciou a perseguição.

Como Kapenski não achou aconselhável deixar-se abater em meio às frotas inimigas, começou a fugir em velocidade mínima, na direção oposta. A espaçonave maahk seguiu-o, como era esperado.

Kapenski ligou o controle automático. A Talla continuou voando, numa rota predeterminada, sem mudar a sua velocidade. Ela devia dar a impressão de que alguma coisa não devia estar em ordem com os controles de navegação, além do que, o campo energético protetor parecia ter arriado — tornando-a uma presa fácil para o perseguidor.

Logo todos os seis homens estavam reunidos no hangar. Para conseguir efetuar a manobra de lançamento com a maior pressa possível, eles subiram aos pequenos caça-foguetes, de velocidade ultraluz, fechando as comportas. No hangar o ar foi expelido. Agora bastava que Kapenski apertasse um botão, para abrir as grandes eclusas da Talla.

Começou a espera. A espera pelo primeiro impacto de bala. E não demorou muito.

* * *

A nave negra dos maahks havia se aproximado o bastante, e abriu fogo com todos os

seus canhões, em cima do suposto transporte de tropas dos tefrodenses. Acharam que seria uma tarefa fácil — e realmente foi. O fogo não foi revidado. Um feixe energético estilhaçou a cúpula saliente de observação. As paredes transparentes voaram para todos os lados, e com o ar que saiu da nave, com uma explosão violenta, também vieram alguns cadáveres. Isso parecia tão genuíno, que os maahks só atiraram mais uma vez. Eles deviam achar que tinham diante de si uma carcaça, um destroço. Talvez o mesmo escondia segredos que valessem a pena verificar.

O segundo balaço destruiu um dos jatos na protuberância equatorial da nave. Imediatamente Kapenski e seus homens iniciaram a fuga nos seus três caças. Foram atirados para fora da eclusa aberta da Talla, e logo irradiaram seus chamados

de socorro, em tefrodense. Com isto, qualquer dúvida que os maahks ainda poderiam ter, fora afastada. Antes que a gigantesca nave negra pudesse iniciar a perseguição, os três mosquitos já haviam mergulhado no espaço.

Para trás ficou apenas a Talla. Um destroço com uma tripulação de mortos. De mortos tefrodenses.

* * *

O comandante da nave maahks chamava-se Raka-7. Pertencia ao povo dos maahks

livres, que já há muito tempo haviam se sublevado secretamente contra o domínio estrangeiro dos senhores da galáxia. A campanha contra os tefrodenses, na sua opinião, já

Page 13: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

13

não era sem tempo, porém só depois da morte espetacular de Grek-1 é que fora dado o sinal verde para a invasão.

E agora ofereceu-se a ele a oportunidade única de capturar uma nave dos odiados tefrodenses, praticamente intacta. Oportunidade única, pelo simples fato dos tefrodenses geralmente serem muito superiores, quase sempre vencendo os maahks.

Cuidadosamente a nave de Raka girou em torno do destroço à deriva. Perto dele encontrava-se o seu primeiro oficial, Bron. — Mandamos um comando se abordagem para a nave, comandante? Rakal fez que sim. — Naturalmente. O senhor irá chefiá-lo. Antes de mais nada, trate de encontrar todos

os documentos relativos a navegação automática guiada pelo computador positrônico. Reviste todos os compartimentos, e procure encontrar detalhes a respeito do porto de origem. Qualquer detalhe pode ser importante. O senhor sabe que nós precisamos encontrar os locais onde se acham as indústrias dos tefrodenses, para poder enfraquecê-los decisivamente.

— Entendi perfeitamente, comandante. Se houver alguma coisa para achar, pode estar certo de que vou achá-la.

— Muito bem, então apressem-se. Temos que voltar para junto do resto da frota o mais depressa possível.

Bron fez continência e escolheu o seu comando de apresamento. Todos vestiram os trajes espaciais, pois o ar na nave dos tefrodenses — se é que ainda havia reservas de ar na mesma — deveria estar envenenado. Além disso, teriam que atravessar o espaço entre a nave dos maahks e o destroço. O cilindro negro aproximou-se mais da nave esférica. Uma escotilha foi aberta, e cinco maahks — todos com armas pesadas — flutuaram através do Nada, impelidos por minúsculos aparelhos. Pousaram sem incidentes na nave avariada.

Muito ao longe a batalha prosseguia, violenta. Sem aparelhos, dificilmente podia ver-se alguma coisa, porém as oscilações dos

gigantescos feixes energéticos e as chamas e os gases de violentas detonações denunciavam o que se passava a alguns minutos-luz longe dali.

Bron e seus acompanhantes, entretanto, não se preocuparam com isso. Não encontraram qualquer resistência. Parecia mesmo que as três naves salva-vidas, que haviam fugido, tinham levado os últimos sobreviventes em segurança. Era uma pena que, também estes, não tivessem sido agarrados.

Bron conhecia as construções de naves tefrodenses. Ele não podia imaginar que os terranos e arcônidas construíam de modo semelhante, e que haviam sido necessárias pouquíssimas modificações para transformar a nave terrana numa nave dos tefrodenses. Com a arma na mão, ele ia na frente. Os outros o seguiam. Todos com as armas prontas para disparar. Mas logo as abaixaram novamente.

A visão dos primeiros cadáveres os convenceu. Aqui, nenhum perigo os ameaçava. Bron disse: — Grak, o senhor se encarrega dos camarotes da tripulação. Qualk, o senhor dá uma

olhada na sala de máquinas. Ral e Pril, os senhores me acompanham à sala de comando. Vamos dar uma olhada melhor no computador e nas informações armazenadas positronicamente. Mais tarde nos encontramos todos, novamente, na sala de comando.

O caminho para a sala de comando era obstruído por destroços e cadáveres. Os poucos tiros acertados pelos maahks haviam sido suficientes para provocar esta devastação. Pelo menos era esta a impressão que Bron e seus dois acompanhantes tinham. E deviam ter.

A própria sala de comando, entretanto, dava a impressão de ter sofrido poucos danos. Naturalmente havia sinais de incêndio, testemunhando que a tripulação em fuga devia ter

Page 14: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

14

tentado destruir aparelhos importantes, mas parecia que eles não haviam tido tempo suficiente para isso. No chão, havia alguns mapas celestes, carbonizados.

— O computador ainda está intacto — disse Pril, que era especialista nestas coisas. — Acho que podemos fazer perguntas à memória.

— Nesse caso, comece logo com isso — instruiu Bron. Pril pôs-se ao trabalho. Enquanto isto, Bron e Ral reviraram toda a sala de rádio-comunicações, onde,

entretanto, além de algumas chaves de códigos tefrodenses, nada encontraram. Qualk voltou e relatou: — Os jatos-propulsores estão praticamente intactos. Eu não entendo por que a

tripulação não fez qualquer tentativa de fuga. Com esta nave eles poderiam até terem entrado no espaço linear. Aliás, creio que a maior parte da tripulação já estava morta, quando nós atacamos. Os cadáveres não são recentes.

— Isto eu também já verifiquei — Bron inclinou a cabeça falciforme. — Esta nave deve ter estado metida em alguma batalha, anteriormente. E nós apenas fizemos o resto com eles.

Também Grak não tinha nada de novo para relatar. — Em praticamente cada camarote, encontra-se um tefrodense morto. Eles devem ter

sido muito atacados. Mas um transporte de tropas, totalmente carregado, esta nave também não pode ter sido, a não ser que os tefrodenses já tivessem fugido antes mesmo de nosso ataque. Provavelmente logo depois do primeiro ataque, que deve ter acontecido há alguns dias atrás.

— Lentamente o círculo da imagem se fecha — disse Bron, depois de ter refletido por algum tempo. — Um transporte, que foi atacado há alguns dias atrás, sendo atingido violentamente. Uma parte da tripulação fugiu. O resto ficou para trás, na nave, para levá-la a lugar seguro. E então nós aparecemos. Agora eu entendo por que foi tudo tão fácil para nós. Não é de admirar.

No fundo da sala de comando, Pril anunciou: — Os primeiros dados da memória estão saindo do computador. Dados muito

estranhos, diria eu. Todos dizem respeito unicamente a um planeta. E este se chama Vario. — Vario? Nunca ouvi falar. Informe, Pril. — Precisarei de mais alguns instantes, até que as informações estejam completadas.

Caso o senhor se contentar com dados parciais...? — Pode começar. Ou melhor... passe os dados parciais para Ral, para que ele possa

fazer-me a leitura dos mesmos. Entrementes, o senhor tenta extrair mais da memória do computador.

Ral pegou nas tiras de plástico e procedeu à leitura. Ele conhecia o idioma tefrodense quase tanto quanto o seu próprio. Isso fazia parte da instrução de todo oficial maahk.

— Vario — único planeta de um supergigante azul. Distância do centro, dezoito anos-luz. (Neste ponto, observe-se: Nos dados a respeito de distâncias e de tempo, trata-se já de tradução terrana.) Faltam dados a respeito da formação de sua superfície. Entretanto, alude-se ao fato de Vario ser um planeta muito importante. Indústrias e técnica de armamentos, pelo que pude deduzir...

— Eu gostaria de ter dados mais precisos — interrompeu Bron, furioso. — Neste caso, acho melhor esperarmos até que Pril tenha dados mais concretos —

sugeriu Ral. — Por mim! — Bron parecia irritado, mas naturalmente deu-se conta de que os seus

subordinados não podiam ser culpados pelo fato dos tefrodenses não lhe terem colocado os dados desejados numa bandeja. — Vamos dar mais uma olhada no interior da nave, para que Pril possa trabalhar sossegado.

Page 15: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

15

Não acharam mais nada, porém quando voltaram à sala de comando, podia ver na cara de Pril que este estava satisfeito com o resultado do seu trabalho.

— E então? — quis saber Bron, já bem mais cortês que antes. — É espantoso, Bron. Realmente espantoso. Uma sorte que no computador ainda

havia, armazenada, a posição de Vario. Ela é de decisiva importância para a guerra. De um segundo para o outro Bron estava muito alerta. — Decisiva para a guerra? Como assim? — Vario é o local de produção de uma nova arma de destruição, que coloca todas as

existentes até agora na sombra — pelo menos, os dados existentes dão a entender isso. Se Vario não for atacado imediatamente e destruído, nós estamos perdidos. Isso se subentende claramente dos dados existentes. O senhor quer ouvir os detalhes?

— Não, não há tempo! — de repente Bron estava com muita pressa. — Leve consigo toda a documentação que puder, Pril. Vamos voltar imediatamente para a nossa nave. Este destroço, deixamos à deriva. Como um aviso aos tefrodenses.

Os cinco maahks passaram novamente por cima dos escombros, e chegaram à grande avaria na cúpula panorâmica. Lá fora, entrementes, nada mudara. O cilindro negro girava em torno da nave avariada cuidando para que nada acontecesse ao comando que a estava inspecionando, em caso de um repentino ataque dos tefrodenses.

Os maahks puderam atravessar o espaço sem incidentes, e foram recebidos novamente na nave-mãe. Imediatamente Bron fez o seu relatório. Raka ficou escutando muito atentamente. Sem dizer uma só palavra ele examinou os documentos trazidos.

Depois disse: — Bem feito, Bron. Nossa pequena incursão de caça parece que valeu a pena. Vou

comunicar-me com o comando geral da frota, sugerindo-lhe que o planeta industrial Vario seja atacado imediatamente. Precisamos evitar, de todos os modos, que a nova arma seja posta em ação. Talvez até consigamos nos apoderar dos planos. De qualquer modo, temos que contar com o fato de que o planeta deve estar sendo fortemente guardado por fortes contingentes dos tefrodenses. Temos que atacá-los com forças muito superiores. Mas isso é uma coisa que o almirante terá que decidir — ele olhou em torno. — Pril, efetue uma ligação com o comandante geral da frota. Bron, o senhor coloque a nave numa nova rota. Vamos voltar para a frota de combate, entretanto, teremos que evitar todo e qualquer contato com o inimigo.

A nave dos maahks iniciou viagem. O estratagema de guerra de Reginald Bell acertara na mosca.

* * *

A fuga do Capitão Kapenski não ocorreu inteiramente sem incidentes, conforme ele a

imaginara. Os dois jatos-mosquito com os pilotos Cozzini e Malagutti chegaram à Helpa sem

terem sido atacados, e logo foram recebidos pelas comportas dos hangares. Só então verificou-se que Kapenski e o sargento Jossi estavam faltando.

Kapenski era, reconhecidamente, um oficial de defesa, muitas vezes condecorado, mas, como quase todos os seres humanos, não era inteiramente livre de um certo romantismo, que o atacou justamente agora, quando não era exatamente o momento oportuno. Ele só conhecia o caça-mosquito de vôos de treinamento que fizera: uma nave espacial para uma tripulação de apenas dois homens, com deslocamento ultra-luz.

Os dois homens encontravam-se sentados numa carlinga transparente. Para todos os lados — exceto para baixo — tinham uma vista ilimitada para o cosmo. As constelações estranhas cintilavam perturbadoras e inquietantes. Entre as mesmas faiscavam os raios

Page 16: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

16

energéticos da batalha distante. Mais para o centro de Andrômeda, as estrelas estavam ainda mais aglomeradas, formando um mar faiscante de coloridos pontos luminosos.

Não foi nenhuma embriaguez de velocidade que tomou conta de Kapenski, era simplesmente a sensação de ser senhor do espaço e do tempo — bastando, para isso, puxar a alavanca de comando.

E ele a puxou, sem pensar nas conseqüências. O mosquito deu literalmente um salto, que foi amortecido pelos absorvedores

antigravitacionais. — O que foi que lhe deu, capitão? — perguntou Jossi, assustado. — Estão nos

perseguindo? Kapenski voltou à realidade, mas não quis admiti-lo. Quer dizer que Jossi não vira

nada... — Observei uma pequena esquadrilha de tefrodenses. Estavam querendo cortar-nos o

caminho de volta. Parece que Malagutti e Cozzini conseguiram passar. Acho melhor procurarmos outro caminho.

O local da batalha, e o ponto onde se encontravam a Helpa e a Deringhouse ficaram rapidamente para trás. Kapenski avançava velozmente em direção à velocidade da luz. Com os olhos brilhantes ele observava os curiosos efeitos luminosos do efeito Doppler e viu como as estrelas mergulhavam lateralmente num negro profundo. E então foi ultrapassada a velocidade da luz, e eles estavam sozinhos no cosmo.

Segundos depois, voltou-lhe o sóbrio raciocínio. Kapenski sabia que tinha cometido um grande erro. Naturalmente o computador registrara a rota e o trecho voado até agora, para navegação automática, e seria fácil encontrar o caminho de volta, porém muita coisa poderia ter acontecido.

A Deringhouse e a Helpa, por exemplo, podiam ter mudado sua posição, por terem sido descobertas. E então não seria fácil reencontrá-las.

A embriaguez sumiu. Kapenski sentiu algo parecido com medo. Atrás dele, o sargento mexia-se, inquieto, no seu assento. Kapenski virou-se.

— Não se preocupe, Jossi. Vamos encontrar o caminho de volta. O campo já deve estar livre.

— Só espero que não esteja livre demais, sir. Se não esperarem por nós, vamos estar completamente sozinhos.

— Besteira! — de repente Kapenski não conseguia mais abafar aquela sensação desagradável. — Aconteça o que acontecer, eles não vão continuar a missão sem a gente. Se for preciso, irradiamos uma mensagem rápida pelo hiper-comunicador. Apesar da exigência de silêncio de rádio — acrescentou ele.

— Acho que ainda não chegamos a tanto — achou Jossi, ligando a aparelhagem de rastreamento. Bem perto dali, a apenas três anos-luz de distância, brilhava um sol amarelo, com três planetas. — O que é que diz o computador? Qual a distância que percorremos?

— Três anos-luz, não mais que isso. Eu agora faço uma curva e vou acelerar. Jossi anuiu com a cabeça. Apertando uma tecla, pôs em funcionamento o computador

de bordo. Deste modo a rota de volta para o local de partida era automaticamente calculada e transmitida aos controles. Através do espaço linear o caça voltaria exatamente ao ponto de onde partira.

Jossi não encontrara nada nas telas de rastreamento. Mais por uma questão de hábito, ele ligou o hiper-receptor, apesar de dificilmente poderem contar com uma transmissão correspondente.

Para seu espanto, começou a entrar uma transmissão automática, em código. Rapidamente ligou o decodificador. Em texto normal surgiu a voz do rádio-operador da Helpa, pelo alto-falante:

Page 17: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

17

— ...mudamos e nos dirigimos cuidadosamente para Vario. Encontre-se conosco ali, usando de manobra goniométrica. Desligo. Repito: Helpa para Kapenski. Devido a contato com inimigo, mudamos de posição e nos dirigimos cuidadosamente...

Jossi desligou. — Aí está, no que nos metemos — disse ele. Kapenski apertou a tecla do computador de navegação, para interromper a manobra

de aceleração, que se iniciara nesse instante. Sem saber o que fazer, ele olhou para dentro daquele mar de estrelas.

— Vario! Droga, Jossi, isso são quase dez mil anos-luz! Bonita coisa! — eles dirigiram o caça-mosquito na direção do sol amarelo, e durante

muitos minutos nenhum dos dois disse uma só palavra. — Não é propriamente a distância. Mas eu sei que, para o vôo até Vario, haviam sido previstos dois dias. Aproximação lenta e cautelosa — foi o que disse o Capitão Matenbac. Isso significa, em outras palavras, que nós também vamos ter que ficar, a caminho, durante dois dias, para nos encontrarmos com os outros. Se voarmos depressa, chegamos lá antes deles. Se formos lentos demais, eles talvez já não estejam mais por lá.

Agora Kapenski censurava-se amargamente. He devia ter perdido o juízo, ao atender ao impulso de experimentar o caça-mosquito. Claro, fora um impulso romântico — mas ainda assim imperdoável.

Ele colocara a si mesmo e a Jossi numa situação perigosa, além de colocar em perigo a segurança das duas grandes naves. A Helpa tivera que usar o rádio e talvez, por isso, revelara a sua posição. Toda a missão corria o perigo de fracassar.

Mas agora era tarde para pensar nisso. — Aqui está o material cartográfico — disse o sargento Jossi. — O principal é que nós encontremos Vario. Enquanto eles tentavam orientar-se, o

caça continuava o seu vôo em direção ao sol amarelo. A velocidade era, de aceleração ou propulsão, aproximadamente de dez mil quilômetros por segundo. Permanecia constante. Os aparelhos de rastreamento continuavam ligados, mas no momento ninguém olhava a tela de imagem. O campo defensivo hiperenergético estava permanentemente ligado.

Vario linha uma marcação especial no mapa estelar. Ele ficava a pouco menos de vinte anos-luz do exato centro da Nebulosa de Andrômeda, onde seis sóis forneciam energia ao transmissor hexagonal intergaláctico.

— Em vôo direto podemos chegar lá em duas horas — disse Kapenski, depois de estudar o mapa. — Aliás, não sei se não seria mais inteligente esperarmos um pouco. Os arredores de Vario são fortemente vigiados. Por lá, podemos contar muito mais com um contato com o inimigo que aqui — ele olhou a tela de imagem. — Vamos ficar nas proximidades do sol amarelo. Talvez ele até tenha um planeta no qual possamos pousar.

— Para esticar as pernas? — Jossi sorriu. — É bastante apertado aqui na cabine, nisso o senhor tem razão. Mas vai ser muita sorte se encontrarmos algum planeta com oxigênio.

— Temos nossos trajes de combate especiais — lembrou-lhe Kapenski. Eles aumentaram a velocidade, sempre na direção do sol amarelo. Pouco a pouco os

planetas apareceram. O analisador começou automaticamente o seu trabalho de sondagens, e dez minutos mais tarde os dados já haviam sido apresentados. Kapenski leu-os cuidadosamente e disse:

— O segundo, se os dados estão corretos, deveria ser praticamente uma segunda Terra. Atmosfera de oxigênio, mares e alguns continentes. Gravitação 1,1 gravos. Rotação vinte horas. Clima mais ou menos como lá em casa. Se não há tefrodenses, ou outros seres de duas pernas por lá, nós poderíamos dar uma olhada.

Jossi não sabia, mas alguma coisa desse curioso estado de espírito que se apossara de Kapenski passou também para ele. Ali estava, diante deles no cosmo, um planeta

Page 18: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

18

desconhecido, que jamais fora tocado pelo pé de um homem. Um mundo inteiro só para eles. A vida na grande comunidade da nave de combate ficou esquecida. Aqui ele tão teria que curvar-se diante de ninguém. Aqui ele poderia ser livre, como jamais fora em toda a sua vida.

Com velocidade diminuída, eles penetraram nas camadas superiores da atmosfera. Debaixo deles estava uma paisagem paradisíaca, que nem era turvada por um véu de nuvens. Uma cadeia inteira de pequenas ilhas fornecia uma ligação entre dois continentes, nos quais não se viam traços de qualquer civilização. Savanas e florestas cobriam as imensas extensões de terra, somente interrompidas por rios muito largos e lagos esparsos.

— Que coisa linda! — disse Kapenski, suspirando. — Aqui eu ficaria para sempre, se pudesse. É assim que a Terra devia ter sido antes, quando ainda não havia homens.

— Ficamos? — É claro que ficamos. É melhor que ficar voando a esmo pelo espaço, à procura da

Helpa. Ela só estará em Vario daqui a dois dias, e então nós também estaremos por lá. Mas, enquanto isso...

Ele silenciou e olhou para baixo, para o paraíso. E não sabia que a armadilha já estava preparada.

Page 19: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

19

2 A estação ficava, muito bem camuflada, debaixo de uma colina, bem perto da praia.

Somente as antenas e vídeo-câmeras, além de outros aparelhos de observação, sobressaíam da colina, mas era impossível vê-los. O máximo que se via eram algumas árvores, nada mais.

A tripulação da estação consistia de um oficial e dois suboficiais. O Capitão Ma-lok estava postado diante de uma fileira de telas de imagem. Elas

reproduziam o que as câmeras captavam na colina e em outros lugares da superfície, transmitindo tudo à central de comando. Dali era possível manter guarda sobre todo o planeta e seus arredores.

A nave estranha desceu cada vez mais e entrou numa órbita do planeta. — O tipo de construção coincide — disse o sargento Drebar lentamente. — Foi assim

que a mesma foi descrita no relatório. Será que se trata de uma nave de observação? Ma-lok não respondeu imediatamente. Ele observava o vôo da nave estranha e fazia

cálculos. Era claro que não se tratava da nave principal dos estranhos, que já dera tanto trabalho aos tefrodenses antes. Devia tratar-se apenas de uma nave de observação ou até mesmo de uma nave-auxiliar. Seria uma tolice acabar com ela já agora.

— Logo vamos saber — disse ele, finalmente. Ele fez um sinal ao sargento. — Kontar, não toque no comando das armas. A coisa ainda não chegou a esse ponto.

— Além do mais, não vai ser tão simples acabar com ela — achou o sargento Drebar, responsável pelos telecontroles automáticos e pela radiocomunicação. — E é possível, também, que se trate de uma armadilha.

Ma-lok olhou-o de lado, mas não disse nada. A pequena nave orbitou o planeta mais uma vez, antes de descer mais. Tudo indicava

que estavam procurando um local de pouso. Com isto o mistério não diminuía. Talvez realmente apenas se tratava de uma nave-auxiliar, cuja tripulação certamente ficara muito contente em encontrar um mundo apropriado, onde poderiam esperar tranqüilamente por sua libertação.

— Vamos agarrá-los vivos — disse o Capitão Ma-lok, resoluto.

* * *

— Eu preferia uma ilha — disse Kapenski — já por questões de segurança, mas dois dias são muito tempo, quando não temos nada para fazer. Se pousarmos no continente grande, podemos, pelo menos, fazer algumas expedições com a nave. O que me diz isso, sargento?

Jossi olhou para baixo, para aquele tapete de florestas que se perdia de vista, estendendo-se para o interior do continente, até uma longa formação de montanhas. As serpentes prateadas dos rios brilhavam ao sol, ofuscando-o.

— Sou inteiramente de sua opinião, capitão. Vamos fazer de conta que somos exploradores de um continente desconhecido... — Sempre foi uma coisa que gostaria de ter feito. E agora a oportunidade apareceu.

Kapenski ficou pensando como eles haviam chegado a essa oportunidade. Um impulso romântico, aventureiro, que na realidade já nem devia existir mais, mas mesmo no século vinte e cinco os seres humanos continuavam sendo seres humanos. Eram inteligentes, mas sob a inteligência dormitava a emoção. E sem essas emoções certamente não haveria

Page 20: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

20

inteligência. Uma calculadora não é inteligente, simplesmente porque não conhece nenhuma emoção. Apenas é indescritivelmente exata e rápida.

Aliás, nada disso servia de desculpa, pelo menos não era o bastante para desculpar o seu ato. Reginald Bell certamente reagiria muito azedamente, quando soubesse de tudo. Simplesmente não havia nenhuma desculpa para a situação atual. Kapenski, entretanto, estava firmemente decidido a gozar desta situação o mais possível, e para sorte sua encontrara um companheiro que pensava igual a ele. Aliás, Jossi sequer sabia realmente por que estavam aqui. Continuava pensando que uma esquadrilha tefrodense havia sido culpada por terem saído de sua rota normal. Seria bom deixá-lo nessa crença.

— Fico satisfeito em ver que somos da mesma opinião, Jossi. Desse modo, será mais fácil para nós passarmos estes dois dias de exílio. Talvez eu deveria ter mesmo tentado alcançar a Helpa. Mas, achei que passar pelas linhas dos tefrodenses seria arriscado demais — e certamente um erro.

— Erro nenhum, capitão. Nós não vamos sentir falta da nada, e a Helpa certamente pode passar muito bem sem a gente. A comunicação de rádio prova que eles sabem que estamos em segurança, e que os dois outros caças-mosquito conseguiram chegar à Helpa sãos e salvos.

— Pode ser. Apesar disso não posso deixar de me censurar. Kapenski apenas disse isso para que Jossi lhe confirmasse que ele agira certo. E não

precisou esperar. — Isso não é necessário, capitão. Eu poderei confirmar, a qualquer momento, que nós

não tínhamos outra alternativa, a não ser uma fuga rápida. Naturalmente eu não cheguei a ver a esquadrilha tefrodense, mas, afinal de contas, tudo passou-se muito depressa. A fuga de dentro do girino, quando fomos golpeados, o vôo de regresso — bem, e depois, os tefrodenses...

Kapenski apontou pela cúpula transparente, para baixo. — O que é que você acha disso, lá embaixo? É uma praia fabulosa — areia, se não me

engano. E essa vegetação! Já começa a cem metros da água. Terreno ondulado, com possibilidades de camuflagem — por mais desnecessárias que estas possam ser. E dali podemos iniciar nossa excursão de exploradores da floresta.

— Já estou me sentindo como se estivesse de férias — confessou Jossi. — Claro, capitão, aquele lugar ali seria ideal. Espero que o encontremos novamente.

Kapenski já estava nos controles. O caça-mosquito descreveu uma grande curva e desceu mais. As aletas curtas quase

tocaram a superfície da água quando ele — vindo do mar — voou na direção da praia de areias claras. Por trás dela ficava a parede verde da floresta virgem. À distância, brilhavam, azuis, os cimos das montanhas.

— Lindo — disse Jossi, emocionado. Aquilo era demais para os seus olhos. — Quando ainda estava na Terra, sempre quis fazer uma viagem aos Mares do Sul. Mas nunca cheguei a fazê-la. Aquilo lá deve ser parecido com isso aqui.

— Ainda hoje — confirmou Kapenski. — Mas aqui vamos ter tudo mais barato. E menos perigoso.

— Menos perigoso? O que é que é perigoso nos Mares do Sul? Kapenski sorriu. — A gente pode se apaixonar. E este perigo, aqui, dificilmente existirá. Jossi sorriu também. — Infelizmente o senhor tem razão — disse ele, com lástima na voz.

* * *

Page 21: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

21

Bem próximo da praia, Kapenski suspendeu o caça e depois pousou-o suavemente num pequeno vale de fundo de areia, a menos de cinqüenta metros de distância da praia. Em toda a volta cresciam arbustos e árvores. Que ofereciam uma excelente cobertura para todos os lados, apesar de, para o alto, a visão ficar inteiramente livre.

— Isso não é muito importante — disse Jossi, quando o capitão fez uma alusão correspondente. — Se alguém nos vê do alto, há muito tempo já nos descobriu nos seus aparelhos de rastreamento. Mas, por aqui, duvido que exista alguém que possa nos rastrear.

— Esperemos que sim — Kapenski, de repente, parecia ter suas dúvidas. O zunido do rotor emudecera. Tudo estava quieto, em silêncio. Os microfones externos não captavam qualquer som. Somente o bramido leve das ondas que se quebravam contra alguns penhascos que ficavam mais para fora. — Parece mesmo desabitado este planeta.

— O senhor tinha alguma dúvida? — Para dizer a verdade, não, mas parece-me um pouco estranho, ver que um mundo

tão maravilhoso é desabitado. — Talvez, em todo o universo, existam milhões de mundos assim, que apenas estão

esperando serem descobertos. — O senhor é um sonhador — disse Kapenski. — E isso é ruim? — Às vezes é — afirmou Kapenski, cônscio de sua culpa. Pelo tempo local, era no fim

da tarde. O sol já estava bem baixo no poente, quase tocando o oceano. A leste, os cumes das montanhas rebrilhavam, avermelhados, no azul-escuro do céu.

E ao norte espreitava o inimigo desconhecido, a exatamente cinqüenta quilômetros de distância.

— Eu estou louco para sair aqui de dentro para tomar um banho. Dentro de no máximo duas horas o sol se põe. E então, provavelmente, vai esfriar.

— Um banho? Ficou maluco? Quem sabe que tipo de peixes vorazes esperam por nós, abaixo da superfície da água...

— Do ar, eu descobri uma enseada, logo aí adiante, atrás da colina. Água bem rasa, separada do mar aberto por um recife. Tenho certeza de que ali não há perigo.

Kapenski não conseguiu resistir à tentação. — Vamos dar uma olhada — ele pegou sua arma energética. — Mas tomar banho, só

amanhã. Por enquanto, vamos nos satisfazer apenas com uma caminhada. O ar estava momo, e não soprava nenhum vento. A areia amarela era tão fina que

parecia poeira. Mas os pés não afundavam quase nada nela, tão compacta era a praia. O vento, que agora não se sentia, havia desenhado arabescos estranhos na sua superfície.

Jossi tirou o casaco do seu uniforme, dependurando-o por cima de um dos estabilizadores.

— O calor está difícil de agüentar — gemeu ele, examinando sua arma energética conscienciosamente, conforme as exigências do regulamento. — E um calor de alto verão.

Depois de caminharem vinte metros, pararam, e olharam para trás. O caça, no pequeno vale, já não podia mais ser visto. Os arredores pareciam tão abandonados como antes deles terem pousado.

Primeiramente dirigiram-se para a praia. O mar era de pequenas marolas, pois as ondas grandes quebravam nos recifes, mais para fora. Despojos do mar praticamente não havia, a não ser alguns galhos e folhas, e era tudo. Também não se via indícios de maré alta ou baixa, mas, afinal de contas, aquele planeta não tinha nenhuma lua.

A enseada ficava a uns duzentos metros do local de pouso. A água não era funda, tendo no máximo dois metros. Era tão clara, que podia ver-se o fundo. Pequenos peixes nadavam em cardumes, sem mostrarem qualquer medo. Pareciam não ter inimigos.

Page 22: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

22

— Que foi que eu disse! — Jossi ficou olhando a laguna clara, cheio de vontade de cair n’água. — Acha mesmo que um banho seria perigoso?

— Entre logo — aconselhou Kapenski. — Eu fico de fora, tomando conta — ele tirou a arma energética das costas, desengatilhando-a e sentou-se num morrinho de areia. — Mas não nade muito para fora.

Jossi não esperou que lhe dissesse isso uma segunda vez. Em poucos segundos ele se despira e já estava na água — até o pescoço.

— Uma maravilha, para refrescar... Meu Deus, quanto tempo faz que eu não nado um pouco. Nem sei se ainda sei nadar.

Kapenski prestava menos atenção nele que na superfície da água, muito lisa. Nenhuma barbatana a cortava, e tudo estava tão calmo e quieto, como se eles dois fossem os únicos seres vivos deste mundo. Até mesmo os insetos faltavam.

Lá do outro lado, na borda do mato, houve um rápido movimento. Kapenski estremeceu, mas logo viu que se tratava apenas de um pássaro. Não era muito grande, mas de um colorido indescritível. Suas penas rebrilhavam em todas as cores imagináveis.

Muito alto, entretanto, acima deles, pairava no céu claro e azul um disco diminuto de metal. Uma lente redonda de câmera fora dirigida para baixo. Foi ela que, a cinqüenta quilômetros de distância, como num passe de mágica, colocara a imagem da enseada na tela.

— Vamos dormir esta noite fora da nave? — Jossi estava boiando, bem no meio da enseada, deixando o sol bater-lhe na barriga. — Quando eu penso naquela cabine apertada...

— Vamos ver — Kapenski levantou-se para passear em volta da enseada. — E por que não, afinal? Eu acho que é bastante seguro.

Jossi vestiu-se novamente. No caminho de volta, eles passaram bem próximos da borda do mato. Havia poucos arbustos baixos, mas as árvores cresciam tão compactas que seria difícil encontrar um caminho entre as mesmas. Além dos pássaros, eles não puderam observar qualquer outro animal.

Nesta noite não aconteceu nada. Mas quando o novo dia surgiu, uma surpresa os esperava. Eles haviam dormido, a dez metros de distância do caça, numa depressão do terreno.

A noite fora tão quente que eles apenas haviam precisado de um par de cobertores. Além disso, não haviam tirado nenhum outro equipamento da nave — com exceção das armas energéticas.

E agora havia mais uma outra coisa ali. A dois metros de distância de seu leito improvisado, havia uma caixa prateada,

brilhante, na areia. Na frente havia uma grade, como de um alto-falante ou microfone. Lateralmente saíam duas finas antenas direcionais.

Jossi olhou aquela caixa, que não era maior que uma mochila. — Como é que isso veio parar aqui? — havia um certo pânico na sua voz. — Foi você

que...? — Isso não é do nosso equipamento — disse Kapenski, raciocinando febrilmente por

uma explicação. Uma que não o assustasse. — Alguém deve ter trazido isso. Antes de Jossi poder responder, houve um ruído seco na caixa. E então uma voz, muito

alta, disse claramente: — Este é um aparelho de tradução em base telepática e hipnótica. Foi levado até os

senhores por um robô voador, enquanto dormiam. Nós podemos ver e observá-los o tempo todo. O que não é o seu caso. Porém os senhores podem falar conosco. Quem são?

Kapenski já se levantara. Seu olhar deslizou do tradutor para o caça-mosquito, inquieto. Ele sabia que poderia dar partida no mesmo em poucos minutos.

Page 23: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

23

A voz estranha começou a falar novamente: — Uma tentativa de fuga somente levaria à destruição de sua nave. Nós queremos

evitar isto, e acho que também não é do seu interesse ficar para sempre neste planeta. Deixem suas armas aí, no chão, e venham marchando ao longo da praia. Em direção ao norte. Nós então nos encontraremos.

Kapenski continuava parado, indeciso, na depressão do terreno. Ele tinha certeza de que o seu interlocutor invisível não estava blefando. Só podia

tratar-se de tefrodenses que mantinham uma base por aqui. Como guardiões setoriais, como eram chamados, eles eram responsáveis para não deixarem entrar naves estranhas na zona proibida. Eles, entrementes, deviam ter ficado sabendo o que queriam aqueles estranhos que visitavam o seu planeta, e depois penetravam na zona proibida.

— Nós iremos — disse Kapenski, lançando um olhar de aviso para Jossi. — Mas com nossas armas.

— Se fazem absoluta questão disso. Mas elas não lhes servirão de nada. Jossi disse: — O senhor não está querendo...? — Não temos outra escolha, sargento. Feche a escotilha. Depois vamos andando. O tradutor continuou em silêncio. Não fez mais qualquer comentário. Eles vestiram seus uniformes, colocaram algumas provisões nos bolsos, e depois

fecharam a escotilha de entrada do caça. A tentação de fazer uma partida rápida era grande demais, mas Kapenski acreditava nas ameaças dos tefrodenses, pois ele conhecia esta raça muito bem. Na sua capacidade de reagir e na sua determinação, eles podiam ser comparados apenas aos homens.

Eles iniciaram a marcha, quando o sol já estava acima dos cumes da serra, e os seus raios caíam sobre o mar. As suas armas energéticas estavam dependuradas, negligentemente, dos ombros — um peso morto, inútil.

O terreno quase não se modificava. Permanecia a areia e a colina, e no leste a borda da mata continuava. Certa vez, Jossi disse:

— Eles devem estar nos vigiando através de micro-estações automáticas, que podem ser telecomandadas. Ainda há pouco observei um reflexo, bem alto, no céu. Se nós desaparecemos na floresta eles não nos vêem mais.

Kapenski sacudiu a cabeça, sem diminuir o passo. — O que vamos fazer na floresta? Eles destroem nosso caça, e aí nós vamos brincar de

Robinson por aqui. Até o fim de nossos dias. Ou então, brincamos de esconder com os tefrodenses.

Jossi deu-lhe razão. No momento realmente não havia possibilidade de passar a perna nos tefrodenses. Talvez, mais tarde, haveria uma chance melhor de virar a lança contra eles.

Eles marcharam durante duas horas, quando, de repente, ouviram um ruído, que mais parecia um zunido. O mesmo vinha do alto. Ficaram parados, pois do azul do céu desceu sobre eles um objeto alongado, diminuindo sua velocidade, para finalmente pousar suavemente, a alguns metros, na areia. Não tinha asas, portanto era evidente que sua propulsão vinha de campos gravitacionais. Bem no alto havia dois lugares — abertos, como nas carlingas dos antigos aviões de esporte. Mas não se via nenhum piloto.

Até mesmo sem um convite especial, era fácil deduzir o que os invisíveis tefrodenses queriam dos dois terranos.

— Teleguiado — disse Jossi. — O que me diz disso? Vamos embarcar? — Eu por mim já não estou agüentando caminhar nesse calor. O que é que poderá nos

acontecer?

Page 24: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

24

Eles subiram até os assentos, muito apertados. Mal se haviam acomodado, quando a propulsão começou a zunir novamente. O planador rapidamente subiu para o alto, tomando depois o rumo norte.

— O que será que eles querem de nós? — Jossi olhou para baixo, onde a linha costeira seguia quase reta. — Será que acham que vamos contar-lhes tudo que querem saber?

— Talvez eles contem com isso. Como paga pelas nossas vidas, por assim dizer. Mas, neste caso, tiveram azar. Pelo contrário, nós é que vamos tentar saber deles o mais possível, para depois sumir. Se soubermos de quantas pessoas é constituída a força deles, isso não deverá ser muito difícil. Basta chegarmos até a sua sala de comando, para paralisar seus recursos técnicos.

— Hum — fez Jossi, cético, depois silenciou. O planador diminuiu a velocidade do seu vôo, descendo mais. Lá embaixo nada se

modificara. A praia continuava como antes, com a borda da floresta sempre a cem metros de distância da beira d’água.

O planador pousou. De algum lugar veio uma voz: — Desembarquem. Nossas armas estão apontadas para os senhores, portanto não

faria sentido tentar fugir agora, ou atacar-nos. Nós queremos apenas conversar com os senhores, nada mais. Depois nosso planador os levará de volta à sua nave.

— Quem acredita vai pro céu — resmungou Jossi. Kapenski não disse absolutamente nada. Ele desceu do seu lugar e saltou para a areia.

Eles estavam de pé, numa pequena colina, sobre a qual cresciam moitas e árvores. Além disso não se via nada. A voz saía de uma das árvores.

— Coloquem suas armas no chão. Mais tarde poderão apanhá-las outra vez, sem que elas sejam tocadas.

Kapenski perguntou: — Desde quando os senhores são tão atenciosos? Afinal poderiam — se devo

acreditar nas suas palavras — simplesmente nos matar. — De que nos serviria isso? Para isso, Kapenski não tinha resposta. Eles separaram-se de suas armas, só muito a contragosto, mas não viram outra

alternativa. Antes de mais nada, precisavam saber com quem estavam agindo, antes de poderem fazer qualquer coisa — em caso de necessidade até mesmo sem as armas.

A voz que vinha da árvore ordenou: — E agora caminhem mais dez passos, em direção ao mar. Ali esperarão até irmos

buscá-los. Dez passos adiante eles pararam. Daqui tinham uma vista livre para o mar. O terreno

era em suave declive. Por cima, um céu sem nuvens. Tudo estava em paz, muito quieto. — Agora podem se virar. A voz veio de bem perto, atrás deles, mais baixa que antes, pelo alto-falante. Eles

viraram-se, assustados. O tefrodense estava de uniforme e no seu peito trazia, dependurado, um tipo menor

de tradutor. Na mão segurava uma grosseira arma de fogo. Ali, onde antes só se via areia, havia uma enorme abertura. Degraus desciam para

dentro da colina. — Sigam-me, por favor. Aquela cortesia nada natural do tefrodense lentamente começava a dar nos nervos de

Kapenski. Não era assim que se tratava prisioneiros! Certamente por trás disso tudo havia alguma intenção definida. Queriam que eles pensassem que estavam seguros, queriam tapeá-los?

Page 25: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

25

Ele decidiu-se a entrar, de saída, no jogo deles. — Muito obrigado, depois do senhor. O senhor conhece tudo melhor por aqui. O Capitão Ma-lok sorriu e ficou parado. — Eu prefiro ficar atrás do senhor. Além disso, não pode errar o caminho. Está vendo

a escada — é ali que vai descer. Lá embaixo espera-os o sargento Drebar. Aliás, eu sou o Capitão Ma-lok, comandante de estação. O sargento Kontar, os senhores também conhecerão.

Kapenski apresentou-se, a si e a Jossi, como se se tratasse de uma visita de cortesia. Logo que a porta articulada fechou-se atrás deles, acendeu-se uma luz muito forte.

Havia apenas poucos degraus e logo Kapenski e Jossi encontravam-se na espaçosa sala de controles. Um tefrodense cumprimentou-os com um aceno da cabeça. Um outro, que controlava a fileira de telas de imagem, estava de costas para eles. Numa das telas podia ver-se o caça-mosquito, visto do ar.

— Sentem-se, por favor — disse Ma-lok. — Conforme podem ver, a primeira vista nós estávamos orientados quanto à sua chegada, desde o primeiro instante. O sargento Kontar controla as armas automáticas telecomandadas. Um giro num botão é suficiente, e a sua pequena nave não existe mais. Se com ou sem campo energético de proteção, isso não tem a menor importância. Mas não se preocupem. Nós os deixaremos partir, sem problemas, caso aceitarem nossas condições.

— O senhor quer nos interrogar? — Kapenski sentou-se na cadeira oferecida. — Nisso o senhor terá pouca sorte. Não sabemos de nada.

Ma-lok sorriu. — Isso deve ser exagero seu. Pelo menos deverão saber quem são, de onde vêm e o

que querem aqui. Vamos começar por aí. — Nós perdemos nossa rota, é só isso. Esperávamos encontrar aqui alguma

orientação que pudesse nos ajudar adiante. E de onde nós viemos... o senhor realmente não sabe disso?

— De um mundo que não pertence à nossa galáxia — é isso, não é mesmo? Isso nos revelam os relatórios de nossas bases de comando. Mas nós gostaríamos de ter as coordenadas exatas. Os senhores certamente poderão fornecer-nos dados preciosos, com o auxílio de mapas. E depois, interessa-nos ainda saber o que querem aqui entre nós? Por que penetram na zona proibida?

Kapenski ergueu os ombros. — Isso o senhor terá que perguntar ao comandante de nossa expedição. Somente ele

está informado quanto ao sentido e a finalidade do vôo. Nós executamos nossas ordens, só isso.

— Isso nós também fazemos — retrucou Ma-lok. — Nada mais que ordens. E nós recebemos a ordem de tirar dos senhores tudo que sabem. Depende dos senhores, os métodos que devemos empregar. Nós temos meios de obrigá-los a falar, mas desistimos deles prazerosamente — se falarem de livre e espontânea vontade. Afinal de contas, foram os senhores que invadiram isto aqui — uma área que nos pertence.

— Este planeta pertence aos senhores? — Kapenski deu uma gargalhada. — Ele é desabitado, isso também já sabemos. Portanto, não pertence a ninguém.

— Ele faz parte de nossas bases de apoio. Nós o anexamos. — Será que ele também pertence aos senhores da galáxia? — perguntou Kapenski. A expressão facial de Ma-lok modificou-se inteiramente. Já não parecia mais tão

cordial como antes. — Nós agimos por incumbência dos senhores da galáxia, se quer saber exatamente.

Eles concordam com nossos atos, pois estes são do interesse deles. Onde está a sua nave-mãe?

Page 26: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

26

— Próxima o bastante para aniquilar a sua pequena estação, se nós não tivermos regressado na hora combinada.

— Neste caso, também o senhor será aniquilado. Onde, portanto, está ela? Kapenski começou a notar que não seria muito fácil escapar dos tefrodenses sem se

machucar. Certamente eles tinham os meios para extorquir-lhes seus segredos, e justamente isso não podia nem devia acontecer. Se o plano, referente a Vario, fosse revelado, tudo estaria perdido.

— O senhor não vai ficar sabendo de nada — disse ele, frio. — Podemos conversar, não temos nada contra isso. Podemos trocar determinadas informações, pois também nada tenho contra isso. Porém segredos... jamais! Também não queremos saber dos seus. É sempre perigoso conhecer os segredos dos outros.

Ma-lok fez um sinal para Drebar. — Sargento, por enquanto prenda estes dois, enquanto Kontar prepara tudo para um

interrogatório em regra — depois voltou-se para os dois homens. — Os senhores têm uma hora para pensar na situação. Depois disso, se continuarem teimosos, não poderão mais pensar de jeito nenhum.

Quando a porta fechou-se atrás deles, viram-se num pequeno recinto, sem janelas. O mobiliário consistia de uma mesa e duas cadeiras. As paredes eram nuas como as celas de uma prisão. No alto, no teto, havia minúsculo conduto de ventilação.

— Bela droga — resmungou Jossi. — Nessa nós caímos direitinho. — Temos ainda uma hora de tempo. — Kapenski aproximou o seu ouvido do de Jossi

e murmurou: — Cuidado! Certamente haverá algum microfone ou coisa parecida para ouvir o que falamos. Apenas murmure as coisas importantes. — E depois, em voz alta, ele acrescentou: — Eles não se atreverão a fazer uso de força.

Jossi murmurou: — Se o pessoal da estação é de apenas três homens, nós devíamos tentar dominá-los. — Vamos ver. Logo que eu der o sinal, caímos em cima deles. Eles ficaram conversando, ainda por algum tempo, sobre diversos assuntos, depois

esperaram, em silêncio, até chegar a hora marcada. Depois de uma hora, Kontar veio para buscá-los. Ele conduziu-os através de um corredor muito iluminado, de volta à sala de comando da estação. Ma-lok, o comandante, os esperava.

— Pensaram no assunto? — perguntou ele. — Nossa frota vai encontrar o seu planeta, e o aniquilará — disse Kapenski, calmo. —

E mesmo que ele fosse defendido por milhões de tefrodenses, o senhor não poderia impedi-lo.

Ma-lok sorriu, zombeteiro. — Sempre é bom subestimar seus adversários, mas, neste caso, o senhor

naturalmente está exagerando um pouco. Eu já lhes disse que aqui apenas mantemos uma estação, só isso. Mas a mesma é equipada tão bem tecnicamente, que nós podemos prescindir perfeitamente de um milhão de soldados, que substituímos muito bem. Sua frota pode atacar — nós três vamos oferecer-lhe uma batalha memorável.

— Três tefrodenses — Kapenski inclinou-se um pouco, como para certificar-se. — O senhor afirma que tem apenas três homens em todo o planeta?

Ma-lok fez que sim. Kapenski respirou aliviado. Olhou para Jossi, que segurava as mãos às costas,

retirando a argola da pequena granada de mão. Os tefrodenses tinham sido bastante descuidados, não submetendo-os a uma revista mais completa. Estavam tão convencidos de sua superioridade, que acharam isto completamente inútil.

Page 27: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

27

Por trás deles ficava a porta. Kontar não a fechara. Estava parado um pouco para um dos lados, perto do painel de controle. Drebar estava sentado diante de um dos aparelhos de comunicação de rádio, sob uma das telas de vídeo.

— Sim, um oficial e dois sargentos. Isso é o bastante para defender este mundo contra qualquer superioridade numérica. E agora diga-me, finalmente, se estão dispostos a falar ou não.

— Sinto muito, Major Ma-lok, pois nós poderíamos ter tido uma conversa muito agradável. Dentro de poucos segundos, isso já não será mais possível.

E ele fez o sinal para Jossi. O sargento soltou a argola, que impedia a ignição da granada. Agora restavam exatamente cinco segundos até a detonação.

Jossi atirou a granada na direção de Drebar. Ela caiu no chão e rolou para baixo de um armário de parede. Drebar ficou sentado, sem se mexer. O susto parecia tê-lo paralisado. Os seus olhos estavam esbugalhados.

Enquanto Kapenski, com um grande salto, saía pela porta — Jossi já estava no corredor — ainda conseguiu ver Kontar jogar-se ao chão, ao comprido, e Ma-lok erguendo sua pequena arma rudimentar.

Kapenski não tivera mais tempo de fechar a porta. Correu atrás de Jossi, apertando-se contra a parede, quando já estava a dez metros de distância da sala de comando da estação. Aqui a onda de choque da detonação não poderia mais alcançá-los. Pela porta saiu uma língua de fogo. O estampido foi de quase arrebentar os tímpanos.

Kapenski correu de volta para a porta. Cuidadosamente olhou para dentro do recinto que lhe ficava por trás, mas não conseguiu ver nada. Tudo estava cheio de fumaça. Nada se mexia naquele monte de destroços. A parede do outro lado irradiava um calor terrível. Jossi também se aproximou.

— Que efeito têm esses negócios! — verificou ele, secamente. Tossiu quando a fumaça penetrou-lhe nos pulmões.

— Nunca pensei que fossem tão possantes. Parece que não sobrou muita coisa. A ventilação continuava trabalhando, pois logo tiveram uma visão mais clara. Os três

tefrodenses estavam mortos. As instalações, completamente demolidas, e certamente nenhum daqueles aparelhos ainda poderia ser reutilizado. Os tubos das telas de vídeo estavam estilhaçados, e o painel de controle coalhado de cacos de vidro.

— Com isto, não existe mais uma estação de radiocomunicação dos tefrodenses, capaz de transmitir — disse Kapenski.

— Agora vai depender de quanto tempo vai levar até que os tefrodenses notem isso. Quando não receberem resposta às suas transmissões de rotina, nós logo vamos ter visitas.

Jossi assustou-se. — E nós deixamos os trajes voadores na nave. A uma distância de pelo menos

cinqüenta quilômetros de marcha a pé. E nesse calor! Vai ser uma excursãozinha divertida, acho eu.

— O planador ainda está parado aí fora. Talvez seja possível fazê-lo voar manualmente controlado, apesar de não ter visto este tipo de controles, quando voamos nele para cá.

Eles revistaram os destroços, mas não acharam nada que valesse a pena levar. Inspecionaram a estação, mas também ali nada havia de interessante. Destruíram o equipamento que fornecia energia com uma segunda granada. Na outra extremidade do corredor, encontraram a escada para o alto. Minutos mais tarde eles se achavam do lado de fora, na colina de areia, sob o sol quente do começo da tarde. Apanharam suas armas energéticas e examinaram o planador. Nada puderam fazer com ele, já que não tinha controles manuais escondidos.

Page 28: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

28

— Agora nós temos o que queríamos — disse Jossi. — Podemos explorar um planeta desconhecido.

Não podiam errar o caminho. Era só seguir a praia, sempre para o sul. Ás vezes, eles passavam diretamente dentro da água, para se refrescar um pouco.

Quase ao anoitecer eles haviam conseguido deixar para trás, metade do trajeto, e estavam mortos de cansados. Deitaram-se numa depressão do terreno, e em poucos minutos estavam dormindo. Ainda antes do sol nascer, continuaram a sua marcha e à tarde chegaram exaustos e bufando ao local onde se encontrava sua pequena nave.

— Dois dias — disse Kapenski, gemendo. — Nosso prazo acabou. Temos que nos apressar, se ainda quisermos chegar em Vario a tempo. Estou com um pouco de medo do instante em que Matenbac nos perguntar onde andamos metidos.

Jossi sorriu, cansado. — Podemos dizer-lhe que perdemos o rumo. Kapenski sacudiu a cabeça. — Vamos relatar-lhe a verdade. Afinal de contas, conseguimos eliminar uma base de

comunicação dos tefrodenses. Na sua rede de vigilância agora existe uma lacuna. Além disso, sabemos como eles trabalham. Só isso já valeu a pena.

Jossi estava meio deitado no seu assento, refrescando-se com suco de frutas. — Para mim tudo está bem, contanto que eu esteja novamente no meu camarote na

Helpa. Se me lembro do chuveiro frio de lá... Kapenski suspirou e escorregou para trás dos controles. Minutos mais tarde o planeta sem nome submergiu debaixo do caça, que com

aceleração máxima enveredava pelo cosmo. O aparelho seguia o seu curso, e logo depois mergulhou no espaço linear.

Kapenski queria deixar para trás os dez mil anos-luz, sem interrupção.

Page 29: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

29

3 O repentino ataque dos tefrodenses obrigara Reginald Bell a recuar com a

Deringhouse e a Helpa, tirando-as da zona de combates. Ele sabia que, com esta providência, provavelmente sacrificava dois dos seus homens: O Capitão Kapenski e seu companheiro, sargento Jossi. Mas este era um risco que tinha que ser assumido, para não colocar as duas grandes naves em perigo. Bell autorizou ao Coronel Matenbac a passar um rádio correspondente para Kapenski, na hiperonda.

Depois começou o avanço para Vario. Os primeiros cinco mil anos-luz foram deixados para trás no espaço linear, depois voltou-se ao espaço einsteiniano. E agora ainda estavam a mais de cinco mil anos-luz de distância do centro da Nebulosa de Andrômeda. Numa velocidade simples da luz e ocasionais vôos através do espaço linear avançou-se constantemente, sempre mantendo ambas as naves em alerta de combate.

Repetidamente foram rastreadas esquadrilhas dos tefrodenses, que faziam frente aos maahks atacantes. Estes respira-dores de metano tinham passado a uma grande ofensiva. Apesar das pesadas perdas, que os tefrodenses lhes infligiam, eles não suspendiam os seus ataques.

Reginald Bell, depois de uma pausa para descanso, voltara à sala de comando da Deringhouse. O Coronel Rondo Masser estava de serviço, como comandante, enquanto Stef Huberts descansava. O alerta constante exigia muito de toda a tripulação.

— Dois dias logo terão passado, coronel. Quando, acha o senhor, os maahks vão reagir?

— Logo, sir. As notícias a respeito de um suposto planeta industrial são suficientemente atraentes para iniciarem um ataque ao mesmo sem demora. Eles reunirão uma grande frota, com a qual se dirigirão para Vario. Disso não pode haver a menor dúvida. Muito importante, entretanto, é que nós estejamos por perto.

— Por isso resolvi usar a R-10. A Helpa deverá ficar mais para trás, quando as naves-robô decolarem. A nós certamente não atacarão logo. A que distância estamos, agora, de Vario?

O Coronel Masser olhou as escalas do painel de controle. — Dois mil e trezentos anos-luz. Mas a distância diminui constantemente. Em dois

minutos entraremos novamente em outro vôo linear, progredindo pelo menos mil anos-luz. Bell estudou os mapas estelares. — Acho melhor tomarmos este astro verde aqui. Sua distância de Vario é de quatro

meses-luz. Com os rastreadores podemos vigiar tudo muito bem. Logo que os maahks atacarem, estaremos a postos. Ao chegar ao astro verde, o senhor entra em proteção contra rastreamentos, mas não demais. Não podemos ficar cegos. Eu ainda tenho uma última entrevista com os três mutantes e Lemy Danger. Se precisar de mim, estarei no hangar, na R-10.

A girino R-10 estava pronta para decolar. Rakal e Tronar Woolver haviam inspecionado tudo mais uma vez, dando atenção especial aos condutores energéticos. Tako Kakuta cuidava das provisões de medicamentos, colocando bem à mão as injeções para todos. Elas neutralizariam o choque de transição.

O General Lemy Danger, entretanto, com seus vinte e dois centímetros de altura, passeava diante do campo energético do hangar, de um lado para o outro, mãos às costas, cuidando para que ninguém o atropelasse.

Ao ver Reginald Bell, ele trepou numa caixa, chamando sua atenção por acenos muito agitados.

Page 30: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

30

— Estamos prontos — gritou ele, tão alto quanto sua voz permitia. Bell viu-o e parou diante da caixa. — Onde se meteram os outros? Lemy pôs as mãos nos ouvidos. — Não tão alto, por favor. O senhor tem uma voz capaz de me arrebentar os tímpanos.

Sabe que sou um pouco delicado nisso. — Ó sim, eu esqueci — Bell estava só murmurando, agora, e Lemy, tranqüilizado,

tirou as mãos dos ouvidos. — Os outros estão na nave? — Estão cumprindo minhas instruções, sir. Tudo está sendo examinado

cuidadosamente, mais uma vez. — Isso me tranqüiliza, general. Como é que se sente. Afinal de contas não é todo dia

que se inicia uma viagem no tempo, para o passado. E ainda por cima, por cinqüenta mil anos.

— Muito obrigado, eu estou ótimo. E estou contente por poder fazê-la. Finalmente uma oportunidade para que a Helltiger possa mostrar do que é capaz. E eu, naturalmente, também.

Bell sorriu e parou um técnico que ia passando. — Por favor, vá buscar os três mutantes da R-10. Preciso falar com eles. O técnico desapareceu na pequena nave. — Já chegamos ao ponto? — quis saber Lemy, satisfeito. — Dentro de duas horas chegaremos nos arredores de Vario. E então, a missão poderá

começar, a qualquer instante. Logo que os maahks atacarem, chegou o momento — Bell sacudiu-se todo. — Não é coisa para mim, para ser honesto. Mas, se conseguirem passar, dê lembranças minhas a Perry Rhodan, general. Diga-lhe que no futuro está tudo na mais perfeita ordem. Mas quem são os senhores da galáxia, é coisa que ainda não sabemos, exatamente. São homens, seres humanos, isso naturalmente já é conhecido.

— E isso não basta? Os gêmeos Woolver e Tako desceram da R-10, aproximando-se. Tako sentou-se em

cima do caixote, pegando Lemy no colo. Rakal e Tronar fizeram uma continência cortês. Reginald Bell disse: — Eu queria somente comunicar-lhes que logo vamos mergulhar no espaço linear,

chegando às proximidades de Vario. A uma distância de quatro meses-luz do alçapão do tempo, entraremos numa fraca proteção contra rastreamentos, para esperar. De agora em diante os senhores terão que ficar dentro da R-10, não podendo mais deixar a nave. Naturalmente estarão em contato constante, de rádio, com a sala de comando. E é deste modo que receberão as ordens para entrarem em ação. Todo o resto é com os senhores. Estarão agindo com independência total — ele olhou de um para o outro. — Alguma pergunta?

Não havia nenhuma. — Ótimo — disse Bell. — Nesse caso parece que tudo está muito claro. Os senhores

conhecem sua missão. Desejo-lhes muita sorte. Encontrem Rhodan no passado e ajudem nosso amigo a encontrar o caminho para o presente.

Deu a mão a cada um deles. Curvou-se para Lemy, e murmurou: — Quando saudar Rhodan, por favor não se esqueça de dizer que também mando

lembranças para meu amigo Gucky.

* * *

Três horas mais tarde a Deringhouse e a Helpa orbitavam uma estrela sem nome, que ficava a uma distância de quatro meses-luz da ultragigante azul, orbitada por Vario, como seu único planeta.

Page 31: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

31

Os aparelhos de rastreamento trabalhavam com eficiência máxima. O espaço, em torno de Vario, estava sob observação constante.

E então chegou um rádio à Helpa. O Capitão Kapenski apresentava-se e pedia permissão para pousar numa das eclusas.

Quando Bell ficou sabendo disso, respirou aliviado. Para ser honesto consigo mesmo, ele tinha que admitir que já não contara mais ver este seu oficial da defesa. Por isso, sua alegria em sabê-lo com vida foi tanto maior.

Dez minutos mais tarde, Bell ficou sabendo, de Matenbac, toda a verdade sobre a excursão dos dois homens, vendo-se diante da difícil tarefa de castigá-los por terem violado os regulamentos.

Ele ficou pensando. Fraqueza humana...? Dificilmente. Os dois homens não haviam fraquejado. Aliás, Jossi não tinha qualquer responsabilidade nisso tudo, apenas o seu superior, o Capitão Kapenski. Aquilo o atacara, simplesmente, como nos ataca uma repentina embriaguez. Pois Kapenski era, afinal de contas, um ser humano.

Bell mandou chamar o capitão à Deringhouse. Recebeu-o em seu camarote. — Quer dizer então que um ataque de romantismo é culpado por ter o senhor

empreendido uma excursãozinha particular? O senhor deixou de cumprir uma ordem! — Estou pronto a sofrer as conseqüências do meu ato, sir. — O senhor contava com uma punição? — Naturalmente, sir. Mas, se me permite acrescentar uma coisa: O sargento Jossi não

tem culpa de nada. Ele seguiu apenas minhas ordens. Além disso, quem estava nos controles da nave era eu.

Mentalmente Bell bateu-lhe amistosamente no ombro, mas o seu rosto continuava impassível.

— O senhor destruiu a estação dos tefrodenses, conforme Matenbac me informou. Por isso, ambos merecem uma condecoração. Mas também merecem alguns dias de severa detenção. Infelizmente, entretanto, não temos nenhuma cela para detenção à nossa disposição. Portanto, vamos esquecer as duas coisas?

O Capitão Kapenski assumiu a posição de sentido. — Sir... do que o senhor está falando? Bell sorriu, divertido, e desta vez bateu amistosamente com a mão no ombro do

oficial. — Quer dizer que estamos entendidos. Mas isso não é nenhuma carta branca para

futuros vôos com o mosquito. Posso contar com isso? — Sim, senhor. Depois que Kapenski saiu, Bell sentou-se na cama. Ele teria agido corretamente? Não estaria solapando a disciplina se não punisse tais

transgressões? Mas como é que ele poderia punir alguém que, por seus atos, simplesmente provara que era um ser humano?

Um ser humano, de carne e osso — e com sentimentos.

* * *

Os maahks atacaram tão repentinamente, com três mil naves, que até os tefrodenses vigilantes foram surpreendidos. Entretanto eles haviam reunido uma força de combate que era capaz de fazer fracassar qualquer tentativa de rompimento de suas linhas de defesa. A frota de três mil, portanto, com isto, não tinha qualquer chance.

Enquanto a Deringhouse permanecia na sua antiga posição, a Helpa deixou a sua órbita afastando-se da zona verde protetora. No hangar, a R-10 esperava pelas ordens de

Page 32: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

32

decolagem. Tronar e Rakal estavam sentados na sala de comando, atrás dos painéis de controle. Apesar do girino ser uma nave especial inteiramente robotizada, não se podia prescindir, nestes minutos que se seguiriam, dos comandos manuais. Eles teriam que adaptar-se a qualquer eventualidade, em questão de segundos.

Todos vestiam os novos trajes de combate especiais. Os regeneradores atômicos que traziam nas suas mochilas, às costas, eram obras-primas siganesas. Os concentrados alimentícios e de água, armazenados na vestimenta, eram suficientes para três meses. O abastecimento de ar era praticamente ilimitado, uma vez que era constantemente renovado. Naturalmente os trajes dispunham de campos energéticos de proteção, individuais, altamente eficientes, bem como aparelhos defletores, projetores antigravitacionais e capacidade autônoma de vôo.

Tako Kakuta também se encontrava na sala de comando. O rádio continuava ligado, de modo que tinham contato permanente com Lemy Danger, que estava sentado na sua Helltiger. O microcruzador estava pronto para decolar, diante da eclusa de lançamento da R-10. Um aperto numa tecla de controle seria suficiente para fazer com que a nave partisse, como um torpedo, do seu esconderijo, avançando com uma aceleração inimaginável.

Rakal olhou a tela de vídeo. Viu o hangar vazio da Helpa e a escotilha de lançamento aberta. Numa outra tela de imagem estava o rosto de Reginald Bell, que ficara para trás, na Deringhouse. He sorriu para Rakal, encorajadoramente.

Na terceira tela via-se o Coronel Matenbac. — Estamos agora nos aproximando da zona de combate — disse ele, para informar os

que estavam trancados na R-10. — Até agora ainda não fomos descobertos. Não vamos nos aproximar mais, para não

revelar nossa presença. Estão prontos? Rakal fez que sim. — Estamos esperando, sir. — Ótimo. Então, desejo boa sorte a todos. Voltem sãos e salvos — e mostrem a

Rhodan o caminho de volta. “O caminho através do tempo...”, pensou Rakal. — Pronto — disse ele em voz alta, esticando a mão para a frente. A R-10 deslizou, sem gravidade, para fora do gigantesco hangar, afastando-se

rapidamente da Helpa. Imediatamente o campo energético verde se irradiou, apartando a nave completamente do mundo exterior, sem entretanto tirar a visão dela nem de sua tripulação. Rakal orientou-se. O pequeno sol verde ficava bem para trás, a uma distância de quase quatro meses-luz. Logo adiante, à direita, na frente, na direção do vôo, surgiram as chamas da azul ultragigante, a estrela-mãe de Vario. O próprio Vario era apenas um ponto claro de luz, exatamente na rota do vôo.

Os tefrodenses e maahks estavam envolvidos numa batalha espacial violenta. Rakal sacudiu a cabeça. Tal como Tronar e Tako também ele era de opinião que toda esta energia desperdiçada poderia servir a fins bem melhores. Quem quer que fosse que morria ali, eram seres viventes inteligentes, tivessem eles a aparência de seres humanos ou não. Havia tanto lugar no Universo, mas matavam-se mutuamente, pela posse dos mais insignificantes planetas.

Lamentando, ele lembrou-se que esta batalha era a conseqüência de uma tática terrana. Ela fora provocada por um truque, para possibilitar a quatro seres humanos a queda no passado. Talvez ela aconteceria, mais cedo ou mais tarde, mesmo sem a interferência dos terranos, mas Rakal não conseguia livrar-se do complexo de culpa.

Ninguém prestava atenção na R-10, que lentamente avançava para a zona dos acontecimentos.

Page 33: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

33

Os tefrodenses atacavam com uma raiva inimaginável, sem dar a menor atenção a suas próprias perdas. Abriam lacunas nas fileiras dos maahks, penetravam pelas mesmas, e ali, no meio do inimigo, provocavam a maior destruição possível. Pequenos sóis rebrilhavam e se apagavam novamente. E no lugar onde nasciam, depois já não havia mais nenhuma nave.

— Logo eles vão nos descobrir — murmurou Tronar, inquieto. — Não podemos ficar esperando aqui, eternamente.

— Temos que ficar. Se continuarmos voando sozinhos na direção de Vario, aí mesmo é que vamos chamar atenção. Vamos esperar até que alguns dos maahks avancem, tentando atacar Vario. Eles serão apanhados pelo alçapão do tempo — e nós com eles.

Parecia quase que nem uma única das naves dos maahks conseguiria penetrar nas linhas do inimigo, mas então, de repente, separaram-se sete dos grandes cilindros negros, acelerando ao máximo. Numa velocidade incrível destacaram-se dos restantes, seguindo na direção de Vario, sem incomodar-se com eventuais perseguidores. Os comandantes deviam ter recebido ordens para sacrificar-se e, com isto, destruir Vario.

Rakal sabia que não podia perder esta chance, aparentemente única. Saiu voando atrás das sete naves, mantendo-se entretanto a uma distância suficiente,

para evitar contato com o inimigo. Vario logo tornou-se bem maior. Desta vez, via-se perfeitamente toda a sua superfície, aparentemente coberta de

gigantescas florestas, apenas entrecortadas por ocasionais cadeias de montanhas. Rakal sabia que isto era uma ilusão, uma parte da armadilha. E os maahks deviam estar pensando que sob aquela camuflagem de florestas deviam ficar os objetivos a serem destruídos, os complexos industriais e as fábricas de armamentos.

Mas ainda antes de poderem lançar suas bombas, o alçapão do tempo entrou em ação. Primeiramente Vario modificou a aparência de sua superfície. As florestas e

montanhas sumiram, dando lugar a um deserto sem vida. E então surgiram dois feixes energéticos cintilando em ultra-azul — cada um deles de uma espessura de quinhentos quilômetros — reunindo-se com a estrela azul ultragigante, o seu sol. Os feixes sugavam a energia necessária para a transposição do tempo em vista, diretamente do astro. As naves dos maahks hesitaram. Ainda não imaginavam o que tinham pela frente.

Mas Rakal e seus amigos o sabiam muito bem. Segundos mais tarde, a energia solar fluiu para as instalações das máquinas que ficavam sob a superfície de Vario. O raio de tração foi lançado para o alto, muito brilhante, envolvendo as oito naves. Irresistivelmente ele puxou-as na direção do planeta, envolvendo-as ao mesmo tempo num campo energético. Se os maahks agora despejassem suas bombas-robô, destruiriam a si mesmos. Mas desistiram de fazê-lo.

— Chegou a hora — disse Rakal. — Tako, prepare as injeções. Mais tarde provavelmente não haverá mais uma oportunidade para isso.

— Tudo pronto — declarou o japonês. — Lemy? — Sim, Rakal? — Fique calmo. Poderá ver tudo que se passa, talvez ainda melhor do que nós, nas

telas de vídeo. Se deixar de ouvir-nos por um período mais longo, não se preocupe. Também tem sua injeção preparada?

— A seringa está bem ao alcance de minha mão. — Espere, entretanto, até receber o comando para isso, caso contrário, no momento

decisivo ela poderá ter perdido o seu efeito. Não sabemos quanto tempo vai demorar a transposição desta vez. Poderá ser de horas.

— Tudo claro, Rakal. Eu espero. Aconteça o que acontecer.

Page 34: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

34

— Ótimo, Lemy. Então preste bem atenção. O que vem agora é uma coisa que só se experimenta uma vez na vida.

A cerca de mil metros acima da superfície de Vario, a bolha energética com as oito naves parou. Bem junto do horizonte, brilhava a estrela gigante Big Blue. Seu poder luminoso parecia estar ainda mais forte, mas isso era devido, simplesmente, aos dois feixes energéticos gigantes que, a caminho do sol, se reuniam num só.

Depois de um segundo para outro, o astro e Vario tinham desaparecido. A queda para o passado começara...

Page 35: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

35

4

Há mais de oito dias a Crest orbitava o sistema de sóis duplos Redpoint, esperando

pelo regresso dos gêmeos. Redpoint era uma gigante vermelha, em volta da qual girava um astro pequeno,

vermelho-escuro. A distância para o hexágono solar galáctico era de dois mil e seiscentos e treze anos-luz, e até Kahalo dois mil e seiscentos anos-luz.

A sensação de existir a mais de cinqüenta mil anos no passado dava a Rhodan mais que uma simples dor de cabeça. Ele acabara metido numa situação que não teria imaginado nem nos seus sonhos mais audaciosos. O que eram, entretanto, cinqüenta mil anos em comparação com a pulsação do Universo? Um sopro da respiração, um relampejar — não mais que isso. Mas na vida de um ser humano — mesmo de um homem imortal — um lapso de tempo inimaginável.

A população da Terra — eles se chamavam lemurenses — estava metida numa luta defensiva contra os halutenses, cujo representante no presente era amigo de Rhodan. Icho Tolot devia estar horrorizado com os acontecimentos no passado, e no mais profundo escaninho do seu cérebro duplo devia amadurecer a explicação, porque os tefrodenses do futuro caíam num medo pânico só ao vê-lo.

Era a lembrança, a memória do passado. Os tefrodenses primitivos eram os descendentes dos lemurenses. E os lemurenses eram os antepassados dos terranos e arcônidas. O círculo começava a se fechar, oferecendo uma imagem clara.

— Tudo isso é uma história terrivelmente complicada — disse Tolot, devagar, espichando-se na sua cadeira anatômica especial, que quase não suportava o seu peso gigantesco. No seu colo estava acocorado o rato-castor Gucky, mordiscando, indiferente,

Page 36: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

36

uma cenoura meio murcha. — Apesar disso ela comprova a eterna circulação das coisas. Tudo tem o seu começo.

— Assim como tudo tem o seu fim — disse Rhodan, anuindo. Eles estavam sentados no cassino dos oficiais, vazio. Sobre a mesa havia copos com suco de frutas. — Tudo começa a se esboçar, agora. Cinco mil anos no futuro — e nós nem podíamos imaginá-lo.

— Harno fala sobre isso — afirmou Gucky, com sua voz clara. — Ele disse que esteve no fim do tempo e olhara para trás.

Harno, a esfera no espaço e no tempo. Um ser só de energia, que vivia de espaço e de tempo — e no espaço e no tempo. Tão misteriosamente como certo dia surgira, também desaparecera outra vez.

— Um fim do tempo nem pode haver — disse o Major Curt Bernard, com certeza. — O tempo não acaba nunca. Sem tempo não há espaço. E sem espaço nada mais pode existir. Esta é minha opinião sobre isso.

— Bem, não deixa de ser uma opinião — guinchou Gucky, depreciativo. — É que o senhor não tem imaginação.

— Em compensação tenho uma mente que funciona muito exatamente — retrucou o major, pegando o seu copo.

— Não é possível negar que há uma certa coerência — disse Rhodan, raciocinando. — Ela começa agora, cinqüenta mil anos antes de Cristo. Sem os acontecimentos que ocorrem aqui, agora, as coisas se pareceriam muito diferentes no futuro — nosso presente. Por isso eu evito interferir, a não ser o absolutamente necessário. Uma ação decisiva, e talvez não existisse mais a raça humana.

Eles silenciaram, perplexos. Gucky chegou a engasgar no resto de sua cenoura. — Esta espera não me agrada absolutamente — disse Tolot, só para dizer alguma

coisa. Ele mesmo sabia que não lhe restava outra alternativa. Os gêmeos Rakal e Tronar tinham voado para Kahalo e não voltaram. Teriam eles conseguido regressar ao futuro, e fazer um relatório a Reginald Bell? Eles conseguiriam voltar, algum dia? — O prazo combinado quase acabou. E o que faremos, então?

Rhodan suspirou. — Não sei. Em toda minha vida jamais me senti tão impotente como agora. Mas existe

um caminho para o futuro, isso já sabemos. Os halutenses despacham os lemurenses para o futuro. Portanto também nós um dia iremos — se de livre e espontânea vontade — ou não... A condição prévia está dada, isso deveria bastar.

A atmosfera estava pesada, disso não havia a menor dúvida. Até mesmo Gucky deixou de fazer suas piadinhas usuais, mantendo-se muito discretamente.

— Se soubéssemos — o major Bernard, depois de algum tempo, quebrou o silêncio geral — se soubéssemos o que aconteceu com os gêmeos... Isso me interessaria muitíssimo. Especialmente por uma questão de ordem.

Rhodan ergueu os olhos. — Por uma questão de ordem? — quis ele saber, sem haver entendido. O Major Bernard anuiu. — Naturalmente, por uma questão de ordem. Os dois majores receberam de mim os

novos trajes de combate especiais e armas energéticas da melhor qualidade. Eu fiz os lançamentos, conforme manda o regulamento. E se os gêmeos não voltarem, terei que extornar o equipamento. Como é que vou fazer isso? Estas coisas se perderam no passado, no presente ou no futuro?

Rhodan sacudiu a cabeça diante de tanta pedanteria. Gucky fez uma cara como se fosse vomitar. Tolot apenas olhou para o major.

Page 37: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

37

— Escreva simplesmente: Levados pelo caudal do tempo — aconselhou Rhodan, com a cara mais limpa.

Gucky tentou esconder uma risada, pegando o seu copo de suco. O Major Bernard anuiu, muito sério. — Claro, isso seria uma formulação bastante aceitável. Vou pensar nisso. — E se os gêmeos voltarem? — perguntou Rhodan. Bernard abriu um sorriso enorme. — Nesse caso eu evitaria um monte de anotações — disse ele, muito satisfeito consigo

mesmo. E ficou um tanto chateado, quando ninguém demonstrou o mesmo contentamento. Naturalmente nenhum dos outros tinha noção das tarefas de grande responsabilidade

do Major Bernard... Gucky falou: — Eu tenho uma proposta a fazer. — Quando todos o olharam, esperando, ele

continuou: — Dêem-me um pequeno caça-mosquito e um bom piloto, e eu irei procurar os gêmeos em Kahalo. Voltarei mesmo sem eles, ou pelo menos, com uma notícia. Com isto acaba esta espera desgraçada aqui. E se não me derem sua concordância, eu simplesmente teleportarei — mesmo sem autorização.

Rhodan parecia ocupado com o seu suco de frutas. Com um ligeiro tremor na voz, ele perguntou:

— Que tal, como piloto, o Major Nils Anderson, baixinho...?

* * *

O alçapão do tempo era a arma de defesa natural do planeta Vario. Os tefrodenses vigiavam esta armadilha. Eles eram responsáveis pelo seu funcionamento. Conforme já foi mencionado, os dentistas terranos haviam verificado que o alçapão do tempo permanecia constantemente em ação. Se, por exemplo, alguém ou alguma coisa fosse trasladado para cinqüenta anos no passado, permanecendo ali dez dias, este alguém ou esta coisa também regressaria dez dias mais tarde do passado.

As telas de imagem na R-10 escureceram. O campo zero, por cima do planeta, fora ligado. A R-10 caiu no passado... Ao contrário das sete naves dos maahks, a R-10 não tentou escapar do raio de tração.

Rakal sabia o quanto era sem sentido uma tentativa semelhante. Junto com Tronar e Tako ele vigiava as telas de imagem, nas quais começavam a formar-se padronagens coloridas que lentamente tomavam formas. Com uma velocidade muitas vezes superior, fora da nave, corriam os acontecimentos — para trás.

A superfície quase irreconhecível de Vario movia-se como as águas de um mar tempestuoso. Como sombras, pousavam e decolavam gigantescas frotas espaciais. As constelações no céu deslocavam-se nitidamente visíveis e se modificavam.

Rakal ligou o piloto-robô e levantou-se. — Temos que preparar-nos para as transições — disse ele. — Elas ocorrem em rápida

sucessão, logo que tivermos chegado ao passado. Sem as injeções estaremos perdidos. Acho melhor deitar-nos nos leitos com gravidade. Dali também é possível ficar com as telas de imagem diante dos olhos. Logo que sairmos por cima de Kahalo, seremos obrigados a agir. Tanto lemurenses como os halutenses imediatamente nos atacarão, sem dó nem piedade.

Sem dizer mais uma palavra, Tronar e Tako deitaram-se, depois que o japonês aplicara as injeções. Também Lemy, na sua Helltiger, aplicou, em si mesmo, a injeção.

Page 38: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

38

Por enquanto ainda não se via nenhuma modificação nas telas de imagem. O tempo continuava passando, numa corrida louca, e a R-10, junto com as sete naves maahks, caía cada vez mais no passado. Certamente os maahks não sabiam o que tinha acontecido com eles, mas também Rhodan e sua gente não haviam tido uma melhor sorte.

E então os movimentos começaram e enfraquecer, e as imagens lentamente ganharam em nitidez.

— Agora não vai demorar — declarou Rakal, relaxando-se. — A qualquer momento deve aparecer o transmissor situacional de Vario.

Eles não precisaram esperar muito. Por cima de Vario apareceu, no céu, um arco resplandecente, vermelho, de cerca de

um milhão de quilômetros de diâmetro — o transmissor de arco. A R-10 e as sete naves dos maahks receberam, ao mesmo tempo, uma espécie de empurrão violento, que fez com que se aproximassem, a uma velocidade incrível, do arco.

E mergulharam nele... O choque foi quase imperceptível, quando a R-10 deu um salto de dezoito anos-luz,

rematerializando no centro da Nebulosa de Andrômeda. Bem no meio do hexágono solar do transmissor intergaláctico.

Eram seis sóis gigantes, azuis, que forneciam a energia que era necessária para a transmissão de matéria por um milhão e meio de anos-luz.

Sem uma pausa, a R-10 corria, com as naves negras acompanhantes, na direção do transmissor invisível, que formava o ponto central dos seis sóis. Desta vez sentiram um leve choque, quando desmaterializaram — para logo depois rematerializar.

Estavam, agora, na familiar Via Láctea. Porém a rematerialização demorou só segundos, depois o hexágono galáctico

retransmitiu-os novamente, desta vez para o planeta retificador Kahalo. Quando as telas de imagem começaram a funcionar outra vez, Rakal levantou-se de

um salto. Com um pulo, ele estava atrás dos controles. Ele reconhecera uma frota de

apresamento lemurense, que se atirava, com canhões relampejantes, sobre o inimigo esperado.

O campo verde defensor hiperenergético impediu que a R-10 fosse abatida imediatamente.

Ele começou a revidar o fogo dos lemurenses. A seu lado, os perplexos maahks entravam em sua derradeira luta.

* * *

O Major Nils Anderson, com quase um e noventa de altura, tinha cabelos louros, e, a

primeira vista, lembrava um daqueles vikings que haviam descoberto a América. Todos o tinham como extremamente ousado, não recuando diante de qualquer aventura. Quando ficou sabendo de sua próxima missão, quase caiu em cima de Gucky, para abraçá-lo, de tão contente.

Como telepata, Gucky, entretanto, pressentiu o perigo. Estendeu a mão ao major, e deu alguns passos para trás.

— Não vá me matar, amassando-me todo, major. E não creia que isso vai ser um alegre passeiozinho. Claro, eu também acho isso muito divertido, porém, mesmo assim, entro nas coisas com a maior seriedade. O senhor, entretanto, major, acha tudo isso uma espécie de chá-de-panela, receio eu.

Anderson deu uma gargalhada.

Page 39: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

39

— Mas o caça-mosquito é praticamente invencível, Gucky! Ele é pequeno demais para ser rapidamente rastreado. E tem armas de grande poder destrutivo, não podendo, portanto, ser atacado facilmente. É rápido demais para ser perseguido. Só vantagens, nada além de vantagens.

— Isso naturalmente iremos ver — retrucou Gucky, meio chateado, pois quando ele assumia uma missão, pelo menos esta não deveria parecer especialmente fácil e sem perigos. — De qualquer modo eu ainda não tenho essa certeza toda, de que poderemos levar nossa missão até o fim com sucesso. Temos que encontrar os gêmeos, e estes poderão estar em qualquer lugar. E em qualquer tempo.

— Como disse? — Em qualquer tempo. Em qualquer lugar ou qualquer tempo. — Ah — fez Anderson, subindo para a pequena cabine do caça de velocidade ultraluz.

— Por favor, tome o seu lugar, Gucky. Logo vamos decolar. O rato-castor teleportou para dentro do aparelho, e já estava sentado, antes mesmo do

Major Anderson ter encontrado o seu lugar. — Logo que estiver sentado, o senhor pode decolar — disse ele. Um pouco desconcertado, Anderson sentou-se, começando a mexer no painel de

comando. Ele conhecia Gucky e sabia como devia tratá-lo, para evitar aborrecimentos. O hangar estava cheio de caças-mosquito. Os técnicos correram para a eclusa de lançamento mais próxima, abrindo-a. Anderson fez o aparelho deslizar até a câmara externa. Atrás dele fecharam as comportas novamente. O ar foi aspirado, depois abriu-se a comporta externa.

Diante de Anderson e Gucky estava o cosmo. Lateralmente, via-se o sol gigante vermelho, e bem junto dele o seu pequeno

companheiro astral. Da estação dos engenheiros cósmicos não era possível ver-se nada no momento. Ela devia estar pairando por trás da esfera gigante da Crest III, que parecia um planeta. Afinal, a Crest tinha um diâmetro de dois mil e quinhentos metros.

Anderson acelerou imediatamente, depois de ter trocado sua última mensagem de rádio com o comandante da Crest, o Coronel Carl Rudo. As coordenadas de Kahalo já haviam sido tomadas e armazenadas na memória do computador. A navegação automática entrou em funcionamento e colocou a pequena nave no seu curso.

Anderson recostou-se na sua poltrona. — Na realidade, tudo isso me parece um tanto esquisito. Aqui estamos nós, cinqüenta

anos no passado, uma época em que, de acordo com a opinião dos cientistas do século vinte e cinco, nem deveria haver homens inteligentes ainda, e enquanto isso, acontecem coisas muito piores do que... bem, do que hoje em dia. Ou eu deveria dizer: No futuro?

Gucky deu sua risadinha. — Ora, Major Anderson, desse jeito o senhor acaba trocando as bolas. Concordo, é

tudo um pouco complicado, mas não é tão difícil de compreender. — Compreender, talvez, mas não é possível expressá-lo com precisão. — Tanto faz. De qualquer modo nós precisamos tentar regressar outra vez ao nosso

próprio tempo. Eu ainda vou contar umas historinhas a esses senhores da galáxia, nisso pode apostar! Máquina do tempo e coisas semelhantes! Era só o que ainda nos faltava. Mas talvez o tempo seja a chave para o segredo que envolve os senhores da galáxia.

— Rhodan também é dessa opinião. Anderson dedicou-se à pilotagem do aparelho. Em toda a volta, havia visibilidade

total. O sol duplo vermelho ficara muito para trás, na popa, tornando-se rapidamente cada vez menor. Logo era apenas um ponto luminoso entre milhões de estrelas.

— Que bom — disse Anderson — que nós conhecemos Redpoint tão bem no futuro, já que ele será uma base da USO. Deste modo, temos mapas exatos, e não temos problemas

Page 40: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

40

com a navegação. Se ninguém se atravessar no nosso caminho, vai ser um vôo sem problemas.

— Mas sobre Kahalo está acontecendo um verdadeiro inferno, o senhor sabe disso tão bem quanto eu. Os lemurenses estão assustados. O agente do tempo Frasbur inventou para eles que, partindo da Nebulosa de Andrômeda, raças estranhas estão penetrando em nossa galáxia, para exterminá-los. Justamente agora, quando os lemurenses estavam prestes a fugir para a Nebulosa de Andrômeda, para pôr-se em segurança.

— Nós devíamos dar um jeito de agarrar este agente do tempo. — Isso vai acontecer, mais cedo ou mais tarde — disse Gucky, para acalmar o major. Eles entraram no espaço linear, ficando entretanto apenas por quinhentos anos-luz no

mesmo, para depois regressar ao universo normal. Parecia perigoso demais voar sem orientação até Kahalo. Os aparelhos de rastreamento trabalhavam a todo pano. Num círculo de dez anos-luz, foram rastreados sete diferentes frotas de combate. Quatro delas tinham a rota orientada diretamente para Kahalo.

— Parece que marcaram uma reunião por lá — achou Gucky, sarcástico. — E nós não podemos faltar. Gostaria de saber por onde andam metidos os gêmeos, agora. Será que o plano deles deu certo? Talvez eles estejam no passado e fiquem por lá — ele sorriu. — Lembro-me que um deles, certa vez, foi catapultado ao passado, transformando-se numa espécie de salamandra. Portanto eles têm experiência nestas coisas.

— Sim, também ouvi falar dessa história. Bastante inacreditável. — Mas verdadeira! — indignou-se o rato-castor. — Fui testemunha. Anderson sorriu, mas não respondeu. Novamente fez acelerar o caça-mosquito,

entrando mais uma vez no espaço linear. Desta vez por mil anos-luz. Ao regressarem ao espaço einsteiniano viram-se rodeados de, pelo menos, duzentas

naves dos lemurenses, que imediatamente abriram fogo. Anderson tinha presença de espírito suficiente para imediatamente ligar a propulsão

linear, mas, mesmo assim, levou algum tempo até que o automático engrenou para este vôo. O campo verde hiperenergético de proteção conseguiu suportar o ataque, e com manobras espertas Anderson desviou-se dos adversários. Com o canhão conversor, montado na proa, ele exterminou dois atacantes, depois tudo esvaiu-se na meia-luz do espaço linear.

— Essa foi por pouco — disse Gucky, baixinho. — Nem tanto — Anderson reclinou-se para trás e fechou os olhos. — Agora vamos ter

sossego por uma hora. Vamos voltar ao espaço normal a cinqüenta anos-luz de Kahalo. Isso bastará. Depois vamos ter que usar de mais cautela. Que coisa maluca! Eu não contara com isso.

— Com o quê? — Que teríamos que lutar contra terranos — mesmo se eles dizem chamar-se

lemurenses. — Procure olhar, no dicionário, a letra D, major. — A letra D? O que quer dizer com isso? — Na letra D! É o destino! Anderson resmungou qualquer coisa, chateado, e novamente fechou os olhos. Gucky sorriu e ficou pescando uma cenoura, no gavetão refrigerado.

* * *

A frota do almirante lemurense Hakhat consistia, em sua maior parte, de naves

espaciais de combate esféricas, com um diâmetro máximo de mil e oitocentos metros — naves, portanto, como, mais tarde, possuíam os arcônidas.

Page 41: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

41

Frasbur comunicara-lhe que algumas naves dessa raça estranha, que se opunha à emigração dos lemurenses para a Nebulosa da Andrômeda, haviam conseguido penetrar no transmissor. E que deviam rematerializar, a qualquer momento, sobre Kahalo.

A ordem era de exterminá-las. O Almirante Hakhat deu suas instruções. De todos os lados apareceram os aliados com

suas esquadrilhas, tomando posição. As linhas de defesa formavam círculos concêntricos até uma profundidade de dez anos-luz.

Frasbur não mencionara um número exato. Poderiam ser cinco, mas também poderiam ser quinhentas, as naves que eram esperadas.

Eram oito. Elas surgiram, conforme se previra, por cima das seis pirâmides do planeta Kahalo, e

começaram a atirar imediatamente, como possessas. Hakhat ordenou o ataque. As sete naves espaciais negras foram uma presa fácil para os lemurenses. Dentro de

poucos minutos haviam sido exterminadas. Somente a oitava nave, uma esfera espacial de um diâmetro ridículo de sessenta

metros, conseguiu escapar. Pelo menos, a princípio. O que não era de estranhar, pois era Rakal Woolver que estava atrás dos controles. O mutante já esperara o ataque maciço. Ele acelerou com uma velocidade louca, e

conseguiu atravessar a frente dos lemurenses. Os canhões de bordo atiravam ininterruptamente sobre qualquer objeto que se aproximava. O robô automático somente interromperia o seu fogo, quando Rakal o desligasse. E isto tinha que acontecer, antes de Lemy deixar a R-10 na sua Helltiger.

Rakal, entretanto, só queria desligar o automático quando o caminho para Kahalo estivesse assegurado.

Tronar estava sentado a seu lado, na sua poltrona. — Você está sendo negligente, Rakal. Ligue o hipercomunicador, para que possamos

chegar à superfície pela onde de rádio. Tako pode teleportar. Lemy então pode tentar escapar com a Helltiger.

— Tudo foi planejado assim — concedeu Rakal. — Mas sem um lembrete bem dado, estes cabeças ocas não vão me escapar.

— Eles não têm culpa de nada, Rakal. Afinal de contas, não conhecem o futuro, como nós.

— Não importa! Quando eles se aproximaram mais uma vez de Kahalo, os mostradores no painel de

controle, diante de Rakal, de repente pareciam ter endoidecido. Os ponteiros dançavam de um lado para o outro, completamente loucos.

— O campo energético! — gritou Tronar. — Ele não consegue mais suportar a carga por muito tempo. Ele vai vir abaixo.

Rakal hesitou. Eles estavam caindo sobre Kahalo. — Você acha? — apertando uma tecla ele queria ligar o telecomunicador para avisar a

Lemy, que se aprontasse para decolar, quando um golpe violento fez a R-10 balançar. A nave chegou a sair da rota, sendo rodeada por dez pesadas naves espaciais dos lemurenses.

O campo energético verde arriou definitivamente. No anel equatorial explodiram algumas turbinas.

— Saltar! — berrou Tronar, pegando o irmão pela mão. — Um feixe energético — não importa o que seja. Caso contrário estamos perdidos! Para Tako a coisa foi mais simples.

Page 42: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

42

Ele não precisava de meios auxiliares. Teleportou no mesmo segundo em que a R-10 detonou definitivamente, acertada por uma bomba-robô.

E então todos tinham desaparecido, sem deixar traços — Rakal, Tronar e Tako. Semelhante a um estilhaço de metal balouçante, a Helltiger foi arrancada pela

comporta, e catapultada ao espaço. Quando Lemy voltou a si novamente, ele estava à deriva, sem ser notado, entre as

enormes naves dos lemurenses, em direção às estrelas. Foi uma sorte terem camuflado a Helltiger, como um destroço.

Page 43: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

43

5 Dez anos-luz diante de Kahalo, Anderson voltou ao espaço normal, depois de duas

etapas mais curtas no espaço linear. O hiper-receptor estava ligado. Deste modo eles podiam seguir facilmente as operações dos lemurenses, uma vez que eles usavam a língua dos futuros tefrodenses. Além disso, suas irradiações geralmente não eram em código. Neste setor da Via Láctea eles se sentiam seguros.

— Tudo indica — disse Anderson, depois de algum tempo — que as suas frotas estão se reunindo justamente sobre Kahalo. Nossas primeiras observações parecem estar certas. Obra do agente do tempo, suponho.

— Eu já o havia mencionado — declarou Gucky, empertigado. Anderson fez que não ouviu a observação. — Estamos passando por um sistema solar com poucas horas-luz de distância. Acha

que devemos orbitá-lo, em nosso caminho? — Tolice! Nós vamos passar voando, bem no meio dele. O sol tinha apenas quatro

planetas. Em termos futuros, pelo que revelava o mapa celeste, também este sistema se transformaria numa base de apoio.

O quarto planeta era habitado — pelo menos era o que parecia à primeira vista. Cidades extensas cobriam grandes planícies, mas nas estradas, nitidamente visíveis, de ligação, não havia qualquer tráfego. No ar não havia um só avião, muito menos naves espaciais — apesar de se verem gigantescos campos de pouso.

Em todos os comprimentos de onda havia silêncio de rádio. — Estranho — achou Anderson, de repente muito curioso. — Eles provavelmente abandonaram o seu planeta. Certamente um mundo colonial

dos lemurenses. Por medo de um ataque dos halutenses, eles deram no pé. — O que foi que eles fizeram? Deram no pé? Gucky revirou os olhos. — Ora bolas, é mais uma dessas expressões que o Bell me ensinou. Quer dizer: Eles se

escafederam, sumiram. Eles fugiram! — Antigamente, na Terra, acho que falavam um linguajar bem estranho — queixou-se

Anderson. — E estas tolices, o marechal-de-estado acha de lhe ensinar? — Para isso, afinal de contas, ele é meu amigo — retrucou Gucky. Quase sem querer, Anderson levou o caça para mais perto do planeta. Chegou a

penetrar na sua atmosfera. — Semelhante à Terra. Não devíamos deixar de dar uma olhada. Que tal se

deixássemos para trás um sinal duradouro, e mais tarde, dentro de cinqüenta mil anos, viéssemos ver se ele ainda está por aqui?

— O senhor está querendo evocar um paradoxo de tempo, major? — quis saber Gucky, severo. Ele pigarreou. — Mas, dar uma olhada nós podemos, ainda assim. Certamente uma hora ou duas não farão muita diferença.

— Além disso estamos prestando serviços úteis como observadores em primeira mão. Precisamos saber o que está acontecendo nas proximidades de Kahalo. Se é que queremos realmente regressar ao nosso tempo, Kahalo sempre será um ponto de referência.

Em pouca altitude sobrevoaram as três cidades, e na quarta eles tomaram a decisão de pousar, no campo de pouso que ficava próximo. Algumas naves menores estavam estacionadas a esmo, mas não se via uma só pessoa. O receptor de rádio continuou mudo. Ninguém os chamou, para saber quem eram e o que queriam por aqui.

Page 44: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

44

As ruas da cidade estavam vazias. Anderson dirigiu o caça pouco acima dos telhados das casas. Veículos de todos os tipos, sem ninguém, estavam estacionados ao lado das casas. Seus proprietários os haviam simplesmente deixado para trás, quando o planeta fora evacuado.

Anderson ligou o hipercampo energético. A menos de quinhentos metros dos limites da cidade, ele pousou. Mal isto acontecera, quando repentinamente surgiu uma parede branca, muito

brilhante, e depois uma cúpula. Ela espraiou-se por cima da nave pousada, envolvendo-a hermeticamente do mundo exterior.

Anderson reagiu rápido e decolou novamente, mas já era tarde. O caça bateu contra o obstáculo e foi jogado para trás. Ele não conseguia penetrar aquele bloqueio energético.

Com um palavrão furioso, Anderson pousou de novo, desligando os jatos definitivamente.

— Nós caímos na armadilha mais idiota que se pode imaginar. Naturalmente suas medidas de segurança continuam trabalhando automaticamente. Só me preocupo em saber como é que agora vamos sair daqui novamente.

Gucky ficou olhando aquela cúpula cintilante. — Uma rede energética, como os tefrodenses ainda usam hoje em dia — ou daqui a

cinqüenta mil anos, se quiser. Nisto, toda a teleportação não adianta mais de nada. Já experimentei isso em Tefa, e tudo que consegui foi alguns galos na cabeça. Pense um pouco, major, no que devemos fazer.

Mas, por mais que pensassem, não chegavam a nenhuma conclusão. Eles estavam presos debaixo de uma grade energética, que certamente só poderia ser desligada por fora — caso encontrassem os controles. A maquinaria ficava abaixo da superfície, isso era claro. Provavelmente também toda a instalação. E se a grade não se fechava como uma esfera...

— Esta é a única possibilidade — disse Gucky finalmente, depois de ter pensado por muito tempo. — Eu só posso teleportar para baixo. Para dentro da terra. Se, por ali, por acaso, eu encontrar um espaço vazio, tivemos sorte. Caso contrário eu apenas vou arranjar algumas luxações, e serei arremessado de volta. Onde existe um corpo não pode estar outro — mas isso o senhor naturalmente ainda sabe de suas aulas de física.

— Isso sim — concedeu o major — mas não tenho a menor idéia das leis que regem a teleportação. O que acontece se o senhor dá um salto curto demais, ou longo demais, rematerializando no meio das rochas?

— Isto, por sorte, não é inteiramente possível. No instante em que o corpo, materializando-se, percebe que se encontra em condições desmaterializadas dentro de uma outra matéria, ele volta ao espaço da quinta dimensão, e para o seu ponto de partida. Isso é um pouco doloroso, mas não perigoso. Eu tenho que arriscá-lo, caso contrário ainda estaremos sentados debaixo desta cúpula, depois de amanhã.

— Depois de amanhã? Ainda daqui a dez anos. — Justamente! — Gucky começou a revirar os bolsos. — E eu só tenho ainda onze

cenouras comigo. Para o Major Nils Anderson a teleportação, desde modo, era alto inteiramente novo.

Naturalmente ele já fora testemunha, na Crest, de como Gucky saltava de um lugar para outro, porque o caminho lhe era longo demais. Mas isto aqui era algo bem diferente.

— Espero que tenhamos sorte — disse ele. — Na realidade nós nem devíamos ter pousado aqui. — Está enganado — disse Gucky, rápido, como se somente tivesse esperado por esta

observação. — Perry Rhodan deu-me a entender claramente que eu utilizasse a excursão para dar uma olhada em tudo que houvesse de suspeito no caminho. E então — um planeta evacuado não será uma suspeita?

Page 45: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

45

O Major Anderson sentiu que uma pesada carga já não lhe pesava nos ombros. — Muito suspeito — disse ele, aliviado. Depois ficou olhando, em silêncio, como Gucky se concentrou, fechou os olhos — e

saltou. Não se via que ele saltava, via-se apenas que ele desaparecia repentinamente, deixando para trás um vácuo, já que ele simplesmente se dissolvia no Nada. Anderson sentiu o golpe de ar, quando o vácuo foi novamente preenchido.

E no mesmo segundo Gucky estava de volta. O rosto do rato-castor estava uma máscara de dor. Ele segurava os seus lados, como

se quisesse verificar se todos os ossos ainda estavam nos devidos lugares. — Tive azar — gemeu ele, dolorosamente. — Não saltei suficientemente longe. Dez

metros mais abaixo, e certamente teria alcançado o meu intento. Bem, da próxima vez... Gucky arriscou mais dois saltos, e voltou de cada vez. Somente depois do terceiro é

que ficou sumido.

* * *

Pela primeira vez em sua vida, Lemy Danger não sabia o que fazer. Naturalmente ficara combinado que os dois Woolver e Tako deviam tentar alcançar a superfície de Kahalo, mas Lemy não sabia se eles o tinham conseguido. Ele mesmo fora arremessado ao espaço, dentro de sua minúscula nave, quando a R-10 detonou. E não pudera observar mais nada, pois perdera os sentidos.

Os gêmeos e o teleportador teriam perdido a vida, durante a catástrofe, ou tinham podido colocar-se em segurança, ainda em tempo?

Lemy estava firmemente decidido a certificar-se disso, antes de tentar encontrar Redpoint e a Crest III.

A cerca de vinte mil quilômetros por segundo, a Helltiger deslizava pelo espaço. Os jatos ainda estavam desligados, e nenhuma emissão energética revelava que aquele pedaço de metal de três metros de comprimento era uma nave. E realmente a semelhança com um grande destroço era total.

Lemy estava sentado, sem se mexer, atrás dos controles, que, no momento, não lhe eram de grande ajuda. Por sorte ele tinha uma visão total para todos os lados. Lateralmente ficava Kahalo, muito perto, e a Helltiger passaria pelo planeta a uma distância estimada de três milhões de quilômetros.

Bem perto dele, uma grande nave de combate dos lemurenses voava na mesma velocidade que ele. O comandante não deu a menor atenção àquele pedaço de “destroços”. Lemy, pelo contrário, não deixou de olhar a nave de combate por um só instante. Ele aproximou-se da mesma lentamente, e se não mudasse a rota logo certamente colidiria com o gigante, cujo campo energético não estava ligado.

Um “destroço”, entretanto, não pode mudar a sua rota. Lemy observava, ao mesmo tempo, a nave dos lemurenses e Kahalo. O planeta estava

rodeado de frotas de vigilância. Nenhuma nave poderia penetrar neste círculo fechado. A espaçonave estranha só estava ainda a uma distância de poucos quilômetros,

aproximando-se cada vez mais. Lemy não ousou proceder a menor correção de rota. Não queria que o notassem de modo algum, para não tomar conhecida a sua melhor arma — seu minúsculo tamanho.

Portanto deveria acontecer alguma coisa com que ninguém contava, muito menos Lemy Danger. Provavelmente tudo aconteceu não intencionalmente, por puro acaso, pois se os lemurenses soubessem o que significava aquele pedaço de metal que flutuava perto deles no espaço, eles teriam reagido de modo bem diferente.

Page 46: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

46

Quando Lemy ainda se encontrava a uns duzentos metros de distância da nave de combate, o comandante dos lemurenses ligou o seu campo energético.

Este tinha um raio de cerca de quinhentos metros, e esta foi a sorte de Lemy no seu azar.

Ele se transformara num satélite da espaçonave. Quando Lemy percebeu o que acontecera, empalideceu. Naturalmente agora era-lhe

teoricamente possível abrir fogo de seus canhões supereficientes sobre aquela nave desprotegida, mas com isso ele revelaria a sua presença. Além disso não tinha certeza se eles não tinham a possibilidade de destruí-lo imediatamente.

Era melhor esperar com toda a calma, para ver o que iria acontecer. Lemy ligou o rádio e tentou conseguir contato com os gêmeos ou Tako, mas foi inútil.

O campo energético da nave tefrodense isolava-o totalmente. Segundos depois a nave iniciou sua viagem. Acelerou, por etapas pequenas, levando a

Helltiger simplesmente consigo. Apesar do campo energético, ele era transparente a ondas normais de luz. Lemy podia observar muito bem os seus arredores. O planeta Kahalo com sua estação de retificação ficou rapidamente para trás. A nave dos tefrodenses tomou uma rota para um setor da Via Láctea, no qual provavelmente se encontrava o sol, mas depois mudou, por diversas vezes, o seu curso, como se quisesse iludir um observador ainda invisível.

A Helltiger, prisioneira na bolha energética, fazia todos os movimentos junto com a nave maior, como um peixe que tivesse sido capturado numa rede de arrastão. Só agora Lemy notou que o “seu” tefrodense não era o único que se afastava de Kahalo. Pelo menos mais dez unidades voavam numa formação ordeira com ele, e todas elas pareciam ter o mesmo destino.

Lemy começou a amaldiçoar o fato de ter se deixado capturar tão facilmente nessa armadilha. Por que não se pusera em segurança, ainda em tempo? Ele não precisava temer uma perseguição, pois para isso a Helltiger era pequena demais. Agora ele estava entregue ao acaso, e havia acasos desgraçadamente muito desagradáveis.

O que Lemy não sabia era o fato de que os dispositivos de alarme de um planeta já evacuado haviam sido disparados por gente não autorizada. O Almirante Hakhat não hesitara em pôr em marcha uma frota de investigação, para verificar o que estava acontecendo.

* * *

Quando Gucky materializou, primeiramente não viu nada. Os seus olhos precisavam

acostumar-se primeiro àquela luz mortiça, e só quando isso aconteceu é que ele viu os detalhes.

Suas suspeitas haviam sido corretas. Ele estava de pé, bem no meio de um imenso pavilhão de máquinas, que continha um sem-número de aparelhos desconhecidos. As paredes estavam cobertas de controles, cuja utilidade seria difícil adivinhar. Um deles certamente serviria para desligar o campo energético automático. A pergunta apenas era: Qual deles?

Conforme seus cálculos, Gucky devia estar a trinta metros abaixo da superfície lisa e cimentada do espaçoporto, e diretamente abaixo do caça-mosquito. Se o campo energético fosse uma esfera integral, seria impossível escapar dele, até mesmo aqui, sob a terra. Do mesmo modo poderia esquecer-se um avanço maior, mais para o fundo. Caso, entretanto, o campo energético fosse apenas hemisférico, atingindo somente pouco abaixo da superfície cimentada do aeroporto, Gucky poderia chegar à superfície novamente, por um caminho lateral, e ali procurar por um controle manual.

Page 47: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

47

O raio do campo energético não era de mais de cinqüenta metros. Gucky agora conseguia reconhecer bem todos os detalhes. A luz saía das paredes, como se estas fossem transparentes. O teto era especialmente claro, uma vez que ali não havia nem controles nem máquinas. Era uma luz amarelada, agradável aos olhos. Ainda assim, a mesma dava a impressão de ser um tipo de iluminação de emergência.

Gucky ligou seu aparelho de radiotransmissão. — Nils, está me ouvindo? O major respondeu imediatamente. — Muito bem! Onde é que se meteu? — Bem debaixo do senhor. A cerca de trinta metros. Deve ser a estação energética,

com os respectivos painéis de controle. Onde fica a chave para o campo energético, entretanto, eu não sei.

— Não quer vir me buscar? Sou um gênio em coisas técnicas — pelo menos foi o que me disseram na Academia.

— Ora, não me diga — resmungou Gucky, com desprezo. — Mas, por mim, o senhor pode dar uma olhada nesses troços. Talvez realmente conheça mais do que eu sobre os mesmos. Vou buscá-lo...

Poucos segundos mais tarde o Major Anderson estava parado do seu lado no pavilhão de máquinas.

— Impressionante! — Nils Anderson olhou para todos os lados, acenando com a cabeça, como que aprovando. — Naturalmente tudo isso parece um pouco confuso, mas se nós examinarmos a coisa com método, certamente vamos encontrar a chave certa.

— Muito bem, comece com o seu “método” — sugeriu Gucky, secamente. — Entrementes eu verifico até onde atinge a redoma energética.

Anderson pôs-se ao trabalho, estudando a aparelhagem detidamente, e fazendo suas anotações, Gucky marchou pelos corredores entre os aparelhos, em diagonal, até chegar à parede que ficava ao lado oposto.

O campo energético não continuava terra a dentro. — Isso quer dizer que tivemos muita sorte, apesar de ainda não estarmos salvos —

Gucky voltou ao ponto de partida. — Como é que vão as coisas com o senhor? Anderson sacudiu a cabeça. — A coisa não é tão simples, como lhe possa parecer. Estes aparelhos aqui devem ter

funções muito diversificadas. Os campos energéticos automáticos são apenas uma delas. Provavelmente esta é a estação de controle e distribuição de força para iluminação do espaçoporto e da cidade. Com certeza também serve à coordenação de todos os meios de segurança existentes, bem como às instalações de radiocomunicação. Provavelmente também ao telecontrole de poucos automáticos.

— Ah — fez Gucky, sentando-se num dos blocos de máquinas. — Com isso, eu agora já sei de tudo, com bastante certeza — ele levantou-se novamente, de um salto, olhando para todos os lados. — O senhor não acha que existe a possibilidade de haver um sistema de alarme? Neste caso, já saberiam que nós estamos por aqui. O que seria muito chato para nós.

— O planeta foi evacuado, Gucky. Por que ainda iriam dar valor em querer saber se alguém pousa aqui, por acaso, ou não?

— O campo energético ainda funcionou, prendendo-nos, não é mesmo? Anderson fez uma cara espantada. — Nisso naturalmente tem toda razão. Se tudo aqui continua funcionando como antes,

um telealarme naturalmente não pode ser excluído. E por isso nós temos que contar com visitas muito em breve — caso eles ainda estejam interessados nisso.

Page 48: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

48

Eles revistaram o pavilhão e os recintos que lhe ficavam próximos, mas não ousaram tocar nos controles. E as anotações de Anderson e o seu “gênio técnico” também não ajudaram em muita coisa.

— Acho que é inútil — resumiu o major a conclusão dos seus esforços. — Receio que nada vamos alcançar com sistemática. Vamos simplesmente experimentar alguma coisa.

— O que, por exemplo? — Os controles. Um deles certamente vai ser o certo. — Eu tenho outra sugestão: Vamos dar uma olhada na cidade. Além disso eu acho que

é bem possível que aparelhagem para desligar o campo energético deve encontrar-se, lá em cima, na superfície. Em Tefa, pelo menos, este foi o caso — ou será o caso. Dentro de cinqüenta mil anos.

— Concordo. Eles afastaram-se algumas centenas de metros do pavilhão de máquinas, antes de

ousarem teleportar para a superfície. E logo se encontraram no campo de pouso deserto, olhando para trás. O caça-mosquito continuava intocado debaixo da cúpula energética, que em alguns lugares refletia a luz do sol, tornando-se visível deste modo.

— Ainda bem que ninguém pode passar a mão no nosso pássaro — verificou Gucky, sarcástico, encaminhando-se para os edifícios que ficavam à beira do campo. Anderson seguiu-o, hesitante. — Eu estou com uma sensação desagradável — confessou ele. — Sempre tenho isso, quando preciso caminhar, Nils. Mas se eu teleportar, não enxergo nada. E quero encontrar os controles.

O chão era liso e sem juntas. Se houvesse controles para os campos energéticos, que certamente devia haver por toda parte, ou estes se encontravam abaixo da superfície, ou então num dos edifícios à beira do campo.

Nas primeiras casas eles encontraram apenas alojamentos e escritórios abandonados. Via-se, logo de saída, que os lemurenses haviam abandonado o seu mundo ordeiramente. Em algumas prateleiras havia documentos, limpos e empilhados, seguros por grampos magnéticos. As escrivaninhas estavam vazias.

A central de rádio e a torre de controle de pousos e decolagens haviam sido desativadas, mas certamente bastaria girar uma chave, para fazê-las funcionar novamente. Tudo fazia crer que os lemurenses tinham a intenção de, um dia, voltarem novamente para cá, mas, por outro lado, podia ter sido simplesmente uma questão de hábito, que os fizera agir deste modo pedante.

Atrás da fileira de prédios administrativos havia uma construção baixa, mas enorme. Tinha apenas janelas muito estreitas e uma única entrada — uma grande porta de metal.

— Poderia ser ali — disse Anderson, quando já se encontravam perto da edificação. — Vamos dar uma olhada... A porta fechada não é nenhum empecilho. Gucky pegou o major pela mão e teleportou com ele para dentro do edifício. Ao

rematerializarem, eles se encontravam, de pé, na central de controles. As paredes estavam recobertas de todos os tipos de instrumentos, e uma fileira de telas de imagem dava a entender que era daqui que se podia controlar todas as medidas de segurança do espaço-porto.

— Poderia ser isso — achou Anderson. Gucky apenas anuiu. Seu pequeno cérebro trabalhava febrilmente. Ele sabia o quanto

seria insensato experimentar os controles, indiscriminadamente. Facilmente poderia acontecer que a chave errada se ria ativada, trazendo a catástrofe no seu bojo.

— Pelo menos, vamos dar uma olhada nas telas de imagem — sugeriu Anderson. — Elas poderiam dar-nos uma pista.

“Telas de imagem não são perigosas”, pensou Gucky.

Page 49: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

49

Foi fácil ativá-las, depois de haverem encontrado a chave geral. Uma depois da outra iluminou-se. Os tubos, entretanto, mostravam apenas recintos vazios e salas de conferência abandonadas. Somente a segunda fileira reproduziu imagens da cidade e do próprio espaçoporto.

Os objetos deixados para trás na cidade denunciavam claramente que os lemurenses apenas haviam evacuado as pessoas, deixando para trás todo o resto. Nas ruas ainda se viam os veículos, estacionados conforme os regulamentos do trânsito, e provavelmente trancados. As janelas das casas vazias estavam fechadas, bem como as portas de entrada das grandes lojas de departamentos, cujas vitrines estavam repletas de mercadorias.

— Morrer de fome nós não vamos — verificou Gucky. Anderson não respondeu. Continuou procurando. A terceira fileira de telas de imagem era acoplada com câmeras de vídeo, que deviam

estar estacionadas no espaço. As telas mostravam, na primeira metade, tomadas aéreas do planeta desconhecido, em diversos ângulos. Depois, elas apresentavam imagens de distâncias que já deviam ter alguns anos-luz.

— Daqui é possível observar-se todo um setor da Via Láctea, e talvez até controlar — o Major Anderson apontou para os controles restantes, que nada tinham a ver com as telas de imagem. — Suponho que um aperto numa dessas teclas, por exemplo, será suficiente para mandar aos ares uma bomba, num outro mundo. Este planeta foi um ponto-chave. Estou surpreso com o fato dos lemurenses o terem abandonado.

— O medo deles dos halutenses foi maior — disse Gucky, pensando em Icho Tolot. — Inclusive, posso até entendê-los. Aliás, eu entendo muito mais. Sei por que os tefrodenses desmaiaram, ao verem Tolot. Ele devia parecer-lhes como um fantasma, que surgira do passado, para vingar-se.

— Infelizmente isso também não nos ajuda muito. Temos que livrar o caça de dentro daquela redoma energética, caso contrário estamos presos aqui. Afinal, seria ridículo não acharmos o botão certo.

— Aqui há milhares de botões — disse Gucky, furioso. Eles ficaram em silêncio por algum tempo. No grande pavilhão ouvia-se o zunir dos aparelhos escondidos e das máquinas, que se encontravam por baixo da terra. Elas forneciam a imensa energia que era necessária para pôr em funcionamento a gigantesca estação de vigilância. A mão de Anderson já se aproximara da chave geral para desligar a instalação, quando um outro ruído se sobrepôs ao monótono zunido das máquinas.

O mesmo vinha de fora do pavilhão, tornando-se mais alto a cada segundo, até transformar-se num ribombar sinistro.

Naves espaciais! Naves espaciais pousando. A mão de Anderson recuou. Nils empalidecera repentinamente. Gucky agarrou-o pelo braço e teleportou com ele para fora do pavilhão. Eles

materializaram entre os edifícios e imediatamente pularam para trás, buscando esconder-se.

Do céu desciam doze esferas gigantescas para o campo de pouso, cada uma com um diâmetro de, pelo menos, oitocentos metros.

Naves de combate lemurenses. — Quer dizer que fizemos mesmo alguma coisa errada — disse Anderson, assustado.

— Acabamos por disparar algum alarme. Gucky olhou na direção do caça. — Se eles o virem, logo saberão de tudo, mas com isso ainda não nos encontraram. Se

quiserem examinar o caça, vão ter que desligar a retícula energética. Esta é nossa chance. — Nós — contra doze naves de combate?

Page 50: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

50

— Se cuidarmos para que o fator surpresa fique de nosso lado, e tivermos uma boa dianteira, isso não será tão difícil — o rato-castor estufou o peito. — Eu, inclusive, já fiz coisas bem mais difíceis que essa. O principal é que eles não nos vejam. Precisamos ficar escondidos.

As doze naves pousaram. O trovejar dos jatos emudeceu. Tudo ficou muito quieto — sinistramente quieto. Gucky e Anderson encontravam-se atrás do edifício baixo, observando. Esperavam pelo surgimento dos lemurenses, mas por enquanto os campos energéticos transparentes ainda envolviam as naves, cuidando para que ninguém pudesse aproximar-se delas. Mas também ninguém podia deixá-las.

— Eles são muito cautelosos — murmurou Anderson. — Se já descobriram nosso caça, devem saber que não temos superioridade numérica.

Por que estão esperando? — Talvez eles achem que o caça é apenas uma armadilha. Só espero que eles não o

destruam a tiros! Onze das naves de combate lemurenses haviam pousado mais para a retaguarda, no

campo. Pousaram de tal modo que podiam manter a décima segunda nave sob proteção de fogo. E foi o campo energético desta décima-segunda nave que de repente foi desligado. Ao mesmo tempo abriram-se diversas escotilhas. Soldados, completamente armados, levitaram em campos gravitacionais para baixo, pousando suavemente no campo cimentado. De outras comportas saíram rolando veículos blindados, com canhões energéticos prontos para atirar. Eles entraram em forma e aproximaram-se dos edifícios à beira do campo. Uma tropa de soldados marchou até a redoma energética, debaixo da qual esperava o caça-mosquito. Os outros aproximaram-se, em linha de fogo, dos edifícios, atrás dos quais Gucky e Anderson se mantinham escondidos.

— A coisa está ficando preta! — resmungou Gucky, um tanto desorientado. — O que vamos fazer? No caça não vamos conseguir entrar — e se pudéssemos, isso também não nos serviria muito. Não podemos partir. E se eles nos encontrarem aqui, não nos deixarão nem dizer bom dia.

— Temos que nos esconder, de modo que não possam nos encontrar, mas de onde nós possamos observar o caça. Caso eles queiram examiná-lo, vão ter que desligar o campo energético.

De repente Gucky pegou Anderson pelo braço. — Espere aqui, Nils — ele olhou, intensamente, para a direção em que se achava a

nave lemurense. — Ali está uma coisa que não devia estar ali... — O que quer dizer com isso? — Eu tenho que dar uma olhada, mas seria perigoso demais levá-lo comigo. Faça o

possível para que não o agarrem. Melhor seria esconder-se no pavilhão de comando. Eu o levo até lá dentro.

Sem esperar por uma resposta, Gucky pegou o major pelo braço e teleportou com ele para dentro do pavilhão. Depois ele desmaterializou imediatamente outra vez, deixando Anderson para trás no gigantesco pavilhão, completamente confuso.

* * *

Lemy Danger fazia todos os vôos lineares conjuntamente com a nave lemurense, como

se fosse parte integrante da mesma. Isto apenas era possível porque os lemurenses não desligavam o campo energético, seja por comodidade ou por razões de segurança. Para Lemy tratava-se de uma experiência estranha atravessar o espaço linear em velocidade espantosa, junto com a nave, sem ter a menor influência sobre a rota ou a velocidade.

Page 51: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

51

Às vezes, as naves acompanhantes tornavam-se visíveis, quando não eram encobertas pela esfera da gigante. E também as estrelas, que se modificavam constantemente. As constelações deslocavam-se com uma velocidade que permitia conclusões a respeito da velocidade e da pressa que tinham os lemurenses.

Lemy não se sentia muito bem naquela situação. A imobilidade deixava-o nervoso, e não havia nada que pudesse fazer. Simplesmente dependia das boas graças ou desgraças dos humores de um lemurense desconhecido.

Por um momento ele pensou em Rakal, Tronar e Tako. Talvez eles estivessem em melhor situação — ou então estavam mortos. A queda ao passado fora um sucesso, mas o golpe da chegada fora duro demais.

Ele devia ter logo tomado a rota de Redpoint, pensou Lemy, cheio de arrependimento, quanto a oportunidade perdida. O Administrador-Geral certamente saberia o que fazer. E agora estava ali, metido nesta armadilha.

Horas se passaram, depois a pequena frota voltou ao espaço normal. Lemy reconheceu um sol e um planeta. O destino do vôo devia ser esse.

As naves pousaram, e então o campo energético do “raptor” foi desligado. Tropas e blindados deixaram a nave, entrando em forma.

A Helltiger de Lemy estava firmemente colocada ao casco, segura por retentores magnéticos. Naquela superfície gigantesca, aqueles três metros não davam absolutamente na vista. Teria sido preciso olhar com muita atenção, para descobrir a minúscula nave, que, além do mais, parecia apenas um estilhaço um pouco maior de granada.

No primeiro momento, Lemy ficou tentado a arriscar uma partida rápida, procurando com aceleração máxima o espaço, mas depois venceu a curiosidade. O que é que os lemurenses queriam aqui, num planeta aparentemente abandonado? Que sentido tinha esta missão aparentemente insensata?

Lemy decidiu adiar a hora de sua fuga. Atentamente ele ficou observando os blindados dirigindo-se para a beira do campo de pouso, e as tropas se dividirem. Uma delas formou uma espécie de linha de fogo, seguindo os blindados, a outra marchou para um ponto do campo de pouso, onde alguma coisa estava parada debaixo de uma cúpula energética.

Somente agora Lemy olhou mais atentamente, e reconheceu o objeto. Era o caça-mosquito, a nave mais moderna desenvolvida pelos terranos. Somente a Crest tinha este tipo de caça nos seus hangares. Em nenhuma outra parte

eles existiam, muito menos aqui no passado. O pequeno coração de Lemy começou a bater mais forte. Ele já não amaldiçoava mais

o acaso, que o colocara nesta situação. Aqui havia terranos em perigo. Talvez até amigos, que ele conhecesse pessoalmente. Ele teria que ajudá-los.

Lemy esqueceu que ele mesmo precisava de ajuda. Os soldados haviam chegado diante da cúpula energética, colocando-se de tal modo que a rodearam por iodos os lados. Depois esperaram. Na nave maior algumas comportas se abriram. Canos de canhões deslizaram para fora, apontando para a redoma energética, sob a qual estava o caça. Mas eles não poderiam abrir fogo sem pôr em perigo seus próprios homens. Provavelmente apenas queriam impedir que ele decolasse, apesar de não ver-se ninguém na carlinga transparente.

Lemy ligou o seu receptor de rádio. Certamente os lemurenses deviam comunicar-se entre si. Talvez fosse possível descobrir alguma coisa sobre suas intenções.

Em todas as ondas havia completo silêncio de rádio. Se os lemurenses estavam irradiando, seria numa onda secreta — ou em nenhuma.

Foi mais por acaso que Lemy ligou a onda de emergência dos terranos. Uma voz muito clara, e meio estridente, dizia:

Page 52: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

52

— ...sem tempo, que você reagisse, anão Lemy! Gostaria de saber no que você estava pensando. Trate de virar-se logo, caso contrário vou assustá-lo, quebrando os vidros desse seu charuto...

Lemy virou-se lentamente e olhou para cima. De pernas abertas em cima de sua Helltiger estava acavalado um monstro peludo

olhando para dentro de sua carlinga. Naturalmente só se via o pêlo em alguns lugares, pois Gucky vestia um traje especial de combate. Com suas pernas abertas, ele estava sentado de costas na Helltiger, como em cima de um torpedo.

— Puxa, Lemy, a sua cara devia ser fotografada para uma exposição. Está com medo de mim?

Lemy conseguiu controlar-se novamente. — Então aquele caça lá embaixo é seu? Quer dizer que está metido numa boa

trapalhada, não? — Não mais que você, ao que suponho. Quer dizer que os gêmeos conseguiram

escapar? Por que eles mandaram você para nos procurar? — ele bateu com a mão contra as pequenas vidraças. — E ainda por cima com uma miniatura de nave como essa! Para que essa tolice?

O rosto de Lemy ficou muito vermelho. — Não subestime a Helltiger, Gucky. Com ela sou capaz de mandar o seu caça para a

eternidade, antes de você poder piscar um olho. — É muita pretensão sua! Aliás, eu não estou sozinho aqui. O Major Anderson está

comigo. Nossa missão era descobrir se os gêmeos o tinham conseguido. — Laconicamente ele acrescentou: — Missão cumprida.

— Ótimo — concedeu Lemy. — Neste caso posso pôr em marcha minha nave miniatura para ir procurar a Crest — sua voz soava indiferente. — Até mais ver, Gucky. Não demore a me seguir.

A voz de Gucky tornou-se um pouco mais estridente que habitualmente. — Espere um pouco, Lemy. Por que essa pressa? — ele pigarreou. — Você tem razão.

Nós estamos numa enrascada. Se os lemurenses destruírem nosso pássaro, estamos fritos. Saia daí de dentro de sua nave. Eu levo você até Anderson. Ele está esperando no pavilhão de comando. Nós podemos raciocinar com toda a calma, para poder enganar os lemurenses.

O rosto de Lemy mostrou satisfação. — Ótimo, Gucky, assim eu gosto mais das coisas. Mas não vou abandonar a Helltiger.

Preciso estar pronto para decolar a qualquer instante. Será preferível se agirmos separadamente.

— Concordo. Eu agora salto de volta até Anderson. E continuaremos conversando. Em caso de necessidade você terá que dirigir-se sozinho à Crest, para pedir reforços.

Ele teleportou de volta até a beira do espaçoporto, materializando, por questões de segurança, do lado de fora do pavilhão, em cima do telhado de um prédio vizinho.

E viu que as portas do pavilhão de comando estavam escancaradas. Soldados penetravam por elas. Blindados os seguiam.

Depois ocorreram as primeiras explosões.

Page 53: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

53

6 O Major Nils Anderson conseguiria trepar, com muito custo, num dos blocos da

aparelhagem e agora tinha uma vista quase completa do campo de pouso, por uma das janelas. De repente, sentiu um nó no estômago, e sua respiração ficou difícil.

Sem Gucky, ele sentia-se impotente. Estava trancado no pavilhão, pois não era teleportador.

Por uma questão de segurança, ele tirou sua arma energética do coldre e examinou, como por hábito, o maganize. Com esta, ele poderia, certamente, manter os lemurenses à distância, por algum tempo — se eles lhe dessem oportunidade para tal. Mas, afinal de contas, Gucky não poderia demorar muito.

O que teria ele descoberto? Quando Anderson ouviu os ruídos, ele virou-se. A grande porta que dava para o

pavilhão abriu-se. Os primeiros lemurenses penetraram no mesmo. Estavam com suas armas energéticas nas mãos, lembrando-o, assustadoramente, de terranos. E não era de espantar, afinal eles eram seus antepassados distantes. Com um choque, Anderson lembrou-se de que somente daqui a cinqüenta mil anos nasceria um homem, que era adorado como Filho de Deus.

Era cinqüenta mil anos antes de Cristo — hoje! Ele abaixou-se atrás de um ressalto, e destravou sua arma. Certamente ele não lhes

deixaria a coisa barato. Se pelo menos Gucky voltasse...! Eles o descobriram dois minutos mais tarde, de um blindado, que rolara para dentro

do pavilhão. Sem qualquer aviso, o blindado abriu fogo com o seu canhão pesado. Grande parte das instalações de controle simplesmente derreteu, fundindo-se, mas Anderson teve sorte. Simplesmente deixou-se escorregar para trás do bloco de máquinas, alcançando o chão, após uma queda de vários metros. Dobrando os joelhos, ele amorteceu a queda. Depois correu, como louco, para trás de um outro bloco de aparelhos.

E não fora um segundo cedo demais, pois o equipamento sobre o qual estivera parado transformou-se, no fogo de feixes energéticos concentrados, num monte de metal fundido.

Mais dois blindados rolaram para dentro do pavilhão, tomando posição. E então os soldados espalharam-se, começando uma busca sistemática, do misterioso estranho, que peneirara no pavilhão fechado.

Finalmente Anderson teve a idéia de ligar o aparelho de rádio do seu traje especial. Chamou Gucky, pedindo socorro urgente. Ao passar para a recepção, imediatamente ouviu a voz de Gucky:

— Finalmente! Onde é que se meteu? — Do lado de fora, no telhado do prédio ao lado. Como estão as coisas? — Pretas. Eles estão me caçando com blindados. Tire-me daqui, mas depressa, se me

faz o favor. Estou caído atrás de um bloco de máquinas. — Se eu materializar e eles me virem, vai ser um inferno. Aliás, eu encontrei Lemy

Danger. Isso tem tempo para mais tarde. Preste atenção: Vou teleportar em exatamente cinqüenta segundos. Dê-me, então, sua posição, mas depressa! Entendido?

— Entendido. Ainda quarenta segundos. Quando o tempo passou, não demorou nem mais quatro segundos, até Gucky aparecer

atrás do bloco de aparelhos. Infelizmente não pudera impedir que o vissem, ainda que só fugazmente. Os soldados começaram a atirar, mas demorou demais, até receberem a ordem de seus superiores para irem verificar atrás do bloco de máquinas.

Quando finalmente entraram no corredor estreito, não acharam mais nada.

Page 54: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

54

O invasor misterioso desaparecera com a mesma rapidez com que aparecera. E com ele, aquele que já se encontrava no pavilhão. Parecia que haviam sido tragados pela terra.

* * *

E, de certo modo, fora isso que acontecera. Gucky teleportara, com Anderson, para as instalações subterrâneas, e dali para a

cidade próxima. Ele escolhera um edifício que sobressaía, em muito, a todos os outros, e do qual era possível ter uma visão excelente de todo o espaçoporto.

Aqui, em relativa segurança, ele informou Anderson sobre seu encontro com Lemy Danger.

— Quer dizer que os gêmeos realmente conseguiram chegar! — Anderson parecia aliviado. — Com isso nossa missão está cumprida, e nós podemos voltar tranqüilamente para a Crest.

— Voltar, é boa — criticou Gucky, apontando na direção do espaçoporto. — Lá está nosso aparelho, preso por uma retícula energética. Ninguém poderá roubá-lo, nem mesmo nós. E sem o mosquito nós não chegaremos nunca à Crest.

— Que nave é essa, com que Lemy está aqui? — Tire essa “nave” da cabeça, Nils. Ela tem três metros de comprimento, e no meio

tem só três quartos de metro de espessura. Nada para o senhor, nem sequer para mim. O máximo que Lemy poderá fazer é voar na frente, para a Crest, em busca de ajuda. Mas isso é algo que eu gostaria de evitar. A Crest não deve ser descoberta.

— Nesse caso, nós mesmos temos que nos ajudar. Lemy pode vir até aqui? — Por que não o chama? — sugeriu Gucky, ligando o seu sistema de rádio. Depois de

duas tentativas, Lemy respondeu. — Tudo na mesma, por aqui. Ainda não me descobriram. Como vão vocês? Como é

que a gente se sente quando nos “abafam” o carro? — É ruim, a pé — retrucou Gucky, secamente. — Entretanto, a solução é muito

simples. Temos que dar um jeito para que os lemurenses nos mostrem os controles do campo energético automático. Logo que este estiver desligado, nós podemos teleportar para dentro do aparelho e partir...

— ...e logo vão ter a matilha toda atrás de vocês — Lemy limpou a garganta. — Não, desse jeito a coisa não vai.

— E existe outro jeito? — quis saber o Major Anderson. — O senhor tem alguma sugestão, general?

— Durante a missão, acho melhor esquecermos que sou um general. Eu me chamo Lemy.

— Ótimo, meu nome é Nils. Como é que imagina a fuga, Lemy? — Por enquanto, ainda não sei, mas no momento certo tenho certeza de que vou

encontrar o jeito exato. Nós siganeses somos excelentes técnicos, conforme vocês sabem. Aposto que vou encontrar as chaves de controle da retícula energética. Mas para isso eu teria que abandonar a minha Helltiger.

— Então faça isso logo! — gritou Gucky, chateado. — Afinal de contas, isso mais parece um estilhaço de granada. Ninguém terá interesse em roubá-la.

— Mais uma dessas e você vai a pé para Redpoint — gritou Lemy, indignado. — A Helltiger é a melhor nave na sua classe.

— Já pelo fato — não pôde deixar de dizer Gucky — de que ela é a única da sua classe. Mas, falando sério: O que vamos fazer agora? Afinal, não podemos ficar eternamente sentados aqui em cima do telhado e esperar.

Page 55: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

55

— O sol está descendo no horizonte. Logo estará escuro. Então veremos, caso os lemurenses ainda estiverem por aqui. Concordam? Então vocês se comunicam comigo, novamente.

— É uma possibilidade — disse Anderson. — Eu gostaria que já fosse noite, ou que os siganeses chegassem...

— Isso não é de... — quis saber Gucky, hesitante. — Sim — confirmou Anderson, muito sério. — É dele mesmo.

* * *

Lemy tivera muita esperança de que os lemurenses ainda partiriam antes do

escurecer, porque, afinal de contas, um único caça que havia pousado aqui por acaso não era tão importante assim. Mas os lemurenses nem pensavam em desistir de sua busca à tripulação da nave. Entretanto, os campos energéticos das naves grandes haviam sido desligados, mas, em contrapartida, haviam colocado imensos holofotes e guardas que imediatamente notariam qualquer aproximação. Infelizmente, entretanto, também qualquer afastamento das naves.

O pavilhão de controle, no qual Anderson e Gucky haviam sido vistos, estava banhado na luz de possantes holofotes. Blindados haviam tomado posição, e soldados estavam esquadrinhando cada centímetro do pavilhão, tentando encontrá-los. Eles não conseguiam entender como é que fora possível alguém ter desaparecido desse jeito sem deixar traços.

Lemy verificou, para sua satisfação, que a Helltiger estava colada no casco da nave lemurense, numa zona de sombra. Ninguém a descobriria, enquanto ele não se mexesse do lugar. Se, entretanto, ele resolvesse dar partida, imediatamente teria atrás de si a matilha toda.

Talvez à meia-noite, quando a atenção das sentinelas diminuía... — Nós temos um pequeno compartimento de carga, para equipamentos — disse

Gucky, que falava com Lemy, pelo intercomunicador, forjando planos. — A sua navezinha caberia muito bem ali. E um mosquito, eles jamais conseguirão alcançar.

— Nem a Helltiger —- protestou Lemy. — Mas se eu concordar com sua idéia, é apenas pelo fato de ser mais difícil perseguir um único objeto voador do que dois. A questão é apenas: Como é que eu chego até vocês, sem que esses daqui o notem? — Lemy riu. — Além do mais, o caça ainda está sob a cúpula energética.

Gucky silenciou, chateado. Por um instante ele até se esquecera de que eles estavam superencrencados. Anderson disse:

— Os lemurenses são seres humanos, portanto também raciocinam como gente. Eu posso facilmente colocar-me na situação deles, e se eu fosse o seu comandante, faria o seguinte: Mandava cercar o espaçoporto, e desligaria o campo energético. Afinal, não posso saber que estou tratando com um teleportador. Mas quero agarrar a tripulação do tal caça. Portanto eu desligo a retícula energética e espero. Logo que a tripulação surgir, para alcançar o caça, eu os agarro. Isso tem lógica?

— Não tem apenas lógica, soa quase como um conto da carochinha — achou Gucky, pouco entusiasmado. — Bonito demais para ser verdadeiro.

— Vamos esperar — aconselhou Anderson, imperturbável. — Se os lemurenses querem nos agarrar, não têm qualquer outra alternativa. Seu melhor engodo é sem dúvida desligar o campo energético, expondo o caça livremente.

Depois de refletir um pouco, Gucky disse: — Isso pode até estar certo. E o que é que nós vamos fazer se os lemurenses

realmente agirem como nós suspeitamos? Anderson hesitou. Ele sabia que Lemy também estava ouvindo o que ele dizia.

Page 56: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

56

— Nós teleportamos para dentro do caça e damos partida imediata. Esta será a primeira surpresa para os lemurenses. Em vôo rasante, e portanto, sem que eles tenham possibilidade de nos rastrear, disparamos para o lado contrário do planeta. Lá nos encontramos com Lemy, que aproveitará a confusão dos lemurenses, fugindo também. Uma localização é impossível para os lemurenses, se eles também não partirem instantaneamente para nos seguir. Nós embarcamos a Helltiger — e então partimos de verdade.

— Excelente! — concordou Gucky. — Sempre, naturalmente, que o senhor não se engane quanto a mentalidade dos lemurenses. Se eles não desligarem o campo energético, vamos ter que esperar até o fim dos tempos.

— Eu aviso vocês imediatamente — prometeu Lemy, que melhor podia observar o caça-mosquito, de onde estava.

— E eu — disse Gucky — vou dar, entrementes, uma olhada no outro lado do planeta, para achar um bom campo de pouso. Nós ficaremos em contato.

Ele não esperou por qualquer resposta, e já no mesmo instante desaparecera. Anderson ficara sozinho, em cima do telhado. — Se os lemurenses aparecerem agora, eu estou frito. — Afinal de contas, eu também ainda estou aqui — consolou-o Lemy, um tanto

inseguro.

* * *

Gucky rematerializou em plena luz do dia, caindo imediatamente para o fundo, como uma pedra. Felizmente ele calculara o salto em volta da metade do planeta, de tal modo que materializou a diversos quilômetros de altura, no espaço tridimensional. Com a ajuda da telecinética ele se aparou, pairando lentamente para baixo.

O que ele viu deixou-o algo espantado. Debaixo dele estava o oceano. Aquela era a única superfície de água, digna de menção,

do quarto planeta deste sol. Já do cosmo Gucky vira o mar, sem entretanto prestar atenção nos detalhes. Sabia que o mesmo era praticamente redondo, devendo ter um diâmetro de cerca de três mil quilômetros.

Exatamente no meio do mar havia uma ilha. Uma ilha artificial. Ele a via agora pela primeira vez. Era um quadrado de metal brilhante. Entre as suas

extremidades, ela devia ter uns quatro quilômetros de comprimento. Nas suas beiras erguiam-se prédios baixos, compridos, em cima dos quais, em espaços regulares, viam-se construções estranhas, que se erguiam para o céu. Somente quando Gucky desceu mais, pôde perceber que se tratava de antenas.

Uma gigantesca estação de radiocomunicações para o movimento interestelar? A curiosidade tomou conta de Gucky. Deixou-se cair simplesmente sobre a ilha,

freando a queda, de tal modo que pousou suavemente. Debaixo dos seus pés linha um piso liso de metal. O mesmo brilhava, parecendo tão

novo, como se somente minutos atrás tivesse sido limpo e polido. Aliás, tudo dava a impressão de muita limpeza e cuidado, mas não se via ninguém.

O piso de metal vibrava sensivelmente. No ar havia um zunir baixo mas regular, como de máquinas possantes.

Gucky disse: — Uma história muito estranha. Lemy, está me escutando? — Nitidamente. O que foi? — Eu estou numa ilha artificial, no oceano. Tudo metal

Page 57: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

57

— ele descreveu as particularidades em detalhe, pelo menos até onde podia reconhecê-las. — Pode, talvez, ser uma estação de radiocomunicação.

Lemy respondeu: — Pode ser, mas a julgar pela sua descrição, deve ser outra coisa. Eu teria que dar

uma olhada nisso. Talvez tenhamos encontrado a solução pela qual estamos procurando há tanto tempo.

— O que é que você quer dizer com isso? — Nada. Eu não gosto de suposições. Vou até aí pessoalmente. — Sem a Helltiger? — Com ela, naturalmente. Talvez eu consiga sumir daqui sem que me notem. Os

lemurenses desligaram alguns holofotes. A atenção diminuiu — mas a grade energética continua de pé.

— Talvez — interveio Anderson na conversa de rádio — eles também não sabem onde se encontra a chave correspondente. — O que seria muito esquisito — achou Gucky. — Talvez não — disse Lemy. — Importante é que eles não interceptem nossos

contatos de rádio, e determinem nossa posição. Mas eles dificilmente conhecerão nossa onda secreta. No meio do mar, disse você, Gucky? Isso eu encontro facilmente. Dentro de uma hora estarei aí, a seu lado.

Anderson disse, suspirando: — E eu fico parado, aqui em cima do telhado, tremendo de frio. — O senhor tem que ficar observando o espaçoporto, Nils. Logo que apagarem a

retícula energética, terá que nos avisar imediatamente. Gucky deixou o radiocomunicador ligado, enquanto se encaminhava lentamente para

os prédios que lhe ficavam mais próximos. Só com muito custo conseguia vencer a sensação crescente de uma insegurança estranha. Tudo aqui nesta ilha estava vazio e abandonado, e ainda assim ele não estava sozinho. Sentia que estava sendo observado. Em algum lugar, ficavam os olhos frios e atentos de um observador, que não o deixavam um só segundo.

A mão de Gucky escorregou involuntariamente para o cabo de sua arma energética. Mas não fazia sentido puxá-la. Não havia um só inimigo visível.

Todas as portas dos prédios baixos eram de metal. E, sem exceção, estavam fechadas. Os edifícios, sem janelas, não tinham mais de seis metros de altura, todos com tetos chatos. Entre eles havia apenas estreitas passagens que iam dar na beira da ilha artificial.

Gucky virou-se. Os prédios do outro lado da ilha ficavam a uma distância de uns quatro quilômetros, e eram quase irreconhecíveis. O ar, acima do piso de metal, cintilava.

Gucky olhou para baixo. O que estaria escondido debaixo desta superfície de metal sem juntas? Qual seria a profundidade da ilha, mar a dentro? Até o fundo? Ou a ilha flutuava?

— Por que você está tão quieto? — a voz de Lemy parecia baixa e vinda de muito longe, mas era suficientemente audível para arrancar Gucky dos seus pensamentos. — Estou a caminho. Os lemurenses, parece, não notaram nada.

— Apresse-se, Lemy. A coisa aqui não está me cheirando muito bem. — Dentro de quinze minutos estarei aí. Estou voando a uma altura de poucos metros

apenas, por isso não posso acelerar mais. — Ótimo. Nils, o que está acontecendo por aí? — Nada. Nosso caça continua debaixo do campo energético. Consigo vê-lo

nitidamente, daqui, pois ele brilha na escuridão. — Logo que ele apagar, avise-me. Nós, então, iremos buscá-lo.

Page 58: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

58

Gucky olhou para a porta que lhe ficava mais próxima, pensou por um segundo, e depois concentrou-se para o salto. Ele teleportou diretamente para dentro do recinto que ficava atrás da porta.

Quando conseguiu ver novamente, primeiramente não quis acreditar nos seus olhos. Estava de pé, numa galeria fechada por grades de metal, olhando para baixo, para um gigantesco pavilhão de máquinas, cheio até perder de vista com fileiras e mais fileiras de blocos metálicos e aparelhos. Cabos de distribuição de energia corriam ao longo das paredes, em grossos feixes prateados. No meio, havia escadas estreitas, que ligavam blocos e galerias entre si. Um zunido forte enchia todo o pavilhão, cujos limites apenas podiam ser reconhecidos para o alto. Para baixo, eles alcançavam mais longe do que Gucky era capaz de ver.

E então Gucky deu-se conta de que não estava sozinho. Por toda parte, nos diversos corredores e galerias, movimentavam-se figuras

brilhantes, que resplandeciam metalicamente, com a inequívoca lentidão de robôs. Alguns deles tinham mãos em forma de ferramentas, com as quais examinavam peças de máquinas e apertavam parafusos. Outros, por seu lado, controlavam gigantescas paredes cheias de escalas e registros, armazenando os dados nos cérebros positrônicos dos computadores.

Nenhum deles deu a menor atenção a Gucky. “Isto não pode ser uma estação de radiocomunicação”, pensou o rato-castor, inquieto.

“Isto é outra coisa. Mas continua trabalhando como se os lemurenses não tivessem abandonado o seu planeta. E ainda estará trabalhando daqui a mil anos.”

Um dos robôs veio na sua direção, olhou-o fixamente com as lentes cristalinas dos seus olhos parados, deu um passo para o lado — e passou por ele.

Gucky respirou, aliviado. Em voz baixa ele informou a Anderson e Lemy o que tinha encontrado. Lemy respondeu: — É quase o que eu tinha imaginado. A estação energética do planeta! Você sabe,

Gucky, o que é isso? Um reator nuclear planetário. A água do oceano serve para o resfriamento. O material radioativo está depositado no fundo do mar. Os pavilhões das máquinas produzem energia. Só isso.

Gucky deu sua risadinha. — Está querendo brincar comigo? Não vejo qualquer tipo de linhas de transmissão da

energia para o continente, e você não está querendo afirmar que já, há cinqüenta mil anos antes de Cristo...

— É claro que o afirmo — interrompeu-o Lemy, um pouco impaciente. — Eles conhecem a transmissão de energia sem fio. As antenas nos telhados, das quais você falou, irradiam a energia. No continente, esta é recebida por instalações especiais, e retransmitida. Eu acho que os lemurenses logo, logo, vão ter uma surpresa muito grande.

Gucky imaginava o que Lemy quis dizer, mas perguntou: — Como assim? Lemy riu. — Espertalhão! Agora é você que está querendo brincar comigo? Tenho certeza que

está pensando exatamente a mesma coisa que eu, ou não? De que servirão aos lemurenses todas as medidas de segurança e todas as suas aparelhagens e instalações automáticas, se, de repente, houver um curto-circuito? E é exatamente isso que vai acontecer. Um curto-circuito na única instalação de produção de energia deste mundo.

— Então dê um jeito para estar aqui o quanto antes. Os robôs já estão olhando para mim de um jeito meio esquisito.

— Vai ver que eles não conhecem nenhum rato-castor — achou Lemy, irônico.

Page 59: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

59

* * *

Gucky esperou a Helltiger, do lado de fora, na plataforma. Lemy pousou a poucos metros dos pés do rato-castor, descendo de sua nave miniatura. Ele tinha um quarto da altura de Gucky.

Eles se cumprimentaram cordialmente, pois apesar de suas constantes discussões ambos eram bons amigos. Gucky olhou a Helltiger.

— E esta é a sua nave? Parece mais um torpedo com aletas um tanto abstratas. — Esta é a camuflagem, Aliás, os lemurenses notaram alguma coisa, mas não sabem o

que vão fazer com o que notaram. Simplesmente dobraram a guarda em volta do caça-mosquito. Provavelmente eles estão achando que vocês aparecerão, para tomá-lo, a pé.

— Errar é lemurense — Gucky apontou para os prédios baixos. — Vou abrir uma das portas telecineticamente. Isso é muito simples, e os robôs pouco se importarão. Já treinei tudo, antes de você chegar.

Lemy anuiu e entrou novamente na Helltiger. Gucky hesitou. — A troco de que, isso agora? Eu não disse que nós vamos entrar no pavilhão? — E vamos mesmo. Mas eu fico na nave. Afinal, a porta é grande o suficiente, não é

mesmo? Gucky anuiu novamente, desta vez, entretanto, um tanto perplexo. E não modificou

sua expressão quando a porta — como movida por uma mão fantasma — abriu, e a Helltiger lentamente se ergueu, deslizando em baixa velocidade para dentro do pavilhão de máquinas.

— Espere aqui. Vou fazer um vôo de inspeção — disse Lemy. Gucky ficou parado na galeria, olhando a nave de três metros de comprimento pairar

por cima das compridas fileiras de geradores e blocos de máquinas, desaparecendo ao longe. Nem um só dos robôs preocupou-se com isso. Comportavam-se como se todos os dias aqui houvesse visitas de ratos-castores e naves anãs.

Entrementes, Lemy informava: — Caso claro. Conforme suspeitei. Produção de energia e transmissão sem fio para o

continente — inclusive para o nosso espaçoporto, no qual o caça de vocês está preso. Vamos dar um jeito para cortar-lhes o suco, e então o caso estará encerrado. Antes, entretanto, é preciso ir buscar Anderson, pois mais tarde não haverá mais tempo para isso. Ou então você salta logo, da cidade, com ele, para dentro do caça. Nós nos encontraremos novamente aqui na ilha. Os lemurenses, antes de mais nada, irão procurar-nos no espaço.

— Como é que você vai conseguir interromper o fornecimento de forças, inteiramente?

A voz de Lemy era de desprezo: — Prezado amigo, eu sou agente especial da USO — ou o serei daqui a mais de

cinqüenta mil anos. Com um pequeno reator atômico como este aqui, eu só preciso usar o meu dedo mindinho.

Gucky sorriu. Esse sujeito pequenininho era capaz de ser mais pretensioso do que ele próprio, e, descontando as diferenças, tinha uma boca grande ainda maior. Bem, mas o principal era que, atrás de toda essa gabolice, realmente havia tutano.

Depois de dez minutos, Lemy anunciou: — Já encontrei o painel de controles. Se eu jogar, lá para dentro, uma de minhas

microbombas supereficientes, tudo isto aqui ficará paralisado, pelo menos por uma meia hora. Depois disso, naturalmente, os robôs-mecânicos certamente terão consertado tudo. Eles são muito eficientes.

— Meia hora é suficiente. Eu teleporto até Anderson e espero até que a grade energética apague. Nós nos apoderamos do caça, e voltamos aqui, imediatamente. A

Page 60: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

60

Helltiger não consumirá mais de dois minutos para ser carregada. E então é só tocar — diretos para o centro!

— É assim que faremos — concordou Lemy, generosamente. — Você pode ter certeza de que, exatamente em cinco minutos, não haverá mais energia em todo o planeta. Até mais tarde!

Gucky lançou um último olhar para aquelas fileiras de máquinas, e para os robôs que seguiam os seus deveres, depois concentrou-se no telhado, em cima do qual Anderson esperava, e teleportou.

Anderson assustou-se, quando o rato-castor surgiu da escuridão. Mesmo sabendo que ele viria. Entretanto não demonstrou nada, o que, com os dons telepáticos de Gucky, de pouco lhe servia.

— O campo energético ainda está armado — informou ele ao rato-castor. — É por pouco tempo — Gucky aproximou-se de Anderson e olhou na direção do

espaçoporto. O campo energético brilhante podia ser visto nitidamente contra o pano de fundo das doze naves gigantes. No meio de tudo havia a luz, muito forte, dos holofotes, que eram alimentados das naves. — Dê-me a sua mão, Nils. Logo que o campo arriar, nós saltamos. E então eu gostaria de presenciar uma partida de emergência como jamais vi em minha vida.

Anderson apenas anuiu. Olhou para o espaçoporto, tão atentamente que chegou a ter lágrimas nos olhos. A tensão crescia, tornando-se quase insuportável. Será que Lemy realmente conseguiria interromper o fornecimento de energia, e, deste modo, desligar o campo de força que aprisionava a nave?

E se ele o conseguisse, os lemurenses não seriam mais rápidos, frustrando a sua fuga...?

Anderson não encontrou resposta às suas perguntas — pois não tinha mais tempo para pensar. Gucky sibilou:

— O campo energético — apagou. Nas casas, à beira do campo, as luzes estão todas apagadas. Pronto — chegou a hora!

Eles teleportaram e um segundo mais tarde estavam sentados na sala de comando do caça. Anderson escorregou imediatamente para diante dos controles e ligou os jatos. Uivando, o pequeno veículo espacial atirou-se para o alto, em diagonal, deixando para trás os doze gigantes lemurenses, no campo de pouso. A cidade morta ficou para trás ainda mais depressa, pois Anderson seguia, com aceleração crescente, a apenas poucas centenas de metros de altitude, em direção ao outro lado do planeta. Eles encontraram-se com o sol nascente e chegaram — visto relativamente — à ilha de aço no oceano, em plena tarde.

Desde a partida de emergência, não haviam passado mais de dez minutos. Lemy esperava-os na plataforma. — Ótimo trabalho — elogiou ele, saudando Anderson, que descera do caça com Gucky,

indo abrir uma escotilha. Todos juntos descarregaram algumas peças pouco importantes do equipamento, para fazer lugar para a Helltiger. Com a ajuda de campos antigravitacionais, logo carregaram a pequena neve, que foi firmemente presa a argolas no interior do caça — Não gosto nada disso — entrar no porto, assim, sem ser por minhas próprias forças — Lemy fez uma cara chateada. — Parece até que precisei de ajuda.

Gucky fez um gesto defensivo. — Nós sabemos que foi você quem nos ajudou, não é mesmo? E é isso que vamos

contar a Rhodan. Sem você nós continuaríamos ainda por muito tempo na armadilha. Somente estamos levando você conosco, porque um veículo deixa menos indícios para trás do que dois. E ninguém deve descobrir a Crest.

— Na realidade eu estou mais preocupado com os gêmeos e com Tako. Onde eles terão ficado? Será que conseguiram chegar a Kahalo?

Page 61: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

61

— São sempre os gêmeos que nos causam preocupações — disse Gucky, pegando Lemy no colo. Anderson estava sentado novamente atrás dos controles, e ativou o computador de navegação automática. — Primeiro Rhodan nos mandou procurá-los no presente. E agora ele vai nos mandar por aí novamente, porque eles estiveram no futuro e regressaram.

— Vamos decolar — anunciou Anderson. — E com aceleração máxima, para entrarmos no espaço linear antes dos lemurenses se darem conta do que aconteceu.

Segundos mais tarde, a ilha de aço mergulhou na superfície imensa do oceano, passou a ser um ponto diminuto — e desapareceu de vez.

O planeta arredondou-se numa esfera, mas nem agora viram-se perseguidores. A surpresa fora grande demais para os lemurenses. Sem qualquer motivo aparente, o suprimento de força falhara inteiramente e no mesmo segundo o caça prisioneiro havia partido — aparentemente sem tripulação.

Mais tarde ele apareceu nas telas de rastreamento das naves, mas então já era tarde demais. Enquanto ainda eram dadas ordens de partida, a pequena nave espacial desapareceu no espaço linear, e, deste modo, não mais podia ser rastreada.

O comandante dos lemurenses resolveu, completamente confuso com os acontecimentos, voltar para Kahalo, e confessar o insucesso de sua missão.

Entrementes, o caça-mosquito venceu um ano-luz após outro aproximando-se inexoravelmente do sol gigante vermelho Redpoint. Há muito tempo, Anderson ligara o automático, gozando de algumas horas de merecido sono. Lemy fora até o compartimento de carga, para não ficar muito longe de sua amada Helltiger. Para ele, o caça-mosquito era uma nave importante e grande. Gucky estava acocorado na sua poltrona, tirando uma soneca.

Assim passou-se o tempo, e quando o caça finalmente regressou ao universo normal e Redpoint se transformara num chamejante sol gigante, Anderson, Gucky e Lemy estavam descansados e bem despertos.

— Eu poderia sair logo voando novamente — gabou-se Gucky. — Para Kahalo, para procurar os gêmeos.

— Diga isso a Rhodan — aconselhou Anderson. — De qualquer maneira alguém terá que voltar a Kahalo.

Gucky sorriu amarelo. — Nesse caso acho melhor ficar de boca fechada — decidiu ele. Primeiramente eles descobriram o gigantesco estaleiro MA-genial do engenheiro

Malok. Depois surgiu a Crest. Anderson deu o sinal de reconhecimento e diminuiu a velocidade. A manobra de recepção da nave, na eclusa de pouso, começou.

Gucky não quis saber de perder tempo com manobras. Agarrou o surpreso Lemy Danger, enfiou-o sem mais nem menos no bolso da blusa do seu traje e teleportou para dentro da Crest.

Dois saltos suplementares o levaram à sala de comando, onde Perry Rhodan estava sentado, ao lado do primeiro piloto, diante do gigantesco painel de comando, observando as telas de imagem.

Gucky pigarreou, e quando Rhodan virou-se, surpreso, fez um esforço para assumir a posição de sentido. Era fácil ver o quanto lhe era difícil ficar nessa posição.

— Oficial especial Gucky, reportando-se de volta da missão. Rhodan sorriu, mas logo o seu rosto ficou estarrecido. Ele vira o movimento no bolso

largo de Gucky. E enquanto ainda olhava, apareceu na borda superior do bolso um rosto miúdo, que no momento parecia um tanto perturbado. Uma mão também minúscula saiu do bolso, colocando-se, em continência, ao lado direito da testa.

Page 62: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

62

— Sir — fez uma vozinha clara — informo, se me permite, sir, que enganei o tempo. Posso perguntar como está passando, sir?

Rhodan reconhecera Lemy. A surpresa deu lugar a um alívio indescritível. Lemy Danger não fora catapultado com eles ao passado. E se agora estava aqui, ele viera por livre e espontânea vontade. Os gêmeos haviam encontrado o caminho ao futuro — na realidade, ao presente.

— Lemy Danger! — Rhodan aproximou-se de Gucky e tirou o pequeno general do bolso do rato-castor. — Que prazer em vê-lo! Aqui e agora. Foi Gucky e Anderson que acharam o senhor?

— Na realidade — disse Gucky — foi ele quem nos achou. Mas essa é uma longa história. Que eu vou contar...

— Mais tarde, Gucky — Rhodan voltou-se para Lemy. — O senhor veio sozinho? O que aconteceu com Tronar e Rakal Woolver?

Lemy ergueu os ombros. Esperneou e Rhodan colocou-o na mesa estreita diante dos controles.

— Tronar e Rakal me acompanharam, também Tako Kakuta estava conosco. Nós viemos numa espaçonave do tipo girino. Quando materializamos, fomos atacados e derrubados. Eu consegui escapar com a Helltiger. Onde ficaram os gêmeos e Tako, eu não sei. A intenção deles era de liquidar o agente do tempo Frasbur.

Rhodan anuiu. — Acho que assim tudo está bem claro. Vamos ter que mandar alguém para Kahalo.

Nossos três amigos estão correndo um grande perigo. — Sir — perguntou Lemy, estufando o peito — posso permitir-me a pergunta: O

senhor pensou em mim, para esta missão? Afinal de contas, tenho uma obrigação moral. Também estou convencido que meu amigo Gucky certamente se apresentará como voluntário, quando se trata de ajudar amigos que estão em perigo...

— Naturalmente — disse Gucky, sem pestanejar. — Eu ia justamente fazer essa sugestão.

— Ótimo — disse Rhodan. — Falaremos mais tarde sobre isso. Antes de mais nada, eu gostaria de receber um relatório bem detalhado. E isso do senhor, Lemy. Um relatório do distante futuro — é assim que se poderia formular isso também.

— Imediatamente, sir. — Em meu camarote, Lemy. Certamente o senhor estará precisando comer e beber

alguma coisa. Além disso, eu gostaria que Anderson, Gucky e os primeiros oficiais da Crest estivessem presentes. Venha, Lemy, eu o carrego.

O siganês subiu na palma da mão estendida de Rhodan e segurou-se no braço. Gucky saiu bamboleando atrás deles, quando deixaram a sala de comando.

— E a meu respeito ele não diz coisa alguma — murmurou ele, descontente. — Como se eu também não merecesse comer e beber alguma coisa! Mas a vida é assim mesmo. Quanto menor é um ser vivente, mais é mimado. Quando, afinal de contas, mais uma vez tudo dependia de mim. Sem mim, como teleportador, todos eles estariam perdidos, e vem esse anãozinho e...

Dez metros mais adiante, Rhodan parou de repente, voltando-se. — Você disse alguma coisa, baixinho? Gucky continuou no seu andar gingado, até chegar perto de Rhodan. — Quem? Eu? Dizer o quê? Não. Eu apenas estava pensando alto. Só coisas sem

importância. Vamos andando. Eu estou com sede. O elevador e as esteiras rolantes os deixaram no destino. No camarote de Rhodan, os amigos já estavam esperando para ouvir o relato de Lemy.

Page 63: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

63

O relato, que vinha do futuro, e que quatro homens audaciosos, com risco da própria vida, haviam trazido para mais de cinqüenta mil anos ao passado — para salvar o presente.

Page 64: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

64

2. Caçada ao agente do tempo

1 Aproximadamente há cinqüenta mil anos antes do nascimento de Cristo, houve na

Terra uma civilização, ainda hoje difícil de ser imaginada. Os homens, naquela época, se chamavam lemurenses, conheciam as viagens espaciais e mantinham relações comerciais com muitos sistemas solares da Via Láctea. Até que, certo dia, surgiram os halutenses, conquistando a galáxia.

Acabaram descobrindo os lemurenses, e então começou uma luta terrível pela sobrevivência.

O inimigo era mais forte. Ele afugentou os seres humanos do seu planeta natal, perseguindo-os através do Universo.

Do futuro veio a aparente salvação. Era misteriosa, mas ainda assim, era melhor do que a certeza do desaparecimento total. Os lemurenses ousaram o salto através do grande abismo, até a Nebulosa de Andrômeda. Mas foi um salto através do tempo.

Perry Rhodan fez o mesmo salto com a Crest III, só que não para a frente e sim para trás. A máquina planetária do tempo, Vario, catapultou a Crest para mais de cinqüenta e dois mil anos ao passado — bem no meio da primeira guerra galáctica, travada entre lemurenses e halutenses.

Deste modo os senhores da galáxia, do presente relativo, tinham conseguido livrar-se do seu maior inimigo — Perry Rhodan. Não havia mais uma ligação entre o passado e o presente, que para Rhodan transformou-se num distante futuro.

Mas os senhores da galáxia estavam enganados. Os cavalgadores de ondas Rakal e Tronar Woolver haviam conseguido regressar ao

presente, onde entraram em contato com Reginald Bell, dando-lhe ciência do que se passava. Deste modo, os terranos estavam avisados e prevenidos. Com a ajuda de um truque, os gêmeos Rakal e Tronar, o teleportador Tako Kakuta e o diminuto siganês Lemy Danger, deixaram-se cair, voluntariamente, no alçapão do tempo, sendo precipitados ao passado. Rhodan tinha que ser avisado.

E foi então que houve a pane.

* * *

Quando a nave-robô R-10 precipitava-se ao passado, não se via, logo a princípio, nenhuma modificação nas telas de imagem. Logo depois, entretanto, as sombras começaram a deslizar cada vez mais depressa, para, repentinamente, passarem outra vez devagar e tomar forma. As imagens ficaram mais nítidas.

— Agora não vai demorar — disse Rakal, relaxando. — A qualquer momento o transmissor,de situação de Vario deve aparecer.

Não precisaram esperar muito tempo. Por cima de Vario — cinqüenta e dois mil anos no passado — apareceu no céu um arco de um vermelho resplandecente, com um diâmetro de um milhão de quilômetros. O arco do transmissor. A R-10 no mesmo instante foi colhida por uma formidável força impulsionadora, dirigindo-se, absolutamente sem controle, na direção do arco. E a nave mergulhou.

Page 65: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

65

Mal sentiram o choque, quando a R-10 fez um salto de dezoito anos-luz, rematerializando no centro da Nebulosa de Andrômeda. Bem no meio do hexágono solar do transmissor intergaláctico.

Eram seis sóis gigantes azuis, que forneciam a energia, que era necessária para a transmissão de matéria, por uma distância de um milhão e meio de anos-luz.

Sem uma pausa a R-10 corria na direção do transmissor invisível, que formava no centro de gravidade dos seis sóis. Desta vez, sentiram um leve choque, quando desmaterializaram — para logo em seguida se rematerializarem. Eles estavam na familiar Via Láctea. Exatamente a cinqüenta mil anos antes de Cristo. Entretanto, a rematerialização durou apenas segundos, depois o hexágono galáctico irradiou-os novamente, desta vez dirigidos ao planeta de retificação Kahalo.

Quando as telas de imagem começaram a funcionar novamente, Rakal ergueu-se, de um salto, pois deitara-se para a transição.

Num segundo estava atrás dos controles. Ele reconhecera a frota de interceptação lemurense, que se precipitava, com seus

canhões, reluzentes, sobre o inimigo que já era esperado. O campo hiperdefensivo energético verde da R-10 impediu que fossem

imediatamente derrubados. E começaram a revidar o fogo dos lemurenses. A frota do almirante lemurense Hakhat consistia, em sua maior parte, de espaçonaves

de combate esféricas, com um diâmetro máximo de mil e oitocentos metros — naves, portanto, como mais tarde possuíam os arcônidas. O agente do tempo Frasbur comunicara aos lemurenses que algumas naves daquela raça estranha que se opunha à emigração dos lemurenses para a Nebulosa de Andrômeda haviam conseguido penetrar no transmissor. E que deviam materializar, a qualquer momento, sobre Kahalo.

A ordem era de exterminá-las. O almirante Hakhat deu as suas ordens. De todos os lados apareceram as

esquadrilhas, tomando posição. A linha defensiva escalonara-se até uma profundidade de dez anos-luz.

Frasbur não indicara qualquer número. Poderiam ser cinco, mas também poderiam ser algumas milhares de naves, as que se esperavam.

A nave esférica com um diâmetro de sessenta metros — a R-10 — conseguiu escapar do primeiro ataque. Isso não era de admirar, pois Rakal Woolver ainda estava nos controles.

O mutante já esperava pelo ataque. Ele acelerou loucamente e rompeu as linhas lemurenses com a ajuda do seu campo defensivo hiperenergético ligado. Controlados pelo computador de bordo, os canhões atiravam ininterruptamente, em cada objeto que se aproximasse.

Era intenção de Rakal somente desligar o controle automático quando o caminho para a superfície do planeta Kahalo estivesse assegurado.

Tronar estava sentado ao lado dele, na sala de comando. — Você está sendo negligente, Rakal. Ligue logo o hipertransmissor, para que

possamos chegar até lá embaixo, na onda de rádio. Tako pode teleportar. Lemy então pode tentar escapar com a Helltiger.

Mais uma vez eles se aproximaram de Kahalo. O campo hiperenergético de proteção desviava, brincando, todos os tiros energéticos, mas os mostradores do painel de controle de repente pareciam ter enlouquecido. Os ponteiros giravam, como ensandecidos, de um lado para o outro.

— O campo energético! — gritou Tronar. — Ele não consegue mais suportar a carga por muito tempo! Vai arriar!

Page 66: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

66

Rakal hesitou. Eles estavam caindo para a superfície de Kahalo. — Você acha? — ele ia apertar um botão para avisar Lemy pelo intercomunicador, e

dizer-lhe que preparasse o seu cruzador-miniatura para decolar, quando um golpe violento sacudiu a R-10. A nave chegou a sair de sua rota, sendo logo rodeada por dez pesadas naves de combate lemurenses.

O campo defensivo verde arriou definitivamente. Na protuberância equatorial explodiram algumas turbinas.

— Saltar! — gritou Tronar, pegando o irmão pela mão. — Um feixe energético — não importa o que seja! Caso contrário, estamos perdidos!

Para Tako foi mais simples. Ele não precisava de meios auxiliares. No mesmo segundo ele teleportou — no

segundo em que a R-10 detonou definitivamente, atingida por uma bomba-robô. E então — todos tinham sumido, sem deixar traços — Rakal, Tronar e Tako. A Helltiger foi arrancada da escotilha e catapultada ao espaço. Quando Lemy voltou novamente a si, estava à deriva, pairando sem ser notado entre

as gigantescas naves lemurenses em direção às estrelas. Foi sorte sua terem camuflado a Helltiger para parecer-se com um destroço à deriva.

Só assim ele conseguiu chegar à base de Redpoint e à Crest, depois de algumas aventuras imprevistas, para fazer o seu relatório a Perry Rhodan.

Tronar, Rakal e Tako, entretanto, continuavam desaparecidos. Conforme já foi mencionado, para Tako a coisa foi muito fácil. Quando a nave explodiu

ele teleportou cegamente. Como estava usando o traje de combate especial, não corria qualquer risco. Materializou em pleno espaço, a muitos segundos-luz de distância das naves dos lemurenses.

Abaixo dele, pairava Kahalo, o planeta de ajustagem e retificação. Debaixo das pirâmides ficava o Pavilhão Memorial, no qual se mantinha escondido Frasbur, o agente do tempo.

Talvez fosse errado saltar logo até lá. O agente do tempo era perigoso e mantinha contato com os senhores da galáxia. Havia, meios de comunicação capazes de transpor milhões de anos-luz e cinqüenta mil anos-tempo.

Tako deixou-se, simplesmente, cair. A gravidade do planeta o atraía, e o teleportador caía cada vez mais depressa.

Ele era um pontinho diminuto no infinito e dificilmente poderia ser rastreado. Tinha portanto alguns minutos para preocupar-se com os seus amigos. Os gêmeos certamente também deviam ter encontrado um meio de pôr-se em segurança, mas o que teria acontecido com Lemy?

O siganês — de uma altura somente pouco acima de vinte centímetros, mas com uma figura perfeitamente humana — estava sentado atrás dos controles de sua nave de apenas três metros de comprimento — se é que ela ainda existia. Ela não poderia simplesmente pousar em Kahalo, e aliás não deveria fazê-lo. Tomara que ele pudesse ter escapado dos lemurenses. Em caso positivo, ele já devia estar a caminho de Crest.

E Rhodan logo enviaria ajuda. Pelo canto dos olhos, Tako percebeu um relampejar. Diversas naves dos lemurenses,

numa formação muito apertada, vinham diretamente na sua direção, mas logo tomaram uma curva para entrar em órbita de pouso em torno do planeta. Tako continuou a cair.

O problema era reencontrar Rakal e Tronar. Os gêmeos deviam ter usado o primeiro impulso energético que se lhes apresentara, para pôr-se em segurança. Talvez uma onda de rádio, ou talvez até mesmo o feixe de um canhão energético. Havia sido combinado que

Page 67: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

67

todos se encontrariam em Kahalo, talvez em alguma parte do Pavilhão Memorial, que oferecia muitos esconderijos, e naturalmente não consistia de apenas um recinto.

Quando Tako alcançou as camadas superiores da atmosfera, ligou o seu campo energético individual, para proteger-se do calor do atrito. Continuava deixando-se cair, enquanto observava atentamente tudo que havia abaixo dele.

Podia reconhecer claramente as seis pirâmides. Elas forneciam o campo de materialização. Neste materializavam-se todos os objetos que eram transmitidos para cá do hexágono solar. E vice-versa.

E por baixo das pirâmides, ficava o Pavilhão Memorial. No espaçoporto havia uma grande movimentação. Veículos de transporte pesados rolavam pelas esteiras, fornecendo material de reabastecimento para as naves. Um pouco mais longe encontravam-se as esquadrilhas de combate dos lemurenses, esperando pelas ordens para entrar em ação. Era claramente visível que Hakhat estava firmemente decidido a defender Kahalo contra qualquer ataque. Se Kahalo se perdesse, os lemurenses teriam cortada a sua última possibilidade de uma retirada.

No último instante, Tako teleportou para as montanhas que ficavam a uma distância de cerca de vinte quilômetros das pirâmides, rematerializando num dos seus cumes. Viu a cidade, na planície diante de si, e reconheceu os reflexos brilhantes de milhares de naves espaciais no campo de pouso. No ar, passavam esquadrilhas, mas seus aparelhos de rastreamento não registravam Tako, pois ele já desligara o seu campo energético há bastante tempo. A irradiação revelaria sua presença. Mas ele também correria esse risco se ligasse o aparelho de vôo individual, assim como o seu defletor, que o tomava invisível.

Aquela vista de Kahalo, em cinqüenta mil anos, dificilmente teria se modificado. Kahalo sempre ficaria sendo o centro da galáxia, pois ele era o começo da estrada para Andrômeda.

Uma esquadrilha de pequenos caças passou voando, a baixa altitude, por cima da montanha. Tako chegou a abaixar-se instintivamente, apesar de saber perfeitamente que não podia ser visto. Eles desapareceram na direção da cidade.

Tako ligou o seu rádio-capacete, tentando conseguir algum som do aparelho de comunicação. Mas não ouviu nada. O alcance do pequeno aparelho era limitado, mas se os gêmeos estavam em algum lugar no planeta ele os atingiria. Naturalmente era possível que, na sua situação momentânea, ainda não podiam usar qualquer tipo de radiocomunicação. Havia aparelhos muito sensíveis, que registravam e localizavam imediatamente a mais leve irradiação.

Tako desligou novamente. Não lhe restava outra alternativa que agir sozinho, e deixar o encontro com Rakal e Tronar mais ou menos ao acaso.

Os lemurenses eram seres humanos como ele. Se ele vestisse o uniforme deles, poderia movimentar-se no seu meio livremente, sem chamar atenção, especialmente porque a cor de sua pele fora adaptada a dos lemurenses. No seu traje especial, entretanto, isso era impossível. Logo notariam nele o “estranho”, bastando vê-lo. Talvez fosse vantajoso simplesmente esperar aqui, na montanha, e pôr o telecomunicador em recepção. Isso não significava qualquer risco. Além disso, ele poderia entrar em contato imediato com os gêmeos, tão logo eles informassem sua localização.

Tako examinou melhor os seus arredores, encontrando num desfiladeiro íngreme que dava para os lados da cidade, uma pequena gruta. A mesma não era exatamente espaçosa, entretanto oferecia proteção contra visibilidade e também do alto. Ele rolou uma pedra para o meio, sentando-se na mesma. No momento sentia-se relativamente seguro, mas a preocupação com o destino dos gêmeos, e sobretudo de Lemy, não permitia que ele descansasse. Mas, agora, ele nada podia fazer. Em seus bolsos de provisões ele encontrou concentrados e tabletes de água, matando mais ou menos a sua fome. Depois rolou a pedra

Page 68: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

68

mais para junto da parede rochosa, acomodando-se para dormir. Como estava ficando frio, ligou o aquecimento do seu traje. Colocou o receptor de telecomunicador em volume máximo. Se um dos gêmeos transmitisse no comprimento de onda combinado, ele certamente não deixaria de ouvi-lo.

* * *

Os gêmeos eram mutantes. Eram chamados cavalga-dores de ondas pelo fato de

terem o dom de poderem viajar em qualquer fluxo energético imaginável. Eles desmaterializavam à vontade e usavam este fluxo energético — luz, ondas de rádio, correntes elétricas ou os tiros energéticos de armas conversoras — como meios de locomoção.

Quando a R-10 foi fortemente atingida, Tronar agarrou a mão do irmão. — Saltar! Um feixe energético — não importa o que seja! Caso contrário, estaremos

perdidos! E assim, os gêmeos incorporaram-se no feixe energético de um tiro de canhão

conversor, que acabou definitivamente com a R-10, destroçando-a. Sem qualquer perda de tempo, e em condições desmaterializadas eles acabaram no ponto de saída do raio energético — materializando-se novamente.

Infelizmente, eles não tinham qualquer influência nesse processo. Quisessem ou não, transformavam-se novamente em seres humanos.

E se viram diante de seres humanos. Os olhos esbugalhados, horrorizados, dos artilheiros na cúpula de artilharia da nave

de combate demonstravam como devia ser assustadora a visão dos gêmeos, que tão de repente surgiam do nada. Os lemurenses ficaram como que paralisados. Tronar e Rakal aproveitaram a ocasião para sair correndo da torre. O tipo de construção da nave de combate — pois não havia dúvida que era uma delas — tinha muita semelhança com o das terranas. Por isso eles não tiveram muita dificuldade de chegar à central de radiocomunicação.

O caminho até lá, entretanto, não foi tão fácil assim. Na nave havia alerta de combate. Por toda a parte, nos corredores, tropas e oficiais

passavam apressadamente, de um lado para outro. Eles praticamente nem davam atenção aos gêmeos, cujos trajes especiais eram estranhos, mas numa nave tão grande, não chamavam muita atenção. Poderia tratar-se de algum tipo de traje novo, talvez usado para reparos no casco externo da nave.

Devido aos capacetes fechados, Tronar e Rakal não podiam comunicar-se entre si, sem ligar o radiocomunicador.

Mas isso, neste lugar, significava um risco muito grande. Portanto eles se entendiam somente através de gestos manuais.

Pularam para dentro do elevador antigravitacional, sendo levados para o alto. Segundos mais tarde, encontravam-se no corredor principal, que, pouco adiante, terminava diante de uma porta.

Era a porta para a sala de radiocomunicações. A questão era apenas saber se a nave, naquele momento, estava mantendo uma

irradiação para Kahalo. Por alguns segundos Tronar hesitou, depois aproximou-se da porta. A mesma

deslizou automaticamente para o lado. Os gêmeos entraram. Toda a instalação, à primeira vista, não se diferenciava daquelas existentes em naves

terranas. A grande tela de imagem do hipercomunicador estava ligada. Mostrava o rosto de

Page 69: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

69

um almirante lemurense. Numa cadeira diante da mesma, via-se o Almirante Hakhat, comandante da Frota de Interceptação de Kahalo.

Atrás de Tronar e Rakal a porta fechou-se, silenciosamente. Ninguém deu-lhes atenção, mas ambos já estavam, por assim dizer, em segurança. A

desmaterialização e incorporação aos hiperimpulsos duravam apenas frações de segundos. Os gêmeos entendiam o idioma dos lemurenses. Eram praticamente idênticos com o

tefrodense. — ...outras naves dificilmente deverão aparecer — dizia o almirante na tela de

imagem. — Mande recolher, na medida do possível, as suas unidades, Hakhat. Deixe apenas unidades de vigilância sobre Kahalo, em órbita. O senhor poderá manter a frota defensiva, em estado de alerta, pousada no próprio planeta Kahalo. E isso é tudo.

— Entendido, sir — respondeu Hakhat. Houve um momento de silêncio, depois o almirante estranho disse: — Quem são esses aí? — Onde, sir? — Os dois homens, que acabaram de entrar na sala. Eles estão usando novos

uniformes experimentais? Hakhat virou-se. Ele já vira, uma vez, os trajes de combate especiais terranos. E precisou de apenas um

segundo para recuperar-se do seu espanto. Sabia que os terranos tinham mutantes, entre os quais havia também teleportadores.

E reagiu com a velocidade de um raio — mas, assim mesmo — tarde demais. — São os estranhos! Abram fogo! Matem-nos! Ele mesmo arrancou sua arma energética do coldre, apontando-a para Tronar, que

era quem lhe estava mais perto. Os dois cavalgadores de ondas desmaterializaram. Um reflexo de interferência passou rapidamente pela grande tela de imagem, depois via-se ainda apenas o rosto admirado do almirante na mesma. Hakhat virou-se lentamente, com sua arma energética ainda na mão. Os rádio-operadores presentes nem haviam se mexido.

— Sinto muito, almirante. Tudo foi muito rápido. Devem ter sido teleportadores. O que quer dizer que sobreviveram à derrubada de sua nave.

— Dê o alerta para Kahalo — ordenou o almirante. Pela tela de imagem, via-se que, de repente, ele se virava. Quando o seu rosto apareceu outra vez, estava muito pálido. — Os dois estranhos foram avistados em minha seda de radiocomunicações. O que quer dizer que chegaram a Kahalo. Minhas ordens ainda são válidas.

— Mate-os! — gritou Hakhat, agitado. O Almirante sacudiu a cabeça. — Não é possível matar-se quem já não está mais aqui. Tronar e Rakal haviam

conseguido chegar em Kahalo, usando o feixe de rádio do hipercomunicador, rematerializando na sala de rádio do planeta. Mas somente por poucos segundos, depois integraram-se novamente na corrente do impulso energético, conseguindo chegar numa outra estação de rádio, a várias centenas de quilômetros de distância da capital. Para não continuarem dependentes do acaso, eles dominaram os dois lemurenses que operavam a estação. Só depois disso abriram seus capacetes.

— Chegamos — disse Rakal, aliviado. — Pergunto-me apenas por quanto tempo vamos poder ficar por aqui.

— Não por muito tempo, Rakal — Tronar limpou a testa suada. — É claro que vamos ter que sumir daqui. Gostaria de saber onde Tako se meteu.

— Para ele as coisas são mais fáceis que para nós, pois não depende de ondas energéticas. Onde será que nós estamos, aqui?

Page 70: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

70

— Não tenho a menor idéia. Naturalmente agora podemos fazer uso da estação, e escolher para onde ir. Talvez exista uma ligação direta de rádio com Frasbur, no Pavilhão Memorial. Neste caso, logo teríamos chegado ao nosso destino.

— E depois? Para onde o levaríamos? Rhodan o quer vivo. Um agente do tempo morto não serve para nada. Só Frasbur é quem pode nos mostrar o caminho para o futuro.

Tronar anuiu, mas não respondeu. Ficou olhando os dois lemurenses inconscientes estendidos no chão. Rakal ocupou-se dos aparelhos de rádio. Tentou uma conexão com o Pavilhão Memorial, mas não recebeu resposta.

De repente, Tronar disse: — O telecomunicador! Por que não tentamos estabelecer uma ligação com Tako?

Depois aproveitamos a onda de rádio para cavalgar até ele. A mesma é suficientemente forte.

— Boa idéia. Mas se nós ficarmos irradiando por muito tempo, logo eles nos pegarão. — É claro que eles já sabem, agora mesmo, que aqui nesta estação alguma coisa não

está em ordem. Ambos ligaram seus aparelhos, irradiando no mesmo comprimento de onda. Levou

apenas dez segundos para obterem uma resposta. — Puxa, vocês estão chegando aqui alto e claro! E isso, que eu estava dormindo firme.

Onde é que estão metidos? — Não faço idéia! E o senhor? — Nas montanhas, a cerca de vinte quilômetros da cidade. Achei uma gruta. Um

pouco fria, mas, de resto, bem confortável. A partir daqui vamos poder operar com muita facilidade acho eu.

— Ótimo, nós estaremos aí num instantinho. Mas, por favor, não vá desligar! — Deus me livre! Nesse caso vocês dois ficam dependurados no ar.

* * *

Tako esperou, depois ouviu, repentinamente, um barulho logo atrás dele. Virou-se e

viu Rakal e Tronar. Praticamente os dois haviam caído ao chão, saindo diretamente de dentro de sua aparelhagem de rádio.

— Felizmente reunidos outra vez — disse Tako. — Só falta Lemy — acrescentou ele, preocupado.

— Lemy certamente já está a caminho da Crest — acalmou-o Rakal. — Acho que agora já podemos pensar em executar nossa missão. A mesma consiste em pegar o agente do tempo Frasbur, e, em caso de necessidade, exterminá-lo. Mas somente em caso de necessidade! — enfatizou ele.

— Ótimo. E quando o tivermos agarrado — perguntou Tako — nós o trazemos aqui para a gruta, e ficamos esperando pelo que possa acontecer, daí para a frente?

— Não temos outra escolha. Certamente vamos conseguir enviar um curto hiperimpulso para Rhodan, para que ele fique sabendo o que se passa — Rakal ergueu a mão, como se quisesse acalmar o mutante. — Eu, em seu lugar, não me preocuparia com o que pode acontecer depois.

— Ainda assim, eu me pergunto se devíamos saltar agora para dentro do Pavilhão Memorial. Seria muito simples, pois bastaria que eu pegasse os dois pelas mãos. Em caso de necessidade, também podemos desaparecer imediatamente outra vez, caso algum perigo nos ameace. Mas não creio que haja guardas em todos os recintos. O agente do tempo tem poucas pessoas em quem confia. Além disso, dificilmente calcula que nós iremos voltar tão depressa.

Page 71: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

71

— Espere meia hora — sugeriu Tronar. — Estou com fome. Faz cinqüenta e dois mil anos que não como nada.

Eles riram e desembrulharam suas provisões. Enquanto isso Tako ficou de guarda, na entrada da gruta. Olhou para baixo, para a extensa planície, que se estendia até a cidade. Continuamente pousavam naves, mas a vigilância aérea, mesmo assim, não arrefeceu. Sem uma pausa, pequenos aviões de reconhecimento passavam por cima da cidade e seus arredores. Ele quase teve a impressão de que na última meia hora a atividade de vigilância fora bastante reforçada — provavelmente como conseqüência do alarme que os gêmeos haviam acionado.

O olhar Tako ergueu-se para as seis pirâmides. Por baixo delas ficava o Pavilhão Memorial, muito bem guardado e escondido. Penetrar no mesmo era difícil, caso não se fosse um teleportador. E como o agente do tempo sabia da existência de um teleportador, naturalmente era muito possível que ainda maiores medidas de segurança houvessem sido tomadas, por ordem sua.

Gucky devia estar por aqui, pensou Tako, com saudades. Mas Gucky, muito provavelmente, devia estar na Crest. — Estamos prontos — disse Tronar, finalmente. Lá fora já começava a escurecer. —

Talvez seja melhor esperarmos até ficar completamente escuro. — Debaixo da superfície, a luz do dia nada significa — Tako voltou para o interior da

gruta. — Acho que não devíamos perder tempo. Nenhum de nós sabe quando Lemy alcançará a Crest. Pode ser em poucas horas, mas também é possível que leve dias. E nenhum de nós sabe quando Rhodan vai nos mandar ajuda.

— O mais depressa possível, disso não tenho a menor dúvida — disse Rakal, convicto. — Mas nunca antes de dez horas. A base de Redpoint fica a uma distância de dois mil e seiscentos anos luz daqui.

Eles haviam recolocado o que sobrara de suas provisões nos seus devidos lugares. Os capacetes estavam abertos.

— Mantenham suas armas energéticas prontas para atirar — aconselhou Tako. — Eu tenho que segurar vocês dois pelas mãos, e logo ao rematerializarmos, não tenho como me defender de imediato. Vocês, entretanto, ficam com uma das suas mãos livres.

Tronar estava à esquerda do japonês. Pegou a mão esquerda dele, e na sua esquerda segurou firme sua arma energética. Com Rakal, aconteceu exatamente o contrário. Depois eles esperaram.

Tako concentrou-se nas pirâmides que ficavam a vinte quilômetros de distância, antes do seu olhar dirigir-se para o lugar em que devia estar o Pavilhão Memorial. Não havia nenhum perigo, mesmo se ele calculasse mal, materializando dentro das rochas, simplesmente seria jogado de volta com seus dois camaradas, até o ponto de partida da teleportação. Um pouco doloroso, mas nada perigoso.

E então ele saltou. Tiveram sorte. Rematerializaram bem debaixo do teto de um largo pavilhão, à meia-

luz, caindo cerca de trinta metros, lá do alto. Tronar soltou-se, dando um salto mortal. Imediatamente, entretanto, estava de pé novamente, olhando rapidamente para todos os lados. Somente conseguiu ver o que os outros também já haviam captado.

O pavilhão estava vazio. Mas era mesmo aquele pavilhão que lhes era conhecido como o Pavilhão Memorial. Todos os aparelhos, entretanto, haviam sido desmontados e retirados dali. Nada

ficara, além das paredes nuas, e alguns pontos de iluminação escondidos. Os traços da súbita retirada dali não haviam sido removidos. No chão viam-se peças de reposição quebradas, em meio a blocos de cimento arrebentados. Uma poltrona meio quebrada estava a um canto.

Page 72: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

72

— Chegamos tarde demais — constatou Tako, desapontado. — Frasbur fugiu. Como é que vamos encontrá-lo agora?

Tronar ficou caminhando pelo pavilhão, e encontrou a porta. A mesma deixou-se abrir. Atrás dela ficava outro recinto, também vazio e abandonado.

Todo o Pavilhão Memorial existia ainda, apenas como um fragmento. Todo o equipamento e as importantes possibilidades de comunicação de rádio com Andrômeda e para o futuro, não mais se encontravam ali.

— Ele deve ter deixado alguns indícios para trás — achou Rakal. Tako estava parado, de pé, bem no centro do pavilhão principal. — Para isso só há uma explicação — disse ele. — Com a morte de Regnal-Orton, os

senhores da galáxia ficaram prevenidos. Eles devem ter reconhecido, de repente, que tinham nos subestimado. E tomaram suas providências correspondentes. Afinal de contas, Frasbur teve tempo suficiente para pôr-se em segurança. Não creio que ele tenha abandonado Kahalo, para isso este planeta é importante demais. Simplesmente deve estar metido num outro esconderijo, de onde pode continuar operando normalmente. E nós vamos ter que encontrá-lo.

Na realidade fora assim, mas nem Tako podia imaginar toda a verdade. Ninguém podia imaginá-la, nem mesmo Perry Rhodan. A verdade sobre os senhores da galáxia era tão Inconcebível e fantástica, que só com raciocínio lógico não se podia chegar a ela.

Frasbur estava sentado no seu esconderijo, esperando pelo regresso dos sinistros estranhos, que vinham do futuro.

Antes, entretanto, ele preparara a sua armadilha, no Pavilhão Memorial. E os três mutantes haviam caído nela, sem de nada suspeitarem.

Page 73: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

73

2 O relato de Lemy Danger estava chegando ao fim. — O resto, posso contar em poucas palavras. Uma vez que Tronar e Rakal haviam

conseguido sair daqui para a Nebulosa de Andrômeda e ao futuro, naturalmente também devia existir o caminho de volta. Por isso nos deixamos prender, voluntariamente, no alçapão do tempo Vario, na Nebulosa de Andrômeda, de onde fomos catapultados ao passado. Por cima de Kahalo, nós nos perdemos, porém eu tenho certeza que os dois cavalgadores de ondas e Tako chegaram em Kahalo, sem um arranhão. Talvez eles até já tenham agarrado Frasbur, e apenas estão esperando que alguém vá buscá-los.

O General-de-Divisão Lemy Danger estava diante de Perry Rhodan, de pé, em cima da mesa. Ainda vestia o seu traje de combate, e abrira apenas o pequeno capacete. Ninguém pudera fazer com que ele vestisse uma roupa mais cômoda.

Junto de Rhodan sentara-se o gigante Melbar Kasom, amigo muito especial de Lemy. Era originário do planeta Ertrus, no Sistema Kreit, sendo um terrano adaptado ao ambiente. Como em Ertrus havia uma gravidade de 3,4 gravos, Kasom pesava cerca de oitocentos quilos, sendo um gigante, ao lado de quem Lemy já pequeno em si, mais parecia uma mosca.

Junto de Kasom, Gucky estava acocorado, em cima de uma cadeira, mantendo uma cara impenetrável. Todo aquele mimo em torno do anão Lemy lentamente estava lhe dando nos nervos. O mesmo, em sua opinião, estava sendo tratado como se já tivesse levado a Crest, sozinho, sem a ajuda de ninguém, de volta ao presente. Quando a parte mais difícil dessa empreitada certamente ainda estava por vir. E era nisto que eles certamente iriam precisar dele, Gucky. E como iriam precisar dele!

Havia ainda outros oficiais graduados e personalidades presentes, mas os mesmos não tiveram um papel de importância nos acontecimentos que se seguiram. Somente o Major Redhorse, chefe do comando de desembarque, não devia ficar sem menção. Era ele quem, mais tarde, faria parte do grupo. Redhorse era descendente de índios americanos, com um cabelo quase azulado de tão negro, tinha um metro e noventa de altura, e era tido como homem corajoso, valente.

— Muito bem, por que não vamos logo?! — piou Gucky, batendo com o punho fechado sobre a mesa. — Se eles estão esperando por nós — o que estamos esperando nós?

Rhodan olhou-o, muito sério. — Não vamos esperar muito tempo, baixinho. Os gêmeos o Tako estão correndo sério

perigo, acho eu. Não devemos esquecer que não se pode subestimar Frasbur. Ele é um tefrodense do tempo atual. Ele voltou ao passado, por ordem dos senhores da galáxia, para influenciar os acontecimentos por aqui, de acordo com a vontade deles. He sabe que nós não nos damos por vencidos. Naturalmente deve ter tomado suas providências, e só posso esperar que os três mutantes pensem nisso, quando o atacarem.

— Espero que não seja necessário mencionar — disse Lemy Danger, com a sua vozinha clara — que eu estarei presente nessa missão. Afinal de contas, quem conhece melhor a situação sou eu.

Gucky quase ficou sem ar. Furioso, ele olhou para Lemy. — É mesmo... você acha isso? E quem foi que tirou você daquela encrenca toda, na

qual você se meteu, no caminho da Kahalo para cá? Agora foi a vez de Lemy ficar com a respiração difícil. — Ué, mas não foi exatamente o contrário?

Page 74: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

74

— Seja como for — ensinou o rato-castor — sem mim você agora ainda não estaria aqui. Não é certo?

Lemy fez que sim. — Pode ser. Mas o que é que isso tem a ver com a missão que temos pela frente? — Eu também vou — só isso. Lemy sorriu. — Eu não tenho nada contra, se o chefe também estiver de acordo — ele olhou para

Rhodan. — Correto? Kasom e Redhorse levantaram as mãos. — Nós nos oferecemos para ir, voluntariamente. Perry Rhodan recostara-se, sem participar dos debates. Curvou-se para a frente novamente, respondendo ao olhar de Lemy. — Em Kahalo vamos precisar de, pelo menos, dois bons teleportadores, portanto

Gucky irá também. Além disso, ele é telecineta e telepata. Kasom dirigirá o caça-mosquito, no qual Gucky e Lemy facilmente encontrarão lugar. O Major Redhorse chefiará uma corveta, fazendo cobertura da retaguarda. As posições exatas ainda veremos depois, mais uma vez, nos mapas. Acho aconselhável que Redhorse não se aproxime demais de Kahalo, mas que fique esperando a uma distância de alguns meses-luz. Vamos combinar sinais em código. Em linhas gerais, isso é tudo que tenho a dizer sobre o assunto. O principal é que me tragam de volta os gêmeos e Tako. Sãos e salvos.

— E naturalmente também Frasbur, o agente do tempo — disse Gucky. — Também são e salvo.

— Alguns galos na cabeça dele não fariam muita diferença — disse Redhorse, sem esconder o seu ódio.

Rhodan levantou-se. — Redhorse e Kasom, os senhores me acompanham. Precisamos falar sobre a rota.

Lemy, Gucky, nós nos encontraremos dentro de duas horas, no Hangar VII. Lá está a KC-1 e o caça de vocês. Trajes de combate e provisões. Tudo claro?

Gucky levantou-se, foi até a mesa e apanhou Lemy. — Posso levar meu irmãozinho para a caminha? — quis saber ele, cortes. — É bom

tirar uma soneca de uma hora, sempre que temos um negócio importante pela frente. Quem afirma isso sou eu.

— Dá para entender — retrucou Lemy, cordial. — Vamos. Rhodan esperou até que a porta se fechasse atrás dos dois. — Meus senhores, venham até o meu camarote. Lá tenho os mapas de que

precisamos. — No corredor ele acrescentou: — São os mapas que ainda estarão válidos dentro de cinqüenta mil anos. No Universo as coisas se modificam muito lentamente. Às vezes lentamente demais.

Eles o seguiram em silêncio. A Crest III era uma nave espacial esférica com dois e meio quilômetros de diâmetro,

um mundo em si mesma. Com ela, cinco mil pessoas haviam sido catapultadas ao passado. Entretanto os lemurenses não haviam conseguido enfrentar a Crest, muito menos destruí-la. Ela encontrara proteção e cobertura no sistema do sol gigante Redpoint, orbitando, junto com o estaleiro espacial MA-genial, o astro.

A uma eternidade de distância da Terra e do presente. Chegados ao camarote, Rhodan estendeu os mapas.

— Kahalo fica a uma distância de dois mil e seiscentos anos-luz daqui. A oito meses-luz distante de Kahalo, existe um sol amarelo sem planetas. Esta será a sua meta, Major Redhorse. Entre ali, em proteção contra rastreamento, mas de modo que possa receber um sinal de hiper-rádio a qualquer momento. Fique constantemente na escuta, esperando até

Page 75: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

75

que Kasom lhe dê o sinal combinado. Isto, ainda poderão discutir durante o vôo. O mosquito fica no hangar da KC-1, até que Kahalo esteja apenas a poucos anos-luz de distância. Então o senhor se separa deles, seguindo o seu vôo sozinho. Redhorse servirá de reforço e comando de emergência. A ação de busca, propriamente dita, dos três mutantes, será efetuada por Kasom, Gucky e Lemy. Caso o mosquito seja destruído durante o pouso, o senhor, Redhorse, terá que intervir. E sem contemplações. A corveta é ultramoderna, e tem, para a sua classe, o maior poder de fogo concebível. O senhor poderá enfrentar, caso seja necessário, qualquer tipo de arma conhecida, podendo liquidar até mesmo os grandes cruzadores de combate dos lemurenses sem arriscar-se a um só arranhão. Vá buscar Kasom e seus acompanhantes de Kahalo, caso seja necessário.

— Entendido — disse Redhorse, impassível, mas os seus olhos brilhavam. — Tudo em ordem.

— Conosco também — disse Kasom, calmo. — Tenho certeza que vamos conseguir. — A questão é apenas sabermos se os gêmeos e Tako também o conseguiram — se

ainda estão vivos. Os senhores partem daqui a quarenta minutos. Perguntas? Não havia mais perguntas. No hangar, Gucky e Lemy esperavam. O siganês, evidentemente, lastimava não poder

decolar com a sua Helltiger, para colocar à prova a sua eficiência, mas aceitou sem reservas as ordens de Perry Rhodan. Quando Kasom e Redhorse apareceram no hangar, ele já estava acomodado no bolso do macacão de Gucky, olhando para fora apenas com sua cabeça.

— Afinal, chegaram — disse ele, um tanto descortês, o que para ele era muito raro. — Nós já estamos esperando.

— Ainda há bastante tempo — acalmou-o Redhorse. — Decolaremos somente daqui a cinco minutos. O mosquito está no hangar da KC-1.

Exatamente cinco minutos depois a KC-1 deixava o gigantesco hangar da Crest, lançando-se velozmente pelo espaço. O ultracouraçado logo ficou para trás, quando Redhorse acelerou. Por trás, durante um instante, apareceu a configuração estranha da MA-genial — uma plataforma gigantesca com edificações e campos de pouso. Depois, também ela desapareceu no infinito do cosmo. O sol vermelho gigante tomava opacas todas as estrelas, até que também ele foi diminuindo. Finalmente ele era apenas mais uma estrela entre milhares de outras.

A KC-1 entrou no espaço linear, no qual as leis do Universo normal nada mais valem. A ligação com o universo einsteiniano era impossível, e todo objeto que não se movimentava para diante com velocidade ultraluz ficava inatingível. Basicamente, deste modo, o espaço linear era um Universo negativo.

Somente a poucos anos-luz de Kahalo é que Redhorse deixou a nave cair de volta ao espaço normal, para orientar-se. Todos eles haviam dormido algumas horas, e esperavam, restabelecidos, pelo início da missão. Na sala de comando eles se reuniram para uma última conferência.

— Os rastreadores mostram diversas esquadrilhas dos lemurenses — disse Redhorse, apontando para a tela de imagem. — Elas protegem Kahalo de ataques dos halutenses. Vai ser difícil para vocês atravessarem as suas linhas.

Kasom encolheu os ombros. — Vamos ter sorte bastante. O mosquito é pequeno, portanto é muito ágil e rápido

nas manobras. Até que eles nos descubram, já sumimos novamente, ficando fora do seu alcance.

Os caças-mosquito realmente eram naves pequenas muito perigosas. Com um comprimento de vinte e seis metros, e providos de aletas na popa, eles podiam, inclusive, manobrar dentro da atmosfera de um planeta, mas no espaço, após uma curta aceleração, logo alcançavam a velocidade da luz. Firmemente embutido no nariz, na direção do vôo,

Page 76: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

76

havia um canhão energético, além de um canhão conversor, que podia teleportar para qualquer alvo desejado uma bomba atômica de vinte gigatoneladas de força explosiva.

Um mosquito tinha a capacidade de acelerar a setecentos quilômetros por segundo ao quadrado.

— Vamos proceder a mais um curto vôo linear, para chegarmos ao sol amarelo que é nosso alvo. Antes disto, vocês saem pela eclusa, e tentam chegar, sozinhos, a Kahalo. Três anos-luz — isso não é muito.

— Os sinais em código estão claros? — quis saber Kasom, para certificar-se. — Somente um único sinal deverá ser suficiente. É curto demais para possibilitar um rastreamento, além disso, talvez não tenhamos tempo. Se o mosquito for destruído logo ao pousar, o senhor espera cinco horas, Redhorse, até vir atrás de nós. Talvez consiga pousar, sem ser notado, no lado noturno do planeta, para esperar por nós.

— Isso é pouco provável — com toda essa vigilância. Mas vou tentar. Gucky segurou Lemy, que estava sentado no seu bolso. Depois levantou-se. — Sempre essa conversa mole, desnecessária. Vamos sair logo voando. Talvez

estejamos perdendo nosso tempo aqui, enquanto os mutantes estejam esperando desesperadamente por nossa ajuda.

Redhorse sorriu para ele. — Talvez você tenha razão, mas espero que não — disse ele. Kasom e Gucky subiram para o caça-mosquito. O gigante tomou lugar na frente, atrás

dos controles de vôo, enquanto Gucky — com Lemy ainda no bolso do seu macacão — acomodou-se confortavelmente num cadeirão atrás dele. Parecia ter muita pressa em chegar.

— Boa sorte — desejou-lhes Redhorse. — E... não demorem a me chamar! — Se precisarmos do senhor, isso vai acontecer mais depressa do que possa imaginar

— retrucou Kasom. — Até mais tarde. Redhorse voltou à sala de comando da KC-1. Pelas telas de imagem ele observou

como o caça-mosquito, cinco minutos mais tarde, entrava velozmente pelo espaço, perdendo-se, segundos depois, entre as estrelas. E logo ele teve bastante que fazer consigo mesmo, pois os lemurenses o haviam rastreado, e atacavam com uma raiva incontida.

Por diversas vezes ele mergulhou no espaço linear, mudando de rota. Os perseguidores perderam o seu rastro. Quando, a oito meses-luz de Kahalo ele voltou ao Universo einsteiniano, não viu mais nada dos lemurenses. Para que tudo permanecesse assim, ele aproximou-se com uma velocidade próxima da luz do sol amarelo, chegando o mais próximo possível do astro. A aparelhagem de refrigeração da corveta trabalhava ao máximo, mas até mesmo o campo de proteção hiperenergético verde ameaçava arriar sob a repentina carga recebida.

Redhorse lembrou-se do aviso de Rhodan. Afastou-se novamente um pouco do sol, entrando exatamente na zona fronteiriça, numa órbita estável. Depois desligou as turbinas. Aqui, qualquer tipo de rastreamento era praticamente impossível, mas a interferência do sol, muito próximo, não era suficientemente forte para impossibilitar comunicações por rádio.

O hiper-rádio foi ligado e mantido sob constante vigilância. Os aparelhos gravadores ficaram prontos para a ação. Qualquer impulso, por mais curto que fosse, seria imediata mente registrado.

Por um instante, Redhorse ainda ficou na sala de comando, observando as telas de imagens. A bola de fogo amarela dominava, de um lado, toda a área de visão. Do outro lado ficavam as estrelas.

Uma delas era o sol do Sistema Orbon, e um dos planetas chamava-se Kahalo. Ponto central da Via Láctea.

Page 77: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

77

Abruptamente, Redhorse levantou-se passando o comando ao Major Nowak-Mills. Uma inquietação inexplicável apossara-se dele, e ele queria tentar relaxar um pouco. Ninguém podia imaginar o que eles ainda tinham pela frente.

Talvez ele necessitasse de todas as suas forças para superar as próximas horas ou os próximos dias.

Page 78: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

78

3 No primeiro instante, Tronar, Rakal e Tako não sabiam que tinham caído na

armadilha. O Pavilhão Memorial estava vazio. Frasbur fugira, procurando um novo esconderijo

para si, Isso não tinha nada de especialmente inquietante. A procura teria que recomeçar, e certamente acabariam por encontrá-lo.

Desta vez Tako disse em voz alta: — Gucky está nos fazendo falta. Ele descobriria Frasbur telepaticamente. E então nós

teleportaríamos e ele seria agarrado. — Sim, se ele estivesse aqui! — Tronar olhou em volta, como procurando alguma

coisa. — O que nos faz falta agora é uma ligação de rádio com o agente do tempo. Nós poderíamos nos enfeixar, e estaríamos diante dele. Até mesmo se ele estivesse no futuro.

Rakal olhou para o teto. — Essas coisas, ainda há pouco, já estavam ali? — perguntou ele. Todos olharam para cima. O teto do pavilhão vazio, bem abaixo da superfície de Kahalo, era nu como as paredes.

Ele havia sido fundido, das rochas primitivas, e recoberto com uma camada de plástico. Eles, até então, haviam pensado muito pouco nisso. Mas viram imediatamente o que é que Rakal queria dizer.

Barras de metal brilhantes, prateadas colocadas num espaço de meio metro entre si, sobressaíam do teto poucos centímetros, formando um quadro retangular. O mesmo englobava toda a gruta. Parecia como se fosse o começo de uma grade, que vinha descendo para prender alguém.

Porém as barras não se movimentavam. Permaneciam firmemente embutidas. Tako disse: — Estas barras não estavam aí antes — sei disso com toda certeza. Estive olhando

para o teto, por isso posso afirmá-lo. Rakal franziu a testa. — Isso me cheira a encrenca. Nós disparamos uma coisa, aqui, que pode ser muito

ruim para nós. Talvez alguma aparelhagem de alarme, que denunciará a Frasbur que alguém penetrou no Pavilhão Memorial abandonado.

— Acho melhor sumirmos daqui — sugeriu Tako. Entretanto, antes deles terem oportunidade para isso aconteceu outra coisa. Das pontas das barras prateadas de repente saíram feixes de uma luz muito branca,

penetrando exatamente na vertical no chão. Só agora os três homens notaram que também no piso ocorrera uma modificação. Onde antes nada havia, rebrilhavam pequenos pontos de contato. E era sobre estes que incidiam os feixes de luz branca. Formando uma grade reticulada.

— O espaço é suficientemente grande — nós podemos passar — disse Tronar, mas havia insegurança na sua voz. — Entretanto eu não me atreveria a me enredar nessa corrente energética.

Rakal aproximou-se da retícula de luz, mas já a meio metro de distância ele parou, como se tivesse topado com algum obstáculo invisível.

— Não consigo ir adiante. Os raios de luz — ou seja lá o que for — parecem uma parede. Nós estamos trancados. Numa armadilha desgraçadamente muito esperta. E agora?

Page 79: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

79

— É só ficar calmo — admoestou Tronar, que não se mexa do lugar. He levantou os olhos para o teto. — É uma grade energética, se não me engano. Mas bem diferente das que nós conhecemos. Certamente a mesma não é destinada simplesmente para nos reter aqui.

— Que outra finalidade poderia ter? — Rakal voltara para o centro do pavilhão. — Que outro destino ela poderia ter, então?

De repente Tako empalideceu. — Esperem aqui — disse ele, insistente. — Preciso descobrir uma coisa. Se eu tiver

sucesso, estaremos seguros. Caso contrário... — ele silenciou e ergueu os ombros. Eles viram que ele se concentrou para o seu salto teleportador. Tako desmaterializou — mas apenas pela fração de um segundo. Depois ele estava

estendido no meio do pavilhão, no chão, contorcendo-se em dores. De repente ele estremeceu, e ficou muito quieto.

Tronar correu até ele, abaixando-se. — Ele está inconsciente. Portanto, nem mesmo um teleportador consegue sair daqui.

Diabos! Nós estamos metidos numa bela enrascada! Eles cuidaram de Tako, que logo voltou a si. — É uma espécie de campo energético, um bloqueio de energia — disse ele — pois as

linhas do campo são energeticamente afins com o espaço de cinco dimensões. Mas é de um tipo estranho — apesar do mesmo me parecer conhecido. Onde é mesmo que há desses campos energéticos...?

— Raciocine com muita calma. Caso nós o soubermos, talvez possamos sair daqui. Tronar começou a andar de um lado para o outro do pavilhão, sem aproximar-se

demais da grade. Eles notaram que as barras prateadas desciam cada vez mais do teto, aproximando-se dos pontos de contato no piso. Logo eles não estariam presos apenas pelo campo energético, mas também pelas grades metálicas.

— Poderia ser uma espécie de transmissor de matéria — disse Tako, de repente. — Um transmissor? — Rakal olhou, espantado, para Tako. — Nesse caso, estão

querendo transportar-nos para algum lugar, sem nos matar imediatamente. Isso já é um consolo, pelo menos.

As barras tocaram o chão. Os feixes de luz branca se apagaram. Mas no mesmo instante rebrilhou uma luz verde, que encheu todo o recinto. A mesma

saía das barras prateadas e parecia uma parede. Tako nem chegou a experimentar, pois tinha certeza que uma teleportação agora seria tão inútil como antes.

— Um transmissor, disso não pode haver mais a menor dúvida — repetiu Tako. — Mas receio que não se trata de um transmissor comum. Um deste tipo, nós ainda nunca encontramos. Temos que esperar para ver o que vai acontecer daqui por diante. Eu, sinceramente, não tenho a menor idéia.

Rakal opinou: — Que tal eu tentar me enfeixar? Talvez esta seria uma solução... — Uma solução muito incerta, Rakal — Tronar sacudiu a cabeça. — Tako,

infelizmente, tem razão. Não podemos fazer outra coisa que não esperar. Se Frasbur quer alguma coisa da gente, ele naturalmente vai aparecer.

Mas Frasbur não apareceu. Ainda não. Aconteceu uma coisa diferente, e com isto nem um dos três homens contava.

Aconteceu uma coisa que era totalmente impossível e para o que, de princípio, não havia explicação.

Tronar, Rakal e Tako desmaterializaram, porém a sua consciência continuou mantida. Eles viam e escutavam e sentiam tudo, mas já não tinham mais um corpo. Somente o seu espírito, sua consciência, existia. Mas conseguiam reconhecer-se mutuamente — formas

Page 80: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

80

que brilhavam fracamente, que se modificavam constantemente, mas ainda assim permaneciam humanóides.

Ao mesmo tempo eles se movimentavam em grande velocidade através do espaço e — conforme só ficaram sabendo mais tarde — também através do tempo.

A armadilha era um transmissor espácio-temporal.

* * *

Quando Tako teleportava, ele se diluía inteiramente e não sabia nada a respeito do salto propriamente dito. Somente chegado ao destino ele rematerializava novamente e conseguia de volta sua capacidade de pensar.

Para ele, esta nova experiência era especialmente impressionante e inquietante. Ele viu a si mesmo e aos gêmeos pairar para fora da grade energética, atravessar o teto — e mergulhar na noite de Kahalo.

O planeta ficou rapidamente para trás, quando eles, com uma aceleração inimaginável, avançavam por entre o mar de estrelas, logo perdendo toda e qualquer orientação.

Pela modificação do sol próximo, Tako pôde observar que eles se aproximavam da velocidade da luz. Mas as estrelas não empalideciam, continuando nitidamente visíveis.

— Mas isso é impossível! — disse ele, e não ficou admirado quando uma daquelas formas de luz pairou para mais perto dele, dizendo:

— Mas nós o estamos vivenciando, Tako! Não temos corpos, mas podemos pensar, ver e falar. Ainda existimos, e isto no espaço normal.

— Isso se modificará tão logo ultrapassemos a velocidade da luz — raciocinou Tako. E ele tinha razão. A transição veio acoplada com uma sensação de dor, que eles jamais haviam sentido

nesta forma intensa, mas não durou mais de uma fração de segundo. Logo foi substituída por uma sensação de bem-estar, que imediatamente fez com que eles se esquecessem de todos os terrores.

As três formas luminosas pairavam no nada, aparentemente sem velocidade e sem qualquer peso. As estrelas continuavam visíveis, mas começaram a se aglomerar e continuavam brilhando apenas fracamente agora, como se a sua luz tivesse que passar por uma grossa vidraça ou através da água.

E então as estrelas, na sua massa, formaram um desenho definido e muito conhecido dos homens.

— Isto é inconcebível! — gemeu Tako, quando conseguiu refazer-se do seu susto. — E a nossa Via Láctea!

— De uma distância de pelo menos duzentos mil anos-luz! — confirmou Tronar, perplexo. — Já não estou entendendo mais nada.

— Que transmissor é esse? — queria saber Rakal. — Um transmissor que não nos leva de um lugar para outro, mas que nos faz pairar, plenamente conscientes, em pleno cosmo?

Para estas suas perguntas não havia respostas. A Via Láctea diminuía cada vez mais em tamanho, até tornar-se apenas um disco

muito fino, oval, que pairava, na sua brancura leitosa, no negrume do espaço. Depois juntaram-se a ela outros discos, alguns estreitos, outros largos. Entre estes, apareciam simples pontos luminosos, porém a imensa distância através da qual eles enviavam a sua luz deixava transparecer que também eles consistiam de uma aglomeração de muitos milhões de estrelas.

Page 81: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

81

— Milhares de vias lácteas — disse Tako finalmente, e a sua voz sem som foi entendida pelos outros novamente. Eles a escutavam, apesar de, aqui, no Nada, não poder haver qualquer som. Mas eles também se viam, apesar de não haver qualquer luz. Somente a luz das estrelas, e esta ficava a distâncias imensas, infinitas. — Nós podemos ver o Universo inteiro.

— Eu gostaria de saber como é que vamos voltar novamente para Kahalo — disse Rakal. — Ou será que querem que a gente morra de fome por aqui?

— Ninguém vai sentir fome — profetizou Tako. — Nem sede. — Mas nós sentimos a dor, quando ultrapassamos a velocidade da luz. — Não foi uma dor física, mas espiritual — ensinou Tako, como se soubesse de todas

estas coisas muito bem. — Nós só somos, ainda, espírito, ou se quiserem, ainda só energia. Seres energéticos, é isso!

Eles silenciaram, perplexos, quando entenderam o que Tako afirmava. Seres energéticos! Seres de energia pura! E como haviam ultrapassado a velocidade da luz, eles deviam estar num outro espaço. No espaço linear! Ou no hiperespaço.

Também estariam num outro tempo? Tronar fez a pergunta, mas não obteve resposta. As vias lácteas pareciam agora apenas simples estrelas, aglomerando-se cada vez

mais. As distâncias entre elas, muitas vezes mais de um ou dois milhões de anos-luz, se fundiam. E já as vias lácteas, elas próprias, começaram a formar um desenho, que em absoluta atenuação permanecia sozinho no Universo. Assim como antes as estrelas formavam uma galáxia, agora as galáxias transformavam-se numa unidade.

O que era esta unidade, e como é que ela se chamava? A forma era difícil de ser descrita, apesar de já ser possível reconhecê-la. Talvez uma

espécie de fita entrelaçada parecida com uma faixa de Moebius...? Sim, devia ser isso. O Universo era infinito, já se afirmava antigamente. E se formos passear numa faixa de Moebius jamais chegaremos ao fim da faixa.

— Aquele lá é o nosso Universo — murmurou Tako, emocionado. — Ele consiste de muitos milhões de vias lácteas. Todo o nosso Universo paira no Nada, no Nada Absoluto. Ainda que consigamos visitar outras galáxias — jamais vamos conseguir deixar o nosso Universo. As distâncias tornam-se não somente inconcebíveis, mas simplesmente infinitas. Só existe o nosso Universo, nada mais.

Tako parecia ter razão. Cada vez menor tornava-se a fita entrelaçada no Universo familiar, mas o mesmo continuava a pairar sozinho no Infinito. Na sua parte mais estreita a faixa leitosa devia ter um diâmetro de cinco bilhões de anos-luz, mas certamente devia ter um total de trinta bilhões de anos luz de comprimento, incluindo a faixa.

— Por que Frasbur está nos mostrando isso? — perguntou Tronar. — Por que ele nos mostra uma coisa que jamais foi vista por algum de nós? O que é que ele pretende conseguir com isso?

— Talvez ele queira apenas nos mostrar o quanto somos pequenos — Tako teria feito um gesto com a mão, se tivesse mãos. — Ele quer nos deixar claro o quanto nós terranos petulantes, ao tentarmos estender as mãos para outras galáxias. Esta certamente seria uma explicação.

— Neste caso, está querendo dizer que, aquilo lá, é apenas uma ilusão, uma mistificação?

— Não, de modo algum. Nós estamos vendo a realidade. A questão é apenas esta: Quando a estamos vendo? Tal como era, como é — ou como será?

— E por que esse véu nebuloso, leitoso? — Não se esqueçam que estamos no espaço linear — ou qualquer outro nome que lhe

queiramos dar. Alguma coisa nos separa do Universo normal. Nós o deixamos para trás.

Page 82: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

82

Mas... — de repente Tako silenciou. Olhou para o Infinito, e os outros viram a mesma coisa. De todos os lados novos pontos luminosos insinuavam-se para dentro do espaço negro — outros Universos. Tinham a mesma forma do primeiro — o próprio. A distância de uma faixa para a outra devia ter, em média, quinhentos bilhões de anos-luz. E entre uns e outros não havia nada.

Absolutamente nada! Rakal foi o primeiro a reconquistar a voz. — Os outros Universos! O nosso é apenas um entre muitos. Que estruturação da

matéria! Como é inconcebivelmente grande e imenso tudo isso — e ainda assim, apenas o começo. Agora eu começo a acreditar que nada surgiu por acaso, nem os planetas e luas, nem os sóis, as vias lácteas ou os Universos. Tudo é muito coerente, dentro de leis definidas, muito bem meditado, pensado. Não existe o caos, não há confusão indiscriminada. Existem leis que nós, talvez, jamais entenderemos. Realmente, nós somos pequeninos. Somos infinitamente pequenos, assim como o mundo em que existimos é infinitamente grande. E onde fica, nisso tudo, o limite, se é que existe algum?

Entrementes os Universos haviam se aproximado mais uns dos outros. Por enquanto ainda pareciam pairar, independentes entre si, no Nada, sem pretender estabelecer um contato, mas os três homens pressentiam que o fenômeno de ainda há pouco se repetiria.

De ainda há pouco? — Com que velocidade, aliás, nós devemos estar nos movendo, para podermos

observar tudo isso? — perguntou Tronar. Tako falou: — Com uma velocidade que não podemos mais expressar em palavras. Talvez,

entretanto, não seja apenas a velocidade que nos permite vivenciar tudo isso. Talvez estejamos simplesmente caindo através do tempo e podemos ver os movimentos dos Universos. Eu não sei. Aliás, eu não sei mais nada.

— Está se formando uma esfera, olhem lá! Tako e Tronar olharam. As diminutas faixas luminosas entrelaçadas dos Universos

haviam se aglomerado ainda mais, formando uma esfera de luz. A distância entre os diversos Universos isolados mal ainda podia ser distinguida. Naquela esfera devia haver, reunidos, avaliando-se a grosso modo, um bilhão de Universos — e, elevado a um bilhão, o número de galáxias.

A esfera pairava no Nada, envolta num anel luminoso, irradiante. Quase como um sol, observado de uma distância de poucos minutos-luz. O círculo se fechara.

Além da esfera luminosa de Universos não havia nada. Tudo estava escuro e negro, e sem qualquer luz. Os três homens continuavam pairando como num mar, três figuras de luz, fantasmagóricas.

E então, de repente, havia quatro. — Eu sabia que nós nos encontraríamos. Tako notou que o novo corpo de luz também tinha formas humanóides, mas estas

pareciam mais estáveis do que as suas próprias. O estranho pairou para mais perto deles, mas não tinha face. Tako não sentiu mais nenhum medo, apenas uma indescritível curiosidade.

— Quem... o que é você? — Você, Tako, me conhece. Tronar e Rakal Woolver nunca se encontraram comigo.

Meu nome é Ernst Ellert. Ellert! — Ellert está morto — disse Tako, calmo. — Pelo menos, ele já não existe mais em

nosso Universo. — A mesma coisa também acontece com você — ou já se esqueceu disso?

Page 83: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

83

Tronar e Rakal conheciam a história — jamais bem esclarecida — do teletemporário Ernst Ellert, cujo corpo morreu, mas cujo espírito sempre regressava. Sabiam que ele era amigo de Perry Rhodan. Timidamente eles evitaram um contato com aquele ser misterioso, sem aliás saber se aqui poderia acontecer qualquer tipo de contato.

— Onde é que nós estamos? De onde você vem? — perguntou Tako. — Vocês três e eu — nós somos quase um componente energético do hiperespaço e

com isto desprendidos de todas as leis conhecidas da natureza. Os seus corpos se transformaram em energia — uma prelibação no desenvolvimento de todas as raças inteligentes. Tudo se transforma, no correr do tempo, em energia — também o Universo. Vocês não precisam explicar-me nada, conheço seus pensamentos e suas lembranças. Mas, ao contrário, vou ser obrigado a ficar-lhes devendo uma explicação. Ela de nada lhes adiantaria, pois não a entenderiam.

— Aquela esfera ali — a esfera de bilhões de Universos — disse Tako, lentamente — esta é a forma definitiva? Ou ainda existem mais? Existem mais esferas? Ellert! Qual é o tamanho disso tudo? Afinal, onde é que termina o Infinito? Naturalmente deve haver um fim, assim como também o tempo tem um fim.

— Onde começa o círculo, Tako? Onde fica o centro na superfície de uma esfera? Onde fica o centro do Infinito? Tako, jamais você o entenderia, ainda que eu tentasse explicar-lhe tudo. Aquela esfera luminosa ali — ela é o nosso Universo principal. O seguinte fica a uma distância tão grande de nós que a sua luz ainda não nos alcançou. Talvez ela o faça, dentro de alguns trilhões de anos. Mas não creio que o faça. A maioria dos Universos movimenta-se com a velocidade da luz — para dentro disso que você chama de Infinito. E o fazem desde o começo dos tempos. E continuarão a fazê-lo até quando já não mais houver tempo — até que também o tempo tenha se transformado em energia. Tudo está em vias de transformação, de transubstanciação, Tako. Inclusive os seres humanos.

A esfera luminosa do Universo principal aumentou de tamanho. Suas partes unitárias tornaram-se novamente visíveis. Os Universos separavam-se novamente. Era o movimento contrário àquele havido anteriormente. Os seres energéticos caíram de volta ao Universo principal.

— Eu já não entendo mais nada disso — concedeu Tako. — Como é que você conseguiu encontrar-nos nesta imensidão, no Infinito?

— Está se esquecendo que o tempo é como um rio, no qual eu posso nadar, à vontade, para cá e para lá. Eu sabia que vocês viriam. Sei também que desaparecerão novamente. Antes, entretanto, ainda irão encontrar-se com outro — com um outro peregrino no tempo e no espaço. Ele lhes mostrará uma coisa que eu não posso mostrar. Ainda estou atado a leis — não, não são as suas leis.

Os Universos singulares passaram por eles, pairando na imensidão, como faixas luminosas, imóveis e estarrecidas, em si mesmas. E depois havia ainda outros pontos luminosos, menores e mais próximos. Estes não eram imóveis e estarrecidos, mas modificavam as suas formas constantemente. Grupos inteiros deles se haviam juntado, e pareceu a Tako como se eles dançassem uma silenciosa e irreal brincadeira de roda.

— O que é isso? — perguntou ele, timidamente. Desta vez não obteve resposta. E então Tako pressentiu que também a vida em si é uma forma de energia.

* * *

O Universo que lhes era familiar estava diante deles, enorme e nítido. — Vocês querem que eu os ajude — disse Ellert, pairando um pouco mais para longe.

A sua “voz” entretanto continuava tão nítida como antes. — Isso é impossível, Tako. Vocês

Page 84: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

84

voltarão ao espaço normal, isso eu posso revelar-lhes. Aquele Frasbur, que os mandou para cá, os levará de volta. Para ele passar-se-ão apenas segundos, ainda que, aparentemente, vocês passem séculos por aqui. Entrementes, nada de significativo acontece no vosso... no nosso Universo.

— Ellert, quem são os senhores da galáxia? Não poderia, pelo menos, revelar-nos isso?

Foi uma risada clara, despreocupada, a que Tako ouviu. — Comparados com o Universo — nem vamos falar do Universo principal — eles são

pequenos e insignificantes, quase tão insignificantes como os seres humanos. Tente imaginar, Tako, que significação tem um grãozinho de areia numa praia de mil quilômetros de comprimento e cinco de largura! Os senhores da galáxia são um grãozinho semelhante. O ser humano, mal chega a ser um átomo nesta praia. Claro, também isso é relativo. A Terra está com sua existência em jogo, pois se os senhores da galáxia quiserem destruí-la, poderão fazê-lo. Não, não posso ajudá-los. Também não tenho permissão para dizer-lhes quem são os senhores da galáxia. Mas vou mostrar-lhes uma coisa. Então certamente compreenderão que existem entidades maiores que os senhores da galáxia, e este conhecimento irá ajudá-los a julgar melhor e mais favoravelmente a sua situação.

Tako, Tronar e Rakal não tinham qualquer influência sobre seus movimentos através do espaço, porém mal Ellert terminara a sentença, sentiram-se levados por uma força invisível, arrastados ao encontro da faixa luminosa do Universo. As galáxias expandiam-se, afastando-se para todos os lados, enchendo logo todo o seu campo de visão. Eram milhares e mais milhares de vias lácteas, cuja luz brilhava com intensidades diferenciadas.

— Já há séculos atrás, astrônomos terranos verificaram que as vias lácteas podem colidir. Foi possível, inclusive, fotografar-se uma colisão dessas. Ali, exatamente a nossa frente. Estas são as duas galáxias. A luz que vocês estão vendo está sendo emitida neste instante, já que não necessita de tempo para chegar até nós.

— Por que, então, não chegamos a ver os Universos principais? — Porque velocidade ultraluz no hiperespaço significa outra coisa que no espaço

normal. Porém olhem para a frente. Essas duas vias lácteas. Vocês vivenciam tudo em tempo aglutinado. O que vocês têm por um segundo são cerca de mil anos. Por isso que tudo se passa tão depressa — e visivelmente.

Tako não fez mais perguntas. Junto com Rakal e Tronar ele ficou olhando aquelas duas nebulosas em espiral, leitosas, que lentamente se aproximavam uma da outra. As primeiras estrelas passaram umas pelas outras e nada aconteceu. Afinal, ainda estavam separadas por anos-luz. Mas então colidiram as duas massas centrais das galáxias. E desta vez as estrelas se tocaram. Eram atraídas mutuamente e colidiam. Menores precipitavam-se para dentro de maiores, e violentas explosões atômicas volatilizavam-nas, irradiando-as como energia. Uma nova após outra ardia em chamas, engolindo não apenas planetas e luas mas quase sempre também o sol vizinho. A nova explosão encontrava outras vítimas, e logo aquilo passou a uma autêntica reação em cadeia, que extinguia ambos os núcleos das galáxias.

— De há muito nós passamos pelo estágio que poderíamos chamar de crítico. Em alguns bilhões de anos de tempo relativo os astrônomos terranos publicarão suas descobertas sensacionais, pois a luz precisa de todo este tempo no seu caminho pelo espaço normal para chegar à Terra. Mas continuem olhando.

Quando os dois núcleos se transformaram numa única, imensa e gigantesca nova, a sua luz sobrepujou todas as outras vias lácteas, praticamente apagando-as. Tako imaginou sentir o calor dos milhares de sóis que eram transformados em energia.

As duas galáxias explodiram transformando-se numa nova galáctica.

Page 85: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

85

Depois apenas duas nuvens luminosas, brilhando foscamente, vagavam pelo espaço, afastando-se rapidamente uma da outra. E acabaram mergulhando na escuridão do espaço intergaláctico.

— Nelas, agora, não há mais vida — disse Ellert, e na sua voz sem som sentia-se um sincero pesar. — Todos os planetas foram destruídos, e havia muitos planetas habitados em ambas as vias lácteas. Mas alguns dos seres viventes haviam desenvolvido uma inteligência, que finalmente levou à destruição.

Tako hesitou com sua pergunta, mas finalmente acabou fazendo-a: — Com isto você está querendo dizer que a colisão das duas galáxias foi obra de seres

inteligentes? Mas isto é... — ...impossível, é o que quis dizer? Está enganado, Tako. Em ambas as galáxias havia

superinteligências, que se guerreavam mutuamente. Em vez de satisfazer-se com seus próprios mundos, elas ultrapassaram os fantásticos espaços penetrando em outras vias lácteas — até verem-se frente a frente. Não havia possibilidade de entendimento, pois ambos eram igualmente fortes. Portanto fizeram uso de seus dons inconcebíveis e de seus meios técnicos auxiliares — movimentando a sua galáxia, conforme queriam. Cada uma tinha esperanças de poder chantagear a outra, mas nenhuma das inteligências cedeu. Até que foi tarde demais. Vocês mesmos viram o que aconteceu. Só sobraram duas nuvens de gás. Milhares de mundos destruídos, engolidos pelos seus sóis. Eles pairam de encontro ao fim dos tempos, porém o sinal de sua morte somente chegará ao planeta Terra, daqui a bilhões de anos — sem ser compreendido. Compreendem agora como é minúscula a Terra, como é diminuto o homem — e como são pequenos os senhores da galáxia?

— Talvez eles não possam fazer colidir a Nebulosa de Andrômeda com a nossa Via Láctea, mas eles podem achar a Terra e destruí-la. Só isto, Ellert, é decisivo para nós. Portanto, ajude-nos. Ou está querendo que, em breve, não existam mais seres humanos?

— Sua preocupação não tem sentido. Eu sei que haverá seres humanos. Homens que são naturais daquele planeta em que vocês e eu nascemos. Mas também sei que terão que usar sua própria força, para se ajudarem.

Silenciosamente aquelas quatro sombras luminosas vogaram pelo espaço, ao encontro de duas galáxias conhecidas — a Via Láctea e a Nebulosa de Andrômeda.

— Eu lhes mostrei o espaço — continuou Ellert, após uma pausa, que demorou segundos ou milênios. — Um outro irá mostrar-lhes o tempo. Frasbur, entrementes, apenas viveu uma fração de segundos, desde que ativou a sua armadilha transmissora. Adeus, Tako, Tronar e Rakal — e dêem lembranças minhas a Rhodan.

Antes mesmo de Tako poder perguntar uma outra coisa, só havia ainda três nuvens luminosas vogando no espaço. A quarta desaparecera.

* * *

Entre as duas galáxias, no negrume do espaço sem estrelas surgiu, repentinamente,

um objeto cintilante, ficou maior e se aproximou. Tako somente o reconheceu quando estava a apenas poucos metros de distância, pairando lentamente na sua direção.

— Harno! — gritou ele, surpreso. A esfera tinha uma superfície lisa, polida, que parecia um espelho. Mas o que era

possível ver-se nela não podia ser designado como uma imagem de espelho. Harno, a esfera de tempo e espaço, era o mais perfeito receptor de televisão que se poderia imaginar.

Ninguém sabia exatamente quem era Harno e de onde ele vinha. Já por várias vezes essa entidade estranha ajudara os seres humanos, para sempre desaparecer depois disso, sem deixar traços. Harno vivia de energia pura, da luz das estrelas e do fluxo do tempo.

Page 86: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

86

— Harno, você!? — repetiu Tako, sentindo um alívio indescritível. — Foi Ellert que mandou você?

— Eu estou no todo — retrucou a entidade telepaticamente, e os três homens desmaterializados podiam entendê-lo tão bem como se lhes falasse em voz alta. — Eu estou em todo o tempo e em todo o espaço.

Tako pareceu não ouvir a nuance daquelas palavras. — Pelo menos você pode explicar-nos o que aconteceu — e o que vai acontecer? Nós

vamos ficar para sempre no hiperespaço, talvez transformados em energia? — Vocês já são energia. A armadilha transmissora dos senhores da galáxia jogou-os

num outro plano existencial. Vocês o chamam de “hiperespaço”, ou “um outro Universo”. Isso não é uma expressão exata. A matéria dos diferentes Universos continua uniforme em si mesma e existente, porém os planos e dimensões mudam. Meramente o transcorrer do tempo muda. É ele também que transforma a velocidade da luz numa simples teoria. Não existem limites de velocidades, somente um limite da capacidade de compreensão humana.

— E nós...? — Ellert já lhes disse. Frasbur os levará de volta. Ele já está estendendo a mão, para

tocar a alavanca que os catapultará de volta ao universo einsteiniano — para Kahalo. Mas quanto tempo demora um movimento desses? Um segundo? Dois, talvez? Aqui, isso nada mais significa. Pode demorar bilhões de anos.

Lateralmente passou por eles a Nebulosa de Andrômeda, tomou-se menor, acabando finalmente no opaco ponto luminoso que os homens da Terra vêem há milênios. Harno e seus três acompanhantes caíram para dentro da Via Láctea, tão conhecida deles. Universos e galáxias haviam se transformado novamente em aglomerados estelares.

Mas eles se encontravam no espaço normal, inatingível para aquelas entidades energéticas, que somente existiam no hiperespaço.

— Mas, ainda assim, vocês podem vê-las — disse Harno, que lia os seus pensamentos. Tako notou, diante de si, um sol, em torno do qual orbitavam planetas. Nitidamente

era possível ver-se os movimentos orbitais, e sem ter que perguntar a Harno, ele entendeu que o fluir do tempo não podia ser o normal. Os movimentos, inclusive, tornavam-se cada vez mais rápidos, e logo os planetas giravam tão rapidamente em torno de sua estrela-mãe, que todas as suas órbitas pareciam faixas incandescentes.

Só então Tako notou que aquelas constelações lhe eram familiares, mas que as mesmas estavam se modificando lentamente. Dez segundos mais tarde, elas já perdiam sua conformação original, formando novas constelações.

— Aquele astro ali...? — Sim, é o Sol. Uma daquelas faixas orbitais incandescentes é a órbita da Terra —

milhares de anos no futuro. Já não vivem mais seres humanos nela. — Não há mais seres humanos? — Tako parecia perplexo. — Mas Ellert acabou de

nos dizer que sempre existiriam seres humanos! Por que ele mentiu? — Ele não mentiu. Mas também não disse onde os seres humanos estarão no distante

futuro. Como já tantas vezes no passado, eles abandonaram o seu planeta pátrio, só que, desta vez, eles não voltaram mais. Não podiam. Um planeta como a Terra não tem mais nada para lhes oferecer. Ela os mataria.

— Mataria? A Terra tornou-se radioativa? — Não, Tako. A Terra tornou-se estéril, infértil, no sentido dos novos homens. Assim

como os seus ancestrais uma vez deixaram os mares, porque a terra lhes oferecia melhores condições de vida, assim, mais tarde, os homens abandonaram a Terra, porque o espaço lhes oferecia tudo de que precisavam. Pois no espaço são os diferentes campos energéticos, as retículas dos planos gravitacionais e a luz dos sóis que oferecem tudo aquilo, em forma da mais pura energia, que nos estágios iniciais do desenvolvimento tinha que ser extraído da

Page 87: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

87

terra, com muito trabalho e perda de tempo. A clorofila e a fotossíntese são dois dos conceitos que apontaram o caminho do futuro. Também eles acabaram sendo desnecessários. Hoje o homem apanha aquilo de que necessita diretamente do espaço. E é também no espaço que ele vive.

Tako tentou compreender as palavras de Harno, mas foi-lhe difícil entender-lhes o sentido. Harno estava querendo sugerir que se tratava de uma total espiritualização do homem? Queria ele indicar que o homem desistira do seu corpo, porque o mesmo se tornara supérfluo?

Mas não teve coragem de propor uma pergunta. — Algum dia — continuou Harno — também planetas e sóis terão se tornado

supérfluos. E passarão a ser energia. Energia, entretanto, é o elemento básico do tempo. Quando ainda só existir energia, não mais nenhuma matéria, começa a última transformação. Depois disso existirá, no espaço vazio, somente ainda o tempo, nada mais.

Tako, por mais perturbado que estivesse desta vez não conseguiu abafar uma pergunta:

— O que significa tempo, se qualquer possibilidade de relações com a energia ou com a matéria estará faltando? Como ele poderia ser medido? E ainda existirá alguém que possa medi-lo?

Na consciência dos três homens havia uma risada. Não era uma risada sardônica, mas uma risada bondosa, condescendente.

— O tempo não é estável. Se o Universo — e agora estou falando de todo o Universo — ainda consistir apenas de tempo, ocorre uma supersaturação. O tempo começa a se converter em matéria. O circuito recomeça, uma vez mais. Matéria — Energia — Tempo. Somente um deles nunca se transforma: o espaço. Ele permanece, mesmo sendo o cenário de toda a gênese, evolução e perecimento. Mas também a vida continua, apesar de modificar as suas formas. Ela simplesmente se adapta às circunstâncias. Se não o fizer, perece. O homem, Tako, existirá eternamente. Ele tem existido eternamente! Mas ele modifica suas formas de tal modo, que de milênios para milênios não mais poderia ser reconhecido.

— Acredito — disse Tako, com certa veneração — começo a entender. Você certa vez falou do fim dos tempos. Este é aquele instante em que o tempo começa a se reconverter? A voltar para trás?

— É, sim. O tempo se solidifica. Não tem mais movimento porque já não existe mais nenhum ponto de referência. Também a vida está congelada. Com o primeiro átomo da nova energia, o fluxo do tempo começa a correr novamente, e a vida com ele. Um novo Universo nasce. Nunca houve um começo. Nunca haverá um fim. Isso, Tako, é a eternidade.

As órbitas planetárias incandescentes se apagaram, quando o sol, inchando muito, as tragou. Logo o sol ficou de um vermelho muito escuro, e finalmente negro. E desapareceu.

Harno levou seus protegidos de volta ao espaço entre a Nebulosa de Andrômeda e a Via Láctea. E levou-os de volta, ao mesmo tempo, ao seu próprio tempo, que continuava sendo o passado.

— Agora tenho que deixá-los — informou ele. — A mão de Frasbur já está na alavanca da armadilha transmissora. Não demorará mais muito tempo e vocês rematerializarão no seu novo Pavilhão Memorial em Kahalo. Novamente terão um corpo. Que será o vosso antigo corpo.

— Quem é Frasbur? — perguntou Tronar. — Um instrumento de superiores, não mais que isso — declarou Harno, afastando-se

rapidamente. Sua superfície emitia um brilho fosco, no reflexo da luz das duas galáxias. — Tenham cuidado com os seres energéticos do hiperespaço. Eles tentarão levá-los,

através de tentações, para que desistam de seus corpos. Se vocês se entregarem a eles,

Page 88: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

88

passarão por cima do desenvolvimento natural e jamais voltarão a ter um corpo. Portanto — tenham cuidado!

Depois Harno mergulhou no escuro do espaço sem estrelas.

* * *

Eles pairaram na direção de um solitário sistema solar, que parecia como que perdido no espaço. Tako contou sete planetas, mas também podia estar errado. Ele estava perturbado com o fato de não ter mais qualquer influência sobre seus movimentos. Naturalmente ele, Tronar e Rakal permaneciam juntos, mas isso não queria dizer muita coisa.

Por que Frasbur não apertava aquela alavanca de uma vez!? Era um sol amarelo. A sua luz não conseguia sobrepujar a dos bailantes seres

energéticos que se tornavam visíveis por toda parte, aproximando-se. — O que é isso? — perguntou Rakal, inquieto. — Seres energéticos, desmaterializados como nós — declarou Tako, sem entender

muito bem aquilo tudo. — Harno nos preveniu contra eles. Mas aquele aviso não valeu de muita coisa. Tako e os gêmeos não tinham a menor

idéia de como era possível defender-se de um ataque de seres de pura energia. O ataque esperado, entretanto, não aconteceu. Tako e seus acompanhantes caíram, na direção da superfície do planeta

desconhecido. Imaginaram estar sentindo a gravidade, mas sabiam muito bem que não podia haver gravidade. Ou o planeta e o seu sol estavam no hiperespaço, e com isso, submetidos a leis desconhecidas?

Era um planeta paradisíaco. — Olhem só esses lindos oceanos, as maravilhosas ilhas com suas florestas tropicais

— disse Tako. — As praias de areias muito brancas — e — realmente, aquelas árvores se parecem com palmeiras...

— Eu vejo apenas montanhas — montanhas, como as que sempre amei — interrompeu-o Rakal, admirado. — Os seus cumes ultrapassam as nuvens, e por baixo estão, escondidos, os vales verdes. Por caminhos estreitos chega-se ao alto, e...

— Não entendo para onde vocês estão olhando — disse Tronar, perplexo — pois eu não vejo nem mares nem montanhas. Imensas savanas e matas ensolaradas onde abunda a caça — é isso que eu consigo ver. Os rios cortam as florestas, e nas corredeiras vejo as trutas saltando...

Tako disse: — Cada um vê aquilo que gostaria de ver, amigos. Não vamos deixar que nos enganem

mais uma vez. Isso aí embaixo não é nenhum planeta, assim como este sol amarelo não é um astro de verdade. Nós continuamos pairando em meio ao espaço, no Nada. Nossa imaginação fabrica essas imagens, só isso. Quem de nós, às vezes, não sonha com a Terra ou outros mundos, depois de ter vivido muito tempo no espaço? Aliás a qualquer momento Frasbur tocará na...

Os seres luminosos haviam chegado mais perto. Eles vogavam para cima e para baixo, afastavam-se e se aproximavam novamente. Parecia a Tako ouvir um canto maravilhoso. Era uma melodia como ele jamais ouvira igual, harmônica e bela.

— Esqueçam os seus corpos e fiquem conosco! O pensamento aninhara-se clara e nitidamente no seu consciente, como uma forte

mensagem telepática. Devia ter vindo daquelas entidades estranhas, que agora viam-se por todos os lados, caindo lentamente com eles em direção ao planeta.

Page 89: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

89

— Nós não pertencemos à sua espécie — disse... ou pensou Tako, o mais fortemente que pôde. — Somos estranhos aqui e precisamos voltar ao nosso Universo. Como poderíamos esquecer nossos corpos, sem os quais, para nós, não há vida?

— Esqueçam-nos, e vocês nunca mais precisarão deles — recebeu ele de volta. Tako perguntou: — Só esquecer — e isso bastaria? — Qualquer desejo basta aqui. Desejem um planeta, e o terão, só para vocês, e mais

ninguém. Desejem um Universo, e ele pertencerá a vocês. Esqueçam os seus corpos, e eles não mais existirão.

— A tentação é grande — disse Tronar. — É difícil não sucumbir a ela. Mas Harno, afinal, nos avisou.

Tako não deu atenção à objeção. E perguntou a um dos seres energéticos: — Quem são vocês? A resposta foi desconcertante: — Como podemos sabê-lo? Nós existimos desde sempre. E existiremos por toda a

eternidade. — Só aqui? Ou vocês também conseguem passar àquele outro espaço que nós

chamamos de espaço normal? — Alguns o conseguiram, mas eles só conseguiram arranjar complicações por lá, já que

nenhum contato direto é possível. Desistam de seus corpos... por favor. — O que é que vocês ganham com isso? Desta vez não houve resposta. Rakal disse: — Na realidade eu já estou praticamente esquecendo o meu corpo. Esta existência em

estado espiritual tem suas vantagens, pensando bem... Tako viu que uma daquelas névoas iluminadas que boiava junto dele empalideceu um

pouco. E logo viu o perigo de ser separado, para sempre, de Rakal. — Rakal! — gritou ele, se é possível designar sua mensagem telepática urgente como

um grito. — Ficou maluco? A figura luminosa de Rakal novamente tornou-se mais forte. — Quer dizer que isso realmente seria possível — veio uma voz sem som, penetrando

nitidamente no consciente de Tako. — Era só isso que eu queria saber. Nós poderíamos viver eternamente.

— Sim — sem corpo. Debaixo deles sumiu o planeta e com ele desapareceram o sol e os dançantes seres

energéticos. Tako, Tronar e Rakal estavam novamente pairando no Nada. A Via Láctea aumentava de tamanho, com incrível rapidez, e os três homens precipitaram-se para dentro daquele aglomerado de estrelas.

Caíam ao encontro do centro da galáxia. Frasbur apertara para baixo a alavanca do transmissor.

Page 90: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

90

4 O agente do tempo vestia um novo uniforme. Parecia ter sido tecido de fios de prata,

semelhante a um macacão espacial. No peito via-se uma mancha negra. Sobre a mesma uma linha dourada, que serpenteava por entre duas galáxias — o sinal indicativo do tempo.

Frasbur tinha desmontado o antigo Pavilhão Memorial sob as seis pirâmides, mudando-se para um outro pavilhão-esconderijo. O mesmo era mobiliado e decorado tão bem quanto o anterior, mas ficava profundamente sob a superfície do pólo sul de Kahalo. Ele continuava sendo respeitado como o Grão-Mestre-Conselheiro na Terra, e os lemurenses seguiam suas ordens, escrupulosamente, sem fazer perguntas.

Antes de Frasbur mudar-se, ele tinha armado a armadilha transmissora no antigo Pavilhão Memorial. Sabia como ela funcionava, e confiava nos imensos conhecimentos técnicos dos senhores da galáxia. Não existia armadilha mais perfeita. Os sinistros estranhos do futuro não mais poderiam recorrer as seus dons parafísicos, depois que a armadilha se fechasse sobre eles.

E ela se fechara! Frasbur esperou alguns segundos, antes de decidir-se a trazê-los de volta ao Universo

normal. Pela aparelhagem secreta de vídeo ele pudera ver que se tratava de três seres humanos. Um deles, sem dúvida, era um teleportador, pois tinha materializado, junto com os outros dois, repentinamente no antigo Pavilhão Memorial.

Frasbur apertou a alavanca para baixo. Bem no meio do novo Pavilhão Memorial, com suas muitas telas de imagem e outros

aparelhos de comunicação, estava a jaula reticulada do receptor. Ela brilhava numa luz verde. Depois a luz tornou-se repentinamente vermelha — e se apagou.

Na jaula reticulada, no chão, três homens se contorciam. Depois estremeceram violentamente e ficaram deitados, desfalecidos. Frasbur sorriu, ao retirar a mão da alavanca. Era um sorriso frio, que não revelava

qualquer comiseração. Aqueles três ali eram seus inimigos, e ele os mataria, caso lhe causassem dificuldades.

Ele abriu a jaula e entrou. Os olhos dos seus prisioneiros estavam bem abertos. E eles lhe devolveram o olhar. E neste olhar parecia haver alívio.

Frasbur sabia por quê. — Vocês estão satisfeitos em ter voltado a ser aquilo que eram antes, não é verdade?

— e ele sorriu, irônico. — Pelo menos, têm novamente um corpo. Mas isso não lhes serve de muita coisa. Nada de teleportação, meu amigo — e ele bateu com o pé em Tako, verificando que o japonês estava duro como uma tábua. — Vocês perderam os seus dons. Pelo menos por enquanto. Estão firmemente em minhas mãos. E talvez eu agora, finalmente, vou ficar sabendo quem vocês realmente são. Pena vocês ainda não poderem me responder, mas logo que o puderem fazer outra vez, aconselho-os a falar tudo que sabem.

Ele deixou a jaula, sem trancá-la. Sabia que isso não era necessário. Os três ainda ficariam muito tempo sob a influência do choque causado por sua retransmissão, de volta ao local de partida. Somente depois que ele lhes proporcionasse o tratamento adequado é que aquela paralisação podia ser rapidamente curada.

Mas isso ainda unha tempo. Ele dirigiu-se até a parede com as telas de imagem, sentando-se diante dos controles

complicados. Os seus dedos deslizavam rapidamente por cima de teclas e chaves. A maior

Page 91: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

91

das telas de imagem começou a iluminar-se aos poucos. Padronagens coloridas passaram rapidamente pelo tubo, até que finalmente uma imagem começou a se formar.

E então apareceu um rosto na tela. Era um rosto duro, acostumado a mandar. Os cabelos quase brancos eram espessos, e

estavam penteados, lisos, para trás. Nos olhos havia um brilho frio, de aço. A cor da pele era ligeiramente amorenada.

Uma corrente em volta do pescoço denunciava que o homem usava um ativador de células. Ele era imortal. He era um dos senhores da galáxia.

* * *

Enquanto Frasbur relatava, Tako tentou se mover. Pelo canto dos olhos ele pôde ver a

tela de imagem e o rosto do senhor da galáxia, mas a conversa era mantida em voz tão baixa que ele não entendeu uma só palavra daquilo que Frasbur e o seu superior do futuro falavam.

Qualquer movimento dos seus membros era impossível. Somente a posição das pupilas era possível modificar. Tako estava deitado entre Tronar e Rakal. Os gêmeos não se mexiam. Tako não sabia, sequer, se eles ainda viviam.

Ele conseguia ouvir, ver e pensar, só isso. No momento tinha que se dar por satisfeito com isso. Apesar do aviso de Frasbur, ele tentou concentrar-se num curto salto de teleportação, mas foi inútil. Ele estava tão desamparado como um recém-nascido.

Do outro lado, na parede, a tela foi desligada. Frasbur levantou-se e voltou para a jaula reticulada. Ficou olhando os seus prisioneiros. Os seus traços demonstravam espanto, misturado com mal-estar.

— Com esta, acabei metido numa boa — disse ele, furioso. — Quem é que vocês podem ser, para que lhes dêem tamanha importância? Não querem que eu lhes toque um só fio de cabelo! Se fosse por mim, eu bem que os entortaria muito mais que isso. Vocês já me deram muito trabalho.

Tako imaginou que os próprios senhores da galáxia queriam interrogá-los, para ficarem sabendo tudo sobre Rhodan e os terranos, que ocasionavam tamanho tumulto na Nebulosa de Andrômeda, e agora, ainda por cima, se metiam no passado — ainda que involuntariamente.

Frasbur tinha as mãos atadas, e isso era bom. Tako teria sorrido ironicamente, se isso lhe fosse possível. Frasbur continuou: — Eu vou retirá-los, um por um, do transmissor, para livrá-los dos efeitos colaterais

do choque. Que serei cuidadoso nisso, naturalmente é compreensível. Você, meu amigo, vai continuar sob a ação da paralisia, para que não possa me desaparecer. O que há com os outros dois, eu ainda descobrirei. Teleportadores eles não são, pois eu fiquei observando o surgimento de vocês no pavilhão abandonado. O que, entretanto, são eles?

Naturalmente não obteve resposta. Frasbur estava ali, de pé, refletindo. Na parede com as telas de imagem houve um zunido. Novamente acendeu-se o telão. Era outra vez um dos senhores da galáxia, o mesmo que falara anteriormente.

Frasbur apressou-se, correndo até a aparelhagem. O mestre da galáxia falou por quase dois minutos, depois a tela apagou-se novamente. Frasbur desligou e voltou para a jaula gradeada. Desta vez o seu rosto mostrava uma insatisfação ainda maior que antes.

— Vocês devem ser ainda mais perigosos do que eu imaginei. Desagradável para vocês, mas, de certo modo, agradável para mim. Vocês ficarão em estado de choque, até serem interrogados pelos próprios senhores da galáxia. Dêem-se por felizes! Eles estão fazendo muitas cerimônias com vocês. Sinto muito, mas vão ter que ter mais um pouco de

Page 92: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

92

paciência, até que a nave deles venha buscá-los — ele fechou a porta da jaula reticulada e voltou para o painel da aparelhagem de comunicações, para dar suas instruções.

* * *

O sol amarelo atrás da popa do caça-mosquito transformou-se numa pequena estrela,

quando Kasom acelerou. A princípio ele ainda ficou abaixo da velocidade da luz, para rastrear o espaço. O que viu, não o deixou exatamente calmo.

— Requisição de frotas, como se se tratasse de conquistar vinte sistemas solares — resmungou ele.

Lemy tinha saído do bolso de Gucky, e estava sentado na barriga deste. Continuava vestindo seu traje especial, mas abrira o capacete.

— Se os halutenses encontrarem Kahalo, e o destruírem, os lemurenses estão fritos. Isto eles sabem muito bem. Vai nos ser extremamente difícil passar por ali, sem sermos notados — ele bateu no seu diminuto peito. — Com a minha Helltiger eu o conseguiria.

— Com o charuto! — Gucky deu uma risada, divertido. — Uma nave com três metros de comprimento! Alguém o teria notado, e simplesmente o jogaria contra uma parede, baixinho.

— Não discutam — gritou Kasom, bondosamente. — Além do mais, o que Lemy está dizendo é certo. Quanto menor for a nave, mais difícil será rastreá-la.

— E além do mais, não há paredes no espaço, contra as quais seria possível atirar uma nave — declarou Lemy, lançando um olhar de triunfo para o rato-castor.

Gucky calou a boca. Por pouco tempo, Kasom entrou no espaço linear, e ao regressar ao universo

einsteiniano o sol Orbon estava a uma distância de apenas duas semanas-luz. Nas telas dos rastreadores havia tantas manchas energéticas, que não sobrava mais espaço para nada. A olho nu, entretanto, não era possível ver-se nada, apesar da visão da carlinga ser livre para todos os lados.

Kasom ligou o receptor de hiper-rádio. Em quase todos os comprimentos de ondas dos lemurenses reinava grande atividade. Mensagens em código iam e voltavam, e, no meio de tudo, apareciam textos normais, facilmente compreensíveis, na língua dos futuros tefrodenses. Mas havia pouca coisa que pudesse interessá-los, nada tendo a ver com os mutantes desaparecidos.

Depois de um novo vôo linear, Kasom entrou, com as turbinas desligadas, diretamente no sistema de Orbon, voando em linha reta para Kahalo. Um rastreamento agora seria muito difícil para as naves lemurenses, pois o mosquito, em relação ao espaço que o rodeava, era tão diminuto que mal ainda poderia ser descoberto.

— Distância de Kahalo, três horas-luz — leu Kasom, dos controles. — Estamos voando à metade da velocidade da luz.

— Arrastando-se! — piou Gucky, sem levá-lo a sério. A concentração das frotas dos lemurenses podia ser reconhecida agora a olho nu —

nuvens brilhando claras ao resplendor do sol. Eles se movimentavam com relativa lentidão e pareciam orbitar, dentro do sistema, o planeta Kahalo. Era praticamente certo que uma nave maior jamais poderia passar através dessa barreira, sem ser notada.

Mas o mosquito não era uma nave grande. Era apenas uma mosca entre vespões. Mas tão perigosa quanto estes — ou mais

perigosa ainda! Inconscientemente quase, a mão gigantesca de Kasom tocou os controles dos dois

canhões conversores da proa. Só a sua existência já lhe dava segurança e confiança. E além

Page 93: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

93

disso ainda havia o campo hiperenergético protetor verde, intransponível e praticamente indestrutível.

— Talvez você consiga um contato telepático com eles — sugeriu Lemy, que pensava nos mutantes desaparecidos.

— Afinal você conhece os seus padrões mentais. — Os dos gêmeos são tão marcantes que eu os encontraria imediatamente, mesmo

em meio a milhares de vibrações — disse Gucky orgulhoso. — Até mesmo através de algumas horas-luz. Mas até agora ainda não consegui captar nada. Ou eles estão mortos — ou já os levaram.

— Levaram? O que é que você está querendo dizer? — perguntou Kasom. — Se Frasbur os agarrou, gordão, ele os meteu numa nave e despachou-os para a

Nebulosa de Andrômeda. De volta ao futuro, do qual acabaram de chegar. Mas, neste caso, esse Frasbur vai se ver comigo!

— Antes de mais nada, é preciso agarrá-lo! — Kasom tem razão — concordou Lemy. — E antes de mais nada esse Frasbur terá

que agarrar os mutantes. Não creio que Tako se deixe prender com tanta facilidade, e os gêmeos muito menos. Portanto, continue procurando, Gucky!

Gucky fechou os olhos e recostou-se. Lemy quase caiu do seu colo, mas no último instante ainda conseguiu segurar-se no bolso. E já ia dando vazão ao seu mau humor, em palavras pouco corteses, quando Kasom disse secamente:

— Agora, vamos experimentar o canhão conversor. Assustado, Gucky abriu os olhos, levantando-se. Desta vez, Lemy não foi

suficientemente rápido. Caiu para o chão da pequena cabine, mas felizmente caiu de pé. Rapidamente Gucky abaixou-se, para levantá-lo.

— Desculpe — disse ele, provavelmente também surpreso. — O que é que você está querendo dizer com isso, Kasom?

— Estamos sendo atacados. Por uma única nave de vigilância. Só espero que eles não alertem toda a frota.

A nave de vigilância era uma nave espacial esférica, com um diâmetro de pouco menos de um quilômetro. Aproximava-se, pela frente, em diagonal, estando a uma distância de apenas quinhentos quilômetros ainda. Isto provavelmente acontecia porque ela estava vindo do interior do sistema, tendo poucas possibilidades de rastreamento de sua direção de vôo, corno teria se estivesse voando em direção contrária.

A uma distância de trezentos quilômetros ela abriu fogo. Kasom sorriu, rangendo os dentes, ao ligar o automático do controle de fogo. Agora

bastaria que ele apertasse uma tecla. Os computadores mediam a distância, levando em consideração a perda de tempo vertido entre o contato, ao disparar a bomba — e esperavam.

Kasom pressionou a tecla vermelha do canhão-conversor. Ainda no mesmo segundo detonou uma bomba com a força explosiva de vinte

gigatoneladas, bem no meio da nave dos lemurenses. A nave espacial esférica transformou-se imediatamente numa bola energética chamejante, pela qual o mosquito passou voando, em velocidade mantida. O campo hiperenergético protegeu-o das radiações mortais e do calor, muito eficientemente.

— Espero que tenha sido uma nave inteiramente robotizada — disse Kasom, respirando com dificuldades. — Mas não tivemos outra escolha. Eles nos teriam destruído, sem perguntar primeiro. Além disso tínhamos que evitar que nossa posição ficasse conhecida.

— Ainda mesmo que eles tivessem feito perguntas — resmungou Gucky — o que é que não poderíamos ter respondido?

Page 94: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

94

Kasom concordou. Kahalo ainda estava duas horas-luz distante. Lemy saiu de dentro do bolso do macacão de Gucky, para dormir um pouco. Gucky

fechou os olhos para concentrar-se novamente em eventuais impulsos telepáticos dos desaparecidos.

E então, repentinamente, ele estremeceu, levantando-se. * * *

O novo Pavilhão Memorial de Frasbur havia sido construído de tal modo que se

encontrava logo abaixo do pólo sul, ao lado dos hangares subterrâneos de um espaçoporto. Entre os hangares e o Pavilhão Memorial não havia nenhuma ligação direta. Quando Frasbur desejava chegar ao espaçoporto para dar as suas ordens, tinha que abandonar o seu esconderijo, que era vigiado por robôs especiais, programados para a luta. Um elevador antigravitacional levava-o para a superfície. Atrás dele fechava-se a entrada, garantida por mecanismo controlado por computador, que unicamente obedecia a um determinado padrão de suas ondas cerebrais. Frasbur achou desnecessário um campo energético ou mesmo uma grade energética.

E este foi o único erro que ele cometeu. Ele lançou um último olhar aos seus prisioneiros, que deixou para trás sob a guarda

de três robôs, e saiu do Pavilhão Memorial. Uma esteira rolante levou-o ao elevador. O corredor estava muito bem iluminado, e à direita e à esquerda havia portas que iam dar em outros pavilhões.

Quando, na superfície, a porta de entrada fechou-se atrás dele, Frasbur respirou aliviado. Estava satisfeito por, mais uma vez, poder respirar ar puro. O carro voador esperava por ele. Embarcou e ajustou os controles. Silenciosamente o veículo elevou-se do chão, deslizando numa altura mínima na direção do espaçoporto que ficava a poucos quilômetros de distância. Os telhados baixos dos edifícios administrativos rebrilhavam à luz do sol que já ia baixo n o horizonte.

As sentinelas postadas diante do comando militar fizeram continência, quando Frasbur passou. Mas ele nem se dignou lançar-lhes um olhar. Rapidamente, foi à procura do almirante, que tinha sua sede em Kahalo, e que, junto com o Almirante Hakhat, dirigia a defesa do setor de Kahalo.

O lemurense ergueu os olhos, espantado, quando Frasbur entrou — Preciso imediatamente de uma nave menor com pouca tripulação — disse o agente do tempo, sem esperar pela pergunta do almirante. — Tome providências para que a mesma esteja pronta para partir dentro de uma hora. Carga urgente para Andrômeda.

O almirante, acostumado aos modos autoritários do suposto Grão-Mestre-Conselheiro da Terra, apenas concordou com a cabeça.

— Pode ficar tranqüilo. — Ótimo. E mais uma coisa: Desta vez eu mesmo irei junto, deixando o meu quartel-

general sob a vigilância dos guardas. O senhor ficará responsável para que ninguém tente entrar no mesmo.

— Quem é que o faria? — perguntou o almirante, admirado. — Talvez os estranhos, que há vários dias estão tentando penetrar em Kahalo?

— Exatamente esses! Reforce as atividades de vigilância em torno do sistema, e destrua sem contemplação qualquer nave estranha. Destrua inclusive nossas próprias naves, cujos comandantes não se identificarem, ao serem solicitados. Os estranhos conhecem todos os truques.

— Devem ser verdadeiros super-homens — disse o almirante lentamente. — Aos poucos começo a me interessar por eles.

Page 95: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

95

Frasbur olhou-o fixamente. — Acho melhor não fazê-lo. O senhor ainda terá aborrecimentos suficientes, uma vez

que o nosso bloqueio foi furado. Se isto acontecer mais uma vez, facilmente poderá perder o seu posto — Frasbur foi até a porta. Ali ele voltou-se uma vez mais. — Não se esqueça de minhas instruções, almirante. Dentro de uma hora, portanto.

— O senhor pode confiar em mim. Frasbur deixou o edifício. A caminho do carro voador, viu que à sua esquerda ficava a

central de radiocomunicações, que se mantinha em vigilância permanente. Ali todos os fios da defesa se reuniam. Até as últimas notícias chegarem ao Pavilhão Memorial, entretanto, muitas vezes perdiam-se minutos preciosos.

Decidindo-se rapidamente, ele passou pela sentinela, entrando na sala de controle do oficial de plantão.

— Como está a situação? As naves de vigilância já entraram em formação? — Suas ordens foram executadas, Grão-Mestre. Não saiu qualquer outra unidade do

transmissor. Só que... — ele hesitou. — Acaba de chegar uma mensagem. A mesma já foi encaminhada ao senhor, pelas vias normais.

— O que foi? — Uma das naves de vigilância explodiu ainda dentro da zona de bloqueio, por razões

até agora inexplicáveis. Nenhuma mensagem de rádio, nada. Nenhuma nave estranha foi rastreada. Deve tratar-se de um acidente.

Por quase dez segundos Frasbur ficou olhando a quantidade enorme de controles, diante dos quais o oficial estava sentado. Finalmente disse:

— Um acidente? — ele sacudiu a cabeça. — Não creio. Mande imediatamente algumas dúzias de naves para o local em questão. E da próxima vez o senhor me informará imediatamente, se algo semelhante ocorrer. Sem qualquer demora.

Ele deixou o edifício e voou de volta ao Pavilhão Memorial. Chegando ali, completou a ligação com os senhores da galáxia, informando-os do incidente.

Só depois é que ele se interessou pelos seus prisioneiros, indo certificar-se de que o seu estado não se modificara em nada.

Tako, Tronar e Rakal continuavam deitados na jaula reticulada do transmissor, sem qualquer possibilidade de se mexerem.

* * *

— Só podem ser os gêmeos — disse Gucky, excitado. — Os impulsos estão vindo

claros e nítidos — mas mesmo assim não estou entendendo nada. O que é que tudo isso tem a ver com um transmissor? E eles também não conseguem se mexer.

Kasom virou-se. Sua expressão era séria, demonstrando preocupação. — Concentre-se Gucky! Eles estão presos? — Parece — o rato-castor tentou avistar Kahalo a olho nu, mas não conseguiu. O

planeta ainda estava muito afastado. — Precisamos chegar mais perto, para que eu possa determinar a posição dos impulsos.

— Você pretende teleportar? — Será que você vai pedir permissão para pouso? — foi a pergunta de Gucky. Kasom olhou para os controles, mas não se mexeu. Com as turbinas desligadas o caça-

mosquito caía na direção de Kahalo. Ele agora não queria arriscar, de modo algum, ainda ser rastreado no último instante.

— Eles estão nas mãos de Frasbur — disse Gucky, de repente. — Agora também tenho Tako. Eles estão deitados num transmissor, paralisados. Frasbur recebeu ordem para levá-los a Andrômeda.

Page 96: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

96

Lemy perguntou: — Quando? — Não sei, mas certamente logo. Tronar está desesperado, porque está sem poder

fazer nada. Tako também não está se sentindo muito bem, e Rakal gostaria de quebrar o pescoço desse tal Frasbur, se pudesse fazê-lo. Acho que temos que nos apressar. Mantenha essa rota, sem modificá-la. Eu vou teleportar para Kahalo.

— Direção? — Está clara. Os impulsos dos três mutantes são suficientemente fortes para servir de

orientação. Lemy, você poderia fazer-me o obséquio de sumir de dentro do meu bolso? Lemy nem se mexeu. — Eu naturalmente irei com você — disse ele, estridentemente. Gucky respirou fundo. — Vir comigo? Deve ser megalomania, não? Este é um trabalho para homens, não

para duendes. — E você, será que é um homem? — quis saber Lemy, zombeteiro. Kasom interveio, sem tirar os olhos das telas de imagens e dos controles. — Não briguem. Se não tiverem outras preocupações, lembrem-se pelo menos dos

mutantes prisioneiros. Cada minuto é precioso. Leve Lemy consigo, Gucky. — Mas se alguém lhe pisar sob os pés, não é culpa minha. Eu tenho que cuidar de mim

mesmo. Lemy escorregou, calmamente, de volta para o bolso de Gucky. Fechou o capacete de

seu traje especial. Com os braços cruzados sobre o peito, esperou pelo salto teleportador de Gucky.

— Talvez fosse melhor informarmos Redhorse — sugeriu Kasom. — Isso você poderá fazer depois. Logo que eu tiver encontrado Tako e os outros,

libertando-os, entrarei em contato com você. Ou nós desaparecemos como chegamos, ou você manda chamar Redhorse. Tudo vai depender da situação. Porém não se aproxime mais de meia hora-luz de Kahalo. Ali poderei rastrear você a qualquer momento.

Kasom anuiu. — Você é quem sabe. Boa sorte, então. — Obrigado. Lemy não podia dizer nada porque o capacete do seu traje já estava fechado e o

telecomunicador desligado. Aliás, ele não entendia o que Gucky e Kasom tanto tinham para falar. Não entendia o que os dois ainda tinham para se contar, quando havia tão pouco tempo.

Mas logo chegou o momento. Mais uma vez Gucky concentrou-se nos impulsos mentais dos três mutantes, focalizou

um lugar que ficava a cinqüenta metros deles — e saltou. O robô de Frasbur que caminhava justamente através da estação energética quase

tropeçou no rato-castor que se materializou repentinamente diante dele. No último instante ele parou, pois o seu cérebro positrônico reconheceu imediatamente o perigo. Registrou Gucky como um invasor, e como fazia parte de suas tarefas proteger o Pavilhão Memorial, ele agiu em fração de segundos.

Seus fortes braços metálicos agarraram Gucky, segurando-o firmemente. Lemy só teve tempo de abaixar-se bem, dentro do bolso, para não ser amassado pelos

braços metálicos. Abriu o capacete para não ficar mais desligado do mundo exterior. Por que Gucky não teleportava novamente?! Mas Gucky nem pensava nisso — não pretendia sumir de novo tão facilmente. Além

do mais, ninguém precisava saber a respeito dos dons que ele possuía. Telecinese!

Page 97: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

97

Já fazia muito tempo desde que Gucky “brincara” pela última vez com um robô. Na sua situação, neste momento, isso nem era tão fácil assim, pois o ser metálico o segurava fortemente. Gucky desistiu da teleportação não apenas porque revelaria o seu segredo, mas principalmente porque não sabia para onde. Neste caso, a tentativa de se livrar do robô era-lhe mais vantajosa.

Ela concentrou-se no seu adversário e emitiu sua energia telecinética sobre os dois braços que o agarravam. O que aconteceu então, parecia ter sido filmado em câmara lenta. Os braços do robô foram empurrados para trás, por uma força invisível. As garras metálicas soltaram o corpo de Gucky, talvez mais pela surpresa. Gucky verificou, admirado, que o robô podia “sentir” alguma coisa semelhante a espanto.

Mal Gucky estava livre, deu um passo para trás. Agora ele podia usar os seus dons paranormais sem perigo para si mesmo. E logo o robô sentiu-lhe as conseqüências.

De repente ele tomou-se liberto da gravidade, não sentindo mais o chão sob os seus pés.

Só agora Gucky teve oportunidade para examinar melhor as suas redondezas. Imensos geradores haviam sido instalados sobre o piso de cimento. Escadas tornavam mais fácil subir para o alto e cuidar dos controles. Um zunido constante enchia o pavilhão, que estava fechado ao mundo exterior por uma porta metálica. No fundo, Gucky notou um movimento.

— Outros robôs — murmurou Lemy, com cuidado, apesar de sua vozinha dificilmente poder sobrepor-se ao ruído forte das máquinas.

— Antes de mais nada precisamos acabar com este aqui — disse Gucky, voltando-se novamente para a sua vítima.

O robô pairava a três metros de altura, movimentando pesadamente braços e pernas. Não era possível ver-se ele possuía uma estação transmissora autônoma. De qualquer modo não se via qualquer antena.

“Só espero que esta parede seja suficientemente forte”, pensou Gucky. O robô “tomou distância”, conforme Gucky disse mais tarde, ao contar suas aventuras.

Com bastante aceleração ele precipitou-se através do pavilhão, em diagonal, batendo violentamente contra a parede de cimento armado. Pedaços de caliça voaram para todos os lados, enquanto o metal se destroçava, com seus ruídos característicos. Depois houve um estrondo terrível, quando o robô — solto pelas forças invisíveis de Gucky — caiu para o chão. Uma lente quebrou-se. Sem forças, os braços ficaram na posição em que se encontravam.

O robô fora destruído. Mas os outros tinham notado o incidente. — Talvez seja melhor sumirmos daqui — disse Lemy que, por uma questão de

segurança, continuava no bolso. — Por que vamos lutar com robôs, quando há coisas mais importantes para fazer?

Gucky deu-lhe razão. He viu dois robôs-mecânicos virem correndo, concentrou-se no corredor que devia

haver atrás da porta, e saltou. O corredor estava feericamente iluminado. Como os prisioneiros, pela avaliação de

Gucky, deviam encontrar-se à esquerda, ele nem pensou por muito tempo. Marchou para a esquerda.

— Talvez fosse melhor se você, a partir de agora, agisse independentemente — disse ele para Lemy. — Caso eu caia numa armadilha, você sempre poderá funcionar como nossa última salvação, ligue o seu defletor, para tornar-se invisível.

Page 98: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

98

— De acordo. Mas cuide para que eu não fique sozinho no corredor. Isso não nos adiantaria de muita coisa. Deixe a porta aberta pelo menos por um tempo suficiente para que eu possa esgueirar-me por ela.

Gucky anuiu. E olhou para a porta. Ela formava o fim do corredor. Atrás dela estavam os prisioneiros.

E provavelmente Frasbur também. Os pensamentos de Tako estavam desesperados, pois não podia imaginar o quanto

estava próxima a salvação. Tronar e Rakal pareciam um pouco mais calmos, mas isso provavelmente devia ser porque estavam cansados.

Gucky conseguiu captar também os pensamentos de Frasbur, apesar de consegui-lo apenas de modo muito esfarrapado. O agente do tempo dispunha de um bloqueio mental natural, que se abria só ocasionalmente. Seria difícil extrair dele a verdade. Mas, em determinadas circunstâncias, um tal bloqueio podia ser removido facilmente. Com a simples aplicação de um choque.

Frasbur sentia-se seguro. Tomara as últimas providências para o seu vôo para Andrômeda — e para o futuro.

Gucky estava parado diante da porta. — Em exatamente dez segundos eu vou abri-la. Entre você primeiro, Lemy. E não

perca Frasbur de vista. O homem é perigoso. Logo que ele tentar me liquidar, você poderá atordoá-lo. Pegue a arma de choque. Não se esqueça, Rhodan o quer vivo.

— Este logo estará no papo — prometeu Lemy, achando tudo muito fácil. Gucky olhou a porta. A fechadura era eletronicamente segura, mas isso não era

problema. Sem sequer tocá-la, o rato-castor abriu o complicado mecanismo telecineticamente, e a porta abriu-se para dentro.

Lemy, entrementes, tornando invisível pelo seu campo defletor, esgueirou-se pelo umbral, e como primeira coisa viu a jaula transmissora com os três prisioneiros. Continuavam estendidos no chão, como mortos. Como Lemy não podia ser visto, levou algum tempo para liquidar Frasbur.

Mas levou alguns segundos demais. Frasbur notou imediatamente a abertura da porta. Ninguém, além dele mesmo, podia

abrir a porta para o centro de comunicações, a não ser que ele desse uma ordem correspondente a um robô para fazê-lo. Portanto, Frasbur devia saber, naquele mesmo segundo, com toda certeza, que alguém não autorizado abrira aquela porta.

Naturalmente ele não via Lemy, não agiu, ainda antes que Gucky pusesse os pés no Pavilhão Memorial.

Num instante, Frasbur ligou o seu campo energético individual, que envolveu-o inteiramente, protegendo-o contra todas as influências do mundo exterior. Nada conseguia penetrar neste campo energético, que reluzia leitosamente, fazendo com que todos os objetos parecessem esfumados.

Quando Gucky viu Frasbur, logo deu-se conta de que chegara alguns segundos tarde demais.

Page 99: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

99

5 Apesar do perigo de ser rastreado, Kasom entrou em comunicação de hiper-rádio

com o Major Don Redhorse, por alguns minutos. — Gucky e Lemy estão a caminho — informou ele. — Eu continuarei voando na

direção de Kahalo. Distância, uma hora-luz. O automático está ligado. Caso me aconteça alguma coisa, um sinal será irradiado em nossa onda. Logo que o receber, o senhor deve entrar em ação. Tente conseguir contato com Gucky.

— Tudo claro. Aqui tudo em ordem. — Ótimo. Voltarei a chamar, quando tiver pousado. — Está querendo pousar em Kahalo? — Vou, pelo menos, tentá-lo. Desligo. Kasom sabia o risco que estava assumindo. Mas achou melhor esperar em Kahalo do

que expor-se a um rastreamento e localização aqui em pleno espaço. Além disso, ele teria que diminuir a velocidade ainda mais, o que aumentaria consideravelmente o perigo de ser descoberto.

Ele passou por uma esquadrilha de vigilância, numa distância de cem quilômetros, sem ser visto. Ele mesmo viu as naves com bastante nitidez. Elas orbitavam Kahalo numa formação muito bem ordenada. A nave-capitânia era uma nave espacial esférica com um quilômetro e meio de diâmetro.

Kasom era suficientemente cuidadoso para ficar com as mãos bem próximas dos controles mais importantes. Em poucos segundos ele podia ligar os jatos e acelerar a nave. E então era muito improvável que alguém ainda pudesse alcançá-lo. O máximo que poderiam fazer era cortar-lhe o caminho.

A esquadrilha ficou para trás. Depois de uma hora, Kahalo apareceu, um pequeno astro no meio do aglomerado de

estrelas do centro da galáxia. O sol propriamente dito ficava à direita. Kasom continuava rastreando cada vez mais naves dos lemurenses, mas nenhuma delas aproximou-se tanto que pudesse representar um grande perigo. Ele contara, há muito tempo já, com o regresso de Gucky, mas o rato-castor não dava notícias.

Talvez alguma coisa tivesse dado errado. Isso reforçou sua determinação de pousar diretamente em Kahalo. Não importava onde ele pousaria. De Gucky ele sabia apenas que o antigo Pavilhão

Memorial já não mais existia — Tako pensara nisso, de passagem, quando Gucky captou seus pensamentos. Entretanto, onde ficava o novo esconderijo, também Tako não sabia.

À direita, perto da bola chamejante do sol, de repente houve um raiar e um movimento. Kasom olhou mais atentamente, usando a tela de aumento para isso. E assustou-se. Uma esquadrilha de pelo menos vinte naves vinha exatamente em sua direção.

Se ele não modificasse sua velocidade e a rota, aconteceria um encontro. — Neste caso, acho que não tenho outra escolha — resmungou Kasom, e ficou

contente porque a decisão de pousar em Kahalo agora tinha que ser tomada. Ligou as turbinas, quando teve certeza de ter sido descoberto.

E começou a perseguição, a caçada. Os lemurenses imediatamente alertaram a frota de vigilância. Kasom pôde ouvi-lo,

pelas mensagens de rádio que trocavam, em texto normal. He era tomado por um oponente que não devia ser levado a sério, uma vez que era tão pequeno.

— Vocês vão ficar admirados! — disse Kasom, indignado. Mas depois acrescentou: — Talvez até seja bem bom, se eles me subestimarem.

Page 100: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

100

Ele acelerou e deixou os perseguidores para trás. Em poucos minutos ele alcançara a velocidade da luz, dirigindo-se para Kahalo. Algumas das esquadrilhas que haviam recebido o alarme queriam cortar-lhe o caminho, vindo pelos lados, porém ele passou em velocidade espantosa bem no meio delas, derrubando um cruzador de vigilância, no processo.

Depois, teve que diminuir a velocidade, para não chegar a superfície de Kahalo com a velocidade da luz.

Ele escolheu o lado noturno. Antes certificou-se de que os lemurenses já o haviam perdido, nos seus aparelhos de rastreamento. Certamente eles não contavam com o fato de que ele se aproximaria tanto do planeta proibido. Num pouso, certamente eles nem pensavam.

Mas Kasom ousou fazê-lo. Em altitude baixa ele passou por cima de uma área desabitada, evitando as cidades

iluminadas e as instalações industriais. Ele sabia que em Kahalo havia montanhas e desertos. Inteiramente por acaso ele voltou-se para o sul. Não muito longe do pólo sul descobriu uma cadeia de montanhas de altura moderada, pedregosa e sem qualquer vegetação. Aliás, o sol, por aqui, ainda estava brilhando. Mas já estava bem perto do horizonte.

Ele encontrou um vale pequeno, quase redondo, fechado por declives íngremes. As rochas que sobressaíam ofereciam proteção contra visibilidade do alto, e dificilmente alguém pousaria por aqui. Pelo menos nunca sem uma razão de emergência.

O caça-mosquito pairou com ajuda dos seus campos antigravitacionais para baixo das rochas sobressaindo das encostas, pousando no fundo do vale. Kasom desligou as turbinas. Agora ele unha certeza que não mais podia ser rastreado. Suspirou aliviado, esperando que Gucky, quando chegasse a hora, captasse os impulsos dos seus pensamentos. Ele naturalmente ainda pensaria que ele estava no espaço, mas em telepatia não importava a distância nem a direção, para uma captação normal.

Entretanto, Kasom não podia adormecer. Comeu alguma coisa, depois saiu da cabine, dando um pequeno passeio pelo vale. O ar

estava claro e limpo. Um pouco de relva, era a única vegetação. Aquela calma fez-lhe bem. Kasom pensava ininterruptamente em Gucky. Deste modo seria mais fácil para o rato-castor encontrá-lo.

* * *

A corveta KC-1 tomara-se um satélite do sol amarelo, que ficava solitário no espaço, a

oito meses-luz de Kahalo. Como este sol não tinha planetas, os lemurenses haviam desistido de postar naves de vigilância em suas proximidades.

Redhorse dormira por duas horas e agora sentia-se novamente muito alerta. E substituiu o Major Nowak-Mills na sala de comando.

— Nenhum rastreamento? — Nada. No hiper-receptor estão apenas os lemurenses. Em nossa onda secreta

combinada, continua total silêncio de rádio. Eu queria... O major ainda não terminara de falar, quando Kasom anunciou-se. Informou a

respeito de seu projetado pouso em Kahalo. A conversa foi muito curta e não trouxe nenhuma certeza quanto ao destino dos mutantes. Gucky os teria encontrado?

— Descanse bastante — aconselhou Redhorse. Quando o seu lugar-tenente saiu, ele começou a andar de um lado para o outro na sala de comando, muito inquieto. De vez em quando trocava algumas palavras com os oficiais de serviço, e com os técnicos. Depois ele parou novamente diante das telas de imagem, como se ali pudesse descobrir a causa de sua inquietação inexplicável.

Page 101: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

101

Mas as telas estavam vazias, a não ser pelo sol próximo e as estrelas longínquas. O sol! Redhorse sabia que era bobagem, mas tinha que ser o sol, que o preocupava. Afinal,

que sol era esse? Ele era insignificante e desconhecido, porque não possuía nenhum planeta. Tudo bem. Mas a sua intuição dizia-lhe que...

Intuição! Que tolice! Deixou de olhar as telas de imagem, e foi até o oficial de navegação. — Tenente, dê-me os mapas estelares deste setor aqui. O mapa geral, sim... obrigado.

E também o mapa setorial com as anotações. Obrigado. Ele pegou os mapas e foi até junto do painel de controles. Sentou-se e estendeu

primeiramente o mapa geral, na pequena mesa, que puxou para fora. Começou a sua busca a partir do Sistema Orbon, para encontrar o sol amarelo. Ele

tinha a designação MR-775-G-1. Nas “Explicações” lia-se:

Sol amarelo normal. Tipo Sol. Nenhum planeta. Não investigado.

E era tudo. Redhorse lembrou-se de que este mapa originalmente vinha dos arcônidas e pelo

tempo relativo, tinha pelo menos dez mil anos. No momento as coisas estavam de modo que ele somente seria desenhado dentro de quarenta mil anos.

Os terranos tinham apanhado o mapa dos arcônidas, fazendo anotações quanto a modificações ocorridas. No MR-775-G-1 não ocorrera nenhuma modificação. Mas o MR-775 também não fora investigado. Para que, afinal? O sol não tinha um só planeta, e não servia como base de apoio.

Redhorse achou que se comportava como um tolo, perdendo tempo com esse tipo de coisas. Que lhe importava se ninguém tinha investigado melhor aquele sol amarelo?

Para que, afinal? Ele era um sol, como centenas de milhares de outros. Que não tivesse nenhum planeta, não era culpa sua.

Ou era...? Redhorse levantou-se e levou de volta, ao oficial de navegação, os mapas que pedira

emprestados. — Se houver alguma coisa, eu estarei na cúpula de observação. — Entendido, senhor. Redhorse não sabia, ele mesmo, o que lhe estava acontecendo. Ele não sabia o que era

nervosismo nem medo e era tido como audacioso. E agora esta inquietação inexplicável! Ela tomara conta dele quando principiaram determinada órbita em torno do sol MR-775.

A cúpula de observação era uma construção que sobressaía da nave esférica. As paredes da cúpula eram transparentes, e permitiam uma visão para todos os lados. Havia telescópios e outros instrumentos astronômicos, com os quais era possível observar o céu de estrelas. Todo comandante de naves especiais da frota terrana tivera que passar, na academia, por um curso de astronomia — além de centenas de outros. Redhorse entendia alguma coisa de astronomia.

He sentou-se na cadeira confortável, que ficava junto da borda da cúpula, e olhou para fora, para o espaço. O sol amarelo ficava um pouco para um lado, imensamente grande e flamejante. Os filtros, entretanto, quebravam suficientemente a sua luminosidade intensa.

Por quase dez minutos, Redhorse ficou observando o sol. Ele lembrava-lhe muito do Sol, o astro-mãe da Terra. Gigantescas protuberâncias saltavam, muito longe, para dentro do espaço, para depois cair novamente, de volta àquela atmosfera ardente. Havia manchas

Page 102: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

102

negras no equador solar. Entre estas pareciam rodopiar redemoinhos claros, que só se modificavam muito lentamente. A superfície propriamente dita, aparentemente bexigosa, mas de aspecto rijo, era inteiramente normal.

Nada era fora do comum ou mesmo inquietante. Redhorse logo abandonou o pensamento, que lhe viera repentinamente, que o seu

instinto o prevenia talvez sobre uma nova antes de iminente explosão. Os mapas estelares ainda eram válidos dentro de cinqüenta mil anos. Se MR-775 se tivesse transformado numa nova, isto estaria anotado nos mesmos.

Portanto não era isso. Mas o que seria, então? Ele curvou-se mais para a frente, para poder observar melhor a protuberância, que

lenta, mas visivelmente, estava saindo espaço a dentro. Ha não tinha a forma usualmente observada, parecendo mais uma nuvem luminosa de gases incandescentes. Devia ter mais de cem mil quilômetros de comprimento, com quase trinta mil quilômetros de largura.

Depois de ter atingido o ponto mais elevado de sua propagação, ela continuou subindo.

Os olhos de Redhorse se apertaram. A nuvem agora teria que cair de volta para o sol. Mas não o fez. Continuou subindo. Redhorse lembrou-se das medições que haviam sido efetuadas. O campo de

gravitação do sol MR-775 era muito grande. Além disso ele tinha um campo magnético considerável. Nenhuma protuberância poderia escapar desse campo.

Entretanto, era isto, exatamente, o que estava acontecendo! Redhorse ficou sentado, sem se mexer. Era isto que ele estivera esperando

secretamente. Um acontecimento que fugia das normas estabelecidas. Aquela nuvem luminosa parecia não conhecer qualquer força de atração. Ela zombava de todas as leis da natureza, enquanto subia cada vez mais. Sua luminosidade, neste processo, ia diminuindo, mas, ainda assim, continuava nitidamente visível. Sua velocidade devia ser de muitos milhares de quilômetros por segundo, mas não tinha, de modo algum, a velocidade da luz, como o chamado vento solar.

Chegou até a mudar de direção. E agora Redhorse ficou alerta. Levantou-se de um salto, correndo ao

intercomunicador. Pediu que o ligassem com o professor Koch, o astrônomo de bordo. Impacientemente esperou até que finalmente o rosto do cientista apareceu na tela de imagem. Koch parecia ter estado dormindo, pois esfregava os olhos.

— O que é que há, assim, no meio da noite? Redhorse respirou fundo. — Que conversa é essa de “noite”, professor? Vista alguma coisa e venha rapidamente

até a cúpula de observação. Tenho alguma coisa para o senhor. O senhor vai ficar admirado, e num instante estará completamente acordado.

— Alguma coisa de astronomia? — na voz do cientista, de repente, havia um certo interesse. — Estarei aí, dentro de dez segundos!

— Não é preciso exagerar! — admoestou Redhorse, mas a tela de imagem já estava escura.

Koch devia ter cerca de oitenta anos, mas naturalmente ninguém lhe daria esta idade. Os avanços no campo da medicina retardavam o processo de envelhecimento consideravelmente. Hoje em dia os homens que chegavam a uma idade de cento e vinte anos, e mesmo cento e cinqüenta anos, já não eram mais nenhuma raridade.

Hoje em dia — isso era dentro de cinqüenta e dois mil anos.

Page 103: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

103

Redhorse voltou para o seu lugar, verificando que a nuvem luminosa mais uma vez mudara de direção. Continuou afastando-se do sol, mas lentamente descreveu um círculo que a colocava exatamente na órbita da KC-1, atravessando-a.

Redhorse começou a duvidar de que isso acontecia por acaso. Koch veio correndo porta adentro. Estava justamente ajeitando o nó de uma gravata,

totalmente desnecessária, no pescoço, já que esquecera de colocar, antes, uma camisa. — Onde é que está isso? — perguntou ele, quase quebrando a cabeça, ao bater com a

mesma fortemente na cúpula transparente. — Isso...? — Redhorse silenciou, perplexo, porque, de repente, veio-lhe um

pensamento monstruoso, que tratou logo de afastar novamente. — Ó, a protuberância? Ali, professor. Estamos justamente voando na sua direção.

Koch deu vazão, sem papas na língua, à sua decepção. — Uma protuberância? É por causa de uma ridícula protuberância que o senhor me

tira da cama, major? Francamente... — Não é uma protuberância comum, professor. Ha muda de direção e de velocidade.

E está vindo diretamente em cima de nós. Koch olhou para Redhorse por alguns segundos, até finalmente entender o significado

de suas palavras. Sem dizer mais nada, ele olhou para fora, na direção apontada. A nuvem luminosa aumentara ainda mais de tamanho. Com isto ficara mais fina, mas

continuava perfeitamente visível. Agora já era claro que ela luzia de dentro para fora, tendo luz própria, sendo portanto inteiramente independente do sol, no que dizia respeito à sua luminosidade.

O professor Koch murmurava coisas ininteligíveis, para si mesmo, até finalmente se virar.

— Isto não é nenhuma protuberância, major — disse ele. — O que é, então? Nenhuma resposta. Koch correu ao telescópio, entrando desajeitadamente no assento. Redhorse ajudou-o

nisso, ligando imediatamente o direcionamento automático. O tubo do telescópio girou, apontando diretamente para a nuvem luminosa.

Koch apertou o olho contra a ocular. Para não ficar parado sem fazer nada, Redhorse também ligou as telas de reprodução,

que mostravam exatamente, em tamanho aumentado, aquilo que Koch via no momento. A nuvem consistia de matéria luminosa, mas com toda certeza não era uma

protuberância, no sentido normal. Agora ainda se encontrava afastada dez milhões de quilômetros, pairando com absoluta certeza na direção do ponto de colisão. Quando Koch ajustou um pouco melhor o telescópio, a ponta da nuvem tornou-se nitidamente visível.

A ponta de ataque...? Pela primeira vez Redhorse teve a idéia maluca de que poderia tratar-se de um

ataque. Imediatamente afastou este pensamento, apesar de parecer um acaso muito improvável, que a nuvem se comportasse de modo tão decisivo, visando o alvo. Mas isto ainda não era certo. Dentro de exatamente dez minutos ela atingiria a órbita da KC-1 — e seguiria voando pelo espaço.

Koch tirou o olho da ocular. — Espantoso, realmente extremamente fora do comum. Estamos vendo uma coisa

que nem deveria existir. Acho que devia aconselhar-se com o Dr. Harrison. Ele é um expert nessas coisas.

Redhorse olhou para Koch, sem querer acreditar. O Dr. Harrison era biólogo e um expert em vida extraterrestre.

Page 104: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

104

— Faça o que eu lhe disse — aconselhou Koch, de repente calmo e ponderado. — O senhor não tem outra alternativa, que não a de reconhecer a realidade dos fatos.

— A nuvem... O senhor está querendo dizer...? — Sim, ela é inteligente. Ela não apenas vive, mas também pensa. Isso pode-se

deduzir, sem erro, do seu comportamento. Pela primeira vez em nossa história nós nos encontramos com energia inteligente.

Redhorse não respondeu. Foi até o intercomunicador, e mandou que o ligassem com o biólogo. Harrison estava em sua cabine, lendo. Fez algumas piadas pertinentes, quando Redhorse o informou sobre o que haviam visto no observatório, porém quando Koch lhe explicou do que se tratava, ele esqueceu, inclusive, de desligar o intercomunicador.

Segundos mais tarde ele apareceu na cúpula. — Onde está isso? — tossiu ele, atirando-se para o telescópio. Koch deu-lhe o lugar, de boa vontade, contentando-se com as telas de imagem.

Redhorse continuou não dizendo nada. Olhou para fora, em direção à nuvem, que nos minutos que haviam passado tornara-se ainda maior.

Harrison ficara imóvel, colado na ocular. Entrementes a nuvem chegara à órbita da KC-1. Ela diminui sua velocidade, girando

sobre si mesma. Com isto, aparentemente, diminuiu de tamanho, mas isso era apenas uma ilusão ótica. A ponta estava dirigida exatamente para a corveta, que voava ao seu encontro.

Finalmente Harrison parecia ter visto o bastante. — Não há dúvida — disse ele, tão sério como Redhorse jamais o havia visto — trata-

se de uma matéria viva, ou melhor: energia viva. Além disso, esta vida deve ser inteligente. Ela pensa e age correspondentemente. Comporta-se como se estivesse interessada em manter contato conosco — ele pigarreou. — O senhor sabe que minha especialidade são formas de vida extraterrestres. Durante toda minha vida ocupei-me disto, tendo publicado muitos livros a respeito. Já antigamente, em minha adolescência, eu afirmava que devia haver inteligências que não possuíam um corpo material. Nós já encontramos algumas dessas inteligências — certo. Mas jamais topamos com energia viva e inteligente. E exatamente este será o caso, dentro de poucos minutos, se não abandonarmos imediatamente esta órbita, desaparecendo daqui o mais depressa possível. Aliás — acrescentou ele — eu lamentaria isso, profundamente.

— O senhor acha que essa “coisa” aí fora é perigosa? — perguntou Redhorse. Harrison ergueu os ombros. — Não tenho a menor idéia. Nós temos nosso campo defensivo hiperenergético, que

detém qualquer forma de energia. Não deixa passar nada. Nem mesmo aquilo ali. Koch tomou Harrison pelo braço. — Eu sou astrônomo, doutor, não sou biólogo. Nem tenho a sua sabedoria nesse

campo. O que é que eu devo imaginar como sendo energia inteligente? Harrison lançou um olhar através das paredes transparentes da cúpula. A nuvem

luminosa aproximara-se ainda mais. — Ainda temos algum tempo. Vou tentar explicar-lhe. Afinal, o que é inteligência? Em

primeiro lugar está o corpo, que consiste de matéria. Todo ser vivente dispõe de um corpo. Portanto, se existe matéria inteligente — e também o homem nada mais é do que matéria, provida de inteligência — também deve existir energia inteligente. Biólogos terranos chegaram a essa conclusão, há muito tempo, mas sempre viam suas discussões, sobre isto, apenas como teorias interessantes. Designava-se esta forma teórica de vida como matéria luminosa viva. Uma expressão bastante inexata.

Na cúpula de observação não havia qualquer luz acesa, para não atrapalhar a visão para fora. Mas pareceu a Redhorse que agora ficara mais claro. Ele seguiu os olhares de Harrison e Koch. E sua antiga inquietação retomou.

Page 105: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

105

A nuvem agora cobria praticamente todo o céu. E envolveu a nave. As estrelas mais fracas empalideceram, como no alvorecer do dia, e só as maiores ainda brilhavam através daquela luminosidade.

Redhorse foi até o intercomunicador. Mandou que acordasse o Major Nowak-Mills, para que assumisse o comando. A KC-1

foi colocada em estado de alerta. — Acho que sua providência é desnecessária — disse Koch, inseguro. — Por que a

nuvem luminosa deveria significar perigo? Não creio que ela tenha intenção de atacar. — Entretanto, ela se comporta como se fosse — disse Harrison e apontou para fora.

— Não apenas modificou sua direção, mas também ajustou a sua velocidade à nossa. Ela agora está voando conosco em torno do sol, e envolveu inteiramente a nossa nave. Se isso é possível de ser explicado com leis naturais normais, gostaria muito de ouvi-las, professor.

— Visto sob o ponto de vista da astronomia, trata-se de um fenômeno inexplicável — disse Koch, inseguro.

— Essa formulação nem me é estranha, nem original — zombou Harrison. E não tirava os olhos da nuvem luminosa. — Estou muito interessado em saber se ela tentará comunicar-se conosco.

— Ora, pare com isso, de uma vez por todas — gritou Redhorse, que pela primeira vez em sua vida mostrava-se realmente nervoso. — Mesmo que se trate de energia viva ou qualquer outro organismo luminoso vivente, isso não significa que o mesmo tenha que ser inteligente. Talvez seja possível determinado processo de raciocínio, mas inteligência, com discernimento e capacidade de planejamento... Não! Para isso, é preciso muito mais!

— Para isso é preciso mais, acha o senhor? — Harrison deu uma gargalhada sonora. — O que — além de energia suficiente? E aquela nuvem aí fora tem mais energia à sua disposição do que o senhor possa imaginar, comandante.

— Se a nuvem é inteligente, ela também é perigosa — concluiu Redhorse, ligando novamente o intercomunicador. O Major Nowak-Mills atendeu. — Alerta para o comando de fogo. Espere por novas instruções minhas. Mantenha-se junto dos controles de propulsão.

— Entendido, sir. Deixo aberto o intercomunicador? — Naturalmente. Mas não se preocupe com o que acontece aqui na cúpula. O senhor o

entenderia tão pouco quanto eu... — Sir...? Redhorse anuiu-lhe e voltou-se novamente para Koch e Harrison, que estavam

prestes a chegar a uma briga feia, devido a fenômenos inexplicáveis no interior da nuvem. E então ele ouviu, de repente, aquela voz. Era uma voz telepática, isso Redhorse deduziu imediatamente. Pelas expressões dos

dois dentistas verificou que também eles recebiam a mensagem. Além disso a tela de imagem mostrava também o rosto espantado do Major Nowak-Mills. Com isto, parecia claro que todo homem a bordo da KC-1 podia ouvir aquela voz sinistra.

A voz dizia: — Nós sabemos o que vocês pensam, e quem vocês são. Queremos agradecer-lhes por

terem vindo. Vocês significam a salvação. O Dr. Harrison ficou estarrecido. O seu rosto iluminou-se como se acabasse de ter tido

uma revelação. Sua teoria se confirmara. Não podia mais haver qualquer dúvida de que a nuvem luminosa era um ser vivente dotado de inteligência, que se comunicava telepaticamente.

Tudo isto eram coisas que também Redhorse registrara, mas em primeira linha verificou que não havia previsão de uma ação inimiga da parte da nuvem. Ao contrário. A

Page 106: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

106

comunicação mental falava alguma coisa sobre salvação. Portanto aquele estranho ser vivo estava em perigo.

Precisava de ajuda. — Eu vou falar em voz alta — disse Redhorse para Harrison e Koch. — Ela,

certamente, também me entenderá assim — ele olhou para fora, onde a massa luminosa batia contra o campo de proteção hiperenergético, sendo repelida, em ondas reluzentes. — Quem são vocês? E como é que nós podemos ajudá-los?

A resposta veio imediatamente e podia ser entendida com perfeição. — Nós somos nós. Mas que parede impenetrável é esta, que nos separa de vocês? Vocês

terão que removê-la, se quiserem ajudar-nos. O Dr. Harrison devolveu o olhar inquiridor de Redhorse, e sacudiu a cabeça. Em voz

alta ele disse: — De modo algum, major. O campo energético é nossa única proteção. A nuvem

concedeu que é incapaz de atravessá-lo. Uma comunicação telepática é possível — e isso basta.

— O senhor acha que a nuvem é perigosa? — Talvez. Redhorse olhou novamente para fora. A massa luminosa não refulgia por igual, em

todas as suas partes. Ela parecia mover-se dentro de si mesma, ondeando de um lado para o outro, como uma espécie de neblina. As formas dos redemoinhos, nitidamente visíveis, modificavam-se constantemente. Repetidamente — pelo que Redhorse pôde observar — esses redemoinhos quebravam-se contra o campo hiperenergético, para sempre resvalar pelo mesmo, sem conseguir penetrá-lo.

— Nós temos que deixar a parede — disse ele aos seres luminosos. — Ela nos protege contra vocês. Isto não é por desconfiança, mas nossas duas formas de vida são diferentes demais. Um contato direto poderia matar-nos ou destruí-los. Expliquem por que precisam de nossa ajuda.

— Nós somos energia e nos alimentamos de matéria. Nosso sol já teve quatro planetas, mas isso já faz muito tempo. Desde então nós estamos famintos. Não há, neste sistema, mais qualquer tipo de massa, e nós não conseguiríamos suportar o vôo até alguma outra estrela. Vocês e nós poderíamos fazer uma troca. Vocês nos dão matéria, nós lhes damos energia.

Harrison aproximou-se de Redhorse. — Cuidado, major! Isso parece muito inocente, mas na realidade nós nos

encontramos com o maior perigo imaginável. Apesar disso, eu gostaria de estudar esta forma de vida. Por outro lado, meu conselho é este: Vamos desaparecer daqui, enquanto ainda podemos fazê-lo.

Koch se lastimava: — Uma perda para a ciência! Que perda... — Nós não deixaremos mais que saiam daqui! Na tela de imagem do intercomunicador apareceu o rosto do oficial de comando de

tiro. — Sir, talvez um tiro fosse a resposta acertada. — Terá pouco sentido, capitão — disse Redhorse. — O ser coletivo consiste de

energia. Como é que poderíamos afastá-lo com energia? Harrison disse, pensativo: — Energia contra energia? Por que não? Afinal o homem é composto de matéria, e é

possível matá-lo com matéria, com uma bala, por exemplo. Redhorse não respondeu. No seu lugar, entretanto, “falou” aquela estranha forma de

vida.

Page 107: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

107

— Energia nada poderá contra nós, pois nós somos energia pura e vivemos de energia pura — numa estrela. Mas se nós atacamos a sua matéria, alteramos a sua estabilidade. Isto apressaria o nosso fim. Nós precisamos de matéria, de nada mais.

— E nós não podemos ceder matéria. Isso seria o nosso fim. — Nós não os deixaremos mais sair daqui. Esta era uma ameaça muito clara. Os seres de luz haviam tirado a máscara. Agora suas

intenções eram muito claras. — Vocês não poderão nos impedir de fazê-lo — disse Redhorse. Ele fez um gesto,

chamando o Dr. Harrison. — Sim, doutor, o que é que o senhor acha? — Quero pedir-lhe uma coisa, Major Redhorse. Quem sabe quando e se nós jamais

nos encontraremos novamente com esta forma de vida. Façamos uma experiência. Vamos dar-lhes matéria. Com o canhão conversor.

Redhorse olhou-o, perplexo. — Uma bomba? A troco de quê? — Sem ignição, para que não detone. Uma bomba é matéria. Logo veremos o que eles

farão com ela. Só pode ser com o canhão conversor porque ele é capaz de transportar massa através do campo hiperenergético.

— Compreendo — ele olhou novamente para fora. — Nós vamos dar-lhes um pouco de matéria, mas somente tanta quanto pudermos dispensar. É uma bomba inofensiva. Afastem-se de nós. Vocês não devem ficar perto demais.

Não houve resposta. A nuvem parecia decidida a não largar mais a presa que conseguira envolver. Os torvelinhos luminosos envolviam a KC-1 como uma esfera chamejante. Eles não recuaram nem um centímetro.

Com voz calma, Redhorse deu suas instruções. Na sala de comando de tiro uma bomba foi desativada, antes de ser colocada no canhão conversor. Distância do ponto de materialização: Quinhentos quilômetros.

Redhorse tinha suas razões para isso, mas nem ousou pensar muito nelas. Depois ordenou a Nowak-Mills ligar os jatos. — Vocês estão seguros! — finalmente mais uma mensagem telepática da nuvem

sinistra. — Vocês não poderão mais sair daqui. E também não poderão esconder-se eternamente atrás do seu campo energético. Ele é de cinco dimensões, caso contrário nós poderíamos penetrá-lo.

Redhorse hesitou em dar a ordem para disparar a bomba inofensiva. E disse ao seu lugar-tenente:

— Experimente aceleração mínima, e depois informe o que acontece. Segundos depois veio a notícia: — Não acontece nada, sir. A nave permanece na órbita e não consegue deslocar-se.

Parece que estamos levando um planeta inteiro a reboque. Redhorse fez um sinal para Harrison. — Muito bem, nesse caso, vamos experimentá-lo. O disparo da bomba através do campo hiperenergético não foi nenhum problema. Ela

desmaterializou e simplesmente foi teleportada através da zona de bloqueio. A quinhentos quilômetros de distância da nave, ela voltou novamente ao espaço normal, materializada — algumas toneladas de matéria. Uma mancha diminuta, escura, nas telas de imagem.

Redhorse, Harrison e Koch ficaram olhando a nuvem energética brilhante, como que hipnotizados.

A modificação começou imediatamente. A notícia de que, em algum lugar em meio da nuvem, havia um pedaço de matéria,

devia ter-se espalhado com uma velocidade inconcebível. Nas telas de imagem era possível

Page 108: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

108

ver como redemoinhos luminosos se concentravam em tomo da bomba, envolvendo-a. E a quinhentos quilômetros de distância, o espaço ficava cada vez mais claro.

— A nuvem está recuando — murmurou Harrison. — Provavelmente a massa da bomba será transformada, controladamente, em energia — só assim a nuvem poderá alimentar-se. A nuvem é um ser coletivo mas suas partes unitárias são egoístas. Dê uma olhada...

E realmente era assim. O círculo externo da nuvem devia recear nada conseguir daquele despojo. Ele pressionava para o interior — e de repente a KC-1 estava livre. A aceleração começou imediatamente. A nave abandonou a órbita, afastando-se da nuvem luminosa, que se aglomerava em torno da bomba, esquecendo a presa melhor.

— Desta escapamos — disse Harrison, aliviado. — Se a massa da bomba realmente for convertida inteiramente em energia, deverá dar sustento suficiente para essa “coisa”. Só não compreendo por que nada está anotado, nos mapas, sobre isso. Os arcônidas certamente também já devem ter andado por aqui, alguma vez.

— Talvez a nuvem tenha morrido de fome, em quarenta mil anos — suspeitou Redhorse.

A KC-1 afastou-se cada vez mais do sol amarelo, entrando numa nova órbita. Ainda era possível distinguir a nuvem luminosa a olho nu. Ela se aglomerara, reduzindo-se, e brilhava bem mais clara. Cintilava como um sol.

Koch correu para o telescópio. Ele estava firmemente decidido a observar o fenômeno, por tanto tempo quanto lhe dessem oportunidade de fazê-lo. Harrison fez-lhe companhia nisso.

Quando Redhorse deixou a cúpula de observação, a discussão entre os dois cientistas já se inflamara.

Na sala de comando ele encontrou olhares aliviados. Todos estavam contentes por terem escapado do perigo.

No silêncio, de repente, ouviu-se a voz agitada do chefe de radiocomunicações: — Sir — contato de hiper-rádio! Era Kasom. — Redhorse — precisamos de sua ajuda! Venha imediatamente! — Posição? — Aí vão os dados e instruções... Kasom falou durante dois minutos. Depois o receptor emudeceu. Redhorse voltou à sala de comando com uma expressão impenetrável no rosto. Em

silêncio tomou lugar atrás dos instrumentos. Na tela de imagem continuava a ver-se o sol e a nuvem luminosa resplandecente.

Segundos depois, ambos haviam desaparecido, enquanto a KC-1 entrava velozmente pelo espaço.

Page 109: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

109

6 Frasbur era alto e delgado. Sua pele tinha uma cor morena, aveludada, e os cabelos

muito negros eram ondulados e cheios. Ele era um homem que tinha uma incrível rapidez para reagir.

He jamais vira Gucky, mas imaginou logo que ele pertencia aos terranos, que lhe estavam dando tantos aborrecimentos. De modo algum ele cometeu o erro de subestimar o rato-castor, cujos dons e capacidades ainda lhe eram desconhecidos. Mas, como Gucky surgira aqui no Pavilhão Memorial, no mínimo devia ser um teleportador.

Lemy Danger ele não viu. Gucky também possuía um tempo muito curto para reagir. Ainda antes de Frasbur

poder pegar na sua arma, ele já fechara o capacete, ligando o seu próprio campo energético. Automaticamente o telecomunicador funcionou.

— Frasbur, se não me engano. Se alguma coisa aconteceu com aqueles três homens ali na jaula, nem poderá imaginar o que o espera. Caso contrário, pode até ser que o deixemos viver.

Frasbur entendeu cada palavra, pois Gucky falava na língua tefrodense. E Frasbur era um tefrodense do tempo relativo, e não um lemurense ou um duplo.

Ele deu alguns passos para o lado, até colocar-se bem próximo da jaula reticulada de transmissão. Sem sabê-lo, quase pisou em Lemy — invisível — mas este rapidamente saltou para o lado.

— Os prisioneiros não são protegidos por um campo energético. Eu poderia matá-los, agora, sem dificuldade, sem que alguém pudesse impedir-me de fazê-lo. Isto é uma base para negociações?

Era uma base, isso Gucky teve que conceder. — A morte dos prisioneiros de pouco lhe adiantaria, e muito menos aos senhores da

galáxia. Ao contrário: O senhor teria um monte de aborrecimentos, mesmo sem contar comigo.

— Muito bem, o que quer de mim? — Liberte os prisioneiros, e nós o deixaremos em paz. Frasbur riu. — Está impondo condições, quando sou eu que estou em posição melhor? — As aparências enganam, Frasbur. O senhor não está em posição melhor, mas não

pode exigir que eu lhe ponha os meus trunfos sobre a mesa. Posso garantir-lhe, entretanto, que não sairá são e salvo do seu esconderijo, com seu campo energético ou não.

— Está blefando. Gucky manteve-se aparentemente calmo. Ele sabia o que estava em jogo. Uma

observação errada, ou um movimento, e Frasbur podia matar Tako, Tronar ou Rakal. Ninguém poderia impedir que o fizesse. Havia apenas uma única possibilidade de anular o agente do tempo. Era preciso levá-lo a desligar o campo energético, que o protegia do mundo exterior.

— Em seu lugar, eu não estaria tão convencido disso — declarou Gucky. Frasbur olhou para os seus três prisioneiros. Continuavam deitados ali, imóveis, mas

conseguiam ver e ouvir tudo. Somente ele, Frasbur, conhecia o método, que os livraria do hiperchoque. Mas nada o levaria a aplicá-lo.

— Como é que quer me obrigar a devolver os movimentos aos três terranos? Acredita que seja capaz de manipular meus aparelhos? É o senhor que depende de mim, confesse-o. E por isso mesmo terá que aceitar as minhas condições.

Page 110: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

110

Por dentro, Gucky estava fervendo de raiva, mas controlou-se. Ele certamente conseguiria levar Frasbur a cometer uma imprudência — para isso bastaria ter bastante paciência.

Frasbur dirigiu-se até a grande parede com os controles e os telões de vídeo, com a aparelhagem de comunicações. Apertou uma tecla, sem preocupar-se com o aviso de Gucky. Ele sabia que ninguém poderia fazer-lhe mal algum.

Uma voz que parecia mecânica falou. — Às suas ordens, senhor. Frasbur sorriu, friamente, quando disse ao robô: — Eu fui atacado no Pavilhão Memorial. Todas as saídas devem ser imediatamente

fechadas e guardadas. Ninguém pode sair, a não ser eu mesmo. Preparem a paradefesa. Dez robôs de combate, imediatamente, ao Pavilhão Memorial. O intruso deverá ser aniquilado — ele desligou e virou-se. — E agora?

Campos energéticos são uma faca de dois gumes. Frasbur conseguia mexer nas instalações sem desligar o seu campo energético individual. Feixes energéticos passavam de dentro para fora, mas jamais ao contrário.

— Vamos esperar — disse ele calmamente. — Há uma coisa que o senhor esqueceu. E então ele deu um pulo enorme, quando a porta foi aberta violentamente e os

guardas-robôs penetraram no Pavilhão Memorial. Imediatamente abriram fogo em cima do rato-castor.

Gucky agiu com a velocidade de um raio, e exatamente conforme planejara. Fez uso de seus dons telecinéticos.

Até mesmo um forte campo energético individual suporta apenas uma carga bem determinada, depois ele acaba arriando. Quando penetra nele mais energia do que ele mesmo devora para se manter, torna-se inútil.

Os tiros energéticos dos robôs eram dados completamente a esmo através do pavilhão, sem encontrar um alvo. A força invisível de Gucky dirigiu os seus braços armados numa outra direção, mas ele precisou de pelo menos dois minutos, até finalmente ter todos os dez robôs sob o seu controle telecinético. Teve que concentrar-se fortemente, e evitar, ao mesmo tempo, que um feixe de energia perdido, daquelas armas, atingisse a jaula gradeada, com os mutantes imóveis.

Mas então as dez armas energéticas concentraram os seus raios no alvo que lhes era ordenado.

No campo energético individual de Frasbur. O agente do tempo ficou tão perturbado que quase não compreendeu em tempo o que

estava acontecendo. Ficou parado, como petrificado. O seu cérebro trabalhava e ele logo reconheceu o tipo de perigo a que estava exposto. Um telecineta! Um telecineta que obrigava os robôs a atacar o seu próprio chefe.

E dez feixes de armas energéticas, concentrados, eram demais até mesmo para o campo energético individual de Frasbur.

O agente do tempo abaixou-se e passou correndo velozmente através das fileiras de robôs, que não conseguiam reagir com a velocidade que Gucky gostaria que eles tivessem. Ele atingiu a porta ainda aberta, correndo para o corredor. Gucky não podia segui-lo, sem que os robôs imediatamente o atacassem.

— Lemy, atrás dele! Ele não sabia se Lemy o escutara, e também não podia vê-lo. Somente pôde esperar

que o siganês invisível estivesse perseguindo Frasbur, sem perdê-lo de vista. Antes de mais nada, teve que dar um jeito nos robôs, que se opunham, inutilmente,

contra a influência telecinética. Mas, por tempo indeterminado, nem um mestre telecineta como Gucky seria capaz de pôr dez inimigos, ao mesmo tempo, em xeque.

Page 111: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

111

No corredor, ouviam-se passos pesados. Que se aproximavam cada vez mais. E então apareceram mais cinco robôs de combate, no Pavilhão Memorial. Agora a coisa ficara séria para o rato-castor. Ele teve que usar de toda a sua

capacidade para não ser esmagado pela simples superioridade numérica. Mas por nenhum dinheiro deste mundo ele agora teleportaria para colocar-se em segurança, deixando para trás os seus amigos em estado de choque. Quisesse ele ou não, tinha que dar um jeito nos robôs, tinha que vencê-los.

Os cinco recém-chegados abriram fogo, mas logo tiveram uma surpresa, com a qual certamente não haviam contado.

Acabaram entrando no fogo cruzado dos seus próprios colegas. E como eles não possuíam campos energéticos de proteção, o resultado foi devastador.

Dentro de apenas vinte minutos estavam incapacitados para qualquer ação, ou inteiramente destruídos. Os seus destroços cobriam o piso do pavilhão e quase fecharam o caminho para a fuga. Mas esta era a menor preocupação de Gucky, neste momento.

Ele ergueu dois dos dez robôs restantes do chão, e fez com que se atirassem, com fúria total, em meio aos outros. Houve uma terrível confusão, e os feixes das armas energéticas encontraram novos alvos. Quando Gucky retirou-se um pouco, para ganhar novas forças, apenas quatro robôs de combate ergueram-se ainda, partindo para cima dele, com as armas em riste.

Gucky esperou-os calmamente.

* * *

Frasbur corria pelos corredores, como se tivesse o demônio nos calcanhares. E algo parecido era realmente o caso, só que o agente do tempo não o sabia. É que

Lemy ficara bem junto dele, esperando pela sua oportunidade. A princípio esperou inutilmente. Frasbur nem pensava em desligar o seu campo

energético protetor. O agente do tempo reconheceu ter cometido um erro. Apesar de todos os cuidados ele

subestimara o seu oponente, mas como é que ele poderia ter imaginado que o pequeno estranho era teleportador e telecineta a um só tempo?

Este adversário não devia escapar-lhe. De qualquer modo, ele podia fugir e levar consigo os estranhos paralisados. Os terranos certamente tinham conhecimento suficiente, no campo médico, para eliminar os efeitos colaterais da hiper-transmissão.

Por isso ele tinha que fechar o Pavilhão Memorial hermeticamente à superfície, para que os prisioneiros não pudessem ser seqüestrados.

Infelizmente ele não pensara em garantir o novo Pavilhão Memorial com uma para-armadilha — um erro, conforme agora ficava demonstrado, os lemurenses possuíam este tipo de instalação. Estavam estocadas em lugares seguros, mas podiam ser apanhadas a qualquer hora e instaladas.

E era exatamente isto que Frasbur pretendia fazer. No corredor, ele encontrou alguns robôs especiais. Deu-lhes a ordem de se ocuparem

imediatamente com o invasor do Pavilhão Memorial, e correu em frente. Lemy continuou nos seus calcanhares. Além de tudo ele ligara sua aparelhagem de

vôo individual, já que não podia correr tão depressa. Assim ele pairava silenciosamente e invisível atrás de Frasbur, que não se dava conta do seu estranho perseguidor.

O agente do tempo parou por um instante diante do elevador antigravitacional, com o qual ele antes deixara o seu esconderijo e pelo qual também havia voltado. Depois continuou, desta vez mais devagar. Chegou ao fim do corredor e parou novamente.

Page 112: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

112

Uma parede de metal era tudo que se podia ver. Lemy convenceu-se imediatamente que não se tratava de uma simples parede, e já o segundo seguinte deu-lhe razão.

Frasbur apertou com o pé num controle escondido, e a porta secreta deslizou para dentro da parede oca do corredor. Fez-se uma abertura, suficientemente grande para que Frasbur pudesse passar.

Antes de poder fechá-la novamente, Lemy também já havia passado. O novo corredor tinha uma iluminação apenas suficiente e era bem mais estreito.

Frasbur mandara fazê-lo, para ter um caminho de fuga, mas, em primeira linha, para poder surgir, a qualquer momento, sem ser esperado e notado, no espaçoporto e na administração lemurense.

Ele não confiava nos lemurenses. E sabia que eles também não confiavam nele. Lemy não sentia o piso áspero, mas pôde ver pelo caminhar cuidadoso de Frasbur que

aquele corredor só era usado muito pouco. Continuava esperando por sua oportunidade, e esperava que a mesma não demoraria a chegar.

E veio, quando Frasbur chegou ao fim do corredor. Ele entrou no elevador antigravitacional, que imediatamente dirigiu-se para o alto.

Tudo ficou mais claro, e logo Frasbur estava dentro de uma espécie de guarita, parecendo sem importância, como havia dúzias delas à beira do espaçoporto.

Os holofotes varriam o terreno, mergulhando-o numa luz que parecia dia. Por perto, patrulhavam sentinelas, com as armas prontas para atirar. Eles parariam qualquer pessoa, mas o deixariam passar, sem questioná-lo, o Grão-Mestre-Conselheiro da Terra. Frasbur sabia disso e contava com isso. Agora não podia perder tempo. E se os técnicos responsáveis pelas para-armadilhas estivessem dormindo, ele simplesmente teria que acordá-los.

Naturalmente ele não poderia continuar andando por aí, protegido pelo seu campo energético individual sem causar suspeitas. Teria que desligá-lo.

E o fez, ainda dentro da pequena guarita. Lemy há muito tempo estava com a sua diminuta arma energética apontada para ele,

pronta para atirar. Ele a havia regulado de tal modo que apenas paralisaria uma pessoa, sem matá-la. A paralisação duraria várias horas, caso não fosse injetado um antídoto.

Frasbur arriou como se tivesse sido atingido por um raio, quando o campo paralisador o envolveu. Por sorte, ele não chegou a cair para fora da guarita, ficando deitado sob sua proteção. Os guardas no espaçoporto nada notaram.

Lemy verificou que o adversário fora posto fora de combate, depois concentrou seus pensamentos em Gucky e esperou que o rato-castor agora tivesse tempo para dar-lhe atenção. E esperou.

* * *

Gucky ofereceu uma violenta batalha aos robôs do agente do tempo. Secretamente ele sentiu pena que, além dos três mutantes paralisados, ele não tivesse

outras testemunhas, pois em sua opinião valeria a pena que esta luta fosse registrada nos anais da história da humanidade. E no fundo, chegou até a divertir-se com o que acontecia.

O piso do Pavilhão Memorial parecia um campo de ruínas após um violento ataque. No meio daquilo tudo, de vez em quando mexia-se ainda uma ou outra peça de metal, mas isso era tudo. Cada robô, que de agora em diante entrava no pavilhão, era imediatamente exterminado por Gucky, com um tiro ou por telecinesia.

E então não apareceu mais nenhum.

Page 113: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

113

Gucky trancou a porta. Ele agora podia ter certeza de que naquelas instalações subterrâneas praticamente não havia mais um só robô. Foi até a jaula e olhou para aqueles vultos imóveis no chão.

— Vocês podem pensar, portanto também podem me responder. De resto, está tudo bem com vocês? Algum dano?

Tako respondeu por todos. Ele pensou: — Tudo em ordem. Nossos sentidos trabalham normalmente, porém os nervos e

músculos estão paralisados. Frasbur pretendia levar-nos aos senhores da galáxia. Dentro de uma hora. Tire-nos daqui, Gucky.

— Isso é fácil de dizer. Kasom e Redhorse esperam por nós. Lemy está tentando liquidar Frasbur. Vocês têm que sair desse estado de paralisia antes que nós possamos transportar-nos para um lugar seguro. Logo que eu tiver contato telepático com Lemy, veremos...

Ele silenciou. Lemy o chamava. Ele paralisara Frasbur e esperava por ajuda. — Logo estarei de volta. Não se preocupem, eu não demoro nada. Ele localizou o lugar onde se encontrava Lemy e teleportou. Dez segundos mais tarde

rematerializou novamente do Pavilhão Memorial em ruínas. Colocou Frasbur no chão e depôs cuidadosamente Lemy que tornara-se visível outra vez.

Na voz de Gucky havia satisfação. — E então, Frasbur, o que me diz agora? Os seus robôs estão todos transformados em

sucatas, não valendo mais nada. Se a ligação de hiper-rádio com os seus senhores e patrões ainda funciona, eu não sei. Mas sei que dificilmente ainda irá precisar dela. E agora eu gostaria de pedir-lhe para libertar os três prisioneiros do seu choque. Está preparado para isso?

Frasbur não podia responder, mas pensava. E pensou um claro e categórico NÃO. Gucky tirou-lhe os aparelhos que serviam para a formação do campo energético.

Aliás, tirou-lhe tudo que lhe pareceu suspeito. Deixou-lhe apenas o uniforme. Depois injetou-lhe o antídoto, e poucos segundos mais tarde Frasbur estava novamente capaz de agir. Mas isso não lhe adiantou muito. Lemy mantinha a sua arma constantemente apontada para o agente do tempo.

Gucky procurou nos seus bolsos e tirou de lá um tubinho de comprimidos. Colocou-os na sua mão espalmada e olhou-os quase que amorosamente.

— Uma droga dos diabos, que nossos químicos acabaram inventando! Na realidade não é possível imaginar que estas pílulas possam ter um efeito tão destrutivo. E ainda por cima, tão rapidamente! Até mesmo um sáurio esqueceria, em poucos minutos, que pesa algumas toneladas. Aliás, ele esqueceria tudo. Como um ser humano. Só que o efeito nos seres humanos é bem pior, porque eles, afinal, possuem uma coisa que se pode destruir. Ou seja, um cérebro.

Ele olhou Frasbur, do alto, pois o primeiro estava acocorado no chão. — Não entendo uma só palavra — disse Frasbur teimosamente, apesar de Gucky ter

dado indicações suficientes. — Que comprimidos são esses? Gucky segurou o tubinho contra a luz indireta do teto. — Pílulas para retificação de circunvoluções cerebrais — disse ele, embevecido. — É

que, assim, os pensamentos fluem mais facilmente. Frasbur olhou-o sem entender. — Como? — perguntou ele, perplexo. — Ora, é muito simples. Mas, afinal, o senhor é leigo, ia me esquecendo disso. Bem,

como é que eu conto isso a meu filhinho? Bem, o que acontece, para expressá-lo com o máximo de simplicidade, é que, uma vez que não há mais circunvoluções, os pensamentos

Page 114: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

114

passam com uma velocidade tamanha pelo cérebro, que o mesmo não tem mais tempo algum para armazenar lembranças. E agora, deu para entender?

Frasbur já não olhava mais Gucky, sem entender, mas bastante assustado. — O senhor está querendo me roubar a memória? — Não apenas isso — disse Gucky, indiferente, abrindo o tubinho. Tirou logo dois

comprimidos, colocando-os na palma da mão, e olhando em volta, como procurando alguma coisa. — Um pouco de água talvez fosse bem melhor, pois então elas não seriam tão amargas. Ora, isso com a retificação, com o endireitamento, digamos assim, das circunvoluções cerebrais, nem seria tão terrível. Mas a droga tem um efeito ainda mais profundo, meu amigo. As lembranças existentes permanecem. Portanto o senhor vai contar-nos tudo que sabe até este momento. Como, por exemplo, também, como se livra prisioneiros do seu estado de paralisia. E mais do que isso, aliás, nós não queremos saber. Mas o que acontece depois, não lhe servirá para muita coisa. Essa droga de endireitamento das circunvoluções cerebrais...

— Pare com isso! — gemeu Frasbur, horrorizado. — O senhor é o próprio demônio! — Muito obrigado pelo elogio. Mas eu lhe deixo em paz, se me revelar com nossos

amigos, ali na grade reticulada, as transformam outra vez em homens saudáveis e lépidos... — E se eu não o fizer — o que acontece então? — O senhor é nosso prisioneiro e não tem nada que impor condições, mas eu posso

prometer-lhe que nada lhe acontecerá. De modo algum nós faremos experiências com o senhor, nem tocaremos no seu cérebro.

Frasbur ficou refletindo. Depois balançou a cabeça. — Muito bem. Eu vou ajudá-lo. Posso levantar-me? Gucky leu seus pensamentos, e verificou, satisfeito, que Frasbur falava a verdade. A

perspectiva de transformar-se, para sempre, num idiota balbuciante, tinha sido demais para ele. Ele agora mostrar-se-ia pronto a colaborar, e talvez, mais tarde, aproveitaria uma oportunidade para fugir.

— Levante-se, mas nada de movimentos em falso. E ai do senhor, se fizer algum mal aos prisioneiros! — Gucky ergueu o tubinho. — Nesse caso eu lhe faço engolir todo o conteúdo de uma só vez, e poso garantir-lhe que, depois disso, em todo o Universo, não haverá um imbecil maior que um certo Frasbur.

O agente do tempo ergueu ambas as mãos, num gesto defensivo. — Se o senhor fosse telepata, saberia que estou falando sério. — Se eu fosse telepata! — disse Gucky, indiferente. — Neste caso, eu também saberia

o que o senhor agora terá que fazer, para ajudar os prisioneiros, não é mesmo? — Exatamente — concedeu Frasbur, sorrindo friamente. Gucky verificou que o agente do tempo era cauteloso demais, evitando pensar nos

prisioneiros. Por meios telepáticos não era possível ficar sabendo o que era preciso fazer para livrar Tako, Tronar e Rakal dos efeitos posteriores ao choque recebido.

Frasbur encaminhou-se à jaula reticulada, a qual, como por milagre, passara incólume pela luta de titãs entre Gucky e os robôs. Olhou os prisioneiros, antes de virar-se novamente, erguendo os ombros, e indo para o outro lado do pavilhão. A parede era recoberta de controles e instrumentos de todo tipo. Alguns tiros energéticos haviam causado enormes estragos.

— Tiveram sorte — disse Frasbur, puxando uma alavanca. Gucky estava bem junto dele, com a arma energética pronta para disparar. — Eu agora vou produzir um campo de transmissão especial, que envolverá completamente os homens em estado de choque. Este é o método melhor e o mais rápido. Durante este tempo, eles ficam no transmissor. Não demora mais de cinco minutos.

Page 115: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

115

Gucky espiou nos pensamentos de Frasbur. Até agora, estava tudo certo o que dizia. Ainda assim, cautela nunca era demais.

Mas também Frasbur foi cauteloso. Se havia telecinetas e teleportadores, por que não haveria telepatas?

Mas nada é mais difícil do que não pensar em alguma coisa em que se tem que pensar. Somente por um único segundo Frasbur pensou na alavanca que puxara para fora, e

este pensamento estava relacionado com o conceito “errado”. A alavanca certa era aquela que ficava-lhe à direita. Gucky deu um salto para a frente, e empurrou a alavanca para trás. — Estava querendo transportar os prisioneiros para algum lugar, Frasbur. Azar o seu.

Eles iriam desaparecer diante de nosso olhos, não é mesmo? Frasbur recuou. — Quer dizer que é mesmo telepata? Eu já imaginara. — Então por que não agiu correspondentemente? Lemy, os feixes de paralisação. Eu

agora posso manipular sozinho estes controles aqui. Frasbur teve a gentileza de pensar o tempo todo neles.

Frasbur arriou, estremecendo. Gucky olhou-o por alguns instantes, depois colocou de volta, no seu bolso, o tubinho

de comprimidos, estudando o painel de controles. Com um puxão, ele apertou para baixo a alavanca, na qual Frasbur fazia tanta questão de não pensar.

A grade do transmissor de repente começou a cintilar, iluminando-se com uma luz azulada. Tako foi o primeiro a se mover.

— Falar eu anda não posso, mas isso logo virá. Foi a alavanca certa, Gucky. Graças a Deus! — pensou ele.

— Eu sabia, caso contrário dificilmente ousaria ativá-la. Atenção, vou desligar novamente. Espero que tenha sido o suficiente.

Mal o campo do transmissor havia sido desligado, Tako conseguiu falar. Tronar e Rakal se mexeram.

— Já está dando para me mexer novamente. Eu temia que o efeito durasse por horas seguidas — Tako ergueu-se devagar, hesitante. — Parece um milagre.

Gucky abriu a porta do transmissor. — Muito bem, agora vamos ver se eu realmente fiz o meu cursinho de primeiros

socorros à toa. Bell está sempre dizendo que durante o mesmo, eu passei o tempo todo dormindo, esse patife...!

* * *

Kasom terminara o seu passeio pelo vale, e durante todo o tempo pensara em Gucky.

Ele chegou a conversar, unilateralmente, com ele, descrevendo a situação. Como não sabia se Gucky captaria ou não os seus impulsos, ele repetira a história pelo menos uma dúzia de vezes. E agora a conhecia quase de cor.

No momento estava parado na entrada da gruta, olhando para o vale, lá embaixo. Era uma vista bonita. Por cima estendia-se, infelizmente, um céu cinzento, e o sol continuava pairando perto do horizonte. Do vale via-se apenas, ainda, o seu reflexo.

E então, de repente, houve um ruído atrás das costas de Kasom. Ele pegou na arma e virou-se. Gucky sorriu-lhe, divertido. — E então, gordão, certamente ficou chateado, por aqui? Afinal, esteve pensando uma

bela baboseira, o tempo todo. Afinal, o que é que as moças de Rajika têm a ver com a nossa missão...?

Page 116: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

116

Kasom fez que não ouviu a pergunta. — O que há com os outros? Onde está Lemy? Vocês os encontraram? — Tudo em ordem, Kasom. Eu vou buscá-los. E também vamos trazer conosco um

lindo pacote — o agente do tempo Frasbur. — E como é que vamos transportar tudo isso com o mosquito? — Justamente! Entre em contato, imediatamente, com Redhorse, e ajeite isso. Que ele

se aproxime o máximo possível, depois nós teleportamos. Você pode calcular o tempo. Redhorse vai precisar, com todo o cuidado, no máximo três horas até aqui. Mas ele não deve pousar, isso seria perigoso demais. A distância também não quer dizer nada se pudermos rastreá-lo. Se ele fizer uma comunicação de hiper-rádio durante três ou cinco segundos, isso bastará. Para mim, como também para os gêmeos. Até que os lemurenses dêem pela coisa, nós já teremos escapado. Logo estarei de volta com os outros.

Kasom ainda quis dizer alguma coisa, mas Gucky já estava desmaterializando novamente.

Kasom encolheu os ombros e entrou na cabine de comando do caça-mosquito. Dentro de poucos minutos ele tinha estabelecido contato com a KC-1 e com o Major Redhorse.

Depois, ele sentou-se diante de sua gruta e esperou. Primeiro apareceu Tako com os gêmeos Tronar e Rakal. Ainda estavam exaustos, mas

fora disso, aquela aventura além do espaço e do tempo não parecia ter-lhes feito mal. Gucky materializou com Frasbur pela mão e Lemy no bolso do macacão. O agente do

tempo, depois do tratamento recebido de Gucky, estava meio inconsciente e inteiramente paralisado.

— Isso é bastante embaraçoso durante a teleportação — concedeu Gucky, mais tarde, quando todos estavam sentados diante da gruta, olhando para o vale. — Talvez seja melhor, Kasom, que você o leve consigo no caça. Ali ele tem lugar bastante e não incomoda. Antes disso, nós ainda lhe aplicamos um campo paralisador, para que ele durma. E quando ele despertar, já estará diante de Perry. E então ele logo abrirá a boca, só com o susto.

— Pois eu sugiro que você o leve consigo — disse Kasom. — Quem sabe se eu vou conseguir passar com o mosquito? — ele olhou o relógio. — Redhorse vai irradiar o microssinal em exatamente duas horas e dez minutos. Precisamos estar preparados, pois cinco segundos são desgraçadamente muito pouco tempo.

— São suficientes — disse Gucky. Ele olhou lá para baixo, para o vale, e nos seus olhos, de repente, havia um brilho de saudade. — Aqui só cresce grama. Se eu me lembro de minha horta em Terrânia, sinto água na boca. Já faz anos que os oficiais da manutenção só me atiram cenouras congeladas, e ainda acham que, com isso, estão me fazendo um enorme favor.

— Grama? Lembro-me que você também já comeu disso, certa vez — disse Tako. — Isso foi no cumprimento do meu dever — retrucou Gucky, que não gostava de ser

lembrado do seu papel como lebre. Mas isso já fazia algumas centenas de anos. — Tem um gosto horrível.

O tempo parecia passar muito lentamente. Tako e os gêmeos relatavam sua aventura no hiperespaço. Especialmente o seu encontro com Harno e Ellert mereceu o maior interesse de Gucky e Kasom. Lemy disse, finalmente:

— Que pena que eu não estava presente! E estes espíritos — ou seja lá o que eles eram — quiseram convencer vocês a se tomarem um elemento energético do outro Universo?

Gucky deu sua risadinha irônica. — Ora, justamente você, Lemy! Eles dificilmente mostrariam interesse no pouquinho

de matéria que você tem para oferecer. Afinal, você mal daria força suficiente para um barbeador elétrico.

Page 117: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

117

— De qualquer maneira, você não pode negar que... — começou Lemy, mas silenciou imediatamente, ao ouvir o ruído forte que penetrava na gruta.

— Desapareçam! — murmurou Gucky, jogando-se ao chão, de barriga para baixo. — Procurem cobertura na gruta!

Eu vou dar uma olhada. — Não seria melhor se eu...? — perguntou Lemy. — Deixe isso comigo! Enquanto os outros recuaram um pouco, Gucky empurrou-se mais para a frente, até

poder olhar para cima. Imediatamente descobriu os quatro planadores, que pairavam bem próximos do cume da montanha e logo depois iniciaram a descida.

Parecia inteiramente como se fossem pousar. — Era só o que ainda nos faltava! — disse Gucky, furioso. — O que é que eles vêm

procurar, justamente aqui? — ele verificou que se tratava de planadores antigravitacionais bem comuns, dos que eram usados para transporte pessoal ou em expedições. — Não parecem ter armas pesadas. Nós poderíamos dar conta deles, mas se eles utilizarem o rádio, nosso esconderijo não valerá mais nada.

— Talvez eles nem estejam nos procurando — disse Kasom. — Em caso de necessidade, vamos ter que surpreendê-los e liquidá-los.

— Isso já está me cansando — resmungou Gucky. Ele pensava na sua luta exaustiva com os robôs. — Se nos mantivermos bem quietos, eles certamente não nos descobrirão.

Os quatro planadores pousaram. Alguns lemurenses uniformizados desceram e começaram a discutir vivamente. Era possível ouvir suas vozes irritadas até na gruta, mas, infelizmente, não se entendia nem uma palavra.

— Quem sabe agora eu poderia... — começou Lemy, mas foi imediatamente interrompido por Gucky outra vez.

— Fique quieto! Está querendo chamar a atenção desses sujeitos para nós? Lemy ficou quieto. Os lemurenses pararam de discutir. Equiparam-se com alguns instrumentos e

marcharam na direção do pequeno riacho. Dois pilotos ficaram para trás, perto dos aparelhos.

Lemy ligou o defletor e depois sua aparelhagem de vôo autônomo, mas isso os seus amigos já não viram mais. Apenas sentiram uma leve brisa, quando Lemy saiu voando da gruta.

Kasom disse: — Redhorse já deve estar a caminho. Só espero que ele consiga passar pelas linhas

lemurenses sem incidentes. Eles vigiam aquilo muito bem. Ninguém respondeu, e a conversa morreu novamente. Muito tensos, eles ficaram

observando os homens que haviam chegado ao riacho, tirando o equipamento das costas e montando-o. Parecia muito o trabalho de um grupo de medições topográficas. Um dos homens virou-se, repentinamente, batendo com a mão no ar. Depois sacudiu a cabeça, disse alguma coisa aos seus companheiros, e começou a cavar no chão rochoso.

— Parecem garimpeiros à procura de ouro — disse Gucky, que ainda não conseguira ler nada de significativo na mente daqueles homens e por isso estava chateado.

— E são isso mesmo — ou coisa parecia — Lemy tornou-se visível novamente no centro da gruta, pousando suavemente na rocha. — Eles estão à procura de algum metal. Parece que ele existe aqui neste vale, pelo que eles puderam constatar com seus instrumentos. Não precisamos ter medo deles.

— Mas se eu decolar, eles vão notá-lo — enfatizou Kasom. — Aliás, isso não tem muita importância. Pois em poucos segundos terei Kahalo pelas costas.

Page 118: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

118

— Garimpeiros! — resmungou Gucky, com desprezo. — Quem poderia imaginar uma coisa dessas!

Kasom olhou o relógio. — Mais dez minutos. Sugiro que nos aprontemos. O hiper-receptor está ligado. O que

acontece, quando o impulso chega? Eles discutiram, mais uma vez, todos os detalhes. Tronar e Rakal Woolver deveriam enfeixar-se imediatamente no hiperimpulso. Sem

perda de tempo eles rematerializariam na sala de rádio da KC-1. Tako teleportaria junto com Gucky, levando consigo Frasbur ainda inconsciente.

Lemy não oferecia qualquer dificuldade, pois já estaria novamente metido no bolso de Gucky. Apenas Kasom teria suas dificuldades pois, de modo algum, ele queria deixar para trás o valioso caça-mosquito. Teria que tentar encontrar a KC-1 com ele. Se isso não lhe fosse possível, teria que voltar, sozinho, para a Crest.

Cinco minutos. Os lemurenses estavam justamente examinando as pedras que haviam encontrado no

leito do riacho. Eles estavam bastante ocupados consigo mesmos, e era duvidoso que notassem o mosquito, quando este decolasse.

Gucky apanhou Lemy do chão, colocando no seu bolso. — Segure-se, baixinho — aconselhou ele. Depois pegou a mão flácida de Frasbur. Tako pegou na outra. Prendendo a respiração,

eles esperaram. Os capacetes estavam fechados. Kasom estava sentado diante dos controles. Tronar e Rakal estavam parados, do seu

lado, esperando também pela microonda de rádio. Cinco segundos, para eles, era tempo suficiente para enfeixarem-se na onda energética do impulso de rádio.

“Para mim é mais difícil”, pensou Gucky. “Mas se Tako me ajudar, e também estiver concentrado no lugar exato, a coisa tem que dar certo.”

Kasom olhou para o alto-falante. Dele saía o chiado regular das interferências cósmicas. Mas dez segundos, de acordo com o seu relógio.

E depois de exatamente dez segundos, ouve um clique no alto-falante. O sinal combinado! Depois de exatos cinco segundos ele emudeceu novamente. Kasom virou-se. Estava sozinho na gruta.

Page 119: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

119

7 O Major Redhorse estava de pé entre a sala de comando e a sala de hiper-rádio,

quando o sinal combinado foi irradiado. Antes, ele tinha passado por uma agitada perseguição e caçada através das linhas de vigilância lemurenses. Só podia agradecer ao acaso ter conseguido livrar-se dos teimosos perseguidores, fazendo com que eles perdessem o seu rastro.

Em queda livre a KC-1 caía na direção da superfície de Kahalo. Deste modo, um rastreamento era praticamente impossível, a não ser que alguma nave lemurense estivesse muito próxima.

A dois mil quilômetros de Kahalo, Redhorse ligara novamente a propulsão e interrompeu a queda livre da nave espacial esférica. A KC-1 entrou numa órbita de apenas poucos minutos. Nas telas de rastreamento apareceram, repentinamente, os pontinhos dos perseguidores. E rapidamente ficaram maiores.

— Agora! — disse Redhorse. O comando era desnecessário. O automático estava ligado há horas, e não precisava

de qualquer regulagem humana. O impulso hiperenergético de rádio foi enviado. Ainda antes de terminar havia, na KC-1, mais quatro seres humanos, além de um rato-

castor e um siganês. Todos eles materializaram na sala de radiocomunicações. Tako perdeu o equilíbrio e foi ao chão, quando Gucky soltou o desmaiado Frasbur. Levantou-se novamente, com alguma dificuldade, lançando um olhar de censura ao rato-castor. Gucky repuxou a cara, com um sorriso de desculpas.

— Desculpe-me, Tako. Mas eu já tinha até esquecido o bom Frasbur — ele aproximou-se de Redhorse. — Apresentamo-nos de volta da missão, major. E agora nada mais que — disparar pelo centro!

— O que houve com Kasom? — Está vindo por aí. Espero. Redhorse olhou as telas de imagem. — Realmente não temos outra alternativa, a não ser desaparecer daqui o mais

depressa possível. Dentro de poucos minutos isso aqui certamente vai ser um inferno. Espero que Kasom ainda consiga passar.

— Ele vai conseguir — garantiu Tako, otimista. — Importante é que levemos Frasbur até Rhodan. Ele vai tirar dele tudo que é importante para nós. Kasom — bem, para falar francamente, eu não me preocupo absolutamente por ele.

Redhorse deu as instruções necessárias ao Major Nowak-Mills. A KC-1 iniciou viagem e logo estava saindo, em aceleração máxima, da zona de perigo. Os lemurenses iniciaram a perseguição, mas ficaram para trás, quando a nave espacial esférica desapareceu no espaço linear.

A cerca de duzentos anos-luz distante de Kahalo a KC-1 voltou ao espaço normal, para investigar a situação de Kasom. Os rastreadores trabalhavam com sua força máxima e mostravam qualquer tipo de matéria numa circunferência de diversos anos-luz. Além disso, Redhorse irradiou um microssinal de reconhecimento, mas não obteve resposta. Também os rastreadores não revelaram onde estava o pequeno caça-mosquito.

Depois de duas horas, eles desistiram da busca. Redhorse mostrava-se preocupado. Lemy e Gucky, que dormiram um pouco, eram

mais otimistas.

Page 120: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

120

— Talvez ele tenha escolhido um outro caminho, para ter maior segurança. Nós estamos numa rota direta para Redpoint. É bem possível que ele tenha escolhido uma outra rota.

— É claro, pode ser — Redhorse não parecia muito convencido. Era dele a responsabilidade de levar de volta para a Crest todos os participantes da expedição, sãos e salvos. — Mas também pode não ser.

— Kasom! — disse Gucky, também não exatamente convencido. — Pelo que eu conheço de Kasom, ele seria capaz de voar para a Crest até sem o mosquito. Dele, eu espero qualquer coisa.

— Mas eu estou realmente preocupado — concedeu Lemy. Gucky levantou os olhos para o teto. — Eu também — disse ele, quase inaudivelmente. Eles fizeram somente vôos lineares curtos, para sempre voltarem ao espaço normal,

onde podiam procurar por Kasom. Certa vez, descobriram, muito perto, diversas naves dos lemurenses foram rastreados e perseguidos. Escaparam pelo espaço linear.

De Kasom não havia nenhum sinal. Talvez a sua fuga tivesse falhado, e agora ele poderia estar esperando por ajuda, em

algum lugar, se ainda estivesse vivo. Ou então o haviam enfrentado e destruído sua pequena nave espacial.

— Impossível — afirmou Lemy. — O potencial de combate do caça... — ...nem sempre é decisivo — interveio Redhorse. — Se ele foi surpreendido pelos

lemurenses, talvez não pudesse safar-se com a rapidez necessária. Mas, acho que não faz sentido quebrarmos a cabeça sobre isso. Vamos fazer mais uma interrupção, depois voaremos diretamente para a Crest. Eu desembarco vocês ali, e depois volto para Kahalo. Sozinho. Vou encontrar Kasom, ainda que tenha que virar todo aquele planeta de cabeça para baixo.

Gucky silenciou, chateado. Ele não tinha nenhuma sugestão melhor para fazer. — Mas eu vou também! — piou Lemy, que estava parado, de pernas abertas, em cima

da mesa de navegação. — Eu vou procurar meu amigo Kasom! Gucky estendeu a mão, segurando Lemy na mesma. O anão debateu-se

desesperadamente, com braços e pernas, mas Gucky era mais forte. E com ele, pouco adiantava o recorde de levantamento de peso de Lemy, no seu mundo de origem.

— Você vai encontrá-lo? Isso certamente me espantaria. Escute, você geralmente é um menino muito inteligente. Eu gostaria de perguntar-lhe uma coisa. Quantos anos, realmente, você tem agora?

— Cento e setenta... — gaguejou Lemy, espantado. Não sabia o que Gucky tinha em mente. — Por quê?

— Você já vai ver. A sua raça — são terranos adaptados às condições ambientais, certo?

— Certo. Para que isso? — E desde quando existe uma raça de terranos adaptados às condições ambientais no

seu planeta-mãe? — Desde cerca de trezentos anos. Por que pergunta? — Ótimo, então, para terminar, uma última pergunta — Gucky colocou Lemy

novamente sobre a mesa. — Qual é a sua perspectiva de tempo de vida? — Para que essa besteira toda? Qualquer um sabe que um siganês chega a oitocentos

ou novecentos anos de idade. Gucky deu uma gargalhada sonora.

Page 121: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

121

— E nunca ninguém lhe disse que você é um mentiroso? Como é que você pode saber quantos anos vocês têm de perspectiva de vida, se existem há apenas trezentos anos? Será que você poderia revelar-me isso?

Lemy olhou para o rato-castor, perplexo. No seu rosto havia uma ligeira sombra de surpresa, mas só por alguns segundos. Depois ele disse:

— Nossos cientistas é que descobriram isso. Gucky anuiu, zombeteiro. — Não me diga? Gente competente, devo dizer. Certamente também eram siganeses. Lemy passeava de um lado para o outro, sobre a mesa. — Acho que agora temos preocupações muito diferentes, se não me engano. Major

Redhorse, tome providências para que eu, a bordo de sua nave, não seja incomodado mais que o necessário. E sobretudo que não me façam mais perguntas idiotas — ele olhou para Gucky, atentamente. — Uma coisa que eu gostaria de saber: Que história foi aquela com os comprimidos que você quis impingir a Frasbur? Retificação de circunvoluções cerebrais... ou coisa parecida. Isso é coisa que nem existe!

— E claro que há circunvoluções cerebrais — retrucou Gucky, sério. E maliciosamente, acrescentou. — Pelo menos em seres inteligentes.

— Estou falando dos comprimidos. Onde é que você arranjou essa droga? Gucky levou a mão ao bolso da calça, retirando o tubinho. Segurou-o na mão

espalmada, e riu, irônico. — Está falando disso aqui? São comprimidos para dor de dente. Coisa antiquada, mas

o que é que eu posso fazer? Todos os terranos ou têm uma prótese ou têm dentes perfeitamente sãos. Mas quem é que me faria uma prótese? Portanto, tomo os comprimidos quando ele me dói.

— Dê-se por feliz por ter apenas um só dente, pois desse jeito só podem arrancar-lhe um só. E nisso, desde logo, desejo-lhe um bom divertimento — disse Lemy.

Gucky lançou um olhar demolidor para Lemy, mas depois sorriu, matreiro, e saiu, bamboleando, da sala de comando.

— Muito bem, vamos em frente — disse Redhorse, fazendo um sinal com a cabeça para o piloto-chefe. — Destino: Redpoint. Vôo direto para a Crest.

Algumas horas mais tarde Redpoint já podia ser visto a olho nu. O astro vermelho foi avistado, logo que a KC-1 saiu do espaço linear, iniciando de imediato a manobra de aproximação. Na ocasião Redhorse mandou irradiar uma rápida mensagem de hiper-rádio, identificando-se a si mesmo e a sua nave.

Frasbur estava deitado na sua cabine, preso por algemas magnéticas. Estava novamente consciente, mas insistia em silenciar, não respondendo a qualquer pergunta. Tako, Rakal e Tronar já estavam novamente restabelecidos, esperando impacientes o momento de poderem apresentar-se a Rhodan. O seu relato sobre o hiperespaço certamente o interessaria.

Também Redhorse tinha seus problemas. O professor Koch e o Dr. Harrison tinham feito um relatório quilométrico a respeito do seu encontro com o ser luminoso, recheado de expressões técnicas e científicas. Uma pessoa normal dificilmente entenderia aquilo.

A Crest foi avistada. Uma das escotilhas estava aberta, e a KC-1 pôde voar diretamente para dentro do

hangar. Quando a enorme eclusa encheu-se de ar respirável, Redhorse deu permissão para abandonarem a nave.

Excepcionalmente Gucky, desta vez, cumpriu as determinações. Junto com os gêmeos, Tako e Lemy ele entrou no hangar e esperou, até que dois oficiais trouxessem Frasbur, prisioneiro. O agente do tempo mantinha uma cara impenetrável, porém os seus olhos faiscavam de raiva.

Page 122: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

122

A porta para o interior da Crest deslizou para um lado. Rhodan entrou no hangar, acompanhado de alguns oficiais. Ele cumprimentou os que estavam regressando e depois olhou longamente para Frasbur. Mas não disse uma só palavra. Os olhares dos dois homens cruzaram-se por segundos, depois Frasbur baixou a cabeça.

Rhodan virou-se. — Levem-no a um dos camarotes de segurança. Mais tarde falaremos com ele — ele

esperou até que os dois oficiais houvessem desaparecido com o prisioneiro. — Redhorse, o senhor pode passar o comando da corveta novamente ao Major Nowak-Mills. Todo o resto, discutiremos dentro de meia hora, no cassino dos oficiais. Eu os espero ali.

Ele quis virar-se, mas Gucky foi mais rápido. Pegou Rhodan pela ponta do casaco do uniforme.

— Na realidade nós queríamos apenas trazer-lhe, rapidamente, Frasbur, Perry. Nós temos que voltar, uma vez mais a Kahalo, ainda que contra nossa vontade. Você não está sentindo falta de ninguém?

Rhodan parou, voltando-se novamente. Atentamente, ao que parecia, ele olhou os que estavam reunidos ali. Depois sacudiu a cabeça.

— Não, não sinto falta de ninguém. De quem eu deveria sentir falta? Gucky tentou ler os pensamentos de Rhodan, mas ali encontrou logo aquele bloqueio

que não era possível penetrar. O que é que Rhodan estaria escondendo dele? — Sir, nós tivemos que deixar Melbar Kasom para trás. Tudo aconteceu com uma

rapidez tão surpreendente, e nós fomos perseguidos... — disse Redhorse. Diante deles, na porta para o corredor principal, apareceu uma sombra gigantesca. Kasom entrou no hangar. — Mas não foram suficientemente rápidos — disse ele, bonachão. — Eu fui mais

rápido. Já faz horas que eu me encontro aqui na Crest, censurando-me terrivelmente por ter deixado vocês para trás, tão abandonados e sozinhos. Eu estava justamente querendo decolar — para ir buscar vocês — quando, de repente, chegaram.

Redhorse olhou para ele, aliviado e furioso ao mesmo tempo, mas não respondeu. Lemy também silenciou. Ele esperou até que Kasom o apanhasse do chão, segurando-o diante do seu rosto.

— E então, baixinho, você não fala nada? — Eu estou muito contente em ver você aqui, gordão — murmurou Lemy,

emocionado. Gucky não estava absolutamente emocionado. Ele disse algumas coisas que, se fossem publicadas, aumentariam consideravelmente

o vocabulário dos terranos comuns. Só que, infelizmente, essas coisas eram impublicáveis.

Page 123: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

123

3. Ultimato ao desconhecido

1

Relatório de Atlan O homem de Siga, com seus 22,21 centímetros de altura, 852,18 gramas de peso e

6,33 centímetros de largura nos ombros, pediu da forma delicada que lhe era peculiar que eu lhe permitisse que me fizesse companhia.

A nave-capitânia terrana — a Crest III — não parecia ser o lugar certo para Lemy Danger, general-de-divisão e especialista da USO. Depois de sua chegada, tentara, com toda hombridade, segundo sua própria expressão, estabelecer contato com os chamados gigantes terranos, mas ao que parecia não conseguira.

Coloquei o siganês, um ser de pele verde, sobre a escrivaninha e, sem pestanejar, convidei-o a sentar na beirada acolchoada de um dos painéis de instrumentos.

Lemy sentia-se como um ser humano, apesar de seu tamanho reduzido. Não havia nada que o ofendesse tanto como quando alguém lhe deixava perceber que muitas vezes parecia uma coisa abstrata. Vivia dizendo que seus antepassados tinham sido os primeiros seres humanos a arriscar o salto para o espaço e colonizar um planeta desconhecido.

Em virtude de certas condições do meio ambiente, não completamente esclarecidas, os descendentes destes terranos tinham diminuído de tamanho de uma geração para outra, mas apesar da redução da massa cerebral conservaram a inteligência. Dessa forma o povo ao qual pertencia Lemy representava um mistério para os cientistas, mistério este para o qual ainda não fora encontrada uma solução satisfatória. Quando indagado a respeito, Lemy costumava dizer que o volume e o peso do cérebro humano não tinham a menor importância. O importante era a densidade da massa cerebral, que no seu caso aumentara proporcionalmente ao encolhimento do volume, resultante de um processo de adaptação.

Naquele momento Lemy estava sentado sobre o painel, com as pernas cruzadas e o corpo empertigado. Trazia as mãos pousadas sobre o joelho e fazia um grande esforço para não assumir uma posição desleixada, que pudesse causar meu desagrado.

Tive de fazer um esforço para não sorrir. Examinei as anotações que fizera. Recolhera-me ao meu camarote, para completar o diário que estava escrevendo.

— Fique à vontade, general — disse em tom indiferente. — Um cientista e oficial com o seu gabarito pode perfeitamente ficar confortável na presença de seu comandante supremo.

Contemplei pelo canto dos olhos o menor dos homens pertencentes à minha tropa altamente especializada e tive bastante sensibilidade para fazer de conta que não percebera que o rosto de Lemy mudara de cor, de tão alegre e desembaraçado que se sentia. Sua pele brilhava num verde-oliva carregado.

— Já que insiste — piou com sua voz fina. — Certamente nunca me atreveria a, sem sua...

— É claro que não, Lemy — interrompi. — Sei que é um homem honrado, muito culto, que sabe guardar as boas maneiras.

Pigarreei. Lemy gostava desta fala empolada, que era bastante cultivada em Siga, o segundo planeta da estrela Glador. Isso fazia com que Lemy sofresse bastante com o vocabulário grosseiro dos astronautas terranos, que se divertiam soltando “casualmente”

Page 124: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

124

diante do espírito sofisticado vindo de Glador II certas observações que por pouco não o faziam desmaiar.

— É muita bondade sua, lorde-almirante — respondeu Lemy, emocionado. Brindou-me com um olhar que exprimia um amor, uma simpatia e uma dedicação infinita. Envergonhei-me porque no meu íntimo achara graça do anãozinho.

Meus pensamentos seguiram uma trilha diferente. Lemy Danger passou a ser apenas um oficial muito competente, cuja capacidade de julgamento e coragem mais de uma vez tinham exercido uma influência decisiva nas medidas tomadas pela USO. Nem me dei conta de que o homenzinho que envergava o uniforme da USO assumiu uma posição mais confortável, e até chegou a apoiar o ombro esquerdo em um dos botões dos controles, sem que isso tivesse sido permitido expressamente.

Passei a examinar o relatório que estava escrevendo, no qual havia informações sobre o destino da Crest III e de seus cinco mil tripulantes.

Os sóis do centro galáctico brilhavam nas telas instaladas em cima de minha escrivaninha. Pareciam uma filigrama feita de um sem-número de pedras preciosas, que derramavam cascatas de luz no espaço, fazendo doer os olhos.

Lemy era antes de tudo um cosmonauta. Passei a refletir intensamente sobre os problemas resultantes de nossa situação estratégica desfavorável.

— Neste setor a navegação transforma-se num pesadelo, senhor — disse. — Estou incomodando?

— De forma alguma. Permite que lhe exponha uma coisa? Lemy inclinou a cabeça, num gesto de amável curiosidade. O rosto, que era

aproximadamente do tamanho de um selo do correio, mas apresentava os traços bem marcantes, estava voltado para meu lado.

Desde que caímos na armadilha do tempo de Vario, vivo me esforçando para interpretar os acontecimentos e encontrar uma explicação para os erros que cometemos. Aí surge uma indagação. Será que realmente cometemos um erro? Não se trata antes de uma medida tática inevitável, tomada no interesse de esclarecer a situação? Diante disso não estou com a consciência muito tranqüila.

— Compreendo perfeitamente, senhor. Senti-me agradecido. Não havia mais ninguém a bordo com quem pudesse falar desta

maneira. Nem mesmo com Perry Rhodan. O Administrador-Geral era um homem prático e realista, que se recusava a procurar motivos psicológicos ou até filosóficos para uma situação que não podia mesmo ser mudada.

Nossos calendários registravam o dia 14 de junho de 2.404, do tempo real. O tempo real. A expressão representava uma idéia que surgira somente depois de termos sido transferidos para o passado. Mais precisamente, fôramos levados ao ano 49.988 antes do nascimento de Jesus Cristo.

Tínhamos sido transportados mais de cinqüenta mil anos para o passado, e isso nos eliminara como fator de poder militar.

Nossos esforços de estabelecer um contato positivo com os homens da antigüidade terrana, os lemurenses, fracassaram em virtude da interferência dos chamados agentes do tempo.

Frasbur, o antigo comandante do centro de controle de Kahalo, era um dos homens inteligentes que, graças ao conhecimento da verdadeira situação e aos recursos técnicos de que dispunham, tinham transformado os tripulantes da Crest em objetos de uma caçada, que apesar dos êxitos alcançados no início eram obrigados a ficar escondidos.

Kahalo era o mundo em que ficava o centro de controle do gigantesco transmissor dos seis sóis instalado na Via Láctea. No momento este mundo estava sendo protegido por cinqüenta mil belonaves lemurenses, de grande porte.

Page 125: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

125

Um erro dos senhores da galáxia, que acreditaram que fôssemos halutenses, permitira que saíssemos sãos e salvos do campo de rematerialização e nos dirigíssemos ao planeta Terra do ano 49.988 antes de Cristo.

Chegados lá, encontramos um continente lendário chamado Lemur e tivemos oportunidade de conhecer a tecnologia formidável de que dispunham os terranos que viviam num passado tão longínquo.

Nós, que éramos descendentes remotos dos lemurenses, quase não tínhamos nenhuma chance de escapar à ação de busca e extermínio.

Era bem verdade que o produto mais recente da engenharia solar, a Crest III, possuía uma nítida superioridade sobre as naves de guerra de grande porte dos lemurenses. Mas uma grande malta de cães sempre acaba matando a caça. Sabia perfeitamente que não tínhamos a menor possibilidade de abrir passagem à força para o interior do transmissor dos seis sóis instalado na Via Láctea, fazendo com que as energias tremendas deste transmissor nos arremessassem para a nebulosa de Andrômeda.

Se conseguíssemos chegar lá, certamente seríamos capazes de, com o auxílio de nossos mutantes, encontrar um meio de inverter a polarização da armadilha do tempo de Vario, para que esta nos fizesse penetrar novamente no tempo real.

Tivemos oportunidade de travar conhecimento com os lemurenses! Depois de ter falado pessoalmente com homens como os Almirantes Hakhat e Tughmon, não tive mais nenhuma dúvida de que se tratava de excelentes soldados.

O ditado de que o homem só pode ser derrotado pelo homem, e por mais ninguém, encontrara uma confirmação amarga.

Assim que os almirantes que comandavam a frota metropolitana e a frota de interceptação dos lemurenses descobriram, em virtude da atividade dos agentes do tempo, que não éramos tefrodenses vindos de uma área recém-colonizada da nebulosa de Andrômeda, passamos a ser caçados. Tivemos muita sorte de não termos sido destruídos.

Naquele momento a Crest III deslocava-se em queda livre em torno de um sol gigante chamado Redpoint. Este sol possuía um pequeno companheiro vermelho-escuro, cuja presença para mim era uma confirmação do fato de que no tempo real a estrela dupla era uma base da USO.

A idéia de que uns cinqüenta mil anos depois uma gigantesca base espacial instalada neste lugar serviria para dar uma demonstração do poder do Império Solar e da USO era desesperadora. O cérebro humano tinha mesmo muita dificuldade em absorver os fenômenos temporais. Estes sempre traziam consigo inúmeros fatores que normalmente não precisavam ser considerados.

Há pouco menos de um mês — sempre em relação ao tempo real — os cavalgadores de ondas Rakal e Tronar Woolver tinham conseguido penetrar no tempo real, graças aos seus dons parapsíquicos, transferindo-se para uma época que para nós ficava num futuro distante.

Puderam informar Reginald Bell, que era o comandante supremo na nebulosa Beta e em KA-barato, e graças a uma manobra audaciosa conseguiram retornar ao passado.

Trouxeram consigo o mutante Tako Kakuta e um dos especialistas da USO sob meu comando, chamado Lemy Danger, que tivera uma atuação decisiva durante a última operação levada a efeito em Kahalo, que resultou na prisão do agente do tempo dos senhores da galáxia residente naquele lugar.

Durante a operação arrojada dos gêmeos Woolver descobrimos um estaleiro espacial que fora transferido ao passado, da mesma forma que a Crest.

Seu proprietário, um engenheiro cósmico chamado Malok, recebera ordens dos senhores da galáxia para circular em torno de determinado sol, para que o estaleiro pudesse servir de base voadora às espaçonaves dos agentes do tempo.

Page 126: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

126

Conseguimos estragar este plano, pois mudamos de posição juntamente com a gigantesca plataforma espacial MA-genial, e escolhemos Redpoint como nosso destino provisório.

Desta forma atingimos um ponto morto. Seria inútil tentar entrar à força no transmissor gigante. Se tentássemos, os lemurenses enfurecidos nos transformariam numa nuvem de gases.

Poderíamos introduzir alguns mutantes em naves cargueiras lemurenses que os transportariam à nebulosa de Andrômeda, mas isso não representaria qualquer vantagem tática para nós.

Por enquanto tudo indicava que os gêmeos Woolver conseguiriam retornar mais uma vez ao tempo real.

O transporte para a nebulosa de Andrômeda seria perfeitamente possível, graças ao tráfego intenso de naves lemurenses, que fugiam desordenadamente para a galáxia vizinha, em virtude do avanço da máquina de guerra halutense.

Mas neste caso nossos homens se veriam diante de outro problema. Teriam de penetrar no transmissor temporal e esperar que o eixo de referência voltasse a deslocar-se para trás.

Tinham conseguido isto uma vez, mas nem Perry nem eu éramos tolos a ponto de esperar que um acaso desse tipo se repetisse. Só nos restava o caminho a ser criado por nossos próprios meios. Mas este caminho ainda não conhecíamos.

Dessa forma descrevíamos uma órbita tão apertada em torno da estrela gigante chamada Redpoint que nossas usinas geradoras tinham de funcionar permanentemente a setenta e cinco por cento de sua capacidade, para que os campos defensivos pudessem absorver as energias tremendas geradas pelo sol próximo.

Acreditávamos que era o único meio de evitarmos a detecção pelos rastreadores das espaçonaves halutenses.

O estaleiro voador MA-genial, que era um disco com noventa e dois quilômetros de espessura, seguia-nos a pouco menos de oitenta quilômetros de distância. Estávamos dispostos a, se necessário, dar-lhe cobertura com o fogo dos nossos canhões, pois queríamos fazer tudo para conservar a única base que tínhamos encontrado no passado.

Levantei da poltrona e aproximei-me da tela embutida na parede, que tinha o formato de uma janela. Tive a impressão de que contemplava diretamente a maravilha luminosa do centro galáctico.

A extremidade superior da tela era cruzada periodicamente por rios de fogo cor de sangue. Eram as ramificações das protuberâncias solares, que nos teriam destruído há tempo, se não fossem os potentes campos defensivos.

Notei que Lemy me fitava com uma expressão preocupada. Ele conhecia meus problemas. Fez um esforço desesperado para levar-me a pensar em outra coisa e para isso disse algumas palavras que normalmente nunca teriam saído de seus lábios.

— O senhor sabe que os aconenses e, portanto, os arcônidas, descendem dos lemurenses do planeta Terra, não sabe?

Confirmei com um gesto. Eu sabia. O fato de meu povo se ter originado dos velhos colonos lemurenses representava um pesado golpe moral para mim.

No curso dos cinqüenta mil anos que se seguiram os arcônidas sofreram ligeiras modificações. Nem se podia afirmar que eu era verdadeiramente humano. Não possuo costelas. No lugar delas encontra-se uma placa contínua, que vai do tórax até as costas. Além disso alguns órgãos tinham sofrido modificações. Já não havia nenhum motivo para eu me orgulhar dos feitos dos velhos arcônidas, ainda mais que eles tinham esquecido grande parte das conquistas técnicas e científicas que os lemurenses dominavam perfeitamente.

Page 127: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

127

Quando o poder arcônida estava no auge, costumava atravessar o espaço em naves movidas por propulsores de transição. Enquanto isso os lemurenses, que eram meus verdadeiros antepassados, já tinham alcançado a perfeição máxima do sistema de propulsão linear, que era muito melhor.

— Isso não me incomoda nem um pouco, Lemy — observei distraído. — Meus problemas são outros.

— Naturalmente, senhor. Mas acho que é interessante que o senhor conheça mais uma das maldades dos terranos.

— Mais uma das suas maldades...? Virei o rosto e fitei o anão. Sempre que ele usava expressões deste tipo, um terrano

normal era levado a sorrir. Afinal, eu conhecia estes tipos arrojados com o olhar duro e o gênio individualista.

— Bem, é claro que suas intenções não são más, senhor — respondeu Lemy em tom enfático. Fez um gesto como quem quer acalmar uma criança travessa ou um peso-pesado embriagado. — Nem deveria ter mencionado isto, senhor — acrescentou o anão. — Poderia fazer o favor de esquecer minhas palavras apressadas?

Não lhe fiz este favor. — Fale — pedi. — Que houve mesmo? Qual é a maldade? Lemy parecia desolado. Sem dúvida tinha a impressão de ter ido longe demais. — Senhor, eles tiveram o descaramento de que nenhum homem educado seria capaz.

Deram-lhe um apelido. Suspirei. Era uma das formas típicas de Lemy Danger exprimir-se. — Está bem, especialista Danger. É só isso? Graças ao ativador de células que trago

comigo, atingi a idade de dez mil anos. Quantos apelidos o senhor acha que já me foram dados durante minha longa caminhada pela história do planeta Terra? Cheguei a ser comandante da guarda pretoriana de Calígula. Costumava chamar-me de torturador, só porque quis ensinar certas coisas a essa gente — perdão, porque quis transmitir-lhes certos ensinamentos. Eu me exprimi de forma um tanto vulgar.

Lemy fez um gesto condescendente. No meu íntimo eu me torcia de tanto rir. — Eu diria que o senhor usou o linguajar comum — disse Lemy. Finalmente empertigou o corpo, todo compenetrado. Tive de olhar com muita

atenção, para ver a indignação estampada em seu microrrosto. — Está bem. Vou falar — disse em tom solene. — Imagine, senhor! Estes homens

grosseiros deram para chamá-lo de terrano-presa. Lemy certamente esperara que eu desmaiasse. Soltei uma gargalhada, que o deixou chocado. Fazia tempo que não ria assim. O riso

tirou parte da tensão que afligia minha alma. Fiquei imaginando qual seria a origem do apelido com que fora brindado.

Nestas coisas os terranos possuíam uma tremenda criatividade. Não conheci nenhum povo galáctico que fosse capaz de zombar de si mesmo e exercer a autocrítica com a mesma naturalidade dos terranos.

— Terrano-presa... Formidável — observei, tossindo. — É só isso, amigo? Lemy ficou de pé na mesa, com as pernas afastadas e as mãos apoiadas nos quadris.

Fitou-me com uma expressão indefinível. Só neste instante percebi que estava deitado na poltrona reclinada, com as pernas estendidas.

Lemy tinha muito mais psicologia do que eu acreditava. — Pois então. Isso está resolvido. Vejo que está de bom humor. Prendi a respiração. Apequena criatura soltou uma risada estridente, que fez doer

meus ouvidos. Tive uma desconfiança. Será que ele só se fazia de distinto para enganar as pessoas desprevenidas?

Page 128: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

128

Afastei o relatório e estendi a mão na direção do siganês. Este apoiou os cotovelos nos meus dedos e fitou-me com uma expressão desolada.

Não o compreendi. Mas de qualquer maneira ele tirara um grande peso de cima de minha alma.

— Vamos embora, Lemy. Tem uma idéia de como vai o interrogatório que está sendo realizado pelos mutantes?

— Tenho, sim senhor. Frasbur está entrando na armadilha. Parece que acha impossível que alguém possa descobrir o que se passa dentro dele.

Senti que as preocupações voltavam a tomar conta de mim. O agente do tempo que tínhamos prendido há alguns dias representava um trunfo que eu pretendia usar. Mas ainda teríamos de fazer dele um verdadeiro trunfo. Só mesmo os mutantes seriam capazes disso.

Page 129: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

129

2 John Marshall, chefe do misterioso Exército de Mutantes, parecia cansado e abatido.

Havia sombras escuras embaixo de seus olhos. Acabara de participar da terceira conferência, na qual foram tratados problemas

ligados à presença do agente do tempo chamado Frasbur. O rato-castor estava encolhido num banco estofado que ficava num canto, dormindo.

Seu sistema nervoso era muito sensível, e não resistiria mais por muito tempo às canseiras. Perry Rhodan estava sentado na ponta da mesa. Estávamos na sala de conferências e

comunicação número III, que ficava na altura da sala de comando e podia ser atingida facilmente a qualquer momento.

Além dos oficiais mais graduados, do comandante, o Coronel Cart Rudo, e do primeiro oficial cosmonáutico, o Tenente-Coronel Brent Huise, tinham comparecido os cientistas que trabalhavam na Crest, bem como Melbar Kasom e Icho Tolot.

Alguns dos mutantes que se encontravam a bordo mantinham sob observação constante a psique de Frasbur, que descansava numa cela especial da clínica psiquiátrica da nave, e pensava que poderia enganar-nos bastante.

Lancei um olhar para a grande tela instalada junto à parede, na qual aparecia a cela. Frasbur estava deitado num leito pneumático, fingindo-se de inconsciente. André Noir, o hipno, estava sentado numa poltrona móvel que ficava perto do leito. Fora disso não se via nada de extraordinário.

Perry também olhou para a tela e seu rosto mudou de expressão. Parecia desconfiado.

— Tomara que dê certo — disse. — Pode começar, John. Ou prefere descansar um pouco?

Marshall fez que não. — Obrigado, senhor, não é necessário. Não

podemos interromper a operação por muito tempo. Dentro de duas horas no máximo devemos prosseguir com a penetração mental. Enquanto isso Noir aprofundará o bloqueio hipnótico e abrirá novas vias de acesso ao cérebro de Frasbur.

— A penetração mental? — repeti, espantado. Marshall, que era um homem alto, acenou com a cabeça. Tomou um gole de café de um caneco e prosseguiu: — Trata-se uma penetração cautelosa no consciente de Frasbur. Em hipótese alguma

ele deve perceber que descobrimos o que se passa em seu interior. Já temos certeza absoluta sobre os motivos por que houve fenômenos esquizofrênicos logo após sua entrada na clínica. Foi um trabalho difícil.

Os termos especializados que Marshall estava usando não significavam muita coisa para mim. Os mutantes sempre tinham algo de assustador — e eu não era o único que pensava assim. Icho Tolot, o cientista halutense, estava com os três olhos esféricos vermelhos fixados no terrano que possuía dons extra-sensoriais.

— Não há dúvida de que Frasbur pertence à elite dos grupos auxiliares que estão a serviço dos senhores da galáxia. É um ser muito inteligente e corajoso, que tem a intenção de atrair-nos para uma armadilha mortal, mesmo que isso lhe custe a própria vida. Por isso

Page 130: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

130

está representando a quatro dias-padrão. Assume o papel do homem submetido a uma influência parapsíquica, sujeito a um bloqueio hipnótico cada vez mais intenso, que vai minando suas resistências. Está agindo com tamanha habilidade que quase conseguiu enganar-nos. Acontece que André constatou uma estranha inversão das vibrações que atuam no consciente de Frasbur. Fez a respectiva correção, criando uma oportunidade para Gucky e eu penetrarmos cautelosamente no verdadeiro consciente.

— No verdadeiro consciente? — perguntou Perry, inclinando o corpo. — Quer dizer que estavam captando um falso consciente?

— Isso mesmo, senhor. Frasbur é um homem vindo do tempo real, que não carrega consigo o receptor de influências que os duplos costumam usar. É um verdadeiro tefrodense, e por isso pode ser considerado humano sob todos os pontos de vista. Além disso é um cientista familiarizado com os fenômenos parapsicológicos. Possui um bloqueio hipno-sugestivo muito eficiente, mas este não o transforma num escravo sem vontade própria. Antes faz dele um inimigo perigoso. Frasbur está em condições de abrir o bloqueio ou fechá-lo completamente, segundo sua vontade. Se o mantivesse constantemente fechado, não poderíamos fazer nada. Mas ele percebeu nossas intenções e foi abrindo o bloqueio. Foi quando André Noir entrou em ação. Isso aconteceu há dois dias, senhor.

Marshall tomou mais um gole de café e enxugou o suor da testa. — Deixa minar algumas informações. Transmite-as balbuciando, com a língua pesada,

fazendo de conta que depois de nos termos esforçado por quarenta horas caiu totalmente sob nossa influência. Passou a falar cada vez mais, mas só diz aquilo que julga conveniente. Não sabe que compreendemos o que se passa em seu interior. Nem sabe que já conseguimos apreender noventa por cento de seus pensamentos e dos dados armazenados em sua memória. Dessa forma conseguimos alguns detalhes importantes.

— Conte logo! — pediu Perry, impaciente. — O que é que ele tenta fazer acreditar? — Pois é aí que está o fenômeno, senhor! Ele não está fingindo. Diz a verdade. Alude

ao sexto planeta do sol Tanos, que é uma gigantesca estrela quente. Diz que lá existe uma importante base dos senhores da galáxia.

— E existe mesmo? — perguntei, nervoso. — Existe, sim senhor. Frasbur faz uma mistura diabólica da verdade com seus

próprios planos, que evidentemente visam à destruição da nave. Segundo suas informações, nesta base está instalado um grande transmissor de matéria, que permite a entrada no grande transmissor galáctico e o salto para Andrômeda, sem passar pelo planeta de regulagem Kahalo. É a única mentira proposital em suas declarações. É claro que não existe nenhuma possibilidade de entrar diretamente no transmissor solar sem ser destruído imediatamente.

— Um momento — pediu nosso físico-chefe, o Dr. Spencer Holfing. — Estou lembrado de que em agosto de 2.400 fomos atraídos e irradiados pelos seis gigantescos sóis azuis. E não fomos destruídos, Mr. Marshall.

O mutante fez um gesto de assentimento. — Isso aplica-se ao tempo real, doutor. Acontece que no momento nos encontramos

cerca de cinqüenta mil anos no passado. Parece que os controles do transmissor são diferentes. No momento realmente não é possível entrar no campo transportador sem passar por Kahalo e sem ser destruído.

— Não vamos afastar-nos do assunto — advertiu Rhodan. — Marshall...! — É claro que Frasbur conhece nossos desejos. Sabe que queremos voltar de

qualquer maneira para Andrômeda e que, uma vez lá, pretendemos atacar o planeta Vario. Por isso usa como isca um aparelho que, segundo diz, abre o caminho que continua fechado para nós. Como já disse, é a única mentira propriamente dita que nos contou. O resto é

Page 131: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

131

verdade, ou então os fatos são simplesmente calados. E com seu silêncio sobre certos fatos chegamos a um ponto importante.

Marshall respirava com dificuldade. Nosso médico-chefe, o Dr. Ralph Artur, fitou-o com uma expressão preocupada. Um silêncio constrangedor reinava na sala. Tive a impressão de que a descoberta feita pelos mutantes teria uma influência decisiva em nosso destino.

— Em Tanos VI realmente existe uma base. Trata-se de um transmissor de tempo intermediário, que permite deslocamentos de quinhentos anos no máximo na dimensão temporal. Os saltos podem variar dentro dos limites do chamado futuro relativo. Para Frasbur, esta expressão abrange o tempo que vai de 49.988 antes de Cristo até o tempo real do ano 2.404 depois de Cristo. Pode-se dar um salto para a frente, mas nem por isso foge-se do passado. Só se consegue reduzir o intervalo fixado, mas isto apenas até o momento do passado para o qual foi regulado o transmissor de tempo intermediário. Os senhores da galáxia e seus agentes do tempo usam o aparelho para deslocar-se à vontade através de várias épocas históricas. Mas isso só se torna possível para quem tenha sido deslocado para o passado pelo transmissor gigante de Vario. Tiramos da memória de Frasbur as informações a respeito desta estação. Conseguimos informações muito valiosas. A existência do chamado transmissor de tempo intermediário é um dos fatos sobre os quais Frasbur guardou silêncio.

Isso não me surpreendeu muito. Achava mesmo muito provável que os senhores da galáxia, um povo que era e continuava a ser misterioso, tinha preparado seus caminhos de fuga.

— Suas saídas de emergência! — retificou meu cérebro suplementar. Aborrecido, passei por cima do impulso transmitido pelo mesmo.

— Qual é o segundo fator? — perguntou Perry, insistente. Marshall deu uma risada. De repente voltara a surgir um brilho em seus olhos. — Chegamos à conclusão de que os estratagemas usados por Frasbur e as alusões

sedutoras a um caminho direto para Andrômeda só poderiam dar resultado se os estabelecimentos instalados em Tanos VI estivessem em condições de destruir a Crest. Frasbur pensa constantemente nisso, mas ainda teremos de gastar alguns dias ou horas para retirar estas informações de sua mente sem que ele o perceba. Frasbur acredita que ninguém poderá superá-lo. Por enquanto só temos certeza de que neste mundo desconhecido deve existir um gigantesco forte cósmico, alimentado com energia solar. Frasbur quer atrair-nos para lá, a fim de provocar a destruição da Crest, com o sacrifício da própria vida. Se por lá se trabalha com os raios ultraluz, que fornecem a energia ao transmissor do tempo, nem mesmo nossos campos de supercarga poderiam resistir. Os geradores da Crest não podem comparar-se às energias primitivas de um sol. Frasbur sabe disso. Pretendo levá-lo a fazer outras declarações. Ele está interessado em fazer-nos entrar na armadilha quanto antes. Quanto mais ele falar, quanto mais abrir o bloqueio de sua mente, mais fácil se tornará arrancar dele as últimas informações.

“Acho que é só o que consegui apurar até agora, senhor. Por enquanto não vejo nenhuma utilidade prática nas informações obtidas.”

Marshall concluiu seu relato e olhou em volta. Perry manteve um silêncio obstinado e ficou mastigando o lábio. Finalmente viu a expressão de meu rosto.

Fitou-me com os olhos semicerrados e obrigou os dedos que brincavam nervosamente com um lápis a ficarem parados.

— Então, almirante, qual é sua opinião sobre a utilidade prática das informações, sobre a qual John Marshall tem uma idéia tão negativa? Será que bolaram mais um plano?

Recostei-me na poltrona e fiquei com os olhos pregados na tela. Devia ser muito cansativo para Frasbur fingir-se de semi-inconsciente por vários dias.

Page 132: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

132

Rhodan esperou. Ele me conhecia e sabia que não conseguiria arrancar-me uma resposta precipitada.

O gigante de Halut parecia uma estátua negra de quatro braços, sentado em sua almofada pneumática. Assim mesmo Icho Tolot, que tinha três metros e meio de altura, podia olhar confortavelmente por cima da mesa.

— De fato, elaborei um plano — confessei depois de algum tempo. Perry obrigou-se a dar ao seu rosto a expressão indiferente que costumava mostrar

quando estava nervoso. Mais uma vez admirei-me de que ele ainda não tivesse compreendido que todos sabiam o que se passava dentro dele, justamente por causa da indiferença que fazia questão de demonstrar. Era uma das fraquezas que o tornavam simpático.

— Atlan...! — disse Perry em tom de advertência. — Tive meus motivos para fazer questão de que aquele tefrodense fosse interrogado

durante vários dias. Os resultados já estão aparecendo. Marshall, o senhor deveria perguntar francamente onde fica o planeta Tanos VI. Acho que Frasbur responderia prontamente a uma pergunta nesse sentido. Se não estou muito enganado, este sistema solar não fica muito longe da Terra.

Rhodan suspirou e lançou um olhar para os cientistas. — Nosso amigo arcônida mais uma vez faz questão de que lhe arranquemos as

palavras da boca. Fico me perguntando para que poderia servir a conquista ou a destruição de uma base temporal. Isso não nos traria nenhuma vantagem. Pelo contrário, acarretaria algumas desvantagens. Acho que já estamos sendo caçados com bastante empenho.

O Dr. Holfing ergueu os ombros, num gesto de contrariedade. — A conquista poderia ser interessante do ponto de vista científico. Mas se as

instalações forem capazes de efetuar um transporte através de cinqüenta mil anos, julgo recomendável um ataque imediato a ela. Mas acho que não são, não é mesmo?

Lançou um olhar para Marshall. Este sacudiu a cabeça. — De forma alguma. Quanto a isso não existe a menor dúvida. Seu raio de ação

depende de certas leis que nem mesmo Frasbur conhece. O transmissor gigante de Vario é o único estruturado de tal forma que permite um recuo de cinqüenta mil anos para o passado. E é aqui que os senhores da galáxia recrutam seus soldados para a luta contra os maahks. Por aqui são escolhidos os melhores técnicos, cientistas e astronautas encontrados em Lemur. Os homens são transportados para Andrômeda, onde o transmissor de Vario os transfere para o tempo real. Depois disso fazem milhares de reproduções deles por meio dos multiduplicadores. O modelo usado na reprodução sempre é um lemurense muito bem treinado, pertencente ao tempo em que nos encontramos atualmente.

— Sabemos disso há algumas semanas — respondeu nosso físico-chefe, que sempre andava mal humorado. — É só o que tem a dizer?

Marshall ficou calado. Voltou-se novamente para mim. Não pude deixar de fazer uma observação.

— Não venha me dizer que um terrano-presa deve dar a solução. Perry prendeu a respiração, apavorado. Marshall pigarreou fortemente, e Holfing deu

uma risada desavergonhada. Uma única pessoa teve coragem de manifestar ruidosamente sua alegria. Foi Icho

Tolot. As gargalhadas do gigante de Halut eram tão estrondosas que fizeram tilintar os revestimentos dos instrumentos.

Assim que passou o furacão acústico e os presentes tiraram as mãos de cima dos ouvidos, Rhodan sorriu para mim com a expressão matreira que era típica dos terranos.

— Meu exemplo poderá servir-lhe de consolo. Afinal, para meus homens sou simplesmente o velho.

Page 133: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

133

— Será que a gente nunca tem sossego nesta espelunca? — gritou Gucky. — É claro que você é um terrano-presa. Pegamos você por aí e o conservamos vivo no seio da mãe. Acha que é pouco? Para mim estes arcônidas cósmicos sempre foram uns fe...

— Gucky! — piou Lemy Danger, apavorado. Mal se conseguia ouvi-lo. — Está bem. Sempre me cheiraram bem. Está satisfeito, anão envenenado? Lançou um olhar furioso para o general-de-divisão e especialista da USO e enrolou a

cauda. Logo voltou a dormir. — Que sujeito impertinente de pêlo piolhento! — observou o Coronel Melbar Kasom,

indignado. Tratava-se de um homem-gigante adaptado ao ambiente, vindo de Ertrus. — Ainda acabo virando o pescoço dele.

Melbar cerrou os punhos enormes, num gesto de ameaça para o rato-castor, que roncava fortemente.

— O senhor pode dar-se por feliz porque ele não ouviu o que disse — observou Perry. — Não deixem o baixinho nervoso.

Lemy cochichou alguma coisa que soava como forma imprópria de exprimir-se, ofensa à dignidade humana e atitude típica de um rato-castor. Com isso o caso estava liquidado. Quanto a mim, continuava a ser um terrano-presa.

Mas não tive tempo para expor meus planos. No ano 49.988 antes de Cristo as pessoas vindas do tempo real podiam estar cheias de boas intenções, mas o poder estava nas mãos dos seres dos quais descendíamos: os lemurenses.

Atacaram com tamanha fúria que por um instante tive a impressão de que a Frota Solar estava perdida no passado, e escolhera justamente a Crest III como alvo de suas investidas.

Vieram tão depressa e numa formação tão exata que só mesmo os humanos seriam capazes disso. Não nos deram a menor chance.

É bem verdade que o ataque não foi dirigido contra nós, mas contra o estaleiro cósmico MA-genial, que circulava em torno do sol gigante Redpoint, a uns oitenta quilômetros do lugar em que nos encontrávamos. Mas só percebemos isso quando chegamos à sala de comando.

Page 134: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

134

3 Naturalmente o ultracouraçado terrano há alguns dias se encontrava em estado de

semiprontidão. Por isso os cinco mil tripulantes não levaram mais de um minuto para ocupar seus postos. Os avisos de que os diversos setores estavam preparados para entrar em ação foram chegando em rápida seqüência, e eram confirmados pelo dispositivo automático da sala de comando. O número das luzes de controles verdes que se acendiam aumentava constantemente.

Quando coloquei o capacete pressurizado e encostei os abafadores de ruído em concha aos ouvidos, já ouvi as primeiras ordens precisas sendo transmitidas na freqüência do comando.

O alarme geral fora dado pelo segundo oficial cosmonáutico, Major Sedenko. Assim que os rastreadores automáticos transmitiram a informação de que um objeto fora detectado, ele apertara os botões que transformaram a Crest III numa máquina de guerra dotada de um incrível poder de destruição.

Saltei para cima de minha poltrona anatômica e apertei o botão de acionamento dos cintos automáticos. Algumas experiências bastante dolorosas já nos tinham mostrado quais eram os efeitos produzidos pelas baterias energéticas dos costados do ultragigante. Dificilmente havia alguém a bordo que não tivesse sofrido contusões ou até mesmo fraturas por causa disso.

Quando o gigante esférico da Frota Solar fazia sair as torres de canhões, e estes despejavam seu fogo atômico, até parecia um fim de mundo.

Apesar dos abafadores de ruído, ouvi o bramido dos vinte propulsores instalados na protuberância equatorial da nave. Nosso engenheiro-chefe, Dr. Bert Hefrich, não esperara que alguém lhe desse ordem para ligar os conjuntos. Colocara os geradores e propulsores à potência máxima.

Dessa forma a Crest III estava em condições de combater e manobrar quando os lemurenses dispararam o primeiro tiro energético. Mas a mesma coisa não se podia dizer do estaleiro MA-genial.

Havia mil e cem andarilhos a bordo do monstro voador. Eram os engenheiros mais competentes que já tínhamos encontrado. Além disso eram bons combatentes, mas sua competência nesta área nem de longe podia ser comparada à dos soldados de elite terranos.

Na Crest III não houve nenhum erro no manejo dos comandos, nenhum nervosismo exagerado, nenhuma pergunta supérflua. Os cinco mil homens que tripulavam a nave terrana podiam transformar-se numa questão de segundos de individualistas inveterados num só corpo e num único cérebro, evitando qualquer possibilidade de erros.

A única coisa que contava eram as ordens vindas da sala de comando, que era guarnecida por oficiais que tinham pelo menos dez anos de experiência espacial em condições extremamente adversas.

Além disso esses homens pertenciam à elite terrana, e por isso dominavam a nave até o último controle de emergência. O grau de treinamento dos terranos era insuperável.

Não havia a menor dúvida de que o ataque dos lemurenses era dirigido contra a plataforma cósmica. As telas do sistema de rastreamento mostraram vinte e oito pontos verdes, que foram captados imediatamente pelo rastreamento ultra-luz, que os converteu em desenhos de alto relevo.

Alguém informou que as naves especiais da frota de patrulhamento lemurense que operava em torno de Kahalo deviam ter recebido uma indicação exata da posição da

Page 135: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

135

plataforma por ocasião da última missão dos mutantes, senão as vinte e oito unidades atacantes não poderiam ter aparecido diretamente nas proximidades de Redpoint.

Era uma informação supérflua, pois todo mundo era capaz de imaginar que o súbito aparecimento das naves inimigas não devia ter sido um acaso. Elas realizaram um vôo bem orientado. O fato é que os gigantes esféricos de Lemur puderam abrir fogo quatorze segundos depois de terem retornado ao espaço normal.

Como tínhamos penetrado o mais profundamente possível na gravisfera do sol gigante, verificou-se um fenômeno bastante raro. O setor espacial próximo à estrela estava repleto de gases ionizados e partículas irradiadas.

Formavam o ambiente que permitia a detecção ótica das trilhas energéticas dos canhões inimigos. Fomos brindados com um prazer bastante duvidoso: tivemos oportunidade de fazer a observação direta das linhas de tiro. Não dependíamos da conversão em imagem realizada pelos rastreadores energéticos, como de costume. No espaço livre, os rastreadores eram a única possibilidade de acompanhar os tiros energéticos.

Todas as vinte e oito naves eram gigantes esféricos de mil e oitocentos metros de diâmetro. O comandante lemurense da frota de patrulhamento de Kahalo, Almirante Hakhat, não fora nada mesquinho na escolha dos meios. No entanto, o comandante do grupo atacante parecia ter cometido um pequeno erro.

Evidentemente não poderia esperar a presença de uma estação cósmica. Para mim não havia dúvida de que recebera ordem de surpreender a Crest num ataque-relâmpago.

Mas para realizar um ataque de artilharia com tamanha rapidez e precisão seria necessário programar as miras automáticas e o sistema de disparo antes do vôo de programação. Acontece que os instrumentos, guiados pela lógica típica do robô, tinham reagido ao maior dos dois objetos detectados. Os comandantes lemurenses não seriam capazes de em alguns segundos modificar a programação e transmitir aos computadores positrônicos a informação de que a Crest III era mais importante que o estaleiro cósmico.

Ainda bem! Os terranos comandados por Rhodan pareciam mesmo ter mais sorte que eu tivera nos dez mil anos de minha vida.

Enquanto acelerávamos com a potência máxima, fazendo sair a nave da área de influência direta do sol, com os propulsores chamejantes, os lemurenses prosseguiam no ataque que já tinham iniciado. Certamente tinham compreendido que depois de nossa reação-relâmpago não adiantaria mais usar os controles manuais.

Mas logo percebi que quinze dos gigantes esféricos que se deslocavam a metade da velocidade da luz foram arrancados da rota numa manobra arrojada e passaram a seguir um curso diferente.

O centro de computação positrônica da nave não levou mais de quatro segundos para comunicar que a nova rota dos lemurenses acabaria numa batalha em que seriam disparadas as baterias de costado de ambos os lados. Portanto, os homens competentes que tripulavam as naves lemurenses tinham calculado com uma rapidez incrível a manobra de adaptação e usado seus pilotos automáticos.

Mas o Coronel Cart Rudo, um homem natural de Epsal, cujas reações eram tão rápidas como as de Melbar Kasom, não era o tipo de comandante que se deixava impressionar por medidas como estas. Sabia perfeitamente que não poderia assumir o risco de entrar numa batalha prolongada, com uma constante troca de tiros.

A arma principal dos lemurenses era uma peça de artilharia que tinha certa semelhança com nossos canhões conversores. Era quase impossível neutralizar seus campos defensivos vermelhos, e já tínhamos feito experiências bastante desagradáveis com a capacidade de aceleração de suas naves.

Page 136: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

136

Rudo resolveu interromper a fuga, invertendo os jatos durante nove segundos e imobilizando a nave. Nem pensava em acelerar de novo.

Um sorriso largo cobriu seu rosto. Dali a pouco os rádio-capacetes usados em batalha transmitiram sua voz.

— Neste momento os dispositivos automáticos dos lemurenses se esforçam para calcular nossos prováveis movimentos. Além disso poderemos usar vários níveis de aceleração. Não se trata de um problema que um robô capaz de usar de vinte a trinta mil alternativas possa processar, quanto menos resolver em termos práticos. Atenção, centro de artilharia. Permaneceremos no ponto em que nos encontramos, até que essa gente que vem em alta velocidade se tenha aproximado o suficiente para que valha a pena sairmos em qualquer direção e velocidade. Todos os tipos e calibres poderão abrir fogo. Coloquem um giga-anel à frente dos tefrodenses que se aproximam. As naves que operam nas proximidades de MA-genial só serão atacadas com armas normais.

Rhodan virou o rosto para mim. Estava com a testa coberta de suor. As medidas que Rudo acabara de adotar eram típicas de um comandante que conhecia perfeitamente os pontos fracos dos equipamentos automáticos. Os lemurenses, que se aproximavam desenvolvendo metade da velocidade da luz, realmente estavam enfrentando um problema tremendo. A esta velocidade as coisas eram bem diferentes do que durante a movimentação na atmosfera de um planeta.

MA-genial abriu fogo com alguns canhões leves. Tive a vaga impressão de que a gigantesca plataforma logo deixaria de existir.

A Crest III sacudiu-se. Ouviu-se um forte rugido, que atravessou meus tapa-ouvidos. Os cintos de segurança penetraram em nossas carnes.

O Major Cero Wiffert, chefe de artilharia especializado nas peças da nave gigante, criou um arco de noventa graus formado pela explosão das bombas de fusão, cuja potência chegava a um trilhão de toneladas de TNT por unidade.

Os lemurenses, que se encontravam a pouco menos de dois quilômetros de distância, conseguiram uma coisa de que até então nenhum povo de astronautas fora capaz.

O comandante do pequeno grupo de naves devia ter imaginado, ou previsto com base nas experiências com os hábitos dos terranos, qual era a desgraça que o esperava. A manobra violenta com a qual retirou as quinze naves gigantes sob seu comando da rota fixada, levando-as num ângulo de noventa graus para o setor vermelho, foi uma verdadeira obra de arte.

Aquelas naves não eram dirigidas por dispositivos robotizados, mas por seres humanos pensantes, que naquela época eram chamados de lemurenses.

Era uma peça de tática de manobra terrana de primeira categoria, um trabalho militar e cosmonáutico feito sob medida, segundo o sentimento, que não podia ser aprendido, muito menos calculado. Era um sentimento que a pessoa possuía ou não possuía.

Cart Rudo praguejou. Percebeu que não poderia sustentar por muito tempo o jogo parado, que lhe proporcionava uma boa pontaria. Aproveitou a chance única que lhe era proporcionada pela manobra dos lemurenses.

Acelerou ao máximo, usou os controles manuais para aumentar a potência dos propulsores e saiu em alta velocidade na vertical, com um deslocamento lateral para o setor verde.

Passamos por baixo dos sóis artificiais em expansão formados pelas explosões da primeira gigassalva. De repente o estaleiro voador voltou a aparecer em nossos rastreadores.

Estava reduzido a um montão de destroços fumegantes, sobre o qual as baterias de costado de treze unidades lemurenses continuavam a despejar seu fogo.

Page 137: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

137

Os lemurenses tinham conseguido uma batalha constante, de bordo a bordo. Além disso mantinham-se tão bem abrigados atrás da estação espacial que não pudemos usar as pesadas armas conversoras de nossa nave.

— Ajustem as miras para as treze naves que se encontram junto a MA-genial — ordenou Rhodan.

A obra mais formidável da construção astronáutica terrana voltou a ser sacudida. Preferi não dizer uma palavra que pudesse representar uma interferência nos acontecimentos. Os homens que me cercavam sabiam o que estavam fazendo. Tinham passado milhares de vezes por situações semelhantes.

Nossos raios de impulsos, de vibração e de desintegração também se tornaram visíveis. Propagavam-se a velocidade próxima à da luz, afastando a micromatéria da estrela gigante tão próxima, e atingiram o alvo com uma incrível precisão.

Duas naves lemurenses explodiram, liberando energias equivalentes às de um pequeno sol. O fogo concentrado em um único ponto rompera os campos defensivos vermelhos, embora estes se assemelhassem aos nossos campos de hiper-carga. Mais uma vez se confirmara a velha regra segundo a qual um bom campo defensivo só podia ser rompido com o fogo concentrado num lugar.

A estação espacial teve uma pequena folga, mas seu destino logo se consumou. Vimos o tremor dos rastreadores energéticos que funcionavam a velocidade ultraluz e

tinham detectado uma quantidade enorme de energia liberada. Dali a instantes fomos alcançados pela luz. Os dispositivos óticos externos mostraram

que tínhamos chegado tarde. O estaleiro voador MA-genial, cuja tripulação tínhamos salvo com enormes

dificuldades, transformara-se numa bola de fogo, cujo centro era branco-azulado, enquanto as bordas brilhavam num vermelho vivo.

— Mudar de rumo. Rápido. Potência máxima — disse Rhodan. Estava com o rosto pálido como cera. Fiquei sem saber se naquele momento estava preocupado com o destino dos mil e

cem andarilhos, ou com o fato de que tínhamos perdido nossa única base no passado mais depressa do que a havíamos encontrado.

Trilhas luminosas violetas saíram detrás da bola de fogo que crescia constantemente, descrevendo um rápido movimento de rotação. Dali a pouco algumas bombas de fusão superpesadas explodiram bem à nossa frente. Só podiam ter sido lançadas pelos canhões lemurenses, parecidos com nossos canhões conversores.

Alguns sóis artificiais interpuseram-se no nosso caminho. Gases em expansão impelidos por ondas de pressão estendiam-se na direção da Crest, ameaçando destruí-la.

Rudo nem pensou em executar uma manobra como aquela com a qual os lemurenses se tinham desviado dos tiros disparados por nossas baterias de costado.

Não se via mais nenhum sinal destas naves. Tive certeza de que seus tripulantes ficaram inconscientes ou foram mortos por causa da súbita falha das unidades geradoras e dos neutralizadores de pressão forçados ao máximo.

Uma manobra forçada como a que eles tinham realizado liberava energias mecânicas que afetavam qualquer nave.

O epsalense não demorou a tomar uma decisão. Se a Crest fosse destroçada, não escaparíamos da morte. Não havia alternativa. Tinha de arriscar-se a atravessar a fogueira atômica.

Alguns homens gritaram. Rudo descobriu uma brecha entre duas bombas nucleares que estavam explodindo e fez a Crest entrar nela, acelerando ao máximo. Agarrei a braçadeira da poltrona.

Page 138: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

138

Sóis chamejantes apareceram nas telas. Fomos atingidos por terríveis ondas de pressão, que sacudiram o casco da nave, ameaçando rompê-lo.

As energias liberadas no interior do campo de hipercarga foram tão violentas que até mesmo esta arma defensiva deixou de funcionar. O campo energético verde tremeu e desmoronou. As unidades geradoras sobrecarregadas levaram apenas um microssegundo para transferir sua energia para os campos defensivos normais. Mas já tínhamos passado. Atrás de nós as bolas de fogo se condensaram num anel compacto de destruição. Tínhamos conseguido por pouco.

Oitenta ou cem informações catastróficas chegaram ao mesmo tempo. Rhodan bloqueou todas as linhas. Só manteve aberto o contato com o controle central das máquinas.

A Crest ainda vibrava, isso apesar dos equipamentos giratórios que tinham entrado em ação ao lado dos estabilizadores energéticos. Foi a prova mais dura a que o ultracouraçado já tinha sido submetido.

— Controle I chamando sala de comando. Os propulsores três, nove e dezenove falharam por causa da sobrecarga mecânica. Reparos em andamento. Sete reatores foram arrancados dos suportes. O fluxo de energia foi interrompido pelo dispositivo automático. Perdas de pressão constatadas em quarenta e dois compartimentos externos. Os comandos anti-vazamento estão a caminho. O campo defensivo de hipercarga voltará a funcionar dentro de três minutos. Recomendo encarecidamente que se realize uma manobra de esquivamento. Fim da transmissão.

— Podemos chamar isso de fuga — disse Rhodan, calmo. — Rudo, .prepare a manobra linear e execute-a sem um destino definido. Se voltarmos a entrar no fogo cruzado deles, estaremos liquidados.

Era uma medida sensata. Muito sensata até para um terrano teimoso como Perry Rhodan. Se estivesse em seu lugar, nem teria tentado ajudar o estaleiro cósmico. Não havia a menor chance para isso. Os canhões de polarização invertida dos lemurenses eram quase tão eficientes quanto os canhões conversores terranos. O manejo da mira era bem mais complicado, mas os efeitos dos petardos explosivos lançados a velocidade ultraluz eram tão devastadores quanto os de nossas gigabombas.

A Crest III seguiu em alta velocidade para o pequeno companheiro do gigantesco sol vermelho, usando os propulsores que continuavam intactos.

Ouvi um zumbido vindo de trás. Era o computador positrônico da sala de comando, que descobriu com base em nossos catálogos estelares um setor espacial cuja densidade estelar garantiria uma chegada relativamente segura.

Os lemurenses saíram em nossa perseguição e o Major Wiffert disparou mais uma salva de gigabombas. Mas desta vez não usou a tática anterior, que consistia em formar uma parede de fogo exatamente na rota do inimigo.

Trinta bombas de mil gigatons disparadas pelas baterias de costado do lado verde materializaram poucos quilômetros à frente do grupo de naves inimigas, que se deslocavam em formação pouco compacta, e explodiram. Desta vez os lemurenses não tiveram tempo para desviar-se.

Ainda chegamos a ver pelo menos cinco naves serem devoradas pelos sóis artificiais. Não foi possível fazer a interpretação dos dados, pois neste exato momento a Crest saiu do universo einsteiniano, protegida por seu formidável campo kalupiano, penetrando na área de libração situada entre a quarta e a quinta dimensão.

Finalmente estávamos em segurança — ou quase! Ainda não me esquecera de que certa vez fôramos perseguidos e atacados por naves especiais em pleno espaço linear.

O vôo a velocidade ultraluz durou onze minutos. As telas voltaram a iluminar-se, mostrando que acabávamos de sair perto de um sol geminado verde-azulado.

Page 139: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

139

Os propulsores continuavam a rugir. Micropartículas se acendiam e eram consumidas no interior do campo defensivo de hipercarga, que voltara a funcionar. No centro da Via Láctea sempre se devia contar com a possibilidade de sair numa proximidade perigosa de um sol, ou ser moído pela micromatéria. Quando isso acontecia, era necessário reduzir imediatamente a velocidade. Não podíamos arriscar-nos a produzir avarias na nave.

Rudo usou toda a potência dos propulsores em sentido contrário ao deslocamento da nave, para reduzir a velocidade com que estávamos voltando ao espaço normal. O brilho dos campos defensivos diminuiu.

Quando acabou de vez, tirei os cintos de segurança, abri o capacete e coloquei a poltrona na posição vertical.

O silêncio reinava na sala de comando. Rhodan enxugou o suor da testa. Olhava fixamente para as telas, que ainda há pouco mostravam quadros de horror.

Olhei em volta. Parecia que ninguém julgava necessário fazer qualquer observação. Os homens que tripulavam a Crest sabiam perfeitamente até onde podiam chegar. E desta vez tinham ido longe demais.

Achei que já estava na hora de fazer algumas observações que combinavam com meus planos. Talvez não fosse muito bonito aproveitar a depressão que tomara conta daqueles homens para aplicar meu golpe psicológico. Mas era a única possibilidade de mostrar a estes combatentes empedernidos quais eram nossas chances.

Levantei e apoiei o braço no encosto da poltrona. — Desta vez ainda escapamos, amigos. Até mesmo os mais teimosos entre nós já

devem ter percebido que não conseguiremos manter-nos indefinidamente diante da superioridade de forças da frota lemurense. Seremos caçados sem parar. Há de chegar a hora em que não poderemos fugir mais, e então os belos sonhos de nosso regresso ao tempo real terão chegado ao fim. Encontramo-nos numa situação de evidente inferioridade diante dos lemurenses.

— O que é isso? — interrompeu Perry. — Desde quando você considera um fato que não pode ser mudado tão importante que tem de enfatizá-lo dessa forma?

— Eu já ia fazer essa pergunta — observou Cart Rudo com um olhar desconfiado. Vi que o sistema de intercomunicação geral continuava ligado. Minhas palavras eram

ouvidas em todos os setores da nave. — Nunca achei que valesse a pena falar sobre fatos que não podem ser mudados —

prossegui com a maior calma. — Quer dizer que não acho que a situação em que nos encontramos seja imutável. Não existe mais nenhuma possibilidade de voltarmos para Andrômeda fazendo um ataque-relâmpago a Kahalo. É o que o Almirante Hakhat está esperando. Os agentes do tempo a serviço dos senhores da galáxia fizeram com que nossos antepassados acreditassem que somos inimigos perigosos. Se quisermos continuar na situação em que nos encontramos, só poderemos rastejar de uma estrela para outra, esquivando-nos das naves que aparecerem por aí, à espera de um milagre. Além disso teremos de providenciar para que nossas reservas de mantimentos sejam completadas, os tanques de água potável sempre estejam cheios e os reparos possam ser feitos com os recursos encontrados na própria nave. Não temos acesso à Terra ou a qualquer planeta que serve de base à frota lemurense.

— Aonde quer chegar, almirante? — perguntou Icho Tolot com sua voz estrondosa. O gigante de quatro braços natural de Halut estava de pé, com as pernas afastadas, fitando-me com seus gigantescos olhos esféricos.

Não deixei que isso me perturbasse. Era necessário malhar o ferro enquanto estivesse quente. E no momento estava.

— Em princípio não importa que nos encontremos no ano 49.988 antes de Cristo, ou no ano 49.488. Seriam quinhentos anos de diferença. Para a humanidade do tempo real

Page 140: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

140

trata-se de um deslocamento insignificante no tempo, que não faz a menor diferença. Para ela continuamos perdidos no passado.

— Acho que já começo a compreender — observou Gucky. — Você quer tirar vantagem de nossas vitórias parciais, não é mesmo?

Não lhe dei atenção. Rhodan reagiu de uma forma muito mais interessante. Olhou para mim com um sorriso irônico no rosto.

— Já que começou, gostaríamos de ouvir o fim do discurso — disse. — Não temos outra saída senão através de Frasbur — prossegui num tom um pouco

mais violento. — Temos de encontrar um meio de conquistar o transmissor de tempo intermediário instalado em Tanos VI, ou ao menos fazer com que ele nos transfira quinhentos anos para o futuro relativista. Se conseguirmos interpor estes quinhentos anos entre nós e a frota dos lemurenses, estes deixarão de existir. O perigo que representam será eliminado. Estaremos em condições de enfrentar eventuais grupos remanescentes que não puderam ser evacuados. Para mim o mais importante é que um deslocamento de quinhentos anos no tempo é o que precisamos para resolver nossos problemas. Se conseguirmos avançar para o futuro, poderemos tentar calmamente chegar à nebulosa de Andrômeda através do transmissor dos cem sóis. Não haverá mais ninguém que possa incomodar-nos. O Almirante Hakhat e a frota de vigilância de Kahalo por ele comandada só permanecerão na memória de alguns descendentes colonos, sob a forma de lendas.

A reação de Rhodan foi exatamente a que eu esperara. Contemplou as pontas dos dedos, passou o polegar pela emenda das luvas pressurizadas, que apresentava um defeito na colagem, e disse:

— É a fadiga do material. Qual será a causa? Fiz um esforço para não perder o autocontrole. Não adiantaria ficar zangado por

causa de seu comportamento. Minha sugestão certamente o pegara de surpresa. Quem respondeu às minhas palavras foi o Tenente-Coronel Brent Huise, um terrano

ruivo com o corpo de um peso-pesado. Soube exprimir aquilo que Rhodan certamente sentia intuitivamente.

— Será que o senhor ainda não compreendeu que estamos saturados de experiências temporais de todos os tipos? Não quero ser indelicado, mas só entrarei nessa máquina forçado.

— Neste ponto o senhor tem razão — disse Rhodan para minha grande surpresa. — Não é necessário que vá espontaneamente. Se for o caso, receberá ordens terminantes para isso.

Huise engoliu em seco e ficou vermelho. O intercomunicador deu um estalido. O rosto do matemático-chefe, Dr. Hong Kao,

apareceu na tela. Era um terrano pequeno e agitado, que adquirira uma triste fama por causa de suas

idéias arrojadas. Por isso Rhodan dirigiu a palavra ao cientista antes que ele pudesse abrir a boca.

— Não venha me dizer que o senhor acha que esta loucura é uma boa idéia, doutor. — Sinto muito, senhor. Acho que é uma excelente idéia. Seria mesmo recomendável

que fugíssemos da época perigosa em que nos encontramos, para daqui a quinhentos anos tentar conquistar o transmissor central, partindo do anonimato. A frota de vigilância que opera em torno de Kahalo não nos incomodaria mais.

— Será que todo mundo enlouqueceu? — exclamou Perry e saltou da poltrona. — Como iríamos conquistar um transmissor de tempo intermediário do qual nem sabemos onde se encontra? Mesmo que descobríssemos, certamente estaria sendo vigiado. Ou será que o senhor pensa que seremos recebidos de braços abertos por alguém que só pensa em ouvir nossos desejos e regular o aparelho segundo os mesmos?

Page 141: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

141

— Por enquanto só temos de resolver se aceitamos a idéia ou não, terrano — retruquei. — Uma vez concebido o plano, sua execução será outra coisa. Dentro de algumas horas saberemos qual é o planeta designado como Tanos VI. Frasbur está ansioso para atrair-nos para este sistema. Assim que o tivermos identificado, poderemos dar início à operação.

Rhodan atravessou a sala de comando sem dizer uma palavra. Um robô abriu uma pequena escotilha, atrás da qual ficava o sistema de transporte rápido por tubos.

Perry entrou, pegou as alças que ficavam em cima da escotilha e saltou para dentro do tubo. Quando estava somente com a cabeça de fora, gritou:

— Quem dera que eu pudesse bater esta porta, para mostrar como me sinto. Acontece que a escotilha automática só se fecha automaticamente. Peço, portanto, que façam de conta que bati a porta. Isto vale principalmente para você, terrano-presa.

— Quem dera que você machucasse os dedos — respondi, furioso. Rhodan fez um gesto de pouco caso, apertou o botão que acionava o sistema de

transporte e desapareceu. A única coisa que vimos foi a luz de controle do campo de impulsão que se acendeu.

Melbar Kasom veio para perto de mim. Esperou que as discussões entre os tripulantes da Crest III atingissem o auge. Muita gente era a favor de meu plano, mas havia alguns que o rejeitavam.

Icho Tolot estava de pé atrás da parede blindada transparente que dividia a sala de comando, introduzindo dados no computador de reserva. Imaginei que o halutense estava do meu lado. Minhas palavras certamente tinham despertado a sede de aventura que era uma das características de sua raça.

— Se necessário, resolveremos isso com duas ou três corvetas — disse Melbar Kasom. — Acho que no fundo Rhodan não concorda com a proposta porque tem medo de que algo possa acontecer com a Crest. Se não me engano, a esta hora está correndo de um lado para outro em seu camarote, que nem um tigre enjaulado, à procura de um meio de harmonizar a segurança da nave com o plano de ataque.

— Isso não é possível. Teremos de assumir um grande risco. — E os mutantes? Fiz um gesto de recusa. — Os mutantes são uma grande força, mas existem coisas que não podem fazer. Não

se esqueça de que esta gente instável já falhou mais de uma vez. Trata-se de um problema que terá de ser resolvido pelo homem normal — e este deverá usar todos os recursos de que pode dispor. Vamos aguardar. Venha comigo. Estou com fome.

— As iguarias da USO estão terminando — queixou-se Kasom, que era o maior comilão a bordo da nave. — Um dia ainda seremos obrigados a engolir mingaus sintéticos. Quando isso acontecer, lembre-se de mim, senhor.

— O senhor deveria solicitar o envio de uma nave cargueira com mantimentos — respondi em tom mordaz enquanto caminhava em direção à saída. Icho Tolot ainda estava trabalhando no computador. O halutense representava minha grande esperança.

Marshall e Gucky, que eram telepatas, já tinham desaparecido. Provavelmente estavam prosseguindo no interrogatório, através do qual pretendiam arrancar os últimos segredos da memória de Frasbur.

Onde ficava mesmo o sistema de Tanos? Seria capaz de apostar a cabeça de que nós o conhecíamos, mas sob outro nome.

Page 142: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

142

4 Do ponto de vista lógico não havia nenhuma objeção válida contra meu plano. Para

nossas tropas que continuavam no tempo normal era totalmente indiferente que nos encontrássemos nesta ou naquela dimensão do passado. De qualquer maneira, não podiam fazer nada por nós.

Nós, que éramos os prisioneiros do tempo, tínhamos de cuidar de nós mesmos. Não tínhamos possibilidade de conquistar o transmissor dos seis sóis, e além disso não havia dúvida de que acabaríamos sendo destruídos por um grupo de naves lemurenses. Por isso era perfeitamente razoável que fugíssemos da época em que nos encontrávamos.

Só tínhamos a ganhar. Quanto a isso não havia a menor dúvida. O importante era convencer Perry de que o plano tinha chances de ser bem-sucedido e entusiasmar os homens da Crest com o mesmo.

Se os nativos da Terra tomam uma decisão, eles não se afastam dela. Nada os impede de passar do plano à ação.

Havia um número muito grande de especialistas de primeira categoria a bordo, e assim seria de admirar se não conseguíssemos conquistar a base instalada em Tanos VI, ou pelo menos utilizá-la em nosso benefício.

Mais uma vez estávamos circulando em torno de um sol desconhecido, situado no anel periférico do centro galáctico. Os sóis ficavam tão próximos um do outro que os erros de navegação se tornavam inevitáveis.

Os lemurenses tinham desaparecido. Haviam perdido nossa pista. Entrei na cabine espaçosa em cujo interior Frasbur estava instalado há alguns dias,

juntamente com Perry, Icho Tolot e os principais cientistas da Crest. Frasbur tinha de ser alimentado artificialmente.

Era um artista de primeira, com grandes reservas de energia, que utilizava sem contemplação. Sua pele morena aveludada esticou-se em cima dos maxilares. As mãos muito magras eram um sinal de que levava a sério o papel que estavam desempenhando.

Gucky, John Marshall e o hipno André Noir também se encontravam presentes. Fazia meia hora que John comunicara que conseguira arrancar os últimos segredos de Frasbur, sem que ele o percebesse.

Ficamos sabendo que a base do tempo dos senhores da galáxia era guarnecida por cerca de quinze tefrodenses altamente qualificados pertencentes ao tempo real.

Já sabíamos da existência do transmissor de tempo intermediário antes que fosse destruído o estaleiro voador. Além disso descobrimos que a base instalada em Tanos VI também dispunha de um transmissor de matéria comum, que permitia o transporte de um mundo para outro, independentemente da época em que a pessoa se encontrasse.

Eram fatos importantes, mas não decisivos. O maior segredo de Frasbur também fora desvendado. Este segredo serviria para destruir-nos, depois que nos tivesse atraído para o sistema de Tanos, contando a verdade.

Tratava-se de um gigantesco forte, especialmente construído para derrubar objetos voadores vindos do espaço. As instalações da fortaleza trabalhavam com a energia retirada de um gigantesco sol azul. Se nos aproximássemos do planeta sem saber da existência desse forte, sem dúvida seríamos destruídos. Não havia como defender-se das energias de um sol, irradiadas depois de passar por um processo de conversão. Marshall informou que o forte se encontrava no pólo norte do planeta, e era inteiramente automatizado. Conhecia esse tipo de instalação da época áurea do Império Arcônida e sabia perfeitamente que no

Page 143: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

143

caso de um ataque não teríamos tempo para antecipar-nos ao bombardeio, destruindo as instalações.

Era um problema que tinha de ser resolvido antes que fosse tarde. André Noir fez um sinal. Frasbur estava deitado na cama, indiferente ao que se

passava em torno dele. Estava com os olhos semicerrados; de vez em quando dizia algumas palavras desconexas ou soltava um grito. Esforçava-se para assumir a atitude típica de um homem que estivesse submetido a uma influência sugestiva.

Até se lembrou de vez por outra fingir-se de revoltado no seu subconsciente, dando a impressão de que usava as forças que ainda lhe restavam para resistir às paraenergias.

Tivemos o cuidado de não dizer uma única palavra que pudesse revelar que sabíamos o que se passava em seu interior. Ainda precisávamos dele, e por isso tínhamos de levá-lo a acreditar que podia cumprir seus planos, levando-nos à destruição.

Os oficiais cosmonáuticos da Crest levaram várias horas estudando as últimas informações de Frasbur. Ele as fornecera voluntariamente, e parecia muito interessado em transmitir dados precisos sobre a situação do sistema de Tanos.

As informações eram tão claras e detalhadas que não tivemos maiores dificuldades. Frasbur não podia saber qual era o nome que dávamos ao sistema de Tanos. Por isso não poderia de forma alguma explicar diretamente do que se tratava.

Mas como possuía um amplo treinamento cosmonáutico e astrofísico, ele dissera a si mesmo que um grupo de especialistas competentes como o da Crest certamente descobriria aonde queria chegar.

Dessa forma acabara revelando um número cada vez maior de dados que nos poderiam servir para alguma coisa, fazendo sempre de conta que estava sendo dominado por uma força sugestiva.

Fizera uma descrição exata da estrela gigante. O tamanho, a temperatura da superfície, o tipo da estrela e certos dados físicos nos forneceram as primeiras indicações.

Mas havia muitos gigantes azuis do mesmo tipo. O agente do tempo também sabia disso. Poderia haver um engano capaz de frustrar todos os planos.

A primeira indicação exata que recebemos foi o número de planetas, fornecido por Frasbur. Pelo que dizia, a estrela gigante chamada Tanos tinha quarenta e dois acompanhantes. O número oito era um mundo colonial dos lemurenses, densamente povoado. O número nove possuía uma base, e o número seis era uma selva infernal próxima ao sol, onde reinavam temperaturas elevadas.

Depois disso Frasbur levara mais três horas para deixar que lhe “arrancassem” outras informações. Depois disso já não havia a menor dúvida, ainda mais que Frasbur lançara seu último trunfo, que era a distância entre a Terra e o sistema de Tanos.

O sol azul chamado Tanos pertencia ao sistema de Vega, que ficava a vinte e sete anos-luz da Terra. Era uma estrela com quarenta e dois planetas. Conhecíamos seu oitavo mundo pelo nome de Ferrol, enquanto ao nono planeta déramos o nome de Rofus.

Os dados fornecidos por Frasbur conferiam exatamente com nossos registros. O sexto planeta constava de nossos catálogos com o nome de Pigell. Tratava-se de uma selva infernal, ainda virgem, na qual reinavam temperaturas extremas.

O sol Vega era a primeira estrela da qual os terranos se tinham aproximado. Consultei a crônica e constatei que Rhodan partira em fins do século vinte numa nave auxiliar arcônida chamada Good Hope e descobrira os ferronenses. A esta hora já sabíamos que estes eram descendentes de colonos lemurenses, que tinham passado por um processo de mutação bastante acentuado, e que durante a retirada dos homens de que descendiam tinham sido deixados no oitavo planeta.

A existência deste povo no tempo real era a melhor prova de que a ofensiva em grande escala que os halutenses tinham lançado contra os sistemas mais próximos à Terra

Page 144: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

144

não fora um sucesso total. Nem mesmo estas máquinas de guerra vindas do centro da Via Láctea tinham conseguido exterminar de vez a raça humana.

Só tínhamos comparecido à cela de Frasbur para com nosso comportamento dar-lhe a segurança que ainda faltava para acalmá-lo de vez. Era um plano de Perry.

Este terrano de olhos cinzentos me procurara depois de uma ausência que se prolongara por várias horas e assim que entrara em meu camarote dissera algumas grosserias.

Após isso dissera que deveríamos interessar-nos pessoalmente pelo agente do tempo. Era o que estávamos fazendo naquele momento.

Perry inclinou-se sobre o tefrodense. Notei que Frasbur continuava a esforçar-se para fazer o papel da pessoa submetida a uma influência estranha. Mas por mais que se esforçasse, não pôde deixar de lançar um olhar de curiosidade para o mais perigoso dos seus inimigos. Rhodan fez de conta que não tinha visto nada.

Melbar Kasom sorriu. Lancei-lhe um olhar de recriminação, e seu rosto logo voltou a ficar impassível.

O Dr. Ralph Artur leu as indicações dos aparelhos automáticos que mediam constantemente as funções orgânicas de Frasbur.

O médico parecia preocupado. Falou aos cochichos. — Pressão sangüínea de oitenta por cento e dez. É baixa, senhor. O pulso é lento e

inconstante. Os problemas respiratórios são evidentes. Tive de fazer alguma coisa para reforçar a circulação. Os últimos valores metabólicos foram simplesmente miseráveis. A tortura constante está prejudicando a saúde deste homem.

— Isso não pode ser evitado — disse Perry em sua defesa. — Mr. Marshall...! John adiantou-se e esboçou uma continência. Os cantos da boca de Frasbur tremeram.

Não tentava sorrir, mas simplesmente dava mostras de seu nervosismo. — Tem certeza de que Frasbur disse a verdade, John? — Certeza absoluta, senhor. Perry inclinou-se ainda mais profundamente sobre o homem que fingia estar

submetido a uma influência externa e passou as pontas dos dedos pela testa coberta de suor. Frasbur imediatamente soltou um grito, tentou levantar-se e balbuciou alguma coisa sobre monstros do hiperespaço.

Tive de fazer um esforço para não sorrir. Não tive muita certeza de que conseguiria, e por isso preferi retirar-me para trás da cabeceira da cama, para que Frasbur não visse meu rosto.

Como sempre, o Administrador-Geral foi bastante meticuloso. — Conseguiu afastar o bloqueio hipnótico? — perguntou a Marshall. John balançou a cabeça como quem não sabe muito bem o que dizer. — Para ser franco, senhor...! — Quero que seja! — Sim senhor. Não alcançamos um êxito completo. Quando tentamos aprofundar

nossas pesquisas, esbarramos num obstáculo. Mas sempre conseguimos obrigá-lo a transmitir parte dos seus conhecimentos.

— É quanto basta, desde que os dados colhidos sejam corretos. Será que o senhor não seguiu uma pista falsa? Compreende o que quero dizer?

— Compreendo, sim senhor. As informações fornecidas são verdadeiras. Ele se refere ao sistema de Vega.

— E o transmissor de grande alcance, que permite que se penetre no fluxo do transmissor dos seis sóis sem passar por Kahalo? Realmente existe naquela base? — prosseguiu Perry em tom hesitante.

Page 145: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

145

O rosto estreito de Marshall continuou impassível. Por um instante Frasbur esqueceu o papel que estava desempenhando e pôs-se a escutar, prendendo a respiração. Kasom voltou a sorrir.

— Tenho cem por cento de certeza, senhor. — Hum! Será que o senhor poderia descobrir mais alguma coisa quanto aos

mantimentos existentes em Vega VI? Até que não seria mau se encontrássemos grandes depósitos de mantimentos. — Vamos tentar. — Tentem, sim. Rhodan endireitou o corpo. Aproximei-me dele. Não fui tão discreto como o Chefe do

Império Solar. Dei um beliscão no rosto de Frasbur. Um homem normal pelo menos soltaria um gemido.

O tefrodense soube controlar a dor. Levantei suas pálpebras e vi um par de olhos revirando em todas as direções.

— Sofreu uma paralisia — disse a mim mesmo. — O que estamos esperando? — Seja um pouco mais delicado, lorde-almirante — exclamou o médico-chefe. Fiz um gesto de pouco caso. — Não está sentindo nada. Mr. Marshall, estou menos interessado no transmissor de

grande alcance que nos armamentos de que dispõe a base. Faça tudo para descobrir alguma coisa a este respeito. Ficaria admirado se por lá não existissem armas defensivas. Preciso conhecer a força do dispositivo de defesa espacial.

Dei um beliscão nas orelhas de Frasbur e voltei para o centro da cela. — Se não conseguir nada, Marshall, acorde-o e deixe por minha conta — disse Melbar

Kasom. Mostrou os punhos enormes ao agente do tempo, que piscou cuidadosamente os

olhos. Não tínhamos mais nada a fazer por lá. Acabara de lançar uma isca para Frasbur, e ele

não deixaria de mordê-la. Era até possível que ficasse desconfiado se ninguém fizesse uma pergunta a respeito do sistema defensivo do planeta. Era um homem que sabia pensar logicamente, e por isso só poderia achar minhas preocupações perfeitamente naturais. Eram típicas de um experimentado oficial espacial.

Abandonamos a cela especial do setor psiquiátrico. As portas duplas entraram nos fechos magnéticos.

Quando Frasbur não nos pôde ouvir mais, tive de suportar um olhar prolongado de Rhodan.

— Já lhe disse que não gostaria que você fosse meu inimigo? — Quer dizer que depois de algumas horas de bom sono você mudou de opinião? — Sono? Estava trabalhando. — Os estadistas sempre costumam dizer isso — resmungou Kasom tão alto que todo

mundo ouviu. Rhodan sorriu. Nunca se zangava com uma observação desse tipo. — Não mudei de opinião, mas andei pensando nisso. Realmente não importa em que época nos encontramos. Mas antes de mais nada

temos de esclarecer uma coisa. Não quero bancar o obstinado, arcônida, mas quero ter certeza.

Dei uma risada. Rhodan ficou um pouco embaraçado. Devia estar lembrado da recusa áspera que manifestara no início. Tivemos bastante sensibilidade para não fazer caso disso. O pequeno Lemy Danger olhou para Rhodan com uma expressão tão radiante que o terrano ficou vermelho. Sabia que era amado, mas um terrano normal não mostrava seus sentimentos com a mesma desenvoltura de um siganês. Homens como Kasom, Cart Rudo,

Page 146: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

146

Don Redhorse, Brent Huise e muitos outros tinham outra forma de demonstrar seu respeito e simpatia.

Rhodan saiu andando depressa. Voltamos a encontrar-nos na pequena sala de conferência que ficava no convés

equatorial. Desta vez Marshall e Gucky não estavam presentes. Ficaram perto de Frasbur, fazendo de conta que prosseguiam no interrogatório.

Desta vez foi Icho Tolot que tomou a iniciativa. Ninguém quis saber por quê. Não havia a menor dúvida de que o halutense trazia consigo uma completa interpretação matelógica.

— O que é que o senhor ainda quer ver esclarecido antes que seja iniciada a operação?

Nosso físico-chefe, Spencer Holfing, fez um gesto de aprovação. Icho Tolot tocara no ponto exato que interessava a todo mundo. Fiquei muito satisfeito ao registrar que os terranos presentes no fundo estavam dispostos a aceitar minha proposta. Alguns deles já ardiam de entusiasmo.

— Foram contaminados pela aventura — explicou o setor lógico de minha mente. — Não é de admirar, depois da monotonia das últimas semanas.

— É simples — disse Perry, interrompendo minhas reflexões solitárias. — Frasbur não engana mais ninguém. Podemos fazer a interpretação racional dos dados secretos por ele fornecidos. Precisamos encontrar uma solução que seja positiva para nós. Depende de nós sairmos disso sãos e salvos. Acontece que não podemos prever o que nos espera depois do salto que nos transportará quinhentos anos para o futuro relativista. Estou pensando antes de mais nada no transmissor de seis sóis instalado no centro da galáxia. O que será que encontraremos por lá depois de quinhentos anos?

— Posso garantir que não será uma frota lemurense — afirmou o Dr. Hong Kao. — Provavelmente não. — Isso já é um fator positivo — apressei-me a observar. Perry voltou a fitar-me com uma expressão irônica. — Sei perfeitamente que você é capaz de fazer pouco-caso de qualquer coisa, desde

que isso interesse ao seu plano. Como estarão mesmo as coisas em torno de Kahalo? Será que os lemurenses não introduziram alguns dispositivos de segurança para evitar a entrada de pessoas não autorizadas?

Icho Tolot veio em meu auxílio. Tive uma impressão vaga de que as preocupações de Perry até tinham sua razão de ser.

— Acho que devemos cuidar disso no caso concreto, senhor — disse o halutense. — Não vale a pena deixar que certos fatores secundários perturbem as medidas que têm de ser tomadas. Esperemos até que estejamos naquilo que para nós vem a ser o futuro. Aí veremos o que fazer. Seria estranho se não encontrássemos uma solução. Afinal, os senhores são terranos!

Estas palavras do halutense diziam tudo. Rhodan ficou calado alguns minutos, fazendo anotações. Quando levantou os olhos,

parecia ter superado todas as dúvidas. Passara a ser apenas o estrategista que parecia não ter nervos, capaz de arriscar tudo, embora ainda há pouco tivesse demonstrado a preocupação que a segurança da nave e de seus tripulantes exigia.

— Vou expor meu plano de ação. Vamos começar. Fitei-o estarrecido. — Você ainda não o conhece muito bem, não é mesmo? — disse meu cérebro

suplementar. Rhodan surpreendeu-nos com dados tão precisos e detalhados que quase não

chegamos a fazer nenhuma pergunta. Não esquecera nada. Os fatores de tolerância

Page 147: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

147

incluídos em seus cálculos eram muito menores do que eu previra. Considerara todas as casualidades possíveis, inclusive certas ocorrências tão extraordinárias que havia uma probabilidade de um para cem mil de que nunca se verificariam.

A conferência na qual foi discutida a operação durou oito horas. O terrano só concedeu uma pausa de quinze minutos. Não se comeu nada nestas oito horas.

Perry mais uma vez se transformara numa máquina que parecia não saber o que era cansaço. Vivia pedindo aos cientistas que indicassem possíveis fontes de erros, para que elas fossem incluídas nos planos.

Quando saímos, não havia mais nenhuma dúvida de que tínhamos feito tudo que era possível para evitar uma catástrofe.

Rhodan não parecia nem um pouco cansado. Olhou para o relógio. — A segunda conferência começará às vinte e duas horas, tempo de bordo. Tratem de

descansar um pouco. Quem pensa que pode forçar mais um pouco a mente poderá refletir sobre o que já foi discutido e apresentar sugestões de como melhorar alguma coisa.

Perry cumprimentou-nos com um aceno de cabeça, encostou a mão direita ao boné e saiu andando.

Icho Tolot riu o mais baixo que era possível. Kasom suspirou profundamente. Comecei a lamentar-me por ter forçado as coisas.

— Ficou meio furioso — disse Kasom, enquanto nos dirigíamos aos camarotes. — Nunca irrite um terrano!

Dei uma risada. Nunca irrite um terrano. Já ouvira esta expressão muitas vezes na boca dos povos galácticos.

Entramos no elevador antigravitacional e descemos flutuando para o convés habitacional. Kasom apalpou o estômago, deu uma expressão preocupada ao rosto e voltou a saltar para dentro do elevador. Não tive a menor dúvida de que acabara de lembrar-se da cozinha de bordo.

Também mudei de idéia. A Crest III possuía equipamentos esportivos dos mais modernos, inclusive uma grande piscina. Era para onde pretendia dirigir-me. Em seguida faria uma massagem e deixaria que os dispositivos termo-pneumáticos refrescassem meu corpo.

Numa expectativa alegre abri a grande porta e espiei para o pavilhão amplo. Não havia ninguém na piscina. A água até parecia uma massa compacta, a torre-trampolim fora recolhida hidraulicamente e as cabines de massagem estavam trancadas.

Soltei uma terrível praga, que ressoou com a força de um trovão. Mais adiante um robô muito feio incumbido dos serviços das instalações exibiu a cabeça de lata.

— Instalações interditadas — disse sua voz metálica. — Interdição será levantada assim que regime de meia prontidão seja suspenso. Instalações...

Retirei-me, rangendo os dentes. Nesta nave o homem sério era privado de todas as alegrias.

Dois terranos que, segundo pareciam, faziam parte da equipe de revezamento do pessoal incumbido das máquinas da sala kalup número II esforçaram-se para não mostrar que estavam rindo. Mas não conseguiram.

Deparei-me com horríveis caretas, que quase chegavam a ser apavorantes atrás dos visores dos capacetes.

Um dos homens, um tipo robusto, mexia os lábios com muita força. Encarei-o sem saber o que dizer.

— Será que extraíram suas amídalas sem anestesia? O homem soltou um forte gemido e ficou em posição ainda mais rígida. O outro

técnico, um sargento de cabelos louros claros, deu uma resposta típica de um terrano.

Page 148: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

148

— Este homem tem trinta e dois milhões de fios de cabelo no peito, senhor. Não pode deixar de rir.

— Como? — perguntei, perplexo. — Poderia fazer o favor de repetir? — Os cabelos fazem cócegas por dentro, senhor. Ele vive rindo. Afastei-me às pressas. Gostaria que o leitor me dissesse o que um oficial da USO pode

fazer com uma observação destas. Só lhe resta fugir, para não ter de rir no rosto de um sujeito petulante.

A segunda conferência começou às vinte e duas horas, tempo de bordo, em ponto. Desta vez todos os especialistas estavam presentes. Rhodan maltratava os nervos dos outros. Vivia perguntando se alguém tinha descoberto um erro.

Já eram quase seis horas quando entrei cambaleando no meu camarote. Já não me importava com mais nada: o futuro, o passado, o transmissor temporal, nossos planos, tudo se tornava indiferente. Meu cérebro estava sobrecarregado de algarismos. O vozerio e o ruído dos computadores positrônicos enchia meus ouvidos. Não via nada além dos diagramas e só ouvia palavras relacionadas com Frasbur, o sistema Vega, a artilharia da Crest III e os nomes das pessoas às quais Rhodan confiara certas tarefas.

Também recebi uma tarefa — uma tarefa honrosa, segundo disse Rhodan. Era tão honrosa que já sentia uma comichão no pescoço. Na expressão de Melbar Kasom e outros homens do seu tipo, tratava-se de uma tarefa de alto risco.

Page 149: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

149

5 Nossos calendários registravam o dia 18 de junho de 2.404, tempo real. Fazia dois

minutos que a nave-capitânia da Frota Solar tinha saído do espaço linear, materializado a trinta bilhões de quilômetros da órbita do planeta exterior.

A nave estava em estado de rigorosa prontidão de batalha. Aproximamo-nos do sistema solar que conhecíamos pelo nome de Vega, desenvolvendo apenas alguns milhares de quilômetros por segundo.

O gigantesco sol azul brilhava nas telas óticas comuns. Até parecia uma luminosa safira, cujo brilho abafava as estrelas da vizinhança. Mas à distância em que estávamos Vega não passava de uma estrela de alta luminosidade. Ainda não se percebia quase nada do seu tamanho enorme.

Nossos planos tinham sido elaborados até o último detalhe. Não houve mais nenhuma pergunta. Cada homem, desde o comandante até o simples jardineiro hidropon, sabia exatamente o que devia fazer.

Precisávamos ter cuidado — muito cuidado! Mesmo no tempo dos lemurenses a grande família planetária de Vega pertencera ao grupo de sistemas que foram procurados e colonizados logo após a invenção dos sistemas de propulsão ultraluz.

O oitavo planeta, que Perry conhecera por ocasião de seu primeiro avanço pelas amplidões do espaço como sendo o mundo dos ferronenses, era sem dúvida uma fortaleza de primeira categoria — ou ao menos tinha sido!

A primeira coisa que tínhamos de fazer era verificar esse ponto. Certamente os mundos do sistema de Vega não tinham escapado ao ataque em grande

escala dos halutenses contra os planetas do reino estelar lemurense. Em nossa opinião, Ferrol e as outras bases do sistema de Vega deviam ter caído antes dos planetas pertencentes ao sistema solar terrano. Nestes planetas os lemurenses tinham resistido até a morte. Era pouco provável que tivessem defendido os planetas de Vega com a mesma obstinação.

Perry ligou o intercomunicador. Fazia questão de que suas instruções fossem ouvidas em todos os cantos da nave. Era um procedimento pouco usual, que tinha produzido bons frutos a bordo da Crest.

A tripulação rigorosamente selecionada da nave era capaz de suportar notícias desagradáveis sem perder os nervos. Nas outras naves os oficiais pensariam duas vezes antes de colocar suas reflexões pessoais e as ordens especiais que emitiam ao alcance de toda a tripulação. Neste ponto Perry tinha a mentalidade muito aberta. Confiava na experiência e na autodisciplina de seus homens.

— Chefe chamando rastreamento. Nem pensem em soltar um impulso de eco. Não demorariam nem um pouco a localizar-nos.

— Rastreamento chamando Chefe. Entendido. Estamos surpresos por captarmos tão poucos impulsos externos. O sistema de Vega não parece ser muito movimentado.

— Tanto melhor. Atenção, sala de rádio. Como estão as coisas por aí? O Major Kinser Wholey respondeu imediatamente. Gostava do afro-terrano de pele

escura. Sua risada muitas vezes mexera conosco no meio de uma depressão. — Sala de rádio chamando Chefe. Nossos goniômetros localizaram cinco objetos

diferentes. Três deles são naves halutenses. Os outros dois são quase imperceptíveis e os ecos são transmitidos à velocidade da luz, pela faixa de ondas ultracurtas. As mensagens devem ter sido transmitidas há algum tempo, senão ainda não teriam chegado aqui. As mensagens codificadas dos halutenses estão sendo recebidas pelas hiperondas, com a

Page 150: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

150

sonoridade quatro. Tenho a impressão de que se trata de nave-patrulha, cujos comandantes se comunicam de vez em quando.

— Continue na mesma faixa. Atenção, estação astronômica. Distinguiu alguma coisa com os telescópios de reflexos energéticos?

— Todos os planetas que se encontram deste lado do sol estão em nossas telas de projeção. A ampliação funciona perfeitamente. Vemos claramente Ferrol no apogeu de sua órbita.

— Conseguiram trazer para perto alguns setores da superfície? — Não senhor. Se quisermos obter uma ampliação, teremos de montar os refletores

energéticos de trezentos metros. Isso é possível? Cart Rudo fez um gesto negativo. — Não faça isso, senhor — disse a Rhodan. — Sabemos que os telescópios de reflexos

energéticos podem ser facilmente detectados. Perry confirmou com um gesto. Não gostava de assumir riscos que pudessem ser

evitados. — Atenção, estação! Não usem os refletores porque haveria o perigo de sermos

localizados. Como estão as coisas em Ferrol? — A superfície parece ter sido devastada. O hemisfério noturno, que está à vista,

emite um brilho verde-azulado. Deve ser por causa da contaminação radioativa. Perry desligou e passou a dirigir-se a mim. — Isso explica por que os antigos colonos lemurenses se transformaram em

ferronenses. Sofreram mutações por causa das radiações. Atlan, ao que tudo indica a maioria dos povos humanóides da Via Láctea, descende dos homens primitivos.

Confirmei com um gesto. Ficara bastante impressionado. Parecia que Perry tinha razão. Bem no íntimo comecei a imaginar qual era a causa dos sucessos alcançados por Rhodan. Os terranos do tempo real eram os únicos descendentes dos lemurenses que não tinham perdido sua verdadeira identidade. Conservaram a pureza do espírito e do corpo. Já tivera oportunidade de ver mais de uma vez quais eram as conseqüências que isso trazia.

Mais uma vez os terranos estavam para resolver um problema diante do qual os outros povos teriam recuado.

Examinei as indicações mais importantes dos instrumentos instalados na sala de comando. Nossos campos defensivos tinham sido desligados antes do prolongado vôo linear. Poderiam ser detectados perfeitamente a grande distância.

Os propulsores e conjuntos geradores também estavam parados. Um único reator funcionava a meia capacidade, fornecendo a eletricidade de que precisávamos. No momento não era muito. Os aparelhos que consumiam mais energia tinham sido desligados.

Era arriscado aparecer com uma nave praticamente paralisada junto a um sistema solar em cujo interior poderia haver milhares de gigantescas naves de guerra halutenses.

Em minha opinião os lemurenses já não representavam nenhum perigo no setor espacial em que nos encontrávamos. Tinham sofrido uma derrota fulminante há muitos anos e foram obrigados a recuar para suas áreas de interesse mais importantes.

Na posição em que nos encontrávamos era difícil distinguir Vega VI, que era o planeta que mais nos interessava. Encontrava-se atrás do sol, em posição lateral, e sua imagem só poderia ser captada por meio dos rastreadores de relevo ultraluz. Mas não podíamos assumir o risco de usar estes aparelhos.

Rhodan recostou-se na poltrona e pôs-se a refletir. Por enquanto correra tudo segundo o plano. A qualquer momento podia haver uma ocorrência secundária. Tratava-se de um fator de planejamento que admitia mais de uma solução. O importante era encontrar a alternativa mais favorável.

Page 151: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

151

— Acho que dois jatos-mosquito bastarão para explorar o sistema — disse Perry, pensativo. — Uma corveta seria muito grande. Quem se oferece?

Olhei em volta. Ninguém se manifestou. Segundo o plano, a tarefa seria minha. Levantei sem dizer uma palavra e apertei a tecla do intercomunicador. — Atlan falando. Major Don Redhorse, o senhor será meu navegador-rastreador.

Coronel Melbar Kasom, o senhor pilotará o outro caça-mosquito. Seu navegador será o Capitão Finch Eyseman. Atenção, chefe da manutenção dos mosquitos. Prepare dois aparelhos com instalações completas de análise e fotografia. Coloque a bordo magazins de municiamento dos canhões conversores com duas bombas de catálise de vinte gigatons cada. Providencie alimentos concentrados e água para quatro semanas de vôo. Quero que os aparelhos sejam preparados quanto antes. Câmbio.

O chefe da manutenção dos mosquitos confirmou as ordens. Kasom já estava saindo. Rhodan franziu a testa.

— Quer mantimentos para quatro semanas de vôo? — Os arcônidas sempre foram muito previdentes. Se não encontrarmos mais a

orgulhosa Crest, fundaremos uma colônia com uma população mista. Cart Rudo deu uma risada. Estas palavras eram capazes de impressionar um

epsalense. Afinal, ele não sabia que não me sentia muito bem na própria pele. Era uma audácia dirigir-se com dois caças-mosquito a um planeta do qual possuíamos apenas os dados do tempo real. Ainda faltava descobrir como era neste momento, cinqüenta mil anos antes.

Fiz um gesto de despedida. — Não se deixe pegar pelos halutenses — gritou Perry atrás de mim. —

Continuaremos rastejando na mesma rota. Acho que não preciso ressaltar que não devemos transmitir mensagens de qualquer espécie. A segurança da Crest é mais importante que qualquer outra coisa — mesmo numa emergência.

— Ora, meu chapa. Já dei instruções como estas milhares de vezes, quando...! — ...quando meus antepassados ainda viviam em cavernas e se guerreavam com

machados de pedra. Estou cansado de saber disso. Desculpe, vovô. Não tive a intenção de faltar-lhe com o devido respeito.

— Pois é. A gente deve honrar os velhos — acrescentou Rudo com uma irritante solenidade.

Preferi não me envolver em discussões. Por que justamente em ocasiões como esta eu sentia uma simpatia toda especial pelos terranos? O setor lógico de minha mente entrou em ação imediatamente.

— Você sabe. Eles o amam. Tremerão por dentro enquanto você não tiver voltado. Mas nunca mostrarão isso. Paciência! É o jeito deles.

Saí na certeza de ter deixado para trás cinco mil amigos sinceros. Usei o transporte pneumático, que me levou aos hangares situados nos conveses superiores, onde estavam guardados os novos caças-mosquito.

Entrei em um dos grandes recintos e ouvi um chiado. Era Lemy Danger, que estava sentado em cima de uma das portas blindadas, com todo o equipamento, esforçando-se para chamar minha atenção. Encontrava-se a menos de cinqüenta centímetros de meu rosto.

Lemy estava berrando. Notei pelo rosto esverdeado. Assim mesmo tive de prestar muita atenção para compreender o que dizia. Kasom aproximou-se. Parecia zangado. Não notara a presença de seu colega anão.

— Senhor, o especialista Danger pede permissão para participar do vôo de reconhecimento — gritou o anão. Ficou de pé em cima da porta, numa impecável posição de sentido.

Page 152: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

152

Pigarreei surpreso e fiquei sem saber o que dizer. Danger começou a ficar nervoso. — Senhor, se necessário poderei sair do caça com meu equipamento voador e

investigar discretamente certas coisas que o senhor talvez nem notasse numa passagem rápida — disse o pequeno especialista em tom insistente. — Por favor, senhor, leve-me.

Kasom bateu com o pé na porta, que se abriu. Nosso super-herói saiu voando. Mas teve a reação instantânea típica de um siganês.

O dispositivo antigravitacional que levava consigo evitou a queda, segurando-o pouco antes que tocasse o chão.

— O que está pensando, seu moleque ertrusiano? — berrou Lemy para o gigante de dois metros e meio. — Safado, malfeitor, inútil! Você é um tipo indecente. É a vergonha da humanidade!

— Como está praguejando — observou Kasom sem abalar-se. Tive de fazer um grande esforço para não perder o autocontrole. — Vai levar mesmo esse micro-coelho?

Lemy soltou um grito e pôs a mão na arma energética. Era muito pequena, mas seus efeitos eram devastadores. Quando não conseguia defender-se das brincadeiras dos homens de estatura normal, Lemy costumava regular sua arma para a potência mínima para produzir algumas queimaduras nos pés daqueles que o ofendiam.

Kasom deu uma risada e apertou o botão de seu campo defensivo. O tipo disparado por Lemy não produziu nenhum efeito. — Trate de comer e engordar um pouco, Lemy — disse o ertrusiano em tom

apaziguador. Estava usando o cumprimento que em seu mundo costumava ser empregado entre amigos.

A pequena criatura acalmou-se imediatamente. Nunca guardava rancor contra ninguém. Subiu em meu ombro.

— Já perdoei o que ele me fez, senhor — gritou. — Esqueça meus insultos que ofendem as regras da cortesia. Por favor!

— Foi o senhor? Lemy contemplou-me com seus olhos de botão e pôs-se a refletir para ver se

descobria o que eu queria dizer com isso. Terminei a discussão. — Está bem. Pode ir comigo. Trate de encontrar um lugar confortável. Não se esqueça

de que provavelmente terei de realizar manobras muito violentas. Teremos de contar com pressões de três a oito gravos.

— Isso não é nada, senhor. Meu neutralizador de pressão resiste a dez gravos. Além disso sou um tipo esportivo.

O homenzinho saiu zumbindo. Don Redhorse, que eu escolhera como co-piloto, embora fosse o comandante da primeira escotilha de corvetas, segurou Danger com uma das mãos e colocou-o na minúscula eclusa de ar do caça.

— Com licença, general — disse o cheiene em tom solícito. — Se necessário o senhor nos tirará de uma armadilha, não é mesmo?

— Sem dúvida, major, sem dúvida! —exclamou Lemy, entusiasmado. — Poderia ter a bondade de abrir a eclusa para mim?

O terrano de estatura alta e perfil de águia comprimiu o botão. Lemy entrou voando. Andei em torno do aparelho e tentei em vão descobrir algum erro. A palavra erro não

figurava no dicionário dos especialistas de manutenção terranos. Quando anunciavam que um caça estava em condições de voar pelo espaço, era porque realmente estava.

Kasom espremeu-se através da eclusa de ar, passou pelo assento do encarregado do rastreamento e acomodou-se na poltrona regulável destinada ao piloto. Dominava perfeitamente os caças-mosquito. O Capitão Finch Eyseman, um homem magro, de olhos castanhos e rosto sonhador, seguiu o ertrusiano. Travei contato com Eyseman quando

Page 153: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

153

ainda era um tenente muito jovem. Neste meio tempo adquirira uma grande experiência no front, que muitos homens de cinqüenta anos ainda não possuíam.

Entrei no caça, que tinha vinte e seis metros de comprimento, quatro de diâmetro na proa pontuda e três metros na popa, que era mais fina que o resto do aparelho. A eclusa de passageiros ficava à frente das asas delta em forma de flecha, que juntamente com os lemes aerodinâmicos transformavam o caça-mosquito num avião comum quando se encontrava na atmosfera.

Os instrumentos eram tantos que eram capazes de confundir qualquer um. Os mosquitos eram aparelhos robotizados por grupos de comandos, mas o piloto tinha muito trabalho para controlar os mecanismos necessários às operações de vôo.

Se não fossem os navegadores-rastreadores, os caças-mosquito só poderiam ser pilotados em condições precárias. Não se podia esperar que além das indicações relativas aos mecanismos de vôo o piloto ainda controlasse os complicados aparelhos de rádio e rastreamento, bem como a navegação espacial. Se não fossem os dispositivos robotizados, estes aparelhos nem poderiam ser controlados por dois homens.

Se durante o vôo espacial aparecesse algum defeito na aparelhagem eletrônica e positrônica, que era extremamente complicada, só restaria esperar por um milagre. Era impossível fazer os reparos na ausência da gravidade. Os comandos mais sujeitos a panes e os elementos eletrônicos tinham sido montados em versão tripla. Isso se aplicava principalmente à sincronização dos manches energéticos, que transmitiam os movimentos do manche de controle, que parecia não ter nada de extraordinário, às turbo-bombas ou chaves de contato magnéticas, que por sua vez os transmitiam aos mecanismos de execução.

O controle hidráulico dos jatos giratórios era um verdadeiro pesadelo para os técnicos. Se tudo funcionava perfeitamente, o jato-mosquito era um aparelho imbatível. Se havia algum defeito, não se podia cair no espaço livre, mas era bem possível que o jato se precipitasse a metade da velocidade da luz para dentro de um sol. Podia-se dizer que o sistema de armas espaciais mais recente da humanidade era tão seguro como se podia esperar de um conjunto de máquinas deste tipo.

Acomodei-me no assento pneumático, esperei que ele se adaptasse ao meu corpo e fiz sair os cintos de segurança. Don Redhorse colocou o capacete pressurizado do traje espacial sobre minha cabeça e ligou o sistema de utilização do ar da sala de comando. Quando em vôo, quem era sensato costumava poupar o precioso oxigênio dos trajes espaciais para um caso de emergência.

Apertei a chave do controle final automático. Duzentas e onze luzes verdes acenderam-se, mostrando que estava tudo em ordem.

Os campos de impulso empurraram-nos suavemente pelos trilhos do hangar. Paramos assim que chegamos à câmara da eclusa. As portas internas desta fecharam-se. As turbo-bombas sugaram o ar, criando um estado próximo ao vácuo. As tampas dos tubos de catapultagem abriram-se. Vi um setor insignificante do espaço.

Na periferia da galáxia, que era onde nos encontrávamos, não havia a abundância estonteante de estrelas encontrada no centro. Minha mente absorvera a luminosidade abundante por vários dias. Por isso naquele momento me senti solitário.

Mas a voz do oficial incumbido do controle espantou os pensamentos melancólicos. Fiz um sinal para Kasom, mostrando que podia decolar. Seu caça transformou-se num relâmpago, que desapareceu de repente da câmara da eclusa. Uma ligeira vibração era o único sinal de que o aparelho fora arrastado pelos trilhos por uma pressão de duzentos gravos, que a impeliu para o espaço.

Voltei a examinar as luzes de controle de meu neutralizador de pressão. O reator atômico siganês, que gerava a energia de que precisávamos, estava funcionando a toda

Page 154: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

154

força. Fornecia a corrente consumida pelos equipamentos suplementares. Não estava ligado ao sistema de propulsão, cujo funcionamento era independente do resto.

Dali a instantes o aparelho em cujo interior me encontrava também foi impelido para fora da nave-mãe. O sistema sincronizado de neutralização de pressão funcionou perfeitamente. Não fui atingido nem mesmo por uma fração de gravo.

— Tivemos sorte — disse Don Redhorse em tom seco. Usou o sistema de transmissão audiovisual. O jato-propulsor do caça rugiu. Liguei o piloto automático pré-programado e segui o

aparelho de Kasom, que era apenas um ponto de eco verde na tela do rastreador de energia.

O ertrusiano reduziu a potência de seu propulsor, esperando que chegasse perto dele. Depois disso aceleramos à razão de setecentos quilômetros por segundo ao quadrado. Nosso destino era o sexto planeta, ainda invisível, que pretendíamos atingir através de algumas manobras lineares de pequena duração.

Os caças-mosquito eram as primeiras naves de pequeno porte construídas pela humanidade que dispunham de um sistema de propulsão kalupiano. Seu raio de ação era de cem mil anos-luz, o suficiente para atravessar a Via Láctea.

Demos início à manobra quando atingimos vinte e cinco por cento da velocidade da luz.

Vega apareceu na tela de fixação do destino da zona de libração. A passagem para o semi-espaço com suas condições físicas estáveis não produziu o menor trauma. Era a técnica perfeita de vôo ultraluz, com a qual sonhavam os arcônidas, sem desconfiar de que seus antepassados, os lemurenses, já dominavam esta arte.

Fizemos o vôo visual. O campo energético da quinta dimensão irradiado pelo sol gigante, que normalmente era invisível ou quando muito podia ser distinguido por meio de complicados aparelhos especiais, era nosso ponto de referência. Vega destacava-se na tela em forma de uma bola de energia fosforescente.

O vôo durou apenas setenta e cinco segundos. Quando retornamos ao espaço einsteiniano, avistamos o sexto planeta a 41.823.593 milhões de quilômetros de distância. Desta vez ligamos os hiper-rastreadores, sem preocupar-nos com a possibilidade de sermos localizados. Determinamos a distância exata e deixamos a fixação da velocidade por conta dos computadores de bordo. Afinal, era para isto que tinham sido instalados.

A segunda manobra foi iniciada. Antes disso destravei o botão vermelho-escuro que servia para acionar a arma, instalado na ponta do manche de impulsos. Mas a trava do canhão conversor rigidamente montado na direção do vôo continuava fechada. Viajávamos em direção a um mundo que Frasbur chamara de Tanos VI.

Page 155: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

155

6 O sistema de giro do jato-propulsor funcionou perfeitamente. Kasom encontrava-se

pouco menos de vinte quilômetros atrás de mim, com um deslocamento vertical no setor verde. Usei toda a potência dos jatos na frenagem, mas apesar disso parecia que o planeta caía em minha direção. Os pilotos de caça são submetidos a uma pesada carga psicológica toda vez que se aproximam em alta velocidade de algum astro. O sistema positronizado de rastreamento do aparelho trabalhava com a maior precisão, tornando impossível qualquer acidente, mas apesar disso tive a impressão de ter-me transformado numa criatura abandonada presa atrás da lâmina blindada de plástico transparente de visão global, sem a menor possibilidade de salvação. Redhorse, que estava sentado atrás de mim, olhou por trás de minhas costas, procurando distinguir certos detalhes na superfície do planeta.

Não se via muita coisa. Mesmo no passado, Vega não passava de um inferno selvático, cuja coloração verde-azulada raramente era interrompida por outras tonalidades.

A luz vermelha do sistema positrônico de pilotagem acendeu-se, o que era um sinal de que devia assumir o controle manual.

Uma campainha instalada no cabo do manche de impulsos se fez ouvir. Era tão forte que nem mesmo um surdo deixaria de ouvi-la. Senti o choque da ligação entrando no engate. Dali em diante eu sozinho controlava o aparelho, que ainda se deslocava em direção ao planeta à velocidade de três mil quilômetros por segundo.

— Siga pela órbita equatorial, senhor — recomendou o cheiene. — Se realmente existe uma fortaleza no pólo norte, é possível que abram fogo contra nós.

Teoricamente era possível, mas na prática era pouco provável. Ultimamente um grande número de naves deveria ter-se dirigido a Vega VI, planeta

ao qual tínhamos dado o nome de Pigell. Naturalmente a guarnição da estação do tempo nem pensara em revelar sua posição por meio do bombardeio de naves halutenses ou lemurenses.

Mas se a Crest de repente aparecesse por ali, as coisas naturalmente seriam diferentes. Da memória de Frasbur tínhamos extraído a informação de que esta nave gigante não tinha igual na galáxia. Para mim não havia a menor dúvida de que a guarnição tefrodense da estação do tempo recebera uma descrição exata da enorme esfera espacial.

A Crest não poderia ser confundida com qualquer outra nave. Além disso sempre aparecia só. Bastaria uma única operação de rastreamento energético para que os tefrodenses descobrissem que objeto era este que se aproximava, vindo do espaço. Afinal, nossos conjuntos geradores eram muito melhores que os de qualquer outra nave. Uma série de bons aparelhos seria capaz de medir seu desempenho e interpretar os resultados.

Estes fatores tinham sido considerados por Rhodan. Eu o admirava por isso. Os dois caças de dimensões reduzidas que acabavam de aparecer nas proximidades

de Pigell poderiam pertencer aos lemurenses, aos halutenses ou a qualquer outro povo astronauta. Sem dúvida não éramos a nave Crest, que eles procuravam, e por isso gozávamos uma relativa segurança.

Comuniquei isto a Redhorse. O cheiene limitou-se a fazer “oh” e franzir a testa. Em seguida cuidou das câmaras

inteiramente automatizadas. A tele análise estava sendo iniciada. Mesmo no espaço livre, pudemos apurar quase todos os dados, embora não obtivéssemos amostras do ar ou microculturas, nem conhecêssemos as temperaturas exatas. Era obrigado a mergulhar na atmosfera, quer quisesse, quer não.

Page 156: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

156

Kasom já estava mudando de direção. Os contatos radiofônicos tinham sido interrompidos. Não podíamos arriscar-nos a deixar que alguém captasse nossas mensagens. Não dominávamos a língua dos halutenses, e não seria recomendável usar o tefrodense usual. Nenhum lemurense se teria lembrado de dirigir-se a este planeta, que fora abandonado há muito tempo. Por isso o melhor que tínhamos que fazer era ficar em silêncio. Os seres que estavam lá embaixo podiam pensar que fôssemos colonos vindos de um sistema vizinho, que queriam verificar até onde chegara a ofensiva halutense.

Fiz avançar o manche de direção. Os jatos-propulsores da popa giraram para baixo, obrigando o aparelho a entrar em mergulho.

Mexi em outro controle, que colocou o reator na potência máxima, enquanto instalava o campo energético que nos defendia do impacto das moléculas de ar.

Segui em direção a uma cadeia de montanhas, que se erguia em meio à floresta espessa, mais ou menos na altura de quarenta graus de latitude norte.

— São as montanhas Kipmann — informou Redhorse. — Já as encontramos com o mesmo formato. Já estive aqui antes. Os três vulcões continuam no mesmo lugar. Alô, senhor...!

Redhorse prendeu a respiração. Ouviu-se um terrível estrondo, vindo do lado de fora. Uma nuvem incandescente branca surgiu na frente do campo defensivo, nuvem esta que ia se condensando à medida que penetrávamos mais profundamente na atmosfera.

Só interrompi o mergulho quando nos encontrávamos a cem quilômetros de altura. Usei toda a potência dos jatos da proa. Quem nos visse de baixo deveria ter a impressão de que éramos um meteoro incandescente.

A propulsão para a frente já fora desligada. Esperei calmamente que o atrito do ar neutralizasse a velocidade com que tínhamos penetrado na atmosfera e que a incandescência branca diminuísse. Quando desapareceu de vez, estávamos desenvolvendo somente sete vezes a velocidade do som, a vinte e cinco quilômetros de altura sobre a paisagem fumegante.

Ouvi um ruído parecido com um assobio. Era Redhorse, que finalmente resolvera soltar o ar dos pulmões.

Kasom desaparecera atrás da curvatura do planeta. Segui durante cinco minutos na direção oeste, para depois tomar a rota sul. Sobrevoei algumas formações terrestres típicas e fiz subir o caça de novo.

— Os resultados são exatos! — disse Redhorse sem a menor necessidade. — Existem algumas alterações insignificantes, mas acho que estas não importam. A análise mostra o verde. A interpretação foi concluída.

— Está bem. Seguirei para o norte. — Não venha me dizer que pretende sobrevoar as montanhas polares — disse o

major com uma estranha calma. — Que acha? — A fortaleza espacial fica embaixo destas montanhas, senhor. — Pois é justamente isso. Precisamos de ótimas fotografias. Atenção! Vou descer de

novo. O mosquito caiu por cima da asa esquerda. Já estávamos novamente a cento e

cinqüenta quilômetros de altura. Já se distinguia a calota polar. Redhorse voltou a falar. — Se meu antepassado, um homem que há muito caiu no esquecimento, que durante

as guerras indígenas costumava ser chamado o grande Racha-Crânios, estivesse aqui, a esta hora invocaria Manitu.

— E quem é que o senhor vai invocar? — Um arcônida maluco chamado Atlan.

Page 157: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

157

— Perdôo sua falta de respeito, Cavalo Vermelho. Ainda vai demorar muito para ligar as câmaras eletrônicas?

Redhorse não disse mais nada. O caça uivou enquanto corria velozmente em direção às montanhas do pólo norte.

Sobrevoamos um grupo de colinas baixas, que constava de nossos mapas com o nome de Serra do Norte. Ficava quinhentos e noventa e seis quilômetros ao sul do pólo, na longitude zero.

Dali a instantes passamos ruidosamente sobre a cadeia de montanhas do pólo norte. Fiz subir abruptamente o caça.

No mesmo instante o sistema de propulsão para a frente voltou a ser ligado. Desta vez o sistema de neutralização de pressão pregou-nos uma peça.

Entrou em funcionamento com cerca de um décimo milésimo de segundo de atraso, o que era o suficiente para que sentíssemos parte do violento impacto produzido pela aceleração.

Uma força tremenda comprimiu-me contra a poltrona. Mas antes que tivesse tempo para desmaiar, as energias da inércia foram neutralizadas.

Quando voltei a enxergar claramente, já nos encontrávamos em pleno espaço. Don Redhorse tinha um estranho senso de humor. Chamou-me com a voz rouca. — Caso ainda esteja vivo, o senhor deve abrir a válvula-mestra do sistema de

oxigênio, que se fechou por causa da pressão. É bom que saiba que estou quase morrendo sufocado.

Bati imediatamente na chave de emergência. Redhorse começou a respirar ruidosamente.

— Excelente — disse em meio à tosse. — O senhor é um gênio. A propósito. Acabo de lembrar-me de que seu especialista siganês se encontra a bordo. Por acaso o viu?

Soltei as pragas mais horríveis que ouvira durante minha peregrinação de dez mil anos pelo planeta Terra. As criações da lingüística normanda eram muito vigorosas, as orientais eram um pouco mais elegantes, mas nem por isso menos expressivas.

— Lemy — gritei, desesperado. — Onde se meteu, Lemy? Responda. Especialista Danger, general...!

O sistema de intercomunicação de bordo ficou em silêncio. — Será que resolveu saltar? — conjeturou o cheiene. — Lemy...! —voltei a gritar. Como podia ter esquecido a pequena criatura? — Pronto, senhor — piou de repente uma voz fina. — Estava longe do

intercomunicador. O senhor não se sente bem? — Vá para o inferno — esbravejei, aliviado. — Ora, senhor! Eu...! — Onde estava? — interrompi. — Está tudo bem com o senhor? — Estou bem, sim senhor. Estou deitado em cima do visor do piso, junto ao fecho do

canhão conversor. Acho que as telefotografias que estou tirando de pontos importantes da superfície lhe interessarão bastante. O senhor viu as antenas goniométricas camufladas em cima do cume em forma de bacia da montanha polar mais alta?

— Não. Cuidei para que não nos fincássemos no chão. — Naturalmente. Queira desculpar, senhor. Fotografei as instalações. Vamos voltar

para lá? Redhorse deu uma risada. Lancei-lhe um olhar zangado pelo espelho do piloto e dei

início a uma manobra linear que nos levaria diretamente para a Crest. Os dados de que o kalup precisava para isso também tinham sido previamente programados.

Page 158: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

158

Quando retornamos ao espaço einsteiniano, o corpo esférico da Crest brilhava nas telas de eco. Melbar Kasom chegara antes de nós. Estava sendo recolhido por um raio de tração de pequena potência.

Tivemos de esperar dez minutos, até que nossa velocidade se adaptasse à da Crest. Depois disso também fomos atingidos pelo feixe energético, que nos trouxe cuidadosamente para dentro da eclusa em forma de tubo.

Uma vez feita a igualização da pressão, fui o último a sair da pequena eclusa de ar do caça. Redhorse estava falando com os homens encarregados da manutenção dos caças-mosquito.

— ...o tipo mais maluco que já cruzou meu caminho. Entrou com tamanha força na atmosfera que meu traseiro esquentou. Só posso dar um conselho. Procurem nunca via...!

Quando me viu, calou-se — e sorriu. Era a única coisa que podia fazer. — Caso precise novamente de mim, estarei às suas ordens. Assinado, Don Redhorse,

major da Frota Solar. Redhorse fez continência e dirigiu-se ao veículo pressurizado. — É uma impertinência, uma impertinência — gritou Lemy Danger. — Não me deixe nervoso — pedi com um suspiro. — O senhor é outro que não levo

nunca mais. A propósito. Onde está sua câmara? Lemy enfiou a mão no bolso e tirou um objeto que tinha mais ou menos metade do

tamanho de um caroço de cereja. — É uma câmara muito eficiente. Infelizmente saiu grande demais — disse como

quem pede desculpas. — Grande demais. Ah, sim. Kasom moveu a mão direita, e no mesmo instante o especialista Danger desapareceu

juntamente com a câmara e o traje espacial. Só se ouvia um chiado confuso, saído da palma da mão de Melbar.

— O que pretende fazer? — perguntei, cansado. — Vou colocá-lo na frigideira. Daqui a uma hora podemos ir para a mesa. Será que até

lá seu relatório ficará pronto, senhor? Kasom foi embora, deixando-me a sós com vinte terranos barulhentos. Rhodan, que

estava de pé no vão da porta blindada interna, divertiu-se à minha custa. Atrás de mim os técnicos estavam retirando das câmaras as fitas óticas com cerca de vinte mil metros de material fotográfico. Não era necessário fazer a revelação. Podia-se fazer a projeção imediata das fitas.

— Traga uma cadeira para o coitado — ordenou Perry. — Não seja cruel, capitão. O oficial de serviço disse que lamentava. Não havia nenhuma cadeira por perto. Aliás,

era um tanto anacrônico falar em cadeiras numa nave ultramoderna como a Crest. Também me retirei. Para aquele dia já tivera que chegava. Os terranos eram uns tipos

travessos.

Page 159: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

159

7 As primeiras duas fases do plano tinham dado certo. Tínhamos chegado ao sistema de

Vega sãos e salvos e a missão de reconhecimento fora bem-sucedida. Fizemos a interpretação dos filmes e tiramos nossas conclusões. Pigell não mudara.

Continuava sendo um mundo selvático fumegante, com uma temperatura média de 68 graus centígrados positivos. A umidade relativa do ar era de 92 a 98 por cento e a gravidade chegava a 1,22 gravos. O planeta levava 42,6 horas para completar um movimento de rotação em torno do próprio eixo, a distância que o separava do sol era de 498 milhões de quilômetros e o diâmetro no equador era de 13.897 quilômetros.

Sob este aspecto o sexto mundo de Vega não tinha nada de misterioso. Tinha sido cartografado, mas nunca fora colonizado.

Havia cerca de quatrocentas ilhas de diversos tamanhos, que ficavam no meio dos enormes oceanos pantanosos. Mesmo no tempo real Pigell era conhecido por causa de suas fortes tormentas e trombas-d’água. Vinham de surpresa, causavam devastações na paisagem e às vezes chegavam a romper a cobertura de nuvens que envolvia o planeta, fazendo com que um raio de sol atingisse diretamente a superfície.

Nem os lemurenses, nem os terranos costumavam transformar os mundos em que reinavam condições tão extremas em planetas coloniais. Quando muito serviam de campo de caça a turistas ricos, que queriam passar por uma aventura fora do comum. Certas pessoas divertiam-se abatendo os sáurios primitivos com armas energéticas. Depois disso faziam muito espalhafato por causa do problema do transporte e do respectivo custo, porque os caçadores faziam questão de levar seus troféus para casa.

Não estávamos interessados em caçar as formas de vida primitivas de Pigell com armas energéticas e trajes voadores. Nossa caça estava escondida embaixo das massas rochosas das montanhas que cobriam o pólo norte.

As fotografias tiradas por Lemy eram excelentes. Pedi desculpas pelo que dissera a ele.

As antenas que se distinguiam no cume montanhoso em forma de antena não eram equipamentos goniométricos. Tratava-se de rastreadores de energia ultraluz de grande alcance. A fortaleza certamente ficava no mesmo lugar em que estas antenas saíam da rocha. As usinas geradoras e os canhões nunca ficavam muito longe dos sistemas rastreadores.

Nossos geofísicos, cartógrafos e matelógicos trabalharam quatorze horas para criar uma verdadeira obra-prima. Já dispúnhamos de mapas em alto relevo da área-destino, mapas estes que mostravam as instalações subterrâneas com uma precisão de noventa e sete por cento.

Os programadores afastaram o Major Cero Wiffert por algumas horas do centro de artilharia do ultracouraçado.

A mira automática foi “dopada”. Recebeu complicados comandos adicionais, aos quais nossos técnicos positrônicos deram o nome de medidores comparativos optatrônicos.

Isso significava que a mira automática só reagiria diante da área de terras cuja imagem fora introduzida em sua memória, com base nas fotografias e nos mapas. Nossos matemáticos também não ficaram parados. Fixaram o tempo de início das operações de seu sistema defensivo com um fator de segurança igual a dez. Diante disso chegaram à conclusão de que, caso aparecesse de repente nas proximidades de Pigell, a Crest teria de abrir fogo dentro de 1,81245 segundos. Do contrário seria derrubada.

Page 160: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

160

Os matemáticos partiam do pressuposto de que a fortaleza estava preparada para abrir fogo a qualquer momento, e tinham bons motivos para isso. Era bem verdade que usava a energia da estrela gigante Vega. Para nós isso representava um pequeno ganho de tempo, pois antes de atirar a fortaleza teria de enviar seus raios de sucção ao sol, a fim de garantir o suprimento de energia.

Mas isso não trazia tanta vantagem como poderia parecer. Os raios de sucção de energia dos tefrodenses desenvolviam velocidade muito

superior à da luz. Levariam apenas uma fração de segundo para atingir a estrela. O ganho de tempo resultaria antes do ajuste das armas e da conversão das energias

solares. Diante disso nossos cientistas tinham adotado um fator-tempo de 1,81245 segundos.

Quase não havia palavras capazes de exprimir os problemas cosmonáuticos que eles nos criavam com isso. Há horas os oficiais da nave e os engenheiros especializados em superenergia suavam.

Nem mesmo homens como Cart Rudo e Melbar Kasom eram capazes de mover os respectivos controles com a necessária rapidez. Só mesmo o dispositivo automático poderia fazer isto, mas este não tinha sido preparado para funcionar em condições extremas.

Nossa manobra linear teria de terminar exatamente ao leste do pólo norte. A velocidade de entrada não poderia ser superior a duzentos e cinqüenta quilômetros por segundo, pois do contrário as miras não funcionariam com a precisão exigida.

A altura da qual teria de ser desfechado o ataque era de cento e vinte quilômetros. Se possível, os campos defensivos não deveriam tocar as camadas superiores da atmosfera, para evitar miragens e turbulências perturbadoras. Estas poderiam prejudicar as medições comparativas optatrônicas.

Cada canhão cobriria determinado setor. Os canhões conversores só poderiam lançar cargas nucleares de pequena potência, pois do contrário o planeta arrebentaria.

As exigências dos diversos setores científicos levaram os homens do setor de comando à beira do desespero. Mas se tudo corresse de acordo com os planos, a guarnição da fortaleza não teria a menor chance. Um couraçado gigantesco como a Crest praticamente não corria nenhum perigo, se aparecesse devidamente preparado junto ao alvo. Criaria um verdadeiro inferno embaixo dele.

Quando faltavam vinte e quatro horas para aparecermos junto ao sistema de Vega, estava tudo preparado. A Crest III acelerou.

Achamos que tínhamos feito tudo que estava ao nosso alcance. Os calendários registravam o dia 19 de junho de 2.404 do tempo real.

O dia 19 de junho era um feriado nacional solar. Neste dia, há 433 anos, Perry Rhodan partira em direção à Lua, com mais três astronautas. O único tripulante da velha Stardust que ainda continuava vivo, além de Perry Rhodan, era Reginald Bell. Naquele momento certamente estaria pensando nele.

Prestei atenção ao rugido dos potentes jatos-propulsores. A passagem para o semi-espaço devia ser feita em velocidade reduzida. A velocidade

não devia ser superior àquela com que tínhamos de sair do espaço linear nas proximidades de Pigell.

Isso exigia um enorme dispêndio de energia do campo de compensação kalupiano. Quanto menor a velocidade no início do vôo linear, maior devia ser a potência do campo energético.

Os jatos-propulsores funcionavam à potência mínima, mas apesar disso levamos apenas alguns segundos para atingir a velocidade prescrita de duzentos e cinqüenta quilômetros por segundo. Estava na hora!

Page 161: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

161

Perry examinou os controles dos dispositivos automáticos acoplados. Praticamente não tínhamos nada a fazer, além de deixar tudo por conta dos aparelhos e controlar o medo.

— Chefe chamando todos os tripulantes. Manobra será iniciada dentro de nove segundos. Façam votos de que tudo dê certo. Quatro segundos... três... dois... um... zero...!

Ouvimos o bramido de doze usinas geradoras gigantes instaladas bem embaixo do lugar em que estávamos. Estas usinas acabavam de fornecer a energia de que precisava o kalup I.

De repente as telas passaram a mostrar a ondulação escura da zona de libração. Mas Vega continuava a aparecer na tela que mostrava o ponto de destino. Havia um deslocamento lateral em relação ao fio de marcação, já que este apontava exatamente para o planeta Pigell, que ainda não víamos a olho nu.

Mais uma vez agarrei firmemente as braçadeiras da poltrona. Desta vez os homens não usavam trajes espaciais. Traziam sobre o corpo os novos uniformes de batalha terranos, que não possuíam capacete pressurizado nem sistema de respiração.

Em compensação estavam equipados com mochilas energéticas de fabricação siganesa. Todos os homens que se encontravam a bordo podiam voar, e eram capazes de criar um forte campo defensivo individual em torno de seu corpo.

Os robôs de combate cuidadosamente programados estavam enfileirados nas gigantescas câmaras das eclusas. O ar já fora retirado destes recintos, e as portas externas tinham sido recolhidas para dentro do casco abaulado.

Estava tudo preparado para uma ação-relâmpago. Havia quinhentos caças espaciais do tipo jato-mosquito prontos para decolar junto aos tubos-eclusa, que também estavam abertos. A única coisa que os pilotos tinham de fazer era apertar um botão.

— Rota exata, correção concluída — disse o engenheiro-chefe pelo intercomunicador. Ao contrário do sistema antiquado da transição, o vôo linear permitia que durante ele os homens se comunicassem. Não eram desmaterializados, e não sofriam as temíveis distorções em seu organismo.

Perry esperou alguns segundos antes de pegar o microfone. — Chefe chamando todos os tripulantes. A viagem ultra-luz foi calculada de tal forma

que deveremos sair perto do pólo norte dentro de aproximadamente quinze minutos. Quanto mais calmos ficarmos, melhor poderemos investigar as coisas. Lembrem-se em todas as fases dos acontecimentos que a destruição da fortaleza espacial não é o mais importante. Precisamos atacá-la e pô-la fora de ação, pois só assim nossa missão propriamente dita poderá ser bem-sucedida. Repito...!

Perry olhou em volta. As luzes dos instrumentos produziam um brilho esverdeado em seu rosto. Os maiores combatentes da Crest estavam de pé atrás de nós. Tratava-se do halutense Icho Tolot e do ertrusiano adaptado ao ambiente chamado Melbar Kasom. Ambos usavam seus trajes especiais.

Rhodan prosseguiu. — Uma vez destruída a fortaleza espacial, voaremos despreocupadamente, para dar a

entender que não acreditamos que possa haver mais algum perigo. A estação do tempo, que é o que mais nos interessa, fica quinhentos e noventa e seis quilômetros ao sul da calota polar. Iniciaremos imediatamente as operações de busca para localizá-la. A arma característica de um transmissor temporal consiste num deslocamento do plano de referência. É bastante provável que, quando a Crest se aproximar da estação do tempo, será atacada com um campo zero absoluto, que a transferirá para o futuro relativista. Outro salto em direção ao passado será estruturalmente impossível. Frasbur revelou durante o interrogatório secreto a que foi submetido que os pequenos transmissores de tempo intermediários de todos os tipos têm alguma ligação com a data de sua construção. Só

Page 162: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

162

podem provocar um deslocamento para trás depois que tiverem transferido um objeto para o futuro relativista. Quanto a isso não existe a menor dúvida. Se houvesse o perigo de sermos transferidos para um passado ainda mais longínquo, eu daria ordem para suspender a operação.

Rhodan ficou calado e concentrou-se. Tinha certa dificuldade em dar as explicações, pois aguardava ansiosamente os acontecimentos. Finalmente fez um grande esforço e prosseguiu.

— O motivo do trabalho que tivemos é o desejo de escapar à época em que nos encontramos e, portanto, aos lemurenses que nos procuram com tamanha obstinação. Uma vez posta fora de ação a fortaleza com a qual Frasbur quer destruir-nos, devemos fazer com que o transmissor do tempo nos ataque. Frasbur revelou que o posto instalado no sexto planeta não possui armas pesadas, que pudessem representar um perigo para a Crest. A defesa fica por conta da fortaleza. Seria uma tolice se os seres que construíram o transmissor do tempo tivessem equipado este com dispendiosas armas espaciais. Nem por isso vou afirmar que podemos dar um simples passeio para as salas camufladas em que ficam as instalações. Certamente há um comando de robôs. Além disso não devemos esquecer os excelentes campos defensivos energéticos dos tefrodenses. Não percam o controle dos nervos e nunca se precipitem. Se existe alguém neste universo que não tem pressa, somos nós. Fim da transmissão.

Perry desligou e crispou os lábios quando ouviu as risadas de pelo menos três mil homens.

— Nossos nervos são como fibras artificiais — disse o terrano em voz baixa. — Às vezes tenho a impressão de que para estes homens a operação que vamos realizar não passa de uma aventura que mexe com os nervos.

— Isso é tipicamente terrano. Você se julga melhor que os outros? Olá, especialista Danger? Em que posso servi-lo?

O anão voou para cima da braçadeira de minha poltrona. Estava usando seu equipamento de batalha “superpesado”, que incluía bombas atômicas com um sistema independente de foguetes. Ai de quem não desse o devido valor ao siganês!

— Se não tiver nenhuma objeção, prefiro ficar perto do senhor. Talvez possa prestar-lhe uma ajuda decisiva a partir de um bom esconderijo.

— Isso mesmo, amigo. Se bem que pretendo teleportar com Tako Kakuta. — Será que não poderia enfiar-me no bolso durante a teleportação? Ou será que meu

peso representa uma carga excessiva para Mr. Kakuta? Olhei em volta. Tako, que era o terceiro teleportador a bordo da nave, deu uma

estrondosa gargalhada. — Acho que não, Lemy — concluí. — Gucky e Ras Tschubai encarregar-se-ão do

transporte de Tolot e Kasom. O senhor há de reconhecer que cada um deles pesa muito mais que o senhor e eu juntos. Tudo bem. Pode ir comigo.

Segurei-o na altura dos quadris, empurrei para o lado uma granada de mão atômica que trazia presa ao cinto e enfiei o siganês no bolso esquerdo. As únicas partes de seu corpo que apareciam eram a cabeça e os ombros, mas ele parecia sentir-se muito bem.

— Não o inale ao respirar, senhor — advertiu Kasom, que estava de pé ao lado de Ras Tschubai, um teleportador de pele escura. Tolot colocara o rato-castor Gucky em um dos quatro braços. O baixinho deu uma risadinha e cochichou alguma coisa ao ouvido do gigante. Tolot soltou uma estrondosa gargalhada.

— Silêncio a bordo — gritou Cart Rudo com a voz potente. — Isto também vale para o oficial de patente especial Gucky.

— Seu bicho do toucinho — gritou Gucky e exibiu o dente roedor. — Mr. Gucky, por favor. Ora veja! O que pensou neste instante?

Page 163: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

163

Gucky esperneou para sair de cima do braço de Tolot. O antigo habitante do planeta Peregrino desobedecera a uma proibição, investigando o consciente de Rudo, e descobrira um pensamento que não era nada agradável para ele.

Tolot acalmou a pequena criatura. — Ele me ofendeu em pensamento — queixou-se Gucky. — Você não vai morrer por isso. Fique calmo. Todos ficaram em silêncio. Lemy coçou

meu queixo e piscou para mim. — O que será que o coronel andou pensando, senhor? Dei de ombros e vi que do

tempo previsto para o vôo ultraluz já tinham passado treze minutos. Dentro de dois minutos sairíamos — tomara! — perto de Pigell, e voltaríamos a ficar visíveis.

Lá embaixo os rastreadores entraram em funcionamento. Milhares de relês saltaram ao mesmo tempo. Tínhamos certeza de que os tefrodenses esperavam que um dia aparecêssemos lá. Sem dúvida estavam preparados.

O misterioso desaparecimento de Frasbur certamente dera o que pensar aos senhores da galáxia. Sabiam que possuíamos forças auxiliares com dons supersensoriais, e por isso certamente chegariam à conclusão certa.

A única coisa que poderia salvar-nos seria uma ação rápida e precisa. Mais nada.

* * *

Quando a Crest III saiu da zona de libração situada entre a quarta e a quinta dimensão e retornou ao universo normal, só pensei numa coisa: os dois segundos, ou pouco menos, de que ainda dispúnhamos.

As reflexões sucederam-se com uma rapidez incrível em meu cérebro. Pigell, o sexto planeta de Vega, estava lá embaixo. O vôo de aproximação, tão perigoso

e complicado, fora bem-sucedido. Mas nem tudo dera certo. Éramos muito lentos e tínhamos saído um pouco mais baixo

e mais ao leste do que pretendíamos. As influências recíprocas entre o campo kalupiano e as energias que atuavam sobre ele tinham produzido ligeiras instabilidades, do tipo que não pode ser evitado nas manobras lineares.

Num vôo normal pelo espaço livre uma margem de erro de alguns quilômetros não tinha a menor importância. Mas em Pigell um décimo de segundo e um metro de altura a mais ou a menos contava.

Os campos defensivos hiperenergéticos fizeram brilhar os gases rarefeitos das camadas superiores da atmosfera. Estávamos a pouco menos de cem quilômetros da superfície do planeta. A velocidade de entrada era de apenas cento e oitenta km/seg, em vez dos duzentos e cinqüenta quilômetros por segundo previstos em nosso plano.

As usinas geradoras do ultracouraçado trabalhavam com o máximo de sua potência. As montanhas do pólo norte ainda ficavam atrás da linha do horizonte.

Registrei tudo isto numa fração de segundo. Os técnicos e os astronautas tinham realizado uma verdadeira obra-prima — mas nem assim chegáramos com a necessária precisão ao ponto previsto.

Cart Rudo levou cerca de um décimo de segundo para reconhecer a situação e interromper a programação por um instante. As reações do epsalense eram de uma rapidez incrível.

Usou um comando manual para suspender parte da programação. Os jatopropulsores rugiram. A Crest III acelerou à razão de duzentos quilômetros por segundo.

O brilho fosco que aparecia nas telas transformou-se de repente numa fogueira branca ofuscante, que não poderia deixar de interferir nas medições optatrônicas comparativas de nossas miras automáticas.

Page 164: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

164

As turbulências da atmosfera, que queríamos evitar de qualquer maneira, estavam ali. Atrás de nós os gases incandescentes penetravam ruidosamente no vácuo que se formava à nossa passagem, produzindo um furacão cujas forças tremendas atingiam a superfície do planeta, causando devastadoras ondas de pressão.

Levamos quase dois segundos para atingir a posição de tiro. O comandante voltou a mexer nos comandos. O rugido dos propulsores parou.

A Crest prosseguiu à mesma velocidade, pois na altura em que nos encontrávamos a resistência causada pelo atrito do ar era muito pequena para deter a massa enorme do gigante esférico num tempo tão reduzido.

A única coisa que poderia salvar-nos seria a habilidade humana, ou a alta qualidade das nossas miras positrônicas.

Quando o dispositivo automático finalmente entrou em ação, o prazo de 1,81245 segundos que tínhamos previsto para abrir fogo já fora excedido em um segundo. Apesar dos redemoinhos do ar, que perturbavam a visão, a mira automática identificara o alvo.

A fortaleza polar reagiu antes que a Crest tivesse tempo de disparar a primeira bateria de costado. Um raio transportador de energia ultraluminoso de cerca de cinco quilômetros de diâmetro saiu do chão e no mesmo instante atingiu Vega.

As energias da estrela gigante já estavam sendo recolhidas pelos conversores da fortaleza, quando mal estávamos dando início à aceleração em nível de emergência. Era uma questão de um centésimo de segundo.

Ouvi Rhodan gritar alguma coisa. Pediu a Wiffert que abrisse fogo com os dispositivos manuais. Um brilho avermelhado surgiu em cima das montanhas polares, que já podiam ser vistas. A fortaleza estava levantando seu campo defensivo. Os canhões certamente estavam girando naquele mesmo instante.

O giro dos canhões era a última esperança que nos restava. Os transportes de energia de todos os tipos eram realizados à velocidade da luz, mas a massa de um canhão energético pesado não podia ser movimentada com a mesma velocidade. Era a chance que nos restava, depois que tínhamos ultrapassado o tempo previsto.

Dali em diante os acontecimentos se desenrolaram tão depressa que nossa mente não teve tempo de absorvê-los todos ao mesmo tempo.

Finalmente os canhões da Crest entraram em ação. Bramiram no momento em que o raio transportador de energia já se formara, e a cintilância cada vez mais intensa que se formara em cima das montanhas mostrava que o campo defensivo da fortaleza começava a estabilizar-se.

Ainda nos encontrávamos a cerca de quatrocentos quilômetros do alvo. Como a altura era muito reduzida, o ângulo de tiro tornou-se muito aberto. Por isso as trilhas energéticas de nossos canhões atingiram a superfície antes do alvo, formando desfiladeiros de lava de vários quilômetros.

O barulho produzido pelos diversos canhões era quase insuportável. A fogueira atômica produziu um brilho tão forte nos campos defensivos tornados permeáveis do lado de dentro que nem se via mais o alvo. Só mesmo os rastreadores de relevo forneciam um quadro nítido. Este quadro mostrava a destruição tremenda causada apesar do ângulo de impacto aberto, ou talvez justamente por causa dele.

As montanhas elevadas foram recortadas nos flancos e perfuradas pela força dos canhões térmicos. As trilhas energéticas de alta temperatura penetravam alguns quilômetros no material, transferindo sua energia para ele.

Dali resultaram explosões semelhantes às de uma explosão nuclear, que despedaçavam as cavernas naturais e artificiais.

Page 165: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

165

O fenômeno não demorou mais de um segundo. Depois disso estávamos quase verticalmente em cima do alvo, já que a velocidade subira para cerca de quinhentos e noventa km/seg, em virtude do curto período de aceleração.

Todas as armas da Crest III estavam atingindo a área de operações. A mira automática já se adaptara ao alvo e fazia disparar os canhões em seqüência rápida.

Rudo voltou a mexer nos controles. Neutralizou a velocidade da nave com um empuxo de frenagem de emergência de meio segundo de duração. Desta forma os controles de artilharia automáticos podiam manter as salvas por mais tempo.

As vibrações e sacudidelas que a nave sofreu arrastaram-na em sentido contrário ao dos disparos. A esta hora ninguém sabia mais em que lugar nossos tiros atingiam o alvo e qual era a profundidade de sua penetração no solo.

Imaginamos que o local do impacto devia oferecer um quadro incrível. A fortaleza não possuía nenhuma guarnição formada por seres vivos. Era inteiramente automatizada. O fato representava um grande consolo para Rhodan, que tinha uma concepção muito humana nestas coisas. Por isso deu permissão para que se abrisse fogo com os canhões conversores.

Mais uma vez fomos comprimidos de encontro aos cintos de segurança. Nossos campos defensivos pareciam estar em chamas. Vinte bombas de fusão irradiadas a velocidade ultra-luz, cada uma com um potencial energético equivalente a trinta megatons de TNT, acabavam de descer numa área de oitenta quilômetros de diâmetro. Tinham sido reguladas para explodir ao contato com o solo. Detonaram em meio à matéria que já entrara em ebulição, abrindo crateras profundas.

A superfície sólida do planeta ficou abalada, arrebentou sob os efeitos das ondas de pressão causadas pelas explosões e foi arremessada em direção ao espaço.

A fortaleza deixara de existir. O raio de transporte de energia desaparecera de repente. No lugar em que instantes antes saíra entre duas montanhas terríveis forças atômicas agitavam-se com uma incrível violência.

A cratera aberta pelos canhões da Crest tinha cerca de noventa quilômetros de diâmetro. Era o maior vulcão que já se formara no mundo primitivo chamado Pigell.

As vinte cargas explosivas, que segundo os padrões usados por nossos oficiais de artilharia eram muito pequenas, já que geralmente costumava-se falar em termos de gigatons, atomizaram toda a região polar norte do planeta.

Um gigantesco cogumelo atômico subiu ao céu. Afastamo-nos acelerando ao máximo, para abandonar a atmosfera em cujo interior rugiam furacões escaldantes.

Os campos defensivos do ultracouraçado repeliram as rajadas de vento e as massas rochosas que chegaram a nós, evitando que o casco da nave fosse danificado.

Levamos apenas alguns segundos para voltar às profundezas do espaço. Uma vez lá, desaceleramos. A Crest entrou numa órbita diferente, na qual podíamos observar o que se passava lá embaixo, sem correr qualquer perigo.

— O bombardeio foi forte; forte demais — exclamou Rhodan, o que me surpreendeu. — Os tremores tectônicos se propagarão com tamanha força que colocarão em perigo a estação do tempo, que fica a apenas seiscentos quilômetros do campo de batalha. Sete bombas conversoras de trinta megatons cada teriam sido suficientes. Até mesmo o fogo concentrado dos canhões energéticos e dos desintegradores teria chegado. Quem fez os cálculos?

— Incluímos um coeficiente de segurança igual a dez — respondeu o centro de matemática. — Abrimos fogo no último instante. Se tivéssemos demorado mais três quartos de segundo, teríamos sido transformados em sucata.

— Não acredito.

Page 166: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

166

— É isso mesmo, senhor. O campo defensivo já tinha sido instalado, e os canhões estavam girando para a posição de disparo. A fortaleza tinha de ser destruída completamente, pois foi o único meio de evitar que algumas posições de artilharia exteriores abrissem fogo. A probabilidade de que a base do tempo não será destruída é de noventa e oito por cento. Entre a região polar e a Serra do Norte, embaixo da qual fica a estação, existe um oceano de grande profundidade e mais duas serras, além de áreas extensas cobertas de florestas. As formações naturais do solo serão capazes de deter as ondas de pressão. Os deslocamentos do solo só deverão ocorrer até a distância de trezentos e cinqüenta quilômetros do local de impacto dos tiros. A região próxima à base será sacudida por um terremoto, mas este não poderá pôr fora de ação os transmissores do tempo, muito bem montados e solidamente fixados no chão.

— Como pode afirmar que foram solidamente montados e fixados ao chão? O Dr. Hong Kao nunca perdia a calma. Não prestei atenção às suas explanações

prolongadas, repletas de algarismos. Naquela hora Perry já se recriminava por ter usado as superarmas da nave com tamanha violência. Fiquei preocupado e perguntei a mim mesmo para onde isso nos poderia levar. O chefe de um império estelar tão extenso não podia ceder a este tipo de emoção, senão logo deixaria de ser o chefe.

— A fortaleza não passava de uma estação robotizada — observei. — O que é isso, terrano? Desde quando fica de luto por causa de algumas máquinas fundidas?

Perry compreendeu que eu percebera o que se passava dentro dele. Rudo olhava tão fixamente para seus controles manuais que até se poderia ter a impressão de que era a primeira vez que os via. Rhodan interrompeu-se no meio da palavra, abriu a boca para dar uma resposta áspera, mas preferiu ficar calado.

Mas não pôde deixar de fazer uma observação. — Uma nave do tamanho da Crest deve ser usada antes de mais nada para fins

demonstrativos, não como arma. Suspirei. — De acordo, desde que uma demonstração possa resolver o problema. Mas não

acredito que o cérebro robotizado da fortaleza se deixaria impressionar com isso. Perry fez um gesto de pouco-caso. Disse algumas palavras que mostraram o que

realmente se passava dentro dele. Naturalmente não se importava nem um pouco com as instalações que acabavam de ser destruídas. Já pensara mais longe.

— Quem nos garante que lá embaixo não havia inteligências nativas, que se concentraram justamente na região polar, onde as temperaturas eram mais suportáveis?

Demorei algum tempo para encontrar uma resposta a esta objeção. Será que eu deveria dizer que a existência da humanidade, que afinal dependia do regresso de Rhodan ao tempo real, era mais importante que a eventual destruição de algumas criaturas inocentes? Seria um argumento muito duro e lógico e pouco sentimental. Procurei um subterfúgio.

— Por enquanto Pigell não desenvolveu nenhuma forma de vida inteligente. Se tivesse, nós a teríamos encontrado no tempo real.

— É possível que aqui existissem seres inteligentes, que foram exterminados no passado, ou seja, neste exato momento, por uma medida tática — disse Perry em voz baixa.

Os relatos vindos dos diversos postos puseram fim à discussão, o que me deixou bastante satisfeito.

O pólo norte do sexto planeta de Vega ainda tinha o aspecto de um gigantesco vulcão. Mas as ondas de pressão já tinham terminado. O tele-rastreamento mostrou que as áreas situadas cerca de seiscentos quilômetros ao sul continuavam praticamente intactas.

Page 167: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

167

Não havia nenhum perigo de contaminação radioativa, pois neste ponto as bombas catalíticas terranas eram perfeitamente limpas. Era bem verdade que certos modelos produziam um máximo de radiações, mas estes nunca tinham sido usados por nós.

Demorou uma hora até que o enorme cogumelo atômico se desfizesse. Fora carregado pelas tormentas que desabaram sobre Pigell.

O centro de computação principal da nave chamou. Seguia sua programação. — Fase três entrando no estágio crítico. Fase três entrando no estágio crítico.

Recomenda-se encarecidamente o início das operações. Perry já se acalmara. Parecia ser um homem de duas almas. Ainda há pouco se

martirizara com a idéia de que poderia ter matado um grupo de nativos inteligentes. Mas agora, que o ataque à estação do tempo guarnecida por pelo menos quinze

tefrodenses era iminente, ele se transformou num homem implacável. As ordens dadas por Rhodan tiveram o efeito sugestivo que lhes era peculiar. Não

houve perguntas. A Crest III precipitou-se sobre o planeta e penetrou na atmosfera ao oeste da região polar devastada.

Mais uma vez os rastreadores instalados lá embaixo dariam o alarme. Um objeto voador do tamanho da nave-capitânia da frota terrana não passaria despercebido.

Page 168: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

168

8 Em toda minha longa vida nunca cheguei a maltratar outras inteligências ou até

animais. Nem física nem psiquicamente. Se alguma vez o fiz, isso aconteceu sem que eu soubesse, ou então por algum descuido.

Desta vez estava rindo! Rindo do ataque de loucura de um homem que se julgara superior a todo mundo.

Seu nome era Frasbur. Era um dos agentes do tempo dos senhores da galáxia. Depois de nosso ataque de artilharia à fortaleza desistira de representar e começara a

xingar nossos mutantes com palavras de baixo calão. Ainda estava furioso. Compreendera que fora elegantemente enganado, e que a espada com que queria

ferir-nos fora dirigida contra ele mesmo. Insultou também a mim, proferindo ameaças sem sentido e acabou fazendo várias ofertas tão esquisitas que não poderiam enganar.

Os médicos o tinham amarrado ao leito, para garantir sua própria segurança. Havia um assistente de prontidão com uma injeção de calmante. Rhodan não aparecera perto dele. Bastava que eu tivesse de suportar as grosserias de Frasbur.

Finalmente este parou. Respirava com dificuldade. Só então tive tempo de dizer algumas palavras.

— Nunca se deve subestimar o inimigo, Frasbur. Pelas leis terranas o senhor também é um prisioneiro de guerra, embora devesse ser processado pelos crimes que cometeu. Mas preferimos não fazer isto, pelo simples motivo de que nos encontramos no passado. Os seres que vêm prejudicando o senhor na verdade morreram há cinqüenta mil anos. Mas nem por isso o senhor deixa de cometer um crime ao raptar os elementos mais capazes dos lemurenses para multiplicá-los um sem-número de vezes com base nas matrizes feitas segundo seu modelo. Atacaremos sua estação do tempo, usando os conhecimentos que nos proporcionou em quantidade tão grande. Seja sensato, respondendo a certas perguntas que farei.

Frasbur pôs-se a praguejar. Não deixei que isso me perturbasse. Talvez ainda conseguiria que ele me fornecesse alguns dados interessantes.

— Vejo que não quer ser sensato. Como oficial bem treinado, com preparo científico e capaz de pensar logicamente, já deveria saber que os seres para quem trabalha já o cancelaram dos seus registros. Se carregasse um receptor de estímulos no cérebro, como fazem os duplos, a esta hora já estaria morto. Morto pela explosão do micro-aparelho.

Frasbur voltou a praguejar. Seu rosto cansado tremia. — Conquistaremos o transmissor de tempo intermediário e passaremos a usá-lo.

Quer ajudar-nos? Frasbur ficou com os olhos semicerrados e acalmou-se de repente. Tive a impressão

de que acabara de tocar em um dos seus pontos fracos. Devia estar pensando que nunca teríamos uma oportunidade de usar a aparelhagem em nosso benefício. Só queria que ele confirmasse que a transferência temporal de toda a nave era altamente provável, conforme imaginávamos. Se fosse assim, Frasbur voltaria a usar a mesma tática de antes, tentando atrair-nos para perto da estação. Só teria uma chance se conseguisse colocar-nos fora de combate por meio de uma súbita transferência no tempo. Qual seria sua reação?

Não aprendera nada. Os truques que usava para representar tinham-se esgotado. Não tinha outras variedades. Compreendi imediatamente quais eram suas intenções. Um homem que ainda há instantes se rebelara com todas as forças contra a prisão e se tornara tão insolente porque seus planos tinham falhado não se transforma num amigo de uma hora para outra.

Page 169: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

169

Frasbur também percebeu, mas não foi capaz de dar um ar de sinceridade às palavras amáveis que passou a proferir.

— Acha que eles me cancelaram dos seus registros? Pensa mesmo assim? — Ninguém melhor que o senhor para saber disso. Os chamados senhores da galáxia

são seres impiedosos. O senhor não representa mais nada para eles, ainda mais que com seu senso lógico certamente já foram capazes de imaginar que conseguimos enganá-lo com nossos mutantes. Portanto, é bom que fale. Se nos ajudar a manejar a estação do tempo, nós lhe garantiremos um regime de prisão menos rigoroso. O que espera ganhar continuando a bancar o teimoso? Com isso não se consegue as simpatias dos outros.

Frasbur bancou o indeciso. Pôs-se a refletir. Para nós a atitude que tomaria em seguida seria decisiva.

— Esperarei que ocupem a estação do tempo antes de tomar minha decisão. — Conhece os comandos temporais? — Conheço. Tive de fazer um grande esforço para não mostrar meus sentimentos. Frasbur estava

revelando muita coisa que nem imaginava. Não poderia imaginar que para nós era completamente indiferente que conhecesse os comandos ou não. Rhodan decidira que nunca realizaria experiências com o tempo. Só queríamos ser transferidos quinhentos anos para o futuro, deixando para trás os lemurenses.

Frasbur aguardava ansiosamente pela pergunta que seria feita em seguida. Já estava concebendo novos planos com os quais queria causar nossa desgraça.

— Como funciona o transmissor de tempo intermediário? — Não compreendi a pergunta. — Sua energia é suficiente para provocar um deslocamento desta nave no plano

temporal? A reação de Frasbur foi rápida demais. Além disso já tínhamos descoberto que a

estação era capaz de criar um campo zero absoluto fora de suas instalações técnicas. — Não se iluda, almirante — respondeu o agente do tempo. — Trata-se de uma

estação retransmissora, que só serve para transportar pequenos objetos, até o tamanho de um barco espacial. Além disso o corpo a ser transportado tem de ser introduzido na área de reação.

— Numa sala ou num pavilhão? — Naturalmente. O senhor pensava que não? Frasbur ficou atento à minha resposta. Fiz de conta que estava indeciso. — Mas o planeta Vario é capaz de transportar qualquer objeto...! — Aí as coisas são diferentes — interrompeu Frasbur, apressado. — O transmissor

gigante que os senhores chamam de Vario é uma superversão. O senhor há de compreender que não pode esperar coisa igual por aqui. Parta para o ataque, conquistem a base e em seguida me concedam um prazo de reflexão. Depois disso decidirei se passo para o lado dos senhores.

Senti-me triunfante no meu íntimo. Frasbur também, embora não tivesse tantos motivos para isso quanto eu.

— Vamos pensar nisso. Onde ficam as entradas da base? Fiz a pergunta como que por acaso, embora nosso problema estivesse justamente aí.

Os mutantes estavam exaustos, e não conseguiram descobrir como se fazia para entrar nas instalações.

Frasbur olhou-me com uma expressão irônica. — Está me testando? O senhor está cansado de saber disso. Fui bastante descuidado

para pensar nisso algumas vezes sem bloquear minha mente. — Como se faz para entrar lá?

Page 170: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

170

— Usando dois elevadores antigravitacionais, um muito grande, destinado ao transporte de material, e outro de tamanho normal, para passageiros. As entradas foram camufladas de forma a não se destacarem do ambiente.

Frasbur forneceu mais algumas informações muito úteis. Fez isso somente para reforçar nossa decisão de ataque, que em sua opinião deveria levar à destruição da Crest III. Já ouvira bastante e resolvi despedir-me.

Quando cheguei à sala de comando e comuniquei aos outros o resultado do interrogatório, o ultracouraçado encontrava-se cerca de quinhentos quilômetros ao sul da estação do tempo, na longitude zero. A única coisa que tínhamos de fazer para alcançar a base era voar na direção norte.

Algumas tormentas típicas desse inferno selvático fumegante agitavam a atmosfera de Pigell. O céu brilhava constantemente sob o efeito dos relâmpagos. Sua luz atingia as nuvens baixas, que despejavam chuvas torrenciais sobre a superfície do planeta.

Vários métodos foram usados na interpretação dos resultados do último interrogatório. Não havia dúvida de que a respeito das entradas da base temporal Frasbur dissera a verdade. Além disso sabíamos que não era necessário que se penetrasse na área de reação para sofrer uma transferência no tempo.

A quarta fase do plano estava para ser iniciada. Nosso tempo era mais escasso do que a maior parte dos tripulantes acreditava. Era possível que a energia atômica libertada junto ao pólo norte atraísse uma patrulha halutense. Não estávamos dispostos a conhecer mais de perto as armas deste povo. Tínhamos de encontrar um meio de desaparecer do tempo em que nos encontrávamos.

Os últimos detalhes começaram a ser calculados. Os comandos estavam de pé nas escotilhas das eclusas, prontos para saltar. A atmosfera de Pigell era respirável para os seres humanos. A única coisa que nos incomodava era a elevada umidade do ar, que juntamente com o calor produzia um clima de estufa quase insuportável.

Os medo-robôs dirigiam-se a um homem após o outro. Aplicaram os novos medicamentos estabilizadores de choque e circulação, que evitariam que a transferência no tempo nos fizesse perder os sentidos. Esperávamos atravessar o acontecimento sãos e salvos e, o que era mais importante, com as reações normais.

O medicamento foi aplicado a cerca de cinco mil homens. Voltamos a conferenciar e demos partida na nave.

Por enquanto tínhamos de fingir-nos de ignorantes, dando a impressão de que havíamos recebido algumas informações sobre a estação do tempo, mas que apesar delas ainda levaríamos algum tempo para descobri-la.

A destruição da fortaleza devia ter produzido nos tefrodenses os efeitos de um raio em pleno céu azul. Tínhamos dado uma demonstração do tremendo poder de fogo da Crest III.

Se o supergigante aparecesse voando em ziguezague por cima da área em que ficava a base, o comandante tefrodense só poderia ficar nervoso. Não sabia quais eram as informações de que dispúnhamos. Naturalmente queria evitar um ataque, e por isso seria forçado a tomar a iniciativa, usando a arma característica de sua estação. Era exatamente o que queríamos. A quarta fase do plano previa nosso afastamento do presente, no qual corríamos tanto perigo.

Page 171: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

171

9 Estávamos parados sobre a área de operações, com os rastreadores funcionando.

Embaixo da Serra do Norte, uma cadeia rochosa formada por elevações de apenas trezentos metros de altura, que naquele momento era bem visível, as antenas estavam girando. Sem dúvida fôramos identificados.

Bem ao norte continuava a lavrar o incêndio atômico. Sua luz vermelha rompia a penumbra. De vez em quando uma língua de fogo enorme subia ao céu. Pigell continuava a ser um mundo primitivo. Sem dúvida tínhamos criado um vulcão junto ao pólo. Nossos rastreadores não mostravam quase nada. Até mesmo os rastreadores de energia, que numa distância reduzida reagiam à energia liberada por uma simples bateria, só mostravam diagramas confusos, dos quais uma pessoa não familiarizada com o processo certamente não seria capaz de deduzir a presença de gigantescos conjuntos geradores. Os senhores da galáxia sabiam proteger seus segredos técnicos da vista dos desconhecidos. O transmissor do tempo só funcionava com energia solar. Mesmo que se tratasse de uma estação retransmissora de capacidade reduzida, a energia fornecida por um simples conjunto de reatores não seria suficiente. A modificação do eixo de referência no interior dos planos do tempo exigia um volume de energia que só podia ser fornecido por um sol.

Quando o tristemente célebre raio de transporte de energia saísse do chão, estaria na hora. Esperávamos que isso acontecesse quanto antes.

A Crest revistou a área, descrevendo círculos amplos sobre ela. Naturalmente nossas usinas geradoras trabalhavam em regime de emergência, para fornecer energia aos campos defensivos. Rhodan não quis assumir o risco de talvez ser derrubado por armas leves. Até mesmo um canhão energético de calibre médio poderia tornar-se perigoso, se a nave voasse sem os campos defensivos.

Por enquanto Rhodan fora bastante inteligente para não sobrevoar diretamente a Serra do Norte. Mas se os tefrodenses soubessem interpretar corretamente as curvas cada vez mais fechadas que descrevíamos durante a operação de busca, eles compreenderiam que nos aproximávamos do alvo, lenta, mas seguramente.

A bordo da nave quase não se dizia uma única palavra. Os resultados fornecidos pelos instrumentos não eram transmitidos. Os canhões estavam apontados para baixo, prontos para disparar. Rhodan estava disposto a atirar imediatamente, caso houvesse uma surpresa. Em hipótese alguma se poderia arriscar a segurança do ultracouraçado, nem mesmo se por isso não pudéssemos executar mais o salto para o futuro relativista.

Estávamos iniciando a oitava volta em torno do alvo. Comecei a perder a paciência. O instinto me dizia que a tocha acesa em torno do pólo norte não deixaria de ser notada por muito tempo. Sabíamos que havia halutenses no sistema. Além disso havia o perigo de os senhores da galáxia terem sido informados através de algum sistema de comunicação sobre a destruição da fortaleza. Também eles poderiam tomar suas providências. Poderiam por exemplo provocar um ataque em grande escala da frota lemurense contra o sistema de Vega. Não seria difícil encontrar um pretexto para isto.

Transmiti minhas preocupações a Rhodan. Cart Rudo pigarreou e estreitou os olhos. A voz de Tolot trovejou na sala de comando.

— Ouça meu conselho, senhor. Siga as recomendações do lorde-almirante. Ele tem um instinto que nunca o engana.

A idéia que era manifestada pela primeira vez me fez sorrir. Mas a preocupação com a nave logo voltou a tomar conta de mim.

Page 172: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

172

— Temos de fazer alguma coisa para instigar a guarnição do transmissor do tempo. Não adianta esperar mais. Os tefrodenses ainda se sentem seguros, porque nos mostramos inseguros e o sistema de proteção das instalações transmite um sentimento de segurança. O comandante já deve estar com o dedo no célebre botão, mas ainda poderá esperar algumas horas, a não ser que façamos alguma coisa. Abra fogo com um canhão térmico pesado sobre um ponto interessante situado fora da área que representa o alvo propriamente dito. Devemos dar a impressão de que nossos rastreadores mostraram alguma coisa por lá, que nos levou a atirar. Isso estimula a alma e agita os nervos. Em seguida teremos de aproximar-nos mais do ponto escolhido.

Perry fitou-me prolongadamente. Esperei que fizesse uma pergunta, mas isso não aconteceu. Nem sequer manifestou suas dúvidas.

Em vez disso foram dadas ordens precisas ao oficial de artilharia. Dois canhões térmicos superpesados trovejaram. Rhodan não se contentara com o disparo de uma única peça de artilharia. Se o terrano fazia alguma coisa, ele a fazia bem-feita.

Os contrafortes da Serra do Norte, que eram elevações rochosas de cerca de cinqüenta metros de altura, cobertas de uma vegetação densa, transformaram-se num vulcão atômico. As trilhas energéticas penetravam profundamente na rocha, formando uma esfera gasosa e fundindo sob uma pressão cada vez maior uma escavação subterrânea. Depois disso o material cedeu, e houve as explosões típicas dessa espécie de bombardeio.

A Crest passou rugindo sobre a área em ebulição. Rios de lava ofuscantes desciam pelas encostas, despejando-se no oceano equatorial. Imensas nuvens de vapores subiram ao céu e foram espalhadas pela tormenta. Dentro de instantes as nuvens despejaram cascatas de chuva.

As pessoas que se encontravam a bordo ficaram mais animadas. Sempre era bom fazer alguma coisa.

Dali a dez minutos a nave seguiu em direção ao setor central da Serra do Norte. A estação do tempo ficava embaixo desse setor. Tínhamos determinado sua posição, com base nas informações fornecidas por Frasbur, com uma tolerância de mais ou menos mil e duzentos metros.

A Crest voava a cinco quilômetros de altura. Apesar disso devia representar um quadro assustador, por causa do tamanho. A atmosfera iluminou-se sob a ação de nossos campos defensivos. As pancadas de chuva se evaporavam, e as rajadas dos furacões eram desviadas em forma de faixas de gases incandescentes.

Nossa velocidade era de apenas cem quilômetros por hora. Diante da massa enorme da Crest, um observador que se encontrasse na superfície certamente seria levado a acreditar que nos deslocávamos muito mais devagar que isso. Olhávamos ansiosamente para as telas de imagem. Estava todo mundo com os cintos atados nas poltronas anatômicas dos postos de combate. Os membros dos comandos eram os únicos que tinham que dispensar este conforto. Se quiséssemos que o campo zero absoluto nos atingisse e nos transferisse no tempo, tudo teria de ser muito rápido quando se verificasse o processo de estabilização.

Fiquei preocupado com os três teleportadores e virei o rosto para eles. Gucky, com seu cérebro não-humano extremamente sensível, era o mais suscetível às influências psíquicas. Fiz votos para que tudo acabasse bem.

Era o mais forte dos teleportadores e teria de transportar Icho Tolot. Até uma hora antes do início da operação os mutantes tinham ficado mergulhados num sono profundo e reparador. Já estavam novamente em forma. Não podíamos dispensá-los.

— Que diabo será que eles estão esperando? — perguntou Rhodan. — Estamos quase exatamente em cima da base. Atenção, sala de rastreamento. Envie um potente raio de

Page 173: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

173

rastreamento de matéria para a superfície. Dirija-o exatamente para o centro. Quero que seja detectado. Faço questão...!

Perry não teve tempo de completar a frase. O comandante tefrodense, que devia ser um agente do tempo qualificado que nem Frasbur, perdeu os nervos e comprimiu o botão.

Um raio ofuscante saiu das montanhas. Antes que o dispositivo automático tivesse tempo de colocar os filtros diante das câmaras externas, o raio atingiu Vega e a estação do tempo despertou para uma vida apavorante.

Uma coisa que não conseguimos compreender precipitou-se em nossa direção, alcançou-nos juntamente com os campos defensivos e fez com que as telas empalidecessem no mesmo instante. Ouviu-se um forte ruído. Até parecia que alguém acionara um antiquado motor de combustão interna dentro de um barril de vinho.

Ouviram-se gritos partidos da boca de muitos homens que não conseguiram controlar-se, apesar de os termos prevenido sobre este efeito.

Os ruídos foram ficando cada vez mais abafados. Até parecia que alguém colocara algodão no meu ouvido.

Uma série de movimentos enervantes teve início nas telas. Desta vez avançamos no tempo. Mas não chegamos a ver as cenas que se desenvolviam como que num filme, que tínhamos presenciado em Vario. Parecia que nada estava mudando, apesar da mudança extremamente rápida que sofríamos no tempo. Só vimos alguns vulcões entrarem em erupção, mas eles logo voltaram a apagar-se.

Novas baías se formaram no litoral do oceano primitivo que limitava os flancos sul da Serra do Norte. Duas ilhas levantaram-se na água e dentro de alguns segundos relativistas foram cobertas pela selva. Estes fenômenos eram o único ponto de referência que levava à conclusão de que estava havendo um deslocamento no tempo.

Os efeitos físicos que se verificavam no interior da nave restringiram-se a um rugido oco. Perry encostou o microfone do intercomunicador geral aos lábios. Conseguiu falar, embora sua voz tivesse um tom diferente. A comunicação pelo fio funcionava perfeitamente.

— Chefe chamando todos os tripulantes. Atenção para as informações. Quarta fase logo será concluída. Depois dela haverá duas alternativas. Seremos libertados do campo zero absoluto sem outros incidentes, ou então teremos de levar avante nosso plano de ataque. Isso só acontecerá se a estação do tempo acompanhar o deslocamento nos planos de referência temporal. Como sabem, isso não aconteceu em Vario. O transmissor de grande porte permaneceu em seu próprio plano temporal. Não sabemos se com as pequenas estações transmissoras acontece a mesma coisa, ou se seu mecanismo os obriga a acompanhar todo e qualquer deslocamento no tempo. Do ponto de vista matelógico é bastante provável que seja assim. Se os agentes do tempo acompanharem o deslocamento temporal, eles devem ter uma possibilidade de voltar ao ano 49.988 antes de Cristo. Mas isso só poderá ser feito se o transmissor estiver funcionando. Por isso vamos admitir como certa a hipótese de o transmissor de tempo intermediário acompanhar o deslocamento, de forma que depois dele teremos de contar com sua presença e com a dos homens que o guarnecem.

Rhodan calou-se e contemplou as telas de imagem. Os vulcões já se tinham apagado. Perry lembrou-se de uma coisa. Era uma idéia que também me andava maltratando.

— Prestem atenção. Há algo de errado em nosso raciocínio. Se o comandante da estação quiser usar o campo de transposição somente para escapar a um ataque da Crest, ele não terá nada a ganhar caso depois da manobra a nave continue na área que nem uma sombra ameaçadora. Acho que assim que a movimentação no tempo chegar ao fim seremos atacados. Segundo as informações fornecidas por Frasbur, os tefrodenses esperam que as cargas mecânicas e hiperfísicas ligadas ao processo farão com que os tripulantes percam os

Page 174: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

174

sentidos. Mas acho que isso ainda não basta. Fiquem atentos e não deixem que alguma coisa os impeça de cumprir as ordens que receberem. Alguma coisa vai acontecer. Atenção, setor de máquinas. Se o efeito temporal produzir uma perturbação passageira nas unidades geradoras e, portanto, nos campos defensivos, acelere imediatamente e retire-se para trás do horizonte de rastreamento. Retorne assim que as máquinas voltem a funcionar perfeitamente. Os mutantes saltarão de qualquer maneira com os combatentes individuais que já foram escolhidos. Fim da transmissão.

Estas palavras me deixaram entusiasmado. Perry percebera o que era importante e o que não era. Nos poucos segundos que restavam fiquei me perguntando quanto tempo levaria a humanidade para produzir outra vez um homem tão grande. Rhodan era um fenômeno sob todos os pontos de vista. Eu nunca teria sido capaz de expor a situação de forma tão clara — pelo menos tão depressa.

As imagens projetadas nas telas foram se sucedendo mais devagar. Já víramos isso em Vario.

— Ligar campos defensivos individuais — ordenou o comandante. — Procurem não entrar em contato com seus vizinhos. Não é perigoso, mas sempre há uma possibilidade de que isso possa provocar o colapso dos campos defensivos.

Apertei a chave do dispositivo automático que ligava o campo defensivo. O pequeno conversor instalado em minha mochila uivou. O campo defensivo foi-se formando rente a meu corpo e acabou se fechando. Fui levantado um centímetro acima do assento da poltrona.

Estava na hora. Lá fora de repente era dia claro. A luz do sol atravessava uma fresta nas nuvens, refletindo-se um sem-número de vezes em reluzentes pingos de orvalho e chuva.

Nossas vozes voltaram a soar como sempre. A Crest III continuava parada em cima da estação.

Notei que nossas usinas geradoras começavam a falhar. O efeito que Rhodan esperara instintivamente acabara de verificar-se.

— Saltem — gritei para Gucky e Ras Tschubai. — Tako...! O teleportador já estava parado atrás de mim. Fui obrigado a desligar meu campo

defensivo. Tako colocou os braços sobre meus ombros, concentrou-se e criou um campo de desmaterialização com a força do espírito.

Gucky já desaparecera juntamente com Tolot. O afro-terrano Ras Tschubai e Melbar Kasom começavam a dissolver-se no ar. Os alto-falantes trovejaram. Dois postos queriam falar ao mesmo tempo.

O rastreamento anunciou o impacto de tiros disparados por posições de artilharias escondidas, e a sala de máquinas informava que a nave estava acelerando. Não ouvi mais nada, mas o que ouvira bastava para que compreendesse que os tefrodenses tinham aberto fogo com canhões pequenos e de calibre médio assim que o processo de deslocamento temporal chegara ao fim.

Se realmente tivéssemos ficado inconscientes, não haveria ninguém que pudesse tirar a nave da área de perigo. Como o desempenho das usinas geradoras tinha sofrido uma redução, nossos campos defensivos não teriam energia suficiente para absorver o cerrado fogo energético. A Crest poderia perfeitamente ter sido destruída. Senti a dor lancinante que acompanhava a dissolução do corpo. Não estava mais acostumado a isso. Os mutantes não sentiam mais nada.

Os contornos foram-se tornando confusos. Voltei a sentir dores, mas já não me encontrava na nave, mas sob a superfície do planeta Pigell.

Nosso espia, o mutante Wuriu Sengu, que era capaz de olhar através de matéria sólida de qualquer espécie com a mesma facilidade com que um homem normal enxerga através

Page 175: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

175

de uma lâmina de vidro, fornecera uma descrição detalhada das instalações. Ficavam duzentos e vinte metros embaixo da superfície, em média, e eram formadas principalmente por três salas redondas, de oitocentos metros de diâmetro e trezentos de altura. Era nestas salas que tinham sido instalados os conversores que transformavam a energia solar.

Os gigantescos pavilhões ficavam nos pontos de interseção de três linhas que formavam um triângulo com dois lados iguais.

No recinto situado entre as salas ficava a parte mais importante da base, que era o transmissor de tempo intermediário propriamente dito.

O transmissor tinha sido montado num pavilhão de apenas quatrocentos metros de diâmetro, com trezentos metros de altura, tal qual as outras salas. Recebia a energia diretamente das máquinas instaladas nas salas dos conversores.

Cerca de cinqüenta metros embaixo destas salas havia mais doze salas dispostas em círculo, todas com apenas cento e vinte metros de diâmetro e sessenta de altura. Nestas salas ficavam os laboratórios de todos os tipos, os depósitos de mantimentos e os estaleiros completamente automatizados nos quais podiam ser consertadas naves de pequeno porte.

Os alojamentos dos tefrodenses e o centro de controle ficavam entre os dois planos em que ficavam as salas, num setor especialmente protegido.

Sabíamos perfeitamente para onde tínhamos saltado com os teleportadores. Wuriu Sengu fizera um excelente trabalho. Os mapas elaborados com base em suas observações eram tão exatos como se poderia esperar de uma inspeção tão estranha. Evidentemente havia pequenos erros. Até tive o cuidado de incluir margens de tolerância maiores em meus cálculos.

Por exemplo, Wuriu não fora capaz de visualizar perfeitamente o centro de comando, porque este era protegido por um campo defensivo vermelho.

Fiquei tonto. Apoiei-me na parede mais próxima, tentando clarear a vista que se turvava. Enquanto isso Tako Kakuta já tinha desaparecido. A essa hora Gucky e Ras deviam estar a bordo da Crest para trazer outros combatentes.

O que mais precisávamos neste lugar do subsolo eram robôs de guerra pesados, capazes de enfrentar as máquinas dos tefrodenses.

Tako voltou com Ivã Goratchim, um mutante de duas cabeças. Gucky e Ras trouxeram Wuriu Sengu, o espia, e Baar Lun, o conversor de energia.

O hipno André Noir e o telepata John Marshall ficariam a bordo, para servir de elementos de ligação. Só faltavam os gêmeos Woolver, que eram os únicos especialistas da USO que tinham conseguido voltar ao tempo real.

A primeira coisa que fiz quando voltei a raciocinar foi ligar o transmissor de raios goniométricos. Demorou apenas meio segundo que uma nuvem de fumaça fina saísse do aparelho. A nuvem foi ficando mais densa e assumiu os contornos de um corpo humano. No mesmo instante os majores Rakal e Tronar Woolver apareceram à minha frente, em tamanho natural. Tinham-se introduzido na faixa de impulsos de meu transmissor, usando a energia como meio de transporte.

— Chegamos a pensar que alguma coisa lhe tivesse acontecido, senhor — disse Rakal. — Seu impulso demorou bastante.

— Não me sentia bem. Como estão as coisas lá em cima? — A Crest está voltando. Os campos defensivos funcionam de novo. Ficamos

surpresos por termos sido atacados com armas tão fortes. Duas trilhas de raios térmicos atingiram a nave, mas as avarias são insignificantes. A blindagem externa resistiu ao impacto. Podemos começar?

Pus-me a escutar. Por enquanto não se ouvia nada. Tínhamos saído em um dos três pavilhões gigantescos. Os conversores de energia eram parecidos com arranha-céus. Cada um deles tinha duzentos metros de altura e oitenta de diâmetro.

Page 176: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

176

— O raio de transporte de energia solar ainda continua? Tronar respondeu que não. Tako apareceu trazendo o primeiro robô de guerra. Era uma máquina de três metros de altura, que possuía quatro braços e estava equipada com armas superpotentes. Só esperava que alguém lhe desse instruções.

— Fique perto de mim, faça o rastreamento e abra fogo caso apareça um ser vivo que não irradie o impulso de identificação.

— Entendido. Atirar em qualquer coisa que não transmita o impulso em código. Apalpei instintivamente meu transmissor de pulso. Os robôs pesados seriam

impiedosos se um dos transmissores falhasse. Fiquei novamente na escuta. Comecei a ter medo. Será que não havia ninguém na

estação? Ainda estava refletindo sobre isso, quando Tako trouxe o segundo robô e o ambiente

se transformou de repente num inferno. A gigantesca arma energética de Icho Tolot produzia um ruído inconfundível. Até

parecia o rugido de um monstro primitivo, ou o barulho das ondas tangidas pela tempestade.

No mesmo instante as máquinas-mamute pareciam adquirir vida. Recuamos imediatamente, para evitar que o reflexo de um raio energético nos carbonizasse.

O silêncio que reinava ainda há pouco foi substituído por um barulho incrível. Sem dúvida alguém estava precisando de energia. Provavelmente nossa entrada não convencional acabara de ser notada nesse instante. Isso representava a surpresa mais desagradável que a tripulação tefrodense sofrerá em toda sua carreira.

Tako voltou a aparecer, trazendo o terceiro robô. O homenzinho parecia exausto. — Temos de parar um pouco, senhor — informou com o rosto infantil desfigurado

pela dor. — Instalaram um campo defensivo relativista vermelho. Mal e mal consegui passar. Como sabe, é quase impossível atravessar as linhas energéticas semelhantes às geradas por nosso campo. O Chefe manda dizer que os comandos de desembarque estão prontos para saltar. Pede que tentem desligar os projetores que alimentam o campo defensivo ou interromper o fornecimento de energia. A bordo da nave está tudo bem. O campo defensivo hiperenergético voltou a funcionar perfeitamente e com ele será facílimo defender-se do fogo energético.

Olhei em volta. Oficialmente era o comandante das tropas que participavam da operação. Mas no momento não havia muita coisa para comandar. Tolot e Kasom tinham sido largados em outros lugares e tentavam chegar ao centro do comando. Resolvi que minha tarefa consistiria em colocar em funcionamento um dos dois elevadores antigravitacionais, ou ao menos remover um eventual campo defensivo.

Transmiti minhas instruções e entrei em contato com os combatentes mais fortes da Crest, usando o radiofone. Melbar respondeu prontamente.

— Tive contato com o inimigo, senhor. Dois tefrodenses vieram pelo corredor. Pareciam triunfantes. Nem tiveram tempo para arrepender-se. Estou avançando de acordo com os planos.

— Tolot...! — chamei. — Estou na frente da sala central, em que está instalado o transmissor do tempo. Está

desligado. Cortei as portas de correr e destruí a tiros dois dos cabos principais. Por enquanto o aparelho não funcionará.

Acenei com a cabeça. Estava satisfeito. Lembrei-me de que nossos lógicos tinham razão. A estação do tempo acompanhara o deslocamento. Nossas previsões tinham sido corretas. Se o transmissor não funcionasse mais, estaríamos a salvo de qualquer ataque. Ninguém poderia saber exatamente em que época tínhamos ido parar.

Page 177: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

177

As comunicações de rádio da Crest tinham sido interrompidas. Era por causa do campo defensivo vermelho.

Recuamos para junto das grandes portas de correr, cortamo-las sem produzir qualquer calor, usando os desintegradores dos robôs, e lançamos mais um olhar para o pavilhão gigantesco. Os conversores estavam funcionando. Suas coberturas abauladas emitiam um brilho ultra-azul.

Preferi não assumir o risco de atirar nestes monstros. Poderia haver uma explosão devastadora. Devia haver outro meio de interromper o fluxo de energia para os projetores que alimentavam os campos defensivos.

Gucky materializou bem à minha frente. Estava radiante. — Foi um trabalho excelente, não foi? — gritou para superar o barulho. — Descobri o

centro de comando, mas não consigo atravessar o campo energético. Eles se trancaram. Vamos começar?

* * *

As instalações subterrâneas foram sacudidas por uma explosão. Seguiu-se outra e

mais outra. O rugido dos potentes conversores de energia transformou-se num estrondo. Naquele

momento flutuava no elevador de carga, que saía na encosta sul da Serra do Norte e permitia o transporte de objetos volumosos para o mundo que ficava no subsolo.

Não conseguimos abrir mais as gigantescas portas de correr muito bem camufladas e adaptadas ao ambiente, que davam para a superfície. Por isso simplesmente dei ordem para que um robô recortasse uma placa de dez por dez metros e a deixasse cair no poço, onde ainda continuava.

A luz do sol penetrava no poço do elevador. Os tefrodenses tinham desligado o campo antigravitacional, mas não adiantou. Parecia que não faziam a menor idéia do grau de treinamento e da experiência das tropas de elite terranas. Não era a primeira vez que fazíamos isso. Principalmente Tolot e Kasom eram especializados em conquistar bases fortificadas como esta.

Lá embaixo rugiam as batalhas encarniçadas travadas com os robôs de guerra dos tefrodenses. Eram máquinas de alta qualidade, que ofereciam uma resistência surpreendente às nossas construções. Seus campos defensivos eram de primeira qualidade, e para neutralizá-los nossas máquinas de guerra tinham de dirigir seu fogo energético concentrado num ponto bem determinado. Quando isso acontecia, a estrutura do campo era enfraquecida em outros pontos, onde se tornava possível a ruptura.

Os dispositivos de autocontrole de nossos robôs de guerra pareciam ser melhores. Compreenderam num instante como poderiam enfrentar seu inimigo mecânico.

As explosões iam se sucedendo. Tolot lutava que nem um demônio. Detectara com seu equipamento especial cinco tefrodenses que tinham avançado até os recintos em que ficavam os conversores de energia, passando por corredores secretos. Não tiveram a menor chance contra o halutense, que com um único tiro os obrigara a recuar para seus esconderijos e em seguida investira contra eles somente com as mãos. Os gritos de pavor dos tefrodenses ainda ressoavam em meus ouvidos. Os halutenses sempre tinham sido e continuavam a ser os maiores combatentes individuais da galáxia.

Depois disso cuidei de minha missão, que depois das três explosões parecia ter sido cumprida.

Depois que chegamos à superfície não foi difícil encontrar os projetores do campo defensivo fixados no solo. Nem precisamos usar nossos rastreadores para isso.

Page 178: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

178

Os três teleportadores dispararam ao mesmo tempo cargas explosivas de pequeno volume. Voei para a superfície assim que as ondas de pressão se desfizeram. Segurei-me na borda recortada da tampa do poço do elevador e olhei para fora.

Havia três crateras enormes das quais saía uma incandescência vermelha. O lado sul do campo defensivo desmoronara. Línguas de fogo violetas subiam nas partes que continuavam de pé, mas que também começavam a instabilizar-se. Foram lançadas mais três granadas-foguete, que destruíram outros projetores. O campo energético apagou-se de vez.

As máquinas instaladas nas salas dos conversores trabalharam loucamente, até que foram desligadas por um dispositivo de segurança. Depois disso também se apagou o ofuscante raio transportador de energia, que logo depois de nosso ataque voltara a unir a base temporal a Vega.

Sabia que a vitória era nossa. O que faltava era praticamente uma rotina. O gigantesco corpo esférico da Crest III estava suspenso sobre a paisagem fumegante.

Gucky e os outros mutantes tentavam inutilizar as quatro cúpulas de canhões que tinham saído da base do tempo. Os teleportadores representavam um recurso substituível em operações desse tipo, pois podiam saltar instantaneamente de um lado para outro sem correr o perigo de entrar num fogo cruzado.

As cúpulas foram pelos ares. Meu rádio-capacete entrou em funcionamento mais ou menos no mesmo instante. Era

Rhodan que me chamava de dentro da nave. — Tudo bem — respondi. — O campo defensivo foi eliminado e as torres de canhões

acabam de explodir. Viram o buraco que recortei na tampa do grande elevador antigravitacional?

— Você acha que somos cegos? Trate de sair do caminho. Os robôs entrarão em primeiro lugar.

Olhei para cima. Vi chover os corpos de aço negros das máquinas de guerra e tratei de reduzir a potência de meu aparelho voador para recuar para o interior da estação.

Dali a cinco minutos os robôs e os comandos interferiram nos acontecimentos. Os robôs de vigilância tefrodenses, que eram aproximadamente em número de cem,

arrebentaram sob a chuva de fogo despejada por nossas máquinas. Kasom e Tolot já se encontravam perto do campo energético que protegia o centro de comando. Este campo certamente era alimentado por um reator autônomo, senão já teria deixado de existir.

Corri para onde estava Kasom e abriguei-me juntamente com ele atrás de uma coluna de sustentação. Kasom apontou para a frente.

— Já descobrimos os cadáveres de nove tefrodenses. Os outros devem ter-se recolhido à sua toca. Nem se arriscam a pôr o nariz do lado de fora. Acho que devemos intimá-los para que se rendam.

Olhei em volta. A estação estava repleta de tropas. Os comandos científicos passavam correndo pelos corredores amplos. Eram eles que tinham de examinar as instalações técnicas.

Enquanto isso na superfície a área estava sendo isolada e nossas tropas ocupavam o outro elevador gravitacional.

Peguei meu rádio-transmissor portátil. Kasom segurou meu braço. — Não adianta, senhor. O campo defensivo absorve as ondas de rádio. Quando muito,

pode tentar entrar em contato com o comandante tefrodense. Pedi que os homens que continuavam na Crest me enviassem um amplificador

portátil com alto-falante. Quando o aparelho chegou, a situação já se tinha estabilizado. Os últimos robôs tefrodenses estavam explodindo sob o fogo de nossas máquinas de guerra.

Page 179: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

179

— As antenas de rádio foram destruídas, senhor — informou o Major Don Redhorse, chefe das tropas de superfície, pelo rádio. — Encontramo-las em galerias bem camufladas. Não chegou a ser transmitida nenhuma hipermensagem.

— Para onde poderia ser transmitida? — respondi em tom áspero. — Estamos no ano 49.488. É ao menos o que espero.

Dali a pouco o Dr. Spencer Holfing entrou em contato comigo. Encontrara grande número de instrumentos num centro de controle que continuava intacto. Estes instrumentos mostravam que realmente fôramos transportados quinhentos anos para o futuro relativista. Nossos cientistas sabiam muita coisa a respeito dos segredos técnicos de um povo desconhecido, e por isso eram capazes de fazer a leitura exata dos controles. O Dr. Hong Kao informou que acabara de descobrir um transmissor de matéria comum em uma das doze salas que ficavam cinqüenta metros abaixo do plano dos pavilhões energéticos. Também não estava funcionando. Ao que tudo indicava, dependia de um suprimento de energia vindo de fora.

Os técnicos montaram os alto-falantes. O silêncio reinou nos recintos amplos. — Atlan, comandante supremo da USO e chefe das tropas de comando, chamando o

comandante da estação do tempo. O senhor me ouve? Não houve resposta. Repeti o chamado quatro vezes. Nossos homens estavam bem

abrigados. As portas de aço de uma eclusa de climatização brilharam atrás do campo energético transparente.

Finalmente ouvi uma voz estranha. Parecia que os homens cercados também estavam usando um sistema de amplificação.

— Nós o ouvimos. Que deseja? Respirei aliviado. — Pouca coisa. Desliguem seu campo energético e saiam com as mãos para o alto. A

única coisa capaz de salvá-los é a rendição incondicional. — O senhor é um presunçoso. Nunca poderá conquistar o centro de comando, a não

ser que destrua a base. E uma coisa que o senhor não poderá fazer. Nunca me renderei. A qualquer momento chegará alguém para auxiliar-nos.

Insisti para com o agente do tempo para que abandonasse suas idéias insensatas. Tentei mais uma hora, mas acabei desistindo. Virei a cabeça e vi Perry Rhodan parado atrás de mim. As armas automáticas do centro de comando voltaram a atirar. Tratava-se de desintegradores e armas de ressonância, cujas vibrações podiam tornar-se perigosas, porque desmanchavam as células. Fomos obrigados a retirar-nos para um local mais distante.

— Pode começar — disse Perry, dirigindo-se a um técnico. O homem desapareceu. — O que pretende fazer? — perguntei em tom exaltado. — Eles pecaram por omissão. O campo energético envolve o centro de comando, mas

não se lembraram da base. Avançaremos pela rocha natural, seguiremos num ângulo de noventa graus e abriremos fogo com nossas armas térmicas. Transmita isto a eles. Quero que sejam prevenidos.

Vi que o terrano se fechara dentro de si mesmo. Antes de transmitir o ultimato, resolvi chamar Tronar Woolver.

— Tronar, não existe mesmo nenhuma possibilidade de atravessar este campo energético e materializar no centro de comando?

— Já tentamos, senhor. Conseguimos estabelecer ligação com os impulsos transmitidos pelo campo energético, mas não chegamos a sair dos projetores. Devem ter instalado uma parabarreira. Não me pergunte como fizeram isso. Acho que ainda não conhecemos todos os recursos técnicos dos senhores da galáxia.

Page 180: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

180

Não havia alternativa. Teríamos de usar a força. Voltei a pegar o microfone e regulei o amplificador para o volume máximo. Os tefrodenses suspenderam o fogo. Notei que não usavam nenhuma arma que pudesse causar avarias graves na estação.

— Uma vez aberta a galeria, os senhores serão destruídos pelo fogo de nossas armas térmicas — concluí. — Sejam sensatos. Os senhores não têm como resistir ao ataque. Querem morrer queimados nessas salas apertadas?

Fiquei calado, à espera da resposta. Rhodan não disse uma palavra. Seu rosto se transformara numa máscara.

O comandante continuava em silêncio. Cerca de cinco minutos depois da transmissão de minha mensagem ouvimos alguns ruídos. Vinham do centro de comando.

— O que foi isso? — cochichou Kasom, nervoso. Lemy Danger voou em minha direção. Nenhum de nós ouvia tão bem quanto ele. — Senhor — gritou. — Deram seis tiros. Devem ter sido armas energéticas. O ruído

era inconfundível. Rhodan estremeceu e mudou de cor. — Será que o senhor não se enganou? — De forma alguma, senhor. O senhor sabe que tenho um excelente ouvido e...! — Sei, sim — interrompeu Rhodan e olhou para mim. Começamos a desconfiar de

uma coisa. Conhecíamos a mentalidade dos agentes do tempo, que estavam sempre dispostos a sacrificar a própria vida.

A voz estranha voltou a fazer-se ouvir. Era o comandante. — Neskin, comandante da base do tempo, chamando Atlan. Conferi suas alegações e

cheguei à conclusão de que realmente não temos como impedir a abertura de uma galeria com armas térmicas. Dei ordens para que a estação, que não pode ser dispensada, seja conservada de qualquer maneira. O fogo de suas armas destruiria não só o centro de comando, mas outros setores. Por isso resolvi capitular. Acabo de fazer a interpretação lógica dos fatos e cheguei à conclusão de que os senhores evitarão a destruição das instalações, nem que seja por curiosidade. E existem outros motivos para isso. Além disso o baixo grau de desenvolvimento técnico dos senhores constitui a melhor garantia de que as máquinas continuarão a ser um mistério para seu grupo. É altamente provável que os seres a cujo serviço me encontro lancem um contra-ataque, e por isso prefiro que a base continue intacta. Para isso torna-se indispensável minha rendição. Submeto-me às leis e acredito no alto grau de probabilidade das minhas previsões.

— O senhor está louco — berrei. O comandante deu uma risada. — De forma alguma. O senhor é que não compreende nossa lealdade e senso de

ordem. Rendendo-me imediatamente, evito a destruição imediata das instalações. A probabilidade de que os senhores não se alegrarão por muito tempo com sua conquista me dá o direito de tomar esta decisão. Evidentemente sou obrigado a tomar as providências necessárias para que os membros da guarnição não sejam interrogados pelos senhores. Isto também se aplica à minha pessoa. Deixá-los-ei, levando comigo meus segredos técnicos. Acabo de fuzilar as seis pessoas que estavam sob minhas ordens. Cumprindo meu último dever, abrirei o campo defensivo. Faço votos de que isto lhes dê muito prazer.

O comandante deu outra risada. Estávamos com o rosto pálido. O tal do Neskin só podia estar louco.

O campo energético vermelho tremeu e apagou-se. As portas blindadas abriram-se. No mesmo instante ouvimos outro tiro de arma térmica.

Entramos cuidadosamente e vimos sete cadáveres. Eram os últimos homens da guarnição. Neskin estava sentado em sua poltrona giratória, com um sorriso irônico nos lábios pálidos.

Page 181: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

181

Retirei-me da sala enorme, onde tive a impressão de que iria morrer sufocado, e entrei no elevador antigravitacional para subir à superfície. A Crest continuava suspensa sobre a paisagem intocada.

Rhodan veio atrás de mim. Estava sério e pensativo. — Foi a reação típica de um agente do tempo — observou. — Frasbur também quis

sacrificar-se. Neskin desistiu da luta porque não queria pôr em perigo a base. Qual será o segredo que ele levou consigo?

Era o que eu também estava pensando. Neskin dera a entender que esperava um contra-ataque, mas parecia que não era só isso. Perry continuou a refletir.

— Uma coisa é certa. As instalações são muito importantes, tanto que ele não quis tomar a iniciativa de sacrificá-las. Parece que se contentou com sua reconquista pelos senhores da galáxia. É uma reação estranha! Estes homens devem ter recebido um comando parapsíquico de autodestruição, sem que se dessem conta disso. Acho que Frasbur deveria ser submetido a um exame cuidadoso, para verificar este ponto.

Preferi não quebrar mais a cabeça com este mistério. Para mim o fato de termos escapado ao perigo representado pelos lemurenses bastava. Podíamos fazer calmamente nossos vôos de reconhecimento em direção ao transmissor solar galáctico, tentando descobrir um caminho que nos levasse de volta à galáxia de Andrômeda.

Saí para a plataforma rochosa que ficava à frente do grande elevador de carga. Rhodan forneceu instruções detalhadas ao comandante da nave. A vegetação que havia numa planície ampla situada ao oeste do elevador antigravitacional seria retirada por meio de disparos cuidadosos das armas térmicas, para criar um campo de pouco provisório.

A Crest III movimentou-se devagar e parou em cima da área indicada. Uma corveta aproximou-se, vinda do norte. Saíram num vôo de reconhecimento, quando ainda estávamos negociando com Neskin.

— Está provado que realmente houve um deslocamento no tempo, senhor — informou o comandante do pequeno veículo espacial pelo radiofone. — As crateras abertas pelas bombas já esfriaram. Não existe nenhuma radioatividade. A selva tomou conta de tudo. Isso deve ter levado vários séculos.

Rhodan limitou-se a acenar com a cabeça. Sentou numa pedra. Fitou a Crest com os olhos semicerrados. Wiffert estava dando início à limpeza do terreno. As plantas vigorosas eram carbonizadas pelos feixes de raios bem abertos dos canhões térmicos.

— Encontramo-nos no ano 49.488 antes do início da Era Cristã — disse Perry, absorto em pensamentos. — Tomara que nosso plano não tenha nenhuma falha, amigo. Não me sinto muito bem dentro do meu couro.

Fiquei calado. Perry tinha razão. De repente não me sentia tão seguro da vitória como no dia 14 de junho. Estava muito menos confiante!

Page 182: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

182

4. O mundo dos imateriais

Prólogo A voz do chefe saiu dos alto-falantes e espalhou a notícia por todas as catacumbas.

“Todos os chefes de pesquisas comparecerão ao laboratório principal, para assistir à primeira experiência conclusiva.”

Os exilados do tempo tiveram a atenção despertada. Os planetas tinham percorrido inúmeras vezes suas órbitas desde o momento em que se conformaram com o papel de seres encalhados no tempo, para dedicar-se a um único objetivo: a vingança!

Tinham destruído seu mundo e se enfiaram nas montanhas e cavernas do planeta infernal, para desferir um golpe fulminante em seus inimigos mortais. O ódio acumulado em várias gerações finalmente iria descarregar-se. Mas não eram impelidos somente pelo ódio. Seus atos inspiravam-se também num sentimento de culpa gravado para sempre em suas almas, porque sabiam que tinham preparado um destino horrível a outros seres inteligentes, somente para que o mal lhes concedesse mais um prazo. Não adiantou. Quando chegaram ao fim de seu caminho amargo, o orgulho e o sentimento de honra de um grande povo voltaram a manifestar-se.

Viam-se diante de um inimigo muito mais poderoso que eles, de um inimigo que controlava a energia dos sóis — e o tempo. Enquanto isso eles não possuíam nada além da experiência e dos conhecimentos adquiridos — e uma capacidade genial e especializada de instalar alguns laboratórios...

Os vultos escuros recuaram respeitosamente, quando os chefes das equipes científicas, trajados de vermelho, abriram caminho entre a multidão. Ouviu-se um murmúrio, que logo cessou. Por maior que fosse o nervosismo, ele não perturbaria a disciplina fundada numa tradição milenar. A energia das culturas de bactérias que tinham passado por um processo de mutação gerava uma débil luz amarela, que espalhava uma penumbra indefinível pelos corredores e lançava compridas sombras cinzentas nas paredes e nos tetos.

Trolok, o cientista-chefe e chefe dos banidos, esperou que os chefes dos diversos grupos de pesquisas estivessem reunidos no grande recinto circular da cúpula subterrânea. Só então subiu na tribuna.

As discussões travadas aos cochichos terminaram imediatamente. Trolok levantou seu bastão, que emitia uma luminosidade vermelha. — Dar vida, tecer vida, tecer ligações, desprezar o inimigo... — disse, pronunciando

uma fórmula antiqüíssima. — Tudo se modifica! — responderam os subordinados. Trolok enfiou o bastão radiante no estojo de chumbo que havia na tribuna. Por um

instante teve-se a impressão de que iria falar aos homens reunidos. Mas virou-se de repente e subiu os poucos degraus que levavam ao projetor do hipermicroscópio. Deixou-se cair pesadamente no assento arredondado. O capacete de controle reluzente desceu sobre o crânio redondo, completamente calvo. Trolok pôs os doze dedos sobre o teclado de controle do projetor.

Névoas começaram a agitar-se de repente sobre a grade luminosa branco-azulada do projetor. Foram adquirindo contornos definidos e finalmente formaram uma imagem clara.

Uma planta pertencente à fauna do planeta estava sendo mostrada. Era uma vegetação rasteira de cor verde-acinzentada. Em seqüência acelerada foram saindo da

Page 183: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

183

planta inúmeras ramificações, caules branco-amarelados que engrossavam na extremidade superior — e finalmente apareceram os botões de flores. E as pétalas violetas com um brilho aveludado foram se abrindo...

De repente a imagem mudou. Grande quantidade de células de duas espécies diferentes flutuaram acima da grade

de projeção. A voz saída do alto-falante dava as explicações. Mas os cientistas não precisavam delas para compreender o fenômeno. Conheciam as células de multiplicação da planta rasteira. E sabiam o que eram os pequeninos bastões de aspecto cristalino que subitamente apareceram entre elas. Toda vez que um destes botões tocava uma célula multiplicadora durante sua peregrinação, surgia um abaulamento nesta última.

A voz do chefe voltou a sair do alto-falante. — Os senhores estão assistindo à experiência número sete mil quinhentos e oitenta e

um. Façam o favor de observar o abaulamento típico. É por ele que os filamentos DNS dos vírus sintéticos penetram na parede da célula de multiplicação.

As células atingidas sofreram uma modificação. Dividiram-se que nem as outras, mas as células da planta rasteira assim tocadas transformaram-se em outra coisa.

— Nesta experiência conseguimos pela primeira vez influenciar as células desta planta por meio de vírus sintéticos — explicou Trolok. — As células “infectadas” vêem nos filamentos DNS do vírus um modelo estrutural e dali em diante durante o processo de divisão só reproduzem as células que correspondam a este modelo.

A imagem mudou de novo. Um gigantesco campo experimental situado ao ar livre apareceu na tela. O chão

trabalhado ainda exalava os vapores da última tromba-d’água. Não se via sinal das plantas rasteiras, mas apesar disso os típicos caules branco-amarelados saíam do chão em seqüência acelerada e abriam as flores violetas.

Alguns lampejos percorreram a grade de projeção, mas a imagem tridimensional logo voltou a estabilizar-se. Mas o quadro não era mais o mesmo. Mostrava uma imagem em tamanho reduzido de um rastreamento de impulsos energéticos. Milhares de raízes robustas, com um brilho quase metálico, atravessavam o chão embaixo do campo experimental. De um dos lados estas raízes penetravam nos condutores cintilantes de um conjunto atômico, enquanto do lado oposto iam terminar numa grade de irradiação em miniatura.

Uma série de cochichos fez-se ouvir entre a multidão de cientistas, quando o conjunto atômico entrou em funcionamento, enviando sua energia para as raízes. Dali a instantes um fogo banco-azulado saiu das torres em miniatura da grade de irradiação.

O projetor foi desligado. Trolok levantou-se pesadamente do assento e desceu para a tribuna. Passou os olhos pelos chefes das equipes de pesquisas. O brilho dos olhos nos rostos

largos mostrava que eles tinham compreendido. Não havia necessidade de outras explicações. Aquilo era apenas o começo. Seria somente uma questão de tempo para que finalmente chegasse o momento da vingança.

Trolok sabia perfeitamente que não viveria para assistir a este dia. Acabara de atravessar uma barreira até então considerada insuperável. Conferira a certas plantas as funções de máquinas capazes de se reproduzirem.

Pela primeira vez em muitos anos Trolok sorriu ao som das últimas palavras da velha fórmula: — ...Tudo muda...!

Page 184: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

184

1 Como sempre, as recordações entravam lentamente, aos pingos, em seu consciente.

Os primeiros contornos luminosos levantaram-se em meio à escuridão do profundo sono terapêutico não entremeado de sonhos. Eram os rostos de amigos, superiores e subordinados. E o rosto de Yezo, de sua esposa e da presidente do planeta Oxtorne...

A dor psíquica acelerou o processo do despertar. Há quanto tempo estavam separados — Yezo e ele...? Separados no tempo e no espaço

e... O Tenente Omar Hawk abriu os olhos. Olhou através da lâmina transparente de seu

capacete de oxigênio e viu a massa gelatinosa cor de carne que o envolvia. Aos poucos foi desaparecendo a dormência que se estendia por todo o corpo.

Omar voltou a lembrar-se por que estava deitado ali, num tanque de bioplasma da clínica de bordo. Fora colocado nesse tanque pela primeira vez há dois meses, depois que Sherlock o tinha recolhido num recinto da Crest III que estava em chamas. Foi pouco depois de terem estabelecido contato com o campo zero de Vario. A nave-capitânia da frota do Império fora inundada pelos duplos tefrodenses de Noir e Gucky. O comandante fora prevenido, mas se esquecera de avisar o oxtornense que se encontrava em seu camarote especial.

Omar Hawk viu o intruso e identificou-o como sendo o rato-castor Gucky. Não sabia que se defrontava com um combatente duplo reorientado. Não foi atingido pelo raio energético graças à sua extraordinária capacidade de orientação, mas o calor desprendido queimou o lado esquerdo de seu corpo. O duplo de Gucky deu mais alguns tiros, provocando o desabamento do teto, antes que Omar tivesse tempo de matá-lo com uma placa metálica incandescente. Depois disso perdeu os sentidos. Se o Okrill que criava tivesse levado mais um segundo para descobri-lo, teria morrido queimado apesar de sua constituição robusta.

Os médicos da clínica de bordo diagnosticaram queimaduras de terceiro grau em dois terços do corpo. O organismo de um terrano teria entrado em pane por causa do choque, e não poderia ser salvo, por melhor que fosse o tratamento. Mas no caso de Hawk o coração apenas bateu um pouco mais depressa. Assim mesmo teria morrido se não tivesse sido colocado imediatamente num tanque de bioplasma, e se sua mente não tivesse sido colocada em estado de hibernação, enquanto o corpo regenerava a pele queimada e a circulação do sangue removesse as toxinas metabólicas.

Omar Hawk fora acordado a primeira vez depois de menos de um mês. Depois disso demorou mais onze dias até que tivesse permissão para sair do tanque de plasma. Sentia que sua saúde era perfeita, mas os médicos não pensavam assim. Receitaram no início três banhos de plasma por dia, com duas horas de duração cada, além de um cuidadoso tratamento na base de radiações. O número e a duração dos tratamentos suplementares foram diminuindo com o tempo.

Naquele dia seria realizado o exame final. Omar sorriu com uma expressão irônica quando o rosto sempre contrariado do Dr.

Ralph Artur, médico-chefe da Crest III, apareceu em cima dele. O Dr. Artur era um verdadeiro gênio na medicina, tanto do ponto de vista prático como sob o aspecto teórico. Sua magreza, a calva sardenta e o rosto cheio de rugas, numa expressão de contrariedade, só seriam capazes de enganar uma pessoa que não o conhecesse a respeito da competência desse terrano.

Page 185: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

185

Mais alguns médicos apareceram atrás do Dr. Artur. O médico-chefe fez alguns gestos violentos. O zumbido de um motor elétrico se fez ouvir, acompanhado do chiado de uma bomba e do burburinho da matéria gelatinosa sendo sugada.

A bomba levou apenas alguns minutos para esvaziar o tanque de plasma. Depois disso jatos de água muito finos saíram dos bocais embutidos na parede, removendo os restos do bioplasma do corpo e do capacete de Hawk, enquanto um campo antigravitacional o mantinha suspenso no ar.

O medo-robô agitou os quatro braços finos por cima do recipiente. Os fechos do capacete estalaram. Omar aspirou profundamente o ar. Fez como se não visse as mãos de alguns médicos-assistentes, solicitamente estendidas em sua direção. Agarrou a borda do recipiente e saltou para fora.

O Dr. Ralph Artur deu um passo para trás. Lançou um olhar penetrante para o corpo atlético do paciente. Omar ficou embaraçado por causa da nudez. Viu nos olhares dos médicos-assistentes uma expressão de admiração, de inveja — e de profunda antipatia.

O médico-chefe pigarreou. — O senhor é um oxtornense da quarta geração? — prosseguiu sem aguardar a

resposta. — Qual é a gravitação de seu planeta? — Quatro vírgula oito gravos, senhor — respondeu Hawk. — A pressão do ar chega a

oito atmosferas. Artur inclinou a cabeça e fitou os médicos-assistentes com uma expressão penetrante. — Vejo que o jovem gosta de falar. Ou será que eu perguntei qual é a expressão do ar

em seu planeta? — Não senhor! — respondeu um homem obeso, de faces rechonchudas. O rosto do Doutor Artur desfigurou-se numa expressão de deboche. — Eis aí a diferença entre vocês dois. No caso do senhor a gente tem de perguntar

tudo para conseguir uma informação. Virou abruptamente a cabeça para Hawk. — O senhor disse alguma coisa, oxtornense? — Tomei a liberdade de rir, senhor! — Bem...! — resmungou o médico. — Ele tomou a liberdade de rir enquanto um

homem sério estava dizendo coisas sérias — mudou abruptamente de assunto. — Faça o favor de levantar os braços! Muito bem... Vire o corpo... Abaixar... Levantar. Sente dores ao fazer um movimento?

Omar Hawk sacudiu a cabeça calva. Sua pele moreno-clara, com aspecto de couro, assumiu um aspecto oleoso, o que era um fenômeno perfeitamente natural, que se verificava quando suas funções orgânicas se normalizavam.

— Nenhuma dor, senhor. Sinto-me tão bem como nunca... — Caramba! — Berrou o Doutor Artur. — Sou eu que decido como o senhor tem de se

sentir! Entre no monitor de funções. Rápido! Omar não se ofendia por pouca coisa, mas não estava gostando do tom que o médico-

chefe usava para com ele. Numa reação obstinada, da qual nem se deu conta, saltou para dentro do aparelho, em vez de entrar cuidadosamente. O revestimento inferior soltou-se ruidosamente dos suportes de aço. Os dedos de Hawk agarraram alguns aparelhos valiosos, à procura de alguma coisa em que pudessem apoiar-se. Revestimentos estouravam, peças de glasurite se rachavam, cabos se rompiam. O dispositivo automático de segurança do aparelho soltou relâmpagos branco-azulados. Depois de algum tempo todas as luzes de controle se apagaram.

Omar saiu dos destroços como quem não está com a consciência muito tranqüila. Sem querer bateu com o ombro no console e empurrou-o juntamente com as colunas de metal plastificado.

Page 186: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

186

Perplexo, contemplou os médicos-assistentes, que tentavam fugir, amontoando-se junto à porta. O Dr. Ralph Artur era o único que continuava no mesmo lugar. Olhou para o oxtornense com as pálpebras levantadas.

— Sinto... sinto muito, senhor — disse Hawk, deprimido. Artur respondeu com a voz carregada de sarcasmo. — Graças à demonstração convincente de sua capacidade física a que acabamos de

assistir podemos dispensar o teste final no monitor de funções — pigarreou. — De qualquer maneira, este teste tomou-se impossível.

De repente sofreu um dos seus raros acessos de autocrítica. — Devo confessar que me sinto culpado por sua reação e pelas conseqüências graves

que ela produziu, tenente. Nem por isso quero dizer que estou disposto a continuar a tratá-lo, seu... seu robô com vida! Não quero vê-lo mais!

Omar bateu os calcanhares e olhou para baixo, mexendo com os dedos dos pés despidos.

O Doutor Artur sorriu e em seguida tossiu, dando a entender que acabara de dar um imperdoável passo em falso.

— Seus pertences estão guardados na ante-sala, Hawk. Aproveite a oportunidade para ajudar os senhores assistentes a desenlear os braços e pernas que tremem de medo.

Omar inclinou a cabeça. Estendeu a mão num gesto hesitante, que quase chegava a ser tímido.

— Gostaria de agradecer pelo excelente tratamento que me foi proporcionado, senhor...

O Doutor Artur fitou-o com uma expressão de espanto. Até parecia que Hawk usara uma língua que ele não entendia. Mas seu rosto logo assumiu uma expressão alegre. Segurou a mão do oxtornense.

— Tenha cuidado! — advertiu. — E... bem... Não se preocupe por causa dos estragos feitos no monitor de funções. Para os médicos os exames feitos em seu corpo valeram mais que alguns aparelhos — piscou os olhos de uma forma estranha. — Tudo de bom, Hawk!

— Obrigado, senhor! — respondeu Omar, radiante. — Caso tenha tempo, aceite meu convite cordial de visitar Oxtorne.

— Muito obrigado, tenente — Artur empalideceu. — Acho que dispensarei o prazer de conhecer um mundo no qual se precisa da sua constituição para sobreviver.

Omar deu uma risada, fez um gesto de despedida e atravessou a porta, que de repente ficou livre. Os médicos-assistentes contemplaram o oxtornense com uma expressão de quem não se sente muito à vontade.

Omar Hawk não se incomodou. Recebeu seus trajes de reserva, manifestou distraidamente seus agradecimentos ao robô que estava de serviço no guichê e vestiu-se às pressas.

Queria visitar quanto antes seu okrill. O animal fiel certamente já estava à sua espera.

* * *

Omar Hawk bateu amistosamente no ombro do encarregado dos animais. Usou apenas o dedo indicador, mas o homem dobrou os joelhos com um gemido.

Virou-se com o rosto vermelho de raiva. Os distintivos que trazia no conjunto-uniforme e a braçadeira com o símbolo do destacamento especial de patrulhamento da Segurança Galáctica o fizeram mudar de intenção.

— Senhor...? Tenente Hawk...? — Sou eu. Como vai Sherlock? Vim buscá-lo. O rosto do encarregado mudou de cor.

Page 187: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

187

— O... o monstro? Não... não faça isso. Depois que destruiu três robôs alimentadores — fundindo-os simplesmente — só o temos observado pela televisão. A alimentação vem sendo feita através de um sistema de tubos.

Estremeceu ao ouvir o rugido profundo saído de um alto-falante. — Abra a porta da jaula! — ordenou Omar com o rosto impassível. O homem encolheu. — Não pense que sou um covarde, senhor — exclamou. — Fui condecorado com a

medalha de prata pela minha bravura. Mas em minha opinião seria uma leviandade soltar esta fera.

— Eu me responsabilizo! — Omar levantou os ombros num gesto de resignação ao notar que estas palavras não podiam acalmar o encarregado. — Está bem! — acrescentou com um suspiro. — Pode retirar-se depois que me tiver entregue a chave.

Um chiado rouco saiu do alto-falante. O encarregado entregou duas chaves energéticas a Omar Hawk e retirou-se, fechando a porta do lado de fora.

Omar abriu a primeira escotilha de aço. Um sorriso de compaixão aflorou aos seus lábios quando viu a escotilha que ficava na outra extremidade do pequeno corredor tremer fortemente. Era o okrill saltando impacientemente contra ela. Para alguém que conhecesse o animal isso bastaria para convencê-lo de sua relativa bondade. O okrill era capaz de soltar raios com a língua, que derretiam qualquer escotilha de aço...

Hawk enfiou a segunda chave energética na fechadura, e o animal que se encontrava atrás da escotilha acalmou-se. Esta abriu-se silenciosamente. No mesmo instante duas patas do tamanho de um prato pousaram nos ombros de Omar. Uma boca gigantesca encostou-se à palma de sua mão.

Omar acariciou o animal, batendo em suas narinas. Os olhos redondos multifacetados emitiam um brilho cor de aço. O okrill deixou-se cair sobre as oito pernas, fazendo tremer o chão. O corpo que tinha o aspecto de um sapo gigante entesou-se.

— Hi, Sherlock! — exclamou Omar. — Atchim...! — fez o animal. Para um okrill isto era um sinal de profunda satisfação. Emocionado, Hawk acariciou a boca da fera. A atuação em inúmeras missões

transformara os dois numa equipe inseparável. O homem e o animal tiveram de submeter-se a duras provas, como a busca dos invasores invisíveis de Maarn, a procura da velha Crest III no espaço vazio, a luta contra os pavores do planeta Horror...

Tinham saído vitoriosos de todas elas. Mas o poder dos donos de Andrômeda os arremessara mais de cinqüenta mil anos para o passado relativo — e o tempo era um inimigo muito pior que qualquer outro...

O okrill espirrou e bateu com o crânio atrás do joelho de Omar. — Isto é um problema que você não compreende — disse Omar. — Bem, vamos dar

um jeito. Venha comigo, Sherlock. Retirou-se da confortável prisão do okrill sem olhar para trás. Sabia perfeitamente

que o animal o seguiria enquanto não recebesse ordem em contrário. No corredor, um encarregado saltou para o lado, apavorado. Em seguida contemplou

estupefato o par desigual que se dirigia tranqüilamente ao elevador central. Até parecia um pacato cidadão terrano levando seu cão para passear.

— Olhe que essa fera destruiu três robôs...! — cochichou. Omar Hawk não lhe deu atenção. O okrill limitou-se a estalar a língua, num gesto de

desprezo. Em seguida os dois deixaram que a tração suave do campo antigravitacional polarizado os levasse para cima. Saíram no chamado convés do chefe.

A esteira transportadora levou-os até a pesada escotilha blindada da sala de comando.

Page 188: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

188

Omar apertou o botão de chamada e identificou-se, seguindo o regulamento. A escotilha não demorou a abrir-se.

Hawk contemplou o quadro perturbador formado pelas inúmeras luzes de controle, escalas iluminadas e discos de informações. Já conhecia isso. A única novidade era o gigantesco disco amarelo-pálido do sol, que filtrava preguiçosamente através das pesadas nuvens carregadas de chuva, criando uma penumbra deprimente.

— É Vega? — perguntou a um tenente que passava apressadamente. O oficial estacou. Reconheceu o oxtornense e fez continência. — É Vega, sim senhor. Faz uma hora e meia que a Crest desceu em Pigell, que é o

sexto planeta de Vega. Não passa de um inferno de lama fumegante. Omar fez um gesto de pouco-caso. — Muito obrigado, tenente. O oficial retirou-se, lançando um olhar assustado para o okrill. Saiu caminhando

cautelosamente, pé ante pé. Só voltou a andar mais depressa quando alguém gritou para ele das profundezas da sala de comando.

Omar Hawk deu uma estrondosa gargalhada, mas esta foi interrompida por uma voz áspera saída do alto-falante.

— Tenente Hawk, faça o favor de aproximar-se imediatamente da mesa dos mapas. — Vamos, Sherlock! — ordenou Omar. —Alguém houve por bem decidir que estamos

novamente em condições de entrar em ação. O okrill espirrou, mostrando que concordava com as palavras do dono. Se Omar esperava encontrar o Administrador-Geral em pessoa, ele teve uma

decepção. Havia um único homem junto à mesa dos mapas. Era John Marshall, chefe do exército dos mutantes e um telepata de grande capacidade.

Omar ficou em posição de sentido. — Tenente Hawk e o okrill apresentando-se, senhor. Marshall sorriu. — Alegro-me em vê-lo são e salvo, Hawk — apertou sua mão e apontou para uma

poltrona desocupada. — É uma poltrona especialmente feita para Kasom. Espero que agüente seu peso.

Omar deixou-se cair cuidadosamente na poltrona anatômica. O okrill sentou atrás dele e acompanhava atentamente tudo que se passava na sala de comando do ultracouraçado. Marshall afundou na poltrona ao lado.

Omar agradeceu e aceitou o cigarro que lhe foi oferecido. — Gostaria de dar algumas informações sobre aquilo que o senhor ainda não sabe,

porque estava deitado no tanque de plasma — principiou o telepata. — O senhor está informado sobre os acontecimentos que se verificaram até a conquista da estação do tempo e o vôo de reconhecimento pelo sistema de Vega que se seguiu a ela. Os resultados deste vôo foram negativos. Em outras palavras, não há mais ninguém no sistema de Vega, que fica a vinte e sete anos-luz da Terra. A transferência de quinhentos anos para o futuro livrou-nos da perseguição da frota de patrulhamento lemurense. Os homens que viviam nos caçando morreram há quase quinhentos anos. Não se sabe se ainda existe uma frota lemurense na galáxia. É possível que os halutenses tenham alcançado a vitória final. O fato é que deles também não foi encontrado o menor sinal. Destruíram o planeta Ferrol antes que penetrássemos no sistema, há quinhentos anos relativos. Ferrol ainda é um inferno radioativo. Quanto ao mais está tudo calmo.

O oxtornense sugou o cigarro. Parecia pensativo. — Não poderíamos usar a estação do tempo dos senhores da galáxia por nós

conquistada para regressar ao tempo real, senhor? John Marshall balançou a cabeça.

Page 189: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

189

— Não sei. Receio que não seja fácil. Mas aguardemos as notícias que o Administrador-Geral deverá trazer. Faz meia hora que desceu para as instalações subterrâneas da estação. Atlan também se encontra lá. O arcônida está no comando dos mil e quinhentos homens da Crest que foram destacados para vigiar as instalações.

Os dois ficaram calados por alguns minutos. Nestes minutos o quadro projetado na tela panorâmica mudou com uma rapidez assustadora. O céu mudou de cor, ficando preto. Vega transformou-se numa mancha de luz apagada. De repente alguns raios romperam a semi-escuridão. Os microfones externos transmitiram os ruídos da tormenta em volume reduzido. O rugido do trovão parecia um rufar de tambores.

— Sempre é assim? — perguntou Omar. Marshall fez um gesto afirmativo. — Furacões, trombas-d’água, trovoadas, vapores, lama, selva e vulcões — são as

principais características de Pigell. Anda devemos acrescentar uma gravidade de 1,22 gravos, 92 a 98 por cento de umidade absoluta do ar e uma temperatura média de 68 graus centígrados. Pelo que conheço de Oxtorne, isso deve ser uma verdadeira colônia de férias para o senhor...

— É um clima suave, feito para pessoas mimadas, senhor — respondeu Omar com um sorriso, entrando na brincadeira que não deixava de ter um fundo real. Em Oxtorne a temperatura oscilava entre cento e dez graus negativos e cento e dez graus positivos. John Marshall sabia disso. Participara da primeira missão confiada a Omar. Hawk pigarreou.

— Quer dizer que posso esperar que me confiem uma missão, senhor...? — perguntou em tom esperançoso.

— Suponho que sim — respondeu Marshall, para acrescentar em voz baixa: — Mas faço votos que não seja necessário realizar uma missão em Pigell...

* * *

A sala tinha exatamente quatrocentos metros de diâmetro e trezentos metros de

altura no ponto mais elevado do teto abaulado. Em princípio não havia nada que a distinguisse das outras três salas do mesmo tipo da estação do tempo. Só que as outras salas eram maiores.

Mas a sala em que se encontravam era mais importante. Nela estava guardado o transmissor temporal dos senhores da galáxia!

Perry Rhodan e Atlan estavam admirando as gigantescas máquinas, diante das quais se sentiam como anões. As máquinas estavam paradas e as luzes de controle se tinham apagado, mas há apenas dois dias tinham transferido o supercouraçado Crest III, com seus cinco mil tripulantes, quinhentos anos para o futuro relativista. Não se encontravam mais no ano 49.988, mas no ano 49.488 antes de Cristo...

Mas ainda estavam a cerca de 50.000 anos do tempo real. Perry Rhodan tirou os olhos das máquinas e passou a contemplar uma área circular

marcada em vermelho, que ficava no centro da sala do transmissor. A área tinha cento e cinqüenta metros de diâmetro. Era onde se realizavam as transferências no tempo de objetos cujas dimensões não excediam os limites do círculo de alerta vermelho. O campo zero absoluto fora especialmente criado para a Crest III acima da superfície do planeta.

O Administrador-Geral sentiu o olhar indagador de Atlan pousado nele. Virou o rosto. — Você pretende usar o transmissor para avançar mais um pedaço no futuro

relativista, não é mesmo...? — Isto o deixa espantado, Perry? — o arcônida abriu os braços. — As instalações que

se encontram aqui estão a nosso serviço. Ninguém nos pode impedir de fazê-las trabalhar para nós.

Rhodan deu uma risada irônica.

Page 190: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

190

— Nossa inteligência nos impedirá de fazer uma coisa dessas, amigo. Por enquanto não sabemos absolutamente nada sobre o princípio de funcionamento destas máquinas — Rhodan sacudiu violentamente a cabeça. — Não estou disposto a lançar um desafio para o destino quando isto não seja necessário. Para mim o fato de termos avançado quinhentos anos no futuro relativista e com isso termos afastado o perigo iminente de um ataque lemurense basta. Não podemos pensar nisso enquanto não soubermos o que está acontecendo na Terra — e enquanto nossos cientistas não tiverem descoberto o princípio de funcionamento do transmissor temporal.

Sacudiu o corpo e saiu caminhando para o poço bem iluminado do elevador de passageiros.

— Além disso as coisas foram fáceis demais, Atlan — disse Perry Rhodan enquanto os dois desciam lentamente. — Uma estação do tempo não pode cair em mãos estranhas sem causar prejuízo ao dono. Deve haver mais algum dispositivo de segurança que evita sua utilização por pessoas não autorizadas.

— Quem de nós é mais pessimista, Perry? Você ou eu? Sempre fui considerado um pessimista inveterado.

Rhodan deu uma risada. Parecia contrariado. — Confesso que muitas vezes tenho contestado suas previsões pessimistas, mas

infelizmente elas sempre se têm realizado. Que isto lhe sirva de lição para não cometer o mesmo erro.

— Você é uma mentalidade dialética! — disse Atlan em tom de deboche. Perry Rhodan não teve tempo para responder. O campo antigravitacional largou-os

suavemente no fundo do poço. Dois soldados espaciais fortemente armados ficaram em posição de sentido. Estavam vigiando a entrada para o transmissor em arco, que ficava embaixo do transmissor temporal, em uma das doze salas menores.

Um homem alto separou-se de um grupo que se encontrava mais nos fundos, colocando em posição dois canhões energéticos móveis. Rhodan reconheceu-o de longe. Não havia ninguém a bordo da Crest que possuísse estes traços marcantes, este nariz de águia e a pele moreno-avermelhada — ninguém a não ser o Major Don Redhorse, um cheiene.

Redhorse ficou em posição de sentido a exatamente três metros do Administrador-Geral.

Perry Rhodan ouviu pacientemente as informações de Redhorse. Conhecia os pontos fracos do major, e também seu lado forte. Mas apesar disso sentia-se satisfeito porque durante a missão que lhe fora confiada junto ao sol Redpoint ele lhe dera ordem para abandonar o estaleiro espacial MA-genial, juntamente com seu comando de vigilância, e retornar para a Crest. O estaleiro pertencente aos andarilhos foi destruído duas horas e meia depois, durante um ataque desfechado por naves lemurenses...

— Como estão as coisas por aí, Redhorse? — perguntou. — Será que com mil e quinhentos homens se poderá defender a estação, caso isso se

torne necessário? O cheiene sorriu cheio de si. — Podemos enfrentar qualquer inimigo, senhor. A estação do tempo está firmemente

em nossas mãos. Quero... — ...ser um mico, se um único inimigo puser os pés nela — completou Rhodan em

tom sarcástico. Redhorse calou-se e olhou para o chão. Parecia embaraçado. — Não quis ofendê-lo, major, mas não se esqueça de que sempre pode haver uma

surpresa. Devemos contar com qualquer eventualidade. Não podemos subestimar o inimigo.

Page 191: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

191

— Perfeitamente, senhor — respondeu o major em tom áspero. — Continue! — ordenou Rhodan. Redhorse retirou-se e Rhodan dirigiu-se ao arcônida. — Não tenho nada contra o major, inimigo. É um sujeito corajoso e leal. Mas às vezes

a ingenuidade herdada dos antepassados leva a melhor sobre ele. Quando isso acontece, ele se esquece que nem os inimigos lutam com lealdade e alguns não podem ser combatidos com armas físicas.

Atlan calou-se. Parecia que estava refletindo sobre um problema. Perry Rhodan não quis perturbá-lo e também ficou calado.

Só rompeu o silêncio quando entraram na sala em que estava instalado o transmissor em arco. Segurou o braço do lorde-almirante e girou-o para que ficasse de frente para o campo de materialização do transmissor.

— Olhe! — disse com os lábios semi-cerrados. — Você pode dizer que sou um pessimista, mas tenho medo do momento em que as colunas energéticas deste transmissor começarem a brilhar sem que façamos qualquer coisa. O que aparecerá quando isso acontecer? Fico me perguntando...

Segurou mais firmemente o braço do arcônida quando o ar tremeu no interior do campo de materialização, e uma figura se destacou no mesmo.

Atlan deu uma estrondosa gargalhada. Gucky, o rato-castor, olhou em volta, indignado, descobriu os dois homens — e

teleportou o resto do caminho. — Chefe! — piou com a voz estridente. — Os especialistas que foram explicitados já

chegaram ao primeiro conversor. Não sabem o que fazer. Lançou um olhar zangado para Atlan. — Está estranhando alguma coisa, lorde-almirante? Nunca viu um rato-castor? O arcônida abriu seu bloqueio mental por um instante. Gucky sorriu. Perry Rhodan não teve alternativa senão achar graça como os outros. Mas insistiu em

que fossem embora. O rato-castor teleportou-se à frente dos outros, enquanto os outros dois subiam de elevador ao andar de cima da estação de tempo.

Doze especialistas, todos eles engenheiros especializados em hiperenergia e condutores de campo, estavam à espera no conversor de energia solar. Rhodan deu ordem para que interrompessem o fornecimento de energia solar a todas as instalações mecânicas da base, agindo de tal forma que mais tarde esta medida de segurança pudesse ser anulada.

Feito isso, o Administrador-Geral despediu-se repentinamente de Atlan. — Você deu para ser muito cuidadoso, Perry — cochichou o arcônida. — Você acha

que alguém poderia mexer nas máquinas e provocar um processo incontrolável? — A gente nunca pode ter certeza! — respondeu Rhodan em tom ambíguo. Atlan deu de ombros. — Quer ir comigo? — perguntou Gucky. Perry Rhodan fez um gesto negativo. Decepcionado, o rato-castor teleportou-se de

volta para a Crest. No mesmo instante Rhodan arrependeu-se de sua recusa pouco amistosa. Mas não havia como mudar isso.

Tomou o elevador de passageiros e foi ao último pavimento situado embaixo da superfície. A porta que dava para o mundo situado na superfície estava sendo vigiada por soldados fortemente armados e dois robôs de guerra. Um dos robôs saiu correndo à frente de Rhodan e fez com que as placas blindadas de um metro de espessura da escotilha externa deslizassem para os lados. A escotilha interna ficava sempre aberta, a não ser numa situação de perigo iminente.

A tempestade entrou imediatamente pela abertura que se formara, tangendo a chuva, galhos e folhas.

Page 192: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

192

— Quer que alguém o acompanhe, senhor? — berrou o soldado, para fazer-se ouvir em meio ao barulho infernal.

— Não! — respondeu Rhodan. Fechou o capacete de seu uniforme de campanha e saiu para o inferno uivante. A

tempestade o sacudia, enquanto a chuva descia em catadupas. O caldo borbulhante que cobria o platô aberto a fogo pela Crest no meio da selva atingia seus tornozelos. Se não fosse a área infravermelha do visor de seu capacete, Rhodan provavelmente não teria encontrado a nave-capitânia. Mas com o equipamento que possuía via perfeitamente as luzes de posição infravermelhas do gigante no meio da chuva e da neblina. A coluna de sustentação mais próxima não ficava a mais de trinta metros. De repente ergueu-se que nem uma torre enorme à frente do Administrador-Geral. Um comando de robôs equipado com dois planadores antigravitacionais montava guarda ao lado dela.

Rhodan pretendia ir a pé, mas mudou de posição. Resolveu percorrer o resto do caminho num dos planadores. Afinal, a distância entre as colunas de sustentação externas e a eclusa inferior quase chegava a mil e quinhentos metros. Abriu a boca para dar uma ordem neste sentido ao robô, quando um ruído bem conhecido fez com que ficasse calado.

Ouvira perfeitamente o chicotear da descarga de uma arma energética em meio à tempestade.

Refletiu por um instante sobre quem poderia encontrar-se lá fora, em plena selva da Serra do Norte. Eram três ou quatro grupos de reconhecimento do destacamento especial de desembarque — e alguns exobiólogos...!

No mesmo instante Perry Rhodan ligou seu telecomunicador de capacete na freqüência da equipe de pesquisas.

Um vozerio inconfundível se fez ouvir no receptor. Eram gritos, pragas e uma mulher chorando. Uma voz de tenor sobressaía na confusão. Rhodan reconheceu esta voz. Pertencia a Algon Dankin, o exobiólogo da Crest. Ligou seu transmissor.

— Alô, Dankin! — gritou, tentando superar as outras vozes. — Perry Rhodan falando. O senhor me ouve?

Seguiu-se um instante de silêncio... Mas a potente voz de tenor de Dankin logo se fez ouvir. — Ouço-o perfeitamente, senhor. — O que houve? Precisa de ajuda? — Acho... acho que sim... — respondeu Dankin em tom hesitante. — O senhor acha? — respondeu Rhodan, aborrecido. — Poderia fazer o favor de

fornecer informações mais concretas? Quem andou atirando? Foi um dos senhores? — Foi o sargento Murching, senhor, que formava nossa escolta... Perry Rhodan voltou a ficar aborrecido. Por que Dankin se comportava como um

menino amedrontado? Isso não combinava com a personalidade do gigante epsalense! — Diga ao sargento Murching que responda ao meu chamado! — ordenou. — Alô,

Murching! Vamos! Fale! Murching ficou calado. Em compensação Algon Dankin voltou a falar. — Senhor...! — ouvia-se perfeitamente sua respiração profunda. — É uma história

esquisita. Não... não é que eu acredite em... bem, em fantasmas, mas esta nuvem que... Interrompeu-se. O grito estridente de uma mulher soou no rádio-capacete. Foi um

grito prolongado, que se interrompeu de repente quando atingiu os limites do ultrassom. Perry Rhodan não fez outras perguntas. Deu ordem para que Dankin ligasse

transmissor de raios goniométricos. Não esperou que a ordem fosse confirmada. Correu para perto de um dos planadores, deu algumas ordens aos dois robôs que montavam guarda no local e dali a instantes dois veículos rompiam a chuva e a tempestade, enquanto Rhodan requisitava mais um grupo de buscas da Crest.

Page 193: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

193

2 A tempestade terminou tão de repente como tinha começado. A chuva também

diminuiu. Em compensação camadas opacas de vapores e neblina cobriam a selva tépida. Bem ao longe gritavam os sáurios primitivos.

Os geradores antigravitacionais e os jatos que formavam o sistema de propulsão adicional trabalhavam a toda força. Perry Rhodan agarrava-se fortemente ao encosto do assento dianteiro. Deixou a pilotagem por conta do robô. A máquina orientava-se pelo sistema de visão infravermelha e pelo radar de laser muito melhor do que qualquer ser humano seria capaz. Era bem verdade que não demonstrava a menor consideração pela carga humana que estava transportando. Saltava abruptamente por cima das árvores gigantescas que sobressaíam na selva espessa ou as contornava em curvas fechadas.

Quando estavam quase chegando ao destino, um círculo de chamas ofuscantes passou por cima dos dois planadores. Era o carro voador do grupo de buscas. Tratava-se de um veículo muito mais veloz que os dois planadores antigravitacionais da guarda robotizada. Rhodan usou o rádio-capacete para dar mais algumas instruções aos homens que viajavam no carro voador, que logo passou por eles.

No momento em que os dois planadores chegaram ao destino, os relâmpagos de uma nova trovoada brilharam no horizonte invisível. Os veículos pousaram violentamente ao lado do carro voador, sem a menor consideração pelos galhos que se interpunham em seu caminho.

Perry Rhodan saltou do veículo. Havia seis homens fortemente armados, com uniformes de campanha, cercando um grupo de quatro pessoas, no qual se destacava a figura robusta do epsalense. Dois homens vieram correndo, carregando uma maca, e colocaram uma figura na mesma. Rhodan inclinou-se sobre esta figura e viu os cabelos compridos e o rosto de uma mulher através do visor.

Virou-se e atravessou o grupo de soldados. — Que houve? — perguntou em tom calmo. O epsalense parecia desolado. — Receio que não acredite em mim, senhor — disse sua voz retumbante no rádio-

capacete de Rhodan. — Vamos! Fale logo! — ordenou o Administrador-Geral. Continuava aborrecido,

embora bem no íntimo tivesse suas dúvidas de que realmente tivesse acontecido uma coisa que pudesse representar uma ameaça.

— Foi a nuvem, senhor... — principiou Algon Dankin, mas logo se interrompeu. Mas acabou prosseguindo em tom resoluto: — No início teve-se a impressão de que era uma névoa, senhor. Mas a forma deixou-me intrigado. Os contornos mudavam constantemente, mas em geral conservava a forma oval ou esférica. Além disso emitia um brilho azulado toda vez que um raio atingia alguma coisa perto dela. Mas o mais estranho foi que todo mundo ficou bastante deprimido. Quando nos demos conta de que todos sentiam a mesma coisa, o sargento Murching entrou em ação... — o epsalense engoliu fortemente em seco. — Disparou a carabina energética contra a... a nuvem. — Dankin concluiu com a voz apagada: — Foi quando a nuvem desceu sobre ele... e o engoliu.

Perry Rhodan pôs-se a refletir. — Como foi que o senhor notou que a nuvem engoliu o sargento? — perguntou em

tom enfático. Algon Dankin voltou a engolir em seco. — Nós o vimos parado dentro da nuvem, senhor. O fato é que não se tratava de uma

nuvem tão densa como uma névoa. De repente Murching não estava mais lá.

Page 194: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

194

Rhodan fez um esforço de reflexão. A história não parecia nada convincente. No entanto, ele já vira muita coisa que qualquer cérebro humano se recusaria a compreender. Isto o levou a por enquanto dar crédito ao relato de Dankin.

— Por que a mulher voltou a gritar quando entrei em contato com o senhor? — A nuvem nos seguiu — respondeu o exobiólogo. — Miss Laugan foi tocada pela

borda da... da coisa e sofreu um colapso nervoso. Neste instante a nuvem-fantasma afastou-se de repente.

Rhodan sorriu debochado ao ouvir a expressão nuvem-fantasma. Mas o nome inventado por Algon Dankin passaria a fazer parte do vocabulário dos tripulantes da Crest.

— Entre no carro voador! — disse. — A bordo da Crest discutiremos o assunto. Entrou no veículo depois do exobiólogo. Deu ordem para que os seis soldados

espaciais voltassem nos planadores antigravitacionais. Dali a dez minutos a gigantesca esfera formada pelo ultracouraçado surgiu em meio à

bruma. Era bem verdade que a olho nu, sem o uso de qualquer recurso técnico, só se via uma semi-esfera que parecia boiar na neblina. Antes que o carro voador atingisse a eclusa de veículos, desabou a tormenta. Os raios que caíam na selva até pareciam salvas de tiros energéticos e o furacão fez girar o carro voador como se fosse uma folha murcha. O piloto teve de desligar a propulsão antigravitacional, mas contra a força do jato-propulsor até mesmo a tormenta foi impotente, embora as chamas saídas dos bocais de jato empalidecessem diante dos relâmpagos.

Só mesmo depois que a pesada escotilha da eclusa de veículos se fechou é que os homens foram isolados do inferno desencadeado pela natureza. O silêncio reinante no hangar quase chegava a ser deprimente. O piloto usou o rádio para chamar dois medo-robôs, que levaram o cientista inconsciente à clínica.

Perry Rhodan pediu aos outros quatro biólogos que o acompanhassem até a sala dos oficiais. Uma vez lá, chamou John Marshall pelo rádio, pedindo que também comparecesse, e que trouxesse o matemático-chefe, Dr. Hong Kao. Na oportunidade ficou sabendo que o Tenente Hawk já estava novamente em condições de entrar em ação. Rhodan refletiu um instante e pediu que o oxtornense também comparecesse à sua presença.

Cumprimentou Omar Hawk, que trouxe seu okrill, e felicitou-o por sua recente promoção. Depois deu ordem para que o robô servisse café e cigarros. Aos poucos os biólogos foram se acalmando.

— Então... — principiou Rhodan, examinando os rostos dos presentes. — Faça o favor de repetir o que me contou, Professor Dankin.

A voz de Algon Dankin era bem mais calma. Suas palavras foram gravadas numa espula magnética. O epsalense não disse nada além do que já tinha contado. Assim que concluiu, o Administrador pediu aos outros três membros da equipe de exploração que apontassem eventuais omissões. Não houve nenhuma novidade importante.

— Muito obrigado — disse Perry Rhodan. — Podem voltar aos seus alojamentos. O Dr. Hong, o Tenente Hawk e Mr. Marshall ficarão aqui.

Quando já se encontrava na porta, Dankin voltou mais uma vez o rosto. — O que será do sargento, senhor...? Rhodan sorriu. — Enviei três carros voadores, professor. Não tenha a menor dúvida de que

continuaremos a cuidar do assunto. Desligou a espula e dirigiu-se ao matemático-chefe. — Sabemos que seu pensamento segue as trilhas lógicas de um computador

positrônico, Hong. Qual é sua opinião? Hong Kao exibiu seu misterioso sorriso asiático. O pequeno ser gozava da fama de

surpreender os outros com suas teorias arrojadas. Também desta vez fez jus a esta fama.

Page 195: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

195

— Uma pessoa que desaparece de um instante para outro é um teleportador ou então foi teleportada, senhor...

Se estas palavras deixaram Rhodan surpreso, ele não o mostrou. Limitou-se a cruzar os braços sobre o peito e lançar um olhar para John Marshall.

Além de ser um ótimo telepata, Marshall possuía um volume tão grande de experiências quanto o Administrador-Geral. Os dois já se conheciam quando o Império Solar ainda não passava de um sonho, e o poder de Rhodan só se estendia a alguns metros quadrados do deserto de Gobi. Os dois tinham trabalhado lado a lado na construção do império cósmico. Há mais de quatrocentos anos terranos tinham ido juntos pela primeira vez ao sistema de Vega, e a partir de lá seguiram a pista que atravessa o tempo e o espaço, pista esta que os levou ao superespírito imortal, que também lhes concedera a imortalidade relativa. Ninguém melhor que John Marshall para formar um juízo objetivo sobre a hipótese fantástica do matemático.

Mas o chefe do Exército de Mutantes hesitou ligeiramente antes de começar a falar. A teoria de Hong é muito arrojada — disse um tanto perplexo, para prosseguir em voz

mais alta. — Conhecemos o sistema de Vega melhor que qualquer outro. As pesquisas realizadas em quatro séculos revelaram que em Pigell só existem sáurios primitivos, sem inteligência, além de uma fauna extremamente agressiva. É bem verdade que nossos conhecimentos dizem respeito ao tempo real, mas para a evolução natural cinqüenta mil anos não representam muita coisa. Além disso o sexto planeta de Vega atualmente causa a mesma impressão que colhemos no tempo real.

Marshall calou-se. Tomou um gole de café. Finalmente abanou a cabeça. — Aquilo que Dankin e seus companheiros viram não pertence a este mundo — disse

num tom que quase chegava a ser violento. — Uma névoa de fantasmas, que desmaterializa as pessoas e as faz desaparecer. Será que existem transmissores fictícios orgânicos...?

Hong Kao soltou ruidosamente o ar entre os dentes. — Transmissores fictícios...! É uma definição que estou procurando há algum tempo! Passou a mão pelo cabelo negro muito liso. — Tenho certeza, senhor — disse, dirigindo-se a Rhodan — de que meu... bem, de que

nosso centro de computação positrônica formularia a mesma hipótese, se fosse alimentado com os dados de que dispomos.

Um sorriso ligeiro apareceu no rosto de Perry Rhodan. — Tenente Hawk...? Omar levantou os olhos. Seu rosto parecia tenso. Refletia para encontrar um meio de

arranjar uma cadeira capaz de suportar o peso de seu corpo. Mantivera-se apoiado nas pernas, embora em posição sentada.

John Marshall descobriu os pensamentos do oxtornense. Deu ordem para que os robôs de serviço trouxessem a poltrona de terconite que Melbar Kasom costumava usar quando se encontrava na sala dos oficiais.

Omar Hawk sentou e ficou mais descontraído. — Existem telepatas, teleportadores e telecinetas orgânicos, senhor. Por que não

haveria transmissores fictícios orgânicos...? Rhodan franziu a testa. — Será que o senhor não está simplificando demais as coisas, Hawk? O oxtornense sacudiu a cabeça calva. — De forma alguma, senhor. Marshall está informado sobre a ação que desenvolvi em

Maarn. Sabe que na oportunidade lidei com coisas parecidas, só que elas se manifestaram de forma diferente.

Rhodan olhou para Marshall e este fez um gesto afirmativo.

Page 196: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

196

— Quer dizer que se trata de um ser que assume a forma de uma névoa e é capaz de transportar outros seres de um lugar para outro, usando a força de seu espírito — disse o Administrador-Geral como quem pensa em voz alta. — Trata-se de um ser que daqui a cinqüenta mil anos não existirá mais, senão nossos pesquisadores o teriam encontrado no tempo real...

Seu rosto transformou-se numa máscara impenetrável, o que acontecia toda vez que tomava uma decisão importante.

— John, o senhor continuará a substituir-me a bordo. Dê o alarme de terceiro grau e informe o Lorde-Almirante Atlan sobre os acontecimentos mais recentes. As viagens das corvetas, que tinham sido planejadas, ficam suspensas por enquanto. O Tenente Hawk e eu daremos uma olhada lá fora. Faça o favor de avisar também o Professor Dankin e Melbar Kasom. Peça que nos esperem na eclusa B-IV, com o equipamento de combate completo. Mais alguma pergunta?

John Marshall não tinha mais nenhuma pergunta. Mais precisamente, não tinha nenhuma pergunta para a qual pudesse esperar uma resposta.

* * *

Perto do ertrusiano, do epsalense e do oxtornense Perry Rhodan até parecia um anão

magro. Melbar Kasom, um indivíduo adaptado ao ambiente natural de Ertrus tinha 2,51 metros de altura e 2,13 metros de largura nos ombros. Uma faixa de cabelo corria da testa até a nuca maciça, atravessando o crânio brilhante marrom-avermelhado. O epsalense Algon Dankin só tinha 1,60 metro de altura, e a mesma largura. Já a constituição especial de Omar Hawk não chamava tanto a atenção. O oxtornense não era muito mais alto que Rhodan, mas era bem mais largo e robusto. Mas excedia de longe tanto Kasom como Dankin no que dizia respeito à robustez, à capacidade de adaptação e à força dos músculos. Era o único dos três indivíduos adaptados ao ambiente que não precisava de um microgravitador para locomover-se.

Algon Dankin lançou um olhar desconfiado para o okrill, que arranhava impacientemente o chão com suas garras, cavando sulcos profundos no chão de metal plastificado.

Omar Hawk notou o olhar e sorriu. — Não se preocupe, professor, ele não morde... — Dankin respirou aliviado. — Só

arremessa cargas elétricas contra os outros — prosseguiu Hawk com a maior calma. Até parecia que Sherlock compreendera as palavras do dono. Fez avançar a língua

vários metros. Um raio fulgurante apareceu no lugar em que ela tocou o chão. Sentiu-se o cheiro do revestimento do piso queimado.

O oxtornense bateu no focinho largo do animal para acalmá-lo. — Hi, Sherlock! Não precisa fazer isso para esta gente acreditar em mim. Melbar Kasom soltou uma estrondosa gargalhada. O rosto de Perry Rhodan desfigurou-se numa expressão dolorosa. — Os senhores bem que poderiam soltar seus demônios lá fora. Nosso carro voador

está chegando. Apontou para o grande blindado voador que se aproximava ruidosamente sobre as

pesadas correntes-guia e parou com um ruído estridente. Os homens entraram em silêncio. Kasom, Hawk e Dankin acomodaram-se no

compartimento de carga juntamente com o okrill. Rhodan foi o único que subiu à carlinga para fornecer os dados sobre a rota ao piloto.

Dali a pouco o veículo versátil voltou a movimentar-se. Mal atravessou a eclusa, foi atingido pela tempestade. Os homens que se encontravam no compartimento de carga

Page 197: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

197

tiveram de segurar-se. Os assobios, uivos e estrondos atravessavam as paredes de terconite. De vez em quando um galho levantado pela tempestade batia ruidosamente no veículo. A única tela de observação exterior mostrava um turbilhão de água, vapores e pedaços de plantas.

Algon Dankin tentou entabular uma conversa, mas esta não foi adiante. Estavam todos absortos em seus pensamentos. Sentiam-se dominados pela curiosidade. Mas por enquanto só podiam ficar quietos. Ouviram-se pedaços de uma palestra pelo telecomunicador, vindos da carlinga do piloto. Devia ser o Administrador-Geral falando com os três grupos de busca, que estavam à procura do sargento. Omar deu de ombros, num gesto de resignação. Sabia que mesmo para alguns grupos muito equipados não havia praticamente nenhuma chance de encontrar um homem isolado naquele inferno de neblina fustigado pela tempestade. As buscas poderiam prolongar-se por vários dias, a não ser que o sargento estivesse em condições de usar o telecomunicador.

Omar calculou pela posição da mancha apagada que era o sol Vega que horas deviam ser mais ou menos. Pigell levava 42,6 horas para completar um movimento de rotação em torno do próprio eixo. Faltava cerca de um terço de dia para anoitecer, ou seja, pouco mais de sete horas. Depois disso não se reconheceria mais nada a olho nu. Durante a noite reinava uma escuridão absoluta em Pigell. A luz das estrelas não conseguia romper as diversas camadas de nuvens e bruma que envolviam o planeta.

A ordem dada por Rhodan foi precedida de um estalo do alto-falante da nave. — Faça o favor de comparecer à carlinga, Professor Dankin. O exobiólogo teve o cuidado de desligar o microgravitador antes de usar a escada de

aspecto frágil. Desta forma recuperava seu peso normal em Pigell, quando geralmente preferia viver sob a gravitação terrível de Epsal. Assim mesmo os degraus da escada vergaram perigosamente.

Melbar Kasom sorriu discretamente. — Os cosmogeneticistas transformaram-nos em homens de peso, oxtornense...! — Foi uma necessidade — respondeu Hawk laconicamente. Teve de lembrar-se do

exasperado conflito de gerações que houvera em seu mundo. A terceira geração, que ainda não se adaptara completamente ao ambiente, naturalmente teria de ser um fator de perturbação para a quarta geração, cem por cento adaptada. A legislação extremamente rigorosa e os tabus reinavam em Oxtorne, antes que as novas idéias conseguissem impor-se.

Hawk interrompeu suas reflexões quando o carro voador inclinou-se para a frente e dali a instantes tocou ruidosamente o chão.

O Administrador-Geral desceu pela escada. — Chegamos, minha gente. Aqui fica a árvore que o sargento Murching queimou ao

atirar na nuvem-fantasma — passou a dirigir-se a Hawk. — Será que seu okrill é capaz de fazer a reconstituição dos acontecimentos?

— Se houver rastros infravermelhos, sim, apesar das constantes trovoadas, que naturalmente desmancham os traços mais depressa que num mundo mais calmo.

Levantou-se e assobiou para o animal. O okrill seguiu-o para a eclusa de bombordo. Arrastava os pés, dando a impressão de que cada passo lhe exigia um tremendo esforço. Mas era uma impressão enganadora.

A escotilha externa abriu-se e uma torrente de água bateu ruidosamente no rosto de Omar. O carro voador estava pousado obliquamente sobre uma árvore derrubada pela tempestade. As pancadas de chuva passavam quase horizontalmente em cima dele. Via-se uma luminosidade indefinida na semi-escuridão. Talvez fosse uma trovoada distante. No lugar em que se encontravam a tormenta passara. As pancadas de chuva eram apenas o resto da última trovoada — ou então já anunciavam a próxima.

Page 198: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

198

O tenente colocou os óculos infravermelhos. O capacete estava aberto. Sentia-se satisfeito por poder respirar ar puro. O vento e a chuva torrencial não o incomodavam, ou ao menos não o incomodavam mais do que uma garoa incomodaria um terrano.

Um galho tangido pelo vento caiu ruidosamente perto dele. O tenente empurrou-o com o pé e ligou o farol que trazia sobre o peito para o infravermelho. Teve o cuidado de baixar a luz, para não interferir no faro de Sherlock. Depois disso passou a concentrar-se no mento-contato. Tratava-se de um pequeno aparelho, construído segundo uma técnica arcônida, que absorvia um comando não expresso em palavras e o transmitia a um receptor e amplificador de ondas cerebrais regulado na mesma freqüência. No mesmo instante a percepção infravermelha que estava sendo irradiada por um aparelho do mesmo tipo instalado no cérebro de Sherlock apareceu diante dos olhos de seu espírito.

“Viu” aquilo que acontecera horas antes. Quatro homens e uma mulher abriam caminho na selva, usando os chamados machados energéticos. A figura de um soldado espacial apareceu alguns metros atrás deles. Só podia ser o sargento Murching.

Omar Hawk transmitiu suas percepções indiretas através do microfone implantado na laringe. Perry Rhodan as recebia pelo telecomunicador acoplado com seu capacete. O Administrador-Geral fora obrigado a fechar o capacete, pois a temperatura exterior chegava a oitenta e um graus centígrados.

De repente o oxtornense aspirou fortemente o ar. Uma névoa em convulsões aparecera à frente dos cinco exobiólogos. Notava-se à primeira vista que não era uma névoa igual a qualquer outra. A nuvem destacava-se pela palidez diante das brumas muito mais compactas exaladas pela selva, que quase chegavam a ter um aspecto viscoso. Neste instante Omar Hawk descobriu uma coisa que os biólogos certamente não tinham visto. Só mesmo os grandes olhos facetados do okrill, cada um formado por cerca de 80.000 olhos reunidos, possuíam um poder de resolução que lhes permitia distinguir certos detalhes em meio à massa nebulosa.

Para o centro de percepção de Sherlock a nuvem-fantasma era formada por inúmeros grãozinhos, dos quais partia uma rede trançada de fios finíssimos. A estranha estrutura estava em contínua agitação. Quando os relâmpagos da trovoada que desabara horas atrás atingiam o chão nas proximidades, uma luminosidade bruxuleante azul-pálida saía do estranho ser. Até pareciam os reflexos dos relâmpagos no horizonte.

Para Omar o presente mergulhou no esquecimento. Sem dizer uma palavra, observava os biólogos que contemplavam a nuvem — ou melhor, que a tinham contemplado horas atrás...

O soldado da escolta foi chegando mais perto. Conversava com os cientistas a respeito do estranho fenômeno. Naturalmente o okrill não era capaz de reconstituir os sons. Tudo se passou num silêncio de fantasma.

Via-se pelos gestos das pessoas que elas se queixavam de dores de cabeça. De repente o soldado levantou a carabina energética — e uma trilha fulgurante

atravessou a figura fantasmagórica. Omar contemplou ansiosamente a nuvem-fantasma, que ficou imóvel por alguns

segundos. A brecha aberta pelo tiro energético no estranho organismo aparecia nitidamente — pelo menos aos olhos de Sherlock. A nuvem voltou a movimentar-se com uma incrível rapidez. Envolveu o soldado, antes que este tivesse tempo de apertar novamente o botão acionador de sua arma.

O sargento desapareceu numa rápida luminosidade. A mente de Omar levou algum tempo para voltar ao Presente. A voz de Rhodan, que

atingia seu ouvido, parecia vir de bem longe. — O senhor não está dizendo mais nada, Hawk. Que houve? Está vendo alguma coisa?

Page 199: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

199

Omar engoliu em seco. Continuou seu relato no ponto em que os acontecimentos o fizeram ficar calado. O Administrador-Geral ouviu-o em silêncio. Algon Dankin tentou falar várias vezes, mas o gesto enérgico de Rhodan fez com que se calasse.

Quando Omar terminou seu relato, Rhodan pigarreou fortemente. Mas sua voz parecia embaraçada.

— Muito bem, professor! — disse, dirigindo-se a Algon Dankin. — Pode expor sua teoria.

O epsalense não se fez de rogado. — As palavras do Tenente Hawk lançam uma nova luz sobre a história, senhor! —

exclamou, exaltado. — Não se trata de uma neblina, mas de um organismo vivo como qualquer outro.

— Um organismo como qualquer outro...? — perguntou Kasom, irônico. — Isso mesmo! — fungou Dankin. — Tenho certeza de que os grãozinhos a que Hawk

se referiu são células orgânicas, ligadas pelos filamentos. A única diferença é que, ao contrário dos organismos que conhecemos, as células ficam afastadas uma da outra. Desta forma a olho nu só se consegue ver uma reunião de alguns bilhões delas, e isto mesmo em forma de névoa. Minha opinião é esta, senhor.

— Como uma névoa bem vaga... — acrescentou Melbar Kasom. Os outros fitaram-no espantados. Kasom apontou para a floresta que ficava do outro

lado de um pântano borbulhante. Omar Hawk virou-se abruptamente. Chegou à conclusão de que a nuvem que se aproximava devagar nem seria perceptível

a olho nu. Só aparecia nos dispositivos óticos infravermelhos em forma de um quadro fantasmagórico. Os biólogos que se tinham defrontado com este tipo de nuvem também usavam óculos infravermelhos...

O epsalense ficou preocupado. — Vamos voltar para o carro, senhor! — disse em tom insistente. — Esperemos! — disse Rhodan, calmo. — O relato de Hawk — e as informações

fornecidas pelo senhor — deixaram claro que a nuvem-fantasma só toma atitudes agressivas quando é atacada. Por favor, deixem suas armas onde estão.

A nuvem mudou de forma, transformando-se num ovo alongado, desceu mais e passou rente à faixa pantanosa. A neblina natural parecia afastar-se à sua passagem.

Algon Dankin soltou um gemido quando a nuvem-fantasma parou a uns dez metros do lugar em que se encontravam.

O que veio depois foi tão rápido que mais tarde os espectadores que não participaram dos acontecimentos teriam dificuldade em reconstituir os detalhes.

De repente o okrill soltou um chiado. Deu um salto para dentro da nuvem e mergulhou nela. Omar Hawk gritou uma ordem e saiu correndo atrás do animal. Antes que atingisse a nuvem, Perry Rhodan apareceu a seu lado. Ligara seu campo energético e o sistema individual de propulsão antigravitacional. Provavelmente queria deter Hawk.

De repente os dois foram envolvidos por uma coisa invisível. O chiado do okrill vinha de bem perto. O rugido do propulsor do carro voador vinha do lado de fora. Melbar Kasom gritou algumas palavras que eles não entenderam.

No mesmo instante os gritos de Kasom e o ruído do motor foram interrompidos...

Page 200: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

200

3 Os chiados de Sherlock foram abafados pelo bramido surdo dos animais primitivos.

Omar Hawk bateu numa coisa dura, agarrou-se a ela e olhou em volta. Perry Rhodan estava a seu lado, imóvel e envolto pelo campo energético gerado por

seu traje de combate. O okrill encontrava-se a três metros dele, agachado sobre uma rocha fumegante coberta de musgo. Havia outras rochas semelhantes, e Hawk notou que estava agarrado a uma delas. Névoas leitosas subiam rastejantes das florestas que ficavam mais embaixo e subiam em direção à colina pedregosa.

Não se via sinal da nuvem-fantasma — nem do carro voador, de Melbar Kasom ou do Professor Dankin...

O campo energético de Rhodan apagou-se. O Administrador-Geral pôs a mão no capacete e mexeu na tecla de regulagem do

telecomunicador. Passou-se um minuto, durante o qual os lábios de Rhodan se moviam. Suas palavras soaram muito alto aos ouvidos de Omar. O rádio-capacete estava funcionando com o volume máximo.

Mais um minuto se passou numa expectativa muda. Depois disso Perry Rhodan voltou a pôr a mão na tecla de regulagem. Sua voz voltou ao volume normal.

— Nada! — disse. — Estamos muito longe dos outros... Omar lançou um olhar para Sherlock, que corria de um lado para outro, fungando.

Certamente farejava as emanações dos sáurios, que não paravam de berrar. — Quieto, Sherlock! — ordenou o oxtornense. O animal calou-se no mesmo instante. Saiu arrastando os pés para perto do dono e

levantou o crânio anguloso. — Fico me perguntando se isso foi uma reação bem calculada da nuvem-fantasma —

disse Omar, dirigindo-se ao Administrador-Geral. Perry Rhodan deu uma risada. Parecia zangado. — Não sei. Mas o fato é que ela não nos quis perto dela, Hawk. Se os comandos que

saírem à nossa procura não nos encontrarem... Não completou a frase. — A única coisa que temos de fazer é caminhar até que consigamos comunicar-nos

com nosso pessoal pelos rádio-capacetes, senhor! — observou Hawk, espantado. — Mas é claro! — exclamou Rhodan. — O senhor não conhece Pigell. É bom que saiba

uma coisa. Neste mundo não existe nenhum continente. Há umas quatrocentas ilhas maiores, separadas pelo oceano pantanoso. Nenhuma das ilhas é maior que o alcance de um telecomunicador de capacete. Logo, o transmissor fictício vivo largou-nos num continente-ilha desconhecido. A pé nunca chegaremos em casa.

O oxtornense apontou para o equipamento que Rhodan trazia nas costas. — Conheço este tipo de traje de combate, senhor. Com ele o senhor poderá dar duas

voltas em torno do planeta. Permita que faça uma sugestão. Volte à Crest e peça que mandem um carro voador ou outro veículo.

— É uma excelente sugestão, Hawk — respondeu Perry Rhodan em voz baixa. — Infelizmente não pode ser posta em prática. O controle de meu micro-equipamento está no vermelho. Sabe o que significa isto?

— Está sem energia, senhor...? — perguntou Omar em tom de incredulidade. — Acho que é isso mesmo. Quer dar uma olhada? Omar colocou-se atrás do

Administrador-Geral e examinou o banco energético do equipamento de vôo.

Page 201: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

201

— Está sem energia! — comentou em tom lacônico. — O conjunto autônomo que alimenta o traje de combate é o único que ainda está produzindo eletricidade.

— Até mesmo este está funcionando com um volume mínimo de energia, Hawk. Tenho a impressão de que esta nuvem-fantasma simplesmente retirou do banco energético toda a energia que poderia ser usada na teleportação.

— É possível — confirmou Hawk. — Afinal, ela tem de tirar sua energia de qualquer lugar. Nenhum ser vivo é capaz de desenvolver paraforças sem uma fonte de energia externa. Geralmente retira sua energia de algum hiperfluxo. Mas tenho a impressão de que é mais fácil tirar a energia de uma fonte situada no conjunto espácio-temporal da quarta dimensão.

— Deve ter sido porque o micro conjunto estava ligado — disse Rhodan em tom pensativo. Mas acabou fazendo um gesto enérgico de pouco-caso. — As discussões teóricas não nos levarão a nada. Só nos restam duas alternativas. Podemos esperar até que nossos impulsos goniométricos sejam detectados por um dos grupos de busca, ou então procurar uma faixa de terra que una esta ilha às outras. Mas acho que seria uma tentativa inútil.

Omar pôs-se a refletir. — Em minha opinião deveríamos procurar uma passagem, senhor — concluiu depois

de algum tempo. — Seus conhecimentos a respeito de Pigell vêm de um futuro distante. Quem sabe se cerca de cinqüenta mil anos antes do momento de referência as coisas não são bem diferentes?

Perry Rhodan sorriu numa expressão de reconhecimento. — Receio que sofra uma decepção, Hawk, mas também acho que não devemos ficar

inativos. Tomara que a nuvem transmissora não nos tenha transportado para o sul, além do equador. Só podemos seguir para o norte, orientando-nos pela bússola. Se estivermos ao sul do equador...

Omar sacudiu a cabeça e apontou para a mancha luminosa apagada que aparecia no céu nublado.

— Vega encontra-se novamente no apogeu. Quando estávamos perto da Crest, já estava percorrendo o último terço de sua trajetória, senhor. Pelos meus cálculos devemos seguir para o leste-nordeste.

Rhodan cedeu a um impulso, batendo em seu ombro. — Muito obrigado, Hawk. Já tenho certeza de que não caminharemos na direção

errada. Vamos embora! Omar Hawk assobiou para chamar o okrill e recomendou que ficasse bem atento.

Mandou que o animal seguisse na frente. — Caso não tenha nenhuma objeção ficarei na retaguarda, senhor — disse. — A única

coisa que terá de fazer é seguir Sherlock, que não se afastará da direção que eu lhe indiquei. O Administrador-Geral fez um gesto de assentimento. Já não tinha a menor dúvida de

que perto deste homem competente e destemido nada de grave lhes aconteceria. Pensou assim até o momento em que encontraram os restos mortais de um ser

humano...!

* * *

O okrill corria algumas centenas de metros à frente do grupo e acabara de desaparecer numa depressão. Omar Hawk achou preferível não chamá-lo de volta. Não podiam errar o caminho, e o animal nunca se afastaria tanto que não pudesse estar de volta num instante, caso isso se tornasse necessário.

De repente uma sombra preto-azulada saiu da depressão. Passou pelo Administrador-Geral, que levou um susto, e foi parar bem à frente de Omar.

Page 202: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

202

Omar apoiou instintivamente a arma energética superpesada na curva do cotovelo. Sherlock abriu a boca e deixou sair um pedaço da língua vermelha brilhante. Um

rugido surdo saiu de sua goela fumegante. O rosto de Omar assumiu uma expressão dura. — Vamos em frente, Sherlock! — disse em tom enérgico. Com apenas dois saltos colocou-se ao lado de Rhodan e informou-o de que o okrill

descobrira uma coisa perigosa na depressão. Rhodan compreendeu a pergunta que não chegara a ser formulada. Sorriu, mostrando que estava de acordo.

— Vá para lá, Hawk. Saberei cuidar de mim. O oxtornense não perdeu tempo. Saiu correndo tão depressa atrás da fera

domesticada que Perry Rhodan mal conseguiu segui-lo com os olhos. Na depressão reinava uma escuridão quase completa. As florestas que cresciam nas

encostas não deixavam entrar a luz mortiça do sol. Pequenas figuras negras deslizavam pelas fraldas pedregosas. Deviam ser répteis. Ruídos surdos e roucos se faziam ouvir nas copas das árvores.

Omar literalmente saiu voando. Era um indivíduo adaptado a um planeta com uma gravitação de 4,8 gravos, e por isso a gravitação relativamente reduzida de Pigell permitia que desse saltos de dezoito metros. Mas apesar disso Sherlock teve uma boa dianteira. A vegetação rasteira que ficava à esquerda estalou, dando a impressão de que havia um animal fugindo. Omar não se preocupou com isso. Enquanto o okrill não parasse, não havia um perigo iminente.

Dali a pouco o animal soltou um chiado que parecia anunciar um perigo. No fundo da depressão havia um monstro gigantesco. Era um parente afastado do tiranossáurio terrano. O crânio em cunha movimentava-se rapidamente de um lado para outro, enquanto as pesadas placas ósseas das costas estavam bem em pé. As pernas dianteiras batiam na lama, enquanto os olhos pequenos ficavam presos no okrill.

— É um gigante, mas não passa de um vegetariano inofensivo — mas o animal interpunha-se em seu caminho e interpretava a aproximação das duas pequenas criaturas como um ato de hostilidade.

O okrill provou mais uma vez que era capaz de adaptar sua tática às mais diversas situações. Limitou-se a aplicar um pequeno choque elétrico no sáurio. O monstro saltou com as quatro pernas ao mesmo tempo, soltou um berro apavorante e saiu correndo com um grande estrondo.

Sherlock percorreu mais cem metros e parou de vez. Passou a andar mais devagar, dobrou para o lado e ficou parado entre dois blocos de pedra que tinham rolado pela encosta.

Omar Hawk foi para perto dele. O lugar em que se encontrava ficava na sombra. Teve de ligar a lâmpada infravermelha para enxergar alguma coisa. Mas quando viu o que Sherlock tinha descoberto levou um susto.

Não sobrava quase nada do homem que jazia ali. Mas o material do conjunto-uniforme de batalha resistira relativamente bem aos dentes e às garras da fera que o matara. Só havia um grande rasgão do lado, que estava sujo de sangue. O que havia dentro do conjunto-uniforme estava espalhado pelo chão.

Omar fez um grande esforço para controlar-se e reprimiu o enjôo. — Volte, Sherlock! — disse com a voz embargada. — Traga amigo! O okrill compreendeu a ordem. Virou-se instantaneamente e voltou correndo pelo

caminho pelo qual tinham vindo. Quando teve certeza de que Perry Rhodan estava em segurança, o tenente pôs-se a

examinar os arredores do campo de batalha. Atrás da pedra que ficava à sua direita havia uma faca ensangüentada, do tipo que os soldados espaciais costumam levar no bolso da

Page 203: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

203

calça. Encontrou a carabina energética do morto mais em cima. Um tanto pensativo, afastou a pedra que cobria a arma, pegou esta e voltou para junto do morto.

Não esperou muito. Dentro de alguns minutos o Administrador-Geral saiu fungando da escuridão, seguido de perto pelo okrill.

— Graças a Deus! — exclamou Rhodan ao ver Omar. — Pensei que tivesse acontecido alguma coisa com o senhor.

Omar olhou atentamente para Rhodan. Notou que estava exausto. Uma gravitação de 1,22 gravos já causava sofrimentos a um terrano. “Ainda bem que pelo menos o equipamento de climatização de seu traje está funcionando!”, pensou Omar.

— Sinto muito, senhor — respondeu. — Resolvi mandar Sherlock ao seu encontro. Deu um passo para o lado, para que Rhodan visse o morto. O Administrador-Geral ficou estarrecido, mas logo recuperou o autocontrole. Um

homem como ele devia ser capaz de encarar a morte frente a frente, senão não poderia cumprir sua missão.

— Conseguiu... identificá-lo? Só então Omar abriu o traje espacial. Afastou o capacete despedaçado e pôs o dedo no

botão que desligava o fecho eletromagnético. Estava com os lábios pálidos quando pegou a plaqueta vermelho-brilhante, retirando-a juntamente com o cordão rasgado.

— SOC-RLK/4./22. — leu. Perry Rhodan acenou com a cabeça. Havia uma expressão sombria em seu rosto. — Este homem pertencia às tropas de desembarque da Crest. Só pode ser o sargento

Murching. A nuvem-fantasma teleportou-o para este continente, e ele teve a mesma idéia que nós. Hawk! Faça o favor de verificar o magazin.

Omar pegou a carabina energética, abriu a tampa de controle e leu o nível de carga. — Faltam cerca de oito por cento, senhor... — Hum! — fez Rhodan, pensativo. — Quem quer que saia de bordo para participar de

uma ação-comando deve ter uma carga completa na arma. Supondo que Murching realmente só tenha atirado uma única vez contra a nuvem-fantasma...

— Só atirou uma vez, senhor! — confirmou Omar. — Vi perfeitamente pelos olhos de Sherlock.

— Neste caso — prosseguiu o Administrador-Geral — deve ter atirado pelo menos durante um minuto, provavelmente aqui, quando foi atacado pelas feras. Por que não há nenhum animal morto? Afinal, a carabina energética não é uma arma de brinquedo.

Omar era da mesma opinião. Ativou resolutamente o mento-contato, concentrando-se numa palavra-chave.

— Procure, Sherlock! — disse num cochicho. Seu consciente mergulhou no passado. Suas percepções eram estranhas, uma vez que

eram transmitidas pelos órgãos dos sentidos do okrill. Mas Hawk já estava acostumado a isso.

Apesar disso ficou muito tenso quando viu de pé o homem que jazia morto à sua frente. Um par de olhos inteligentes aparecia atrás do visor do capacete, examinando o animal que estava à espreita, a uns vinte metros de distância.

O animal tinha uma pequena semelhança com o tiranossáurio terrano. Mas era menor, se bem que ainda tivesse seus quatro metros de comprimento. A maior diferença entre o lagarto de Pigell e o tiranossáurio eram as seis pernas, todas do mesmo comprimento. A cabeça tinha certa semelhança com a de um herbívoro terrano, o brontossáurio, com a diferença de que possuía uma placa na nuca. Tudo isso não seria tão assustador, se não fossem as garras gigantescas das pernas dianteiras, diante das quais a pata de um urso chegava a ser ridícula.

Page 204: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

204

O lagarto ou o sáurio — Omar não foi capaz de fazer a classificação exata do animal — ficou quieto. A única coisa que se movimentava nele eram os olhos verde-esmeralda.

O homem abriu a boca. Omar teve a impressão de que estava gritando alguma coisa pelo alto-falante externo. Talvez quisesse espantar o animal. Mas o réptil não saiu do lugar.

O soldado foi levantando a arma, fez pontaria — e um raio branco-azulado saiu do cano, atingindo o chão a poucos metros do lugar em que estava o monstro. Esguichos de lama levantaram-se, misturando-se com o material derretido.

O réptil certamente fugiria — ou partiria para o ataque...! Mas não aconteceu nem uma coisa nem outra. O animal levantou-se de um salto

quando foi dado o tiro, mas não saiu do lugar. Os músculos de seu corpo gigantesco tremeram. O experimentado psicólogo de animais não soube interpretar este comportamento. Até então só vira duas reações diferentes a um tiro energético. O animal fugia, ou então avançava às cegas, o que também representava antes uma reação inspirada pelo pânico que um ato de coragem. Um ser guiado pelo instinto não sabia ser corajoso.

O sargento Murching parecia ver no comportamento do animal um sinal de perigo. Levantou abruptamente a arma que segurava na mão — e desta vez o raio energético atingiu em cheio o réptil, que caiu ao chão. Uma incandescência vermelha espalhou-se por sua pele blindada.

O sargento baixou a carabina e saiu andando devagar. No mesmo instante as feras apareceram em toda parte, à frente do homem e atrás dele. Atacaram resolutamente e sem medo. Murching conseguiu matar seis animais, antes que os outros o atingissem. Viu-se um torvelinho de corpos cobertos de pele escura, em seguida os répteis retiraram-se. Um deles saiu carregando a arma energética, enquanto os outros arrastavam os cadáveres dos seres de sua espécie. Dois répteis usaram o focinho e as garras para remover os sinais dos tiros. Cobriram tudo de lama e pisaram as plantas queimadas. Finalmente o local do ataque parecia pacato como antes...

Omar Hawk passou as mãos pelos olhos e acordou da rigidez. Com a voz entrecortada informou o Administrador-Geral sobre os acontecimentos.

Perry Rhodan não fez nenhum comentário. Cerrou os lábios e pôs-se a cobrir o cadáver do sargento Murching com Pedras. Omar ajudou-o. Era o mínimo que podiam fazer pelo morto — e a única coisa que no momento estava ao seu alcance. Mais tarde providenciariam um enterro condigno. Isto se ainda houvesse um mais tarde para eles...

* * *

A lama grudava em suas botas com um ruído surdo e demorava em libertá-las. Névoas

branco-amarelentas condensavam-se sobre o pântano e eram rasgadas vez por outra pelas rajadas violentas da tempestade.

Omar Hawk teve de apoiar o Administrador-Geral. O terrano estava exausto e, se não fosse a ajuda do companheiro, teria ficado preso na lama. Omar confiava exclusivamente no faro do okrill. O animal encontrou com uma segurança de sonâmbulo o único caminho praticável em meio ao pântano fervilhante.

Esguichos quentes subiam constantemente de ambos os lados do caminho, desmanchavam-se sob a ação das rajadas de vento e derramavam o líquido sobre o pequeno grupo. Omar e Sherlock não se importavam com a água quente. Em Oxtorne a temperatura subia muitas vezes acima do ponto de ebulição. Quanto a Rhodan, este fechara seu traje de combate. Respirava a atmosfera à qual estava habituado, com um agradável teor de umidade e a temperatura de vinte graus centígrados.

De repente Sherlock soltou um chiado. Omar estacou o passo. Viu através dos óculos infravermelhos um corpo de serpente com pernas pequenas e pés muito largos, que saía do

Page 205: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

205

pântano quente e abriu a boca enorme ao avistar o okrill. Sherlock deu um salto. Golpeou com a pata, atirando a serpente de volta para o pântano.

O grupo prosseguiu...! Aos poucos o chão em que pisavam foi ficando mais firme. As primeiras pedras

apareceram. Eram escorregadias e estavam cobertas de lama, mas antes isso que o pântano viscoso. As rajadas de vento transformaram-se numa tempestade contínua. A névoa abriu-se. Depois de duas horas voltaram a avistar Vega. Parecia uma mancha de luz amarelo-suja boiando na linha do horizonte. Dali a pouco as nuvens escuras levantaram-se, despejando relâmpagos. O ribombo do trovão sacudia o chão.

Mais uma vez o uivo estridente da tempestade misturava-se ao crepitar furioso das descargas elétricas, produzindo uma sinfonia desagradável. Dali a pouco o ruído da chuva que descia em cascatas misturava-se aos outros sons.

A tempestade aumentou, transformando-se num furacão. Gigantescas paredes de lama levantaram-se de todos os lados, passando numa ruidosa agitação sobre a paisagem revolta e abrindo sulcos profundos no mar, que se enchia imediatamente com um caldo marrom fervilhante.

Omar Hawk ajoelhou-se e protegeu o Administrador-Geral com o próprio corpo, ao ver uma coluna de lama vir em sua direção. Desta vez fechou o capacete, pois até mesmo para ele a situação se tornaria crítica caso seu traje de combate se enchesse de lama.

A coluna que pesava várias toneladas desmoronou com um estrondo, soterrando os dois homens e o animal. Mas a torrente de água que descia do céu logo os libertou. O okrill espirrou, demonstrando seu contentamento, e seguiu seu caminho sem abalar-se.

Omar abriu o capacete. Não apreciava o ar tépido fornecido pelo equipamento. Sentia-se bem na chuva e na tempestade. Viu que Rhodan tinha dificuldade em levantar as pernas. Passou a carregá-lo nos ombros, sem dar a menor atenção aos protestos do Administrador-Geral.

Poucos metros à sua frente o okrill voltara a entrar em luta com um réptil que habitava o pântano. Como sempre, saiu vencedor, o que não era de admirar, já que suas garras eram duras como aço terconite e afiadas que nem uma navalha. Enquanto isso as garras das feras de Pigell nem sequer eram capazes de arranhar sua pele.

A cortina escura da mata virgem surgiu à esquerda do grupo. A tempestade fazia gemer e ranger as árvores. Relâmpagos branco-azulados cortavam a escuridão. Um estrondo infernal enchia o ar toda vez que uma árvore gigantesca atingida pelo raio se despedaçava, arrastando dezenas de árvores na queda. Felizmente não havia o perigo de um incêndio na floresta. A umidade elevada encontrada em toda parte de Pigell abafava o fogo no início.

Apesar disso Omar Hawk esperava impacientemente que uma voz saísse do receptor de telecomunicação de Rhodan. Seu transmissor de raios goniométricos funcionava ininterruptamente. Certamente os sinais acabariam sendo captados! Devia haver um número suficiente de veículos vasculhando sistematicamente a superfície do planeta. Todos os recursos disponíveis seriam usados para salvar Perry Rhodan.

Mas o éter não transmitia nenhuma voz. A única coisa que se ouvia era o crepitar produzido pelas interferências. Até se poderia ter a impressão de que os dois homens se encontravam a sós neste mundo.

A trovoada terminou de repente. A chuva diminuiu, e a tempestade foi amainando. Uma luz vermelho-alaranjada iluminou o horizonte — e desapareceu. O crepúsculo foi substituído pela noite.

O farol que Omar trazia sobre o peito lançava uma luz fantástica na escuridão. Estava ajustado para a luz infravermelha, e os vapores que subiam do pântano quase não representavam nenhum obstáculo para os óculos que os homens usavam.

Page 206: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

206

O oxtornense distinguiu uma grande planície, coberta de plantas de meio metro de altura. À sua esquerda estendia-se a floresta impenetrável, enquanto à direita a paisagem subia numa encosta coberta de pedras.

— Coloque-me no chão! — disse Rhodan. — Vamos fazer uma pausa. Omar obedeceu. O Administrador-Geral cambaleou ligeiramente quando Hawk o colocou

cuidadosamente no chão, mas sua vontade indômita logo venceu a fraqueza. — Parece que na Crest as coisas também não estão muito boas — disse em voz baixa.

— Normalmente nossos sinais goniométricos já teriam sido captados há muito tempo. Não precisariam de mais de dez corvetas para descobrir nossa posição dentro de quatro horas — isto na pior das hipóteses.

Omar sacudiu a cabeça. — As constantes descargas elétricas das trovoadas devem reduzir consideravelmente

o alcance dos nossos aparelhos. Por enquanto não vejo motivo para ficarmos preocupados. Rhodan respondeu com uma risada sem graça. — O senhor não vê, meu jovem, mas eu vejo. O senhor nem imagina a importância de

uma estação do tempo dos senhores da galáxia. Não ficarão inativos, deixando que alguém a tire deles. Receio que o tempo trabalhe contra nós.

— O que vamos...? — principiou Omar, mas não pôde concluir a pergunta. O okrill, que correra centenas de metros à sua frente, voltou a aparecer de repente.

Fungava bem baixo. A reação de Perry Rhodan foi tão rápida quanto a de Omar Hawk. Antes que

soubessem o que deixara o animal tão nervoso, já seguravam suas armas nas mãos. Lançaram seus olhares pela borda da floresta, pela planície e pela encosta pedregosa. Viram algumas sombras que se moviam.

Hawk pôs a mão esquerda no cinto e levou-a à boca. Arrancou com os dentes o detonador de um objeto oval. Arremessou a bomba infravermelha uns trezentos metros pela planície.

Uma luz ofuscante, perceptível aos olhos humanos somente graças aos óculos infravermelhos, encheu todos os cantos. As sombras assumiram contornos nítidos. Eram répteis de Pigell...!

Deviam ser mais de cem. Aproximavam-se sorrateiramente de todos os lados. De repente suas fileiras se imobilizaram. Provavelmente as feras enxergavam na faixa infravermelha e sentiam-se ofuscadas diante da luz abundante.

Omar teve a atenção distraída por um instante. Perplexo, fitava Sherlock, que estava apoiado nas patas traseiras, agitando no ar as pernas dianteiras. Emitia sons parecidos com um gemido abafado.

A reação do animal deixou o tenente confuso. Indicava uma coisa que lhe parecia completamente impossível.

Perry Rhodan, que se encontrava a seu lado, levantou a arma energética. Omar foi levantando devagar a mão que segurava a arma. Dois homens tinham uma

boa chance, até mesmo contra cem répteis combativos. Além disso o okrill ajudaria a criar confusão nas fileiras dos animais.

Mas Omar voltou a baixar a mão. De repente soube o que devia fazer, por mais estranha que pudesse parecer a conclusão que tirara do comportamento de Sherlock.

— Não atire, senhor! — gritou para Rhodan. O Administrador-Geral virou lentamente a cabeça. O rosto que aparecia atrás do visor

do capacete mostrava que não compreendera absolutamente nada. Mas Omar não tinha tempo para dar explicações — pelo menos por enquanto.

Atirou para longe a arma — e saiu ao encontro dos répteis.

Page 207: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

207

Olhos verdes brilhantes o fitaram, corpos pesados foram-se arrastando em sua direção...

* * *

— Volte, Hawk! — gritou Rhodan em tom ansioso. Omar Hawk caminhava resolutamente para perto das feras, que já tinham formado

um círculo em torno dele. Os répteis abaixaram-se de repente, dando a impressão de que iriam dar o salto. Mas

ficaram parados. O oxtornense respirou aliviado. Pingos de suor cobriam sua testa. E não era por causa

do calor. Devagar, para que o movimento não fosse mal interpretado, levantou o braço, fechou o punho e apontou um dos dedos para cima.

Os animais permaneceram imóveis. O rádio transmitiu a respiração ofegante de Rhodan. Omar repetiu o gesto. Encheu os pulmões de ar. Se me entendem, mandem um dos seus para cá — gritou. As fileiras de répteis agitaram-se. Foi sua única reação. Omar falara em intercosmo,

que era a língua oficial de seu mundo. Repetiu a mensagem em ferronense. Anda assim não houve nenhuma reação. Começou a ter suas dúvidas de que tivesse interpretado corretamente o comportamento de Sherlock. Experimentou o interandro, que era a língua universal de Andrômeda...

Teve a impressão de ter visto os répteis estremecerem. Houve um movimento. Um animal atravessou as fileiras de seus semelhantes e aproximou-se lentamente de Hawk.

O oxtornense entesou os músculos. O sexto sentido de Sherlock não o enganara. Os répteis eram seres inteligentes, apesar do aspecto animalesco. De repente Omar compreendeu certas coisas para as quais não encontrara explicação enquanto examinava o campo de batalha.

Mas nem por isso relaxou na vigilância. Nem todo ser inteligente é pacato. Às vezes era muito mais agressivo e brutal que um animal que se guia pelo instinto.

O réptil parou a cinco metros dele. As rugas que cortavam o rosto do brontossáurio, fazendo-o parecer muito velho, tremeram. Os lábios escuros moveram-se.

Sons grotescos e desfigurados saíram da enorme boca. Omar Hawk teve de fazer um esforço tremendo para ouvir em meio ao borbulhar e aos chiados a palavra que significava paz em interandro.

O tenente baixou cuidadosamente o braço. Ouviu o grito de espanto de Rhodan no receptor de ouvido. Seguiu-se o farfalhar das folhas e as batidas de pés no chão molhado.

— Paz! — disse Omar em interandro. Bateu com a mão no peito. — Omar! As pálpebras do réptil incharam e a pele do pescoço tremia convulsivamente. Uma

pata levantou-se e caiu sobre o nariz. — Tankan! — ouviu Omar. Atrás dele o okrill espirrava, ruidosamente e todo compenetrado. — Quem diria! — cochichou Perry Rhodan. — Como descobriu, Hawk? — Sherlock sentiu, senhor — respondeu Omar em tom singelo. Não tirava os olhos do

réptil, cujo rosto de perto já não parecia tão repugnante. Tankan voltou a falar. Seu interandro não era claro nem fluente, mas com um pouco

de esforço podia ser compreendido. — Vocês... não... D'ulh Orgh — disse. — Não ser... assim, mas... falar assim. Por quê? — Estão nos comparando com alguém? — perguntou Rhodan, espantado. Deu mais

um passo para a frente e ligou o microfone externo do capacete. — Falamos assim e

Page 208: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

208

também falamos diferente, Tankan — disse. O alto-falante reforçou sua voz. — Não sei a quem se refere ao falar em D’ulh Orgh, mas viemos em boa paz.

Tankan emitiu sons borbulhantes. — Vocês boa paz — nós boa paz — disse, estalando os lábios. — Vocês grandes, D’ulh

Orgh pequeno. D’ulh Orgh mau. Tankan muito morto depois D’ulh Orgh chegar. Rhodan voltou a desligar o alto-falante embutido em seu capacete. — Provavelmente se refere aos tefrodenses. É possível que os répteis tenham

aprendido deles a língua universal de Andrômeda. — Mas os tefrodenses geralmente falam sua própria língua, senhor! — objetou Omar. — Só entre si — retrucou Rhodan. — Quando entram em contato com outras raças de

sua galáxia, usam o interandro para comunicar-se, da mesma forma que nós usamos o intercosmo.

Rhodan voltou a ligar o alto-falante. — Caso vocês se refiram aos forasteiros que apareceram em seu planeta, vindos de

outro mundo, então os D’ulh Orgh também são nossos inimigos. Nós os destruímos. — D’ulh Orgh são desconhecidos. Vêm do alto... de trás nuvens. Tankan vivem de

Balrugh e N’naan. Desconhecidos destroem. Tankan muito morto. Se inimigo de vocês, então vocês nosso amigo.

“Meu Deus!”, pensou Perry Rhodan. “No Universo existem muitas tragédias de que nem desconfiamos! No tempo real estes répteis não existem mais. Provavelmente a esta hora já estão condenados à extinção — e isso por culpa dos tefrodenses vindos de Andrômeda. As palavras Balrugh e N’naan decerto designam a fauna de que vivem estes répteis.”

— Quem lhes ensinou a língua dos D’ulh Orgh, Tankan? — perguntou em voz alta. — Prendemos muitos. Ouvimos e aprendemos falar como eles — o “rosto” enrugado

do réptil parecia agitado. — Vocês mataram D’ulh Orgh. Agora vocês aqui. Fazer o quê? Quem são? “Mas é claro”, pensou Rhodan. “Eles se perguntam se não viemos para completar a obra

dos tefrodenses.” Esquecera uma coisa. Bateu com a mão no peito, como vira Hawk fazer. — Rhodan! Também viemos de trás das nuvens. Mas não vamos demorar aqui.

Queremos ir a outro mundo. Não se preocupem conosco. — Nós contente. Se bons, ficar. Vocês matar D’ulh Orgh...? — Estão todos mortos — respondeu Rhodan. — Vocês fizeram prisioneiros? Ainda

estão vivos? Gostaríamos de vê-los. Tankan ficou calado por algum tempo. Não tirava os olhos dos forasteiros. Rhodan

chegou a ter medo de que a última pergunta pudesse ter violado um tabu, mas finalmente o réptil respondeu.

— Um D’ulh Orgh ainda vivo. Vocês ver. Vocês vêm conosco. — Iremos! — confirmou Rhodan. — Mas antes disso quero fazer mais uma pergunta.

Alguns dos seus mataram um dos nossos. Ali — apontou na direção da qual tinham vindo. — Por quê?

— Ele mau, nós também mau — respondeu Tankan laconicamente. Rhodan repetiu a pergunta várias vezes, mas Tankan não quis dizer mais que isso.

Acabou desistindo. Ninguém seria capaz de fazer o sargento Murching viver de novo, e do ponto de vista dos répteis ele mesmo poderia ser culpado da própria morte. Afinal, fora ele que matara primeiro — se bem que não poderia imaginar que em Pigell houvesse seres nativos inteligentes, ainda mais que quem visse os répteis nunca desconfiaria de que eles possuíam inteligência. Será que Rhodan poderia acusá-los por não se terem identificado logo como aquilo que realmente eram? Estes seres provavelmente não acreditariam se ele lhes dissesse que quem os visse não perceberia logo que eram inteligentes.

Page 209: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

209

Para ele mesmo a situação quase parecia um pesadelo. E as coisas ficaram ainda mais estranhas quando os répteis entraram em coluna de um e abriram caminho pela selva. Mas o okrill adaptou-se prontamente à nova situação. Parecia sentir prazer em correr ao lado da coluna, assustando os répteis, saltando em cima deles ou passando entre suas pernas.

Omar Hawk voltou a colocar o Administrador-Geral sobre os ombros, senão não seriam capazes de acompanhar os répteis.

Era um quadro estranho — um bando de animais primitivos — e dois homens no meio deles.

— É pacato demais...! — observou Rhodan, desconfiado.

* * *

Devia ter adormecido, apesar das tempestades, das trovoadas e dos ruídos multiformes de um mundo primitivo cheio de vida.

Perry Rhodan foi acordado por um berreiro de inúmeras vozes, que superava em muito os ruídos da mata.

— Que houve? — perguntou ao oxtornense. O farol que Omar Hawk trazia sobre o peito só iluminou parte da cena. Corpos

gigantescos, negros e brilhantes, rolavam numa área livre circular, aberta em plena selva. Eram os répteis!

Por que berravam tanto? — Isso cheira a luta — e a cadáveres — disse Hawk com a voz apagada. — Alguma

coisa aconteceu por aqui. — Coloque-me no chão! Os dois saíram caminhando lado a lado para o local da confusão. O okrill apareceu à

sua frente, fungou e saiu correndo. Parecia que os répteis iam se acalmando aos poucos. Formavam pequenos grupos, levantavam as cabeças para a noite e emitiam sons que pareciam gritos de lamentação.

— Olhe! — exclamou Omar, apontando para uma coisa parecida com um monte de terra.

Era um edifício desabado. Provavelmente fora uma construção semi-esférica feita de barro e pedaços de plantas. Estava arrebentada. Os pedaços estavam espalhados no chão — e entre eles se viam os corpos chamuscados de vários répteis.

Via-se perfeitamente uma cratera no meio dos escombros. Omar e Rhodan prosseguiram. Encontraram outros escombros, outras crateras — e

um número cada vez maior de cadáveres. De repente Omar abaixou-se e levantou um objeto serrilhado. Um fragmento metálico...! — Alguém lançou bombas — disse, exaltado. — Bombas químicas explosivas! Perry Rhodan estacou. Seus ouvidos zumbiam. Os pensamentos iam se atropelando

em seu cérebro. Para ele a descoberta que acabavam de fazer era uma verdadeira catástrofe, não porque centenas de seres inteligentes tinham morrido no bombardeio — por mais que ele o sentisse — mas porque o incidente provava que de forma alguma Pigell estava completamente em poder dos terranos. Em algum lugar, em uma das numerosas ilhas-continente, devia haver tefrodenses, e certamente bases deste povo. Mas como se explicava que o prisioneiro Frasbur não soubesse disso?

Fez um grande esforço para reprimir o nervosismo que ameaçava tomar conta dele. Estava preocupado com a sorte da Crest. Seus tripulantes não sabiam do perigo que os ameaçava. Qualquer ataque tefrodense os pegaria inteiramente de surpresa. Rhodan conhecia o perigo, mas não tinha como prevenir seus companheiros!

Page 210: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

210

Por pouco não percebeu o novo perigo quando já era tarde. Os répteis formaram uma frente compacta, que se aproximou dos forasteiros. — Eles acham que somos culpados do que aconteceu, senhor! — disse Hawk num

gemido. Assobiou para chamar o okrill. Perry Rhodan levantou os braços. Os répteis ainda se encontravam a uns dez metros. — Não foram os nossos! — gritou. Os répteis responderam com uma série de gritos abafados, mas pararam. Mais uma

vez um deles adiantou-se. Devia ser Tankan. — Sabemos. Mas por que vocês não dizer tudo? Por que só falam de D’ulh Orgh

mortos? “Vocês sabem?”, perguntou Rhodan a si mesmo. “Como estes répteis podem saber que

não foram os nossos que lançaram este ataque?” — Dissemos tudo que sabíamos — respondeu. — Os forasteiros estavam escondidos. — Por que dizer o que não saber? — respondeu o réptil com uma recriminação

inconfundível na voz. — Agora todos Tankan mortos nesta terra na água. Nós vivos, muito poucos.

— Parece que ele quer dizer que esta era a única povoação dos répteis nesta parte da ilha-continente, senhor — disse Omar num cochicho.

— E a palavra Tankan aplica-se a todos os répteis — completou Rhodan. — Pensamos que fosse um nome próprio, usado pelo réptil que estava falando conosco. Como eles fazem para distinguir-se um do outro?

— O que acontecer agora? — perguntou Tankan. Perry Rhodan resolveu tirar proveito da mudança da situação. — Precisamos chegar depressa perto de nossa gente. Eles não sabem que ainda

existem outros D’ulh Orgh. Se nós lhes contarmos, eles virão e matarão os que ainda restam. Mas... não podemos atravessar a grande água...

— Nós andar pela água. Vocês andar... sentar em cima de nós. — Obrigado! — disse Rhodan. O porta-voz dos répteis virou a cabeça e falou aos indivíduos de sua espécie, emitindo

sons que antes pareciam uma série de estalos e burburinhos. — Logo vamos — disse, voltando a dirigir-se aos homens. — Tankan, Rhodan, Omar e

animal! O Administrador-Geral também achou recomendável que partissem imediatamente.

Era possível que os tefrodenses voltassem. Não possuíam armas capazes de enfrentar máquinas voadoras que lançassem bombas. Mas resolveu ficar até que Omar Hawk realizasse uma investigação com raios infravermelhos.

— Vamos esperar um pouco — disse ao porta-voz. O oxtornense ativou novamente o amplificador de ondas cerebrais. Fechou os olhos e

concentrou-se nas percepções de Sherlock. O okrill não precisou de uma ordem verbal para compreender o que seu dono queria. Sentou e ficou quieto. Seus olhos assumiram a cor da noite. O presente mergulhou...

Muitas impressões foram passando, até que finalmente aparecessem os rastros que estavam procurando. Mas não eram tão claros como Omar esperara.

Sombras confusas atravessaram rapidamente o céu. Até parecia um bando de pássaros circulando sobre a povoação, que continuava intacta. Os contornos dos objetos voadores pareciam estranhamente distorcidos, chegando ao grotesco e perdendo toda nitidez. Devia ser alguma interferência desconhecida que perturbava o faro do okrill.

As bolas de fogo produzidas pela explosão das bombas não poderiam ser mais nítidas. Nuvens de fumaça clara subiram ao céu, destroços caíam e os répteis corriam de um lado para outro, numa reação de pânico. Um objeto pousou e voltou a subir dali a pouco. Talvez

Page 211: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

211

fossem os tefrodenses que tinham resgatado seu companheiro que fora preso. Mas este objeto também não passava de uma sombra inconstante.

De repente o bombardeio terminou. Os atacantes desapareceram, deixando para trás montes de escombros fumegantes, sobre os quais desabou uma violenta tromba-d'água.

— Então, Hawk...? Parecia que a voz de Perry Rhodan atravessava algumas paredes acústicas. A volta ao

presente tornava-se tanto mais difícil para Omar, quanto mais ele tinha de concentrar-se no início da operação.

Hawk piscou para a luz de um farol embutido num capacete. — Sinto muito, senhor. Houve uma interferência nas percepções. Praticamente não

sei nada além do que já sabia. Não consegui identificar os atacantes. — É uma pena — disse Rhodan, decepcionado. — Vamos embora. Fez um sinal para o porta-voz dos Tankan. O bando de répteis começou a

movimentar-se ruidosamente. Os corpos gigantescos fumegavam, exalando um cheiro penetrante. Os estranhos seres foram passando pelos dois homens — um estranho capricho da natureza, condenado à extinção antes que desenvolvessem bastante inteligência para evitar que isso acontecesse.

Page 212: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

212

4

A bruma modificava os contornos do sol amarelo-claro, produzindo uma figura

disforme. Na manhã do dia 22 de junho de 2.404 o céu que cobria Pigell era tão claro como poucas vezes, embora para os meteorologistas terranos o céu ainda estivesse encoberto. Mas do sexto planeta de Vega nunca se via o azul do espaço infinito.

Omar Hawk estava em silêncio, parado na costa do mar de lama que se estendia até o horizonte. Não havia nenhuma arrebentação, ao menos com o ar parado. Apesar disso a superfície do mar de forma alguma estava em repouso. Constantemente surgiam grandes bolhas que arrebentavam com um estalo. Jatos de vapor e água fervente de vários metros de diâmetro irrompiam da lama viscosa marrom-esverdeada. Gigantescas serpentes deslocavam-se na superfície borbulhante. De vez em quando a cabeça de um gigantesco animal vinha à tona. Mesmo na pré-história do planeta Terra seria difícil encontrar coisa igual. Pelos cálculos de Omar, estas cabeças deviam ter de dez a quinze metros de diâmetro. As bocas gotejantes eram tão grandes que três planadores antigravitacionais poderiam entrar nelas em formação cerrada.

Além disso havia inúmeros seres menores. O célebre filósofo da Grécia Antiga, que afirmara que toda vida se formada espontaneamente da lama, ficaria encantado com os milhões de seres que se agitavam naquele oceano.

De repente uma coluna de fogo vermelha apareceu no sul, subiu alguns quilômetros, continuou subindo e finalmente encostou nas nuvens disformes. Ouviu-se um ribombar semelhante ao de um trovão, que fez tremer o chão. Em alguns lugares formaram-se fendas no solo, das quais saiu uma fumaça causticante. A coluna de fogo lançada pelo vulcão em erupção continuava no mesmo lugar. Parecia ter-se imobilizado. Dentro de alguns minutos uma estreita faixa marrom vinda da mesma direção foi crescendo rapidamente e aproximou-se do lugar em que estavam.

Omar Hawk reconheceu o perigo antes de Perry Rhodan. Assobiou para que seu okrill se aproximasse. Em seguida pegou o Administrador-Geral e colocou-o nas costas de um dos Tankan. Em seguida também subiu. O réptil ajoelhou-se por alguns segundos e fungou numa manifestação de protesto. Mas Omar não podia evitar que ele tivesse de carregar o peso de dois homens. Rhodan nunca seria capaz de segurar-se nas costas lisas daquela criatura. O okrill saltou nas costas do animal mais próximo. Resmungando, fitou a onda de lama que se aproximava.

Dali a mais alguns minutos a vaga estrondosa passou por cima da manada. Omar Hawk comprimiu as pernas contra o corpo do réptil, enquanto as mãos seguravam firmemente o Administrador-Geral. No último instante lembrou-se de fechar o capacete.

Uma parede de lama de cerca de cinco metros de altura desabou sobre eles. Os Tankan pareciam não ter medo dela. Pelo contrário. Saíram correndo ao seu encontro quando ainda se encontrava a cem metros de distância. Os corpos de aspecto grosseiro não afundaram, mas foram levantados pela onda e voltaram suavemente ao chão. Atrás deles a parede desabou com um ruído ensurdecedor. Omar compreendeu por que os Tankan tinham corrido ao encontro da onda.

Os répteis não voltaram à ilha-continente. Seguiram diretamente na direção leste-nordeste, conforme haviam combinado com Rhodan. Suas patas atingiam as serpentes que tentavam atacá-los, enquanto os animais menores eram devorados vivos.

Omar e Rhodan só comeram algumas cápsulas de alimento concentrado e beberam um pouco de sua reserva de água vitaminada, com um suplemento de parabióticos.

Page 213: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

213

Sherlock abateu uma salamandra de lama de oito metros de comprimento com um forte choque elétrico da língua, sem sair de cima de sua montaria. Os Tankan emitiram sons borbulhantes para demonstrar seu espanto, ao vê-lo agarrar a presa com o focinho e voltar num salto para cima do réptil que o carregava. Depois disso o okrill comeu tranqüilamente os melhores pedaços de sua presa e atirou o resto para seu Tankan.

Os répteis também deram provas de uma força enorme. A lama do mar não era tão viscosa quanto a dos pântanos, mas mesmo assim um ser humano teria de fazer um esforço tremendo para nadar nela, e não agüentaria por muito tempo. Os Tankan remavam sem cansar com as quatro pernas, desenvolvendo cerca de dez quilômetros por hora.

Rhodan e Hawk acharam que estavam indo muito devagar. Nem esperavam que o meio de locomoção usado lhes permitisse chegar à Crest, mas achavam que no mar as chances de serem detectados eram muito maiores que embaixo da cobertura vegetal da selva.

Logo viram confirmadas suas esperanças — mas de uma forma bem diferente da que Perry e Omar esperavam...

Mais uma trovoada acabava de passar. Uma faixa irregular apareceu bem ao longe. Era a ilha-continente mais próxima.

De repente algumas névoas com estranhos contornos uniformes aproximaram-se da esquerda. Eram as névoas-fantasma...!

O okrill apoiou-se nas patas traseiras e encarou as névoas. Seus olhos grandes brilhavam. Um rugido surdo saiu da boca aberta.

Havia uma expressão dura e decidida no rosto de Omar Hawk, quando tirou sua arma energética superpesada do cinto.

— Sugiro que nos defendamos, ficando de costas um para o outro, senhor — cochichou para Rhodan. — Aqui não temos para onde fugir.

— Está certo! — respondeu o Administrador-Geral. — Temos de evitar que as nuvens nos teleportem novamente para alguma ilha abandonada. É estranho que estas névoas apareçam justamente agora!

O oxtornense também achou estranho. Talvez fosse um encontro puramente casual, mas a coincidência se verificara no pior momento.

Será que as nuvens-fantasma estavam sendo teleguiadas...? Os Tankan não pareciam

ter medo. Não deram a menor atenção aos gritos de alerta de Hawk. Continuaram nadando calmamente, sem afastar-se da rota.

Omar sentou de costas para Rhodan. Teve o cuidado de prender um dos ganchos de sua carabina no cinto do Administrador-Geral. Assim pelo menos não seriam separados. Feito isso, deu ordem para que o okrill combatesse as nuvens-fantasma com choques elétricos.

As nuvens encontravam-se a apenas cem metros de distância. Algumas delas desceram sobre os Tankan que iam na frente, envolveram-nos — e os répteis desapareceram.

Page 214: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

214

Os dois homens perceberam no último instante qual era o melhor meio de combater as nuvens-fantasma. Concentraram ao máximo os raios de suas armas energéticas. Os efeitos fulminantes logo se fizeram notar. Os raios energéticos finíssimos, mas altamente concentrados, abriram brechas nas nuvens-fantasma. As que eram atingidas afastavam-se, balançando desorientadas. Algumas delas desceram na superfície do mar de lama, perderam a forma e passaram a formar uma finíssima camada branco-acinzentada na superfície. Outras colidiam, atravessavam-se e com isso pareciam recuperar as forças. As nuvens assim reunidas voltavam ao ataque.

Dentro de alguns minutos todos os Tankan desapareceram — com exceção daquele que carregava os dois homens e do que levava o okrill.

Sherlock desapareceu em seguida, juntamente com o réptil no qual estava montado. Omar Hawk lutava com uma calma inabalável. Sabia que estavam perdidos. Novas

levas de nuvens-fantasma iam-se aproximando, vindas do norte. As trilhas de fogo das armas energéticas abriram grandes brechas nas frentes dos atacantes. As nuvens esfaceladas desciam constantemente sobre o mar, sendo tragadas pela lama. Centenas delas saíram à deriva. Mas a intensidade do ataque não diminuiu por um segundo que fosse.

A decisão veio quando algumas dezenas das figuras nebulosas se uniram numa nuvem gigantesca. Rhodan e Hawk imediatamente dirigiram seu fogo energético para o novo inimigo. Mas desta vez seus tiros não fizeram nenhum efeito.

A nuvem desceu na vertical. Omar sentiu um toque suave. Era como se milhares de teias de aranha atingissem seu corpo. Depois não percebeu mais nada...

* * *

Ainda há pouco estavam montados num Tankan — e agora se viram deitados num

chão duro e pedregoso, prestando atenção ao rugido, aos estrondos, ao crepitar e aos chiados contínuos que os envolviam.

Omar Hawk soltou o gancho da carabina que o mantinha ligado ao Administrador-Geral e apoiou-se nos cotovelos. Ainda chegou a ver seu Tankan, que se afastava em grandes saltos.

No mesmo instante ouviu alguém dando um espirro alegre. O corpo robusto do okrill encostou-se carinhosamente ao cotovelo de Omar. Distraído, o oxtornense acariciou o animal. Estava com os olhos voltados para o vale, do qual subia fogo e fumaça, e de onde vinha o ruído do vulcão.

Do vulcão...? Ao primeiro relance Omar contou seis crateras que cuspiam fogo. E devia haver

outras escondidas atrás da fumaça negra. Perry Rhodan levantou gemendo. — Onde estamos? — perguntou com a voz rouca. Omar deu uma risada áspera. — O senhor tem um senso de humor! — pigarreou, assustado. — Oh...! Desculpe,

senhor. Eu... — Deixe para lá, Hawk! — o Administrador-Geral deu uma risada. — Gostaria que me

dissesse por que acha que tenho senso de humor. Omar sorriu. Gostava de observar as regras da disciplina e manter as formas

reservadas de contato com os superiores, mas nunca deixava de dizer o que pensava. Certa vez, em Horror, chegara a repreender severamente o Administrador-Geral. Foi quando repreendeu injustamente a tripulação da Androtest. Mas isso em nada afetava o respeito que sentia para com Perry Rhodan.

Page 215: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

215

— Em vez de ficar alegre porque ainda estamos vivos, o senhor pergunta onde estamos. Não acha que isso seja uma prova de senso de humor?

— Não, Hawk — respondeu Rhodan muito sério. — Não é uma demonstração de senso de humor. É um hábito que já me salvou a vida mais de uma vez. Sempre faço o possível para aceitar a situação presente como um dado da realidade e procuro concentrar-me nas medidas que tenho de tomar para fazer com que o futuro seja o que eu quero.

Omar ficou calado. Já começava a compreender a causa dos sucessos alcançados por este homem.

— Consegue deduzir alguma coisa da posição do sol? — perguntou Rhodan, mudando de assunto.

O oxtornense levantou-se e tentou reconhecer Vega em meio à fumaça compacta. Se não fosse o equipamento infravermelho certamente não teria conseguido, mas com ele viu uma mancha luminosa que representava o sol junto à linha do horizonte.

— É estranho...! — disse. — O quê? — No lugar de que saímos estávamos no fim da tarde. O sol estava mais ou menos na

mesma altura que aqui. — Neste caso fomos levados para o sul — respondeu Rhodan. — Se fosse assim — objetou Omar, hesitante — a bússola deveria apontar para o sol.

A não ser que nos encontremos ao sul do equador, senhor. — Quer dizer que estamos ainda mais longe da Crest! — exclamou Perry Rhodan,

amargurado. — Até parece que estas nuvens-fantasma são inteligentes. Omar deu de ombros. No mesmo instante os dois homens viraram-se abruptamente. O okrill acabara de dar

o alarme. O animal estava pronto para saltar, enrolando e desenrolando a língua. Não tirava os olhos de uma figura alta e esbelta, que parecia ter saído do nada.

De repente a figura fez um movimento. Não se defrontavam com uma alucinação. Sherlock rosnou ameaçadoramente. A figura parou. — Olá! — disse a voz saída do rádio-capacete de Omar. — Tenente Hawk! Eu lhe

ficaria muito grato se pudesse acalmar seu cão policial. — Tschubai...! — exclamou Rhodan, espantado. — Sou eu mesmo, senhor. O Administrador-Geral levantou de um salto. — Que acaso feliz! Como descobriu onde estávamos? Ras Tschubai, um teleportador

afro-terrano pertencente ao Exército de Mutantes, aproximou-se, depois que Hawk tinha acalmado seu okrill.

— Foi mesmo um acaso, senhor — disse, enquanto apertava a mão de Rhodan. — Mas não sei se foi mesmo um acaso feliz.

— Não compreeendo! — a voz de Rhodan parecia contrariada. — O senhor, que é um teleportador de grande capacidade, levará menos de dez minutos para levar-nos à Crest. Ou será... — Rhodan interrompeu-se — ...será que aconteceu alguma coisa com a nave...?

Tschubai levantou ambas as mãos, num gesto enfático. — Não senhor! Com a Crest está tudo em ordem, embora o pessoal por lá esteja

bastante tenso... — seu rosto assumiu uma expressão melancólica. — Não me teleportei para cá, senhor... Durante a ação de busca entrei em uma das tais nuvens-fantasma — e acabei sendo teleportado. Não sei como teleportar para a nave, a não ser que o senhor esteja em condições de indicar nossa posição geográfica em relação a ela.

— Isso eu não posso — respondeu Rhodan com a voz apagada. — Mas o senhor tem mais chances que qualquer um de nós. Sugiro que se teleporte por etapas para o norte. Se

Page 216: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

216

por acaso materializar na superfície de um pântano ou de um oceano, a única coisa que terá de fazer é teleportar de novo sem perder tempo — riu confiante. — Acho que não demorará muito em encontrar a nave ou um dos grupos de busca.

Ras Tschubai inclinou a cabeça. — Sim senhor! — Outra coisa! — apressou-se Rhodan em acrescentar — Não volte sozinho. Mande

uma corveta. O teleportador confirmou e desapareceu. — Não esperaremos mais muito tempo — disse o Administrador-Geral bastante

satisfeito. — Acho que não demorará meia hora até que... Calou-se de repente. Arregalou os olhos e fitou a figura de Tschubai, que se contorcia no chão. Omar veio correndo e segurou os braços do teleportador, que se agitavam fortemente.

Viu através do visor do capacete de Ras o rosto desfigurado pela dor. Seus lábios espumavam. Omar pôs a mão no botão de contato do traje espacial, mas logo a retirou. Não podia fazer nada por Tschubai. A temperatura externa era de setenta e seis graus. Era demais, até para o afro-terrano que estava acostumado ao calor.

Omar refletiu por um instante e desligou a segunda garrafa do equipamento respiratório de Tschubai. Desta forma os pulmões do teleportador receberam oxigênio puro.

Isso parecia ajudar a melhorar a condição do teleportador, que se acalmou e abriu os olhos por um instante. Fez um esforço para levantar, mas Omar empurrou-o de volta para o chão.

— Continue deitado. Que houve, Tschubai? O rosto de ébano tremia. A língua passou pelos lábios cobertos de espuma. — Sinto... sinto muito — cochichou Ras. — Devo ter entrado numa armadilha. Muito

obrigado por terem esperado tanto tempo por mim. — Tanto tempo...? — perguntou Rhodan. — O senhor mal chegou a sair. Não ficou

fora mais de trinta segundos. Tschubai tentou sorrir, mas tudo que conseguiu foi fazer uma careta dolorosa. — Deixe para lá, senhor — respondeu. — Sei quanto tempo agüentaram aqui. Afinal,

possuo um relógio. Fiquei fora pelo menos seis horas. Perry Rhodan franziu a testa. Levantou o pulso e encostou o relógio aos olhos. — Meu relógio marca 13,44 horas, tempo padrão, do dia 23 de junho — informou. Omar inclinou-se sobre o relógio de Tschubai. — Este relógio marca exatamente 19,51 horas, senhor — disse. — A data é a mesma. Os três ficaram calados quase um minuto. Finalmente Rhodan levantou a cabeça e

olhou por cima do mar de lava endurecida — para o norte, na direção em que devia estar a Crest.

Os homens que se encontravam na nave eram a única esperança que lhes restava. Se não os encontrassem, o inimigo os golpearia de surpresa.

Por que ainda não aparecera nenhum barco espacial...?

* * *

A tela de imagem não mostrava nada, além da paisagem ligeiramente ondulada, coberta por uma selva espessa. A corveta KC-44 sobrevoava a paisagem fumegante da Serra do Norte de Pigell a mil metros de altura.

Page 217: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

217

O alto-falante do telecomunicador estalava a intervalos regulares, para transmitir as mensagens de contato das naves empenhadas na operação de busca, que contornavam o planeta em rotas previamente fixadas.

Atlan olhou para o cronômetro de bordo. A escala mostrava que era o dia 23 de junho de 2.404, às 13,45 horas, tempo real.

Mais um comandante informou que não havia encontrado nada. Atlan ficou furioso. Bateu na braçadeira da poltrona.

— Pelos deuses de Árcon — disse, furioso. — Pelos cálculos de probabilidade, já os deveríamos ter encontrado há tempo. Cada metro quadrado da superfície deste mundo foi sobrevoado duas vezes.

Seu vizinho do lado direito balançou num gesto de dúvida a cabeça calva com uma faixa de cabelos levantada em forma de foice.

— Cada metro quadrado? É um exagero, senhor. No entanto, as corvetas atravessaram várias vezes a área alcançada pelos transmissores de raios goniométricos. Quem sabe se os transmissores não estão falhando...?

O arcônida empalideceu. — Não fique agourando, Kasom. Sou de opinião que nada de grave pode ter

acontecido ao Administrador-Geral. Afinal, o oxtornense está com ele. É um indivíduo adaptado às condições mais ásperas, capaz de estrangular um sáurio de Pigell.

Voltou a olhar para o relógio. De repente sobressaltou-se. — Marshall ainda não entrou em contato conosco? Deveria ter chamado há cinco

minutos. O que... — Aí está o chamado dele, senhor! — exclamou Kasom com a voz retumbante. — Marshall chamando KC-44! — transmitiu o telecomunicador de bordo que

funcionava à velocidade da luz, em meio a uma série de interferências. — Responda, por favor!

— KC-44 falando. Atlan no aparelho. Por que demorou em chamar, John? — Sinto muito, senhor — veio a resposta. — Fomos obrigados a desviar-nos de

algumas... bem, de algumas nuvens-fantasma. Isto mesmo. E desde então Tschubai está desaparecido.

— Ele teleportou? Ou as nuvens-fantasma o...? John Marshall não respondeu. Alguns estrondos saíram, dos alto-falantes. A eles

juntou-se um som parecido com o uivo de uma sereia distante. — Marshall! — exclamou o arcônida, assustado. — O que está acontecendo?

Responda, John! Ouviu-se outro estrondo. Em seguida a voz de Marshall se fez ouvir. Parecia

angustiada e entrecortada. — Estamos sendo atacados por animais enormes. Parecem répteis — ouviram-se

mais alguns estrondos. — Sou obrigado a fugir. Recuarei para uma elevação rochosa. Provavelmente terei de cortar a ligação. Estou muito ocupado.

Ouviram-se mais dois estrondos. Uma respiração ofegante e um berreiro primitivo se misturaram a eles. Atlan encostou o microfone aos lábios.

— Envie sinais goniométricos, John! — gritou. — Iremos em seu auxílio. Melbar Kasom não esperou que alguém lhe desse ordens para isso. Bateu com o

punho fechado na tecla de alarme. Um assobio estridente se fez ouvir em todos os cantos da corveta.

Atlan prendeu a respiração enquanto esperava que John Marshall atendesse ao seu pedido.

Page 218: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

218

Finalmente soou o chiado uniforme do raio-vetor. Ao contrário de Perry Rhodan, o chefe do Exército de Mutantes levara um telecomunicador portátil de grande potência. Os sinais transmitidos certamente estavam sendo recebidos em todas as corvetas.

— Faça a goniometria e dirija-se ao ponto assinalado. Acelere ao máximo! — ordenou o lorde-almirante, dirigindo-se ao piloto da nave auxiliar de 60 metros de diâmetro. Em seguida entrou em contato com os outros veículos empenhados nas buscas, para que não pensassem que os sinais transmitidos por Marshall vinham de Rhodan.

Os jatos-propulsores rugiram, impelindo a KC-44 para a frente. Os campos defensivos brilharam sob o efeito das moléculas de ar ionizadas. Os contornos da paisagem foram deslizando rapidamente pelas telas dos rastreadores. O mar de lama apareceu diante dos homens. Um vulcão atirou massas de lava incandescente em direção à espaçonave. Nuvens de vapores iam surgindo na superfície que se movimentava preguiçosamente.

Quando o som dos sinais goniométricos começou a doer nos ouvidos, o lorde-almirante deu ordem para que o comando de desembarque formado por quinze homens se reunisse na eclusa inferior. Levantou da poltrona.

Uma ilha em forma de tartaruga apareceu no horizonte. Kasom levantou a cabeça que estivera abaixada sobre a tela abaulada do rastreador

de raios laser. — Encontrei a montanha, senhor! — exclamou. — Modere a voz, Kasom — retrucou Atlan, angustiado. — Ainda precisarei dos meus tímpanos para outra coisa. Fez um gesto para que o ertrusiano se afastasse da tela e deu uma olhada. — Deve ser isso mesmo — disse. — É a única elevação existente nesta ilha.

Comandante, adapte a manobra aos resultados fornecidos pelos raios rastreadores. Dali a instantes a corveta freou ao máximo de sua capacidade. Tinha-se a impressão

de que a ilha crescia enquanto caía para dentro da tela frontal. Uma elevação rochosa entrou rapidamente no cruzamento das barras do dispositivo eletrônico. Ainda não se via nenhum sinal de Marshall.

De repente viram-se lampejos: um... e mais outro. — Desça a cem metros! — disse Atlan, dirigindo-se ao comandante. — Vamos saltar.

Depois pousaremos num lugar seguro. Saiu acompanhado por Kasom e desceu pelo elevador do eixo polar. O comando de

desembarque já estava à espera do momento de entrar em ação, com os capacetes pressurizados fechados. Atlan explicou em palavras ligeiras qual era a tarefa dos soldados espaciais.

— Kasom e eu seremos os primeiros a saltar — concluiu. — Os outros irão em seguida. Os dispositivos antigravitacionais só serão ligados

pouco antes de chegarmos à superfície. Teremos de libertar Marshall numa ação-relâmpago. Não devemos ter nenhuma consideração pelos animais. Não temos muito tempo.

— Pronto, senhor! — transmitiu o alto-falante embutido na parede. Melbar Kasom apertou o botão do fecho automático da eclusa. As placas da escotilha

externa afastaram-se com um chiado. Os vapores, o cheiro da podridão e o vento penetraram na câmara ampla da eclusa.

Atlan impeliu-se vigorosamente. Embaixo dele a figura maciça do ertrusiano já se precipitava em direção à superfície.

O chão aproximou-se numa velocidade alucinante. Atlan cerrou os lábios. Teve a impressão de que num instante iria tocar o solo e ligou o dispositivo antigravitacional do seu traje espacial. No mesmo instante ativou o micro-propulsor siganês.

Page 219: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

219

A queda foi interrompida num doloroso solavanco. Mas Atlan ainda chegou a sentir o impacto. Fez um rolamento por cima do ombro, ficou de pé — e viu bem à sua frente a boca aberta de um animal. Os microfones externos de seu capacete transmitiram um berreiro ensurdecedor.

O arcônida levantou a arma energética e atirou. O som das descargas energéticas vinha de todos os lados, entremeado pelo ruído da

queda dos corpos pesados e pelo bramido das feras. Aos poucos o ruído da batalha foi diminuindo. De repente ficou tudo em silêncio.

Atlan contemplou em silêncio os cadáveres dos animais. Chegou a experimentar um sentimento de compaixão, mas acabou dando de ombros.

Sem isso não poderia ter libertado Marshall. O telepata aproximou-se devagar, com a mão estendida. — Muito obrigado. Fomos salvos no último instante. Já estava cercado pelas feras. Devo confessar que como monstros sem cérebro usaram uma tática muito inteligente. Deu uma risada.

Atlan apertou sua mão e também riu. A KC-44 pousou junto à elevação, apoiada sobre os raios chamejantes de seus jatos-propulsores.

— Vamos embora! — disse o lorde-almirante. Um grito estridente fez com que se virasse abruptamente. Um dos soldados espaciais

apontava para o alto. De repente Atlan sentiu um calafrio no peito. Uma gigantesca nuvem-fantasma descia em velocidade alucinante sobre o barco auxiliar esférico. Antes que alguém pudesse esboçar qualquer reação, alcançou a espaçonave.

Dali a um instante não havia mais nada no lugar em que esta tinha pousado. Só a nuvem-fantasma continuava no mesmo lugar. Foi-se afastando lentamente,

tangida pelo vento, em direção ao mar...

Page 220: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

220

5 Fazia dez minutos que as nuvens-fantasma tinham aparecido. Perry Rhodan, Omar Hawk e Ras Tschubai estavam escondidos atrás de algumas

pedras e olhavam através de seus dispositivos infravermelhos para o céu que cobria o vale. O fogo despejado pelos vulcões que se abriam no vale gigantesco fazia ferver o ar. As massas de ar frio sopravam de todos os lados, uivando e assobiando, apenas para serem aquecidas dentro de instantes e subir redemoinhando.

As nuvens de fumaça aproximavam-se de todos os lados. Eram tangidas pelas massas de ar em direção ao fundo do vale para serem impelidas para cima tão depressa que a vista só conseguia acompanhá-las por um segundo.

Parecia um quadro fantasmagórico. Omar Hawk perguntou-se se as nuvens com vida tinham sido alcançadas por acaso

pelas correntezas de ar — ou se vinham a este lugar intencionalmente. Se vinham de propósito, qual era a sua intenção? O que poderiam ganhar subindo às camadas mais elevadas da atmosfera em virtude das condições térmicas?

Eram sempre novas perguntas — e nenhuma resposta. Houve uma erupção mais forte no fundo do vale. Omar encolheu instintivamente a

cabeça. Uma luminosidade ofuscante passou por cima do topo das elevações que cercavam o vale e pedras incandescentes caíam ao chão. O okrill sacudiu-se contrariado quando uma pedra o atingiu na cabeça e se despedaçou. Uma cortina de cinzas incandescentes passou por cima dos homens. As raras plantas raquíticas que mal e mal conseguiam manter-se vivas entre a lava esfriada ficaram pretas e desmancharam-se. Omar prendeu a respiração enquanto a nuvem não passou.

Um tremor de terra sacudiu a rocha. Por acaso Omar olhou para trás. Contemplou Vega, que já devia estar no poente.

Levou alguns segundos para compreender o fenômeno. Encontravam-se no pólo sul de Pigell. Durante o verão o sol polar certamente brilhava também de noite.

Quis levantar para comunicar sua descoberta, mas um novo tremor de terra obrigou-o a ficar de joelhos. Espantado primeiro, depois apavorado viu uma fenda larga, que ia aumentando com uma rapidez extraordinária.

O oxtornense pôs-se de pé de um salto. Correu para o lugar em que Rhodan e Tschubai se tinham abrigado, levantou-os à força e prendeu-os embaixo dos braços. Com dois saltos colocou-se ao lado da fenda, que já tinha alguns metros de largura. A rocha que rachara foi baixando.

Omar Hawk saltou por cima da fenda. Atrás dele a rocha desmoronou de vez. Uma faixa de cerca de dez metros de largura caiu ruidosamente na fenda, levantando uma grande nuvem de poeira.

O okrill conseguiu pôr-se a salvo no último instante. — Desculpem o tratamento grosseiro — disse Omar. Perry Rhodan fitou-o com uma expressão estranha nos olhos. — É a segunda vez que o senhor salva minha vida, dentro de dois dias. Não sei se um

dia poderei retribuir, Hawk... Omar limitou-se a sorrir. — A melhor forma de retribuir é aceitar os dados do presente como uma coisa

natural, senhor — respondeu, numa alusão a certa observação que o Administrador-Geral fizera horas atrás. — Mas, falando sério, o que faremos em seguida? — acrescentou. — Acha que devemos ficar aqui até que alguém venha buscar-nos?

Page 221: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

221

Neste instante lembrou-se da descoberta que acabara de fazer. — A propósito. Estamos no pólo sul, senhor. Se não fosse assim, Vega já se teria posto

há tempo. — Com isso o senhor está respondendo à sua pergunta — retrucou Rhodan. — Ou

será que o senhor pretende percorrer a pé algumas dezenas de milhares de quilômetros? Antes que o oxtornense tivesse tempo de dar uma resposta, ouviu-se uma forte

pancada. Era como se um gigantesco objeto batesse num enorme gongo. Os três homens encolheram-se instintivamente. O que viram em seguida fez com que gritassem apavorados. Uma gigantesca esfera com um brilho metálico rolou pelas encostas do vale: era uma

nave auxiliar da classe Corveta...! Pouco antes de atingir o fundo do vale, a espaçonave bateu numa rocha saliente,

saltou alguns metros para o alto — e depois disso desceu ao chão com uma lentidão surpreendente. As colunas de sustentação telescópicas saíram do corpo metálico, encolheram-se por causa do impacto e voltaram à posição original numa ação de molejo.

No mesmo instante o campo defensivo acendeu-se. — Eles nos encontraram! — exclamou Ras Tschubai jubilante. — Ou nós os encontramos! — observou Rhodan em tom áspero. — Tenho a

impressão de que isto não foi um pouso programado. — Seja como for, a tripulação está viva — objetou Omar Hawk. — Do contrário não

poderiam ter acionado os projetores antigravitacionais e o campo defensivo. Rhodan modificou com movimentos rápidos a regulagem de seu telecomunicador. — Alô, nave auxiliar! — gritou, nervoso. — Favor responder, nave auxiliar. Rhodan

falando! Omar Hawk também colocou o capacete, para ouvir a resposta que seria transmitida

pelo receptor embutido em seu capacete. Mas não houve nenhuma resposta! O Administrador-Geral levou quase dois minutos repetindo sua mensagem

estereotipada — mas não conseguiu nada. Omar fitava com os olhos semicerrados a esfera de aço de 60 metros de diâmetro, em

cujo campo defensivo as nuvens de gases e cinzas se desmanchavam em meio a uma ofuscante luminosidade.

— Deixe que eu vá para lá, senhor — pediu, dirigindo-se a Rhodan. — O senhor poderá dar-me cobertura durante a descida, se bem que eu não acredite que seja uma armadilha.

Perry Rhodan fitou-o com uma expressão de espanto. — O que pretende fazer lá embaixo? Nem mesmo o senhor será capaz de atravessar o

campo defensivo de uma corveta, mesmo que o campo de hipercarga não tenha sido ativado.

— Toda nave do Império possui um sistema de alerta automático, não é mesmo? — respondeu Omar com um sorriso. — Um ataque com armas energéticas faria soar imediatamente as sereias de alarme. Isso talvez sirva para acordar os tripulantes.

— O senhor será alvejado por um canhão energético — observou Rhodan, irônico. — Basta que o alerta automático esteja acoplado com o sistema de defesa automático...

— Poderia tentar mais uma teleportação, senhor — disse Ras Tschubai em tom delicado.

Rhodan sacudiu a cabeça, mas acabou concordando. Ninguém sabia se a tripulação ainda acordaria. Era bem possível que os projetores antigravitacionais e o campo defensivo tivessem sido ligados no último instante por um tripulante mortalmente ferido.

Page 222: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

222

O afro-terrano inclinou a cabeça. Olhou com o rosto impassível para a nave auxiliar. Finalmente desapareceu, provocando os fenômenos que costumam acompanhar o processo de teleportação.

Omar prendeu a respiração. Será que Ras acabaria sendo novamente atirado para trás — por uma força que eles

não conheciam...? De repente o campo defensivo apagou-se. — Tudo em ordem, senhor! — disse a voz saída do telecomunicador. — Os tripulantes

estão inconscientes. Quer que vá para aí com a nave? — Não faça isso — respondeu Rhodan. — Vamos aí. Já pode abrir a eclusa inferior. Foi uma descida difícil pela rocha quebradiça e os seixos espalhados no chão, embora

Hawk carregasse o Administrador-Geral nos lugares mais difíceis. Mas o okrill desceu em grandes saltos. Pulava por cima das pedras soltas ou das fendas no chão. Passou pela corveta, desenvolvendo a velocidade de um planador, e espojou-se gostosamente na areia escaldante.

Quando Omar e Rhodan chegaram perto da nave, só viram os olhos redondos de Sherlock sair do chão. O okrill se enterrara e se deleitava visivelmente com o calor, que teria matado um ser humano dentro de poucos segundos.

O oxtornense chamou-o com um assobio. — Às vezes este animal me assusta, Hawk — observou Perry Rhodan, abanando a

cabeça. — Todos os animais de seu mundo são tão resistentes como este? — Todos, senhor. Mas assim mesmo Sherlock ainda é um exemplar especial. Seus

antepassados foram levados para Oxtorne por um grupo de astronautas da raça dos maarn, que foi obrigado a fazer um pouso de emergência. Até hoje ninguém sabe onde fica seu mundo de origem.

— Existem muitos mistérios que nunca conseguiremos resolver — disse Rhodan. Os dois atravessaram a eclusa da corveta. O zumbido monótono dos geradores de

energia funcionando em ponto morto vinha do interior da nave. Parecia que as máquinas não tinham sido afetadas pelo impacto. O elevador central estava funcionando perfeitamente.

Mas na sala de comando as coisas não pareciam tão boas. Duas poltronas arrancadas dos suportes tinham despedaçado a fileira de telas de bombordo. Os homens que estavam sentados nestas poltronas jaziam no chão, banhados em sangue. Ras Tschubai cuidou deles.

— Só sofreram alguns cortes — disse em tom tranqüilizador. Omar e Rhodan trataram de ajudar os outros feridos. Acabaram de cuidar dos homens

que guarneciam a sala de comando e dirigiram-se às torres de canhões e à sala de controle de máquinas.

De um modo geral, as conseqüências do acidente não tinham sido muito graves. Não havia nenhum morto, embora alguns tripulantes tivessem sofrido fraturas, concussões cerebrais e cortes. Os neutralizadores de pressão tinham amortecido a força do impacto no interior da corveta, onde só uma pequena parte das forças desencadeadas por este se fizera sentir.

O comandante, Tenente Aprenin, que foi o primeiro a recuperar os sentidos, contou o que tinha acontecido.

Perry Rhodan não fez nenhum comentário, mas seu rosto assumiu uma expressão sombria. Deu ordem para que a nave decolasse. Tanto ele, como Tschubai e Hawk possuíam breves espaciais e sabiam como lidar com os principais modelos de espaçonave do Império. Fizeram a checagem, ajudados por Aprenin. Toda a aparelhagem funcionava satisfatoriamente.

— Tudo pronto? — perguntou Rhodan. Seu rosto ainda parecia uma máscara.

Page 223: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

223

— Pronto! — responderam Hawk, Aprenin e Tschubai ao mesmo tempo. O rosto do Administrador-Geral ficou ainda mais pálido. Ligou os propulsores com

movimentos automáticos e empurrou para a frente a alavanca de regulagem do empuxo. A KC-44 subiu em meio a um oceano de fogo e poeira. O rosto de Rhodan descontraiu-

se um pouco. Em seguida houve o terrível impacto numa coisa invisível. A corveta foi atirada para trás, balançou, correu de novo de encontro à coisa invisível

— e teria caído, se Perry Rhodan não tivesse ligado os jatos para a retropropulsão antes que fosse tarde. A nave tocou violentamente o chão.

Com um movimento que mostrava que se tratava de um gesto definitivo colocou a alavanca dos propulsores na posição de desligado.

* * *

O Lorde-Almirante Atlan levantou abruptamente a mão que segurava a arma e

disparou uma série inútil de tiros energéticos atrás da nuvem-fantasma. — Onde está seu telecomunicador, John? — perguntou em tom exaltado. John Marshall não respondeu. Apenas levantou a mão. Estava com os olhos fechados,

mostrando que prestava atenção ao que se passava dentro dele. Atlan conhecia os sinais exteriores de um contato telepático. Fechou a boca e pôs-se a

esperar pacientemente. Houve uma mudança assustadora no rosto de Marshall. Ficou desfigurado numa

expressão de pânico. O suor cobriu sua testa. Os lábios tremiam. O telepata cambaleou, dando a impressão de que acabara de sofrer um golpe psíquico. Melbar Kasom apoiou-o. Com um suspiro, Marshall voltou à realidade. Profundas rugas de amargura surgiram em torno de seus lábios quando começou a falar.

— Matamos seres inteligentes — disse. — Trucidamo-los como se fossem monstros... — Não compreendo — disse Atlan, deprimido pelo pressentimento da desgraça que

estava para vir. — Os répteis! São telepatas — o mutante libertou-se da mão de Kasom que o

segurava e apontou para o campo de batalha. — Um deles ainda está vivo. Captei seus pensamentos.

— Como poderíamos saber disso? — perguntou Kasom, assustado. — Por que não entraram logo em contato com o senhor, já que são telepatas?

O telepata levantou os ombros. — Vou perguntar a ele. Mas primeiro temos de encontrá-lo. Está ferido e precisa de

auxílio. John Marshall levou apenas alguns minutos para encontrar o réptil ferido. Estava

deitado de lado e sangrava de uma ferida no ventre. Seis soldados sacrificaram as ataduras de seu equipamento de primeiros socorros para estancar o sangue e fazer um curativo. Melbar Kasom injetou um medicamento regenerador no réptil.

Depois disso Marshall voltou a entrar em contato mental com o réptil. Quando encerrou a “conversa”, parecia arrasado. — Eles se chamam de Tankan — disse. — Seu grau de inteligência equivale mais ou

menos ao de um neandertalense terrano. Mas são telepatas de grande capacidade. Infelizmente sua faculdade telepática é afetada pelos instintos muito acentuados. Isso explica por que eles me atacaram, embora devessem sentir que eu era um telepata. O Tankan alega que eu irradiava agressividade, e eles não foram capazes de defender-se contra este sentimento, que tomou conta de seu consciente e os obrigou a atacar.

Lançou um olhar pensativo para o lorde-almirante.

Page 224: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

224

— Descobri mais uma coisa. Outro grupo de Tankan, com o qual os exemplares daqui mantêm contato, teve um encontro com o Administrador-Geral.

Atlan inclinou-se e agarrou os ombros de Marshall. — O quê...? Perry...? Pergunte a este lagarto onde Perry Rhodan se encontra no

momento. Vamos logo! John Marshall voltou a concentrar-se. Depois de algum tempo abriu novamente os

olhos e sacudiu a cabeça. — Ele não sabe, Atlan. O contato com o outro grupo foi interrompido há algum tempo.

Quando tiveram notícias dele pela última vez, o Administrador-Geral estava atravessando um mar de lama. Os outros Tankan ajudaram-no. Mas o ferido não sabe qual é sua posição.

Melbar Kasom praguejou. No mesmo instante o réptil fez um movimento, pôs à mostra uma robusta fileira de dentes e rosnou ameaçadoramente.

Marshall fitou o ertrusiano com uma expressão de recriminação. — Trate de controlar-se, Kasom! Eu já disse que a agressividade humana contagia os

Tankan. — Isso... certo! — reforçou o Tankan surpreendentemente, usando a língua universal

de Andrômeda. Atlan e seus companheiros recuaram chocados. Mas Marshall sorriu como quem

compreendia. — Que... que foi isso? — perguntou Kasom num gemido. — A fala... sobre D’ulh Orgh — respondeu o Tankan. — D’ulh Orgh ser mau. Rhodan

saber. Muitos Tankan mortos quando D’ulh Orgh atacar. — O que ele quer dizer é que estes D’ulh Orgh destruíram certas plantas que os

Tankan têm de comer para não morrer de uma deficiência alimentar. — Os D’ulh Orgh são os tefrodenses da estação do tempo, não são? — perguntou

Atlan. — Se forem, diga a Tankan que não tem mais nada a temer. O mutante confirmou com um gesto, mas de repente estremeceu fortemente. — Não! — exclamou em inglês. — Os seres que ele chama de D’ulh Orgh não são os

tefrodenses, Atlan. Reconheci por um instante a imagem que o Tankan traz na mente, antes que ele pudesse bloqueá-la. Parece que a representação mental destes seres representa a violação de um tabu. Os forasteiros em que ele está pensando são seres de tamanho humano, que possuem membranas voadoras semelhantes às dos morcegos.

O arcônida levou alguns segundos para responder. — Espero que o senhor saiba o que isso significa para nós. Se além dos tefrodenses

existem outros seres estranhos por aqui, eles podem tomar-se perigosos. Quem sabe se as chamas nuvens-fantasma não são dirigidas por estes seres? Será que se trata de um produto fabricado por estes D’ulh Orgh?

— Com isso o desaparecimento de Rhodan deve ser visto de um outro ângulo — observou Melbar Kasom. — Será que o senhor não poderia convencer o Tankan a entrar em contato com o grupo em cuja companhia se encontra o chefe, John?

Marshall olhou para o gigante ertrusiano com uma expressão de dúvida. Finalmente deu de ombros.

— Não custa tentar — disse. Sentou ao lado do réptil, colocou a mão sobre seu pescoço e fechou os olhos. Dentro de alguns minutos o Tankan começou a ficar nervoso. Mexia com a cabeça,

como quem está à procura de alguma coisa. As narinas abriam-se, e os olhos pareciam voltados para dentro.

Dali a meia hora John Marshall abriu os olhos — e caiu exausto. Um tratamento com oxigênio puro e cápsulas energéticas fez com que recuperasse as forças.

Page 225: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

225

— O chefe corre um perigo enorme — informou. — Encontra-se em poder das nuvens-fantasma, na ilha-continente do pólo sul, não se sabe exatamente onde. Foi só o que o Tankan pôde informar. Não pôde dizer de que espécie é o perigo.

Atlan ficou imóvel por um segundo. Logo seu corpo entesou-se. — Darei ordem para que a Crest decole imediatamente com destino ao pólo sul. Nem

mesmo as nuvens-fantasma serão capazes de resistir ao seu poderio. Vamos logo, John Onde está seu telecomunicador? Já fiz esta pergunta.

O chefe do exército dos mutantes baixou os olhos como quem se sente culpado. — Deixei-o cair quando fugia dos répteis. Um dos Tankan esmagou-o com os pés

pouco antes que o senhor chegasse. Não temos a menor possibilidade de entrar em contato com a Crest.

* * *

Perry Rhodan resignou-se e desligou o telecomunicador. O alcance do aparelho

instalado a bordo era muito maior que as dimensões do planeta, mas apesar disso não fora possível estabelecer contato com a Crest.

— Vamos tentar o hipercomunicador? — perguntou Ras Tschubai. Rhodan riu amargurado. — Podemos tentar. Mas não acredito que consigamos alguma coisa. A área em que

nos encontramos está sendo bloqueada por alguma influência energética. A causa deve ser procurada nas nuvens-fantasma, e por isso certamente não conseguiremos romper o cerco nem mesmo com as hiperondas. Qualquer coisa capaz de transportar um objeto pela quinta dimensão está em condições de absorver os impulsos ultraluz.

Ativou o hipercomunicador da KC-44 sem demonstrar muito entusiasmo. As luzes de controle acenderam-se, mostrando que o aparelho estava em condições de funcionamento. O Administrador-Geral conduziu um mínimo de energia para o aparelho. Não queria que a mensagem fosse captada por algum receptor tefrodense ou halutense, dos quais certamente ainda existia bom número na galáxia.

Em seguida mandou irradiar o pedido de socorro da frota. Depois de tentar durante dois minutos, sem obter resposta, foi aumentando a

potência da transmissão progressivamente de um para cinqüenta por cento de sua capacidade. O receptor continuou em silêncio.

Num gesto resoluto, desligou o aparelho. As luzes de controle apagaram-se e o zumbido monótono foi interrompido.

— Ainda existe uma possibilidade, senhor...! — disse Omar Hawk em meio ao silêncio deprimente. — O kalup.

Tschubai riu debochado. — Antes de entrar no hiperespaço, teríamos de entrar no espaço de quatro

dimensões. E este está fechado para nós. — E daí? — retrucou Omar. — O espaço linear está presente em toda parte. Inclusive

aqui. Perry Rhodan sobressaltou-se. — O senhor ficou louco, Hawk! Sabe qual é o risco da entrada no espaço linear a

partir de uma posição de imobilidade — ainda mais com a nave pousada...? — Deformações dos campos magnéticos, fadiga do material, choques psíquicos,

modificação das constantes gravitacionais do planeta... — disse o oxtornense com a voz fria, enumerando as possíveis conseqüências de uma operação dessa espécie. — Talvez a nave seja destruída, talvez todo o planeta. Mas o fato é que se não conseguirmos sair daqui o Império desmoronará, senhor. Não quero acusá-lo por isso, mas não se pode negar que o

Page 226: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

226

bem-estar da humanidade ainda depende principalmente de sua pessoa. O senhor não pode assumir o risco de ver um império enfraquecido esfacelar-se sob as investidas vindas de Andrômeda.

— Que discurso comprido, oxtornense! — disse Perry Rhodan entre os dentes. — Infelizmente tem toda razão. Tudo bem! Vamos tentar com o kalup.

Os tripulantes feridos, alguns dos quais continuavam inconscientes, foram presos com os cintos, com as poltronas anatômicas colocadas na horizontal. Rhodan fez questão de que todos os trajes espaciais ficassem fechados. Queria que os riscos para a vida dos homens fossem os menores possíveis.

Uma vez concluídos os preparativos, Rhodan, Omar, Ras e Aprenin amarraram-se às poltronas que ficavam à frente do console principal.

— Tschubai, cuide dos controles dos armamentos. Se as nuvens-fantasma nos atacarem antes que tenhamos tempo de entrar no espaço linear, use contra elas tudo que possuímos — com exceção dos canhões conversores, naturalmente.

Omar Hawk pigarreou. — Queira desculpar, senhor, mas peço que não atire nas nuvens. — Por quê? — perguntou Perry Rhodan, fitando o oxtornense com uma expressão de

espanto. — Não tenho a resposta a essa pergunta, senhor — Omar deu de ombros. — Tenho

uma espécie de sexto sentido que me alertou para isto. Talvez seja em parte porque por enquanto as nuvens-fantasma não representaram um perigo grave para nós, apesar de termos destruído milhares delas.

O Tenente Aprenin deu uma risada de deboche, mas calou-se diante do olhar de reprovação de Rhodan.

O Administrador-Geral fitou prolongadamente o oxtornense. Finalmente acenou com a cabeça.

— Acho que o senhor superestima essas figuras, caso queira atribuir-lhes certo grau de inteligência e um elevado senso moral, Hawk. Mas passando aos fatos, não posso deixar de dar-lhe razão. De fato, não temos nenhuma prova de que as nuvens-fantasma quisessem fazer-nos algum mal. Tschubai, revogo a ordem que acabo de dar. Só atire se eu lhe der ordens expressas para isso ou se não estiver em condições de fazê-lo, caso observe alguma coisa que represente um perigo iminente de destruição para nós.

O rosto negro do teleportador permaneceu impassível quando confirmou a ordem recebida. Estava habituado a confiar no Administrador-Geral, mesmo que não compreendesse logo o sentido de alguma ordem.

Perry Rhodan lançou mais um olhar para as telas de imagem. Os vulcões continuavam a lançar línguas de fogo para o céu, nuvens de cinzas e gases incandescentes rolavam pelo vale, numerosas nuvens-fantasma aproximavam-se e eram arrastadas para o alto pelas correntes de ar ascendentes.

Por uma questão de hábito arraigado aproximou o microfone aos lábios, o que na situação em que se encontravam era completamente inútil.

— Atenção! Entraremos no espaço linear dentro de um minuto! Ligou a contagem regressiva robotizada. O tiquetaquear que já estavam acostumados

a ouvir tinha algo de assustador, porque não estava soando no espaço cósmico, mas na superfície de um planeta.

Os reatores de fusão instalados na nave entoaram a música retumbante que desde o início acompanharam o homem na sua caminhada pelo espaço. As paredes da nave vibravam de forma quase imperceptível:

O estrondo de uma voz mecânica se fez ouvir em meio ao ruído. — Atenção. Faltam dez segundos para a entrada no espaço linear! Nove... oito... sete...

Page 227: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

227

Perry Rhodan colocou a mão sobre a chave acionadora do conversor kalup. — Três... dois... um... zero! Perry Rhodan empurrou para baixo a mão pousada sobre a chave. Luzes vermelhas,

verdes e amarelas atravessaram o painel de controle. Os mostradores eletrônicos dos instrumentos executaram uma dança louca. Omar Hawk percebeu tudo isso numa fração de segundo, enquanto o kalup abafava os outros ruídos e o quadro do universo ao qual estavam familiarizados desaparecia diante de seus olhos.

Uma sombra gigantesca que deixava passar a luz apareceu à frente da tela de imagem. Parecia uma imagem má de televisão, cheia de chuviscos; mas era uma imagem tridimensional.

Omar teve a impressão de que estava inchando que nem um balão. Ao mesmo tempo sentiu alguma coisa apertá-lo. Era como se uma força tremenda apertasse seu coração. Numa reação descontrolada, bateu contra o fecho geral dos cintos de segurança. Sua mão cerrada atravessou o nada, mas este nada continuou visível como um quadro fantástico. Todos os objetos pareciam ser feitos de uma substância cinzenta granulosa. Até mesmo seu corpo não passava de uma reunião de manchas ou grãos cinzentos, que deixava passar livremente a luz entre seus intervalos. Mas apesar disso as substâncias cinzentas formavam o quadro existencial de um corpo humano.

O oxtornense avançou tateante em direção ao console de comando junto ao qual estava sentado Rhodan. Olhava para o painel de comando do sistema de propulsão linear como se tivesse sido hipnotizado.

Neste instante a voz irônica do Administrador-Geral se fez ouvir. — Não se incomode, Hawk. Já tentei várias vezes. Não é possível. Minha mão parece

ter perdido a substância. O Tenente Aprenin, que se encontrava a seu lado, irrompeu numa estridente risada

histérica. — Cale a boca! — disse Ras Tschubai em tom enérgico. Omar Hawk tentou descobrir por que aquelas vozes lhe pareciam tão estranhas. Não

conseguiu. — Não estamos no espaço linear, não é mesmo? — perguntou. — Não... — respondeu Rhodan em tom hesitante. — Mas também não nos

encontramos no conjunto espácio-temporal normal da quarta dimensão. Na verdade, é uma coisa que não conhecemos.

— O fenômeno não tem nenhuma ligação direta com a decolagem a partir da posição parada, senhor — observou Ras Tschubai. — Nunca observei coisa semelhante.

— Ainda sou de opinião que antes de mais nada deveríamos ter destruído todas as nuvens-fantasma! — exclamou Aprenin com a voz carregada de ódio.

No mesmo instante soltou um grito com o qual exprimia toda a angústia de que um ser humano é capaz.

Omar prendeu a respiração. Quis pôr a mão na arma ao ver a nuvem branco-acinzentada atravessar as paredes da nave e entrar na sala de comando...!

Sempre pudera enxergar as nuvens-fantasma de uma forma diferente das outras pessoas, através dos olhos de Sherlock. Mas desta vez estava vendo muito mais, embora só estivesse usando os próprios olhos.

Milhões ou bilhões de figuras irregulares achatadas, vinham entrando, flutuando ao lado, em cima e embaixo uma das outras. Fios brancos estendiam-se entre os objetos, formando com elas uma rede cheia de nós. Em cada uma das figuras pulsava, embaixo de uma pele transparente, com aspecto de vidro, um líquido viscoso, que envolvia um núcleo cinzento, cercado por uma área mais clara.

Page 228: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

228

— São células! — exclamou o oxtornense de si para si. — Bilhões de células ganglionares, ligadas por fibras nervosas e coordenadas num supercérebro autônomo, que não possui corpo que possa ser governado por ele. Diante disso não teriam de surgir forçosamente outras faculdades, sem as quais o organismo pouco coeso não teria nenhuma finalidade...?

— Monstro! — disse o supercérebro. — A falha na evolução natural não pode servir de desculpa ao comportamento de vocês que possuem inteligência e podem decidir livremente sobre o comportamento a adotar.

O que deixou Omar Hawk mais abalado no primeiro instante não foi tanto o sentido destas palavras como o fato de que era capaz de entender a mensagem do supercérebro. Como fazia para falar, já que, segundo tudo indicava, não possuía órgãos de fonação?

No mesmo instante compreendeu por que as vozes dos companheiros lhe pareceram estranhas. É que não as percebera através do ouvido, mas captara-as diretamente com o cérebro.

— Por que não conhecem outra resposta aos seus problemas senão a violência física? — prosseguiu a nuvem. — Têm de matar em vez de pensar? Têm de realizar sua evolução exclusivamente numa área da técnica que visa ao assassínio em massa organizado? Por que permitem que seu espírito se atrofie, enquanto se encantam com as armas destrutivas cada vez mais aperfeiçoadas, as armas energéticas cada vez mais potentes, a velocidade com que podem ser destruídos os mundos...?

— Ninguém pode viver em paz enquanto houver alguém que quer sua destruição — disse Perry Rhodan. — Os procedimentos abomináveis nos foram impostos. Acha que devemos renunciar à própria existência, somente para permanecer fiéis a certos ideais fundados na moral?

— O que você acaba de dizer representa o pensamento de um animal dirigido pelo instinto e não é digno de um ser dotado de raciocínio — respondeu a voz. — Vocês podem proteger melhor sua existência física dando livre curso à evolução do espírito. Lutem pensando! Usem as armas do espírito para modificar o pensamento do inimigo, mas não destruam aquilo que não criaram. Mas sabemos perfeitamente que vocês não poderão mudar mais. São o produto de uma falha na evolução natural. Por isso mesmo não têm nenhuma chance.

— Quer dizer que pretendem destruir-nos? — perguntou Rhodan em tom sarcástico. — Isso só prova que sua teoria é ridícula.

— Nunca destruímos qualquer forma de vida — respondeu o supercérebro em tom suave. — Mas evitaremos que vocês voltem à sua dimensão e continuem na trilha sangrenta que vinham seguindo. Vocês viverão aqui. Talvez isso sirva para curar a doença que ataca seu espírito. Vocês têm uma eternidade para isso.

O supercérebro atravessou as paredes da sala de comando e desapareceu. Os homens viram-se a sós de novo. Ficaram calados, porque seu espírito foi incapaz de sacudir o horror que os paralisara.

* * *

Os homens do comando de desembarque estavam sentados em círculo. Mantinham os

capacetes pressurizados fechados, enquanto a chuva e a tempestade agitava seus conjuntos-uniforme. Os fuzis energéticos descansavam sobre os joelhos dos homens. Não havia mais nada em que se pudesse atirar.

Atlan estava de pé fora do círculo, com as pernas afastadas. Resistia teimosamente à força do vento. Fitava com os olhos semicerrados os desenhos abstratos traçados pelos

Page 229: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

229

relâmpagos cor de enxofre, que desciam incessantemente do céu encoberto, rasgando impiedosamente as copas das árvores.

Lançou um olhar de desprezo para Melbar Kasom, que enfrentava o calor fumegante com o rosto muito vermelho, somente para poder empanturrar-se com os pedaços de carne que tirava do saco de mantimentos.

Os cadáveres dos répteis espalhavam um cheiro horrível. O ar tépido acelerava o processo de decomposição dos corpos. Moscas voadoras do tamanho de um punho humano tinham depositado bilhões de ovos. As larvas que saíram deles disputavam a carne com as bactérias da putrefação.

Atlan apressou-se em fechar a pequena eclusa de seu capacete, que usara para recolher uma amostra de ar.

Passou por cima das pedras escorregadias e das plantas fibrosas em forma de medusa e sentou perto de John Marshall. O telepata estava sentado ao lado do Tankan ferido, que fora carregado para o alto da colina. O réptil recuperava-se rapidamente. Dentro de pouco tempo poderia voltar à floresta — ou nadar para uma das ilhas nas quais ainda viviam outros indivíduos de sua espécie.

— Não descobriu mais nada, John? Marshall sacudiu a cabeça. Parecia desanimado. — O Tankan pensa que pode negociar com as nuvens-fantasma, mas parece que estas

não demonstram nenhum interesse. Precisamos ter paciência, Atlan. — Paciência...! — disse o arcônida com uma risada amargurada. — Posso garantir que

aprendi a ter muita paciência durante meu exílio involuntário de dez mil anos no planeta Terra. Mas não ficarei inativo, enquanto o tempo destruir tudo o que conseguimos.

— O que pretende fazer, Atlan? — perguntou Marshall. — Só nos resta esperar que sejamos localizados por uma das naves empenhadas nas

buscas — ou que o Tankan consiga estabelecer contato com as nuvens-fantasma! O lorde-almirante levantou abruptamente. Enfrentou obstinadamente a tempestade

que ameaçava derrubá-lo. — Ainda posso usar meu traje de combate especial, John. É possível que o senhor

acabe sendo encontrado antes que eu chegue à Crest, mas prefiro não confiar muito nisso. — O senhor é o único que trouxe o traje de combate equipado com o micro-propulsor

siganês! — advertiu o telepata. — Ninguém poderá acompanhá-lo. Se houver uma pane em cima do mar de lama o senhor estará perdido, Atlan. O arcônida riu despreocupado.

— Os micro-propulsores siganeses não estão sujeitos a panes, John. Além disso já tive de arriscar muitas vezes a vida desde que estou com os terranos. Uma vez mais não importa.

Marshall levantou. — Bem que eu gostaria de poder dizer que consigo controlar seus pensamentos, mas

seria uma mentira. Desde que o Chefe desapareceu nem sequer consigo contato telepático com Gucky. E olhe que isso é uma coisa difícil de acontecer. O planeta em que nos encontramos é uma armadilha diabólica, Atlan. Mas sei perfeitamente que quando resolve uma coisa ninguém o faz desistir. De qualquer maneira, faço votos de que dê certo — passou a falar em voz mais baixa. — Se temos de perder Rhodan, precisamos que pelo menos o senhor continue conosco.

Atlan engoliu fortemente em seco. Não conseguiu dizer mais nada. Apertou a mão do telepata e fez meia-volta para trazer seu equipamento.

Melbar Kasom ajudou-o, depois de tentar em vão obter permissão de Atlan para ir em seu lugar. O gigantesco ertrusiano examinou o equipamento com um cuidado que ninguém teria esperado encontrar em suas mãos grosseiras.

— Tudo de bom, senhor! — exclamou depois que concluiu a verificação.

Page 230: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

230

Os homens do comando de desembarque fizeram continência. O arcônida retribuiu. Pôs a mão nos controles do traje de combate. Subiu devagar. O

micro-propulsor irradiava um fogo quase invisível, impelindo Atlan rapidamente em direção à costa do mar de lama.

O arcônida voou o mais baixo que os esguichos de vapor que surgiam como que numa explosão permitiam. De vez em quando os olhos de um monstro fitavam-no preguiçosamente, com uma expressão de indiferença. Serpentes gigantescas deslizavam sobre a lama em ebulição, desviando-se das salamandras que vinham à tona de vez em quando o lorde-almirante presenciava uma luta titânica. A lei da selva era tão implacável quanto a da civilização humana.

Quando sobrevoava o meio do oceano, Atlan teve de enfrentar um furacão. Levou quase uma hora lutando em vão contra as forças tremendas do ciclone. Foi atirado para cima, acelerou ao máximo para escapar à tormenta, mas acabou indo de um redemoinho para outro. Quando a tempestade passou, teve de orientar-se de novo. Viu que se afastara uns sessenta quilômetros da rota.

Prosseguiu obstinadamente no vôo. O micro-propulsor funcionava perfeitamente, apesar do tratamento rude ao qual acabara de ser submetido. O dispositivo antigravitacional neutralizava seu peso, e por isso conseguia avançar rapidamente.

Dali a uma hora sobrevoou uma ilha pequena. Atrás dela havia outra área lamacenta. Mas foi o último obstáculo que teve de vencer. Dentro de uma hora a costa do continente ao qual fora dado o nome de Serra do Norte devia aparecer na linha do horizonte.

Já estava anoitecendo. Nuvens de neblina densa subiam do mar, envolviam o arcônida e obrigaram-no a orientar-se pelo feixe de luz do farol infravermelho.

Foi por causa da neblina que só reconheceu a formação típica das nuvens-fantasma quando estas já o envolviam. Numa raiva impotente puxou a arma.

Mas antes que pudesse pôr o dedo no botão acionador a neblina desapareceu — e Atlan caiu numa poça de lama, que não deveria estar no lugar em que pouco antes se encontrara.

Seu micro-propulsor o fez girar, mais ou menos como acontece com uma mosca que cai num pote de melado. O caldo viscoso fechou-se por cima de seu capacete, e Atlan chegou a temer que fosse impelido para o fundo do buraco. Felizmente conseguiu encontrar o comando embutido no cinto e desligar o propulsor antes que fosse tarde.

Como continuava a não ter peso, foi impelido rapidamente para a superfície da poça de lama. Com dois saltos conseguiu pôr-se a salvo junto à margem. Desligou o micro-antigravitador e olhou em volta.

A primeira coisa com que se deparou foram alguns troncos cobertos de musgos, e um montão de vermes de cerca de quarenta centímetros de comprimento que pastavam em cima de um cadáver de animal quase irreconhecível. De repente apareceu um fio muito fino, vindo não se sabia de onde, e envolveu um dos vermes.

Atlan levantou os olhos e viu um animal com aspecto de macaco, com membranas voadoras semelhantes ao couro, que estava sentado num galho e naquele momento começava a recolher o fio que segurava a presa. Num movimento ágil segurou o verme pela nuca, deu uma mordida nele — e envolveu-o em outro fio, que saiu abruptamente de uma glândula que ficava no ventre.

Depois disso o animalzinho mostrou os dentes e fitou o arcônida como quem quer fazer pouco-caso de alguém. Não levou mais de um segundo para agarrar a presa com o focinho e sair voando.

Atlan sorriu, virou a cabeça — e recuou apavorado. Havia um réptil gigante parado apenas alguns metros atrás dele. Até parecia ter brotado do chão. Os olhos enormes

Page 231: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

231

pareciam fitá-lo com uma expressão faminta, enquanto o par das pernas do meio se mantinha ocupado em coçar o ventre gigantesco.

Atlan abriu instintivamente os braços, para pôr as mãos nas duas armas que trazia presas ao cinto. Mas logo se deteve.

O animal que se encontrava à sua frente era um Tankan. Qualquer pensamento agressivo o levaria a atacar...!

Atlan sentiu-se ridículo, parado, tentando levar seus pensamentos a uma trilha agradável e amistosa, embora não se sentisse nem um pouco agradável.

— Paz! — conseguiu dizer, fazendo um grande esforço. O réptil não reagiu à palavra e Atlan deu-se conta de que se esquecera de ligar o alto-falante externo de seu capacete. Reparou a falha e repetiu a palavra dita a título de cumprimento.

— Paz! — respondeu o Tankan. Outros gigantes da selva de Pigell igual ao que se encontrava perto de Atlan passaram

entre os troncos. Devia ser pelo menos uma centena. Atlan reconheceu que, se não tivesse recuado logo do seu intento, estaria perdido.

— Atlan! — disse, batendo no peito. — Procuro meu amigo Rhodan. Foi ajudado por outros Tankan, mas... — não encontrou logo a palavra capaz de fazer com que os répteis compreendessem o que queria dizer — ...mas ele foi levado pelas nuvens vindas do céu.

— Nós... Tankan sabem — respondeu o réptil que aparecera em primeiro lugar. — Rhodan também meu amigo. Ajudei. Mas nuvem nos levam para cá e para lá.

O arcônida sentiu que o nervosismo lhe enchia os olhos de água, um fenômeno que correspondia à transpiração de outros povos. Então eram estes os Tankan com que Rhodan se encontrara!

— As nuvens também são meus inimigos — disse. — Elas me trouxeram para cá. — Nuvens não inimigos — protestou o Tankan em tom violento. Os outros rugiram,

apoiando suas palavras. — Nuvens amigos, Rhodan amigo, você amigo, Tankan amigo. Estas palavras deixaram Atlan confuso. Não sabia como combinar o fato de que as

nuvens-fantasma eram amigas dos Tankan, quando os tinham teleportado. — Mas elas mantêm Rhodan preso! — exclamou desesperado. O Tankan ficou calado por algum tempo, enquanto seus olhos assumiam uma

expressão distraída. — Se preso, violou a lei — disse finalmente com a voz calma. — Nós não ajudar.

Rhodan não voltar mais. Atlan fitou os répteis. Estava triste. Sabia que não havia mais esperança. Virou-se

lentamente e saiu andando. Transformara-se num homem que reconhecera que havia um limite para seu poder,

um limite que não podia ser atravessado.

Page 232: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

232

6 Ligou o micro-propulsor e deixou-o em funcionamento. O chiado fraco do aparelho

fez com que sua mente voltasse à realidade. De repente compreendeu qual era o erro cometido pelas misteriosas nuvens-fantasma.

Pôs a mão na chave do micro-propulsor e colocou-a na posição desligado. O chiado desapareceu. Voltou para junto dos répteis e parou bem à frente de seu interlocutor.

— Há mais uma coisa que eu quero dizer. Matamos os seres de sua espécie que viviam numa ilha. Todos, menos um...!

Transmitiu a informação num tom que quase chegava a ser indiferente. Até parecia que a morte de alguns seres inteligentes não o abalava nem um pouco. A naturalidade com que disse isso deixou os Tankan tão perplexos que ficaram parados, em silêncio.

Quando voltaram a animar-se e assumiram uma atitude ameaçadora, o arcônida levantou a mão.

— Foi um terrível engano. Ninguém teve a intenção de matar um ser inteligente que fosse. Mas os seres de sua espécie atacaram um dos nossos — e isso me levou a dar ordem de matar, em vez de negociar.

Alguns dos Tankan arranharam a terra com as garras, num gesto de embaraço. Tinham compreendido o que Atlan quis dizer. A agressividade parecia ter abandonado os répteis. Finalmente o interlocutor começou a falar.

— Eles mortos, porque vocês não saber amigo, eles não saber amigo... — É isso mesmo! — respondeu Atlan em tom áspero. — Nós, os humanos... — um

sorriso melancólico apareceu em seu rosto, quando se deu conta de que ele mesmo se classificara como humano — ...somos um tanto agressivos, mas no fundo não somos melhores nem piores que outras inteligências. Se atiramos antes de falar, isso acontece porque passamos por certas experiências que nos tornaram duros.

Levantou a voz e passou a falar em tom de recriminação. — No caso nenhum dos dois lados foi culpado, porque cada um achava que o outro

não possuía inteligência. Mas no caso das nuvens-fantasma somente elas são culpadas. Estavam em condições de informar-nos sobre sua verdadeira natureza. Se realmente se encontrassem num nível moral mais elevado que os humanos, deveriam ter tomado suas precauções para evitar a matança, em vez de permiti-la e em seguida arvorar-se em juízes.

Houve um movimento nas fileiras dos Tankan. Os répteis pareciam deprimidos. Reuniram-se e deram a impressão de que estavam realizando uma conferência telepática.

Dali a quinze minutos seu porta-voz voltou para perto de Atlan. — Resolvemos ajudar você e Rhodan — disse em tom singelo. — Você disse vocês

bons e maus, nós bons e maus, nuvens também boas e más. Nada somente bom, nada somente mau.

Atlan respirou aliviado, embora ainda não soubesse de que forma os Tankan poderiam ajudá-lo. O porta-voz dos répteis pediu que esperasse. Não disse mais nada.

Neste momento desabou mais uma trovoada, transformando a selva num inferno. Em toda parte as árvores tombavam ruidosamente. Chamas azuis apareceram nas antenas presas ao capacete de Atlan, enquanto o vento tangia pesadas nuvens de chuva pela superfície.

Em meio aos trovões e relâmpagos apareceram de repente inúmeras nuvens-relâmpago que emitiam um brilho fraco em cima da manada de répteis.

Atlan já ia pôr a mão instintivamente na arma energética, mas conseguiu controlar-se no último instante. Aguardou imóvel, enquanto os Tankan iam sendo envolvidos pelas

Page 233: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

233

nuvens e desmaterializavam. Seu coração palpitava fortemente quando uma das nuvens desceu devagar em sua direção.

Como poderia ter certeza de que as intenções dessas inteligências misteriosas não eram más? Será que podia confiar cegamente nelas?

Mas antes que terminasse seu pensamento, viu-se no meio de algumas rochas cobertas de musgos e encarou algumas armas energéticas levantadas, prontas para despejar sua energia mortífera.

Os músculos do ventre entesaram-se instintivamente. Mas as armas logo foram baixadas.

— Pelo sol Kreit! — disse alguém com a voz ensurdecedora. — É o lorde-almirante! A figura do ertrusiano voou por cima dos homens do comando de desembarque, que

estavam bem juntos, e foi parar aos pés de Atlan. Uma pata gigantesca agarrou a mão do arcônida, dando a impressão de que iria esmagá-la.

— Pare com isso, Kasom! — gritou Atlan. — Pare, se não mandarei cancelar seu nome da lista de mantimentos.

Melbar Kasom soltou a mão de Atlan e recuou apavorado. — O senhor só pode estar brincando...! Atlan fez um gesto de pouco-caso. Esperou que John Marshall se aproximasse. Os

soldados espaciais já tinham compreendido que os inúmeros répteis que se aproximavam não representavam nenhum perigo, já que o arcônida chegara quase ao mesmo tempo que os Tankan.

— Vejo que não conseguiu chegar à Crest — disse Marshall com um sorriso. — Acho que com a nave não conseguiria tanto — respondeu Atlan. Informou o telepata sobre a nova situação, mas este não lhe deu muita atenção. Dava

a impressão de que estava recebendo uma mensagem telepática. Quando Atlan concluiu, começou a falar devagar. — Parece que os Tankan e as nuvens-fantasma vivem numa espécie de simbiose —

disse. — Ainda não sei qual é o papel que os répteis desempenham nisso. O que é que eles poderiam oferecer aos supercérebros com dons parapsíquicos, que estes não pudessem arranjar sozinhos?

— Supercérebros? — perguntou o arcônida, espantado. — Quer dizer que as nuvens-fantasma são...

— ...são cérebros, cujas células nervosas apenas não formam um conjunto tão compacto como as dos seres humanos. Não me admirarei nem um pouco se nossos cientistas chegarem à conclusão de que, com uma compactação maior, as nuvens-fantasma não seriam maiores que o cérebro humano. Por favor, não me pergunte como um cérebro pode viver sem um corpo. Os Tankan não sabem, e eu não tenho a menor idéia.

Atlan voltou a controlar-se. — Na verdade, somos tolos por nos assustarmos sempre de novo, toda vez que nos

deparamos com uma forma de vida estranha. Acho que já vivemos bastante para estarmos protegidos contra surpresas deste tipo. Deve ser uma lei à qual não podemos fugir.

Pigarreou embaraçado ao ver a expressão insistente no olhar de Kasom. Parecia que o ertrusiano não estava disposto a ouvir uma preleção sobre certas hipóteses filosóficas, enquanto o Administrador-Geral se encontrava em perigo. Ele mesmo era um homem pragmático, que não gostava de perder tempo com teorias estéreis. Parecia que Pigell produzira uma transformação nele.

— Devemos ter paciência, Kasom. Marshall, pode nos dizer como vai a conferência dos répteis?

O telepata fez um gesto afirmativo.

Page 234: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

234

— Os que vieram com o senhor estão interrogando o Tankan ferido. Pediram que ele fizesse uma descrição detalhada das circunstâncias em que foram mortos os seres de sua espécie.

— Tomara que ele não minta! — resmungou Melbar Kasom. John Marshall sorriu numa expressão indulgente. — Como sempre, o senhor julga os outros por si, gordo. Quem dera que todos os

homens fossem telepatas! Neste caso também entre eles não haveria mentiras. Talvez se tornassem muito mais pacatos, porque ninguém teria segredos perante os outros, nem seria levado a acreditar que alguém pudesse esconder alguma coisa.

Kasom pôs instintivamente a mão no peito, onde estava escondido o lanho de toucinho que para ele era uma pequena reserva de emergência. Atlan viu e um sorriso sarcástico apareceu em seus lábios.

O aparecimento do porta-voz dos Tankan libertou o ertrusiano da situação embaraçosa em que se encontrava. O réptil parou perto de Atlan.

— Nós ouvimos e falamos — disse. — Nuvens fizeram acontecer injustiça para vocês. Nós ajudar Rhodan. Nuvens logo aparecer para levar-nos. Então será grande juízo.

Atlan acariciou instintivamente o focinho largo e duro do réptil. Dera ordem para matar os seres da espécie do Tankan. E agora este aparecia para oferecer ajuda aos homens, porque reconhecia que ambos os lados eram culpados. Dificilmente um ser humano que se encontrasse nesta situação teria agido assim.

— Nós agradecemos — disse o arcônida em voz baixa. Levantou os olhos para o céu, de onde deveriam vir as nuvens pensantes...

* * *

Elas chegaram dentro de dez minutos. O porta-voz dos Tankan explicou

detalhadamente aos homens o que se esperava deles. Por enquanto o comando de desembarque ficaria onde estava. Somente Atlan, Marshall e o porta-voz dos répteis seriam teleportados para o pólo sul de Pigell.

O Tankan não escondeu o risco que os homens corriam. Se o julgamento fosse contra eles, todos teriam o mesmo destino de Rhodan. Mas isso naturalmente não os fez recuar.

Atlan e Marshall ficaram ao lado do réptil, esperando. Melbar Kasom vivia praguejando, enquanto as três nuvens se uniam, formando uma única, e se aproximavam do grupo que estava à espera. O ertrusiano era um oficial muito competente, mas quando a vida de Rhodan ou Atlan estava em jogo, ele perdia o sangue-frio.

O arcônida já não se sentia nem um pouco nervoso. Observava a nuvem com a maior atenção. Era a primeira vez que acompanhava o fenômeno do teletransporte, até onde isso era possível. De fato havia uma semelhança surpreendente com a irradiação por um transmissor.

No mesmo instante o grupo foi parar na beira do vale-cratera do pólo sul. Olharam atentamente em volta, mas não viram sinal de Rhodan ou Hawk. Ainda não sabiam que os dois, e também Tschubai e a tripulação da KC-44, se encontravam em poder dos supercérebros.

Por isso a primeira coisa em que pensaram quando de repente uma nave esférica materializou no fundo do vale foi num ataque. O veículo espacial simplesmente estava lá, pousado nas colunas de sustentação. Até parecia que nunca estivera em outra dimensão.

Atlan foi o primeiro a reconhecer a KC-44. Aos poucos seu cérebro foi compreendendo.

Três figuras saíram da sombra da corveta. Atrás deles apareceu um vulto preto-azulado e subiu correndo a encosta. Era o okrill de Hawk!

Page 235: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

235

O animal ficou correndo em torno do grupo, dando a impressão de que se alegrava por vê-lo ali.

Mais embaixo, no vale, duas figuras deram-se as mãos — e quase no mesmo instante Tschubai e Perry Rhodan materializaram junto ao grupo. O oxtornense deu apenas alguns saltos para alcançá-los.

Atlan apertou a mão de Rhodan. Estava radiante. — Vocês foram libertados, seus patifes terranos? Eu sabia! Nada de grave pode

acontecer a um sujeito como você. — Pois desta vez você se enganou, arcônida — respondeu Rhodan em tom sério. —

Ainda somos prisioneiros. Só nos deram licença enquanto durar o julgamento. Atlan engoliu em seco. — E se o resultado do julgamento for contra nós, vocês terão de... nós teremos...? — Vamos fazer o possível — um sorriso frio apareceu no rosto de Rhodan. — Você

me conhece, não conhece? Os olhos de Atlan brilharam. Estava ali o amigo, conforme ele o vira centenas de

vezes. Rhodan nunca se submeteria voluntariamente ao julgamento dos supercérebros. Só reconhecia um único juiz — e perante este até mesmo as nuvens-fantasma não passavam de uma poeira inerte.

Mas apesar de tudo o lorde-almirante teve um calafrio quando as nuvens-fantasma se aproximaram de todos os lados e de cima. Formaram uma espécie de campânula que envolveu os homens e o Tankan. O uivo do vento e o estrondo das explosões silenciaram...

Foi um silêncio total. Os olhos cor de gelo do Administrador-Geral brilharam numa expressão irônica. — Alô! — gritou, levantando o braço. — Espero que sua sabedoria seja tão grande

quanto seu número. Estamos prontos para ouvi-los. O Tankan sentou ruidosamente e fechou os olhos. Sua laringe moveu-se várias vezes

para baixo e para cima. Finalmente abriu a boca larga e começou a falar. — Falamos diretamente com vocês através deste ser, já que a comunicação em

condições normais não é possível. Para dar início ao julgamento, precisamos daquele que passa pela outra dimensão. Queremos que leve um de vocês de cada vez para a outra dimensão.

“Quem é o primeiro que se oferece para abrir o espírito para nós? Os prisioneiros estão excluídos.”

— Acho que aquele que passa pela outra dimensão sou eu — disse Ras Tschubai com um sorriso embaraçado.

— Adivinhou! — respondeu Atlan em tom seco. — Serei o primeiro a abrir o espírito — ou deixar que eles o abram, seja lá o que for que eles querem dizer com isso.

— Desculpe, senhor! — observou John Marshall, apressado. — Acho que isso deve caber antes a mim. Acho que como telepata poderei ser mais útil que o senhor.

O arcônida fez um gesto enérgico. — No que diz respeito ao bloqueio do pensamento não sou pior que o senhor. Se

necessário, só permitirei que eles saibam aquilo que eu quiser. — Deixe que Marshall vá, amigo! — pediu Rhodan. — Ele é capaz de certas coisas que

você não sabe fazer. Prefiro não dizer o que é, porque os supercérebros devem estar nos espreitando. Você sabe.

— Está bem — respondeu Atlan. — Seu desejo é uma ordem para mim — sorriu com uma expressão irônica. Mas logo voltou a ficar sério. — Tudo de bom, John. Não se deixe abater.

Page 236: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

236

O telepata exibiu um sorriso discreto. Quem o visse assim e não o conhecesse, não pensaria que fosse capaz de muita coisa. O aspecto insignificante daquele homem escondia as tremendas reservas de energia que havia nele.

Marshall foi para perto de Tschubai e estendeu a mão. O teleportador segurou-a com força — e no mesmo instante os dois desapareceram.

* * *

Foram parar num ambiente cinzento sem forma. Milhões de pontas de luz finíssimas

atravessavam uma coisa que John Marshall não podia explicar, enquanto não ouviu as explicações cochichadas de Tschubai.

— É o supercérebro. Segundo a teoria de Hawk, é formado por bilhões de células nervosas, ligadas por filamentos nervosos finíssimos. As células não são maiores que as células nervosas normais do ser humano. Por isso não as vemos dentro do nosso “ambiente”. Só se tornam reconhecíveis aqui, onde todas as coisas aparecem fortemente ampliadas.

John Marshall obrigou-se a ficar calmo. Mas o nervosismo parecia fechar sua garganta e mal conseguia respirar. Olhou para o teleportador e viu que este era formado por inúmeras concentrações de matéria muito pequenas, diferentes umas das outras, entre as quais passava a luz.

Então era assim o ser humano, visto com olhos que possuíssem o poder de resolução de um microscópio.

De repente percebeu que alguma coisa tentava penetrar em seu espírito. Imediatamente levantou um bloqueio. A tentativa foi repetida várias vezes, com uma intensidade maior. Finalmente os supercérebros pareciam ter desistido.

— Pedimos alguém que abrisse o espírito para nós! — disse uma voz potente no espírito de Marshall. Mas o telepata não tinha a menor dúvida de que se tratava de uma emanação mental.

— Abrirei meu espírito para vocês — respondeu. — Abri-lo-ei apenas o suficiente para que vocês encontrem as respostas às suas perguntas.

— Assim não vale — veio a resposta. — Como podemos saber se vocês são culpados ou não, se não conhecemos todos os seus pensamentos?

— Não pedimos nenhuma decisão. Vocês não têm o direito de julgar outros seres — a não ser o direito duvidoso resultante do poder que exercem sobre nós.

— Você é orgulhoso como toda sua raça. Acontece que não fomos nós que abusamos do poder, mas vocês, que mataram milhares dos nossos. Isso nos dá o direito moral de julgá-los. O direito da força não reconhecemos.

Marshall sentiu que começava a fraquejar em sua direção. Os supercérebros não tinham razão? O homem não agia da mesma forma? Se um ser pertencente a outra espécie praticava uma violência contra um homem, ele era julgado segundo as leis humanas, não segundo suas leis...

Mas a vontade de mostrar-se superior aos outros venceu. — Isso mesmo! — reconheceu. — Somos orgulhosos. Conquistamos nossa galáxia e

estamos derrotando o inimigo que habita a segunda galáxia. Em comparação com a humanidade vocês não representam nada. Libertem-nos. Parem de pensar que valem mais que nós.

— Suas palavras são a melhor prova de que houve uma falha na evolução natural, quando vocês apareceram. Vocês falam em conquistas, destruição, devastação, armas energéticas, canhões conversores, bombas de Árcon que des-troem planetas inteiros. Sempre querem ter razão, mas nunca querem reconhecer os próprios erros. Até mesmo quando falam

Page 237: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

237

no Deus que está acima de vocês, geralmente só o fazem porque se julgam seguros perante o juízo do onipotente e pensam que, agindo em seu nome, podem escapar ao castigo merecido. Vocês dizem que têm inimigos que querem destruí-los — e com isso pretendem justificar sua própria fúria destruidora. Já que se julgam melhores que seus inimigos, por que não procuram semear a razão nem tentam usar as armas do espírito para influenciar o pensamento do inimigo, colocando-o na trilha certa...?

A voz calou-se e John Marshall teve tempo de fazer uma avaliação. O resultado deixou-o assustado. Viu desfilar diante dos olhos do espírito os quadros apavorantes que o homem semeara em nome do humanitarismo. Teve de reconhecer que havia algo de verdade nas palavras daquele ser estranho, que os desconhecidos tinham o direito de julgá-los.

O telepata abriu completamente o espírito... Quando voltou a si, estava deitado no chão e viu o rosto preocupado de Perry Rhodan

em cima dele. Recuperou-se com uma rapidez extraordinária. — E... o julgamento...? — perguntou. O Administrador-Geral sorriu. Quando começou a falar, usou sem querer o amistoso

você. — Você foi formidável, John. Os supercérebros tiveram de absolvê-los. Reconheceram

que também tiveram sua parcela de culpa pelo nosso comportamento. Você lhes disse umas verdades, não disse?

Um sorriso delicado apareceu no rosto de John Marshall. — Pelo contrário, senhor. Estes... seres diferentes seguem padrões morais muito

superiores aos nossos. Receio que ainda tenhamos um longo caminho a percorrer antes de alcançar o mesmo estágio.

Sem mover os lábios, acrescentou uma mensagem telepática. — Muito obrigado por nos darem oportunidade para isso.

* * *

À sua frente erguia-se o corpo esférico da nave auxiliar KC-44. Atrás dela colunas

ofuscantes de lava subiam ao céu de Pigell. Em meio ao estrondo das erupções ouvia-se o sibilar do vento, que trazia milhares de nuvens-fantasma. Marshall deteve-se e apontou para elas.

— Não conhecem seu princípio, mas querem ter pelo menos a consciência do fim. Até onde se lembram, a saudade do espaço cósmico sempre esteve presente em seu espírito. Estes seres usam o vento ascendente do vale para deixar-se carregar até os limites da atmosfera. Uma vez lá, seguem seu caminho — impelidos em parte pelas próprias forças, em parte pelas forças do Universo.

— Talvez ainda voltemos a encontrar-nos com elas. Quem sabe onde e quando? — respondeu Perry Rhodan, muito sério.

— Faço votos de que isso não aconteça — disse Atlan. — Por quê? — perguntou Rhodan, surpreso. — Porque elas amolecem sua vontade, seu bárbaro sentimental! — respondeu Atlan,

zangado. — Ainda temos uma tarefa difícil pela frente. Devemos destruir os senhores da galáxia. Se durante essa tarefa a consciência nos acusar uma única vez que seja, nós é que acabaremos sendo destruídos!

— É claro que você não deixa de ter razão, arcônida — respondeu Rhodan em voz baixa. — Mas isso somente porque os homens ainda não chegaram ao ponto em que podem combater com os recursos do espírito. Existem uns poucos que são capazes disso, entre eles os membros de nosso Exército de Mutantes. Mas os outros ainda são muito primitivos.

Page 238: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

238

Por favor, não me interprete mal. A palavra primitivo não representa nenhuma condenação. É apenas um padrão pelo qual se pode determinar o que é possível alcançar — Rhodan ergueu os ombros num gesto de resignação. — Não posso travar uma luta espiritual e incruenta ao lado da humanidade, da mesma forma que um padeiro não pode fazer pão branco com farinha de centeio.

— Quem sabe se o senhor não está subestimando a humanidade, senhor? — observou Omar Hawk. — Afinal, o senhor mesmo já foi um simples major da US Space Force. E veja o que é hoje...

Rhodan sorriu. — Deixemos isso para lá por hoje, Hawk. É possível que o senhor tenha razão. Talvez

devesse cuidar melhor de minha raça e travar menos guerras. Mas para isso temos de voltar ao tempo real. Prometo que depois disso voltarei a cuidar do problema.

— Muito Obrigado, senhor! — disse Omar de todo o coração. Subiram a rampa do barco espacial. Dali a quinze minutos a corveta decolou e seguiu em direção ao norte. Melbar Kasom já estava impaciente. Ficara esperando na Ilha Marshall, nome que lhe

fora dado por brincadeira. Foi recolhido a bordo, juntamente com os membros do comando de desembarque. Enquanto voavam de volta para a Crest, Rhodan deu ordem para que todos os veículos empenhados na busca regressassem à nave.

A operação de busca chegara ao fim.

* * *

As paredes do pavilhão pareciam ser formadas exclusivamente por máquinas gigantescas. E quem dissesse isso não estaria exagerando, já que o pavilhão ficava no centro de uma máquina, que era o computador central do ultracouraçado Crest III.

A máquina era capaz de resolver onze milhões de problemas de complexidade média ao mesmo tempo e independentemente um do outro. Geralmente o computador funcionava a plena capacidade. Havia numerosas divisões científicas a bordo, que viviam disputando os tempos livres da máquina. Normalmente os problemas ligados à pilotagem da nave, quer diretamente, quer indiretamente, ocupavam trinta por cento da capacidade. O restante era dividido entre os setores técnicos, o planejamento das operações, o abastecimento e outras coisas que se tornavam necessárias.

Naquela hora — era o dia 23 de junho de 2.404, tempo real terrano, às 23.00 horas — dois homens estavam ocupando toda a capacidade da máquina. Um deles era Perry Rhodan e o outro, que trabalhava por ordem dele, se chamava Dr. Hong Kao e ocupava o posto de matemático-chefe da Crest III.

Fazia trinta minutos que os problemas tinham sido introduzidos no computador, juntamente com os dados disponíveis. Desde então Perry Rhodan ficava atento ao ruído monótono dos campos de estabilização e dos condutores de energia, ao clique dos indicadores que entravam nas posições de repouso e ao fluido indefinível que emanava de uma máquina inteligente.

A experiência que tivera com as chamadas nuvens-fantasma não lhe saía da cabeça. Ela o tocara mais profundamente do que no início queria confessar. As acusações formuladas por essa inteligência lhe doíam. Ficou se perguntando bem no íntimo se não havia mesmo um meio incruento de garantir a existência da humanidade. Mas ao mesmo tempo sentiu que estava atingindo uma fronteira que não seria fácil de transpor. Um dia a humanidade conseguiria. Era ao menos o que esperava de todo o coração, pois do contrário acabaria fracassando...

Page 239: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

239

O martelar do gravador de símbolos perfurados arrancou-o das reflexões. Milhares de luzes de controle de várias cores pareciam fitá-lo que nem olhos em brasas. Rhodan levou alguns segundos para voltar à realidade.

O rosto sempre sorridente do matemático-chefe apareceu à sua frente. — Então...? — perguntou Rhodan. — Posso ler o resultado, senhor? — perguntou Hong num cochicho. O Administrador-Geral fez que sim. — Vejamos o primeiro problema — disse Hong. — O material disponível permite que

se conclua com segurança absoluta que nem os seres inteligentes conhecidos como nuvens-fantasma nem os Tankan são hostis aos homens, e mais especialmente à tripulação da Crest III? A resposta é sim.

“Segunda pergunta. Existe uma raça conhecida cujos membros possuem membranas voadoras semelhantes às dos morcegos e que poderiam desempenhar algum papel no momento relativista presente? A resposta é não.

“Terceira pergunta. As informações colhidas junto aos Tankan, o quadro mental destes seres e a percepção indireta do Tenente Hawk permitem que se conclua pela existência de nativos no planeta Pigell? A resposta é não.”

Perry Rhodan soltou ruidosamente o ar. Hong Kao fitou-o com uma expressão de perplexidade, mas o Administrador-Geral deu ordem para que prosseguisse em seu relato.

— Quarta pergunta. No caso de resposta negativa à terceira pergunta, existe alguma relação entre os desconhecidos que se parecem com morcegos e os tefrodenses que guarnecem a estação do tempo ou os senhores da galáxia? Resposta: Existe uma probabilidade de quarenta e três por cento de que haja uma ligação indireta com os senhores da galáxia.

“Quinta pergunta. Os citados desconhecidos representam um perigo para a Crest III? Poderão frustrar os objetivos da expedição? Resposta: Existe uma probabilidade de noventa e oito por cento de que estes seres representam um perigo mortal.”

O Dr. Hong Kao baixou a mão que segurava a folha com os símbolos gravados e olhou para o Administrador-Geral.

— É só isto, senhor. Perry Rhodan pegou as fitas estreitas e agradeceu. Em seguida voltou à sala de

comando da Crest. Passou muito tempo contemplando a tela panorâmica, na qual se viam nuvens baixas

sendo tangidas pela tempestade por cima das elevações da Serra do Norte. Os relâmpagos ofuscantes iluminavam constantemente o cenário agitado, uma luminosidade vermelho-amarelada apareceu no horizonte invisível. Era a erupção de um vulcão.

Rhodan fez avançar o queixo, num gesto obstinado. Era um mundo infernal, e era possível que lá fora houvesse milhares de demônios, que só esperavam o momento de destruir a Crest. Mas não conseguiriam.

Page 240: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

240

5. Nave capitânia em perigo

1 — Hi, Sherlock! — gritou o homem solitário, que estava com lama até os quadris,

enquanto a água fervente do gêiser era derramada em seu corpo nu. Duas figuras semi-esféricas, brilhantes como peças de vidro violeta, iluminaram-se

enquanto se movimentavam na superfície do mar de lama. Dali a pouco apareceu um crânio semelhante ao de um sapo, do tamanho de uma abóbora. A boca larga abriu-se num gostoso espirro.

Sem tirar os olhos violetas de cima do dono, o okrill dividia as ondas viscosas, que corriam preguiçosamente, com as oito pernas. O animal dirigia-se a uma depressão em forma de funil, que se abrira na lama. No fundo da depressão subiam grandes bolhas, que produziam um ruído borbulhante.

O okrill deu um salto por cima da depressão. No mesmo instante o vapor atingiu a pressão máxima, abrindo caminho na lama. Um jato de vapor de cerca de três metros de diâmetro arremessou o animal para cima. O esguicho de água que se seguiu manteve o okrill suspenso no alto, até que a pressão diminuiu e o jato do gêiser desapareceu.

O animal tocou a superfície do mar com as oito pernas ao mesmo tempo. Deu alguns saltos muito rápidos que o levaram à costa, abaixou-se e fitou o dono com uma expressão travessa.

De repente ouviu-se um ruído na selva próxima, que se estendia que nem uma muralha fumegante verde-azulada junto ao mar de lama. Uma água suja desceu dos galhos e das folhas, caindo sobre uma figura esbelta enfiada num traje espacial, que se aproximava por cima das rochas escorregadias.

— Olá, Hawk! — disse uma voz saída do pequeno alto-falante embutido no capacete pressurizado. — Cuidado! Aí vem uma serpente da lama!

No mesmo instante o recém-chegado pegou uma arma energética e fez pontaria para o monstro que se aproximava pelo mar borbulhante. A pessoa à qual tinham sido dirigidas estas palavras virou ligeiramente a cabeça e fez um gesto com a mão.

— Por favor, não estrague meu prazer! Não atire. Voltou a olhar para a frente. Olhou calmamente para a serpente, que devia ter uns

vinte e cinco metros de comprimento por quarenta centímetros de diâmetro. Logo atrás da cabeça triangular havia um par de pés rudimentares com membranas natatórias.

O Tenente Omar Hawk abriu os braços em forma de tesoura. Não tinha medo do monstro, apesar de estar despido e desarmado. Podia confiar na constituição robusta de seu corpo adaptado a um ambiente hostil, habituado a condições climáticas extremas e a uma gravitação de 4,8 gravos.

No lugar em que se encontrava, no sexto planeta do sol Vega, a gravidade era “apenas” de 1,22 gravos.

A serpente dos pântanos escancarou a boca e chiou ameaçadoramente, exibindo quatro dentes venenosos em forma de punhal. O veneno da serpente podia matar um homem dentro de meio segundo, e Hawk era um homem, apesar de tudo.

O monstro encolheu-se para dar o bote. Omar Hawk deu um salto para a frente. Os dois corpos colidiram com um estrondo surdo. Os dentes da serpente resvalaram no peito de Omar, sem produzir nenhum efeito. Só mesmo uma mordida nos braços ou nas pernas

Page 241: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

241

poderia feri-lo. Mas Omar não esperou que isso acontecesse. Suas mãos avançaram rapidamente, comprimindo a nuca da serpente.

O corpo liso ficou chicoteando o ar por alguns segundos, mas em seguida a espinha dorsal da fera foi quebrada. Omar atirou o animal que ainda se contorcia convulsivamente para o mar. No lugar em que o cadáver tocou a superfície a lama soltou bolhas.

Hawk caminhou a passos largos em direção ao mar. Uma lama pegajosa verde-acinzentada estava grudada em seu corpo, dos quadris para baixo. O oxtornense entrou num panelão de rocha situado junto ao mar, do qual subiam nuvens de vapores. Era uma fonte vulcânica. Quando saiu, estava com o corpo limpo, emitindo o brilho oleoso que se estava acostumado a ver nele.

Só depois foi ao encontro do recém-chegado, com um sorriso amável nos lábios.

— Olá, Lun, seu habitante das trevas! O que o fez vir a este lugar agradável?

Um sorriso delicado apareceu no rosto de Baar Lun. Segurou cuidadosamente a mão enorme do oxtornense e apertou-a.

— Nem sempre aquilo que é encantador para o senhor também o é para um homem normal, Hawk. Mas não posso deixar de confessar que a exibição que acaba de fazer me impressionou bastante. O senhor certamente poderia fazer carreira como gladiador, num mundo primitivo.

Omar notou a ironia que havia nestas palavras. Mas sabia que era uma ironia amável. Estava ligado ao modular por uma amizade discreta, do tipo que só costuma formar-se entre pessoas dotadas de grande agilidade mental, e que possuem ideais muito elevados. Além disso os dois se desviavam do normal. Não eram terranos, embora ambos descendessem do mesmo tronco. E os dois possuíam certas faculdades que os elevavam bem acima dos homens normais.

O okrill rosnou enquanto olhava para um macaquinho sentado num galho saliente, que atirava grandes frutas vermelhas nele. As frutas eram duras como pedras, mas o crânio de Sherlock era mais duro. As esferas reluzentes arrebentavam com um estrondo. O macaquinho emitiu alguns sons travessos, levantou e fez avançar a parte inferior do ventre. Um finíssimo fio prateado saiu de uma glândula que ficava na barriga e enrolou-se em torno da cabeça do okrill. Sherlock sacudiu o corpo e o fio rompeu-se com um som melódico. Aborrecido, Sherlock arrancou os restos de cima do corpo. Em seguida saltou para cima da árvore na qual estava sentado o macaquinho, e que não tinha mais de quinze centímetros de espessura. O tronco cedeu com um rangido.

O macaquinho soltou alguns sons que tinham uma espantosa semelhança com o rosnado do okrill. Abriu as asas que pareciam ser de couro, empurrou-se da árvore que ia tombando e passou planando rente à boca de Sherlock.

O okrill poderia perfeitamente ter agarrado o animal, que não tinha mais de quarenta centímetros de altura, mas surpreendentemente preferiu não fazê-lo. Até chegou a

Page 242: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

242

esquivar-se com grande agilidade de outro ataque simulado realizado pelo habitante das selvas. Dali a pouco outras frutas começaram a arrebentar-se ruidosamente em seu crânio. A brincadeira recomeçou.

— É a primeira vez que vejo sua fera desse jeito, Hawk — disse Baar Lun, espantado. — Parece que os dois estão brincando. Ou será que...?

Omar Hawk tirou o conjunto-uniforme feito de tecido plastificado leve de oxtórnio. O traje fechava hermeticamente o corpo, e podia servir de traje espacial, desde que se colocasse o capuz-capacete. Mas Ornar costumava deixar aberto o fecho até a cintura. O calor de oitenta e cinco graus não o incomodava nem um pouco.

— Parece que estão — disse, respondendo à pergunta de Lun. — De fato, este macaquinho é o único animal com que Sherlock se digna em brincar — além de Gucky, naturalmente. Mas prefiro não classificar o rato-castor como animal.

O modular deu uma risada. Omar arregaçou as mangas. Feito isso, colocou o cinto largo ao qual estava presa uma

pesada arma energética, além de uma pistola. As botas de terconite plastificado que colocou nos pés normalmente não teriam sido necessárias. Seu traje espacial possuía sapatos embutidos, mas estes eram relativamente finos. Por isso Hawk e Lun usavam botas, além desses sapatos.

— Muito bem! — disse o oxtornense, depois de prender os cintos no ombro. — O banho foi bem refrescante. Vou andar um pouco na mata. Quer ir comigo, Lun?

Baar Lun não concordou logo. — O senhor tem cada idéia sobre banhos e sobre o que é refrescante! A mim ninguém

faria entrar nesta poça de lama — ainda mais sem traje espacial. Fico me perguntando como pode haver vida num ambiente destes.

— É o processo de adaptação! — retrucou Omar em tom seco. — Parece que em toda parte a evolução processa-se no sentido da vida, e a criatividade da natureza não tem limites. Mas o senhor ainda não respondeu à minha pergunta...

O modular virou a cabeça e olhou através da lâmina infravermelha de seu capacete, na direção em que algumas luzes vermelhas brilhavam no meio da neblina. Eram as luzes de posição infravermelhas da Crest III.

— Está bem. Irei com o senhor, Hawk. Mas não vamos muito longe. Não gostaria de sair do raio de alcance de meu telecomunicador de capacete.

Hawk deu uma risada áspera. — As nuvens-fantasma já não representam nenhum perigo para nós. Por um instante seu rosto assumiu uma expressão sombria. Não fazia muito tempo —

eram menos de seis horas — desde que a paz fora celebrada entre os grupos de células pouco compactos chamados de nuvens-fantasma e os humanos. Antes disso esses seres lhes tinham criado muitos problemas e por pouco não chegaram a provocar uma catástrofe. Estas nuvens, compostas em média por cinco trilhões de núcleos semelhantes às células nervosas, denominados neuróides, invisíveis ao olho humano desarmado por causa de seu tamanho microscópico, possuíam inteligência e eram capazes de funcionar como transmissores fictícios. Hawk fora irradiado por uma nuvem destas, juntamente com Perry Rhodan, tendo sido teleportado para uma ilha-continente, onde tiveram um encontro com os Tankan, que eram répteis semi-inteligentes com faculdades telepáticas. Os Tankan eram verdadeiros escravos de seus dons telepáticos. Absorviam os pensamentos e os sentimentos dos homens, reforçando-os com exclusão da própria inteligência. Se havia pensamentos agressivos na mente de um homem, os répteis eram dominados por uma agressividade compulsiva e passavam para o ataque.

Houvera muitos mortos do lado dos Tankan, antes que o engano fosse reconhecido. Depois disso Rhodan e Hawk foram aprisionados pelas nuvens-fantasma e submetidos a

Page 243: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

243

julgamento. Os supercérebros acusavam os homens de terem agido com brutalidade, ânimo destrutivo e pela ambição do poder. Os homens não tinham nada a apresentar contra estas acusações. Apesar disso tiveram uma chance, pois nem mesmo as nuvens-fantasma eram infalíveis. Ao contrário dos homens, reconheceram isto e libertaram-nos.

Desde então reinava a calma em Pigell, que era o nome do sexto planeta de Vega. Mas era apenas uma calma aparente. Durante os últimos acontecimentos os homens tinham encontrado indícios de um perigo ainda desconhecido. Em algum lugar, na selva, nos pântanos, nas montanhas, estava escondido um inimigo — e este inimigo passaria ao ataque quando julgasse chegado o momento.

— Além disso — acrescentou Hawk — recebi ordens para manter-me ao alcance do rádio. Pertenço ao grupo que deve patrulhar os arredores da estação do tempo.

— Ora veja...! — disse Lun, dando um tom irônico às suas palavras. — Pensei que estivesse aproveitando seu tempo livre.

Omar sorriu, mas não disse mais nada. A tarefa que lhe fora confiada era um tanto estranha. Devia fazer de conta que estava desfrutando suas horas livres. Dessa forma um eventual espia inimigo seria levado a atacá-lo, traindo sua presença. Dificilmente desconfiaria do risco que estava assumindo, pois não havia quase nada no aspecto exterior de Hawk que o distinguisse de um homem comum, e seu okrill também não parecia muito perigoso.

Mas era uma missão secreta, e como oficial da Segurança Galáctica Omar devia guardar silêncio até mesmo perante seu melhor amigo.

— Vamos andando! — disse Lun, aborrecido. — Quer levar seu cãozinho de estimação?

Omar Hawk acenou ligeiramente com a cabeça e soltou um assobio estridente, que fez o macaquinho encolher as asas durante o vôo e abrigar-se sob a cobertura vegetal. Mas logo apareceu de novo, e imitou o assobio de Hawk com tamanha perfeição que o ertrusiano não pôde deixar de rir.

— Quem sabe se ele não é capaz de imitar algumas palavras? — perguntou Baar Lun. Omar sacudiu os ombros. — Será que adiantaria alguma coisa? Bateu na boca larga do okrill, que acabara de aproximar-se, e deu uma ordem. — Vamos em frente, Sherlock! Hiii! Sherlock atravessou a vegetação que nem um trator. Arrancava trepadeiras

entrelaçadas e galhos com as patas dianteiras, abrindo uma trilha estreita para os homens que vinham atrás dele.

Omar Hawk deixou que o modular seguisse à sua frente. Num mundo como este um homem fisicamente normal precisava estar protegido nas costas para sobreviver.

* * *

Mesmo sob o céu aberto reinava uma constante penumbra, mas depois que os dois

homens tinham avançado alguns metros na selva, uma escuridão verde-azulada abateu-se sobre eles.

Apesar disso não tiveram nenhuma dificuldade em orientar-se. Nem sequer precisaram dos faróis presos ao peito para enxergar alguma coisa. A vegetação produzia uma radiação térmica superabundante, permitindo que vissem cada galho através dos visores infravermelhos. No caso de Baar Lun a respectiva lâmina encontrava-se no interior do capacete pressurizado, enquanto Omar Hawk usava uma espécie de óculos de mergulhador com o respectivo equipamento.

Page 244: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

244

O chão provavelmente seria um verdadeiro mar de lama, se não fosse uma planta espumosa que sugara a maior parte da umidade. Mas apesar de seu aspecto espumoso as plantas que cresciam no chão eram duras e resistentes; até mesmo o peso de Omar só as fez ceder alguns centímetros. Só se rompiam quando Sherlock passava as garras por elas, soltando um líquido viscoso.

O okrill avançava rapidamente. Dava a impressão de olhar fixamente para a frente, sem ver o que se passava dos lados. Mas não era nada disso.

Um galho da grossura de um corpo humano estava atravessado sobre o caminho coberto de vegetação, a menos de dois metros de altura. Sherlock não deixou que isto o enganasse. Usou a língua para aplicar um choque elétrico no “galho”, que na verdade não era nenhum galho, mas um sáurio feroz com um espantoso mimetismo. O sáurio caiu ao chão, contorceu-se de dor e pânico e saiu chiando.

Os insetos que investiram contra o pequeno grupo eram muito mais desagradáveis. Seus ferrões não eram capazes de atravessar o traje espacial de Lun, nem a pele de Hawk, que era dura como couro, mas assim mesmo incomodavam bastante. Rastejavam por cima dos olhos, do nariz e da boca, zumbiam insistentemente nos ouvidos e largavam manchas pegajosas quando eram mortos. Nem mesmo o okrill foi capaz de combatê-los.

Felizmente o enxame foi embora dali a alguns minutos. Provavelmente ficara decepcionado. Dali a instantes um sáurio soltou gritos furiosos, mostrando que fora escolhido para ser a próxima vítima.

Depois de meia hora os dois homens e o okrill chegaram a uma pequena clareira. Omar Hawk conhecia os caules parecidos com arames com pingos brilhantes presos. Eram plantas dos pântanos, pelas quais a pessoa familiarizada se orientava para conhecer a natureza do solo.

O okrill fungou para advertir os homens. — Está bem, Sherlock — disse Omar com um sorriso. — Já sabemos. Vamos contornar

o lugar pelo caminho mais curto. O animal não reagiu prontamente à ordem. Omar soltou um assobio. — Hii, Sherlock! — Hii, Sherlock! — ouviu-se numa imitação espantosamente perfeita, vinda do outro

lado do pântano. O okrill espirrou entusiasmado. Seus olhos redondos brilhavam. Hawk sacudiu a cabeça enquanto olhava para o macaquinho, que se aproximava

voando silenciosamente. O animalzinho descreveu círculos em cima de Sherlock. — Hii, Sherlock! — voltou a gritar. — Eu não disse? — cochichou Baar Lun. — Este animal fala. — Dizem que na Terra existem grandes pássaros, que também falam — respondeu

Omar. — Eu mesmo conheço mais quatro espécies animais que são capazes de imitar os sons emitidos pelos homens. Mas tudo não passa de uma imitação mecânica, que é capaz de divertir uma velha solteirona. Um homem que quer ser levado a sério...

— Atchim! — fez o macaquinho. — Vamos logo, Sherlock! Ande! — ordenou Omar, impaciente. O okrill não parecia nada contente por ter de tirar os olhos de cima do macaquinho

engraçado. Fungava enquanto pisava e arrancava as plantas que se interpunham em seu caminho. O macaquinho acompanhou-o mais um pedacinho antes de subir ao céu encoberto e desaparecer.

De repente Sherlock deu um salto enorme. Pulou com as pernas bem afastadas e agarrou-se num tronco de árvore. Chiou para alertar o dono.

Page 245: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

245

Omar Hawk conseguiu puxar Lun no último instante, antes que ele desaparecesse no grande buraco que se formara de repente. Quase no mesmo instante os dois homens seguravam suas armas.

Sherlock foi parar do outro lado do buraco. O chão tremeu quando suas garras tocaram a superfície. Algumas pedras desprenderam-se ruidosamente das paredes do poço que se abrira e desapareceram nas profundezas.

Baar Lun fez um movimento instantâneo, agarrando uma delas. Virou a cabeça. A pedra que segurava na mão era retangular. Havia uma expressão

pensativa no rosto que aparecia atrás do visor do capacete. Omar deu uma risada sem graça. — Que coincidência! Lun estendeu a mão com a pedra, sem dizer uma palavra. Omar Hawk hesitou antes

de pegá-la. Assim que a segurou na mão, estremeceu. — Então...? — perguntou o modular em tom irônico. Omar atirou a pedra para o alto e

voltou a segurá-la. — É leve que nem uma pena. Acho que não é uma pedra natural. — Pois eu acho que é de plástico. Omar engoliu em seco. — Talvez seja o que resta de um galpão que servia para guardar materiais. Afinal, eles

devem ter guardado os materiais em algum lugar enquanto estavam construindo a estação do tempo.

— O senhor conhece as construções dos tefrodenses tão bem quanto eu, Omar — retrucou Lun em tom violento.

— Eles nunca usaram pedras deste tipo. — Mas... — Omar reprimiu o nervosismo que ameaçava tomar conta dele. — Mas não

é possível que neste planeta tenham existido outros seres inteligentes, além dos répteis e das nuvens-fantasma. Se existissem, certamente teriam sido encontrados alguns vestígios no tempo real.

Baar Lun sacudiu a cabeça. — Dos Tankan e das nuvens-fantasma também não foi encontrado nenhum vestígio

— e isto pelo simples motivo de que ninguém se interessou muito por Pigell. Não estou muito bem informado a este respeito, mas a história da evolução da Terra mostra que os planetas sem importância estratégica têm recebido um tratamento muito superficial. A pesquisa tem sido sacrificada em benefício do objetivo da conquista — pigarreou. — Mas prefiro não falar sobre isto agora. Só queria mostrar que as informações que possuímos sobre Pigell são muito escassas. Além disso os Tankan aludiram a certos seres inteligentes que, segundo dizem, ainda existem por aqui...

— Nestas ruínas? — perguntou Omar Hawk, irônico. — Também não acho isso muito provável — confessou o modular. — Acho que os

seres que construíram estas ruínas já morreram. — Acho que de qualquer maneira vale a pena darmos uma olhada — decidiu Hawk. Deu ordem para que seu okrill entrasse na construção em ruínas. Depois ele mesmo

saltou num buraco e ajudou Lun a descer. O buraco só tinha uns três metros de profundidade. Os homens ligaram os faróis que

traziam presos ao peito. Notaram que se encontravam numa galeria semidestruída. Cogumelos finos cresciam nas frestas das paredes e no chão. Não se via nenhum rastro, além dos de Sherlock e deles mesmos.

Quando tinham percorrido aproximadamente cinqüenta metros, a galeria terminou. Levava a um recinto quadrado de cerca de oito metros de lado, que ficava mais embaixo. Uma luz débil vinha de cima. Havia uma fenda larga no teto, pela qual penetravam

Page 246: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

246

trepadeiras e pingava água. Embaixo da fenda via-se um enchimento de terra e plantas em decomposição.

O okrill avançou cautelosamente. Com uma única patada matou uma serpente branco-acinzentada, da espessura de um braço humano. Insetos gigantescos corriam pelo chão e rangiam sob as pisadas de Sherlock.

Não havia outra galeria pela qual pudessem avançar mais. Já houvera três, mas todas elas estavam completamente obstruídas.

Lun e Hawk voltaram. Sentiram-se um tanto decepcionados. Sabiam que as chances de ainda voltarem a este lugar para realizarem uma investigação mais demorada eram bastante reduzidas. O Administrador-Geral queria sair dali quanto antes, para voltar ao conflito mais terrível de todos os tempos. Não retardaria a partida por causa de algumas ruínas.

Desta vez Sherlock foi o último e Omar o primeiro. Por isso foi o primeiro a ver a luminosidade cor de sangue no fim da galeria. Esta cor só fornecia uma indicação sobre a intensidade do calor, motivo por que Omar levantou os óculos infravermelhos, prendendo-os sobre a testa.

O brilho cor de sangue transformou-se numa luminosidade vermelho-azulada, que parecia vir de fora, passando por um buraco no teto.

Omar passou a andar um pouco mais devagar. Aquela luz lhe parecia suspeita. Era um indício da presença de seres vivos.

Mas quando chegou perto do buraco riu aliviado. Ouvia-se perfeitamente o zumbido agudo dos insetos em meio ao trovejar distante. Era a solução do enigma. A luz era produzida por insetos luminosos.

Omar deu um salto leve, que o transportou à superfície, puxou o corpo para cima e contemplou a nuvem dançante de insetos minúsculos, dos quais partia a luminosidade vermelho-azulada.

— Que é isso? — perguntou Lun, que continuava na galeria. Omar explicou ao modular do que se tratava. Pediu que apoiasse os pés sobre o crânio

do okrill e deu uma ordem ao animal. Dali a pouco Baar Lun apareceu na superfície. Parecia que estava sendo levantado pela plataforma de um elevador. Omar ajudou-o a subir os poucos metros que ainda faltavam. Depois disso Sherlock saltou do buraco.

— Vamos andando! — sugeriu o oxtornense. Virou a cabeça, espantado, quando sentiu alguém puxar levemente a manga de seu

casaco. Viu à sua frente o rosto pálido de Lun. — Que aconteceu...? Lun olhou para a mão que segurava a arma energética, que ainda estava ativada. Os

insetos vermelho-azulados agitavam-se em torno do cano em espiral. Parecia que os animais estavam sendo atraídos principalmente pelo brilho do campo energético que saía do cano da arma, pois neste lugar um verdadeiro cacho estava grudado na arma.

— Estão retirando a energia! — observou Baar Lun, apavorado. Omar Hawk assustou-se. Sabia que, além de poder converter a energia em matéria, o

modular era capaz de detectar e analisar qualquer fluxo energético. Se dizia que os insetos estavam retirando a energia do banco energético da arma, era porque realmente faziam isso.

— O senhor pode fazer alguma coisa contra isso, Lun? — perguntou Hawk. O modular deu de ombros. Esticou o braço que segurava a arma e fez pontaria no

enxame de insetos. Os animais só apareciam em forma de pontinhos luminosos. Devia haver centenas de milhares deles.

Page 247: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

247

De repente o brilho desapareceu. Foi tão de repente que Omar estremeceu. Inclinou o corpo e tentou encontrar os insetos, mas estes continuavam desaparecidos. Até parecia que tinham desaparecido no nada.

— Transformei a energia em hidrogênio em estado atômico — informou Baar Lun com a voz áspera. — Parece que a privação completa de energia provoca a morte dos animais, fazendo-os cair ao chão. Não adianta procurá-los, Hawk!

O oxtornense endireitou o corpo. Parecia que atravessava o modular com os olhos. Ficou duro e calado por alguns segundos, mas logo apareceu uma expressão fria em seus olhos. Os músculos duros como aço entesaram-se embaixo da pele de couro do rosto.

— Sabe lá com quem nos encontramos...? — perguntou com a voz apagada. Baar Lun sacudiu a cabeça. — Com um inimigo muito traiçoeiro — respondeu Omar Hawk com uma risada rouca.

— Basta que um número muito grande de insetos se junte em torno da Crest... Omar não completou a frase. A hipótese era tão apavorante que os dois homens

preferiram não formulá-la em palavras. Apesar disso voltaram a enfrentar a selva. Desta vez deslocaram-se na direção em que

ficava a nave. Esperavam ganhar a corrida contra o tempo — e contra um inimigo medonho, que parecia tão inofensivo que nenhum dos tripulantes da Crest desconfiaria, caso aparecesse por lá...

* * *

Até mesmo o okrill compreendeu a pressa dos homens. Trabalhou com as oito pernas,

despedaçando tudo que se interpunha em seu caminho: arbustos, trepadeiras, troncos podres e animais ferozes.

Baar Lun corria fungando atrás do animal, enquanto o Tenente Hawk seguia cinco metros atrás dele, dedicando sua atenção às copas das árvores. De vez em quando levantava abruptamente a arma de choque. Quando isso acontecia, a energia paralisante descarregava-se com um estrondo característico, e o corpo de um animal caía ruidosamente de uma árvore.

O okrill cumpria as ordens de Hawk, tomando o caminho mais curto para a Crest III. Infelizmente tratava-se de um caminho ainda inexplorado. Os dois homens não demorariam a perceber que em Pigell uma coisa como esta podia ter conseqüências funestas.

Aos poucos a vegetação foi ficando menos densa. Uma rede fina de fios de cogumelos branco-acinzentados cobria o chão, não deixando passaras outras plantas. Neste ambiente destacavam-se os troncos de casca grossa dos gigantes da selva, sem galhos, cobertos de algas e emitindo uma fosforescência azulada. Só a muitos metros de altura começava a folhagem impenetrável.

De repente — e completamente de surpresa — o chão cedeu sob os pés de Sherlock. A massa de cogumelos branco-acinzentados lhe chegava até os quadris. O chiado que soltou não era apenas aborrecido; havia nele uma ponta de medo primitivo.

Baar Lun parou imediatamente, incapaz de fazer qualquer movimento. Só virou a cabeça quando ouviu um grito fraco, vindo de trás. O oxtornense afundara até os ombros no solo traiçoeiro. Lun admirou-se de continuar firmemente apoiado sobre os próprios pés, mas logo se lembrou da diferença de peso. Em virtude de sua estrutura robusta, dos ossos que tinham a densidade e a firmeza do aço terconite de primeira qualidade, dos músculos duros como aço plastificado e da pele que se assemelhava ao tecido de fibra dos trajes espaciais, tanto Sherlock como Omar tinham quinze vezes o peso de um homem normal, enquanto o peso de Baar Lun não chegava a oitenta quilos.

Page 248: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

248

O modular deitou cuidadosamente. — Como foi acontecer uma coisa dessas? — gritou Omar Hawk, amargurado. — Faz

alguns minutos que estamos andando num chão destes, sem afundar, e de repente... O modular pôs-se a refletir. Ao contrário dos terranos e do oxtornense, seus

conhecimentos a respeito da flora e da fauna dos planetas eram muito reduzidos. Depois que os remanescentes de seu povo tinham morrido, não havia nenhuma forma de vida no planeta escuro chamado Módulo, além dele mesmo. E desde o dia em que fora libertado por Perry Rhodan, poucas vezes tivera oportunidade de examinar um planeta com vida.

Geralmente isso representava uma desvantagem — mas naquele momento era uma vantagem! Baar Lun podia pensar sem preconceitos, e sem as restrições causadas pelas experiências anteriores.

— É a reação-armadilha típica das plantas carnívoras — disse em tom indiferente. — O trançado branco-acinzentado dos cogumelos deixou-nos passar, para ceder depois que tínhamos entrado um bom pedaço. Acho que espera calmamente que suas vítimas entrem em putrefação, para alimentar-se com as substâncias orgânicas em decomposição.

— Não sabia que o senhor possuía uma veia sádica, Lun — resmungou Omar. — Sua lógica é capaz de seduzir qualquer um, mas seria preferível usá-la para encontrar um meio de salvar-nos.

O modular sorriu ligeiramente, mas logo voltou a ficar sério, ao dar-se conta de que as chances de serem salvos eram bastante reduzidas. Ele mesmo nunca seria capaz de retirar do pântano o oxtornense que pesava algumas toneladas, e não havia mais ninguém por perto.

Mesmo pensando que seria inútil, ligou o telecomunicador embutido em seu capacete para o alcance máximo e transmitiu um pedido de socorro para a Crest III. Aconteceu exatamente o que ele esperara: não houve resposta. A distância que os separava do ultracouraçado era muito grande.

— Não se lembrou de nada, não é mesmo? — cochichou Omar com um sorriso angustiado.

Lun sacudiu a cabeça. Não disse uma palavra. O oxtornense respirou profundamente. — Pois trate de sair da armadilha, Lun. Faça o possível para avançar ao menos o

suficiente para pedir socorro com seu transmissor. Sei perfeitamente que para um homem isolado — ainda mais para um homem sem experiência — quase chega a ser uma missão suicida. Mas é a única chance que temos.

Baar Lun fitou o amigo. Viu Omar Hawk afundar devagar, mas constantemente. — Não! — gritou zangado. — O senhor morreria antes que chegasse alguém para

ajudá-lo, Hawk. Não vou sair daqui. Deve haver um meio de tirá-lo daí. Omar deu uma risada forçada. — O senhor está se iludindo. Vamos! Saia logo. Baar Lun ainda hesitava. Sabia que, se

fosse embora naquele momento, nunca mais veria Omar — pelo menos não o veria vivo. Mas não havia outra alternativa senão tentar aquilo que parecia impossível.

— Está bem! — disse, deprimido. — Vou... Calou-se e levantou a arma energética, enquanto deitava de costas e olhava para cima.

Ouviu-se um ruído na cobertura de folhas. Eram galhos quebrando, e uma chuva de folhas desceu ao chão. Dali a pouco apareceram vários fios prateados, que criaram pequenas aberturas pelas quais a luz fantasmagórica do dia pigelliano penetrou na escuridão da floresta.

De repente o okrill soltou uma série de espirros gostosos. — Não atire! — gritou Omar, apressado. Baar Lun baixou a arma muito devagar. Não acreditava no que seus olhos viam. Três

macaquinhos voadores atravessaram rapidamente a abertura criada e soltaram gritos.

Page 249: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

249

De repente vários fios prateados desprenderam-se da parte inferior do corpo dos pequenos animais e precipitaram-se em direção ao oxtornense, que já afundara até o pescoço.

Omar levantou os braços e abriu-os na superfície do pântano coberto de cogumelos. Os fios enrolaram-se neles numa velocidade alucinante e prenderam-nos firmemente. Constantemente apareceram novos macacos voadores, atravessaram a abertura na folhagem e atiraram seus fios em direção ao oxtornense. Feito isso, subiram voando e prenderam as outras pontas dos fios em alguns galhos robustos.

Baar Lun ainda não compreendera muito bem as intenções dos macacos voadores, quando alguns fios se enrolaram nas patas dianteiras do okrill.

Omar Hawk entesou cuidadosamente os músculos. Os fios agüentaram. Devia ser por causa de seu número. O resto não seria difícil para um homem robusto como ele. Centímetro após centímetro foi puxando o corpo para fora da massa branco-acinzentada dos cogumelos, que emitia sons roucos. Sherlock também foi-se libertando aos poucos do pântano traiçoeiro.

Os seres que acabavam de ser salvos desapareceram nas copas das árvores. Neste momento alguns fios prateados caíram sobre Baar Lun, que os segurou imediatamente e subiu por eles. Omar, que já estava sentado na copa de uma árvore, ajudou-o, já que o modular não possuía as forças tremendas daquele homem adaptado a um ambiente hostil.

Os macaquinhos voadores pareciam ter enlouquecido de alegria quando viram que sua operação-resgate fora bem-sucedida. Guinchavam nervosamente e voavam em torno dos dois homens e do okrill.

— Hii, Sherlock! — exclamou um deles. Omar Hawk fitou o animal com uma expressão pensativa. Estendeu o braço. O

macaquinho desceu planando, segurou-se com as garras no tecido de seu conjunto-uniforme e soltou um assobio estridente.

Os outros seres de sua espécie descreveram mais um círculo em tomo do grupo e desapareceram tão rápida e discretamente como tinham aparecido.

Os dois homens e Sherlock não tiveram alternativa. Viram-se obrigados a abrir caminho nas copas das árvores, o que não era nada fácil, por causa do peso de Omar e Sherlock. Mas conseguiram.

Dali a duas horas puderam descer novamente e prosseguir em chão firme. O macaco voador continuou a acompanhá-los. Sentou no ombro de Hawk e ao que

parecia adorava ser carregado. Omar não teve nenhuma objeção. Afinal, este animal e outros da mesma espécie tinham salvo sua vida. Além disso queria ver se conseguia levá-lo à Crest para submetê-lo a alguns testes detalhados. Como psicólogo de animais, desconfiava de que o macaco era ainda mais inteligente do que mostrara no início.

Dentro de meia hora atingiram a zona na qual deveriam ser capazes de estabelecer contato de rádio com a Crest. Omar era capaz de avaliar a distância com uma razoável precisão. Mas não houve resposta aos seus chamados.

Prosseguiram incansáveis em sua marcha. Mas suas chamadas continuaram sem resposta, e por isso começaram a desconfiar de

que algo de imprevisto devia ter acontecido a bordo da Crest. Passaram a andar mais depressa.

Dentro de mais de uma hora chegaram aos limites do platô que fora limpo há alguns dias pelo fogo dos canhões da nave.

No início os homens respiraram aliviados. Mas logo viram. Uma campânula brilhante vermelho-azulada envolvia a nave. Eram

quintilhões de insetos luminosos que sugavam a energia...

Page 250: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

250

2 No início parecia que não havia nenhum perigo. Perry Rhodan, Atlan e os membros da equipe cibernética estavam formando os

grupos de comando que sairiam em quarenta e uma corvetas, que fariam um reconhecimento detalhado no sistema de Vega. O setor de pessoal do centro de computação de bordo fora alimentado com as tarefas específicas, e com base nelas fazia a escolha dos homens do comando de desembarque e das equipes científicas que melhor se prestariam ao desempenho da missão. Desta forma se evitavam os erros de avaliação humanos, garantindo um máximo de segurança de bom êxito. O chefe de qualquer expedição tinha de usar este processo, para não cometer falhas.

O zumbido do intercomunicador interrompeu as conversas travadas a meia voz. Perry Rhodan levantou os olhos, contrariado. Dera ordens para não ser incomodado. Um major cibernético comprimiu a tecla de ativação. O rosto do chefe do setor de rastreamento apareceu na tela.

— Sinto muito, senhor! — disse Enrico Notami, olhando na direção em que estava o Administrador-Geral. — Detectamos uma coisa! A Crest está sendo envolvida por uma rede vermelho-azulada. Fizemos sair uma sonda e esta revelou que se trata de um número incalculável de pequeninos insetos luminosos.

Uma ruga vertical surgiu na testa de Rhodan. — Insetos? — perguntou, aborrecido. — E por isso o senhor me importuna, Major

Notami? Avise os zoólogos e não interrompa nosso trabalho. O rosto moreno de Notami sofreu uma transformação. Até parecia que mordera um

limão. — Sim senhor...! — respondeu, hesitante. O major cibernético interrompeu a ligação. O Lorde-Almirante Atlan pigarreou discretamente. — Acho que deveríamos ver o que está acontecendo, amigo. Você deve estar

lembrado de que a interpretação positrônica dos dados inclui uma alusão à presença de inteligências hostis em Pigell...

Rhodan fez um gesto de pouco-caso. — Os insetos são seres sem inteligência, arcônida. Pelo menos insetos pequenos como

os descritos por Notami. A formação da inteligência exige a presença de certo número de células ganglionares, que nunca caberiam no cérebro de um inseto pequenino.

Rhodan pegou a pilha de cartões que acabara de ser expelida pela máquina. — OK! A tripulação e o comando especial da KC-32 também estão completos. Mais

nove saídas do computador positrônico, e a operação pode começar. — Não sei o que você espera conseguir mandando vasculhar todos os planetas do

sistema, Perry. Acho que temos coisa mais importante a fazer. O Administrador-Geral entregou a pilha de fichas seguinte à equipe cibernética, que

logo a incluiu em seu plano de distribuição. Feito isso, respondeu à pergunta que Atlan acabara de fazer.

— Nunca se sabe bastante, Atlan. Estou interessado principalmente em uma coisa. Pelo que sei, o planeta número quarenta e três só desapareceu oito mil anos antes do início da nova era. Parece que foi levado a um lugar desconhecido pela raça dos imortais, que ainda existia como raça independente. Acontece que estamos vivendo cerca de cinqüenta mil anos antes da nova era, e o planeta já não existe mais. Você tem alguma explicação?

Page 251: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

251

— N... não! — gaguejou o arcônida, perplexo. — Você acha que isto pode ser obra dos senhores da galáxia...?

Rhodan deu de ombros. — Não sei. Mas já não tenho a menor dúvida de que existe uma ligação entre os

senhores da galáxia e o ser coletivo imortal que vivia no planeta Peregrino. Se conseguirmos descobrir mais alguma coisa sobre isso, talvez consigamos dar um grande passo para a frente. Eis o motivo de minha curiosidade, amigo. É por isso que quero que o sistema seja vasculhado. Preciso de novos dados.

Rhodan se entusiasmara durante sua fala, e Atlan se deixara contagiar pelo entusiasmo do amigo. Os dois respiravam pesadamente. Já desconfiavam de que teriam uma surpresa enorme — se conseguissem resolver o mistério dos senhores da galáxia...

Mas isso exigia um trabalho minucioso. Atlan voltou à estação do tempo. Perry Rhodan pegou mais uma pilha de cartões de plásticos expelida pelo

computador, quando de repente uma coisa invisível o empurrou para trás. No mesmo instante o rato-castor Gucky tornou-se visível. Materializara em cima da mesa em que estava sendo feita a classificação dos cartões.

— Olá, Chefe! — piou com a voz estridente. Rhodan já ia repreendê-lo, mas Gucky adiantou-se.

— Não fique zangado, Perry — disse em tom apressado. — Só vim para perguntar por quanto tempo ainda teremos de ficar com esta campânula de insetos em cima da nave. Estes animais me assustam. Já se concentraram numa gigantesca cortina vermelho-azulada, e nuvens gigantescas desses insetos continuam chegando do sul.

— E daí? — perguntou Rhodan, mas logo estacou. — Nuvens gigantescas? — perguntou, fora de si. — Será que o rastreamento não se enganou? Não são nuvens-fantasma?

— Não — respondeu Gucky, muito sério. — Estas não nos incomodam mais. Mas não compreendo que isso o deixe tão indiferente, Chefe. Afinal, você sabe que devemos esperar outro ataque.

O Administrador-Geral nem olhou para a pilha de cartões que acabara de sair do computador. Fitou o rato-castor com uma expressão preocupada e compreendeu que não se tratava de mais uma das brincadeiras de Gucky.

— Está bem! — respondeu em tom áspero. — Vou dar uma olhada. Entregou o comando ao major cibernético e segurou a mão de Gucky. — Pode teleportar-me ao centro de rastreamento, baixinho. Estou com pressa. Os dois materializaram à frente do chefe do rastreamento, Enrico Notami, que parecia

antes um fantasma. O major parecia sentir-se confuso e nervoso. Começou a falar no mesmo instante.

— Ainda bem que o senhor veio. Não posso assumir mais a responsabilidade de permanecer inativo enquanto a Crest está sendo presa nesta rede luminosa.

— As análises! — pediu Rhodan. O Major Notami chamou um sargento e pediu que este trouxesse a fita de análise. O

Administrador-Geral examinou-a atentamente e levantou os olhos. O tamanho médio dos insetos é de apenas dois milímetros, major... Devem ser animais

tão inofensivos quanto os vaga-lumes terranos. Por que tanto nervosismo? Não esperou a resposta. Aproximou-se da tela panorâmica para ver o que havia do

lado de fora. A tela mostrava o quadro exterior, captado por meio de raios infravermelhos e reforçado por raios laser. Era uma excelente combinação de duas técnicas. Por isso a imagem final era nítida e clara.

Page 252: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

252

Não havia nenhuma neblina cobrindo as copas das árvores. à esquerda o platô descia rapidamente em direção ao oceano de lama — e era deste lado que vinham centenas de gigantescas nuvens luminosas.

Estas nuvens não tinham a menor semelhança com as nuvens-fantasma. Ao que parecia, os pequenos insetos eram atraídos pelo corpo esférico da Crest.

Rhodan lembrou-se dos faróis infravermelhos, que ficavam ligados ininterruptamente. Mas era claro! Qualquer inseto se sentia atraído pela luz...!

Rhodan sorriu, aproximou-se do intercomunicador e fez a ligação. — Rhodan falando — disse em tom calmo. — Setor de máquinas VIII-A-B, responda,

por favor! O oficial de plantão respondeu imediatamente. — Faça o favor de desligar os faróis infravermelhos por cinco minutos! — disse o

Administrador-Geral. — Quero ver se depois disso os insetos ainda se sentirão atraídos pela nave.

O oficial, que provavelmente não fora informado sobre o fenômeno luminoso, não compreendeu a finalidade da ordem, mas confirmou.

Mas antes que pudesse mover a chave, os gigantescos “olhos” vermelhos da nave apagaram-se.

E não foi só isto! Dentro da nave as luzes tremeram de repente, apagaram-se, voltaram e tremeram de

novo. Perry Rhodan só ficou parado por um segundo. Depois saltou para junto do console

com os alarmes. Bateu com o punho fechado. As sereias de alarme da Crest fizeram ouvir seu concerto desafinado em todos os

cantos da nave. Mas o uivo estridente diminuiu, transformando-se num gemido, embora Rhodan não

tivesse desligado o alarme. No mesmo instante as luzes da Crest apagaram-se de vez.

* * *

Baar Lun soltou um gemido e cobriu o rosto com as mãos. O modular, que era um super hipersensível, estava prestes a sofrer um acesso de choro. Mas a vontade conseguiu rechaçar a investida dos sentimentos. Baixou as mãos e dirigiu os olhos ardentes para o quadro fantasmagórico que se lhe oferecia. A Crest III, envolta por uma manta ondulante vermelho-azulada...

— Não compreendo que não tenham notado o perigo — disse, perplexo. Omar Hawk saiu da mata bem a seu lado. O macaquinho voador que salvara o

oxtornense e o okrill do pântano de cogumelos continuava sentado no ombro do primeiro. — Insetos luminosos! — exclamou Omar, furioso. — Quem haveria de desconfiar ao

ver estes animaizinhos sem inteligência? O macaquinho voador soltou alguns guinchos e repetiu fielmente a frase, de forma

bem compreensível. — Você deveria chamar-se de Cícero! — resmungou Hawk. — Pelo que eu sei, Cícero

foi um homem dos primórdios da humanidade, conhecido por sua loquacidade. — Cícero...? — repetiu o macaquinho como quem faz uma pergunta, e inclinou a

cabecinha enrugada. Já tinha um nome. Baar Lun mexeu no telecomunicador embutido em seu capacete. Chamou o

ultracouraçado. Devia ser o centésimo chamado. Mas não houve resposta.

Page 253: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

253

De repente apareceram relâmpagos em muitos lugares do casco esférico. A reação de Omar foi instintiva. Agarrou o modular e obrigou-o a deitar. Cícero falava nervosamente e enfiou-se na axila de Omar. O okrill chiava.

Hawk protegeu os olhos com a mão e virou o rosto para a nave. Sabia que os canhões energéticos da Crest acabavam de abrir fogo contra a cortina vermelho-azulada. Teve a impressão de que era inútil querer combater insetos que sugavam energia com raios energéticos. Mas era bem provável que os animaizinhos não fossem capazes de absorver o excedente. Nos lugares em que as trilhas energéticas ofuscantes saíam das torres de canhões, a rede luminosa se esfacelava. As brechas que se abriam na campânula luminosa aumentavam cada vez mais.

Omar ia respirar aliviado, quando o fogo energético se apagou de repente. — Olhem! — gritou Baar Lun com a voz abafada, apontando para a área nua do platô. O sangue parecia congelar nas veias de Omar. Figuras branquicentas iam crescendo

em toda parte no solo rochoso. Podia-se ter a impressão de que eram raízes gigantescas, mas seu crescimento era muito rápido. As figuras cresciam mais depressa nas imediações da Crest. Subiram pelo casco da nave e foram formando uma malha fina de raízes.

De repente um fogo branco-azulado saiu dos jatos-propulsores da nave. — Estão decolando! — disse o modular num soluço. Não! — cochichou Omar Hawk.

Não ouvia o rugido ensurdecedor que costumava acompanhar a decolagem da gigantesca nave. Só se ouvia um fraco trovejar.

Os fluxos de plasma continuavam a sair dos bocais de jato dos propulsores, mas os raios empalideceram, transformando-se num fluxo quase invisível, que se perdia nas raízes que cresciam junto ao chão. A nave não subiu um centímetro que fosse.

Dentro de alguns minutos os fluxos de partículas terminaram de vez. Omar arregalou os olhos ao ver o chão abrir-se à sua frente. A rocha crepitava

enquanto apareciam as rachaduras. Estas se abriram em ramificações, fazendo com que a pedra dura se desmanchasse em pedaços do tamanho de um punho humano. Raízes dos mais diversos formatos passavam entre os fragmentos que nem vermes gigantescos que estivessem à procura de uma presa. As raízes cobriram o planeta que nem uma tessitura de veias.

Omar Hawk levantou instintivamente a mão que segurava a arma energética. Comprimiu o botão acionador, e uma trilha energética ofuscante atingiu ruidosamente as figuras branquicentas.

No lugar em que pouco antes milhares de raízes se estendiam para o alto fervilhava a lava vermelho-alaranjada de uma cratera de vários metros de diâmetro. Hawk fez girar a arma, atingindo as figuras apavorantes peça por peça. Baar Lun também começou a atirar. A potência de sua arma nem de longe chegava à do fuzil energético superpesado de Hawk, mas também conseguiu bons resultados. A rede de raízes foi-se desmanchando sob o efeito do calor despejado pelas armas energéticas.

Omar Hawk soltou uma estrondosa gargalhada. Mas riu antes da hora. Menos de vinte e cinco por cento dos atacantes medonhos tinham sido destruídos e

cerca de dez mil metros quadrados de solo se haviam transformado em lava incandescente, quando dezenas de nuvens de insetos brilhantes desceram sobre as raízes restantes, que se estendiam em sua direção.

O resultado da união apareceu quando Omar disparou mais um tiro. A trilha energética ofuscante mudou de cor, produzindo apenas um brilho azulado. Atingiu o alvo sem produzir qualquer efeito. A mesma coisa aconteceu com os tiros disparados pelo modular.

Suspenderam o fogo.

Page 254: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

254

Mas era tarde. Uma nuvem formada por minúsculos seres luminosos envolveu os homens e os dois

animais. Concentrou-se em torno das armas energéticas — e do equipamento de energia do traje espacial de Lun.

Omar Hawk viu o perigo. — Ligue os equipamentos do traje espacial na posição zero! — gritou pelo microfone

implantado em sua laringe. — Desativar armas! Baar Lun não reagiu logo. Omar saltou para junto dele, para desligar o equipamento

de seu traje espacial antes que os insetos pudessem sugar sua energia. Mas antes que tivesse tempo para isso a luminosidade desapareceu em torno do

modular. Uma coisa gelada e invisível passou por cima do oxtornense. No mesmo instante este compreendeu o que estava acontecendo.

Lun estava modulando! Usava o dom especial de seu espírito para transformar a energia dos seres luminosos em hidrogênio atômico, que logicamente não possuía qualquer energia cinética. Dessa forma sua temperatura que, como se sabe, sempre depende do movimento das moléculas, estava no zero absoluto. A grande quantidade de energia modulada produzia um resfriamento acentuado nas imediações. Omar espantou-se ao ver que algumas poças de lama estavam congelando. Cícero choramingava. O habitante das selvas não estava acostumado ao frio.

Omar recuou apressadamente para a selva. A nuvem luminosa que ainda há pouco os ameaçara apagara-se de vez.

Talvez Lun conseguisse abrir caminho para a Crest! O modular respondeu à pergunta que Omar não chegara a formular.

— Já basta. Se houver um ataque de duas nuvens ao mesmo tempo, desisto. Não se entregue a falsas esperanças, Hawk. Em hipótese alguma poderei chegar à nave. Minha capacidade de conversão também tem seus limites.

Omar reconheceu que realmente era assim, mas fez uma pergunta. — Qual é sua sugestão, Lun? O modular tossiu baixinho. — Sugiro que nos retiremos quanto antes para a selva, Hawk. Ali vem mais uma

nuvem, e acho que outras virão atrás dela. Ficando aqui, não poderemos fazer nada por ninguém. Vamos fazer o possível para sobreviver. Os tripulantes da nave terão de resolver o problema sozinhos.

Com um gesto resignado, Omar Hawk voltou a guardar a arma. Assobiou chamando o okrill e deixou que Baar Lun seguisse à sua frente. Formou a retaguarda.

Bem no íntimo perguntou-se para que queriam sobreviver.

* * *

Os relâmpagos iluminaram a noite. As descargas chamejantes subiam em todas as linhas do horizonte. Até parecia uma dança dos espíritos do fogo que Omar Hawk vira há muitos anos...

Dali a pouco a tempestade uivou por cima da selva. Omar, Lun, o okrill e Cícero estavam agachados em torno do forno atômico pequeno e

achatado que pertencia ao equipamento especial de Hawk. O oxtornense conseguira abater, com o auxílio de Sherlock, um herbívoro do tamanho de um urso e tentava assá-lo no grill infravermelho em forma de concha. Aos poucos foi conseguindo, uma vez que as reservas de energia do forno atômico eram muito grandes.

Omar cortou um grande pedaço de carne e experimentou-o. O sabor era excelente, mesmo sem sal ou temperos.

Page 255: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

255

A temperatura noturna era de “apenas” quarenta e oito graus. Por isso Baar Lun resolveu abrir o capacete pressurizado para participar da refeição. Não comeu muita coisa, mas do animal abatido não sobrou quase nada. Omar Hawk e Sherlock devoraram mais de noventa por cento. O macaquinho voador alimentou-se com frutas desconhecidas que cresciam nas árvores. Sherlock até chegou a triturar os ossos do animal, de forma que não sobrou quase nada.

Omar viu que Lun estava muito cansado. Fez um gesto convidativo. — Pode dormir, meu chapa — disse. — Ficarei de sentinela. Como oxtornense estou

acostumado a um ritmo de quarenta e duas horas de noite e quarenta e duas horas de dia. Com o okrill acontece a mesma coisa.

— Muito obrigado — respondeu Baar Lun, embaraçado. Deitou no chão molhado, depois de fechar novamente o capacete. Antes de adormecer, voltou a erguer-se no chão.

— Não sei... — disse em tom hesitante — ...se não deveríamos fazer alguma coisa pela Crest. Quem sabe...

— Deixe para lá! — interrompeu Omar em tom violento. — Afinal, Perry Rhodan ainda pode contar com os mutantes. Acho que saberá enfrentar a situação. Se não souber, tudo estará perdido — suspirou. — Seja como for, não há nada que possamos fazer. Trate de dormir para poupar suas forças. Quem sabe se dentro em breve não precisarão de nós? Isto se Rhodan conseguir fazer a nave decolar...!

Assim que o modular adormeceu, Omar Hawk levantou sem fazer barulho. A trovoada ainda estava rugindo. A tempestade chicoteava as copas das árvores,

tangendo a chuva que descia em cascatas no lugar em que o grupo estava acampado. O chão transformou-se num lamaçal. Bastava ficar de pé um minuto para afundar até os joelhos.

Omar foi para perto de uma árvore que ficava na borda da clareira em que se encontravam. Empurrou o tronco com os ombros, apertou e puxou com as mãos, até que as raízes arrebentaram com uma série de estrondos. Em seguida colocou o tronco atravessado na clareira e sentou nele. Já não precisava mudar de posição com intervalos de poucos minutos ou até segundos.

Sherlock aproximou-se arrastando os pés e saltou para a copa da árvore derrubada. Espirrou satisfeito. O macaquinho voador encolheu as asas e saltou para as costas largas de Sherlock. Uma vez lá, agarrou-se a uma dobra da pele, fechou os olhos cor de ouro — e adormeceu.

Para Hawk aquilo era um verdadeiro idílio de paz. A tempestade, a trovoada e a chuva não assustavam o homem de Oxtorne, nem mesmo os bramidos dos sáurios vindos de bem perto e o cheiro ardido das feras.

Mas sabia que este idílio era uma ilusão. A uns quinze minutos do lugar em que se encontrava a tripulação da Crest lutava pela própria vida e pela nave. O resultado da luta era incerto. Ninguém sabia de que recursos ainda dispunha o inimigo, além dos insetos que absorviam a energia.

As horas foram passando. Baar Lun dormia profundamente. Não acordou nem mesmo quando um furacão arremessou lama, galhos e folhas no lugar em que estavam acampados. A tormenta parou repentinamente, o que era uma das características de Pigell. Mas as estrelas continuaram invisíveis. O sexto planeta de Vega estava constantemente coberto de nuvens, que nem Vênus. Até mesmo o sol Vega, que em comparação com o Sol terrano era de proporções gigantescas, não passava durante o dia de uma mancha luminosa pálida que aparecia atrás de camadas de neblina de vários quilômetros de altura.

Quando a tormenta parou, o silêncio passou a reinar. De repente — uma hora já se devia ter passado — um crepitar agudo e um bramido

surdo romperam o silêncio da noite. O barulho vinha de bem longe.

Page 256: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

256

Omar levantou de um salto. Distinguiu perto dele os olhos do okrill com seu brilho avermelhado. Sherlock ficaria de sentinela. Ele mesmo poderia sair tranqüilamente para ver se conseguia observar os acontecimentos.

De dia Omar vira uma árvore muito alta a uns cem metros do lugar em que se encontrava. Saiu nessa direção. A selva fechou-se em cima de sua cabeça.

Imediatamente ouviu um forte berreiro, um grasnar agudo, um borbulhar surdo. Os habitantes da floresta, que estavam dormindo, tinham sido acordados e reclamavam contra quem os perturbara.

Os animais noturnos também fizeram notar sua presença. Omar encolheu a cabeça quando um braço da grossura de uma coxa humana passou assobiando. Mas apesar de tudo prosseguiu através da vegetação. Um felino feroz do tamanho de um touro terrano saltou sobre ele. Omar arrebentou seu crânio com o punho e continuou na sua corrida. Finalmente chegou ao destino.

Não descansou um segundo que fosse. Escalou o tronco muito liso, com alguns metros de diâmetro. Quando atingiu a copa da árvore, passou a ter mais cuidado. Nem todos os galhos seriam capazes de suportar seu peso. Mas conseguiu subir o suficiente para que sua cabeça sobressaísse em cima da folhagem.

Colocou-se cuidadosamente numa posição em que podia olhar para o lugar em que estava pousada a Crest.

A esfera gigantesca que era o ultracouraçado emitia um brilho vermelho sombrio. Mas a luminosidade não provinha dos campos defensivos. Era produzida por quintilhões de insetos que mantinham presa a espaçonave e lhe roubavam a energia. De noite a cortina ondulante parecia ainda mais fantasmagórica e ameaçadora que de dia.

Pela primeira vez desde que se deparara com o fenômeno Omar perguntou-se que insetos luminosos eram estes. Para ele, que estava acostumado a pensar logicamente, parecia pouco provável que estes seres tivessem sido produzidos pela natureza. A evolução só costumava produzir seres que estavam adaptados em larga escala às condições do mundo em que viviam. Num planeta em que existissem fontes de energia atômica a natureza produziria seres que absorvessem energia.

Mas em Pigell não havia fontes de energia atômica. Pelo menos não havia fontes naturais. Se apesar disso tinham surgido seres que sugavam energia, estes de forma alguma poderiam ter resultado da evolução natural.

Omar Hawk lembrou-se por alguns segundos dos aras, que eram os médicos e biólogos galácticos. Estes seriam bem capazes de criar uma forma de vida como esta. Mas no tempo relativo em que se encontravam, quase cinqüenta mil anos antes do nascimento de Jesus Cristo, os aras ainda não existiam. Só se formariam bem mais tarde a partir de um grupo de fugitivos tefrodenses, tal qual os aconenses e os arcônidas. Os médicos galácticos não podiam ser os responsáveis pelos acontecimentos que se desenrolavam naquele momento.

E os senhores da galáxia...? Omar também não achou provável que tivessem sido eles. Sabia-se muito pouco a

respeito deste povo misterioso, mas uma coisa era certa. Este povo não podia produzir milagres deste tipo.

O antigo psicólogo de animais oxtornense e atual tenente do destacamento especial de patrulhamento da Segurança Galáctica olhou com uma expressão pensativa para a esfera da nave-capitânia solar, da qual se desprenderam repentinamente ofuscantes pontos luminosos, que correram pelo platô, deixando para trás rastros ofuscantes. Logo atingiram o chão. Centenas de bolas de fogo dançavam pelo platô, e mais tarde ouviu-se o trovejar surdo das explosões. Hawk deu uma risada amarga.

Page 257: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

257

O terrível inimigo certamente não poderia ser combatido com isso — com antiquados canhões automáticos, que disparavam foguetes com explosivos químicos.

Mas de repente descobriu outra coisa. Muito nervoso, ergueu o corpo e por pouco não caiu, quando um galho quebrou embaixo de seus pés. Mas logo conseguiu equilibrar-se de novo e olhou para o sul.

Era bem verdade que as trovoadas de Pigell quase chegavam a ser tão violentas como as de Oxtorne, mas as descargas violentas que Omar via na linha do horizonte não podiam ser produzidas por uma trovoada.

Relâmpagos ultraluminosos subiam quase até o espaço cósmico, rasgando a cortina de nuvens que envolvia constantemente o planeta e fazendo brilhar as camadas superiores da atmosfera. Até parecia uma nuvem de fogo vermelho-escura.

Uma suspeita começou a tomar forma no cérebro de Omar. Há horas vivia se perguntando o que era feito da energia sugada da Crest. Podia haver plantas e animais que viviam de energia, mas eles certamente não seriam capazes de absorver as quantidades imensas produzidas pelas unidades geradoras do ultragigante.

Ali, atrás do horizonte do sul, deviam estar os autores do ataque apavorante. Omar desceu da árvore e voltou correndo ao acampamento. Por enquanto sua

imaginação não conseguia assimilar o que se passava, mas tinha certeza de que encontraria um caminho — um caminho que levava para o sul.

* * *

O ruído da batalha que se travava em torno da Crest chegou ao acampamento durante

toda a noite. Ao amanhecer tornou-se ainda mais forte. Omar não acreditava que isso fosse um bom sinal, mas não disse nada.

Baar Lun ouviu em silêncio a sugestão do oxtornense. No fim sacudiu a cabeça. — Nesta ilha-continente ainda não nos encontramos com nenhum Tankan, Hawk. Os

seres que construíram a estação do tempo certamente expulsaram os répteis que viviam aqui. E sem o auxílio dos Tankan nunca conseguiremos atravessar o mar.

Omar sorriu despreocupado. — Depois que entrei na Segurança Galáctica já cumpri várias missões que qualquer

homem normal teria julgado impossíveis. Isso aconteceu principalmente quando eu ainda não servia na Crest. Algumas vezes cheguei a dizer a mim mesmo que nunca conseguiria. Mas sempre acabei conseguindo, Lun.

Contemplou o macaquinho voador, que planava em curvas elegantes por cima da clareira, pegando libélulas de um palmo de comprimento.

— Em Pigell devem existir outros animais que poderão carregar-nos por cima do mar de lama — disse em tom pensativo. — Só teremos de amansá-los...

O modular sobressaltou-se. — O senhor não pode estar falando sério, Hawk! Acha que estou disposto a sentar nas

costas de algum parente do tiranossauro rex terrano, para na primeira oportunidade transformar-me numa iguaria saborosa desta criatura?

Omar deu uma risada seca. — Logo se vê que o senhor não é um psicólogo de animais, Lun. É claro que um

animal feroz nunca poderá ser usado como meio de transporte, ainda mais a grande distância. Mas deve haver herbívoros de grande porte.

Virou a cabeça e assobiou. O okrill veio correndo. O animal ainda se esforçava para engolir o último bocado de

uma presa que conseguira capturar.

Page 258: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

258

Omar bateu em seu ombro e começou a falar com Sherlock. Nunca o usara para procurar um animal selvagem de certo tamanho e espécie e tangê-lo para o acampamento sem feri-lo. Mas sabia que Sherlock compreenderia o que ele queria dizer.

Depois de cinco minutos o okrill espirrou fortemente, mostrando que sabia do que se tratava. Omar não precisava explicar mais nada.

O oxtornense deu-lhe uma forte pancada nas costas, e soltou o grito ao qual o animal, que já fora selvagem e perigoso, reagira pela primeira vez.

— Hii! A fera saiu que nem uma bala. Cícero protestou, deixou cair a libélula que acabara de capturar e subiu para o alto.

Seguiu o okrill em silêncio. Por alguns segundos ainda se ouvia seu forte hiii, mas este logo silenciou.

— Foram embora — observou Baar Lun, numa constatação supérflua. Omar levantou e espreguiçou-se. — Deixemos que eles nos surpreendam, Lun. O modular riu embaraçado. — Estou curioso para ver a surpresa. As horas foram passando. Até Hawk começou a ter suas dúvidas. Sherlock não deveria

ter voltado há tempo, se houvesse um animal que se prestasse ao que eles queriam...? De repente ouviu-se um bater de asas. Era Cícero. O macaquinho voador pousou no

capacete pressurizado de Lun, dobrou as asas com aspecto de couro e fitou Omar com o rosto enrugado de anãozinho como se quisesse fazer pouco-caso dele.

— Qual é a notícia que nos traz? — perguntou Omar em tom de brincadeira. — É uma notícia boa ou má?

Cícero abriu os lábios negros. — Boa notícia, Hawk. Sherlock bem, hii! Baar Lun estremeceu fortemente quando ouviu o berro de um animal vindo de bem

perto. O macaquinho voado bateu as asas, aborrecido, e disse com a voz rouca: — Você medo, Lun? Ouviram-se galhos quebrando. Até parecia uma dezena de tratores aplainando o

terreno da floresta. Omar Hawk pegou o amigo pelo braço, levando-o ao lado oposto daquele do qual vinha o barulho. Dali a pouco tombaram três árvores que cresciam junto à clareira, e um crânio oval apoiado num pescoço comprido e robusto sobressaiu na folhagem. Seguiram-se duas pernas muito grossas, que esmagaram um tronco. Um tórax descomunal saiu para a clareira.

A cabeça balançava nervosamente de um lado para outro. Os olhos negros e redondos do gigantesco animal fitavam os homens. Ao que parecia, não viam nenhum perigo neles.

O sáurio tinha pelo menos quinze metros de comprimento e cerca de quatro metros de largura. Cada uma das seis pernas tinha setenta e cinco centímetros de diâmetro. Os pés tinham o dobro desse tamanho. O animal certamente corria muito bem em terreno pantanoso. A pele era malhada em verde e marrom, o que representava uma excelente camuflagem. O pescoço tinha pelo menos quatro metros de comprimento, enquanto a cabeça devia ter um metro e meio de comprimento e um metro de largura. A boca larga com os enormes dentes molares era fechada por um par de lábios volumosos, cobertos de espuma. Os olhos ficavam embaixo de duas estruturas ósseas volumosas.

Sherlock saiu agilmente entre as pernas enormes. O okrill não queria colocar-se ao alcance da visão do giga-réptil.

O animal acalmou-se um pouco, e Omar achou que já era chegado o momento de começar com a experiência. Escondeu na mão esquerda uma das frutas vermelhas que eram uma das especialidades de Cícero, tendo o cuidado de manter esta mão atrás das costas. Saiu caminhando devagar em direção ao giga-réptil. Parou a dois metros dele.

Page 259: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

259

Desfiou um canto monótono, que de forma alguma pertencia ao programa de treinamento de um psicólogo de animais. Aprendera este canto na terceira missão que desempenhara como agente no planeta Daliuh. Os nativos deste planeta tinham sido chantageados pelos aras, e usaram grandes herbívoros na luta contra os médicos galácticos.

A cantoria monótona exercera um efeito hipnótico sobre os animais de Daliuh. Omar fazia votos de que o giga-réptil também fosse suscetível a esta espécie de domesticação — ou ao menos que o processo representasse um princípio de domesticação.

Por enquanto o réptil não demonstrava nenhuma reação. Apenas baixou a cabeça, num gesto de curiosidade perfeitamente compreensível, enquanto rangia com as enormes mandíbulas. Um cheiro insuportável, que era um misto de putrefação e acidez estomacal, atingiu Omar, que teve de fazer um grande esforço para não deixar perceber a repugnância que isto lhe causava. Gritava sem parar os sons melodiosos para o animal.

Quando veio a reação, esta foi tão surpreendente que Omar por pouco não foi esmagado pelo corpo gigantesco do animal. Q giga-réptil deixou-se cair ao chão. O solo tremeu e trovejou sob a força do impacto.

Omar saltou alguns metros para trás. Mesmo no momento do susto não sentira medo de verdade. Viu nisto um bom sinal, pois sua grande experiência com animais criara nele uma grande receptividade aos seus sentimentos.

Voltou a aproximar-se do réptil, cuja cabeça estava pousada no chão. Havia um brilho úmido — e pacífico — em seus olhos negros. Omar ergueu a mão, cautelosamente e muito devagar. Qualquer animal selvagem — e por vezes até um animal domesticado — tinha uma aversão instintiva contra uma mão levantada acima da altura dos olhos.

Cantando sempre, Omar fez subir a mão ao lado da cabeça do réptil e voltou a abaixá-la. Apesar desta precaução, o animal fungou assustadoramente. Sua pele tremeu. O tremor ficou mais forte quando a mão de Omar tocou suas narinas. Neste instante o oxtornense mostrou a fruta vermelha e ofereceu-a ao giga-réptil na palma da mão.

O tremor parou quase no mesmo instante. O animal olhava ora para a fruta, ora para Omar.

Omar interrompeu a cantoria. — Vamos, Lady! Pegue — disse para animar o animal. Os lábios carnudos abriram-se lentamente. O lábio inferior avançou um pouco,

aproximando-se da mão de Omar. Ansioso, o oxtornense prendeu a respiração. Era o momento decisivo.

O réptil pegou cuidadosamente a fruta, fez recuar a cabeça e triturou a iguaria com os dentes.

Omar voltou a levantar a mão. Desta vez não teve tanto cuidado. O réptil quase não tinha mais medo. Fungou pelas enormes narinas, um tanto arredio, mas deixou que Omar o acariciasse. Depois de algum tempo o oxtornense sentiu uma suave pressão, pela qual o animal retribuía as carícias.

Compreendeu que tinha ganho a parada. O caminho para o sul ficara aberto para eles.

Page 260: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

260

Naves Espaciais Extraterrestres

Nave Espacial Cilíndrica dos Superpesados

Generalidades: Os superpesados fazem parte de um povo dos springers (saltadores) que habitaram, preponderantemente, planetas com condições de alta gravidade. Esta circunstância condiciona a sua estrutura física quase quadrada, e a sua extraordinária força física.

Originariamente viviam como os seus antepassados em ligas familiares ganhando o seu sustento, prestando serviços mercenários. Depois da nomeação do superpesado Leticron para primeiro Hetran da Via-Láctea, eles se tornaram, com a ajuda dos Laren o povo dominante dentro da galáxia. As frotas isoladas das ligas familiares foram reunidas para, deste modo, poderem garantir um controle do seu poder. O planeta PARICZA no sistema Punte-Pono tornou-se o seu mundo central. Ali e no planeta OBSKON também se encontram as suas mais importantes bases e estaleiros espaciais.

A técnica de suas naves foi continuamente melhorada e desenvolvida pelos superpesados, desde a sua tomada do poder. Desde que as naves espaciais dos Laren tem o seu raio de ação bastante limitado por falta de energia, elas estão sendo equipadas, cada vez mais com equipamentos da supertécnica lariana, para poderem tomar para si a compensação, pelo menos em parte. Dados Técnicos: Comprimento total: 1.200 m. Diâmetro da fuselagem (casco) 260 m. Aceleração máxima: 760 Km/seg2. Dois propulsores lineares com um alcance máximo de 1.030.000 anos-luz. Tripulação fixa de 1.900 homens, além de 650 homens para a flotilha de naves auxiliares. Como equipamento extra, um satélite de combate automático, para funções de vigilância e controle.

1. Propulsor principal de comando. 2. Propulsores de impulsão energética

(total de 6 unidades). 3. Propulsores traseiros auxiliares de

comando com 6 motores energéticos separados, com comutadores (4 unidades).

4. Aletas estabilizadores para vôo atmosférico.

5. Usina geradora de força para propulsores lineares.

6. Usina principal de força para propulsores lineares (2 conversores lineares cada um com 500.000 anos-luz de alcance).

7. Acumuladores energéticos para os propulsores lineares.

Page 261: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

261

8. Colunas de sustentação da nave (para pouso) (total 16 unidades).

9. Bateria de desintegradores com 4 canhões.

10. Cruzador de combate leve (comprimento 135 m, diâmetro 30 m, tripulação 70 homens (total 4 unidades).

11. Nave de aterragem (comprimento 45 m, diâmetro 11 m, — total de 16 unidades).

12. Canhões de desintegradores pesados (total 10 unidades).

13. Hangar para naves de aterragem. 14. Bateria de costado com 3 canhões

energéticos pesados. 15. Projetor de campo energético

defensivo. 16. Tanques de deutério, transformadores

de energia e baterias para o impulsor principal.

17. Geradores de campo energético defensivo (utilizável ao mesmo tempo para campos energéticos defensivos normais ou hiperenergéticos).

18. Alojamentos da tripulação. 19. Rampa de descida, manobrável, com

esteira rolante para transporte de cargas.

20. Termo-bateria pesada geminada. 21. Hidráulica de suportes de pouso com

equipamento antigravitacional, que diminui o peso da nave, depois do pouso.

22. Eclusa para a tripulação. 23. Canhão energético pesado (total 16

unidades). 24. Geradores principais com 4 reatores

pesados de fusão atômica. 25. Cruzador de patrulha (comprimento

85 m, diâmetro de 20 m, tripulação de 30 homens (total 8 unidades).

26. Porta de hangar articulado para o hangar de cruzadores de combate.

27. Hangar para cruzadores de patrulha. 28. Hangar principal para diversos fins.

29. Duto antigravitacional (total 48 unidades).

30. Satélite de combate automático (é colocado em órbita em planetas conquistados, para vigilância sobre seus habitantes, e para evitar o pouso de naves inimigas).

31. Antena normal e de hiper-rádio. 32. Propulsor antigravitacional. 33. Cúpula de comando com centrais de

controles e computação positrônica principal.

34. Alojamento de oficiais, com solário, pavilhões de esporte e arena para jogos e lutas.

35. Propulsor linear de reserva. (1 pequeno conversor linear com 30.000 anos-luz de alcance).

36. Entrada principal do depósito. 37. Duto antigravitacional nos fundos da

nave, com eclusa. 38. Eclusa de cargas. 39. Eclusas para planadores, blindados

voadores e robôs de combate. 40. Hangares e oficinas de consertos para

planadores, etc. 41. Propulsor-reserva com dois pequenos

reatores de fusão atômica. 42. Magazine para sondas-robôs e

torpedos espaciais. 43. Dispositivo de lançamento de sondas e

torpedos. 44. Estação transmissora. 45. Laboratórios, departamentos

científicos e oficinas de reparos. 46. Propulsores de comando dianteiros

cada um com 4 motores energéticos (total 4 unidades).

47. Propulsores de frenagem. 48. Canhão especialmente semelhante aos

transmissores (atira bombas atômicas para dentro de um campo de transporte de velocidade ultraluz, que detona ao alcançar a sua meta).

49. Sonda-robô. 50. Veículo de solo, para aprovisiona-

mento de deutério.

Desenho: Christoph Anczykowskl.

Page 262: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

262

3 Perry Rhodan acompanhou ansiosamente pelo sistema de acompanhamento de

imagem a saída de uma centena de robôs de guerra. As máquinas de quatro braços e dois metros e meio de altura saíram da nave-

capitânia da frota do Império por uma eclusa situada acima da segunda protuberância dos hangares. Antes disso a cortina ondulante vermelho-azulada fora rompida nesse lugar pelo fogo concentrado de doze canhões. Os robôs desceram suavemente à superfície por meio dos dispositivos antigravitacionais embutidos. Imediatamente entraram em formação de cunha e deram início ao avanço. Seu destino era a entrada camuflada da estação do tempo dos senhores da galáxia, na qual estavam aquartelados mil e quinhentos soldados espaciais sob o comando de Atlan.

Avançando assim, a falange de aço parecia invisível. Mas a ilusão durou muito pouco. De repente quatro nuvens gigantescas de insetos desceram do céu eternamente encoberto de Pigell.

O estrondo das armas dos robôs misturou-se ao rugido dos canhões da nave. Os insetos luminosos foram dizimados. As nuvens compactas transformaram-se em névoas soltas, afastadas pelo vento.

Os robôs de guerra prosseguiram firmemente. Quando se encontravam a apenas duzentos metros da entrada da estação do tempo, a situação mudou de repente.

No início parecia que era somente um dos tremores de terra que se verificavam todos os dias. A superfície vitrificada do platô, aplainada pelos canhões da nave, foi quebrada abruptamente por milhares de fendas. Grandes rochas levantavam-se, arrebentavam e se esmigalhavam. As fendas eram cada vez mais numerosas.

Das fendas saíram figuras parecidas com serpentes. Giravam, contorciam-se e se esticavam. Cresciam com uma velocidade medonha e formaram um trançado titânico.

Perry Rhodan empalideceu. Mas por enquanto a curiosidade era mais forte que o medo. Deu ordem para que um grupo do comando de desembarque arranjasse amostras das figuras em forma de raízes e mandasse examiná-las no laboratório.

Lá fora os robôs de guerra abriram a tiros uma passagem estreita em meio às raízes. Mas seu avanço era cada vez mais lento. As raízes saíam do chão mais depressa do que os robôs conseguiam destruí-las.

Dali a meia hora ainda se encontravam a cerca de cem metros da estação do tempo. Passaram a formar um círculo, para defender-se dos ataques cada vez mais violentas das nuvens de insetos. Era bem verdade que por enquanto não houvera nenhuma baixa entre as máquinas.

As máquinas da Crest também tinham voltado a funcionar, depois que a rede de insetos tinha sido rompida pelo fogo incessante dos canhões. A situação parecia antes cômica que preocupante.

Foi ao menos o que disse Perry Rhodan, antes que aparecessem as formações parecidas com raízes. Logo mudou de opinião, embora ainda não soubesse de que forma as raízes poderiam tornar-se perigosas para sua nave gigantesca. Só havia uma coisa que o incomodava: a falha dos projetores que alimentavam os campos defensivos. Os seres luminosos começaram a retirar a energia destes campos, assim que foram ligados. Tiveram que ser desligados, para evitar o desperdício de energia.

Rhodan levantou os olhos, interessado, quando um cientista militar que trabalhava no laboratório entrou em contato com ele.

— Pois não... — respondeu.

Page 263: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

263

A respiração do cientista era nervosa e apressada. — Senhor, os polarizadores são formações em parte vegetais, em parte cristalinas.

Têm um... — Um instante, por favor! — interrompeu Rhodan. — Por que usou o nome

polarizadores? Um sorriso angustioso apareceu no rosto do cientista. — Porque têm uma polarização semelhante à dos ímãs, senhor. São capazes de

absorver energia de um lado e entregá-la do outro lado. As funções dos dois lados não podem ser trocadas. São irreversíveis, tal qual as do pólo norte e sul de um planeta. Foi por isso que lhes demos o nome de polarizadores, senhor.

— Está certo! — o Administrador-Geral não demonstrou a menor emoção. — Prossiga!

— No momento estamos... — Espere aí! Há pouco, quando eu o interrompi, o senhor começou a frase dizendo:

Têm um... — Ah, sim. Queira desculpar. O que eu quis dizer é que eles têm um metabolismo

muito estranho, senhor. Na verdade, os polarizadores de Pigell nem deveriam existir. Vivem da absorção de energia pura, que nunca podem ter retirado do solo deste planeta.

— Interessante! — observou Rhodan, pensativo. — Prossiga, por favor. — Estamos realizando uma análise genética, senhor. Os resultados parciais que já

possuímos prometem uma sensação. Por enquanto só posso fazer suposições, mas tenho certeza de que os polarizadores não podem ter surgido no curso da evolução natural.

— Muito obrigado. Por enquanto basta. — Perry Rhodan despediu-se com um aceno de cabeça. — Até logo mais.

Desligou o intercomunicador e voltou a observar as seis telas de imagem que se encontravam em cima da mesa dos mapas. Uma delas continuava a mostrar os cem robôs — e a nova evolução dos acontecimentos.

As nuvens de insetos continuavam suspensas em cima dos robôs. Eram rasgadas constantemente pelos tiros energéticos e apagadas pelos desintegradores. Mas sempre sobravam algumas que se uniam às pontas salientes de certos polarizadores.

O efeito era assustador e prenunciava a catástrofe que se aproximava. Depois de se unirem aos polarizadores, as nuvens luminosas tornavam-se imunes aos

efeitos das armas energéticas. Parecia que eram capazes de absorver até mesmo a energia concentrada de um canhão energético. Era bem verdade que na opinião de Perry Rhodan a energia excedente era transmitida aos polarizadores, que por sua vez a encaminhavam a algum lugar. Restava saber para onde.

Sua reação foi instantânea. Bateu com o punho fechado na chave do intercomunicador, enquanto os dedos da mão esquerda passavam pelo teclado.

No mesmo instante o Coronel Cart Rudo, comandante da Crest III, fitou-o da tela. — Decolagem de emergência! — ordenou Rhodan em tom áspero. Rudo confirmou. — Baar Lun e Hawk ainda estão lá fora — cochichou John Marshall, que se encontrava

ao lado do Administrador-Geral. Rhodan fez um gesto de pouco-caso. — Mais tarde viremos buscá-los. Primeiro temos de cuidar da segurança da nave. “Se é que ainda está em tempo”, acrescentou em pensamento. A resposta de Marshall foi abafada pelo uivo estridente das sereias de alarme. A voz

estrondosa do epsalense saiu do alto-falante, anunciando a decolagem para o momento X menos dez segundos.

Page 264: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

264

As unidades geradoras trovejaram. O corpo esférico gigantesco do ultragigante tremeu sob a ação das energias contidas, que subiam bem alto na escala giga, quase atingindo os padrões planetários.

Decolar! A Crest foi sacudida violentamente. Assustado, Rhodan olhou para o console do

comandante. A nave já deveria ter saído do chão. As sacudidelas eram cada vez mais fortes. Vozes automáticas viviam gritando

advertências. Cart Rudo certamente regulara o volume de energia conduzido aos propulsores bem acima dos limites de segurança.

O centro de rastreamento chamou. — Não adianta, senhor! — disse o Major Notami com o rosto cinzento. — As nuvens

luminosas, juntamente com as raízes, sugam toda a energia dos jatopropulsores. A nave nunca conseguirá gerar o empuxo necessário à decolagem.

Perry Rhodan fez menção de soltar uma frase indignada. Mas deixou cair as mãos, num gesto resignado.

— Obrigado, major! — limitou-se a dizer. Ficou indeciso por alguns segundos. Finalmente chamou o Coronel Rudo e deu ordem

para que a tentativa de decolagem fosse interrompida. Tentou localizar os cem robôs que tinham saído. As máquinas de guerra ainda

estavam formadas em círculo, mas permaneciam imóveis. Estendiam os braços armados para o céu, que nem os dedos de um cadáver. Uma rede vermelho-azulada os envolvia.

Dali a pouco as luzes se apagaram — desta vez definitivamente. Todos os aparelhos que consumiam qualquer quantidade de eletricidade deixaram de funcionar. As telas ficaram escuras.

Os homens que se encontravam na Crest ficaram isolados do mundo exterior.

* * *

— Levante, Lady, levante! Omar Hawk forçou os pés sobre a nuca larga do giga-réptil e puxou os arreios grossos

feitos de cipós. Lady fez uma volta pouco antes da muralha aparentemente impenetrável da selva e

voltou correndo para junto do mar de lama. As pernas de tronco do herbívoro trovejavam na rocha coberta de musgos. A cauda tremia nervosamente, arremessando ao ar as pedras e destroçando uma árvore solitária.

— Muito bem, Lady, muito bem! — gritou Hawk. Inclinou-se para a frente e bateu carinhosamente no pescoço do monstro, que era do tamanho de um vagão de carga de grande porte.

Um puxão ligeiro para a direita nos arreios, e o réptil mudou de direção, entrando na lama quente borbulhante. Atravessou balançando a área rasa junto à costa. Finalmente empurrou-se fortemente e saiu nadando.

O oxtornense soltou os arreios e virou a cabeça. Baar Lun estava sentado num cesto primitivo, fabricado às pressas com galhos e

cipós. Segurava-se com as duas mãos, para evitar que os movimentos do animal o atirassem para fora. De vez em quando soltava um gemido. Omar ouvia-o no microrreceptor implantado no ouvido. Parecia que o modular lutava com o enjôo. Tomara que conseguisse superá-lo. A poluição do capacete pressurizado seria uma catástrofe.

Omar olhou para Sherlock e sorriu. O okrill estava deitado confortavelmente nas costas largas de Lady, dormindo.

Levantou a cabeça ao ouvir um grito agudo, vindo de cima.

Page 265: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

265

— Oooh, Lady, oooh! Só podia ser mesmo o macaquinho voador fazendo mais uma de suas brincadeiras. A pequena criatura, que não tinha mais de sessenta centímetros de comprimento,

juntara-se aos homens assim que se encontrara com eles pela primeira vez. Quase chegava a ser inteligente demais para um animal, não porque imitava com uma perfeição surpreendente os ruídos emitidos pelo ser humano, mas antes pela sua capacidade de escolher as palavras apropriadas para cada situação. Um papagaio terrano nunca seria capaz disso.

Omar Hawk afastou estas reflexões. Mais tarde teria tempo para isso, se fosse afastado o perigo que ameaçava a Crest.

Se...! A luminosidade no horizonte sul tornara-se mais forte. Em virtude da eterna

penumbra de Pigell, era bem visível, mesmo de dia. Além disso havia uma nuvem luminosa no local, que garantia uma marcação perfeita.

Mas o destino ainda estava muito longe. Lady levara oito horas para nadar da Serra do Norte à ilha-continente mais próxima. Para ela — Lady era mesmo um exemplar feminino de sua espécie — era mesmo uma grande coisa, pois a distância percorrida era de pelo menos duzentos quilômetros. Pelos cálculos de Omar ainda tinham cerca de seis mil quilômetros pela frente, e em comparação com isto os duzentos quilômetros deixados para trás representavam apenas uma gota numa chapa quente.

Omar sentou, tirou o conjunto-uniforme e deixou que as rajadas de vento da trovoada fustigassem seu tórax. Estava trajado somente com um short de couro do ventre do mamu, que era uma recordação de seu mundo.

“Que será que Yezo está fazendo?”, pensou, muito triste. Sua esposa era a presidente do planeta autônomo Oxtorne, situado no centro de Presépio, uma constelação aberta. Ele mesmo colocara sua capacidade e o okrill domesticado à disposição da humanidade. Seria tudo suportável — os longos anos de separação, o trabalho perigoso e estafante do Serviço Secreto — se não tivessem caído na armadilha do tempo de Andrômeda. Os senhores da galáxia tinham dado um lance genial, transferindo a nave-capitânia do Império Solar mais de cinqüenta mil anos para o passado e irradiando-a através de um transmissor para a galáxia de origem. Só mesmo por um acaso a Crest escapara à destruição pela frota de vigilância lemurense. Perseguida e acuada, a nave chegou a penetrar no Sistema Solar e o encontrou acossado por comandos de extermínio halutenses. A humanidade sofria os amargores da era glacial, que por sua vez era uma conseqüência da destruição de um planeta situado entre Marte e Júpiter, cujos fragmentos formavam um véu entre o Sol e a Terra, provocando um esfriamento acentuado.

Mas a descoberta mais importante fora a de que a humanidade dos dias atuais descendia dos lemurenses. Praticamente os terranos do tempo real descendiam dos lemurenses que não puderam ser evacuados. Dali se poderia perfeitamente concluir que os senhores da galáxia descendiam da mesma linhagem. Mas isso ainda não estava provado.

O bramido do giga-réptil arrancou Omar da modorra. Ergueu-se e pegou os arreios. Como não usava óculos infravermelhos, teve de fixar os olhos por alguns segundos no mesmo ponto da neblina para identificar a sombra escura.

Era um sáurio. Tinha quase cinco vezes o tamanho de Lady e ao que tudo indicava não se tratava de um herbívoro. O crânio com seus oito ou dez metros de diâmetro já chegava a formar um monstro. Os olhos antes pareciam holofotes, e atrás de cada dente canino poderiam esconder-se dois homens.

Omar puxou as rédeas para a esquerda, mas Lady já mudara de rota para desviar-se da fera. As seis pernas revolviam e lama, e a cauda longa chiava ao chicotear a superfície do mar.

Page 266: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

266

O telecomunicador transmitiu um gemido apavorado. Omar virou a cabeça e sorriu para animar o modular. Baar Lun estava ajoelhado no

cesto, olhando fixamente para o réptil feroz. — Atire, Hawk! — fungou. — Se esta fera nos pegar, ela nos engolirá de uma só vez. — Calma! — advertiu Omar. — Prefiro não usar a arma energética. A descarga seria

fácil de detectar, e neste caso o inimigo já saberia que nos dirigimos ao seu quartel-general. O modular pôs-se a praguejar. O réptil mudou de rumo e aproximou-se numa

velocidade incrível, empurrando à sua frente uma parede de lama de mais de um metro de altura.

— Quem me dera que eu tivesse a calma do senhor — protestou Lun. — O QG deles, pelos nossos cálculos, deve ficar na altura do equador, e de lá não se pode detectar um tiro energético.

— Quem nos garante que o inimigo não possui um posto avançado? — resmungou Omar com os lábios semicerrados.

Baar Lun abriu a boca para dar uma resposta, mas o rugido ensurdecedor da fera abafou suas palavras.

A fera não se encontrava a mais de trinta metros, e a cada segundo que passava chegava mais perto. Certamente não deixaria escapar uma presa tão apetitosa.

“Este monstro deve estar com uma fome terrível”, pensou Omar, sarcástico. “Provavelmente precisa de algumas toneladas de carne por dia para satisfazer suas necessidades energéticas.”

— Não faça isso! — gritou para Lun, que apontara sua arma energética para o réptil. — Não precisamos disso para lidar com a fera. Sherlock!

Sherlock levantou de um salto e foi para perto do dono. — Sherlock! — gritou Cícero de cima. O sáurio selvagem deu mais um berro. A cabeça que descansava num pescoço robusto

avançou instantaneamente. Os dentes gigantescos ameaçaram o grupo de dez metros de distância.

A respiração de Lady era estertorante de medo. Omar abaixou-se, correu por cima de seu pescoço e ficou de pé em sua cabeça, com as pernas afastadas.

— Quieta! — disse. — Nada lhe acontecerá enquanto estiver conosco. A voz de Omar exerceu uma influência sugestiva sobre o animal. Lady depositava uma

confiança ilimitada no oxtornense. Logo se acalmou e até mudou de direção quando Omar deu ordem para isso.

— Por favor, Lun — gritou Omar em tom de súplica. — Só atire se Sherlock e eu falharmos.

— Está bem, Hawk! — respondeu o modular em voz baixa. — Já começo a acreditar em milagres.

Omar deu uma risada áspera. Deu algumas ordens enérgicas ao okrill, numa língua que só os dois entendiam.

Depois tirou seu facão. Tratava-se de uma arma feita de aço terconite submetido a um processo de condensação molecular. Esta arma era usada em Oxtorne até mesmo para rachar lenha. A lâmina tinha cinqüenta metros de comprimento por quinze de largura e possuía corte dos dois lados. O cabo era de aço plastificado terconite.

Ouviu-se outra ordem enérgica, dirigida a Lady. O animal de carga virou a cabeça para a fera. O réptil preparou-se para dar o bote. Estava com a boca arreganhada. Nesta boca

haveria lugar para um carro voador. Omar saltou antes que a fera chegasse mais perto.

Page 267: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

267

Foi parar com as duas pernas sobre a cabeça do monstro, virou-se instantaneamente e enfiou o facão entre as narinas do animal.

O sáurio empinou. Suas pernas transformaram as ondas preguiçosas do mar de lama num mingau borbulhante. A boca abriu-se para pegar o inimigo, que aparecera que nem um fantasma entre seus olhos.

Omar Hawk teve de usar toda a agilidade de que era capaz para não ser lançado fora da cabeça do monstro. Por enquanto só conseguira produzir uma ferida inofensiva, embora dolorosa, no titã. O perigo ainda estava presente.

Deu um assobio e desferiu mais um golpe. O raio ofuscante de uma forte descarga elétrica cortou o ar e Omar saltou para o alto.

Embaixo dele a fera foi envolta numa auréola tremeluzente. Um cheiro de ozônio enchia o ar. Omar caiu apoiado sobre as pernas e os braços.

Um tremor convulsivo sacudiu o animal, que deitou de lado, bem devagar. Deixou cair a cabeça, que bateu ruidosamente na superfície do mar de lama.

Omar recuou alguns metros para tomar impulso e venceu num salto a distância de dez metros que o separava das costas largas de Lady. O corpo de Sherlock caiu perto dele. O okrill não estava ferido.

Omar respirou aliviado e contemplou a boca do animal carnívoro, que continuava aberta. A mandíbula inferior provavelmente se fixara num espasmo, no momento em que o okrill atirou a descarga elétrica contra o céu da boca do monstro.

Omar acariciou a cabeça de seu animal de estimação, numa manifestação de agradecimento.

Baar Lun, que continuava a seu lado, soltou ruidosamente o ar dos pulmões. — Nunca pensei que isso fosse possível! — exclamou, exaltado. — Quando vi Sherlock

saltar para dentro da boca desse réptil, pensei que fosse o fim dele. E se o animal tivesse respirado profundamente, Hawk...?

— Por favor, não queira que eu responda a essa pergunta — retrucou Hawk com um sorriso sarcástico. — Acho que a resposta não daria uma imagem muito apetitosa.

— Cícero receia a mesma coisa — observou o macaquinho voador e pousou cuidadosamente na cabeça de Sherlock.

Omar abaixou-se e acariciou a cabeça peluda da misteriosa criatura. — Depois que tivermos resolvido nossa questão com os tipos que enviaram essas

crias do inferno contra nós, eu o levarei. Que acha da idéia, Cícero? O macaco voador balançou a cabeça, dando a impressão de que queria manifestar

suas dúvidas. — Levar, é...? — o macaquinho soltou uma risada estridente. — Lady também ir,

Hawk? Baar Lun não agüentou mais. Teve de rir. Omar também não pôde conter um sorriso. — Não sei — respondeu. — Lady é um pouco grande para nossa nave. Cícero piscou os olhos e esfregou a barba prateada. — Cícero precisar pensar — cochichou. — Precisar pensar, Hawk. — Ele é um grande filósofo — observou Lun. — Quem sabe se Cícero não acaba se

transformando num conselheiro político do presidente terrano? Omar deu uma risada. Voltou a correr para a nuca do giga-réptil, segurou as rédeas e gritou: — Oooh, Lady, oooh! O animal movimentou-se lentamente. A faixa escura da ilha-continente mais próxima

apareceu junto ao horizonte. Foi chegando cada vez mais perto. Mas havia outra coisa chegando mais perto, e por pouco Hawk e Lun não descobriram

quando já era tarde.

Page 268: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

268

* * *

Foi Cícero quem notou primeiro. — Perigo! — advertiu. — Perigo grande. Omar Hawk ainda se perguntava o que o macaquinho voador poderia ter descoberto,

quando Sherlock começou a fungar. Devia haver mesmo um perigo. Mas onde...? Omar tirou os óculos infravermelhos do bolso do casaco do uniforme e colocou-os no

rosto. Os contornos do continente mais próximo destacaram-se nitidamente ao sul. Era

somente isto, com exceção das salamandras da lama que vinham à tona de vez em quando para respirar — ou dos répteis voadores que povoavam a atmosfera junto à superfície do mar.

De repente Omar sobressaltou-se. Quatro dos répteis voadores se distinguiam entre os outros, porque seguiam

diretamente para o lugar em que se encontrava o grupo. Mas afinal de contas eram simples répteis voadores! Será que poderiam representar um perigo para eles? Já tinham sido atacados cerca de dez vezes por estes animais, mas Lady sempre os expulsara sem precisar de auxílio de ninguém.

— Não sei por que você acha que estes morcegos gigantes são perigosos! — resmungou em tom pouco amável para Cícero.

O macaquinho voador saltitava nervosamente sobre as pernas. Cobriu os olhos com as mãozinhas delicadas e pôs-se a choramingar baixinho.

— Eu lhe fiz uma pergunta! — gritou Omar. — Cícero dizer perigo, e chega. Fazer bum, bum! Muitos mortos. O oxtornense ficou com os olhos semicerrados. Os répteis voadores encontravam-se a

apenas quinhentos metros. Realmente tinham o aspecto de morcegos gigantes. Omar estremeceu. Que nem morcegos gigantes! Era isso! Os répteis voadores que conheciam eram

diferentes. Parecia que Baar Lun notara a diferença no mesmo instante. Deu um gritinho. — Desta vez temos de usar as armas, Hawk — exclamou. — Talvez sejam estes

nossos verdadeiros inimigos. — Talvez...! — repetiu Omar em tom de dúvida. — Mas não temos certeza, e por isso

vamos deixar nossas armas energéticas onde estão, Lun. Sherlock e eu cuidaremos disso. Ainda nos lembraremos de uma coisa.

Baar Lun ia dar uma risada irônica, mas interrompeu-se abruptamente e pôs-se de pé. — Fluxos psi! — cochichou, apavorado. — Estes répteis voadores emitem fluxos psi. — Pois então! — disse Omar, aliviado. — O senhor sabe modular a paraenergia.

Portanto, estes morcegos não representam nenhum problema. O modular não deu resposta. Omar voltou a contemplar os quatro seres estranhos. Levaram cerca de quinze segundos para aproximar-se. Sobrevoaram o giga-réptil

Lady a cerca de cinqüenta metros de altura. Omar via perfeitamente os detalhes de seus corpos.

Prendeu instintivamente a respiração. Os morcegos gigantes eram humanóides! Possuíam dois braços e duas pernas, tinham cerca de dois metros de comprimento e,

ao que parecia, eram protegidos por uma blindagem córnea. Os crânios e os rostos eram parecidos com os dos humanos, mas não possuíam cabelos. Entre os braços e as pernas

Page 269: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

269

estendiam-se membranas voadoras com aspecto de couro, que tinham uns seis metros de largura.

As quatro criaturas descreveram círculos em cima de Lady e foram subindo aos poucos, sem movimentar as membranas voadoras. As condições térmicas extraordinárias reinantes em Pigell livraram-nos desse trabalho.

De repente um dos morcegos gigantes separou-se do grupo, encostou as membranas voadoras ao corpo e precipitou-se sobre o réptil gigante. Quando estava a uns dez metros de altura, voltou a abrir as membranas voadoras e saiu planando.

Omar Hawk viu um objeto oval desprender-se do réptil voador. Deu um salto em direção a Lun e jogou-o ao chão.

No mesmo instante um esguicho de lama subiu bem ao lado de Lady. — Bombas...! — disse o oxtornense num sopro. Estava perplexo. — Estão lançando

bombas químicas contra nós! — segurou o braço do modular. — Vamos! Use sua capacidade moduladora. Retire a energia dos cérebros deles.

Baar Lun sacudiu a cabeça. — Já tentei no momento em que um deles entrou em mergulho, Hawk. Não consigo

nada. Os fluxos psi emanados pelos outros devem ter certas propriedades anti. Não consigo passar com minha faculdade.

Omar acenou com a cabeça. Estava com o rosto sombrio. — Pode pegar sua arma energética. Receio que de qualquer maneira não possamos

estragar mais muita coisa. O próximo palmípede voador entrou em mergulho e Omar e Baar começaram a atirar

ao mesmo tempo. O ser desmanchou-se numa nuvem de gases incandescentes. Seus três companheiros espalharam-se apressadamente. Certamente não esperavam uma defesa tão forte. Tentaram uma aproximação de três lados ao mesmo tempo. Finalmente os animais saíram voando em direção ao continente.

Omar seguiu-os com os olhos. Parecia pensativo. — Há uma coisa que eu não compreendo — disse, muito baixo. — Um inimigo que

está em condições de pôr fora de ação uma espaçonave como a Crest III deveria ser capaz de proteger-se contra os tiros das armas energéticas, que em comparação chegam a ser ridículas.

— O que foi que o senhor disse? — perguntou o modular. Omar deu de ombros. — Nada de especial, Lun. Só fico satisfeito porque finalmente encontramos uma pista

concreta. Nesse continente... — Omar estendeu a mão, apontando para a colina coberta de mata atrás da qual

subiam nuvens de fumaça vulcânica — ...deve haver uma base dos homens voadores. Não tivemos nenhuma dificuldade

em defender-nos de sua agressão, e por isso partiremos para o ataque. Estou curioso para ver como continuam as coisas.

Depois de algum tempo virou a cabeça e fitou o modular com uma expressão de espanto.

— O senhor não diz nada, Lun...? Baar Lun levantou os olhos e sorriu distraído. — Tudo bem, Hawk. Deixe-me em paz por algum tempo. Quero refletir sobre um

problema importante. — Pode-se perguntar que... Lun interrompeu com um gesto. — Não pode, não!

Page 270: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

270

Omar sacudiu os ombros e voltou a ocupar seu lugar na nuca de Lady. Se o modular resolvia não falar numa coisa, ninguém arrancava nada dele. Seria inútil insistir na pergunta.

Mas apesar disso o oxtornense ficou refletindo sobre a pergunta de qual seria o problema mais importante que as questões táticas urgentes.

Descobriu a solução quando se encontravam a apenas cem metros da costa — e ficou aborrecido porque teria de fazer uma mudança radical na tática por ele concebida...

* * *

Omar mandou que Lady andasse o mais depressa que pudesse. O réptil abriu caminho

em meio à vegetação baixa da costa e entrou correndo num desfiladeiro estreito. O oxtornense mandou que o animal parasse numa reentrância natural.

Virou o rosto para Baar Lun e falou aos cochichos. — Os voadores certamente foram informados pelos sobreviventes que ainda estamos

vivos e que provavelmente viríamos a este continente. Por isso acho conveniente que nos separemos daqui em diante. O senhor, Lun, pode ficar sentado nas costas de Lady, para avançar o mais depressa possível para o interior da ilha. Sherlock irá com o senhor. Desta forma estará protegido contra eventuais ataques de animais selvagens. Eu mesmo caminharei junto à costa da ilha, para avançar em direção ao centro depois que atingir o lado oposto. Se não estou muito enganado, conseguiremos desta forma atrair a atenção dos homens voadores exclusivamente para o senhor, e por isso poderei realizar calmamente minhas investigações.

Sorriu um tanto embaraçado. — Naturalmente sei que isso poderá pôr em perigo sua vida. Sempre existe o risco de

os homens voadores o atacarem à traição. Acontece que Sherlock provavelmente evitará esse tipo de ataque. Além disso acho recomendável que, se necessário, deixe que eles o prendam. Qual é sua opinião?

O modular deu de ombros. — Acho que não adianta eu me queixar, Hawk. A sugestão que acaba de apresentar é a

única que tem alguma chance de êxito. Além disso vejo nela uma prova de que o senhor pensa da mesma forma que eu.

— Hum! — fez Omar e pigarreou. — Poderia me dizer exatamente o que estava pensando, Lun?

Baar Lun sorriu com uma expressão irônica. — Penso exatamente a mesma coisa que o senhor, Hawk. Acho que está na hora de

nos separarmos, senão os homens voadores ainda acabarão observando nossa manobra. Se possível diga a seu okrill como ele deve se comportar. Não gostaria que ele lutasse se eu resolver entregar-me. Leve Cícero; ele talvez possa transmitir uma notícia importante.

— E uma boa idéia — Omar inclinou-se sobre Sherlock e falou ao seu ouvido. O animal espirrou para mostrar que tinha compreendido. O oxtornense colocou o macaquinho voador sobre o ombro, deu uma ordem a Lady e escorregou pelo pescoço estendido. Bateu no nariz do giga-réptil. — Seja bem comportado, pequenininho, e não aborreça nosso amigo.

— Não vejo as coisas muito boas — disse Lun. O modular prendeu o cinto ao cesto e segurou as rédeas. Teve de fazer muita força para segurar as cordas de cipó feitas pelo oxtornense. Gemeu enquanto as levantava e deixou-as cair nas costas de Lady. — Oooh, Lady, oooh!

O animal fungou e virou os olhos para Hawk.

Page 271: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

271

— Vamos logo — resmungou Omar. — Corra, mocinha! Deu uma forte pancada no pescoço robusto do animal.

Nem mesmo um giga-réptil era capaz de fazer pouco-caso da pancada desferida por um indivíduo adaptado ao ambiente de Oxtorne. Lady deu um salto enorme, que quase fez o modular perder o equilíbrio, e saiu correndo.

O trovejar dos pés titânicos foi-se perdendo ao longe. Omar vestiu o conjunto-uniforme, colocou o cinto com as armas e correu de volta

para a praia. Cícero alçou vôo de cima de seu ombro e subiu além das copas das árvores. — Muito bem! — elogiou Omar. — Se você prestar atenção, nada nos acontecerá. O macaquinho voador deu um salto travesso no ar e gritou: — Oooh, Hawk, oooh! Corra, mocinha! Omar soltou uma estrondosa gargalhada, mas logo se interrompeu, ao dar-se conta de

que com isto poderia trair sua presença. Depois que atingiu a costa, conseguiu avançar muito mais depressa. A gravitação de

1,22, que para seus padrões era bastante reduzida, permitiu que desse saltos de dezesseis metros, de forma que saltava por cima das rochas e grupos de pequenas árvores.

Levou uma hora para contornar metade da ilha-continente. Dali em diante a caminhada tornou-se mais difícil, já que tinha de atravessar a mata cerrada para atingir o centro da ilha. Isso o obrigava a prestar atenção às serpentes e outros animais perigosos.

Mas para seu espanto imenso não se encontrou com uma única serpente ou sáurio carnívoro, nem com qualquer outro animal que pudesse representar um perigo para ele. Em compensação quando tinha percorrido apenas alguns quilômetros encontrou uma clareira coberta de vegetação, que logo o deixou desconfiado, sem que ele soubesse por quê.

Recuou alguns metros e subiu numa grande árvore, de onde tinha uma visão ampla. Prendeu a respiração sem querer quando viu as construções abobadadas marrom-

escuras, que já conhecia. Era uma aldeia de Tankan! Conseguiu reprimir o impulso de sair para a clareira e chamar alguém. Tinha certeza

de que os Tankan não o atacariam, desde que não houvesse pensamentos agressivos em sua cabeça. Os Tankan eram répteis que possuíam inteligência, embora esta fosse inferior à dos homens. Mas no fundo eram seres pacatos. Há poucos dias uma manada de Tankan ajudara a ele e a Rhodan. Mas o estranho silêncio, juntamente com a vegetação que cobria a

lareira, deixou o oxtornense preocupado. Havia algo de errado. Não se via

nenhum sinal de vida, além das construções de barro.

Omar levantou os olhos ao ver Cícero aproximar-se e sentar num galho perto dele.

— Viu alguma coisa? — perguntou. Cícero inclinou a cabeça, fez um rosto

preocupado e coçou a barriga com uma das patas traseiras.

— Não perigo, Hawk. Nenhum homem voador. Mas muitos mortos.

Omar estreitou os olhos. Lembrou-se do que observara juntamente com Sherlock numa aldeia Tankan destruída. Havia distorções estranhas nos rastros infravermelhos, mas Omar lembrou-se de

Page 272: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

272

ter visto figuras voadoras lançando bombas sobre a aldeia. Bombas, figuras voadoras, interferências nos rastros infravermelhos. Tudo indicava

que os autores do bombardeio tinham sido os homens voadores. Os fluxos psi por eles emitidos talvez explicassem a interferência nos rastros. De certa forma a faculdade de Sherlock, que o tornava capaz de reconstituir acontecimentos passados com base nos rastros infravermelhos, também era uma função psi. E qualquer função psi podia ser perturbada por antifluxos.

Será que os Tankan desta aldeia também tinham sido exterminados pelos homens voadores? Mas não se via nenhum sinal de que tivesse havido um bombardeio. Na verdade, não havia sinais de luta.

Um tanto pensativo, Omar desceu da árvore. Precisava descobrir o que tinha acontecido com a aldeia.

Segurando nas mãos as duas armas que trazia consigo, abriu caminho no capim de dois metros de altura e entre os arbustos espinhentos até a primeira construção semi-esférica. Olhou pela entrada, mas estava escuro do lado de dentro. Ligou o farol que trazia sobre o peito, abaixou-se — e recuou apavorado.

No mesmo instante entrou na cabana. Os quatro esqueletos que havia lá dentro não representavam nenhum perigo para ele.

Eram esqueletos de Tankan: dois répteis adultos e dois jovens. Omar examinou cuidadosamente os crânios e os outros ossos. Não havia nenhum

sinal de violência. Ao que tudo indicava, os répteis tinham tido uma morte natural. Omar examinou mais algumas cabanas e em todas elas só encontrou esqueletos sem

carne. Já não acreditava que a morte destes seres tivesse sido natural. Sem dúvida os Tankan poderiam ter morrido de uma epidemia. Mas para um homem do Serviço Secreto a explicação era simples demais. E desconfiou dela principalmente porque tudo indicava que na ilha-continente em que se encontrava havia uma base dos homens voadores. Sem dúvida havia uma ligação entre eles e a mortandade dos Tankan.

Absorto em suas reflexões, Omar saiu da cabana que examinara por último. No mesmo instante seus sentidos aguçados o avisaram de que havia um perigo. Atirou-se para a frente e durante a queda ouviu o guincho de Cícero.

Mas já era tarde. Omar teve a impressão de que uma bomba explodira em seu cérebro. Fez mais um esforço. Sua arma energética rugiu, e três cabanas que ficavam uma atrás da outra desmancharam-se em cinzas.

Mas Omar Hawk não chegou a ver isto. Quando tocou o chão, estava inconsciente.

Page 273: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

273

4 — Gostaria de saber o que nossos inimigos misteriosos querem conseguir com isso —

disse Icho Tolot, observando pela eclusa entreaberta o trançado dos polarizadores e a cortina ondulante formada pelos seres aos quais haviam dado o nome de redeiros.

Perry Rhodan cerrou os lábios com tamanha força que eles se transformaram em dois traços pálidos em meio ao seu rosto anguloso. Sabia perfeitamente que as perspectivas que o aguardavam juntamente com seus homens eram as piores possíveis. Era bem verdade que da mesma forma que o gigante halutense não tinha a menor idéia de qual era a arma traiçoeira que seria usada em seguida contra eles.

De ambos os lados dos dois seres tão diferentes apareceram soldados que carregavam carabinas automáticas. Os magazines de micro foguetes do comprimento de um dedo humano estavam em posição de tiro. Os soldados traziam granadas de mão penduradas ao cinto. Como as armas energéticas não funcionavam mais, os homens eram obrigados a usar estas armas rudimentares. Os soldados entraram em posição em silêncio, preparando-se para lutar com um inimigo que Por enquanto ninguém conhecia.

Perry Rhodan sentiu a tensão que havia no ar, mas não descobriu o menor sinal de medo no rosto daqueles homens. A confiança que eles lhe dedicavam era muito grande — grande demais, disse o Administrador-Geral a si mesmo. Era verdade que até então sempre tinham tido sorte. Haviam-se saído bem das situações mais perigosas. Mas por mais sorte que tivesse um homem, esta sorte um dia poderia chegar ao fim. E quem lhe garantia que esse dia não tinha chegado?

Rhodan girou um botão de um aparelho semi-esférico, preso ao seu capacete pressurizado, na altura da boca. Tratava-se de um equipamento suplementar, que podia ser usado caso o telecomunicador embutido em seu capacete falhasse. O chamado resocom retirava sua energia das ondas acústicas que se formavam com a própria fala. Tratava-se de um princípio de funcionamento usado pela primeira vez em 1.961, pelo exército dos Estados Unidos. Naturalmente o desempenho do aparelho era limitado, e naquele momento nem mesmo este desempenho era integralmente aproveitado, uma vez que a rede formada pelos insetos luminosos não deixara passar nenhuma energia.

— Rhodan encontra-se na eclusa MU-8 e procura Gucky! — gritou o Administrador-Geral.

Não conseguiu transmitir mais que isso, pois mal acabou de pronunciar a última palavra e os redeiros sugaram até mesmo a quantidade mínima de energia gerada pelas ondas acústicas. Mas Rhodan tinha certeza de que pelo menos esta mensagem chegara ao destino, porque os redeiros não puderam bloqueá-la antecipadamente. Enquanto não se falava não havia energia.

Dali a pouco Rhodan sentiu o deslocamento de ar que costuma acompanhar a rematerialização de um teleportador. Virou a cabeça e viu Gucky entre os soldados espaciais.

O rato-castor exibiu o dente roedor solitário. — Tudo em ordem, chefe! Ras, Tako e eu abastecemos a tropa de Atlan

constantemente com as armas e munições rudimentares de que dispomos. — Como estão as coisas na estação? — perguntou Rhodan. Gucky fez um gesto grandioso. — Não se preocupe. Estes polarizadores esquisitos estão saindo dos alicerces em toda

parte, mas com o material que levamos aos homens eles conseguem se manter. Infelizmente parte do equipamento técnico vai para o pau.

Page 274: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

274

O Administrador-Geral franziu a testa. — Onde aprendeu essa expressão? Bell não está aqui. Gucky suspirou. — Antes estivesse. Sem ele começo a sentir tédio. Mas ainda existem cinco mil

homens com palavras picantes no seu vocabulário. Preciso ir embora. Os homens de Atlan precisam de toda munição que podemos levar. Só quero saber se vou receber as horas extras.

Um sorriso ligeiro aflorou aos lábios de Rhodan. — Sobre isso você terá de falar com o Major Bernard, baixinho. O rato-castor piou aborrecido. — Acho que você quer gozar à minha custa, chefão. Bernard não solta um tostão. Sei

quem é o culpado... — Sabe? Quem é...? — Você. Há poucos dias andei espionando os pensamentos de Bernard. Sabe o que ele

estava pensando? Bem que eu gostaria de dar uma ração extra no feriado nacional de 19 de junho, mas infelizmente tenho um paizinho severo acima de mim. E este paizinho é você, Perry.

Perry Rhodan pigarreou. Parecia embaraçado. — Acho que está na hora de voltar para perto de Atlan, Gucky... — Seu pão-duro...! — gritou o rato-castor — e desapareceu. Icho Tolot soltou uma estrondosa gargalhada. O halutense ainda não perdera seu

senso de humor. Saíra de seu mundo para viver as aventuras, e em companhia dos terranos encontrara pela primeira vez mais aventuras e perigos do que ele mesmo como halutense seria capaz de imaginar. A morte transformara-se numa companheira fiel, mas Tolot não se abalava por nada — a não ser com a morte de seres inocentes e estranhos aos acontecimentos, que sem querer se viam colocados entre as frentes de uma luta impiedosa. Estas coisas existiam. Infelizmente.

O halutense deixou de rir de repente, ao ver algumas trilhas energéticas ofuscantes precipitarem-se em direção à Crest e baterem ruidosamente em seu casco.

No mesmo instante os canhões automáticos instalados nas torres de artilharia começaram a atirar. Soltaram numa seqüência rápida projéteis de mini-foguetes altamente explosivos, que detonavam no platô e junto à mata.

Demorou alguns segundos até que Perry Rhodan visse os novos atacantes. Quando viu engoliu em seco, de tão espantado que ficou.

Serpentes monstruosas de doze pernas saíram em saltos enormes da mata para a área livre. Pelos cálculos de Rhodan a distância de seus saltos devia ser de trinta e cinco metros.

Mas a coisa mais assustadora era a arma usada pelos animais. Eles cuspiam trilhas energéticas de centenas de metros de alcance, que rompiam facilmente até mesmo a blindagem de terconite da Crest.

Milhares dos termolança-chamas deviam ter aparecido em alguns segundos. Atacavam sem medo. Apesar do furioso fogo de artilharia, a Crest era atingida constantemente.

Os soldados espaciais que se encontravam ao lado de Rhodan e Tolot atiravam com suas carabinas automáticas Cada vez que atingiam o alvo, havia um termolança-chamas a menos. Mas o Administrador-Geral espantou-se ao notar que os monstros sobreviviam às explosões, quando estas se verificavam bem a seu lado. Dali só se podia concluir que os animais possuíam uma forte blindagem natural.

Rhodan virou-se abruptamente ao ouvir a voz do rato-castor vinda de trás. Gucky cambaleava de tão cansado que estava. Tinha os olhos injetados de sangue e

preferiu não exibir o dente roedor. A voz saída do alto-falante embutido no capacete

Page 275: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

275

parecia constrangida. Talvez fosse porque a membrana receptora de Rhodan tinha sido afetada pela umidade do ar de Pigell.

— Chefe! — disse a voz borbulhante que atingiu o ouvido de Rhodan. — Você tem de ajudar-nos. Sozinhos os teleportadores não conseguem mais. Estes monstros lança-fogo aparecem em toda parte na estação. A munição começa a ficar escassa.

— O quê? — exclamou Rhodan, assustado. — Como foi que os termolança-chamas conseguiram entrar na estação? Alguém não prestou atenção.

— Termolança-chamas? — perguntou o rato-castor sem compreender muito bem. — Ah, sim, você se refere às cobras saltadoras — respirava com dificuldade. — Ninguém cometeu uma falta, Perry. As feras vêm pelos buracos abertos pelas plantas polarizadoras.

O Administrador-Geral ficou quieto por um segundo. Não esperara que isso fosse acontecer. Compreendeu perfeitamente que nestas condições os três teleportadores não seriam capazes de garantir o abastecimento de munições.

— Preste atenção! — disse em tom enérgico. — Se Atlan não conseguir defender a estação, os homens que se encontram lá estão perdidos. Não poderão abrir caminho para a Crest. Você, Ras e Tako têm de encontrar um meio. Se necessário Atlan terá de concentrar seus homens nas salas superiores.

Gucky confirmou o recebimento da ordem e desapareceu sem fazer qualquer comentário. Perry Rhodan sabia que os teleportadores fariam o máximo de que eram capazes. Mas será que isto bastaria...?

Rhodan abaixou-se quando um raio ofuscante passou rugindo por cima de sua cabeça e arrebentou a parede de aço da escotilha interna. O material liquefeito saiu esguichando para todos os lados. Alguns soldados espaciais tombaram, enquanto outros rolavam pelo chão, gritando. Todos foram transportados para o interior da nave pelos companheiros. Ouviram-se os chiados e o ranger do mecanismo manual de emergência de uma escotilha de segurança.

O halutense continuava a atirar com sua arma energética. Os termolança-chamas concentraram seu fogo nas eclusas abertas. Deviam ter recebido reforços. Constantemente alguns monstros rompiam o fogo de barragem e conseguiam atingir o alvo.

Um grande grupo de termolança-chamas apareceu embaixo da escotilha. Os soldados pegaram as granadas de mão. Os atacantes desmancharam-se no lampejo das explosões.

De repente um redemoinho escaldante varreu o platô. Era um sinal de que todos os canhões automáticos disponíveis tinham sido montados. As cargas explosivas dos projéteis-foguete não detonavam por ação da eletricidade; a detonação era provocada por pinos da percussão que atingiam as espoletas.

O fogo concentrado expulsou os termolança-chamas do platô numa questão de segundos. Depois disso o fogo dos canhões concentrou-se na orla da floresta, empurrando uma faixa de destruição cada vez mais longa à sua frente. Nem um único tiro atingia mais a Crest. Os termolança-chamas tinham sido rechaçados para além do raio de alcance de seus canhões laser naturais.

Perry Rhodan baixou a carabina energética e sorriu cansado. Estava longe de experimentar qualquer sensação de triunfo.

E com razão. Depois de alguns minutos viu quanta razão tivera nisso. De repente a Crest ressoou

que nem um sino sob o efeito de violentas explosões. A nave estava sendo bombardeada do ar. Mas o Administrador-Geral logo recuperou a calma. Um sargento desceu correndo

das torres de canhões superiores e informou que as bombas lançadas só possuíam cargas químicas, que não podiam tornar-se perigosas para a nave.

Page 276: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

276

Mas em seguida veio uma notícia que parecia anunciar a catástrofe. Gucky entrou na eclusa andando a pé. Ao vê-lo, Rhodan imaginou logo que trazia informações alarmantes.

E seus pressentimentos se confirmaram. O rato-castor informou-o de que todos os teleportadores estavam falhando. Desde o

momento em que tivera início o bombardeio aéreo...

* * *

Ele acordou com um terrível estrondo. Abriu os olhos, para voltar a fechá-los em seguida, ofuscado pela luminosidade. Raios passavam por todos os lados e atingiam o chão embaixo dele.

Embaixo dele...? Só neste momento Omar Hawk deu-se conta de que seu corpo estava balançando.

Inclinou a cabeça para o lado e viu bem embaixo a densa cobertura vegetal da floresta virgem iluminada pelos raios. No mesmo instante sentiu as amarras que prendiam seus pés e suas mãos. Três, cinco, oito homens voadores deslocavam-se no ar, bem em cima dele, arrastando-o num trançado confuso de cordas.

Lembrou-se do que tinha acontecido na aldeia Tankan. Praguejou baixinho ao dar-se conta de que agira como um tolo. Uma coisa desta não poderia ter acontecido com um oficial da Segurança Galáctica que já passara pelas mais variadas experiências. Provavelmente fora a descoberta macabra feita na aldeia que o levara a agir como um sonâmbulo.

Experimentou as amarras. Eram de corda fina, feita de fibras plásticas trançadas de metais.

Isso fez com que recuperasse o bom humor. Talvez algumas correntes de aço terconite pudessem segurá-lo, mas nunca estas cortas de plástico. Será que os homens voadores não tinham percebido por seu peso que ele possuía uma constituição especial?

“Bem, no momento não convém romper as amarras”, disse a si mesmo. “Estou muito longe da superfície.”

Quem sabe se não devia fingir mais algum tempo? Seria o melhor meio de conseguir o mais depressa possível algumas informações sobre os planos e os recursos dos atacantes.

Antes que chegasse a uma conclusão, sentiu que estava descendo devagar. A trovoada diminuía, e a escuridão que reinou de repente mostrou que era noite. Via-se uma débil luminosidade vermelha lá embaixo. Era a cratera de um vulcão.

Será que queriam lançá-lo nela? Passaram por cima da cratera. O ar quente ascendente deu-lhe um novo impulso para

cima. Mas os homens voadores não o aproveitaram. Dobraram parcialmente as membranas voadoras. Depois que tinham passado por cima da cratera, passaram a descer rapidamente.

Uma fenda abria-se em meio à lava endurecida. Dela saíam vapores. Estes vapores não representavam nenhum perigo para Osmar, mas ele admirou-se de que os homens voadores se atrevessem a atravessar os vapores quentes. Mas logo se deu conta de que eles nem eram quentes.

Entraram devagar na fenda. Os ruídos do vulcão pareciam vir de todos os lados. Era uma situação fantástica. Mas o lugar era muito bem camuflado para servir de base. Ninguém procuraria os homens voadores numa fenda que soltasse vapores.

Hawk descobriu os dois geradores de fumaça no momento em que seu corpo bateu violentamente no chão. Em cima dele o ar movimentado farfalhava. Finalmente as oito criaturas tão estranhas pousaram.

Omar examinou-os cuidadosamente.

Page 277: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

277

Em cima dos olhos escuros brilhantes viam-se córneas marrom-avermelhadas, que cobriam a testa e se estendiam em torno da boca. De resto os rostos eram muito parecidos com os dos homens. A pele negra formava um estranho contraste com as córneas. Os rostos eram rígidos que nem máscaras, que nem os dos bailarinos dos templos cheios de maquiagem. Os seres tinham cerca de dois metros de altura e um de largura. Dos pés e mãos que terminavam em garras saíam membranas voadoras com aspecto de couro, que naquele momento estavam dobradas junto ao corpo.

Na sua nudez quase completa estes seres poderiam ser os habitantes primitivos de Pigell — se os aventais que usavam não fossem de plástico de silicone de alta qualidade, e se não fossem as bombas ovais e as armas de choque de cano longo que traziam presas ao cinto...

As cordas que haviam sustentado o oxtornense no ar caíram ao chão. Dois seres voadores aproximaram-se silenciosamente e levaram-nas.

Um dos oito seres voadores aproximou-se de Omar, soltou as amarras que prendiam seus pés e amarrou uma corda nas mãos presas nas costas. Os sete homens voadores restantes tiraram suas armas de choque. O tenente viu sua própria arma de choque em poder de um deles, enquanto outro carregava sua arma energética. O peso fazia com que o homem voador dobrasse ligeiramente o corpo.

Omar estava preparado para muitas surpresas desde que vira os primeiros quatro seres voadores em cima do mar. Mas não esperava o que aconteceu em seguida.

— Levantei! — disse um dos homens voadores. Devia ser o chefe do grupo. Não foram as palavras que surpreenderam Omar, mas a língua em que elas foram

ditas. O chefe falara na língua tefrodense. O oxtornense levantou meio atordoado. Será que os seres voadores eram uma tropa

auxiliar dos tefrodenses? Pensavam que estavam falando com um membro desse povo? Pela cor da pele alguém podia ser levado a acreditar que Hawk era um tefrodense, desde que não olhassem muito bem. Mas se o consideravam um tefrodense e eram aliados deste povo, por que o tinham prendido?

Omar resolveu guardar estas perguntas por enquanto para si, pelo menos enquanto não sabia qual era o jogo. Era um princípio antigo seguido pelos membros do Serviço Secreto: não se devia falar enquanto não se tinha elementos para avaliar a situação.

Obedeceu sem dizer uma palavra. O chefe fez meia-volta e entrou num corredor que há pouco não existia. Provavelmente tinha aberto uma porta camuflada. Dois dos seres com pele de couro seguiram o chefe, enquanto os outros ficaram atrás do prisioneiro. Um puxão na corda mostrou a Omar o que queriam que ele fizesse. Seguiu o grupo.

Quando tinham caminhado alguns minutos, o corredor transformou-se num amplo túnel. À esquerda do grupo havia uma amurada. Omar lançou um olhar por cima dela e viu alguns metros abaixo dele três grandes tubos de aço encostados um ao outro, nos quais parecia agitar-se vapor de água sob alta pressão. Destes tubos saíam ruídos fortes. Omar assobiou baixinho entre os dentes. Ao que parecia, os seres voadores recebiam a energia de que precisavam de um gerador movido por uma turbina abastecida pelos vapores produzidos com o calor do vulcão.

Isso deixou o oxtornense surpreso, pois provava que os seres estranhos não conheciam a energia atômica, ou ao menos não dispunham da tecnologia necessária à produção dessa energia.

A Crest teria sido mesmo atacada por seres desta espécie? Omar logo teria outra surpresa. Os seres que o vigiavam entraram numa sala

quadrada. Ficaram encostados à parede, enquanto ele mesmo foi empurrado para o centro da sala. Dali a instantes o chão desceu. Ouviu-se um rangido e um matraquear vindo de trás das paredes.

Page 278: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

278

Era um elevador de cabo! Omar logo disse a si mesmo que nem era de esperar outra coisa com seres que

usavam o vapor para produzir energia. A energia de uma dezena de usinas movidas a vapor não seria suficiente para alimentar um único elevador antigravitacional. Não estava mais acostumado a estas coisas, uma vez que em pouquíssimos mundos do Império alguém pensava nas quantidades imensas de energia que se tornavam necessárias para mover milhões de elevadores.

Dali a alguns minutos o elevador parou. Os seres que vigiavam Hawk levaram-no por outro corredor. Passaram por uma sala

cuja porta estava aberta e Omar pôde olhar ligeiramente para dentro dela. Espantou-se com a quantidade enorme de instrumentos e controles dispostos junto

às paredes. Havia cerca de vinte homens-morcego sentados à frente da aparelhagem. Omar teve a impressão de ter visto uma espaçonave em uma das telas.

Seria a Crest...? Preferiu não ficar parado, para não provocar suspeitas. Prosseguiu, enquanto

quebrava a cabeça com a discrepância evidente que havia entre a usina movida a vapor e aquela sala repleta de equipamentos técnicos avançados.

De repente ouviu-se uma ordem gritada em tom enérgico. Os guardas pararam. O chefe abriu uma porta de aço. Omar foi empurrado através dela. Não resistiu, embora pudesse fazê-lo. Fez de conta que o empurrão o fizera perder o equilíbrio.

A porta fechou-se ruidosamente atrás dele. Omar sorriu amargurado — e estremeceu ao ouvir uma voz bem conhecida, saída da

penumbra. — Olá, Hawk! Não esperávamos encontrar-nos tão depressa, não é mesmo? Era Baar Lun. E estava só. De repente Omar Hawk sentiu um nó na garganta. O que era feito de Sherlock...?

* * *

— Sinto muito — disse Lun. — Queriam matá-lo, e como não tinha permissão para

defender-se, mandei que fugisse. O Tenente Hawk arregalou os olhos. — O quê...? O senhor mandou... e ele obedeceu? Foi a vez de o modular espantar-se. — Por que não iria obedecer-me, Hawk? O senhor praticamente o colocou sob meu

comando. Omar sorriu sem graça. — Não fiz isso. Nem teria adiantado, Lun. Sherlock nunca obedeceu a ninguém que

não fosse eu. Por isso nem tentei dar-lhe ordem para que obedecesse a outra pessoa. Recebeu instruções de preveni-lo caso houvesse algum perigo e só lutar se o senhor lutasse. Só isto. O que fez para que ele lhe obedecesse?

Baar Lun deu de ombros. Estava perplexo. — Será que o senhor pensa que usei algum truque ou possuo experiência no trato de

animais? Não é nada disso. Só disse: Vá embora. Hawk sacudiu a cabeça como quem não compreende nada. — Quer saber uma coisa, Lun? Há anos permiti a um psicólogo de animais do corpo

especial de patrulhamento que fizesse um teste com Sherlock. Era uma pessoa versada em tudo quanto era truque, que tinha sido treinado para domar animais que possuem faculdades especiais. Mas nunca um homem destes conseguiu fazer Sherlock cumprir

Page 279: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

279

qualquer ordem, por mais simples que fosse, nem mesmo na minha presença. E o senhor diz: Vá embora, e lá vai ele. Não dá para compreender.

Lun franziu a testa. — Será que o senhor pensa que não estou dizendo a verdade? Omar riu de forma tranqüilizadora. Conhecia a supersensibilidade do modular. Lun

tinha um sentimento de honra muito acentuado — e costumava falar com franqueza quando não gostava de uma coisa.

— Não, Lun. De forma alguma. Não o julgo capaz de dizer uma mentira. Mas gostaria que fizesse uma recapitulação minuciosa da situação. Ouvi muitas vezes alguém dizer uma coisa num interrogatório que ele achava sem a menor importância, mas que acabou sendo muito importante. Pense um pouco, Lun. Fez algum gesto, olhou para Sherlock com uma certa expressão no rosto ou fez coisa parecida? Se não, serei levado a acreditar que talvez não conheça o animal. E olhe que eu acreditava firmemente que conhecesse.

O modular franziu a testa, contrariado. — Acontece que possuo excelente memória, Hawk. Se lhe digo que... Interrompeu-se e engoliu em seco. — Um momento! Há mesmo uma coisa que eu ainda não disse. Mas isto não pode ter

feito Sherlock agir dessa forma. Pelo contrário. Talvez explicasse uma eventual desobediência dele, pois certamente até hoje ninguém lhe deu uma ordem em maaduuna.

Os lábios de Omar tremeram. — Maaduuna...? Não é a língua antiga de seu povo...? — É, sim. É claro que Sherlock não a conhece. Por isso acho... — Pare de achar! — interrompeu Hawk. — Pelo menos nesse sentido. Sem dúvida

Sherlock nunca ouviu ninguém falar em maaduuna. Hum...! Mas como posso ter tanta certeza? Quando conheci Sherlock, ele já era adulto. No entanto...

Sacudiu a cabeça. De repente mudou de assunto. — Já foi examinado pelos ikas, Lun? — Refere-se ao exame médico...? — Naturalmente. Que mais poderia ser? — Não. — É uma pena. Gostaria de ver os rostos deles quando tentarem encontrar seu

coração. Aí não pensarão mais que o senhor é um tefrodense. — Como...? Ah, já sei! Falaram com o senhor na língua tefrodense. Comigo usaram o

interandro, que é a língua universal e comercial de Andrômeda. Afinal, não me pareço com os tefrodenses. Mas o que quis dizer com ikas?

Omar sorriu. — É uma palavra derivada de Ícaro, um herói das lendas terranas que sobrevoou o

mar com asas construídas por ele mesmo. O senhor não conhece a história, conhece? — Não. Ouvi falar em certo Götz von Berlichingen. Deve mesmo ser uma figura

lendária, pois ouvi o Coronel Rudo dizer mais de uma vez: Ah, Götz von Berlichingen! — Não...! — disse Omar num sopro e teve de fazer força para não rir. — Cart Rudo

disse isso? — Disse. E daí? Omar fez um esforço tremendo para controlar a expressão do rosto. — Muita coisa, caro Lun. Mas não posso dizer mais nada sem infringir os bons

costumes. Só lhe peço que nunca empregue a expressão usada por Rudo num ambiente distinto, especialmente na presença de damas.

Baar Lun pôs a mão na boca. — Pois já usei a expressão. Na presença de Gucky.

Page 280: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

280

O oxtornense fez um gesto de pouco-caso. — Neste ponto Gucky está escaldado. A expressão não representa nenhuma novidade

para ele. Mas vamos tratar de assuntos mais agradáveis. O que faremos com os ikas? O modular sorriu com uma expressão irônica. — Acha que isso é um assunto agradável? Além disso acho que a pergunta é mal

formulada. A pergunta deveria ser o que os ikas farão conosco. — Não. É exatamente o que eu disse. Omar estendeu as mãos amarradas. — Para mim será fácil arrebentar estes fios ridículos. A porta também não tem

bastante estabilidade para mim. Mas não se trata disto. Mas antes de fazer qualquer coisa quero saber quais são suas intenções.

Lun pôs-se a escutar atentamente. — Acho que o senhor não demorará a saber. Ouço passos lá fora. Omar também ouviu. Dali a pouco a porta abriu-se violentamente. Várias armas de

choque foram apontadas para os dois homens. — Venham conosco! — rangeu uma voz em tefrodense. Em seguida a ordem foi

repetida em interandro. Fora da cela passaram a ser escoltados por pelo menos cinqüenta guardas.

Permaneceram em silêncio enquanto atravessavam vários corredores, desciam por um elevador e entravam numa pequena sala abobadada, que tinha uma semelhança acentuada com um misto de laboratório físico, bioquímico e radiológico.

Dez guardas entraram atrás deles. Os outros permaneceram junto à entrada. Já havia quatro ikas à sua espera. Usavam longas capas vermelhas e traziam gorros da mesma cor nos crânios calvos. Eram os primeiros homens voadores completamente vestidos que os dois homens viam.

Baar Lun olhou calmamente em volta. Parecia não ter encontrado nada de suspeito. Mas com Omar Hawk as coisas eram diferentes. Como oficial do Serviço Secreto conhecia diversos tipos de máquinas usadas em interrogatórios, motivo por que tinha uma idéia a respeito de sua estrutura.

É uma das numerosas máquinas que havia na sala servia sem dúvida para interrogar prisioneiros.

Omar refletiu se possuíam alguma chance de bloquear seus pensamentos para influenciar os resultados do interrogatório, mas logo descobriu as formas características de um permeabolador no capacete da máquina.

Diante disso não teve nenhuma dúvida de que não poderiam bloquear nem o consciente nem o inconsciente.

O permeabolador enviava fluxos refletíveis a todas as células cerebrais da vítima, para armazenar fielmente em fitas quimicamente preparadas tudo que estas tinham absorvido em toda a vida.

Mas os efeitos do uso do aparelho não terminavam ali. O cérebro da pessoa submetida ao interrogatório por meio do permeabolador

transformava-se numa concentração de células inúteis, que mal e mal era capaz de controlar as funções animais do organismo. Em outras palavras, depois do “tratamento” com o aparelho o grau de inteligência da vítima não era superior ao de uma minhoca.

Um dos guardas encostou a arma nas costas de Omar Hawk, que foi arrancado de suas reflexões.

— Deite ali! — disse um dos seres trajados de vermelho. Hawk saiu caminhando, duro que nem uma máquina...

* * *

Page 281: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

281

Parou junto ao aparelho. No mesmo instante um dos guardas apontou a arma de choque para ele.

Omar riu por dentro. Se somente um dos ikas atirasse nele, os outros teriam uma surpresa. Enquanto era levado à sala dos interrogatórios, tivera tempo de examinar as armas dos homens voadores. Não se tratava dos fuzis terranos de grande capacidade, equipados com células de energia atômica, mas de simples aparelhos emissores de radiações que funcionavam com pilhas compactas, carregáveis em simples tomadas. Um tiro de uma arma destas, e até mesmo dois, não produziriam nenhum efeito negativo nele. Até mesmo uma arma de choque terrana só seria capaz de afetá-lo se ela fosse regulada para a potência máxima e por um tempo prolongado. Isso provava que na aldeia Tankan tinham atirado pelo menos com três armas ao mesmo tempo contra ele.

— Acho que já está na hora de esclarecermos um lamentável mal-entendido — disse na língua tefrodense. — Os senhores pensam que sou seu inimigo, não é mesmo?

O ika trajado de vermelho deu um passo em sua direção. — É mesmo. Os seres de sua espécie são culpados por termos de vegetar neste

mundo, e sermos obrigados a abandonar nossa verdadeira figura. — O senhor está enganado — respondeu Hawk. — Tenho a impressão de que

estamos sendo confundidos com alguém. Permitam que lhes explique... — Chega! — exclamou um dos guardas. — Embaixo do capacete o senhor poderá

explicar muito melhor. Pelo menos saberemos quando está dizendo a verdade e quando está mentindo.

“E eu serei transformado num idiota inútil!”, pensou Omar, amargurado. Fingiu-se de completamente calmo, dando a impressão de que não sabia quais eram

as conseqüências do interrogatório com o permeabolador. Deu calmamente o último passo em direção à máquina, inclinou-se para a frente, dando a impressão de que iria sentar — e rompeu as amarras com um único movimento.

A energia elétrica do raio de choque fez saltar alguns fusíveis do permeabolador. Mas Omar Hawk já não estava lá. Saltara — e a distância do salto lhe dava certa vantagem.

O ser que acabara de atirar caiu ao chão quando a mão de Omar roçou nele. Ouviu-se o estrondo de mais alguns tiros. Mas Omar já recuperara sua arma. Os ikas que a carregavam estavam deitados no chão, inconscientes.

O rugido surdo da arma de choque de Omar misturou-se ao ruído entrecortado das armas dos ikas. Dali a instantes os dez guardas e os homens voadores trajados de vermelho estavam inconscientes.

Mas o ruído da batalha não poderia deixar de ser ouvido do lado de fora. Omar Hawk não teve tempo para ficar de frente para a porta antes que os guardas que se encontravam no corredor entrassem.

Quando levantou os olhos, viu o cano de um fuzil automático apontado ameaçadoramente para ele. Rangeu os dentes, numa raiva impotente. Mas de repente o ika que segurava a carabina caiu ao chão.

— Muito obrigado, Lun — disse Hawk. Levantou sua arma de choque e varreu a entrada.

Aproveitou uma pausa na luta e saltou para perto do modular para romper as cordas que o amarravam. Baar Lun já segurava uma arma de choque que tirara de um dos homens voadores. Levantou de um salto e foi atrás do oxtornense, que corria para a porta e abria fogo contra os reforços.

— Temos de sair daqui! — gritou fungando. — Não podemos agüentar-nos para sempre.

— Sei disso! — resmungou Omar. — Mas não iremos embora sem inutilizar para sempre esta máquina infernal.

Page 282: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

282

Virou-se e disparou sua arma energética contra o permeabolador. A máquina usada nos interrogatórios fundiu-se num monte insignificante de metais fumegantes.

Lá fora, no corredor, muitos pés pisavam ruidosamente o piso duro. Um canhão automático começou a disparar. Omar puxou o modular para dentro da sala de interrogatórios. O corredor transformara-se num inferno. As explosões sacudiam as paredes, e os estilhaços incandescentes chiavam perigosamente pelo ar.

— Droga! — exclamou o tenente. — Mataram quarenta dos seus, que estavam inconscientes. Bem que eu gostaria de aquecer o ambiente para eles com minha arma energética.

— O senhor não vai fazer nada disso! — disse Baar Lun em tom enérgico. — Eles não são nossos inimigos, e a coisa mais urgente que temos de fazer é convencê-los disso, senão a Crest está perdida.

Mal acabara de pronunciar estas palavras, a parede que ficava à sua direita arrebentou. Houve um forte lampejo. O estrondo da explosão misturou-se ao ruído de destroços de grande tamanho.

— Não adianta! — disse Omar, calmo, e atirou com a arma energética em direção ao buraco na parede. O cano do canhão que estivera lá reapareceu juntamente com os ikas que se encontravam atrás dele numa nuvem de fogo branco-azulada.

No seu íntimo o oxtornense lamentou que isso tivesse acontecido. Mas sabia por experiência própria que, se demorasse mais, só aumentaria desnecessariamente o número de vítimas.

Saltou para o corredor e destruiu com um tiro o canhão automático instalado lá. Os ikas não tinham como enfrentar o tremendo volume de energia despejado por sua arma pesada. Os que sobreviveram ao contragolpe fugiram.

Omar puxou o modular e saiu correndo para ficar nos calcanhares dos fugitivos. Só atirava no teto do corredor. Era quanto bastava para impedir os ikas de levantarem outra posição fortificada. Eles nem se atreviam a olhar para trás. Corriam, batendo de vez em quando as membranas voadoras para não perder o equilíbrio. Não podiam voar, porque o corredor era muito estreito.

Baar Lun teve de esforçar-se muito para acompanhar Hawk. Fungava fortemente, embora o treino constante mantivesse seu corpo sempre em plena forma. Mas era impossível correr tão depressa quanto o oxtornense.

De repente Lun puxou o braço de Hawk, que o arrastava. O oxtornense resmungou contrariado.

— Um momento! — fungou o modular. — Estamos no caminho errado, Hawk! — Como? — perguntou Omar, espantado. — Entrei por outro caminho. O oxtornense olhou em volta com muita atenção. — Eu também — respondeu. — Mas isso não importa. Vamos dar um jeito de chegar à

superfície. No momento o importante é não perdermos o contato com os fugitivos, senão eles acabam montando uma armadilha.

Continuaram a correr. Omar quase chegava a carregar o modular, mas apesar disso não alcançou mais os ikas. Corria sem parar, preferindo sempre que possível os corredores que prosseguiam em linha reta. Destruía com a arma energética as escotilhas que se fechavam, sem dar atenção às portas abertas que encontrava no caminho.

De repente parou. Virou a cabeça e colocou Lun no chão. — Que houve? — perguntou o modular. — Por que parou? Omar sorriu com uma expressão resignada.

Page 283: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

283

— Ainda não percebeu que as paredes recuam, seja qual for a direção em que corremos?

Baar Lun olhou em volta. Encontravam-se numa sala com cerca de trinta metros de diâmetro. Lembrou-se de

terem entrado ali há alguns minutos. Já deveriam ter saído há algum tempo. — Estamos numa psicoarmadilha — disse Omar, abatido. — Caso não acredite em

milagres, prepare-se para passar as últimas horas de sua vida neste lugar.

Page 284: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

284

5 Perry Rhodan e Gucky estavam quase sem fôlego quando atingiram a cúpula polar

superior. A Crest III não fora construída para pedestres. A comodidade da tripulação dependia em grande parte do perfeito funcionamento das esteiras transportadoras e dos elevadores antigravitacionais. Como estes equipamentos não funcionavam mais, só restavam as escadas de emergência, e nem todo mundo é capaz de subir quase dois mil e quinhentos metros por escadas estreitas.

Nos últimos quinhentos metros Rhodan tivera de carregar o rato-castor. Apoiou-se na parede, para esperar que o zumbido do sangue em seus ouvidos parasse. Fungava fortemente e estava com o rosto vermelho-azulado. Sentiu o sabor do sangue quente na boca, o que era um sinal de que o esforço fora grande demais.

Um enfermeiro saiu da escotilha que dava para o posto astronômico. Sobressaltou-se ao ver o Administrador-Geral e veio apressadamente em sua direção.

— Quer que o mande levar ao hospital, senhor? — perguntou, preocupado, enquanto apalpava o pulso de Rhodan.

Perry fez um gesto de pouco-caso. — Deixe para lá. Já estou melhor. Fez um grande esforço para afastar-se da parede. Teria caído, se o enfermeiro não o

tivesse apoiado. — Sei perfeitamente que não posso dar-lhe uma ordem para que deite na cama —

disse o homem em tom de recriminação. — Mas se não tomar agora mesmo um estimulante ara, eu o levarei ao hospital à força.

Rhodan esforçou-se para ignorar o martelar do sangue em sua cabeça. Acenou com a cabeça, esboçando um sorriso rígido como o de uma máscara.

— Passe para cá a droga infernal. Tenho mesmo de tomá-la. Dê um pouco a Gucky. Ele está pior que eu.

O enfermeiro parecia satisfeito. Com movimentos rápidos e ágeis, colocou o adesivo de injeção na nuca de Rhodan e

Gucky. Em seguida afastou-se. — Os efeitos duram doze horas, senhor. Depois o senhor terá de descansar pelo

menos outras doze horas. — Muito obrigado! — respondeu Rhodan, que já se sentia mais forte. O enfermeiro retirou-se e o Administrador-Geral segurou a mão de Gucky. Entraram

no pavilhão semi-esférico em que funcionava o posto astronômico. Naturalmente também neste lugar as telas estavam apagadas. Mas da mesma forma

que nas posições de artilharia havia ali placas blindadas móveis com lâminas de vidro especial no centro. Bastava afastar a placa interior e exterior para ver o que havia do lado de fora. E do lugar elevado em que se encontravam tinham uma visão ampla, desde que não estivesse chovendo e a neblina tivesse desaparecido.

Havia um bom telescópio noturno, que substituía ao menos até certo ponto os holofotes que não estavam funcionando.

Perry Rhodan pediu que o informassem sobre o funcionamento do aparelho e sentou atrás do tubo móvel.

— Em que lugar observou os fenômenos luminosos? — perguntou ao astrônomo-chefe.

Rhodan direcionou o tubo de acordo com as coordenadas que lhe foram fornecidas. E viu.

Page 285: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

285

Junto ao horizonte sul do planeta uma quantidade imensa de energia subia ao céu noturno. Relâmpagos ultraluminosos subiam até o espaço cósmico, perdendo-se numa nuvem incandescente vermelho-escura.

Rhodan pôs-se a refletir. De tão absorto que estava em seus pensamentos, nem ouviu o halutense entrar.

Há meia hora os geradores da Crest corriam, por ordem sua, com a potência máxima. Certificara-se de que funcionavam perfeitamente. Mas tal qual acontecera na primeira tentativa, Cart Rudo não conseguiu fazer subir a nave um centímetro que fosse. Os observadores informaram que os impulsos emitidos pelos propulsores só alcançavam a superfície do planeta em forma de impulsos luminosos confusos, desaparecendo sem produzir qualquer efeito visível.

Rhodan voltou a dirigir-se ao astrônomo. — Fez a medição exata da intensidade do fenômeno, antes e depois da experiência? — Sim senhor. — Quero os valores. O astrônomo forneceu algumas cifras. Perry estremeceu. — O aumento da energia desprendida corresponde exatamente à energia gerada por

nossas usinas, não é mesmo? O Administrador-Geral virou a cabeça. Estava muito pálido. — Isso mesmo. E podemos dizer que é o fim. Só nos restam duas alternativas.

Podemos deixar funcionar os geradores até que todo o combustível atômico seja consumido, ou então os desligamos e esperamos que os seres que nos atacam percam a paciência.

— Ainda existe uma terceira alternativa, Chefe! — piou Gucky. Perry Rhodan fitou o rato-castor com uma expressão de espanto. Uma ruga vertical

formou-se em sua testa. — Se isso for mais uma das suas brincadeiras de mau gosto... — Ora essa, Perry! — protestou Gucky. — Você sabe que não costumo brincar numa

situação destas. — Está bem, baixinho. Procure ser breve. — Por que não pegamos o aeroplanador e vamos aos condutores de energia? Acho

que o quartel-general dos bandidos que cortaram nosso suprimento de eletricidade fica lá. Rhodan teve suas dúvidas. — É claro que podemos fazer isso. Os motores diesel do veículo aéreo não precisam

de eletricidade. Mas o que espera conseguir com isso? Nossas bombas atômicas não funcionariam, e atacar uma fortaleza que deve estar sendo bem defendida com explosivos químicos...

John Marshall entrou cambaleando. Rhodan calou-se. O telepata estava fisicamente esgotado, da mesma forma que Rhodan estivera minutos antes. Mas havia um brilho estranho em seus olhos.

Com a ajuda de outro homem colocou Marshall numa poltrona anatômica dobrada para trás. Em seguida mandou chamar o enfermeiro.

O telepata estava banhado em suor. Seus lábios tremiam no rosto afogueado. Rhodan inclinou-se sobre ele.

— Captei... impulso mental — John Marshall respirava com dificuldade. — Seres voadores... engano. Querem... querem destruir estação do tempo.

O enfermeiro afastou violentamente o Administrador-Geral e inclinou-se sobre o telepata. Com uns poucos movimentos colocou um cataplasma de injeção na nuca do mesmo. Retirou-se, deixando um pacote de estimulante ara.

Page 286: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

286

Dentro de trinta segundos o rosto de Marshall voltou à cor normal. O telepata sorriu e sentou na poltrona.

— O que tinha em mente para dizer-me? — perguntou o Administrador-Geral. O telepata enxugou o suor da testa. — Os seres voadores estão cometendo um terrível engano, senhor. Captei alguns

impulsos mentais confusos emitidos por eles. Destes impulsos depreende-se que eles querem destruir a estação do tempo pertencente aos senhores da galáxia. É isto mesmo, senhor! A estação do tempo dos senhores da galáxia. Pensam que pertencemos à guarnição tefrodense.

Por alguns segundos todos permaneceram em silêncio. Icho Tolot foi o primeiro que começou a falar.

— Isso é perfeitamente lógico — explicou. — Afinal, nós nos transferimos quinhentos anos para o futuro, e por isso os seres que nos atacam podem perfeitamente ter-se enganado sobre nossa verdadeira identidade. Certamente planejavam há muito tempo a destruição da estação, sejam lá quais forem os motivos. Temos o azar de estarmos aqui justamente no momento decisivo.

— Se é assim, está tudo bem! — exclamou Gucky. — Basta que digamos aos seres voadores quem somos. Se eles odeiam os senhores da galáxia, logicamente são nossos aliados.

Perry Rhodan sorriu com uma expressão irônica. — Você se esquece de um detalhe, baixinho. Não temos possibilidade de entrar em

contato com estes seres voadores. Nossos rádios não estão funcionando, nem nossos alto-falantes externos. E parece que a cada minuto que passa nossa situação se torna mais insustentável. A neblina, a chuva e a tempestade representam um obstáculo para nossos artilheiros. Já os termolança-chamas, os redeiros e os polarizadores não se importam com as intempéries. Nem me atrevo a pensar o que estará acontecendo com Atlan dentro da estação. Não está recebendo reforços.

Passou a mão pelo queixo barbudo. De repente seus olhos endureceram. — Apesar de tudo, devemos sair com os aeroplanadores. Lá fora talvez consigamos

estabelecer contato com os voadores. Se não, usamos nossas bombas-foguete químicas contra a estação de irradiação.

Icho Tolot concordou com a idéia, mas tinha mais alguma coisa a dizer. — Gostaria de ir à estação — disse. — Talvez possa ajudar Atlan e seus homens. Pelo

menos poderei comunicar-lhes que alguma coisa está sendo feita para modificar a situação. — O senhor acha que conseguirá atravessar as linhas dos termolança-chamas? —

perguntou Marshall. — O senhor não poderá dar ao seu corpo uma dureza maior que a do aço terconite, e sabemos que este não resiste aos raios laser despejados pelas serpentes monstruosas.

Tolot fez um gesto de pouco-caso. — Posso correr mais depressa que o aço! — respondeu com uma estrondosa

gargalhada. Perry Rhodan e John Marshall seguiram o gigante com os olhos. — Tomara que não seja a última vez que o vemos — disse Marshall.

* * *

De ambos os lados dele as carabinas automáticas chiavam, despejando os projéteis-

foguete de grande poder explosivo para dentro das fileiras dos termolança-chamas. O Lorde-Almirante Atlan levantou a cabeça e apoiou a mão direita em sua carabina. — Avançar! — gritou.

Page 287: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

287

Protegido pelo fogo dos companheiros, saiu correndo em direção às serpentes monstruosas que recuavam. Meia dezena de homens levantou atrás dele e saiu correndo.

Quando tinham percorrido metade do caminho, deixaram-se cair no chão e abriram um fogo cerrado, enquanto os outros vieram correndo. A arrancada seguinte levou-os para perto das colunas de uma sala de distribuição. Um grupo de termolança-chamas recém-chegados estava aparecendo do outro lado.

Granadas de mão foram arremessadas em sua direção. Um furacão escaldante passou por cima de Atlan, que atirava, gritava e corria. A seu lado tombavam homens que eram arrastados pelos companheiros para fora da linha de fogo. Era um verdadeiro inferno, mas em momentos como este a razão se desligava, porque a realidade nua e crua tomava-se insuportável.

Rechaçaram os termolança-chamas depois de uma luta feroz e seguiram-nos imediatamente. Finalmente atingiram uma sala na qual, segundo sabiam, oito dos seus companheiros enfrentavam uma situação difícil — somente para perceber uma realidade amarga: tinham chegado tarde.

Atlan calculou os gastos de munição dos últimos quinze minutos, enquanto era dada a ordem de retirada. O contra-ataque consumira três quartas partes de suas reservas de munições, e não podiam contar mais com novos suprimentos.

O antigo almirante da frota arcônida ficou se perguntando em vão o que poderia impedir os teleportadores de continuarem a abastecê-lo. A idéia de que a Crest pudesse ter sido destruída não lhe queria entrar na cabeça. Não acreditava nessa possibilidade. Apesar da falta completa de energia, a nave-capitânia ainda era uma fortaleza gigantesca, que não poderia ser conquistada por quem não dispusesse de canhões energéticos pesados.

Saltou por cima da barreira formada por destroços, que os soldados tinham levantado no acesso à sala de máquinas. Esta sala era um dos três recintos circulares de oitocentos metros de diâmetro, que ficavam 220 metros embaixo das montanhas rochosas da Serra do Norte. Cinqüenta metros abaixo destas salas havia doze salas menores. Não eram tão importantes, pois eram ocupadas principalmente com oficinas e laboratórios. Somente uma delas representava uma importante posição estratégica. Nela estava instalado um transmissor de arco comum. Por isso mesmo a ligação com esta sala era mantida aberta, enquanto a sala propriamente dita era defendida por um grupo comandado pelo Major Redhorse.

— Lá vêm eles! — gritou alguém com a voz estridente. Atlan virou a cabeça e reconheceu o marciano Son Hunha. Fez um gesto para animá-

lo. Os primeiros termolança-chamas apareceram no corredor de ligação. Foram detidos

por uma série de tiros concentrados. Mas depois disso o chão quebrou atrás dos defensores, em torno do grande conversor de energia solar. Em toda parte saíam os polarizadores com seu brilho cristalino.

O arcônida empalideceu. Rangeu os dentes ao ver como os soldados espaciais poupavam a munição. Praticamente eram obrigados a fazer uma opção: deter o ataque dos polarizadores ou a investida das serpentes monstruosas. As reservas de munição não seriam suficientes para ambas as coisas.

Uma idéia desesperada passou pela cabeça de Atlan. Se estavam perdidos, deviam pelo menos lutar até o fim — com todos os recursos ao

seu alcance. — Atenção. Passe adiante a ordem. Todos recuarão em boa ordem para o andar

inferior. Manteremos ocupado o depósito de materiais número um e a oficina A. Demorou alguns minutos até que todos recebessem a ordem. A situação tornara-se

insustentável. Os homens viviam pedindo munição aos gritos, o número dos termolança-

Page 288: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

288

chamas que participavam do ataque era cada vez mais elevado e não havia como deter os polarizadores. As perdas aumentavam rapidamente.

Mas apesar de tudo a retirada foi efetuada sem o menor pânico. Nem os feridos e nem os mortos foram deixados para trás. Foram todos carregados para as novas posições.

Uma vez na oficina, o lorde-almirante deu novas ordens. Os soldados foram divididos em três grupos. Um deles manteve ocupadas as entradas, o outro trazia material e o terceiro grupo tentava fabricar armas de percussão primitivas com esses materiais, usando os recursos da oficina.

Felizmente demorou quase trinta minutos até que as serpentes monstruosas aparecessem nesse lugar. Mas logo se viu que as chances de defesa eram extremamente reduzidas. Os soldados tinham de contentar-se em disparar tiros isolados, fazendo boa pontaria, mas mesmo assim a munição não daria para mais de duas ou três horas.

No meio desta situação receberam a notícia de que a ligação com o grupo de Redhorse fora interrompida. Atlan compreendeu imediatamente o que significava isso. Sem a necessária proteção dos flancos, o pequeno grupo logo seria dizimado.

E ele não podia fazer nada para ajudar.

* * *

— Pronto! — gritou o engenheiro-chefe. Ouviu-se o ruído de metal batendo em metal. Em seguida houve um chiado, que logo

cresceu, transformando-se num uivo estridente. O monstro malhado que se encontrava no chão do grande pavilhão, que ainda há pouco se parecera com um tapete sujo de dimensões incríveis, começou a movimentar-se, inchou e aos poucos foi assumindo formas definidas.

Perry Rhodan assumiu à luz mortiça das lâmpadas de gás o grupo de trinta homens que o acompanharia no caminho para o equador.

Um destes homens destacava-se fortemente dos outros. Mas assim mesmo insistira em formar nas mesmas fileiras. Era Lemy Danger, um agente da USO e amigo de Melbar Kasom, que estava de pé ao lado do pequeno siganês, prestando atenção para que o agente não fosse esmagado pelos pés de alguém que passasse por acaso.

O General Danger tinha somente 22,21 centímetros de altura e 6,33 de largura nos ombros. Pesava 852,18 gramas. Quem o visse seria levado a acreditar que como militar um anão destes não valia absolutamente nada. Quando muito, poderia travar uma luta perigosa com moscas e outros insetos. Mas não era nada disso. Lemy compensava as deficiências físicas com uma inteligência ágil e com uma capacidade de reação que já se tornara lendária. Além disso justamente o tamanho reduzido representava uma grande vantagem nas operações que realizava na qualidade de agente.

O Administrador-Geral sorriu para o siganês e voltou a olhar para o aeroplanador, que aos poucos começava a assumir formas definidas. O hélio guardado em três recipientes de terconite, à pressão de 9.200 atmosferas, continuava a uivar.

Algumas dezenas de mecânicos desenvolviam uma atividade febril nas travessas de metal leve que serviriam para ligar os dois corpos que formavam o planador. Cada um deles tinha duzentos metros de comprimento e cinqüenta de diâmetro. Se não fossem as manchas coloridas que camuflavam o conjunto, eles se pareceriam com charutos gigantes.

Finalmente os dois corpos ficaram cheios de gás. Os mecânicos já tinham completado o trabalho de colocação das travessas de metal leve. A equipe de sustentação soltou um pouco de corda dos rolos. O vulto foi subindo devagar. Duzentos homens empurraram sobre trilhos de plástico a gôndola de trinta e cinco metros de comprimento, que tinha a forma de um pingo d’água. A gôndola foi fixada no corpo do planador. As bombas-foguete

Page 289: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

289

muito compridas foram trazidas pelos especialistas em carretas especiais e guardadas nas câmaras de contenção hidromecânicas.

No aeroplanador não havia nada que dependesse da energia elétrica. A experiência tornara Perry Rhodan esperto nestas coisas. Já acontecera mais de uma vez que um inimigo que se igualasse aos terranos ou os superasse usasse certos meios para retirar a energia da Crest. Depois disso eles tinham tomado suas precauções. E a aeronave que estava sendo montada era uma delas.

— O vôo num fogo de artifício ou o retorno à Idade Média terrana — escarneceu John Marshall.

Rhodan sorriu. — O senhor certamente se refere ao formato de Zeppelin dos dois corpos do

planador, John. Mas não se esqueça de que o velho conde ainda não conhecia as folhas blindadas, nem dispunha do combustível diesel de alta qualidade que possuímos. Quando muito, poderia ter percorrido mil quilômetros com uma aeronave deste tamanho. Enquanto isso nós podemos chegar a cerca de 46.500 quilômetros. Isto faz alguma diferença.

O chefe do Exército de Mutantes confirmou com um gesto enquanto acompanhava os trabalhos com muito interesse. Viu as quatro gôndolas com os motores serem montadas. As máquinas tinham um aspecto tosco, com o revestimento disforme e as hélices de quatro folhas. O que veio depois chegou a parecer antediluviano. Os técnicos acenderam uma chama de gás em cada um dos cabeçotes dos cilindros, para criar a temperatura de ignição.

Marshall suspirou. — Acontece que Zeppelin não teve de brigar com os polarizadores, redeiros,

termolança-chamas e homens voadores, senhor. As trovoadas serão um problema para nós. Tenho minhas dúvidas de que os quatro motores sejam capazes de arrancar-nos de um furacão.

— Não se esqueça de que cada motor tem uma potência de 3.200 CV. Se necessário, passaremos por cima da zona das tormentas.

— Na pior das hipóteses saltaremos de pára-quedas, senhor. — Que é isso? — perguntou Rhodan e fez um gesto ameaçador de brincadeira com o

dedo. — Nunca o vi tão pessimista, John — deu uma risada. — Naturalmente levaremos os pára-quedas, mas quanto a mim preferiria encontrar a morte na aeronave a morrer sufocado num mar de lama ou ser arrastado até a morte pela tempestade.

Rhodan pigarreou. — Mas... Caramba! Por que vivemos pensando nas dificuldades? Acho que

conseguiremos, desde que acreditemos no êxito da operação! John Marshall não respondeu. Sorriu satisfeito. As observações pessimistas que

acabara de fazer não deixavam de ter seus fundamentos. Notara a depressão que se apoderara de Rhodan — e o melhor remédio nestas situações sempre fora enfatizar as dificuldades para provocar o Administrador-Geral a contraditá-lo. Mais tarde Perry perceberia, mas ele nunca se zangava por isso. E John tinha plena consciência da responsabilidade que pesava sobre os ombros do chefe.

— Oooh, empurrar! — disse alguém que se encontrava no planador. — Oooh, empurrar!

Marshall virou a cabeça e viu um grupo de seis homens pendurado numa gigantesca manivela, tentando girar o monstro. Saiu correndo e também pôs as mãos. Um rosto coberto de suor sorriu para ele.

O comando voltou a fazer-se ouvir. — Oooh, empurrar! Desta vez deu certo.

Page 290: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

290

A manivela deu partida a um volante formado por lâminas de aço giratórias e um mecanismo de transmissão, que levaria as lâminas a girar com cerca de quinze mil rotações por minuto.

Marshall estava banhado em suor. Já não acreditava que os giros conseguidos com tamanho esforço pudessem produzir a energia cinética de que precisavam.

Mas de repente houve um solavanco doloroso. Os seis homens estimularam-se uns aos outros, gritando e praguejando. Mais um solavanco.

De repente um forte rugido encheu o pavilhão. Os motores diesel estavam funcionando. Como os cabeçotes dos cilindros tinham sido

previamente aquecidos, a mistura explosiva ia se queimando. Os técnicos levaram alguns minutos para regular os motores. Seu funcionamento tomou-se mais silencioso, mas o ruído ainda era suficiente para transformar o pavilhão num inferno barulhento. Além disso nuvens de fumaça azulada começavam a cobrir o chão.

— Atenção! — gritou Rhodan. — Comando Zeppelin, favor embarcar e ocupar seus lugares. Decolaremos dentro de cinco minutos.

John Marshall seguiu a coluna. Foi o último a atravessar a eclusa de ar do monstro. O Administrador-Geral sorriu e inclinou o corpo em sua direção. — Muito obrigado pelo estímulo que me deu há pouco, John. Marshall ficou vermelho. — Espero... bem... espero que não me leve... Rhodan empurrou-o pela eclusa. — Já nos conhecemos há bastante tempo, não é mesmo? O senhor já deveria saber

que sempre lhe fico muito grato por este tipo de empurrão. Não falemos mais nisso. Tomara que Lemy Danger tenha vindo.

Um crânio enorme com uma cabeleira oleosa em forma de foice adiantou-se. Era Melbar Kasom.

— Quem sabe se não se afogou numa poça de óleo, senhor...? No mesmo instante passou a mão pelos olhos e soltou um grito de dor. Perry Rhodan sentiu uma lufada de vento e virou rapidamente a cabeça. Atrás dele Lemy Danger estava pendurado no rotor de sua hélice individual,

segurando um tubo de spray. — Minha lata de gás lacrimogêneo ainda está funcionando, gorducho! — berrou para

Kasom. — Sem dúvida pensava que podia fazer suas brincadeiras sujas comigo, já que minha arma é igual aos outros equipamentos que dependem de energia!

Rhodan engoliu em seco, não porque as palavras de Lemy o tivessem deixado indignado, mas porque se espantara pelo fato de a hélice do siganês ainda estar funcionando. Fez uma pergunta a este respeito ao major.

— Também fico espantado, senhor! — gritou o siganês ao seu ouvido. — É um trabalho de precisão dos siganeses.

— Nem poderia ser de outra forma — disse Kasom. — Uma pulga precisa de tão pouca energia que ela nem pode ser retirada.

O Administrador-Geral sacudiu a cabeça. A explicação não servia. Mas no momento havia coisa mais importante que tinha de ser explicada.

Dali a cinco minutos abriram-se as portas, que deslizavam sobre trilhos, movidas a mão.

As hélices do aeroplanador giraram. O ruído dos motores aumentou. O monstro saiu com uma lentidão monstruosa para a noite cortada de relâmpagos.

* * *

Page 291: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

291

O chão tornou-se semitransparente, ficou transparente de vez — e finalmente desapareceu.

Foi ao menos a impressão que tiveram os dois homens presos na psicoarmadilha. Foram só mesmo seus conhecimentos e os inúmeros truques de que pode lançar mão uma boa equipe psicológica com um razoável treinamento técnico que evitaram que eles perdessem a calma.

Estavam parados no nada, mas sabiam que tinham chão firme sob os pés. A tensão de Hawk diminuiu por uma fração de segundo — de propósito, pois queria

fazer uma experiência. No mesmo instante começou a cair num abismo profundo. Já estava preparado para isso, e por isso conseguiu interromper a queda fictícia. Era bem verdade que se encontrava cerca de vinte e cinco centímetros abaixo de Lun. As paredes avançaram em direção ao centro da sala.

Quando se tinham aproximado bastante, Omar esticou o braço e tocou com a mão numa superfície lisa e fria.

— É tão parecido que pode enganar a gente — disse. — Até se poderia ser levado a deixar-se cair. — Será que realmente é apenas parecida...? — perguntou o modular, esticando as

palavras. — E se estas paredes forem reais? O oxtornense deu uma risada forçada. — Se forem, nós sentiremos, Lun — pôs-se a

refletir. — É claro que o senhor pode ter razão. Mas quem nos garante que não há mesmo um

abismo embaixo de nossos pés? O rosto de Omar transformou-se numa careta indefinida. — Eu avisei. O senhor deveria ter-se preparado para passar as últimas horas de sua

vida neste lugar. Uma boa armadilha psíquica não é nenhuma brincadeira. Se o senhor tiver razão, estamos condenados à morte. Será que poderíamos salvar-nos deixando-nos cair num abismo real? Se for real, morreremos na queda.

— Quer dizer que vamos ficar onde estamos! — disse Baar Lun com a voz firme. O tenente sacudiu a cabeça. Já fizera muitas experiências com armadilhas deste tipo,

mas nunca na própria carne. Mas mesmo assim isto lhe dava uma grande vantagem sobre o modular.

— Não faremos nem uma coisa nem outra, Lun. Vamos sair daqui — pela parede. Fechou os olhos e fez um gesto para que Lun imitasse tudo que ele fazia. Atirou-se

lateralmente de encontro à parede bem próxima. Por um instante teve a impressão de que todos os ossos de seu corpo estavam quebrando, mas acabou saindo cambaleante do outro lado da parede.

Baar Lun apareceu atrás dele, com o rosto desfigurado pela dor. Tinham conseguido. Mas nem por isso haviam escapado à psicoarmadilha. Mas o ambiente em que se

encontravam voltara ao seu aspecto normal. — Vamos voltar — cochichou Omar. — É o único meio de nos livrarmos disto de vez. Baar Lun fitou-o com uma expressão preocupada. — Os ikas já devem ter montado outra armadilha para nós. Certamente são capazes

de imaginar o que vamos fazer. Hawk deu uma risadinha. — Na minha opinião, eles seguem pela trilha do raciocínio lógico. E neste caso

certamente imaginarão que pensamos que estarão à nossa espera do outro lado. Por isso com toda certeza não esperam que abramos caminho para a frente.

— É complicado, mas lógico — retrucou Lun. — Vamos embora.

Page 292: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

292

Mas não chegaram a andar cinqüenta metros. De repente surgiu uma parede de chamas à sua frente.

— Temos de atravessar isto — disse Omar. — Feche seu traje. Também fecharei meu uniforme.

— Não adianta — respondeu o modular. — Os ikas podem prever que faremos isso. Acho que a verdadeira surpresa está guardada atrás do fogo.

O oxtornense soltou um assobio. — Estamos presos — disse. Sabia que não sairiam mais da armadilha. Os ikas conheciam mais alguns truques. As paredes voltaram a aproximar-se. Desta vez brilhavam numa incandescência

vermelha. Mesmo que não fossem reais, a imagem exerceria uma influência tão forte no subconsciente que não conseguiriam passar.

Omar Hawk pôs-se a refletir intensamente, mas não se lembrou de nada que pudessem fazer. Se Sherlock estivesse lá! O okrill era completamente imune a qualquer tipo de jogo psicológico...

Até parecia que o pensamento desencadeara algum sinal. O mundo fictício desapareceu de repente. O fenômeno foi acompanhado por um forte estrondo. O cheiro de ozônio enchia o pavilhão real, de trinta metros de diâmetro, em cujo interior se encontravam Omar e Baar.

— Alguns fusíveis queimaram — constatou Lun. — Isto parece ser obra de Sherlock — disse Hawk. — Vamos andando! Para a saída,

se é que conseguiremos encontrá-la. Desta vez guiaram-se pelas escotilhas abertas e fechadas. Usavam sempre as abertas,

porque acreditavam que os ikas queriam enganá-los como da primeira vez. Não encontraram nenhuma resistência, o que deixou Omar um pouco espantado. Mas

logo disse a si mesmo que os ikas talvez tinham tirado uma lição da derrota sofrida e preferiam não entrar em luta aberta com seus ex-prisioneiros.

Mas quando atingiram a sala de comando e controle, ele teve suas dúvidas. O okrill estava agachado no centro da sala, com os olhos redondos cintilantes presos

nos ikas perturbados, que estavam de pé junto às paredes, com as armas de choque nas mãos. As telas de imagem e as luzes de controle estavam negras e apagadas. Um dos consoles fora despedaçado.

Aquilo fora obra de Sherlock. Omar Hawk admirou-se por que os ikas não atiravam, já que poderiam paralisar o

okrill com suas armas de choque. Até parecia uma nova armadilha.

Page 293: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

293

6 O estrondo das explosões passou e o corredor vazio estendia-se à frente do grupo.

Mas só ficou vazio por alguns segundos. Inúmeros termolança-chamas saíram das escavações feitas pelos polarizadores.

Por alguns instantes o chiado das cargas-foguete e o estrondo das cargas explosivas misturaram-se ao rugido dos raios laser e ao baque surdo dos corpos das serpentes que caíam ao chão.

Atlan viu um dos monstros saltar bem à sua frente e levantou a carabina automática. Puxou o gatilho.

Mas só houve um clique. A munição acabara! O arcônida endurecido num sem-número de lutas não desistiu. Virou a arma e bateu

com a coronha na cabeça do monstro. O animal ficou surpreso, mas não sofreu nenhum ferimento. Sacudiu-se, afastou a arma com um movimento ligeiro da pata cheia de garras e abriu a boca larga.

Atlan viu os dentes — e em cima deles, no céu da boca, o emissor de raios energéticos com seu brilho de diamante. Atirou-se para o lado.

O raio laser mortífero passou perto de seu corpo. No mesmo instante a cabeça do monstro caiu ao chão. Um soldado espacial robusto,

de cabelos negros, brandiu uma lâmina feita por ele mesmo e precipitou-se sobre o termolança-chamas seguinte. Desmanchou-se no furacão de fogo do raio laser disparado em seguida.

O lorde-almirante lembrou-se da última granada de mão que trazia consigo. Arrancou-a do cinto. O contato que impulsionava o detonador foi acionado automaticamente. O objeto de aço oval foi arremessado para dentro da boca da fera mais próxima.

A seu lado os outros membros do grupo também travavam uma luta desesperada. Mas o ruído dos tiros e das explosões das granadas de mão era cada vez mais raro — até terminar de vez.

Lá na frente, na extremidade do corredor, mas a apenas uns cem metros de distância, a figura de Don Redhorse apareceu no meio do fragor da batalha. O major recuava novamente com seu grupo para o pavilhão em que estava instalado o transmissor de matéria, depois de tentar abrir passagem. Atlan, que avançara para ajudar o cheiene e seus homens, compreendeu que nunca seria capaz de tirá-lo de lá. A situação tornara-se insustentável. Se perdesse mais tempo, a vida dos homens de seu grupo que ainda restavam pesaria em sua consciência.

Com o coração pesado, o arcônida deu ordem de retirada. A retirada transformou-se numa fuga desordenada, que causou muitas baixas, já que

os termolança-chamas até se deixavam cair de buracos no teto. Os fugitivos, armados com facas e lanças fabricadas por eles mesmos, não tinham nenhuma chance contra os raios energéticos quentes como o sol.

Os últimos quatro homens de um grupo de trinta só foram salvos porque um monstro de quatro membros se juntou a eles. Foi Icho Tolot. O halutense atravessou o corredor que nem um projétil. Os tiros que acertaram nele de raspão nem sequer deixaram manchas de queimaduras em seu corpo transformado. Mas sofreu alguns impactos diretos, e mal e mal conseguiu entrar atrás do arcônida na última sala que ainda estava sendo defendida.

Page 294: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

294

Atlan, que acabara de ter a idéia da última sala que ainda estava sendo defendida, tentou afastar a conclusão lógica do espírito. O grupo de Don Redhorse continuava a defender o pavilhão em que estava instalado o transmissor. Por quanto tempo? Agüentaria até que...

O lorde-almirante sentou no chão, desanimado, e apoiou a cabeça nas mãos. Tolot o informara de que Rhodan partira no aeroplanador. Mas o arcônida, que

possuía muita experiência, não se iludia sobre o resultado da missão. Só lamentava que tivessem de encontrar a morte nestas condições, depois de terem sobrevivido à transferência para o passado.

* * *

O aeroplanador seguia sua rota pelo céu noturno, com os motores trovejantes. Não foi

atacado. Logo se viu por quê. A tripulação viu à luz ofuscante dos relâmpagos que constantemente cortavam os céus milhares de seres voadores sentados imóveis nas árvores. Parecia que estavam dormindo.

Este mesmo fenômeno estranho já fora observando nas imediações da Crest, antes da partida do Flying Walrus, que era o nome dado por Lemy Danger ao planador. Era pouco provável que os seres voadores descansassem de noite, quando a luta entrava na fase decisiva, somente porque não estavam acostumados a trabalhar de noite. Talvez houvesse motivos físicos ou psíquicos para isso. De qualquer maneira, os tripulantes do Flying Walrus ficaram contentes com isso.

Mas quando o dia raiou, a situação mudou. O planador teve de subir a oito mil metros de altura, para não entrar num furacão. Na

oportunidade avistaram, cerca de cem quilômetros à frente, gigantescas torres cintilantes, de cujas pontas em abóbada saíam descargas energéticas tremendas para o espaço cósmico.

Perry Rhodan deu a estas torres o nome de grade de radiações, o que correspondia às suas funções.

A rota do planador foi imediatamente dirigida para as grades de radiações. Em seguida apareceram os primeiros seres voadores. Impelidos para o alto pelas

massas de ar quente, circularam à frente e em cima do Flying Walrus. Lançaram algumas bombas, mas não acertaram o alvo. Em compensação os homens que lidavam com os canhões registraram bons resultados.

Os seres voadores não conseguiram manter a mesma velocidade do aeroplanador e logo foram ficando para trás. Por alguns minutos os homens não tiveram de preocupar-se com eles.

O tempo foi aproveitado para realizar medições precisas sobre o tamanho das instalações de irradiação de energia. As análises espectrais revelaram que se tratava de blocos semicristalinos de origem orgânica. Os blocos tinham cerca de trezentos metros de altura por cem de diâmetro. Três mil destes blocos foram contados, mas apenas uns poucos expeliam a energia para o espaço.

Isso parecia confirmar a teoria de Icho Tolot. Quando ainda se encontravam na Crest, o halutense afirmara que o inimigo estava

empenhado em paralisar o suprimento de energia para a estação do tempo para em seguida destruí-la. Mas isso exigia um número de trabalhadores e de grades energéticas que correspondesse à capacidade dos conversores de energia solar da estação do tempo. Em comparação com isso o volume de energia da Crest, com seus cinqüenta milhões de megawatts, não representava mais que uma gota num oceano.

Page 295: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

295

Perry Rhodan mal concluíra estas reflexões, quando os seres voadores lançaram um ataque maciço. Desta vez não vieram sós. Três ou quatro deles levavam um termolança-chamas preso à corda e transportavam-no para perto do planador, com o que ele se tornava tão perigoso quanto um avião de guerra.

Os artilheiros tiveram muito trabalho para afastar o perigo terrível. Do lado do inimigo houve várias perdas, mas o planador foi atingido pelo menos dez vezes. Houve um incêndio na gôndola, que só pôde ser apagado a muito custo. Algumas células dos corpos de sustentação estouraram e o hélio que havia nelas saiu. Apesar disso Perry Rhodan deu ordem para que o vôo prosseguisse.

Os mutantes que se encontravam a bordo falharam, tal qual acontecera na Crest. Já não havia a menor dúvida de que suas faculdades eram neutralizadas pelos seres voadores.

Quando ainda se encontravam a cerca de cinqüenta quilômetros do alvo, o Administrador-Geral deu ordem para disparar a primeira série de doze bombas-foguete. Os projéteis não encontraram nenhum obstáculo. Atingiram o alvo e causaram danos graves em doze torres de irradiação.

Mas um simples cálculo revelou que a tentativa era inútil. O Flying Walrus levava um total de cento e vinte bombas-foguete. Na melhor das hipóteses, estas poderiam inutilizar cento e vinte torres de cristal. As 2.880 torres que restariam seriam mais que suficientes para paralisar uma dezena de ultracouraçados do tamanho da Crest.

Neste instante Perry Rhodan lembrou-se de um acontecimento sem importância que se verificara antes da decolagem.

Mandou que Lemy Danger comparecesse à sua presença.

* * *

Omar Hawk virou-se abruptamente ao ouvir o ruído de passos e vozes vindo de longe. — Bem que eu imaginava que entramos em outra armadilha! — exclamou, nervoso. Ele e o modular pegaram suas armas e rastejaram para junto da porta, enquanto o

okrill continuava a vigiar os ikas — ou então eles o vigiavam. Não se podia ter certeza. Omar espiou para fora da porta e teve a surpresa de não ver um grupo de ikas

preparado para o ataque, mas três seres voadores trajados de vermelho que vinham em direção à sala de controle. Estavam desarmados.

Ainda estava refletindo sobre o comportamento a adotar. Quando ouviu uma gargalhada. Omar virou-se abruptamente. Deparou-se com uma figura parecida com um inseto

que atravessava o ar. Apontou a arma de choque para a estranha figura. Teve a impressão de ter ouvido alguém gritar por socorro em voz baixa. Finalmente

compreendeu alguma coisa daquilo que o anão gritava a plenos pulmões. — Não atire! Aqui fala Lemy Danger, especialista da USO. — Não...! — disse Baar Lun num sopro. — Não é possível! Naturalmente os dois homens já tinham ouvido falar em Lemy, mas era a primeira vez

que o viam. O rosto do oxtornense abriu-se num sorriso largo. — Seja bem-vindo na base dos ikas, general! — exclamou. — Infelizmente sou

obrigado a pedir que se esconda em alguma fresta. Lá fora há três seres voadores vindo diretamente ao lugar em que nos encontramos.

O siganês voou diretamente para Hawk, com a hélice zumbindo, e sentou no ombro largo dele.

— Um Lemy Danger nunca se esconde do perigo! — gritou, indignado. — E muito menos numa fresta. Seu... seu robô com vida!

Page 296: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

296

— Alguém já me chamou assim! — resmungou Omar, contrariado. — Mas de qualquer maneira devo pedir que se esconda.

— Não! — gritou Lemy. — Ainda acontece que as intenções dos seres voadores não são hostis. Eu, que sou campeão siganês em todas as classes, deixei-os tão apavorados que imploraram de joelhos que fizesse as pazes com eles.

Omar Hawk sabia que a pequena criatura costumava exagerar tremendamente. Mas acreditava nele, pelo menos em linhas gerais. Respirou aliviado. Compreendeu que os ika não eram inimigos.

— Eles poderiam ter conseguido isso com menos sacrifício — observou Baar Lun. — Tentamos em vão explicar-lhes que estavam cometendo um terrível engano, mas não quiseram acreditar.

— Sempre depende da personalidade de quem fala — respondeu Lemy Danger, orgulhoso.

— Sem dúvida! — observou uma voz na língua tefrodense. — Os dois grandes combatentes nos inspiravam temor, mas um anão inofensivo não poderia representar nenhum Perigo.

— Ora! — gemeu Lemy ao ouvido de Hawk. — Sou capaz de estrangular esse sujeito por essas palavras.

Omar fitou demoradamente os três seres que acabavam de entrar. Usavam as vestes vermelhas que pareciam ser um dos distintivos dos dentistas. Quanto ao resto pareciam-se com os outros seres voadores.

— Sinto muito que tenhamos pensado que vocês fossem inimigos — prosseguiu o porta-voz dos ikas. — Fomos levados a ver em quaisquer seres desconhecidos membros das tropas auxiliares do mal em sua essência, e juramos vingança a este. Esperamos muito tempo por este dia, mas infelizmente as coisas não se passaram conforme imaginávamos.

— Não se passaram exatamente assim — retrucou Omar. — A guarnição da estação do tempo está morta. Agimos antes de vocês, mas o objetivo da vingança foi alcançado. A propósito. Meu nome é Hawk — acrescentou depois de algum tempo.

Baar Lun também se apresentou. O ika informou que seu nome era Gamola. — Um andarilho — completou Lemy Danger. — Os ikas, que é o nome que o senhor

deu a este povo, Hawk, descendem dos antigos andarilhos humanóides. Aceitaram a deformação de seus corpos, para cumprir seus planos de vingança. Mas já está na hora de entrarmos em contato com o Administrador-Geral, Gamola.

O andarilho inclinou a cabeça. — Estou pronto, General Danger. Faça o favor de subir aos meus ombros. — Só se o senhor prometer que levará meus amigos e o animal, Gamola. O ika concordou. Dali a meia hora um grupo de seres voadores subiu ao céu. Omar,

Baar e Sherlock foram levantados com inúmeras cordas. Um ponto prateado apareceu bem no alto. Era o aeroplanador.

* * *

Depois que Rhodan se encontrou com Gamola, o planador seguiu imediatamente para

o norte. O perigo ainda não fora eliminado, ao menos para a Crest III e a guarnição da estação. Os ikas não tiveram nenhuma possibilidade de informar os indivíduos de sua espécie ou as tropas auxiliares formadas por seres domesticados sobre o armistício que acabara de ser celebrado, uma vez que o centro de controle fora destruído pelo okrill. Só lhes restava ordenar a cessação das hostilidades no próprio local dos combates.

Page 297: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

297

Enquanto subiam para o aeroplanador, Omar e Lun espantaram-se por se encontrarem numa região bem diferente da que geralmente encontravam. A grade de radiações não existira na ilha-continente.

Gamola explicou as contradições aparentes. Os dois homens foram narcotizados e transportados da ilha-continente em que se

encontravam os esqueletos dos Tankan para a região equatorial. A mesma coisa acontecera com Sherlock, que tinha sido capturado algumas horas depois. O okrill fingira-se de morto para que o capturassem, e seu plano dera certo. Os ikas trancaram-no em seu quartel-general, mas ele fugira, encontrara o centro de controle e o destruíra. Com isso provavelmente salvou a vida de seu dono e do modular.

— O senhor disse há pouco... — prosseguiu Gamola, dirigindo-se ao Administrador-Geral — ...que a bordo de sua espaçonave também há um andarilho. Quer dizer que já sabe alguma coisa a respeito de meu povo. É bem verdade que os andarilhos que vivem neste planeta pertencem a um grupo diferente de nosso povo. Estudamos há tempos imemoriais o segredo fundamental da vida e das diferentes formas que ela assume, através dos variados códigos genéticos e de suas variantes. Por isso somos conhecidos como os moduladores de gens.

— Kalak nunca nos falou a seu respeito! — interrompeu Rhodan. — Nem poderia — o rosto do ika, que até então se mantivera rígido que nem uma

máscara, transformou-se de repente numa horrível careta. Talvez quisesse sorrir — ou exprimir a amargura que a seguir passou a vibrar em sua voz. — Os moduladores de gens são considerados proscritos pelo grande povo dos andarilhos. Há milênios só se fala aos cochichos de nossos grandes segredos. Ninguém fala de nós enquanto isso não se torna necessário.

“Devo confessar que tiveram seus motivos para expulsar-nos de seu meio e guardar silêncio a nosso respeito. Assumimos uma grande culpa no passado. O mal em sua essência — ao qual vocês deram o nome de senhores da galáxia — obrigou-nos a ceder aos seus desejos. Confiaram-nos a tarefa de modificar certas raças perigosas, e até mesmo algumas raças que mais tarde poderiam representar um perigo. Determinados seres humanóides foram transformados em plantas ou animais, em criaturas sem espírito. Fomos obrigados a criar em outros mundos seres adaptados a uma finalidade específica. Algumas de nossas plataformas chegaram a estacionar na área diretamente controlada pelo mal em sua essência, onde receberam missões secretas.”

— Na área diretamente controlada pelos senhores da galáxia? — perguntou Perry Rhodan, apressado. — O senhor Poderia dar a posição?

— Infelizmente não posso. Somente aqueles que receberam ordens para aproximar-se dos senhores da galáxia sabem onde fica seu território. E nenhum dos eleitos jamais voltou para dar informações sobre isto.

— Devem ter sido mortos depois de terem cumprido suas tarefas — conjeturou John Marshall.

— Provavelmente — respondeu Gamola. Ficou calado alguns minutos, dando a impressão de estar absorto em pensamentos

melancólicos. Em seguida prosseguiu em seu relato. — Com o tempo nós, que executávamos trabalhos menos secretos, também nos

tornamos suspeitos ao mal em sua essência. Os senhores da galáxia viram os resultados das modulações de gens por nós realizadas, e certamente chegaram à conclusão de que um dia pudéssemos ter a idéia de modificá-los.

Levantou as mãos cheias de garras e voltou a baixá-las. — Sem dúvida teríamos feito isso mesmo, se houvesse uma possibilidade. Acontece

que não sabemos onde vivem os senhores da galáxia, nem como são ou qual é a natureza de

Page 298: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

298

seus códigos genéticos. E sem estas informações nunca poderíamos tornar-nos perigosos para eles.

“Assim mesmo fomos deportados. Enviaram-nos para o passado e recebemos ordem de entrar numa órbita em torno deste planeta. Passamos a ser vigiados pelos ocupantes da estação do tempo.

“Acontece que não nos sujeitamos a tamanha humilhação. Há quinhentos e oitenta e oito anos do calendário de vocês — pouco depois de nossa chegada — destruímos a estação e descemos no planeta. Tivemos de simular uma catástrofe para que não houvesse pesquisas. Por isso levamos somente os instrumentos indispensáveis para esta selva infernal e ficamos escondidos em cavernas naturais, que mais tarde foram ampliadas por nós.

“Uma vez lá, passamos a estudar a flora e a fauna do planeta e em seguida realizamos modificações na base hereditária de algumas plantas e animais. Meus companheiros passaram privações muito duras para alcançar o objetivo que fora estabelecido. Não havia usinas nem armas atômicas, nada de máquinas automáticas para a fabricação de roupas e alimentos.

“Quem fez o maior sacrifício foram nossos antepassados, que permitiram a modificação de seus gens. O resultado são os seres que estão falando com o senhor. Tivemos de tornar-nos assim, primeiro para não sermos identificados com seres inteligentes, caso um dos nossos caísse nas mãos dos tefrodenses, e depois para controlar do ar, com nossos fluxos parapsíquicos, as tropas auxiliares por nós criadas.”

O ika concluiu. Encolheu-se, exausto. O Administrador-Geral compreendeu os sentimentos do ika. A guarnição da estação

do tempo fora destruída, mas os ikas não tinham conseguido isso com seus próprios recursos. Seu sacrifício acabara sendo em vão.

Rhodan pôs-se a refletir sobre o que teria acontecido se a Crest não tivesse sofrido um deslocamento de quinhentos anos no tempo. Só assim se explicava o engano. Os ikas só poderiam pensar que os terranos tivessem vindo para revezar a guarnição da estação. Suspirou.

Será que não havia mais nada no Universo que não tivesse sido modificado ou influenciado por algum ato criminoso dos senhores da galáxia...?

* * *

Omar Hawk ficou de vigia na popa quase totalmente consumida pelas chamas da

gôndola. Estava satisfeito por poder respirar o ar puro do planeta. Não apreciava a atmosfera filtrada e artificialmente manipulada.

Sherlock estava deitado a seu lado, espirrando satisfeito. O segredo daquele mundo selvagem fora esclarecido. Mais algumas horas, e o

aeroplanador pousaria junto à Crest. Gamola tomaria suas providências para que a luta chegasse ao fim — e a paz passaria a reinar.

Pelo menos enquanto eles mesmos não retomassem as atividades. E isso seria inevitável. Era necessário levar o ultracouraçado e seus tripulantes de volta ao tempo real do ano 2.404 depois do nascimento de Jesus Cristo.

O oxtornense levantou a cabeça, espantado, ao ouvir Sherlock rosnar baixinho. Será que o perigo ainda não tinha passado? Quem sabe se uma coisa ainda mais

apavorante se aproximava dos homens? Omar inclinou-se sobre a amurada da gôndola danificada e espiou para baixo. Um

pequeno ponto escuro vinha subindo, destacando-se perfeitamente das nuvens cortadas pelos raios.

Page 299: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

299

Omar Hawk levantou a arma energética e fez pontaria. Dali a trinta segundos voltou a baixá-la, sem ter acionado o gatilho.

Uma criatura pequena, parecida com um macaco, com membranas voadoras com aspecto de couro, aproximou-se e sentou calmamente em sua mão.

— Oooh, Hawk, oooh! — chiou, satisfeito. — Cícero! — exclamou Omar, surpreso. — Cícero aqui, Cícero lá! O macaquinho voador saltou para cima da cabeça de Sherlock. O okrill espirrou

ruidosamente. — Hum! — fez Hawk. — Receio que tenhamos de levá-lo, já que gosta tanto de nós,

pequeno. — Ooooh! — exclamou Cícero. — Vamos, mocinha!

Page 300: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

300

6. Sob as geleiras de Nevada

Prólogo — O poder absoluto não se consegue por acaso ou pela

sorte — disse o senhor da galáxia com um sorriso. — A brutalidade sem limites toma-se necessária para...

O ser que dizia estas palavras interrompeu-se e lançou um olhar para os receptores, cujas luzes de alerta se acenderam, espalhando um brilho vermelho.

— Um instante — disse o senhor da galáxia ao seu interlocutor. — Parece que os sensores de campo zero entraram em atividade.

Atravessou a sala sem demonstrar nenhuma pressa. Um ser poderoso como ele não sabia o que era ter pressa.

O senhor da galáxia inclinou-se sobre os receptores e seu interlocutor perguntou:

— Quem são os sensores de campo zero? — São máquinas instaladas por nós num centro secreto

situado em outro planeta — respondeu prontamente o senhor da galáxia. — Servem para localizar e classificar os ecos de campo zero do plano dos movimentos.

— Parece complicado — disse o visitante. O senhor da galáxia mexeu em alguns comandos. — O sensor de campo zero permite determinar com a

precisão de um segundo quando foi usado um dos nossos transmissores.

— A hipótese verificou-se recentemente? — Verificou-se — respondeu o senhor da galáxia e pela

primeira vez deu a impressão de estar pensativo. — Um dos nossos transmissores temporais foi usado por inimigos da organização. Dentro de instantes saberei onde e quando isso aconteceu.

— E depois? Um sorriso frio apareceu no rosto do senhor da galáxia. — Eu já disse que só existe um método para firmar o poder

pessoal. Deve-se destruir o inimigo assim que isto se tome possível. Parece que esta possibilidade está surgindo.

O ser grande e poderoso ligou um microfone, para transmitir as instruções que lhe pareceram mais adequadas.

Page 301: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

301

1 Se um sujeito tem a altura de uma árvore e suas mãos são do tamanho de uma pá,

então é melhor que ele seja amigo da gente, mesmo que ainda seja quase um menino. Mas o que se pode fazer para entrar em contato com este sujeito, se a gente se encontra com ele pela primeira vez no interior de uma estação subterrânea situada num planeta estranho, onde se trava juntamente com este sujeito e com outros soldados espaciais uma batalha de vida e morte?

“Sargento Surfat”, dirá alguém, “um homem como o senhor, que certamente já percorreu todos os recantos da Crest III, deveria conhecer pessoalmente os tripulantes da nave.”

Mas quem diz isto está errado em dois pontos. Primeiro, na época eu tinha sido rebaixado ao posto de cabo; depois, cada tripulante da Crest III tem sua própria área de atuação, da qual só sai em oportunidades muito especiais. Naturalmente os oficiais não estão sujeitos a esta norma. Mas um simples astronauta como eu não pode movimentar-se mais longe do que alcança a cuspida de um lhama.

O nome do sujeito grandalhão era Papageorgiu. Afirmava que descendia de gregos, mas na época eu ainda não sabia disso. Pensei que o rapaz tivesse aparecido por acaso na sala do transmissor da estação subterrânea de Pigell, juntamente com o Major Redhorse, o Tenente Chard Bradon, Olivier Doutreval e minha esposa. Nem pensei que Papageorgiu pudesse ser um dos estranhos amigos de Redhorse, embora devesse desconfiar disso.

Éramos lutadores resolutos e apaixonados, mas sou capaz de jurar que aquele sujeito alto com rosto de menino era ainda mais resoluto e apaixonado que nós. Estava ajoelhado ao lado de Chard Bradon, atirando nos termolança-chamas que penetravam na sala. Em suas mãos a carabina automática até parecia um brinquedo.

Em toda parte os polarizadores rompiam as paredes da estação subterrânea. Os termolança-chamas passavam pelos túneis e buracos abertos por eles e investiam contra nós. Estas serpentes monstruosas de doze pernas vinham de todos os lados. Mal conseguiam passar a cabeça por um buraco, começavam a atirar em nós. Os termolança-chamas tinham doze metros de comprimento e um de diâmetro.

Não tive a menor dúvida de que sem o campo defensivo individual não seria capaz de resistir a uma série de tiros concentrados. Mas o caminho de fuga para as outras salas estava fechado para nós. Vários polarizadores tinham rompido as paredes junto à passagem. Uma horda de termolança-chamas mantinha ocupado o lugar. A inteligência reduzida que possuíam parecia ser suficiente para que compreendessem a importância dessa passagem.

Nos outros termolança-chamas não se notava o menor sinal de racionalidade ou inteligência. Usavam os projetores implantados em suas bocas para atirar a esmo para dentro da sala do transmissor.

— Aqui não poderemos resistir, Chard! — berrou o Major Don Redhorse para o Tenente Bradon.

Bradon acenou com a cabeça. Estava muito tenso. Apontou para a passagem. O rosto de índio de Redhorse não revelava seus sentimentos. Entesou o corpo magro

ao levantar-se. — Vamos abrir passagem à força! — gritou para nós. Já estava acostumado a receber

ordens estranhas de Redhorse, mas a idéia de abandonarmos a sala nas condições em que nos

encontrávamos antes parecia um convite para o suicídio.

Page 302: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

302

Mas havia o rapaz que depois de ouvir as palavras de Redhorse levantou como se tivesse recebido um choque elétrico e sacudiu ameaçadoramente sua carabina. Apesar do fogo e da fumaça vi o brilho de seus olhos. Logo me pus de pé, espantado comigo mesmo. Doutreval, um homem baixo, de cabelos negros, veio para junto de mim. Tinha os cabelos muito bem penteados e estava envolto numa nuvem de perfume acre.

Talvez conseguíssemos forçar a passagem, se em vez das carabinas automáticas pudéssemos usar as armas energéticas especiais. Nossa munição estava escasseando. Para cada termolança-chamas que matávamos apareciam três outros na sala do transmissor.

— Para trás! — gritou Redhorse. Tropeçávamos mais do que corríamos. Meus pés ficaram presos no cadáver de um

termolança-chamas. Caí violentamente ao chão. Tentei desesperadamente desvencilhar-me. Meus companheiros já se encontravam a alguns metros de distância. O raio laser superaquecido disparado por um termolança-chamas passou por cima de meu corpo.

O sujeito alto parou e virou o rosto para mim. Não me atrevi a olhar para trás, pois imaginava perfeitamente o que estava acontecendo por lá. Certamente os termolança-chamas nos seguiam em frente ampla. Não tinham mais necessidade de permanecer junto à passagem.

Redhorse gritou alguma coisa que não compreendi. De repente o sujeito de mãos grandes estava perto de mim e puxou-me para cima. Peso mais de cem quilos, mas a carga adicional não parecia representar nada para ele.

— Obrigado! — disse com a voz rouca. — Qual é seu nome, rapaz? — Papageorgiu! — gritou o grandalhão e sorriu. Pensei que estivesse se divertindo à

minha custa, mas logo me dei conta de que um homem nessa situação não tem tempo para brincadeiras bobas. Saímos correndo atrás dos outros. Quando os alcançamos, Redhorse estendeu sua arma em nossa direção.

— A munição acabou — disse em voz tão baixa que mal conseguimos ouvi-lo. Os poucos tiros que nós outros ainda tínhamos mal dariam para prolongar nossa vida

por alguns minutos. Era estranho, mas não acreditei que iria morrer. Parecia incrível que um homem como Redhorse simplesmente deixasse de existir. Para mim ele já se transformara numa lenda. E alguma desse mito passou para mim, para todos nós, e parecia dar-nos o dom da invulnerabilidade.

De repente ouviu-se um zumbido. O chão vibrou. Virei abruptamente a cabeça. O arco do transmissor iluminou-se.

— Major! — exclamou Sennan Brank. Um traço de esperança apareceu em seu rosto enrugado. — Olhe, major!

Olhamos para o transmissor. Até mesmo os termolança-chamas pareciam confusos por causa da inesperada entrada em funcionamento dos reatores atômicos que forneciam energia ao transmissor. Suspenderam os ataques.

Tirei o fuzil energético do cinto e apertei o botão acionador. Não aconteceu nada. Parecia que somente o transmissor voltara a funcionar. Os termolança-chamas rastejaram em nossa direção, dando a impressão de que não se sentiam muito seguros. Os fluxos energéticos que se verificavam nas proximidades pareciam tê-los tornado vacilantes.

As duas colunas do transmissor cresceram para o alto, unindo-se embaixo do teto para formar o arco que já conhecíamos. Na abertura formada por este arco surgiu a cintilância e o ondular negro-azulado característico.

— O transmissor está funcionando! — exclamou Bradon, exaltado. Neste instante os termolança-chamas voltaram a atirar em nós. — Para a frente! — decidiu Redhorse, apontando para o transmissor. — Vamos fugir

por este arco. Não pode ser pior que a morte. Prestem atenção para que os campos

Page 303: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

303

defensivos e projetores antigravitacionais individuais estejam ligados quando formos irradiados.

Redhorse movimentou as pernas compridas. Os termolança-chamas aproximaram-se, vindos de todos os lados. Pareciam sentir-se muito seguros, pois não acharam necessário atirar de uma grande distância. Olivier Doutreval foi o primeiro que desapareceu no transmissor. O pequeno rádio-operador dissolveu-se diante dos nossos olhos, transformou-se numa coisa que soltava fagulhas e desmanchou-se numa questão de segundos. Sennan Brank foi sem seguida. Estava com o rosto desfigurado pelo medo, mas saltou sem perda de tempo. Depois foi a vez de Papageorgiu, que agitou violentamente os braços, mostrando que era a primeira vez que atravessava um transmissor de matéria e não tinha a menor idéia a respeito do funcionamento deste aparelho. A posição que assumiu talvez tivesse sua razão de ser num elevador antigravitacional. Depois de Papageorgiu quatro termolança-

chamas desapareceram no arco do transmissor. Certamente queriam perseguir o jovem astronauta. Chard Bradon foi em seguida.

— Quer um convite por escrito, Surfat? — perguntou Redhorse, aborrecido, quando me aproximei encurvado e fungando. Vivia se esquecendo de que eu não era nenhum desportista. O cheiene segurava a carabina de Doutreval e atirava nos termolança-chamas que vinham atrás de nós.

Liguei o projetor antigravitacional e saltei para dentro do transmissor. A última coisa que vi foram as costas largas de Redhorse, que recuava lentamente em direção ao arco do transmissor. Estava envolto em fogo e fumaça. “Nesta posição ele estará quando morrer”, pensei.

Depois não pensei mais nada. Por mais complicada que seja, a

estrutura atômica das células do corpo humano deve ser disposta de acordo com algum esquema. Só assim se explica que depois de um salto pelo transmissor cada átomo volte ao seu lugar. Um objeto que é

irradiado por um transmissor dissolve-se completamente. É um fenômeno que se processa numa base n-dimensional, e que não pode ser medido nem observado conscientemente. Durante certo tempo, que no âmbito real não passa de uma fração de segundo, o corpo irradiado deixa de existir. Transforma-se num nada, num torvelinho de elétrons e nêutrons, além de ondas de todos os tipos. Estes torvelinhos encontram seu caminho para a estação receptora, através de um ambiente de categoria superior. E lá verifica-se o fenômeno formidável da integração, realizado praticamente num tempo zero.

Se perguntarmos a um homem que acaba de sair do transmissor o que sentiu durante a “viagem”, este homem não dará nenhuma resposta, ou então dirá que não sentiu nada.

Quando minha cabeça voltou a funcionar, eu saía cambaleante e meio atordoado da estação receptora. Fui imediatamente puxado para cima. Compreendi que o estado de

Page 304: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

304

levitação era causado por meu projetor antigravitacional, que voltara a funcionar. O vôo alto que empreendi tão de repente foi minha salvação.

No primeiro instante cheguei a pensar que nem tinha dado um salto pelo transmissor, pois vi lá embaixo uma sala exatamente igual àquela da qual tinha saído. Mas havia dez tefrodenses com as armas apontadas na frente do arco do transmissor. Isto bastou para que eu acreditasse que realmente tínhamos saído em outro planeta.

Os dez tefrodenses atiraram. Mas seu alvo não era eu nem meus companheiros, mas sim os quatro termolança-chamas que acabavam de sair do transmissor. Olhei para cima e vi Brank e Papageorgiu flutuarem lado a lado embaixo do teto. Doutreval e Bradon encontravam-se perto do transmissor, enquanto Redhorse voava alguns metros embaixo de mim. Não tinham sido somente os projetores antigravitacionais que tinham salvo nossa vida. Os tefrodenses certamente não esperavam ver quatro monstros furiosos saírem do arco do transmissor, cuspindo fogo e atacando-os.

Sobre uma coisa não havia dúvida. Estavam à nossa espera. Não foi por acaso que o transmissor funcionou de repente. Os tefrodenses continuavam a atirar nos quatro termolança-chamas. Mas os monstros não tombaram. Parecia que a superfície cristalina de sua pele era capaz de absorver fluxos de energia até determinado volume e conduzi-los ao projetor de raios laser. Comecei a ter minhas dúvidas de que nossas armas energéticas teriam adiantado alguma coisa contra estes seres artificialmente criados pelo inimigo.

Fiquei aliviado ao notar que além do projetor antigravitacional o campo defensivo individual de meu traje de combate voltara a funcionar. Se necessário poderíamos usar nossas armas de fogo portáteis, nossos desintegradores e fuzis energéticos.

Lamentei-me de só usarmos simples trajes de combate. Desta forma não podíamos contar com os campos defletores, que nos tornariam invisíveis. Além disso os trajes de combate que usávamos não estavam equipados com capacetes pressurizados ou aparelhos de suprimento de oxigênio.

Redhorse voou para perto do teto e fez um sinal para que nos aproximássemos. Os tefrodenses ainda não tinham tempo para cuidar de nós. Três deles estavam caídos

no chão, inconscientes. Os termolança-chamas iam avançando para dentro da estação. Era uma luta desigual. Os tefrodenses certamente não estavam preparados para este tipo de ataque.

— Temos de sair daqui! — gritou Redhorse. — Os tefrodenses logo receberão reforços e então terão tempo para dedicar-se a nós.

Bradon lançou um olhar sombrio para baixo. — Gostaria de saber em que lugar saímos — disse. — Aposto que é uma armadilha de

grandes proporções, montada para um fim definido. Bradon era um pessimista nato. — Estamos num planeta estranho, tenente — disse Papageorgiu, despreocupado. — O

importante é que escapamos das feras de Pigell. — Isto aqui é igual ao que vimos em Pigell — resmungou Brank. — Não temos motivo

para acreditar que o ambiente seja mais pacato que o do sexto planeta de Vega. Lá embaixo a guarnição tefrodense estava morrendo. Os homens lutavam

valentemente, mas cometeram um erro. Insistiam em atirar com suas armas energéticas, o que para os termolança-chamas representava no sentido literal da expressão um alimento inesperado.

— Para sair daqui teremos de usar esta passagem — disse Bradon, apontando para o campo de batalha.

— Talvez haja mais alguma saída — arriscou Doutreval. — Só falta encontrá-la.

Page 305: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

305

Enquanto falávamos, íamos voando devagar para o outro lado da sala. Olhei para baixo e vi que todos os tefrodenses estavam mortos. Os termolança-chamas rastejavam em trono do transmissor, à procura de novas vítimas.

— Senhor! — exclamou Papageorgiu de repente. Um dos seus longos braços apontou para baixo. Algumas portas largas, que até então

tinham ficado ocultas, abriram-se de lado a lado, deixando livres as entradas principais. Mas antes que tivéssemos tempo de regozijar-nos com isso, um bando de robôs de guerra de estatura baixa entrou na sala do transmissor e abriu fogo contra os quatro termolança-chamas. Pelo menos duzentos combatentes cinzentos feitos de aço rolaram para dentro da sala.

Não era difícil de imaginar que nem mesmo os monstros de Pigell resistiriam a esse ataque concentrado. E depois que tivessem liquidado os termolança-chamas, os robôs cairiam sobre nós.

E estes mesmos robôs nos fechavam o caminho para as salas e corredores vizinhos, que talvez representassem a liberdade.

Neste momento Redhorse provou mais uma vez que mesmo nas situações mais difíceis era capaz de tomar decisões rápidas.

— Vamos usar a saída menor — ordenou. — No momento não está sendo vigiada. Densas nuvens de fumaça subiram ao lugar em que nos encontrávamos. A respiração

era cada vez mais difícil. Quase não se via mais nenhum sinal dos termolança-chamas. Achei que deviam estar no lugar em que havia uma grande concentração de máquinas de guerra. De vez em quando um raio ofuscante feito de fogo e fumaça saía do grupo, o que era um sinal de que até mesmo os robôs tinham muito trabalho em derrotar os monstros.

— Iremos um atrás do outro. Lastafandemenreaos, o senhor vai na frente. Não acreditei no que acabara de ouvir quando Redhorse pronunciou este nome como

se fosse uma palavra de três letras. Papageorgiu sentiu-se honrado. Sorriu agradecido e foi descendo.

— Agora é sua vez, Brazos — disse Redhorse em tom implacável. Segui o menino grande, cujos pés mal se destacavam na fumaça. Não tive tempo para

interessar-me pelo que acontecia atrás de mim. Tirei o fuzil energético e esforcei-me para distinguir alguns detalhes no meio da confusão. Os robôs faziam um barulho incrível. Quanto mais descia, menor era minha esperança de sair vivo deste lugar. Só recuperei o ânimo quando fui ultrapassado por Doutreval. Esforcei-me para ficar perto do rádio-operador. Papageorgiu voava à minha frente. Parecia um peixe muito feio atravessando as nuvens de fumaça. Agitava os braços. Parecia que queria comunicar alguma coisa, mas não compreendi o significado dos seus sinais.

Vi a fumaça abrir-se lá embaixo. Por um instante vi um termolança-chamas. O monstro estava deitado de costas. A cabeça levantava-se convulsivamente, e cada vez que isso acontecia um raio laser saía da boca da fera. Os robôs estavam literalmente desmontando aquela criatura. Desejei que tivesse metade da resistência de um termolança-chamas.

A entrada menor apareceu à nossa frente. Papageorgiu aterrissou em segurança sobre as próprias pernas. Apoiou-se com ambos os braços no batente da porta e olhou para o corredor. Era tão grande que fechava completamente a passagem.

— O que está esperando, rapaz? — perguntei ao tocar o chão atrás dele. — Os robôs logo virão atrás de nós.

A idéia de lutar com as máquinas não parecia ser muito desagradável para ele. Tive de empurrá-lo para o corredor. Senti-me aliviado ao ver que lá estava tudo calmo. Satisfeito, aspirei o ar relativamente limpo. A fumaça ardia nos meus olhos.

Page 306: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

306

Doutreval juntou-se a nós. Sou capaz de jurar que perdeu tempo alisando o cabelo e passando a mão pelo uniforme. Cada um dos seus movimentos exprimia a repugnância que lhe causavam a sujeira e a desordem.

Sennan Brank apareceu. Seus olhos fitaram-nos com um evidente desagrado. — Vamos andando! — resmungou. — Por que estão parados? Só mesmo o velho Brank podia tomar a liberdade de usar esse tom. Vivia espalhando

o boato de que não andava bem da bola, para permitir-se esse tipo de atrevimento. Redhorse e Bradon passaram pela entrada. — A sala se transformou num verdadeiro inferno — informou Redhorse. — Os

termolança-chamas logo serão liquidados, e então os robôs virão atrás de nós. — Isso mesmo — disse Brank, zangado. — Já ficamos parados demais. — Vamos dar uma olhada por aí — sugeriu Papageorgiu. O rapaz tinha um jeito todo

especial de confundir uma luta de vida e morte com um piquenique, que me deixava nervoso. Sua despreocupação até deixava para trás a calma inabalável de Redhorse.

— Já que é tão corajoso, pode voltar à sala — sugeri. O rapaz sorriu com uma expressão delicada. — Pode voltar a chamar-me de rapaz — disse. — Antes de mais nada precisamos saber onde estamos — disse Redhorse,

interrompendo nossa conversa pouco amistosa. — Para isso precisamos dar um jeito de sair da estação.

O major era um gênio da arte de apresentar os problemas de forma pouco complicada. Mas seria bem melhor que este gênio soubesse como poderíamos sair dali. Em cada canto poderia haver robôs ou outras surpresas desagradáveis à nossa espera.

Papageorgiu forçou a porta, fechando-a. — Talvez isto detenha nossos amigos por algum tempo — observou. Puxei Doutreval para o lado e cochichei algumas palavras ao seu ouvido: — Quem é mesmo esse sujeito, Olivier? Doutreval olhou-me com uma expressão parecida com a que o primeiro aluno da

classe costuma exibir perante um retardado. — Refere-se a Lastafandemenreaos Papageorgiu? — murmurou. Por todos os planetas do Universo! Ele pronunciava este nome com a mesma

habilidade de Redhorse. Até parecia que os dois nunca tinham feito nada senão treinar esta palavra capaz de quebrar a língua.

— Naturalmente — respondi, impaciente. — Ele descende de gregos — disse Doutreval no tom de quem faz uma revelação

importante. Criei coragem para fazer outra pergunta, mesmo correndo o perigo de ser

considerado um idiota inculto. — Há alguma coisa de especial nisso? — Seu tio é proprietário de maior frota mercante privada da Terra — respondeu

Doutreval com uma voz que teria feito a delícia de uma solteirona na mesa do café. — E daí? — perguntei. — É um multimilionário — respondeu Doutreval. Esta informação não contribuiu

para que Papageorgiu se transformasse aos meus olhos num homem fora do comum. Pelo contrario. Um milionário que vivia arriscando a vida como ele não devia estar bem da cabeça. Onde não estaria o velho Brazos Surfat se possuísse um milhão que fosse? Era uma coisa que eu não deveria pensar. Podia parecer estranho, mas os ricos sempre eram os outros. Mas quando me encontrava com eles, faziam coisas que eu nunca esperaria.

A voz de Redhorse interrompeu minhas reflexões. O major deu ordem para que procurássemos o caminho mais fácil e rápido para o mundo exterior.

Page 307: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

307

— Quem sabe se não saímos num mundo de metano? — observou Bradon. —, Neste caso morreremos sufocados no momento em que pusermos a cabeça para fora.

— O senhor irá na frente — anunciou Brank em tom agressivo. — Se cair em nossos braços, morto, ficaremos sabendo que não poderemos sair.

— Não seja tão hostil com os outros — advertiu Redhorse. Saímos voando de novo, mantendo uma distância maior entre um e outro, para que

no caso de um ataque não pudéssemos ser atingidos ao mesmo tempo. Os campos defensivos individuais nos davam um certo sentimento de segurança. Além disso nossas armas estavam novamente em condições de serem usadas, desde que não houvesse termolança-chamas por ali.

A estação era exatamente igual à armadilha do tempo de Vega VI. Cheguei a duvidar de que realmente tivéssemos saído de Pigell. Sacudi a cabeça. Se ainda nos encontrássemos no setor de Vega, a essa hora já nos deveríamos ter deparado com outros tripulantes da Crest III. Era perfeitamente normal que estações instaladas em planetas diferentes se parecessem em todos os detalhes. Certamente os tefrodenses ou os seres secretos para quem trabalhavam eram de opinião que a disposição das diversas salas era o ideal.

Cheguei a ter esperança de que chegássemos à próxima sala sem qualquer incidente, quando uma coisa que até parecia a caricatura de um blindado voador veio rolando ao nosso encontro. O chacoalhar do aparelho ressoava nos meus ouvidos.

Redhorse levantou a mão. Ficamos suspensos, imóveis, cinco metros acima do chão. O estranho veículo também parou. Emitiu alguns sons. Era como se estivesse agonizante. Mas de repente passou a desenvolver uma surpreendente atividade, começando a atirar em nós.

— Protejam-se! — berrou Redhorse, ao ver várias lanças de chama saírem de sete saliências em forma de cúpula, cortando a penumbra do corredor. O único abrigo que descobri naquele momento foram as costas largas de Papageorgiu, mas meu caráter não permitia que me escondesse atrás delas. Respondemos ao fogo. No mesmo instante o veículo blindado ficou envolto em nuvens, das quais de vez em quando saía um raio. Vi que duas tampas se abriram na superfície do aparelho. De cada abertura saiu uma bolha oval, que arrebentou um metro acima do blindado.

— Gás! — gritou Brank e revirou os olhos como se estivesse morrendo sufocado, embora ainda não se sentisse nenhum cheiro estranho.

O blindado recuou com um forte ruído. Dezenas de robôs entraram correndo atrás de nós. Provavelmente tinham derrotado os termolança-chamas e vinham para completar a destruição.

Voamos por cima do blindado, que enviou mais duas bolhas de encontro às luzes do teto. Estas bolhas também estouraram. De repente Brank começou a cantar. Senti tremer as pernas, como se estas quisessem movimentar-se ao compasso de uma música desconhecida.

“É o gás”, pensei atordoado. Neste momento alguém agarrou meu braço e puxou-me. Voltei a sentir-me melhor.

Brank, que continuava a desfiar sua cantoria, foi arrastado por Redhorse para fora da área de perigo. Doutreval e Bradon já estavam em segurança. O veículo blindado nos perseguia fungando. Felizmente não era muito veloz, e parecia não ter mais de quatro bombas de gás para lançar.

Atravessamos outra sala, sem encontrar nenhum inimigo. Os robôs ganhavam terreno, devagar mas com segurança. Se atacassem de vários lados ao mesmo tempo, estaríamos perdidos.

Redhorse parecia recear isso mesmo, pois não permitiu que examinássemos a sala. Voamos para o corredor ligado a ela. Finalmente Bradon descobriu algumas galerias que levavam para cima.

Page 308: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

308

— São antigos poços de elevadores antigravitacionais — identificou Doutreval. — Parece que foram paralisados.

Para nós isto não representava nenhum impedimento, já que usávamos projetores antigravitacionais. Brank já se acalmara. Parecia ter recebido uma carga de gás maior que os outros, pois seu rosto mudara de cor e os olhos lacrimejavam. Mas talvez fosse porque era mais sensível que nós.

Dividimo-nos em dois grupos. Subimos três a três pelo poço, que era tão comprido que parecia afinar na parte de cima. Redhorse, Bradon e Brank formaram o primeiro grupo. Papageorgiu tinha ombros muito largos, e eu também não era dos mais magros. Por isso Doutreval quase desapareceu entre nós quando começamos a subir. Embora estivesse quase invisível, o cheiro intenso do perfume que usava era a melhor prova de que estava por perto.

Admirei-me de que Redhorse tivesse decidido tão depressa usar este caminho de fuga. Afinal, não sabíamos para onde levava. Mas estava lembrado de que a rapidez das decisões nunca levara o major a cometer um erro. Era um homem muito controlado, capaz de realizar num tempo incrivelmente curto uma série de combinações lógicas. Era uma capacidade que eu não tinha. Se dependesse de mim, provavelmente teríamos hesitado, permanecendo alguns minutos na saída do poço.

Certamente fora por isso que o índio se tornara major, enquanto eu só chegara a cabo. Doutreval afirmara que os elevadores antigravitacionais não estavam funcionando.

Naquele momento vimos que sua observação fora correta. Parte das lâmpadas instaladas na parede estava apagada, e as outras iluminavam pedaços enferrujados, dos quais a pintura se desprendera. De vez em quando aparecia um nicho, que certamente levava a outro posto. Estes nichos estavam completamente às escuras. Provavelmente a estação em cujo interior nos encontrávamos era guarnecida unicamente pelos dez homens cuja morte tínhamos presenciado.

De vez em quando olhava para baixo, pois esperava que os robôs aparecessem a qualquer momento. Alguns deles tinham passado lá embaixo, correndo. Certamente acreditavam que tivéssemos seguido pelo corredor. Isso nos dava uma certa dianteira. Mas eles acabariam nos localizando.

Na parte de cima o poço se alargava, o que juntamente com as grades protetoras lhe dava o aspecto de uma grande flor. Fomos parar um após o outro na galeria circular.

A voz de Redhorse tinha um som oco no interior do poço, quando nos chamou. Havia seis corredores dispostos em forma de estrela, que levavam em várias direções.

Somente um deles estavam iluminado. Um telhado abobadado cobria o lugar em que estávamos. Entre os corredores viam-se várias portas grandes, que certamente levavam para fora. Infelizmente não havia janelas ou aparelhos de observação, e assim não podíamos verificar o que estaria à nossa espera do lado de fora.

Papageorgiu apontou para alguns consoles. — Aqui já houve alguns rastreadores — constatou. — Foram desmontados. O fato confirmava minha suspeita, de que antes de termos aparecido ali os

tefrodenses não davam nenhuma importância a essa estação. — Temos de dar um jeito de abrir uma das portas — disse Redhorse. Brank protestou. — Se a atmosfera lá fora não for respirável, será nosso fim, major. — Não sei se poderemos ir diretamente ao mundo exterior — respondeu Redhorse.

— É possível que atrás destas portas haja outras salas. Mas mesmo que elas levem à superfície deste mundo, não acredito que haja algum perigo. Se a atmosfera existente lá fora fosse venenosa, certamente haveria eclusas de ar no lugar das portas.

Page 309: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

309

Os primeiros robôs de guerra foram entrando no poço do elevador mais embaixo. O barulho que fizeram acabou com nossa discussão. Saímos correndo em direção à porta mais próxima, que cedeu aos nossos esforços, deslizando para o lado.

Um vento gelado passou pela fresta, arremessando a neve ao nosso encontro. O ar frio quase me deixou sem fôlego. Do lado de fora havia uma estranha luminosidade. Recuamos instintivamente. Não se via muita coisa pela fresta, mas tivemos a impressão de que a paisagem que se estendia lá fora era marcada pelas massas de gelo e pelas tempestades de neve.

— Parece que viemos parar na Terra — disse o Major Don Redhorse.

Page 310: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

310

2 Ficamos calados, já que as palavras do major nos tinham deixado perplexos.

Tínhamos todos alguma ligação com a Terra, mas sabíamos perfeitamente que o mundo em que estávamos pisando não era nossa Terra. Era o planeta Terra do ano 49.488 antes do nascimento de Jesus Cristo, uma Terra cujo hemisfério norte estava totalmente coberto pelas geleiras que avançavam cada vez mais.

Sem dúvida a civilização lemurense já deixara de existir. Os quinhentos anos que a armadilha do tempo de Pigell nos tinha transportado para o futuro relativo tinham sido suficientes para selar o fim de Lemur. Se ainda existiam lemurenses, estes viviam em outros mundos. A operação de evacuação da Terra já fora concluída.

Papageorgiu foi o primeiro que voltou a dizer alguma coisa. — Quer dizer que em sua opinião estamos na Terra, senhor? — perguntou. Redhorse atravessou a porta e saiu para o ar livre. Sua figura foi envolta

imediatamente na neve tocada pelo vento, transformando-se num vulto cinzento, que parecia perdido na solidão que se estendia junto ã construção abobadada. Não estava nevando, mas o vento gelado tangia grandes porções de neve à sua frente.

O cheiene apontou para o alto. — Olhem o sol — pediu. — Acho que não terão mais nenhuma dúvida. O sol era uma pequena bola brilhante vermelho-branquicenta, que quase não fornecia

mais nenhum calor. Um incêndio gigantesco parecia refletir-se de horizonte a horizonte no céu vermelho-pálido.

Era um quadro deprimente. A micromatéria do planeta Zeut, destruído numa explosão, se espalhara entre o sol e a

Terra, fazendo com que o planeta não pudesse ser aquecido mais. Era este o verdadeiro motivo da era glacial, que começara há mais de quinhentos anos. Muitos séculos se passariam antes que a cortina feita de matéria cósmica se tornasse menos densa, deixando passar novamente os raios de sol e permitindo que as gigantescas massas de gelo fossem derretidas.

Mas o que eram alguns séculos na evolução de um planeta? Como era insignificante o tempo de vida de um ser humano diante dos acontecimentos que se desenrolavam no seio da eternidade!

Não tenho complexos, mas neste momento me senti pequeno e insignificante. E a consciência desta insignificância chegou a provocar uma sensação dolorosa.

Se Papageorgiu sentia coisa parecida, ele não mostrava. Saiu andando na neve, protegendo os olhos com a mão.

— A abóbada está quase completamente coberta pela neve! — gritou. Redhorse acenou com a cabeça. — Fechem a porta! — ordenou. — Não acredito que os robôs nos persigam aqui. — Senhor!— exclamou Brank, exaltado. — Quer dizer que pretende ficar do lado de

fora? — Naturalmente — respondeu o major. — O senhor pensava que iríamos voltar para

dentro da estação, para cair nas mãos dos robôs de guerra? — Aqui morreremos de frio dentro de algumas horas — disse Brank, amargurado. O tal do Sennan Brank era um velho rabugento, mas desta vez tinha toda razão.

Page 311: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

311

— Vamos procurar um lugar em que possamos abrigar-nos — anunciou Redhorse sem abalar-se. — Deve haver uma cidade lemurense abandonada por perto. Vamos esconder-nos lá e pensar no que poderemos fazer em seguida.

Alguns metros à nossa frente Papageorgiu abria caminho pela neve. Até parecia divertir-se com isso. Só faltava ele sugerir uma batalha de bolas de neve.

O vento frio ardia no meu rosto. Fiquei me mexendo todo o tempo, para que os pés e as mãos não esfriassem antes do tempo. Meus companheiros estavam com os rostos vermelhos. Comigo certamente acontecia a mesma coisa. Nossas roupas estavam cobertas de flocos de neve.

Olhei para o deserto de gelo e perguntei a mim mesmo como Redhorse esperava encontrar uma cidade nesta solidão. Se alguma vez houvera uma povoação lemurense por perto, ela sem dúvida já fora soterrada sob o gelo e a neve.

Papageorgiu voltou. Fechamos a porta. Ficamos isolados de vez do calor aconchegante da estação tefrodense.

— Será que as instalações desta estação estavam ajustadas exatamente para a armadilha do tempo de Pigell, major? — perguntou Bradon ao cheiene, enquanto subíamos ao ar.

— Tudo indica que sim — respondeu Redhorse. — Não devemos ter saído aqui por acaso.

— Dali se conclui que os senhores da galáxia dispõem de um sistema de rastreamento que lhes permite detectar qualquer deslocamento temporal dentro do respectivo plano de referência — disse Bradon em tom pensativo. — Quer dizer que o inimigo sabe muito bem onde procurar-nos.

Redhorse ficou calado. As reflexões que Bradon acabara de fazer em voz alta não poderiam contribuir para tornar-nos mais otimistas. Se os senhores da galáxia sabiam onde procurar-nos também deviam ter a possibilidade de atacar-nos, fosse qual fosse o tempo em que nos encontrávamos.

Brank voou para perto de mim. Os flocos de neve se derretiam em seu rosto enrugado, dando-lhe um aspecto bizarro. Brank ficou com os olhos semicerrados, dando a impressão de que tinha certa dificuldade em reconhecer-me.

— Está interessado em conhecer minha teoria, Surfat? — disse com a voz entrecortada que era uma das suas características quando estava nervoso.

— Fale, Brank — respondi para animá-lo. Quem o visse dificilmente imaginaria que este anão de aspecto idoso fosse um dos

melhores artilheiros da Crest III. Ninguém pensaria que Brank era capaz de ficar deitado, quieto, concentrando-se unicamente na melhor maneira de atingir uma nave inimiga. Brank parecia antes um alcoólatra degenerado, mas havia algo em seus olhos cansados sem brilho que não combinava com essa impressão.

— Vamos sobreviver a isto e voltar para casa — disse Brank em tom convicto. Fiquei surpreso por ter ouvido estas palavras justamente de sua boca. Brank deu uma risadinha e lambeu alguns flocos de neve que cobriam seus lábios. — Se morrermos aqui, logicamente deixaremos de existir no futuro — disse. — Pense

um pouco, Surfat. Para entrar na armadilha do tempo do planeta Vario, teremos de sobreviver.

— Pare com isso — resmunguei. — Não tenho vontade de discutir o paradoxo do tempo com o senhor. Não dá em nada.

— Mas tem lógica, Brazos! — insistiu Brank. — É perfeitamente lógico. Afastei-me para não ouvir mais tamanha bobagem. À medida que nos afastávamos da

estação, o vento parecia cada vez mais frio e violento. Mas era somente porque minha

Page 312: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

312

resistência estava diminuindo. Meus pés doíam e eu sabia que não demoraria a perder a sensibilidade dos mesmos.

Uma sombra apareceu a meu lado. Era Olivier Doutreval. — Está fresquinho, não está? — perguntou. — Está, sim — confirmei. — Tomara que encontremos logo um lugar em que

estejamos abrigados. — Fico me perguntando sobre o que aconteceu neste meio tempo em Pigell — disse

Doutreval, pensativo. — Será que os homens conseguiram rechaçar os ataques dos termolança-chamas?

— Um dia saberemos — respondi. Doutreval deu de ombros. Não parecia ter tanta certeza. — O senhor também acha que estavam à nossa espera por aqui? — perguntou. — Parece que estavam — respondi. — Os dez tefrodenses de arma em punho

estavam postados bem à frente do transmissor. Certamente ficaram lá para matar imediatamente qualquer criatura estranha que aparecesse. Quer dizer que nosso salto de quinhentos anos para o futuro relativo foi detectado pelos senhores da galáxia.

— É uma sensação esquisita a gente saber que cada passo que se dá está sendo observado — disse Doutreval.

— Tenho certeza de que aqui ninguém nos observa — respondi, contrariado. Olhou-me com uma expressão pensativa. — Tem certeza? O deserto gelado que se estendia embaixo de nós parecia morto e abandonado. Cobria

todos os vestígios da civilização lemurense. Era possível que mais para o sul a paisagem fosse mais alegre. Lá talvez ainda houvesse vida.

— Há alguma coisa lá embaixo! — gritou Papageorgiu de repente. Olhei na direção em que apontava seu braço estendido e distingui uma coluna escura

que sobressaía alguns metros da neve. — É uma árvore! — exclamou Brank em tom exaltado. Olhei para ele e tive pena. O

objeto que se via lá embaixo era artificial. Além disso nenhuma árvore resistiria a estas massas de gelo.

— Talvez seja alguma marcação — opinou Doutreval. — Vamos para lá — decidiu Redhorse. — É a ponta de uma torre! — gritou Papageorgiu, que parecia enxergar melhor que os

outros. — Vejo perfeitamente as antenas quebradas. Se era uma torre e se esta torre possuía antenas, então só podia tratar-se da torre de

teledireção de um antigo espaçoporto lemurense. Passei a respirar mais depressa. Talvez lá embaixo pudéssemos ficar em segurança por algum tempo.

Redhorse usou seu goniômetro portátil. — Estamos sendo perseguidos de novo — constatou. — Parece que os robôs saíram da estação e estão à nossa procura. — Nunca pensei que fôssemos tão importantes para os tefrodenses — disse Bradon. — Para os tefrodenses não somos — retificou Redhorse. — Eles não passam de

instrumentos dos senhores da galáxia. Não têm vontade própria. Somos importantes para os desconhecidos que governam Andrômeda — de repente mudou de assunto. — Lastafandemenreaos, voe para perto desta torre e verifique se existe uma entrada. Tenha cuidado.

— Pois não, senhor — respondeu o jovem astronauta. Encostou os braços ao corpo e juntou as pernas. Caiu que nem uma tábua. Quando

estava bem perto da torre, voltou a abrir os braços e as pernas. Às vezes quase chegava a desaparecer na neve tangida pelo vento.

Page 313: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

313

— Vamos descrever círculos em cima da torre — disse Redhorse. Ligou seu rádio de pulso. — Então? — perguntou. — O que encontrou aí embaixo? Apressei-me em ligar meu rádio, para ouvir a resposta de Papageorgiu. — A torre tem seis ou sete metros acima do gelo — informou o rapaz. — Está tudo

coberto de gelo. Se houver uma entrada, teremos de derreter o gelo que a impede. — Existem indícios de que ainda haja vida lá embaixo? — perguntou Redhorse. Papageorgiu deu uma risada. — Vida? Está tudo congelado. Até parece um freezer. Redhorse fez um sinal. — Vamos atrás dele — decidiu. A ponta da torre era maior do que esperara. Tinha pelo menos trinta metros de

diâmetro e, conforme informara o grego, sobressaía seis metros do gelo. De um dos lados a neve acumulada quase chegava à ponta da torre. Em toda parte havia porções de neve, entre antenas quebradas e amuradas desmoronadas. Havia uma antena solitária, que tinha resistido às forças da natureza. Tremia que nem um talo de capim ao vento. Uma tela de radar derrubada estava completamente coberta de gelo. A torre parecia um tanto arruinada. O gelo que a envolvia em alguns lugares era completamente transparente, mas aumentava e distorcia os objetos que não escondia aos nossos olhos.

Papageorgiu escorregou da ponta da torre, para a galeria tombada na qual nos encontrávamos. Parecia ter caído, pois suas costas estavam brancas de neve e mancava um pouco enquanto se aproximava de Redhorse.

— A entrada fica do outro lado — disse, ofegante. — Está coberta por uma camada de gelo de um metro de espessura.

— Vamos dar uma olhada — disse o major. Em toda parte viam-se aparelhos caídos. Dentro de mais alguns anos a própria ponta

da torre estaria coberta de neve e gelo. Talvez não demorasse mais que alguns meses. A entrada da torre de telecomando tinha um aspecto desolador. Um dos lados fora

esmagado pelo peso do gelo. Algumas travessas metálicas destacavam-se nesta parte. Grandes camadas de neve acumulavam-se de ambos os lados. Precisava-se enxergar muito bem para descobrir a entrada nessa confusão.

— Para trás! — ordenou Redhorse. Tirou a arma energética. O gelo derreteu-se com uma rapidez surpreendente quando

começou a atirar. Massas de neve foram levantadas. A fumaça levantou-se chiando, e por alguns minutos não se distinguia nada.

Finalmente o major suspendeu o fogo. Uma porta aberta, meio desmoronada, apareceu à nossa frente. — É um buraco negro — disse Brank, que não parecia sentir-se muito à vontade. —

Não estou gostando. — Lá dentro não há vento — disse Doutreval. — Já é alguma coisa. O gelo derretido acumulara-se sobre a galeria e já começava a endurecer de novo.

Papageorgiu avançou para a entrada que acabara de ficar desimpedida e enfiou a cabeça por ela. Tirou o farol que trazia preso ao cinto e iluminou o interior da torre.

Em seguida desapareceu dentro da construção. Só se via o raio móvel do farol. Seguimos o grego.

Fiquei aliviado por não estar mais exposto ao vento cortante que tanto nos incomodara do lado de fora. Meus pés pisavam num chão em que não havia gelo. Segui o exemplo dos outros, ligando meu farol. Vimos à luz das lâmpadas que no interior da torre as instalações tinham escapado em grande parte à destruição. Em toda parte viam-se rastreadores e goniômetros. Distingui vários aparelhos dispostos junto às paredes. Ao que

Page 314: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

314

parecia, ainda estavam em condições de funcionamento. No centro da sala ficava a entrada do elevador. Tive minhas dúvidas de que este ainda estava intacto.

O cheiro desagradável dos isoladores queimados, do alcatrão, do óleo, dos metais e dos plásticos enchia o ar.

Não se ouvia nada além do ruído dos nossos passos. — Acho que deveríamos tentar fechar a entrada — decidiu Redhorse. — Além disso

vamos desligar imediatamente nossos projetores antigravitacionais e os campos defensivos individuais. Desta forma nossos perseguidores terão mais dificuldade em encontrar-nos.

Quase me esquecera dos robôs de guerra dos tefrodenses. Papageorgiu e Doutreval retiraram os revestimentos de metal de algumas das máquinas e levantaram uma barricada que fechou a entrada. O rugido da tempestade transformou-se num ciciar quase imperceptível.

— Vamos descer — disse Redhorse, apontando para o elevador. — Talvez lá embaixo encontremos alguma coisa que nos possa ser útil.

A única coisa de que precisávamos era um hiper-rádio. Tive minhas dúvidas de que fôssemos encontrar um. A idéia de penetrar nas profundezas desconhecidas, passando pela torre, fez com que me sentisse um tanto inseguro.

Descobrimos que o elevador estava parado no lugar que menos desejávamos: no ponto mais alto do poço. Redhorse experimentou algumas chaves, mas a gôndola permaneceu imóvel.

— Não há energia — disse Doutreval. — Quem sabe se não existe uma descida de emergência?

Havia uma. Tratava-se de um poço estreito com uma escada metálica de aspecto frágil. Brank apontou para o buraco no chão.

— Não acredito que Surfat passe aqui — disse. — Não tenho tempo para fazer regime. Por isso darei um jeito de atravessar isso —

respondi, furioso. Redhorse iluminou o poço. — Enquanto estivermos neste poço, seremos um alvo fácil de um ataque — disse. —

Mas vamos arriscar. O cheiene foi primeiro. Logo desapareceu. Ouvi as batidas de suas botas nas travessas

metálicas da escada. Brank, Papageorgiu, Doutreval e eu fomos em seguida. Bradon foi o último.

Atingimos o fim do poço e reunimo-nos numa sala alongada de paredes nuas e chão de pedra. Ao contrário do que acontecia do lado de fora, neste lugar quase chegava a ser quente. O ar que respirávamos parecia muito abafado. Talvez fosse apenas o ambiente fechado que me deixava deprimido. Os milhões de toneladas de gelo que nos cobriam não me saíam da cabeça.

Redhorse iluminou o ambiente com o farol antes de começar a falar. Descobriu duas portas.

— Não há dúvida de que nos encontramos no centro de controle de um antigo porto espacial lemurense — disse o major. — O porto propriamente dito já foi totalmente coberto pelo gelo. Deve ter havido uma cidade por perto. Naturalmente foi esmagada pelas massas de gelo, mas sabemos que as cidades lemurenses possuíam extensas instalações subterrâneas.

— O senhor se refere às chamadas cidades-abrigo, que ficavam embaixo dos núcleos residenciais — observou Bradon.

— Isso mesmo — confirmou o cheiene. — Os lemurenses construíram os abrigos para proteger-se até certo ponto contra a grande ofensiva halutense.

Page 315: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

315

— Será que o senhor tem a intenção de entrar na cidade subterrânea? — perguntou Brank. Sua voz era estridente como a de um fantasma.

— Talvez encontremos sobreviventes — disse Redhorse. Bradon tomou o partido de Brank. — Não acha que é muito perigoso, major? — É claro que sim — respondeu Redhorse. — Acontece que neste mundo não existe

nenhum lugar que não seja perigoso. Precisamos de mantimentos e temos de encontrar um meio de entrar em contato com Perry Rhodan.

Lembrei-me dos lemurenses que usavam estes recintos. Era difícil imaginar que este lugar medonho já tivesse sido habitado por seres vivos. Os que tinham vivido e trabalhado neste lugar estavam mortos e há séculos tinham caído no esquecimento. Não havia nada que pudesse trazê-los de volta. Talvez traziam no coração as mesmas aspirações que nos animavam, e era possível que seus pensamentos não fossem muito diferentes dos nossos. Mas nem sequer conhecíamos seus nomes. De repente tive a impressão de que a morte de um ser pensante é uma injustiça, um anacronismo provocado por alguma falha verificada no curso natural da vida. Mas talvez a pequena duração da vida se justificasse pela necessidade de garantir a existência das gerações seguintes, pois só mesmo as gerações eram capazes de criar alguma coisa que não caía logo no esquecimento. No interior desta sala nua minha vida parecia um fenômeno extremamente complicado, uma confusão tremenda de acontecimentos, que por sua vez influenciavam a vida de outros indivíduos, fazendo com que se tornasse impossível identificar o começo dessa avalanche de acontecimentos. Saímos da sala, passando por uma das portas. Redhorse foi na frente. Entramos num corredor comprido. Em um dos lados do corredor havia algumas janelas. Tinham arrebentado, esmagadas pelo gelo.

Admirei-me porque as paredes tinham resistido. Em alguns lugares viam-se rachaduras de vários metros de largura, mas não se notava qualquer desmoronamento. A chegada do gelo fora tão rápida que alguns edifícios tinham sido cobertos por uma camada compacta. Dessa forma os recintos inferiores resistiram ao peso das geleiras. Estas simplesmente tinham passado sobre as massas tremendas de gelo, neve, pedra, vidro e plástico.

No fim do corredor encontramos uma passagem larga, em cima da qual estava pendurado um mapa. Redhorse iluminou-o com a luz de seu farol.

— Um mapa terrestre — disse Doutreval. — Parece que nos encontramos no continente que um dia será a América do Norte —

constatou Redhorse. — Parte do mapa foi impressa com uma tinta especial. Esta tinta provavelmente serve para assinalar a área em que fica o espaçoporto.

— Pode verificar onde fica esta área? — perguntou Papageorgiu com um sorriso forçado. — Gostaria de saber como esta área será chamada no futuro.

— Nasci na América do Norte — respondeu Redhorse. — Quer dizer que conheço mais ou menos este continente. Mas não devemos

esquecer que daqui a cinqüenta mil anos as coisas serão bem diferentes — chegou mais perto do mapa.

— Encontramo-nos mais ou menos a quarenta graus de latitude — disse. — O respectivo paralelo passa por Filadélfia, Denver e Cap Mendocino, na Califórnia. Neste lugar deverá formar-se mais tarde a grande bacia do Nevada.

— Quer dizer que nos encontramos no flanco leste da Serra Nevada — disse Brank. — Mais ou menos — confirmou Redhorse. — Isto naturalmente se o mapa for correto. Redhorse desligou o farol. O mapa desapareceu na sombra da porta. Estávamos na

América do Norte, exatamente no lugar em que gostaria de estar se nos encontrássemos cinqüenta mil anos no futuro.

Page 316: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

316

Seguimos nosso caminho. Depois de uma hora fomos detidos pela primeira vez. Havia uma parede de gelo à nossa frente. A luz de nossos faróis provocava reflexos cintilantes na mesma.

— O gelo pode ter alguns metros e até mesmo alguns quilômetros de espessura — disse Redhorse. — Não adianta tentarmos descobrir sua espessura neste lugar. Vamos procurar outra passagem.

Ficamos vagando pelo menos duas horas nos corredores e salas, até que finalmente encontramos uma possibilidade de avançar na direção escolhida. Já sabia que o nome da cidade que devia ficar nas imediações do porto espacial era Godlar. Descobrimos por causa de várias gravações encontradas nas paredes e em placas de metal ou pedra. Além disso Papageorgiu encontrara uma pintura da cidade. Quando estava no auge de seu desenvolvimento, devia ter sido uma das maiores cidades lemurenses. Mas estava coberta de gelo.

O porto espacial ficava em uma das extremidades de Godlar. Uma infinidade de túneis e corredores subterrâneos ligava a cidade ao porto espacial. Em sua maioria tinham desabado ou estavam cheios de gelo. Mas Redhorse não desanimou, pois queria encontrar a cidade de qualquer maneira. Andamos pelo labirinto de salas e corredores. Muitas vezes nos deslocamos em círculo. Mas Redhorse era um explorador muito hábil. Sempre encontrava um caminho que nos permitia passar ao largo dos lugares mais perigosos.

Algumas horas já se tinham passado, quando Brank disse: — Nunca encontraremos o caminho de volta, Surfat. Nem pensara nessa possibilidade. Mas Brank tinha razão. Como poderíamos orientar-nos nessa confusão de corredores, se fôssemos obrigados

a voltar? Suponhamos que uma grande massa de gelo nos impedisse de seguir para a frente. O que faríamos?

Morreríamos de fome antes de encontrar a torre de telecomando. Não morreríamos de sede, pois seria fácil derreter o gelo.

— Na cidade certamente encontraremos um caminho que leve à superfície — respondi.

Via-se que Brank não acreditava nisso. Apressei-me em sair do feixe de luz de seu farol.

Dali a alguns minutos encontramos um obstáculo que não fora criado pela natureza indômita. O corredor largo pelo qual avançávamos estava bloqueado por placas metálicas. Don Redhorse examinou o obstáculo.

— Este bloqueio foi levantado às pressas — afirmou depois de algum tempo. — Serve para impedir que o gelo ou algum intruso chegue à cidade.

— Não acredito que isto pudesse impedir os halutenses de chegarem lá — observou Papageorgiu.

— É claro que não — concordou Redhorse. — Mas não devemos esquecer que os lemurenses se sentiam desesperados. Imaginavam que o fim estava próximo. Se escapassem das armas halutenses, ainda haveria o perigo de se tornarem vítimas das geleiras.

Ficamos lado a lado e acionamos nossas armas energéticas para queimar um buraco na blindagem. Esperamos que o metal esfriasse e atravessamos a abertura assim criada. Do outro lado também não havia nenhuma luz, mas o corredor estava livre de obstáculos.

— Tenho a impressão de que deste lado do bloqueio está um pouco mais quente que do outro lado — disse Doutreval.

— Em compensação o ar é mais viciado — observou Brank, contrariado. Iluminávamos constantemente os lugares mais próximos com os faróis.

Page 317: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

317

Nada indicava que ainda houvesse vida neste lugar. De vez em quando encontrávamos um pequeno posto de controle. Limitamo-nos a examinar um deles. Havia poeira espalhada nas mesas e máquinas. Nenhum dos aparelhos ligados aos condutores principais de energia estava funcionando, o que provava que o suprimento fora interrompido. Parecia que todas as usinas geradoras de Godlar tinham deixado de funcionar.

— Temos de dar um jeito de chegar às cidades-abrigo mais profundas — disse Redhorse. — Aqui não encontraremos nada além de casas abandonadas e esqueletos de lemurenses mortos há muito tempo.

No fim o corredor tornou-se mais largo, transformando-se numa praça gigantesca, cujo teto era formado por gelo. Mais ou menos no centro da gigantesca caverna criada pela natureza o gelo chegava ao chão. Fazia muito frio.

Embaixo do gelo descobrimos as paredes externas de vários edifícios. Algumas delas saíam para fora, que nem braços indefesos que se estendessem para pedir auxílio. Nossos passos provocaram um eco sombrio nas curvas infinitas da caverna. O gelo brilhava em todas as cores. Os produtos químicos congelados atravessavam a camada que nem veios de ouro e prata.

De repente Brank encontrou o cadáver de um lemurense. O artilheiro soltou um grito estridente e estacou. O farol que segurava na mão tremia.

À sua frente havia um bloco de gelo, em cujo interior se encontrava um ser humano envolto em trapos. O morto estava com os olhos arregalados. Havia uma expressão de pânico em seu rosto.

— Provavelmente foi surpreendido pelo gelo — balbuciou Brank. — Nada disso — respondeu Redhorse. — Esta criatura ainda não está aqui há muito

tempo. Foi congelada de propósito. Inclinou-se sobre o bloco de gelo e pegou uma placa metálica que havia embaixo dele.

Havia alguma coisa gravada na chapa. Alguém escrevera em letras desajeitadas algumas palavras em tefrodense: Morte ao Plath!

— Quem ou o que é o Plath? — perguntou Papageorgiu. — Não sei — respondeu Redhorse. — Acho que ainda nos defrontaremos com seres

vivos. Ao que parece, os sobreviventes da catástrofe não mantêm relações muito amistosas entre si. O que acabamos de encontrar leva a crer que aqui embaixo há pelo menos duas facções que se combatem.

Finalmente consegui tirar os olhos de cima do morto. — Não acha que deveríamos voltar, senhor? — cochichou Brank. — Nada disso — respondeu Redhorse. — Este cadáver prova que por aqui deve haver

um estabelecimento habitado. Vamos procurá-lo. — Não estou com vontade de ser sepultado num bloco de gelo — observou Brank,

indignado. — Se quiser, pode voltar. Sozinho — disse Redhorse. Brank deu-lhe as costas sem dizer uma palavra. Sabia que não teria a menor chance

de encontrar a torre. — Daqui em diante — decidiu Redhorse — teremos mais cuidado. Todos ficarão com

as armas destravadas. Somente aquele que vai na frente poderá usar o farol. Ao menor sinal de perigo, ele será imediatamente desligado.

Atravessamos a caverna. Quando chegamos do outro lado, encontramos os destroços de uma casa. Atrás dela havia um corredor estreito que atravessava o gelo. De repente ouvimos um chiado.

— Parem! — ordenou Redhorse e apagou o farol.

Page 318: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

318

O chiado repetia-se a intervalos regulares. Parecia sair diretamente dos destroços da casa.

— Que será? — perguntou Papageorgiu com a voz abafada. Estava tenso. Parecia não ver a hora de se envolver novamente numa luta. — Se há alguém por lá, ele certamente já nos viu — disse Bradon em meio à

escuridão. — Isso mesmo — confirmou Redhorse. O cheiene voltou a acender o farol. Vi-o aproximar-se dos destroços. Não tínhamos

alternativa. Éramos obrigados a seguir o major. As chapas de plástico com as quais fora construída a casa estavam cobertas de cristais de gelo. Estavam tão lisas que os pés quase não tinham onde apoiar-se.

Redhorse avançou em direção à fonte do ruído com a segurança de um cão de fila. De repente uma nuvem de vapor apareceu no feixe de luz. O feixe foi caminhando e parou em cima de um tubo grosso. Em uma das extremidades do tubo havia uma válvula, que se abria a intervalos certos, soltando uma nuvem de vapor. Olhamos para o tubo como quem se depara com um milagre.

Senti os músculos da barriga se entesarem. Aquele tubo, que retirava o excesso de pressão de algum sistema de dutos, parecia escarnecer do gelo mortal. Era um desafio lançado pela vida em meio a uma cidade destruída.

Vi o major estender a mão, devagar, mas com uma resolução que não permitia a menor dúvida de que levaria o movimento até o fim. Redhorse tocou o tubo e recuou instantaneamente. Estremeci sem querer.

— Está quente — informou o cheiene laconicamente. Começamos a falar todos ao mesmo tempo. No reino do gelo em que nos

encontrávamos um tubo aquecido parecia ser uma coisa fora do comum, o rastro que nos conduziria à vida.

— Vem de baixo — prosseguiu Redhorse. — Provavelmente sai das cidades-abrigo. Fomos tocando o tubo um após o outro. Quase chegamos a acariciá-lo com as mãos

frias, como se fosse uma preciosidade. Redhorse iluminou os escombros. Ao que parecia, esperava encontrar outro tubo.

— O senhor acredita que alguém vive embaixo destes escombros? — perguntou Doutreval.

— Acho bem provável — respondeu Redhorse. Fiquei me perguntando por que o major tinha tanta certeza. Afinal, um tubo quente e

um cadáver congelado não chegavam a ser uma prova definitiva. — Como faremos para encontrar a entrada para o mundo das profundezas, senhor?—

perguntou o Tenente Bradon. — Temos de procurar — respondeu Redhorse. — Já sabemos que nas cidades-abrigo

existe pelo menos uma fonte de calor. Revistamos durante meia hora os escombros da casa, mas não encontramos nenhum

caminho que levasse às profundezas. Finalmente Redhorse deu ordem para que fizéssemos uma pequena pausa.

— Meu estômago está roncando — anunciou Papageorgiu, depois que tínhamos encontrado um lugar em que podíamos descansar com certo conforto. — Está na hora de encontrarmos alguma coisa para comer.

— Se as coisas ficarem mesmo pretas, matamos Surfat — disse Brank. — Com o volume de suas carnes poderemos sobreviver pelo menos um mês.

— Eu o mato com uma ponta de gelo — ameacei. — Vou... Fui interrompido por um ruído. Pus a mão no farol. Redhorse e Bradon foram mais

rápidos que eu. Os feixes de luz passaram rapidamente pelos escombros de plástico.

Page 319: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

319

A sete metros do lugar em que estávamos havia um rato enorme no chão, olhando para nós. Seus olhos brilhavam. Parecia que nossa presença não o incomodava nem um pouco. Era um animal feio, de pele fosca e rabo curto. As orelhas do rato tremiam, enquanto as patas dianteiras arranhavam nervosamente a superfície lisa de um fragmento de plástico.

— Que animal é este? — exclamou Brank. — Já viu um rato deste tamanho, senhor? — Não — respondeu Redhorse sem abalar-se. Pôs a mão na arma energética, sem

fazer qualquer movimento rápido. O rato notou o movimento e com um salto desapareceu entre os escombros. Um ruído

ligeiro, e o silêncio voltou a reinar. Brank pôs-se a praguejar. — Ele sabia — disse Bradon em tom violento. — Sabia que o senhor queria atirar

nele. — Calma, tenente — retrucou Redhorse. — Talvez tenha sido um acaso ele ter fugido

no momento em que ia pegar a arma. — Pois este animal parece muito inteligente. — Como pode ter tanta certeza? — perguntou Papageorgiu, calmo. — Para mim todos

os ratos parecem feios e bobos. Ouvimos Brank coçar o queixo. O arranhar que produziu me deu um calafrio. Não

conseguia livrar-me da idéia de que havia ratos à espreita em todos os lugares, observando nossos passos.

— Não foi um rato igual a qualquer outro — insistiu Brank. — Era maior que um rato comum, e possuía inteligência.

— Vamos embora! — decidiu Redhorse. Parecia ter percebido que estávamos muito nervosos para continuar neste lugar. — Onde há ratos também existe gente — disse Doutreval depois que tínhamos

deixado para trás os escombros e quando já penetrávamos no corredor estreito que levava diretamente para dentro do gelo.

Redhorse seguiu novamente na frente. De vez em quando via seu rosto na luz do farol. Era magro e quando não se viam os olhos parecia uma máscara. Mas a impressão desaparecia assim que se visse seus olhos negros, cheios de vida e sentimento.

O corredor ficou tão baixo que tivemos de andar encurvados. Mas nem por isso Redhorse parecia disposto a voltar para a grande caverna. Depois de algum tempo tivemos de andar de quatro. Esfolei as costas e os quadris na superfície áspera das paredes. O ar era tão viciado que apesar do frio comecei a transpirar. Atrás de mim Brank praguejava sem parar. Fiquei me perguntando por que um homem que só via o lado negativo das coisas tinha sido engajado na Frota Solar.

“Bem”, pensei num assomo de ironia, “no espaço cósmico ele pode soltar seu veneno.” O corredor foi ficando mais largo e alto. Pudemos andar com o corpo reto e

respirávamos melhor. Redhorse não fez nenhum comentário sobre a mudança. Parecia ter previsto tudo com o instinto infalível do índio.

O corredor terminou num edifício relativamente bem conservado. Redhorse afastou os restos de uma porta. Iluminou cuidadosamente a sala que ficava à nossa frente, antes de entrar nela.

Devia ter sido uma sala de estar particular, pois em vez das máquinas que estávamos acostumados a encontrar havia peças de mobiliário simples. Papageorgiu deixou-se cair numa poltrona de linhas abstratas e esticou as pernas compridas.

Redhorse examinou os papéis espalhados pela mesa. Alguns estavam mofados e desmancharam-se ao toque dos seus dedos.

Papageorgiu puxou outra poltrona, para descansar seus pés enormes. — Que bobagem é essa? — exclamei, indignado.

Page 320: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

320

Sua despreocupação o tornava antipático aos meus olhos, embora soubesse perfeitamente que não tinha motivo para recriminá-lo.

— O senhor também deveria descansar um pouco — sugeriu, apontando para as poltronas desocupadas.

Doutreval caminhava de um lado para outro e iluminava o chão. Brank estava de pé ao lado de Bradon, e falava sem parar em tudo quanto era espécie de rato que vira em sua vida.

— É a primeira vez que vejo um bicho como este — afirmou. — Nada — disse Redhorse, varrendo os papéis da mesa com um único movimento da

mão. — Vamos examinar as outras salas. — O que descobriu nestes papéis? — perguntou Bradon. Redhorse deu uma risada. — Intimações — disse. — As pessoas às quais foram dirigidas estas mensagens foram

intimadas a não demorar tanto no pagamento de suas dívidas. Para os lemurenses que receberam estas cartas, pensei, elas devem ter sido muito

importantes. Mas agora, quinhentos anos depois, quando estávamos examinando os edifícios, estas intimações já não tinham a menor importância.

Fomos à sala vizinha. Estava às escuras, mas do outro lado havia uma faixa de luz. Redhorse levantou o braço. Paramos na entrada. Redhorse iluminou cuidadosamente o chão com a luz de sua lanterna. Depois de algum tempo vimos que a luz entrava por uma porta semi-aberta. Era uma luz variável, que a intervalos regulares se tornava menos intensa.

— Parece que por lá há um fogo aceso — disse Redhorse, calmo. Redhorse desligou a lanterna. Ficamos parados na escuridão, escutando. Não se ouvia

nada. — Não vamos usar as lanternas! — disse Redhorse. — Não façam nenhum ruído.

Iremos até a porta. Fomos entrando na sala escura. De repente ouvi a porta pela qual tínhamos vindo ser

fechada ruidosamente. Estremeci. Antes que pudesse pensar alguma coisa, uma luminosidade intensa encheu a sala. Fechei os olhos.

— Não façam nenhum movimento — disse alguém num tefrodense pouco compreensível.

Quando voltei a abrir os olhos, estávamos cercados por uma dezena de figuras esfarrapadas. Usavam armas estranhas, que estavam apontadas para nós. Os homens andavam encurvados e tinham os olhos afundados nas órbitas. A pele era muito branca. Até parecia que tinha sido branqueada com produtos químicos.

— Não somos inimigos — disse Redhorse. O porta-voz dos desconhecidos era um homem alto e barbudo, de uma magreza

incrível. Segurava uma barra metálica com uma ponta na extremidade. Parecia orgulhar-se da arma que carregava. Vi que era o único que não usava arma de fogo.

— Vocês pertencem ao grupo dos cientistas? — perguntou o homem. — Não pertencemos a nenhum grupo — respondeu Redhorse, esquivando-se. No meu

íntimo felicitei-o pela resposta que acabara de dar. Não podíamos saber quem eram os membros do grupo dos cientistas, e se estes eram amigos ou inimigos dos homens que nos tinham atraído para a armadilha.

O barbudo cravou a lança no chão, bem à frente de Redhorse. — Vieram da superfície? — perguntou. — Do sul? O homem deu um passo na direção do major. — De que cidade? Redhorse levantou os ombros.

Page 321: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

321

— Se no lugar do qual viemos houvesse cidades, não estaríamos fuçando na área das geleiras — respondeu.

— Viemos para procurar uma das grandes cidades — acrescentou Chard Bradon. O barbudo ficou refletindo por um instante. Seus companheiros começaram a ficar

nervosos. Fiz votos para que seu chefe possuísse bastante autoridade para impedi-los de caírem sobre nós.

— Encontraram o que estão procurando? — perguntou o lemurense. — Encontramos Godlar — respondeu Redhorse, amargurado. — Uma cidade morta

sepultada embaixo de geleiras enormes. O homem alto fez um gesto abrangente. — De Godlar só restam mesmo os poucos edifícios que os senhores encontraram —

respondeu em tom dramático. — Mais nada. — E as cidades-abrigo? — perguntou Redhorse. Fiquei surpreso ao ver o lemurense sorrir. — Vocês sabem de sua existência? — Naturalmente — respondeu Redhorse. — Planejamos a expedição por muito

tempo. — O que vieram procurar nesta cidade? — Procuramos uma espaçonave — respondeu Redhorse, calmo. O barbudo fitou-o com uma expressão pensativa. De repente deu uma estrondosa

gargalhada. Alguns dos seus companheiros acompanharam-no. Finalmente o desconhecido voltou a acalmar-se.

— Uma espaçonave! — repetiu, sacudindo a cabeça. — Não acredito que neste planeta ainda exista uma. — Se não existir, nós construímos — disse Redhorse sem abalar-se. Desempenhava

muito bem seu papel. Não tive a menor dúvida de que os desconhecidos acreditavam em tudo que dizíamos.

— Trouxeram alguma coisa para comer? — perguntou o barbudo. — Para comer? — Redhorse respondeu que não. — Estamos com fome. Esperávamos

que por aqui encontrássemos alguém que pudesse dar-nos alimentos. O barbudo suspendeu a jaqueta esfarrapada, deixando à vista as costelas salientes.

Foi um quadro desagradável. O lemurense passou o dedo pelas costelas. — Por aqui não há comida — disse. — Se tiverem sorte, poderão roubar um pouco de

mingau sintético. Mas não acredito que consigam. Antes disso serão descobertos pelos espiões do Plath. Quando o Plath e o bando dos cientistas descobrirem que vocês são pensadores falhos, seus dias estarão contados.

— Quem é Plath? — quis saber Redhorse. — O soberano deste submundo — respondeu o barbudo em tom odiento. — Ele e o

bando dos cientistas governam os poucos sobreviventes da cidade de Godlar. — Mas não governam o senhor, desconhecido — conjeturou Redhorse. O grande lemurense sacudiu a cabeça num gesto obstinado. — Sou um pensador falho. Estes são meus amigos. Combatemos os cientistas e o

Plath. — O senhor acaba de aludir aos espiões do Plath — lembrou Redhorse. — Quem são

eles e como são? — Se encontrar por aí um rato enorme — respondeu o barbudo — então é bom que

saiba que se trata de um espião do Plath. — Eu sabia que não era um rato igual a qualquer outro! — gritou Brank, triunfante. O lemurense virou-se abruptamente. — Já viu um rato destes?

Page 322: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

322

— Vimos — respondeu Redhorse. O barbudo levantou o braço. A luz apagou-se. Ouvimos o farfalhar das vestes, o

rastejar dos pés descalços no chão frio. Logo voltou a reinar o silêncio. Redhorse ligou a lanterna e iluminou a sala.

— Foram embora — constatou Papageorgiu. — Fugiram — retificou Bradon. — Quando ficaram sabendo que vimos um rato,

saíram correndo. Gostaria de saber o que significa isso. Quem são estes tipos esfarrapados, que se chamam de pensadores falhos?

Alguns segundos se passaram antes que o major respondesse. — Já sabemos que os dois partidos que existem aqui embaixo estão informados sobre

nossa presença. Com os pensadores falhos já falamos, mas não conseguimos praticamente nada. Só falta encontrarmos o Plath ou alguém que pertença ao bando dos cientistas. Lá deve haver alguma coisa para comer.

Page 323: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

323

3 Levamos mais de uma hora revistando a casa, mas não encontramos o menor sinal

dos pensadores falhos. Parecia não haver nenhum acesso para as cidades-abrigo situadas mais embaixo. O goniômetro de Redhorse mostrava que havia uma fonte de energia que ficava em nível inferior ao nosso, mas o aparelho não podia guiar-nos para o submundo.

— E agora, senhor? — perguntou Bradon abatido, quando voltamos a reunir-nos em um dos recintos inferiores.

— Parece que dependemos do auxílio dos outros — confessou Redhorse. — Se não encontrarmos alguém que conheça isto aqui, não conseguiremos ir adiante.

Neste momento entrou um homem. Até parecia que entendera as palavras de Redhorse. Vi imediatamente que pertencia ao grupo dos barbudos, que fugira há mais de uma hora. Pus a mão na arma. Redhorse também pegou seu desintegrador.

O homem estendeu as mãos abertas, para mostrar que não queria lutar. Havia uma arma energética bem visível na sua jaqueta rasgada.

— Que deseja? — perguntou Redhorse em tom áspero. — Meu nome é Saith — disse o homem, calmo. — Posso ajudá-los. Redhorse examinou com uma expressão desconfiada a figura magra. Saith era de

estatura mediana e tinha uma corcunda. Os cabelos eram tão cheios que antes pareciam um capacete sujo. Alguém — provavelmente fora o próprio Saith — os cortara com muita arte, para que não entrassem nos olhos. Saith até usava sapatos.

— E os espiões do Plath? — perguntou Redhorse. — Não tem medo deles? — Tenho — resmungou Saith. — Temo-os mais do que a qualquer outra coisa neste

mundo. Mas de qualquer maneira acabarão me descobrindo. Juntando-me ao seu grupo, pelos menos terei uma chance de chegar à superfície e ir para o sul.

— Deve ser o preço da ajuda que está nos oferecendo — disse Redhorse em tom irônico.

Saith acenou com a cabeça. Não disse uma palavra. Era feio e estava sujo, mas gostei dele, porque tinha um jeito direto de dar suas opiniões e formular seus desejos.

— Está bem, Saith. Leve-nos à cidade-abrigo — disse Redhorse. — Ao reino do Plath? — perguntou Saith, espantado. — Só mesmo um louco iria

voluntariamente para lá. — Vai mostrar-nos o caminho? — Vou — respondeu Saith. — Não posso voltar mais para junto de Paroso. Paroso devia ser o lemurense que comandava o grupo dos pensadores falhos. — Diga-me uma coisa — pediu Redhorse. — O que se deve fazer para ser um

pensador falho? Saith sorriu, o que não contribuiu em nada para tornar seu rosto sujo mais atraente. — É fácil. Basta ter uma opinião diferente da do Plath e dos cientistas. É quanto basta

para despertar a atenção dos espiões. — Não acredito que estes espiões existam — observou Papageorgiu. — Se Existissem,

aquelas ratazanas seriam capazes de ler pensamentos. — É só esperar— disse Saith. — O senhor não demorará a descobrir que é como lhe

digo. — Estamos cansados e com fome — interrompeu Redhorse. — Leve-nos à cidade-

abrigo, Saith. Saith foi na frente. Esperara que ele nos mostrasse um caminho oculto que levasse

para baixo, mas para minha surpresa ele nos levou a um andar superior. Entramos numa

Page 324: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

324

sala que possuía uma única janela. A luz das lanternas iluminou o gelo que se amontoara à frente do edifício.

Saith abriu a janela e inclinou-se para fora. Passou por ela sem dar qualquer explicação. Vimo-lo passar com muita agilidade por cima de algumas pedras de gelo, descendo cada vez mais. Dali a pouco não o vimos mais.

— Sigam-me! — disse depois de algum tempo. — Não estou gostando — disse Bradon. — Tenho a impressão de que este cara é um

espião do Plath que quer fazer-nos entrar numa armadilha. — Já não vejo a hora de ver o que há por aqui — disse Redhorse, zangado. Saltou para o peitoril da janela. De repente ouviu-se um rangido vindo de fora. Parecia

uma gigantesca placa de metal sendo esfregada em outra. Saith voltou a aparecer. — Escutem! — gritou. — É a geleira que está passando em cima de Godlar. Dentro de

pouco tempo destruirá este edifício — baixou a cabeça. — Quando isso acontecer, só sobrará o submundo.

Tentei imaginar as massas de gelo imensas que cobriam Godlar. Qualquer movimento delas podia ser nosso fim.

Redhorse saiu da janela. A sorte tinha sido lançada. Seguimos Saith para o reino do misterioso Plath.

* * *

O caminho que Saith nos mostrou parecia passar diretamente por uma montanha de

gelo. Cada passo era um perigo, porque a descida era muito íngreme e o chão se tornara escorregadio. Saith teve de parar muitas vezes, para esperar que o seguíssemos. Andava no gelo como quem caminha num sólido chão de areia. O lemurense não dizia uma palavra. Perguntei a mim mesmo se ele sabia que desconfiávamos dele.

Finalmente acabou o gelo. Entramos numa sala parecida com uma caverna, cujo teto e paredes estavam cobertos por um reboco áspero.

— Ainda está na hora de o senhor resolver se quer mesmo ir adiante — disse Saith a Redhorse.

— O senhor sabe aonde queremos ir — disse Redhorse. — Sei — respondeu Saith e estreitou as vestes em torno do corpo emagrecido pela

fome. — Para onde foi o grupo de seu amigo barbudo? — perguntou Bradon. — Sei lá! — respondeu Saith. — Aqui embaixo existe um sem-número de salas e

corredores. Um pensador falho não pode dar-se ao luxo de ficar muito tempo no mesmo lugar.

— Será que ele tentará atacar-nos? — Paroso? — perguntou Saith com uma risadinha. — Deste o senhor não precisa ter

medo. Não é muito corajoso. Redhorse dirigiu a luz da lanterna para o rosto de Saith, mas o pensador falho parecia

não importar-se com isso. — Paroso é um daqueles homens que sempre estão fugindo — disse Saith. — Nunca

se arriscará a entrar espontaneamente numa luta. De repente o rosto de Saith assumiu uma expressão de alerta máximo. De um instante

para outro aquele homem ficou numa tensão incrível. Seu rosto magro adquiriu o aspecto de uma ave de rapina. Saith nem parecia notar nossa presença. Sua atenção concentrava-se exclusivamente em alguma coisa que não víamos.

De repente atirou.

Page 325: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

325

Foi tão rápido que nenhum de nós poderia ter reagido em tempo se o tiro fosse disparado contra nós. Depois do chiado do tiro energético ouviu-se um rangido. Em seguida voltou a reinar o silêncio.

— Iluminem este canto — disse Saith antes que nos recuperássemos da surpresa. Dirigimos a luz das lanternas para o lugar indicado por Saith.

Os restos mortais de um rato estavam jogados no chão. — Aproveitem para ver de perto um dos espiões de Plath — disse Saith, indiferente. Aproximamo-nos do cadáver. A cabeça do animal estava intacta, mas a maior parte do

corpo se dissolvera na energia do tiro. Assim mesmo vimos que aquele rato nunca vivera no sentido biológico do termo. O que vimos à nossa frente eram os restos de um robô muito bem construído.

— Então são estes os espiões — disse Redhorse. — Devem estar equipados com câmaras e radiotransmissores.

— O senhor acredita que este espião é o mesmo com quem já nos encontramos antes? — perguntou Bradon, dirigindo-se a Saith.

— Tomara — respondeu o pensador falho. — Como pôde notar a presença do robô? — perguntou Papageorgiu. Saith ficou com os olhos semicerrados. Parecia ser de opinião que a pergunta não se

justificava. — A gente se acostuma a derrubá-los — disse. — Acho que com este já são quatorze

espiões que liquidei. — Nunca imaginei que nas cidades-abrigo ainda houvesse a possibilidade de fabricar

robôs como este — disse Redhorse, espantado. — O bando dos cientistas não é capaz de construir máquinas deste tipo — disse Saith

em tom de desprezo. — Estes robôs são uma das coisas que restaram da guerra contra os halutenses. Seus rastreadores mentais foram regulados para atacantes deste povo. Acontece que já não existe nenhum halutense neste planeta. O Plath mandou reprogramar os espiões que restavam. Pode teleguiá-los a partir de seu centro de comando. Assim fica sabendo imediatamente se aparecer um inimigo em qualquer lugar.

— Quantos destes robôs espiões existem por aí? — perguntou Brank. — Cerca de dez mil — respondeu Saith. Pensei que não tivesse entendido bem, mas o tom sério e calmo em que foram ditas

estas palavras mostrava que o pensador falho estava dizendo a verdade. Saith apontou para o outro lado da caverna. — É ali que começam os abrigos — explicou. — Se entrarmos nos corredores

subterrâneos, nossos encontros com espiões serão cada vez mais freqüentes. Eles avisarão o Plath sobre nossa presença, a não ser que consigamos matá-los imediatamente. Se isso acontecer, seremos mortos pelas armas que estão escondidas em toda parte. Nestes corredores existem inúmeros sistemas de armamento que só podem ser controlados a partir do centro de comando do Plath

— um sorriso matreiro apareceu no rosto de Saith. — Bem, os senhores já sabem quase tudo. Ainda querem arriscar-se a descer?

— Queremos — respondeu Redhorse. — Por que concorda em acompanhar-nos, já que é tão perigoso?

— Já disse que quero ir para o sul — lembrou Saith. — Além disso estou com fome. Seguimos nosso caminho. Entramos num corredor estreito. Saith mandou que

desligássemos as lanternas. — A luz atrai os espiões do Plath — explicou. — Sei encontrar meu caminho mesmo

no escuro. Além disso quase todas as salas que ficam deste lado são iluminadas.

Page 326: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

326

Meu cansaço tinha desaparecido. Foi substituído por uma vigilância intensa. Preferia que Redhorse não se tivesse metido nesta operação. O que tínhamos descoberto sobre o reino das profundezas por certo não podia contribuir para que eu me sentisse mais seguro. Poderíamos dar-nos por satisfeitos se voltássemos à superfície com vida. Era uma injustiça, mas no meu íntimo eu acusava o major por não ter entrado em luta com os robôs da estação tefrodense. Assim talvez teríamos conquistado a estação.

Logo abandonei a idéia. Redhorse fizera exatamente o que era certo nas circunstâncias.

Saith, que caminhava na frente, não fazia o menor ruído. Perguntei a mim mesmo quantas vezes já andara rastejando por este lugar. Devia haver inúmeros corredores que levavam à cidade-abrigo. Se o corredor que usávamos fosse o único, os inimigos não teriam a menor dificuldade em fechá-lo hermeticamente.

Esbarrei em Papageorgiu, que andava à minha frente. Papageorgiu colocou as mãos enormes em meus ombros e pediu que parasse. Mais adiante Redhorse e o pensador falho conversavam aos cochichos. As ordens do major foram transmitidas de um homem para outro.

— Daqui em diante não podemos fazer nenhum barulho — disse Papageorgiu ao meu ouvido.

Transmiti a ordem a Brank, que era o último de nosso pequeno grupo. Brank segurou-me com uma das mãos.

— Que acha do procedimento de Redhorse? — sussurrou. — Não estou com vontade de falar nisso agora — respondi. — Desconfiei desse maldito rato desde o início — resmungou Brank. — Alguma coisa

dentro de mim me diz que... Não fiquei sabendo o que havia dentro de Brank. Papageorgiu tirou a mão enorme de

cima de meu ombro e segurou o pulso de Brank. — Quieto! — chiou o grego. Brank livrou-se da mão de Papageorgiu, mas ficou quieto. Fiquei satisfeito com a

intervenção do grego. Quando Brank começava a expor uma coisa, ele não acabava mais. Seguimos nosso caminho. O fato de que Papageorgiu andava à minha frente deixou-

me mais tranqüilo. Alguém que quisesse agarrar-me teria de passar primeiro pelo jovem gigante — e isso não seria nada fácil. Atrás de mim a situação não era tão tranqüilizadora, pois Brank não era um bom combatente.

Depois de algum tempo clareou à nossa frente. Entramos numa sala grande, cujas paredes tinham sido revestidas com madeira envernizada. O piso era de plástico transparente, com símbolos circulares negros incrustados.

Saith foi para o centro da sala. A luz vinha de três luminárias dispostas a intervalos regulares no teto.

— Aqui antigamente eram realizadas as reuniões — disse Saith com a voz abafada. — A sala ficou durante muitos anos em estado lastimável, mas o Plath mandou arrumá-la, embora não seja usada mais.

O Plath, fosse lá quem fosse ele, parecia ter suas fraquezas. — Há um sistema de armamentos escondido embaixo da luminária do centro — disse

Saith. — Trata-se de alguns bocais que desprendem um gás de ação rápida. Para isso basta que o Plath ou um dos seus ajudantes aperte certo botão no centro de comando.

— O Plath está em condições de observar esta sala? — perguntou Doutreval. — É claro que está — respondeu Saith, estalando os dedos. — Mas os cientistas não

podem controlar todas as salas ao mesmo tempo. Por isso temos boas chances de passar. Saith podia ser um homem faminto e degenerado, mas covarde ele não era.

Page 327: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

327

Atravessamos a sala sem qualquer incidente e entramos num corredor largo, que também estava iluminado.

— Está vendo aquela porta de um dos lados do corredor? — perguntou Saith. — Lá costumavam ficar os comandantes da cidade de Godlar, quando os halutenses avançavam cada vez mais. Agora estas salas são usadas como depósitos pelos adeptos do Plath.

Saith voltou a ir na frente. Esperei que a qualquer momento uma das portas se abrisse e dela saísse um bando de soldados. Mas tudo continuou quieto. Saith abriu uma porta, para provar que dissera a verdade. A sala que ficava atrás dela estava repleta de sacos cheios.

— É o extrato seco que serve para a fabricação do mingau sintético — explicou Saith prontamente.

— Quem se alimenta exclusivamente com isto perde os cabelos e os dentes e acaba ficando cego.

— Sem dúvida — confirmou Saith. — O Plath mandou construir várias estufas, que consomem grande parte da energia gerada pela última usina que ainda resta. Lá são cultivados legumes e coisas parecidas. Mas estas delícias só são para o Plath e seu bando de cientistas.

— Conte-nos alguma coisa sobre o bando de cientistas — pediu Redhorse. — São sete homens, inteiramente dedicados ao Plath — informou Saith. — São

poderosos, porque são os únicos que controlam as máquinas e usinas que ainda restam. Há alguns anos havia mais um posto subterrâneo perto de Godlar. Mas ali não vivia nenhum cientista. Os lemurenses que viviam lá dependiam do auxílio dos cientistas do outro posto. Quando se insurgiram contra certas medidas do Plath, o bando suspendeu o fornecimento de energia para eles — Saith suspirou.

— Morreram de fome e de frio. Depois disso quase ninguém se arrisca a agir contra o Plath e o bando.

Acreditei nele. Os lemurenses que viviam aqui embaixo dependiam do pequeno calor e da alimentação escassa que encontravam. O suprimento de energia só podia ser garantido por homens que possuíssem os necessários conhecimentos. E os conhecimentos sobre as diversas máquinas provavelmente só eram transmitidos a uns poucos eleitos.

— Quem é o Plath? — perguntou Redhorse. — Ninguém nunca o viu — disse Saith. — Só sei uma coisa. É um monstro que deveria

ter morrido há muito tempo. — O senhor não deveria ter dito isso, Saith! — disse uma voz retumbante que encheu

todo o corredor. — Os forasteiros que vieram visitar-me certamente querem fazer sua própria imagem a respeito de minha pessoa.

Saith deixou cair os ombros. Seu gênio resoluto, que causara tanta admiração, parecia tê-lo abandonado de repente. Ficamos parados, tentando localizar a origem da voz misteriosa. Imitei os outros puxando a arma energética que trazia no cinto.

— Deixem suas armas onde estão, senhores — disse a voz. — Se quisesse, já poderia tê-los matado.

Olhei para o rosto de Saith. O pensador falho abriu os braços. Havia um brilho de loucura em seu rosto. De repente a luz apagou-se.

Saith deu um grito. Este grito exprimia todo o pavor de uma criatura martirizada, a impotência de quem sente que as forças o abandonaram. Minha mão, que segurava a arma, tremeu.

Neste instante Saith tornou-se incandescente. Parecia um boneco de vidro iluminado de dentro para fora. A energia misteriosa que fazia brilhar seu corpo criou uma bolha cintilante em torno do infeliz. Os olhos de Saith transformaram-se em duas bolinhas de

Page 328: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

328

vidro brilhantes, enquanto a boca, que ainda se abria no grito de pavor, parecia lançar feixes de chamas para a escuridão do corredor.

Saith cambaleou. A bolha de energia luminosa que o envolvia acompanhou o movimento.

De repente Saith estourou. Dissolveu-se em cascatas de fogo e redemoinhos de uma luminosidade azulada. Dali a instantes voltou a reinar a escuridão.

Ouvi Brank gemer bem baixo. A luz voltou a acender-se. Não se via mais sinal de Saith. — É impressionante — disse Redhorse entre os dentes. — Precisava ter matado este

homem para dar uma prova de sua força, Plath? Uma risada de deboche saiu dos alto-falantes escondidos. — Fico à sua espera — disse a voz estrondosa. — Vamos voltar enquanto ainda é tempo, senhor — disse Chard Bradon. O jovem oficial ficara profundamente abalado pela morte de Saith. — O senhor acha que o Plath permitirá que saiamos daqui? — perguntou Redhorse.

— Deve estar observando todos os nossos movimentos. E ouve cada palavra que dizemos. — Ouve, mas não entende, enquanto não falarmos o tefrodense — objetou Bradon. Era isso mesmo, mas não havia como contestar a opinião de Redhorse, segundo o qual

naquele momento não poderíamos arriscar-nos a sair da cidade-abrigo. Devíamos penetrar mais profundamente no reino do Plath. Era nossa única chance. Se tentássemos voltar, nosso destino seria o mesmo de Saith.

Mas desconfiei de que, cedendo à vontade do Plath, só estaríamos adiando o momento da execução. O soberano de Godlar nos mataria assim que descobrisse tudo que queria saber. O alimento neste lugar era muito escasso, e o Plath e seu bando certamente não estariam interessados em ter mais seis bocas para alimentar.

A Terra do ano 49.488 antes do nascimento de Cristo poderia ser tudo, menos um lugar agradável. Mas no momento não tínhamos saída. Não tínhamos como ir à superfície ou voltar para o ano 2.404, do qual tínhamos saído, para derrotar os senhores da galáxia.

* * *

Alguns minutos depois da morte de Saith apareceram alguns robôs espiões de ambos

os lados do corredor. Ao que parecia, tinham sido enviados para vigiar-nos e mostrar o caminho. As máquinas com aspecto de rato não mostraram nenhum medo. O Plath parecia ter certeza de que não atiraríamos em seus policiais.

— Entramos na armadilha do Plath — disse Bradon. Estava apenas exprimindo aquilo que todo mundo pensava. Tive a sensação nada

tranqüilizadora de que entráramos num gigantesco mecanismo de destruição, que funcionava com uma precisão incrível.

“Foi só a esperança que manteve vivo um homem faminto como Saith”, pensei. Mas bem no íntimo o pensador falho devia ter imaginado que não escaparia.

Os robôs espiões espalharam-se de ambos os lados do corredor, deixando uma passagem que podíamos usar.

— Meus amiguinhos estão armados — disse a voz do desconhecido saída dos alto-falantes invisíveis. — Não cometam o erro de atirar neles quando acharem que se encontram numa situação favorável.

Os ratos movimentaram-se. Redhorse fez um sinal. Acompanhamos os robôs através de várias salas. Deslizavam pelo chão bem à nossa frente, dando a impressão de que nem tomavam conhecimento de nossa presença.

— Será mesmo que estes bichos estão armados? — cochichou Brank, que andava a meu lado.

Page 329: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

329

— Não sei — respondi, zangado. — E nem estou interessado em descobrir. Brank levantou os braços, num gesto de desespero. — Temos de fazer alguma coisa — disse. — Quem dá as ordens por aqui é o major — lembrei. Brank ficou com os olhos semicerrados. Parecia que estava refletindo. Imaginei que poderia ser bastante louco para fazer uma bobagem. Resolvi ficar de

olho nele, para que não criasse problemas. — Se o senhor e eu abrirmos fogo contra estes ratos, obrigaremos os outros a ajudar-

nos — disse Brank. — Que acha, Surfat? — Não acho nada! — respondi em tom áspero. — Trate de ficar quieto, senão ainda

comunicarei suas idéias ao major. Pensei que Brank ficasse zangado, mas ele deu uma risada. Estávamos numa sala de teto muito baixo. Havia uma rede de cabos presa ao teto.

Alguns controles estavam dispostos nas paredes. Muitos deles estavam iluminados, o que era um sinal de que havia energia.

Os ratos levaram-nos à sala seguinte, que era guarnecida com móveis pesados. Havia poltronas, cadeiras e mesas. Atrás de uma das janelas via-se a imitação de uma paisagem que quase parecia verdadeira. Tapetes grossos abafavam o ruído de nossos passos. Os alto-falantes escondidos transmitiam uma estranha música. A porta fechou-se atrás de nós. De repente os ratos desapareceram.

Como sempre, Papageorgiu foi o primeiro a conformar-se com a nova situação. Deixou-se cair numa poltrona e suspirou.

— Finalmente podemos descansar um pouco — disse. — Está na hora de dormirmos. Redhorse e Doutreval examinaram a sala. Quanto a mim, preferi sentar perto de

Papageorgiu. Brank estava de pé junto à entrada. Seus olhos revistavam o chão. Parecia não acreditar que os ratos tinham desaparecido. Tentou abrir a porta. Estava trancada.

Estávamos presos na sala. Redhorse e Doutreval descobriram uma pequena cabine de banho. — Olhe — pediu Papageorgiu. — Parece que fizeram tudo para garantir nosso bem-

estar. Doutreval mexeu nos registros. Ouvi o ruído da água. — Está funcionando — exclamou o pequeno rádio-operador, entusiasmado. —

Permite que tome um banho, senhor? Ouvi um ruído vindo da porta e virei a cabeça. A porta estava sendo aberta. Por ela

entrou um homem alto. Pelo que pude ver, não estava armado. Trajava manta azul muito simples. Uma agulha enfeitava os cabelos longos. O queixo saliente mostrava que o homem tinha uma vontade muito forte. Linhas finas, quase invisíveis, atravessavam seu rosto. O homem cruzou os braços sobre o peito e contemplou-nos sem dizer uma palavra.

— Por enquanto considerem-se hóspedes do Plath — disse finalmente com a voz agradável. — Nesta sala podem fazer o que desejarem. Mas não tentem fugir.

— O senhor é o Plath? — perguntou Redhorse. — Pertenço ao bando dos cientistas — respondeu o homem. — Meu nome é

Kro'artruth. — Quando veremos o Plath? — perguntou Redhorse. — Quando estiverem descansados — respondeu o cientista. — O Plath não quer

interrogá-los enquanto estiverem com fome e cansados. — Quer dizer que receberemos alguma coisa para comer? — indagou Bradon. — Sem dúvida — prometeu Kro'artruth. Respirei aliviado. A idéia de uma refeição quente fez com que o futuro me parecesse

um pouco menos sombrio.

Page 330: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

330

— O que acontecerá depois que o Plath nos tiver interrogado? — perguntou Redhorse.

O lemurense sorriu com uma expressão cortês, mas não respondeu. Despediu-se com um aceno de cabeça e saiu.

— Assim que o Plath souber tudo a nosso respeito, ele mandará matar-nos — disse Bradon, deprimido. — E não tenham dúvida de que o interrogatório não será nem um pouco suave.

— Pelo menos vamos comer alguma coisa, menino — respondi para consolá-lo. — Para o senhor eu sou o Tenente Bradon! — gritou, indignado. — Além disso seria

bom que pensasse em outra coisa além de encontrar um meio de encher a barriga. Estava nervoso. Era a única explicação para sua reação violenta. — Peça desculpas ao Tenente Bradon — disse Redhorse. Obedeci, mas prometi a mim mesmo que na primeira oportunidade diria àquele

menino o que pensava dele. Parecia ter-se esquecido de que éramos velhos amigos. — Pode tomar seu banho, Olivier — disse Redhorse. — Acho que nas próximas horas

não temos nada a temer. Dali a instantes Doutreval começou a assobiar embaixo do chuveiro. A idéia de que

iria caminhar para a morte, limpo e bem penteado, não parecia incomodá-lo nem um pouco.

Neste instante Brank, ao qual ninguém dera atenção, puxou a arma. — Sinto o cheiro deles! — gritou. — Estão em toda parte, escondidos embaixo do

tapete e das poltronas. Não sentem seu cheiro? Não os ouvem? Daqui a pouco cairão sobre nós.

Redhorse deu dois passos em sua direção e bateu em sua mão, obrigando-o alargar a arma. Brank resistiu enquanto o major o arrastava ao banheiro.

— Um banho frio lhe fará muito bem — disse o cheiene.

Page 331: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

331

4 Não sabia quanto tempo tinha dormido. Acordei com alguém sacudindo meu ombro.

Papageorgiu estava inclinado em cima de mim. Um sorriso amável se espalhava por seu rosto de menino.

— Levante, Brazos! — gritou. — Nossa escolta chegou. Pisquei os olhos, confuso. Levei alguns segundos para orientar-me. Os sonhos que

tinham enchido minha mente eram mais agradáveis que aquilo que estava para vir. Redhorse e Bradon estavam de pé no centro da sala. O cientista com o qual já tínhamos falado se encontrava na entrada. Desta vez viera armado. Havia três robôs espiões agachados a seus pés.

Levantei e coloquei o traje de combate. Felizmente os lemurenses pareciam não conhecer quanto valia este equipamento. E, por estranho que possa parecer, não tinham tirado nossas armas. O Plath e seus ajudantes deviam sentir-se muito seguros.

— Vim para levá-los para serem interrogados — disse Kro'artruth. Brank estava parado ao lado de Bradon. Tinha a cabeça baixa. Provavelmente já ficara

bom de novo e envergonhava-se pelo momento de fraqueza que tivera. Compreendi o que se passava na mente do artilheiro. Se a gente pensasse no número de anos que nos separava de nosso mundo era capaz de enlouquecer. Brank era um tipo pensativo. Talvez fosse tão malvado porque levava as coisas muito a sério. Seria melhor para ele mesmo se não desse tanta importância a certas coisas.

Levantei. Os outros já estavam prontos. Kro'artruth passou os olhos por nosso pequeno grupo.

— Está bem — disse, satisfeito. — Vamos andando. Fez meia-volta e já ia saindo, mas lembrou-se de uma coisa.

— Em hipótese alguma usem suas armas — recomendou. — Isso só poderá causar-lhes dificuldades.

Levou-nos a uma sala cujo chão estava revestido com ladrilhos claros. As paredes também eram brancas. Uma luz forte, vinda do teto, caía sobre nós. Parecia uma sala limpa que nem uma clínica.

Em meio à claridade Kro'artruth até parecia uma figura sobrenatural. Seus movimentos serviam para reforçar esta impressão. Parou no centro da sala. Os ratos ficaram perto dele que nem cães adestrados.

— Esperem aqui! — ordenou o cientista. Estalou os dedos. Seis poltronas cromadas rolaram em nossa direção. — Façam o favor de sentar — pediu Kro'artruth. — E se nós nos recusarmos? — perguntou Redhorse. — Os senhores são muito inteligentes para isso — disse o lemurense com um sorriso. O major fez um sinal com a cabeça. Examinei com certo cuidado a poltrona destinada

a mim. A primeira vista parecia não haver nada de anormal, mas logo vi inúmeros cabos no lugar em que ficaria a cabeça. Além disso havia algemas de aço na altura dos braços e das pernas, e não podia haver a menor dúvida sobre a finalidade delas.

Compreendi que, se sentasse nesta poltrona, nunca mais levantaria. Uma lavagem cerebral da pior espécie estava preparada para nós.

— Seremos interrogados nesta sala? — perguntou Redhorse, que parecia querer ganhar tempo. Até então ninguém sentara.

O cientista sacudiu a cabeça, impaciente.

Page 332: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

332

— As poltronas os transportarão para a sala vizinha, onde o Plath já está à sua espera — respondeu.

— Tudo bem — disse Redhorse para meu espanto. Vi-o chegar perto de uma das poltronas e passar a mão por ela. O resto foi tão rápido

que só pude agir instintivamente. Vi Redhorse ligar o projetor antigravitacional com um movimento quase imperceptível. Deu um salto para cima. Os ratos que se encontravam perto de Kro'artruth rolaram que nem um relâmpago para o lugar em que Redhorse estivera pouco antes, mas os estiletes metálicos que saíram de suas bocas abertas atingiram o vazio.

Papageorgiu atirou-se sobre Kro'artruth, que provavelmente esperara que os espiões quebrassem prontamente qualquer resistência que se verificasse. O gigantesco astronauta jogou o cientista à sua frente e empurrou-o para dentro de uma poltrona. Robôs espiões vieram rolando de todos os lados. Apressei-me em também ligar meu projetor.

— Plath! — gritou Papageorgiu. — Chame de volta seus espiões, senão este homem morrerá agora mesmo.

Apertou o pescoço de Kro'artruth com um dos braços. O cientista perdeu a postura compenetrada e gemeu assustado. Voei para o alto. Embaixo de mim o chão estava repleto de ratos, mas já estávamos todos embaixo do teto, com exceção de Papageorgiu.

— Venha cá para cima! — gritou Redhorse para o grego. O rapaz não obedeceu. Segurava o cientista com uma das mãos, enquanto com a outra

se agarrava à poltrona. Empurrou-se com os pés no chão, e a poltrona saiu rolando para a porta que ficava do outro lado da sala.

Os ratos saíram do caminho. Parecia que o comandante invisível não sabia o que fazer. De repente uma nuvem de fumaça branca que parecia vir diretamente da parede deslocou-se em direção à poltrona. Papageorgiu abaixou-se. Kro'artruth ficou envolto na nuvem por alguns instantes. Quando ela se desfez, o cientista estava paralisado, coberto por uma fina camada de gelo.

— Projetores de frio! — gritou Redhorse. — Desista, Lastafandemenreaos. A poltrona bateu na parede e tombou. Peguei minha arma e comecei a atirar nos ratos

que saíam correndo em direção a Papageorgiu, que cambaleava. Kro'artruth jazia no chão, imóvel.

O projetor de frio voltou a entrar em atividade, mas Papageorgiu já se abrigara atrás da poltrona. Também tirara sua arma e atirava nos ratos que corriam por todos os lados.

— Temos de sair daqui! — gritou Redhorse. O cheiene dirigiu-se à porta e fomos atrás dele. Os robôs espiões agitavam-se que nem

uns loucos, mas no lugar em que estávamos, embaixo do teto, não podiam alcançar-nos. Quando chegamos à porta fomos atingidos pelo raio frio, mas os campos defensivos individuais evitaram que isto fosse nosso fim.

Papageorgiu alcançou-nos. Batemos a porta atrás de nós. — Temos de fugir para um corredor lateral! — gritou Redhorse. Toda vez que saíamos de uma sala éramos obrigados a chegar perto do chão, para

atravessar a porta. Quando já tínhamos atravessado quatro salas, conseguimos livrar-nos dos robôs espiões. Retiramo-nos para um corredor lateral que não estava iluminado.

Redhorse não nos deu nenhum descanso. — Não podemos ficar aqui — disse. — O Plath sabe perfeitamente onde encontrar-

nos. E da próxima vez ele não se deixará pegar de surpresa. Não tive a menor dúvida de que só fôramos salvos por enquanto porque o Plath e

seus ajudantes se sentiam muito seguros. Da outra vez não teríamos nenhuma chance de fugir.

Page 333: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

333

Uma idéia que andara na minha cabeça o tempo todo tomou forma em meu consciente. Perguntei-me por que não estava em condições de aceitar este planeta, do qual sabíamos que era a Terra, como meu mundo. Era como se me tivesse encontrado pela primeira vez com um parente próximo, sem que conseguisse estabelecer um relacionamento mais estreito com ele.

Era uma coisa que ainda tínhamos de aprender. Não era somente a distância no espaço, mas também os grandes intervalos no tempo que transformavam um planeta num lugar estranho. Meus conhecimentos sobre as características do desastroso salto pelo tempo que tínhamos dado eram de natureza puramente científica. Meu sentimento ainda não se conformara com o fato de estarmos vivendo cinqüenta mil anos no passado de meu planeta.

Com os outros devia acontecer a mesma coisa. Voamos pelos corredores da cidade-abrigo Godlar. Redhorse não deixou passar

nenhuma oportunidade de enganar nossos perseguidores. Usamos pequenos corredores secundários e procuramos desesperadamente uma galeria que levasse para cima.

Dali a pouco entramos em salas que não estavam iluminadas. Tivemos de ligar nossas lanternas. O Plath e seus adeptos não mantinham este lugar limpo e arrumado. Em alguns lugares os tetos tinham desabado. Havia detritos malcheirosos espalhados pelo chão. Máquinas enferrujadas e cabos rasgados reforçavam a impressão de que se tratava de um mundo agonizante.

O Plath e seu bando de cientistas também acabariam sucumbindo às massas de gelo. Estariam perdidos, a não ser que fugissem para as regiões quentes do sul. Mas não acreditava que os lemurenses mais importantes concordassem em sair da cidade-abrigo, pois isso os obrigaria a renunciar ao poder que exerciam.

Pelos meus cálculos devíamos ter atravessado mais de cem salas, quando o Major Redhorse parou num nicho espaçoso, que era relativamente limpo. Iluminamos todos os cantos, para não sermos surpreendidos por eventuais robôs espiões.

— Os lemurenses levarão algum tempo para encontrar-nos, a não ser que possuam rastreadores — disse o cheiene.

— Precisamos comer e dormir, senhor — lembrou Bradon. — Tenho minhas dúvidas de que por aqui encontremos alguma coisa para saciar a fome.

— Podemos montar acampamento aqui — decidiu Redhorse. — É um lugar fácil de defender, embora não devamos esquecer-nos de que pode transformar-se numa armadilha. Por isso colocaremos sentinelas do lado de fora. Dois homens de cada vez sairão à procura de alimentos. Temos de fazer um prisioneiro que possa mostrar-nos o caminho para a superfície ou levar-nos para perto de um hiper-rádio.

Discutimos a situação, mas ninguém teve uma sugestão melhor. Só não conseguimos chegar a um acordo sobre os meios que usaríamos para capturar um lemurense. Concordamos com Rhodan, segundo o qual o homem não deveria ser aprisionado perto de nosso esconderijo, mas não sabíamos onde se encontravam os lemurenses.

A única coisa que podíamos fazer era aguardar uma oportunidade favorável. Mas até lá precisaríamos de alimentos e água potável. No lugar em que nos encontrávamos não havia gelo que pudéssemos derreter, e o caminho que levava para cima estava fechado.

Era bem verdade que Kro'artruth nos fornecera uma refeição, mas já estava na hora de recebermos um reforço em mantimentos.

— Doutreval ficará de sentinela no primeiro turno — decidiu Redhorse. — Lastafandemenreaos e Brazos sairão à procura de alimentos. Os outros descansarão — dirigiu-se ao jovem grego. — Não assuma nenhum risco. Não estaremos bem servidos se em vez dos alimentos esperados aparecer por aqui um bando de lemurenses armados.

Papageorgiu sorriu da forma despreocupada que lhe era peculiar.

Page 334: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

334

— Pode confiar em nós, major. Fitei Redhorse com uma expressão pensativa. — Talvez seria preferível que Papageorgiu fosse acompanhado por um homem mais

ágil — objetei. — Não se esqueça de que me canso facilmente. Não sei se poderei ser muito útil a...

Bastou um olhar do oficial para que me calasse. — O senhor é um tipo confortável, Brazos — disse. Os cantos de sua boca tremeram.

— Mas tenho certeza de que seu instinto o guiará diretamente para as panelas de carne de Godlar.

— Um homem cansado não tem instintos — retruquei contrariado. — Espere até que o perfume de um bife suculento lhe entre pelo nariz — disse

Papageorgiu. — Isso certamente despertará seus instintos. Saí do nicho juntamente com Papageorgiu. Doutreval, que estava encostado junto à

entrada, cumprimentou-nos com um aceno de cabeça. — O senhor sabe qual é meu prato predileto, Brazos — disse. — Dessa forma a

escolha será mais fácil. Amaldiçoei-o no meu íntimo e esforcei-me para não ficar atrás do astronauta, que se

esforçava rapidamente. — Por que não usamos os projetores antigravitacionais? — perguntei. — Faz questão

de pisar a sujeira espalhada por aí? — Precisamos chegar a um acordo para resolver quem assume o comando — disse

Papageorgiu. — Sou aspirante a oficial. Daí... — Desisto de boa vontade do comando — respondi. — Se quiser, atravessarei montanhas de lixo. Papageorgiu deu uma risada. Continuamos andando. Tive de fazer um grande esforço

para guardar na memória as salas e corredores que atravessávamos. Dali a pouco não estava mais em condições de encontrar o caminho de volta.

— Acha que voltaremos a encontrar o nicho? — perguntei. — Temos os goniômetros e os rádios de pulso — respondeu Papageorgiu. — Além

disso tenho boa memória. — É preferível confiarmos em sua memória — sugeri. — Poderemos facilmente ser detectados pelos lemurenses, se usarmos os aparelhos. Prosseguimos nas buscas. De repente fomos interrompidos por um estranho ruído,

cuja origem era difícil de determinar. Papageorgiu foi para perto da parede e encostou o ouvido à mesma.

— O ruído vem da sala que fica do outro lado desta parede — afirmou. O feixe de luz de sua lanterna iluminou a sala. — Infelizmente não existe nenhuma passagem.

Fiquei a seu lado e pus-me a escutar. — Parece uma máquina — conjeturei. — Onde há máquinas há gente. E onde há gente existe comida — disse Papageorgiu. — Não se esqueça do perigo que correremos — respondi. Papageorgiu foi para a porta, mas logo voltou. — O corredor afasta-se da misteriosa máquina — disse. — Parece que deste lado da

cidade-abrigo não chegaremos ao destino. — Talvez a máquina seja o destino do senhor — observei. — Meu não é. O grego iluminou o teto. O feixe de luz parou numa reentrância quadrada que havia

no teto. — O que será? — perguntou Papageorgiu. Dei de ombros. Mas Papageorgiu nem esperou minha resposta. Ligou o projetar

antigravitacional. Ficou suspenso embaixo do teto, examinando a reentrância.

Page 335: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

335

— Suba! — disse. — Aqui existe uma passagem. Enquanto subia, descobri vestígios da fixação de uma escada na parede. Chamei a atenção de Papageorgiu.

— A escada foi tirada — disse. — Mas a passagem por cima continua aberta. Ouvi-o gemer. Finalmente conseguiu afastar um pedaço quadrado do teto, que cedeu

rangendo. Ajudei-o. O alçapão caiu para trás. Não pudemos evitar que batesse violentamente no chão.

— Foi o gongo com o qual anunciamos nossa presença aos lemurenses — observei. — Tomara que o ruído das máquinas tenha abafado a pancada. Subimos à sala que ficava em cima. Fazia mais frio. Ouvíamos perfeitamente o ruído

da máquina, ou fosse lá o que fosse. O chão era formado por grades metálicas finas. Nossos passos as faziam tilintar, por

mais que nos esforçássemos para pisar devagar. Iluminamos o recinto. As paredes eram de um cinza sujo, e os fungos e depósitos de calcários lhes davam o aspecto de um gigantesco mapa que mostrasse um mundo estranho. O teto era baixo, com algumas rachaduras, e as poucas lâmpadas penduradas nele estavam rachadas ou enferrujadas. Embaixo das grades metálicas parecia haver condutos de ar de uma instalação de climatização que já fora posta fora de uso há muito tempo.

Do outro lado a sala descrevia uma curva e tornava-se mais estreita, o que fez com que tivesse certa semelhança com um corredor. Entramos nesta parte da sala. Tive a impressão de que o zumbido da máquina invisível se tornara ainda mais forte.

Papageorgiu parou. — A máquina deve ficar bem embaixo dos nossos pés — disse em tom indiferente. Essa indiferença deixou-me um tanto irritado. Preferia que soltasse uma piada tola,

mas a atenção com que examinava o lugar parecia ocupar totalmente sua inteligência. Achei inexplicável que um homem que parecia tão indiferente como Papageorgiu pudesse concentrar-se exclusivamente em determinado assunto.

Senti-me velho perto dele. Desejei que cometesse alguma falha, para que pudesse desmascarar prontamente sua pretensa incapacidade, sua leviandade juvenil. Em alguma coisa cada geração de astronauta se diferenciava da anterior, e os velhos sentiam-se postos de lado pelos mais jovens. Só concordara em entregar-lhe o comando porque esperara que logo pudesse chamar sua atenção para alguma coisa que provasse que era incapaz de cumprir a tarefa.

Minha presença não parecia incomodar Papageorgiu nem um pouco. Fez o que tinha de ser feito. E fez isso com calma e cuidadosamente.

— Parece que a máquina fica bem embaixo de nós — disse, interrompendo minhas reflexões. — Vamos lá, Surfat! Levante estas grades no chão. Quem sabe se aqui não existe também um buraco no teto?

Cada grade tinha cerca de meio metro quadrado. — Não acha que deveríamos abrir algumas a maçarico? — sugeri e peguei minha

arma. — Espere aí! — disse Papageorgiu. Suas mãos enormes seguravam uma grade que balançava um pouco. A luz de nossas

lanternas permitiu que visse os músculos do braço de Papageorgiu se levantarem tanto que ameaçaram romper a manga de seu uniforme. A grade cedeu. Papageorgiu colocou-a cuidadosamente no chão. Dali em diante seria mais fácil soltar as outras.

— O senhor é muito forte — observei num elogio feito a contragosto. — Também depende de um pouquinho de jeito — respondeu o grego, calmo. — A

gente tem de esperar o momento certo. Iluminei seu rosto e vi que não estava sorrindo. Percebi espantado que estivera

falando sério.

Page 336: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

336

As câmaras da instalação de climatização estavam cheias de sujeira. Afastamos a mesma e examinamos o teto da sala que ficava embaixo. Mas só encontramos o alçapão depois de termos afastado mais sete grades.

— Talvez haja lemurenses lá embaixo — observei. — Acha que devemos mesmo levantar o alçapão?

— Farei isso com cuidado — prometeu Papageorgiu. Levantou o alçapão alguns centímetros. A luz penetrou pela fresta. — Desligue as lanternas — cochichou Papageorgiu. Deitamos no chão e espiamos para a sala de baixo. Depois que meus olhos se

habituaram à claridade, vi algumas gamelas que atravessavam a sala de lado a lado. Nelas estava sendo preparada uma massa branquicenta. Entre as gamelas havia uma máquina retangular, da qual vinha o ruído que tínhamos ouvido no andar de baixo. Atrás das gamelas havia um lemurense sentado numa poltrona, que registrava alguma coisa num livro que mantinha apoiado sobre os joelhos. De vez em quando olhava para as gamelas. Ao lado da poltrona havia uma série de comandos, que provavelmente serviam para controlar as operações da máquina instalada na sala.

— Que tal? — perguntou Papageorgiu. — Que coisa branca será esta que está nas gamelas? — perguntei. — Mingau sintético — respondeu Papageorgiu imediatamente. — O cheiro não é muito apetitoso — cochichei. — O que lhe dá tanta certeza? — O cheiro me faz vir à lembrança a refeição que nos foi dada por Kro'artruth. Parece

que os lemurenses usam esta matéria-prima para fabricar os mais variados alimentos. Mas não tenho a impressão de que consigam tirar o cheiro desta coisa, quer ela seja formada em forma de bife ou como guisado.

— Se descermos, este sujeito nos verá — disse. — Poderíamos matá-lo primeiro — opinou Papageorgiu. — Está falando sério? — Não sei. O senhor seria capaz de dar o tiro? — Não — respondi em tom violento. — Seria um assassinato. Afinal, a criatura que

está sentada lá não é nenhum monstro, mas um ser humano. — O senhor não pensa em termos universais — reclamou o grego. — Sabe tão bem

quanto eu que existem seres chamados de monstros que são mais humanos que muitos homens.

— O senhor acha que este é o momento adequado para esta espécie de discussão? — perguntei.

Papageorgiu franziu a testa. Parecia antes decepcionado que aborrecido, mas não disse por quê.

— Temos de resolver se só carregaremos um pouco de alimento, ou se também levamos este sujeito — disse depois de algum tempo.

— Quer prendê-lo? — Não acha que é uma boa idéia? É possível que nunca mais tenhamos uma chance

como esta. — Uma chance para um suicídio? Nossa conversa foi interrompida quando mais um homem entrou na sala de baixo.

Estava com as vestes esfarrapadas e aproximou-se muito humilde do lemurense sentado na poltrona. O recém-chegado levantou a cabeça e por pouco não soltei um grito quando vi seu rosto. Era um rosto de múmia. A boca aberta estava desdentada, e os olhos sem cor fitavam o nada. Era um cego.

O homem sentado na poltrona deu um pontapé na pobre criatura, que caiu ao chão e começou a choramingar. Dali a instantes o homem levantou da poltrona, pegou uma concha

Page 337: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

337

e mexeu na massa de uma das gamelas. Tirou uma porção de mingau sintético e jogou-a no chão à frente do cego, que engoliu gulosamente a massa fumegante.

Fiquei tão enojado que pensei que iria vomitar. — É um pensador falho que tem de experimentar o mingau sintético — disse

Papageorgiu. — Parece que ainda se sente grato por isso. Lembrei-me de que Saith dissera que o uso prolongado do mingau sintético

degenerava o organismo e provocava a cegueira. Lá estava a prova. — É um procedimento desumano! — exclamei, nervoso. — Pelo menos já sabemos o que pensar de Plath — disse Papageorgiu, zangado. O pensador falho acabara de devorar sua ração e implorava por mais alimento. Levou

um pontapé violento e saiu choramingando. O lemurense voltou a sentar na poltrona e concentrou-se em seu livro.

Alguns minutos se passaram em silêncio, enquanto observávamos o que se passava lá embaixo. O cego voltou a aparecer na entrada e aproximou-se do lemurense.

O homem fechou o livro e levantou os olhos, enojado. — Dê o fora! — gritou na língua tefrodense. O cego atirou-se no chão e choramingou, pedindo compaixão. O controlador levantou

de um salto e aproximou-se. Abaixou-se para golpeá-lo. Foi o fim. De repente a criatura que parecia indefesa tirou uma lança curta de dentro dos trapos

que cobriam seu corpo. Golpeou o lemurense, que soltou um grito. Por uma fração de segundo vi seu rosto

desfigurado pela dor. Finalmente caiu ao chão. Uma horda de pensadores falhos entrou correndo. Não deram atenção aos dois homens caídos no chão. Correram para junto das gamelas e comeram às pressas. Esforcei-me em vão para ver se reconhecia Paroso ou um dos homens pertencentes ao seu grupo. Parecia que os atacantes eram de outro partido. O cego também recebeu sua parte. A repugnante orgia gastronômica durou alguns minutos. Os pensadores falhos desapareceram, carregando o cego.

Papageorgiu abriu o alçapão e saltou para a sala de baixo. Saiu planando em direção ao controlador que jazia imóvel. Segui o rapaz. Tive a impressão de que estava sendo muito imprudente. Os robôs espiões não demorariam a aparecer.

Fomos parar perto do lemurense. Papageorgiu ajoelhou perto dele. O lemurense gemia bem baixo. — Seus ferimentos são mortais — disse Papageorgiu. — Não conseguiríamos levá-lo ao nosso esconderijo. O ferido abriu os olhos. — Um forasteiro! — disse, falando com dificuldade, ao ver o rosto de Papageorgiu. — Por aqui existe uma passagem que leve à superfície? — perguntou Papageorgiu. — Os senhores pertencem ao grupo de forasteiros que vivem no sul? Papageorgiu acenou com a cabeça. — Como estão as coisas por lá? — perguntou o moribundo. — Também existe gelo, ou

o sol ainda brilha com toda força? Papageorgiu sacudiu-o fortemente. Uma espuma sangrenta apareceu nos lábios do

homem gravemente ferido. Apalpou com a mão a lança cravada em seu peito. — Se quiser ver como é o sul, o senhor tem de mostrar-nos o caminho para a

superfície — disse Papageorgiu. Um sorriso doloroso apareceu nos lábios do ferido. — A usina de força principal — disse com a voz quase imperceptível. — Por cima da

usina de força principal o gelo é tão fino que... Sua voz falhou. O homem acabara de consumir suas últimas reservas de energia.

Page 338: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

338

— Isso não adianta — disse Papageorgiu. — Não sabemos onde fica a usina de força. Voltou a sacudir o lemurense. — Pare de maltratá-lo — gritei em tom áspero. — Não vê que ele vai morrer de um

instante para outro? Pela primeira vez vi-o zangado. — O que quer que eu faça? — fungou. — Estamos a cinqüenta mil anos do tempo em

que estamos acostumados a viver. Se tratarmos um criminoso como este com luvas de pelica, nunca voltaremos. Além disso — acrescentou em tom resignado — ele já está morto.

Levantou e foi para a parede, onde estavam pendurados alguns recipientes. Encheu-os com mingau sintético e prendeu-os ao cinto.

— Isto chega — disse. — Só para alguns dias — objetei. — Não ficaremos em liberdade aqui embaixo mais que alguns dias — respondeu o

grego. Tive minhas dúvidas de que estivesse em condições de ingerir o alimento sintético,

depois das cenas que presenciara no interior da sala. Ouvi um ruído e virei abruptamente a cabeça. Levei alguns segundos para

compreender que o alçapão pelo qual tínhamos entrado se fechara. Alguém nos cortara a retirada.

Page 339: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

339

Interlúdio O agente do tempo Rovza entrou na sala do transmissor juntamente com os outros

quatro sobreviventes da estação do tempo da Terra. Rovza sabia perfeitamente que não tinham sobrevivido graças ao seu desempenho no combate ou em virtude de uma hábil estratégia, mas simplesmente porque não se encontravam na sala do transmissor quando os quatro monstros saíram do aparelho juntamente com seis astronautas.

Os robôs tinham destruído os quatro monstros e estavam perseguindo os seis desconhecidos que conseguiram sair da estação e chegar à superfície. Rovza não acreditava que os seis homens sobrevivessem muito tempo nas geleiras.

— Tragam os cadáveres para o transmissor! — disse Rovza aos companheiros. O agente do tempo era um homem

alto. Os olhos grandes, que dominavam o rosto, davam-lhe uma expressão demoníaca. Os movimentos de Rovza costumavam ser bruscos. O jeito de andar dava-lhe certa dignidade, embora às vezes parecesse um tanto desajeitado.

Rovza esperou pacientemente que seus ajudantes colocassem os cadáveres dos dez tefrodenses na sala do transmissor.

Rovza não trabalhava. Era um dos eleitos, um homem colocado bem acima dos duplos. Às vezes Rovza se surpreendia com a idéia de que preferiria ser um membro insignificante do exército dos duplos, um nada sem nome, que se limitava a executar ordens estúpidas de forma também estúpida. Mas tinha suas dúvidas de que uma vida como esta o libertaria de uma série de dolorosas indagações.

Certa vez Rovza subira à superfície num traje especial, e levara algumas horas caminhando pela neve e pelo gelo. De vez em quando alguns raios débeis de sol filtravam pelas nuvens. Durante a excursão Rovza refletira sobre si mesmo e sobre seu trabalho. Experimentara uma satisfação quase mórbida ao dar-se conta de que vivia para levar a morte aos inimigos de seus chefes. Mais tarde esta idéia passara a integrar-se firmemente em seu consciente. Muitas vezes o perturbava no trabalho.

De qualquer maneira, disse a si mesmo o agente do tempo, seus chefes deviam continuar a confiar nele.

Perguntou a si mesmo se a morte de dez duplos e a fuga de seis inimigos provocaria uma mudança em seu relacionamento com os senhores da galáxia. De repente deu-se conta de que, apesar de seu poder quase incomparável, não sabia de uma coisa: quando seria morto! A morte era certa, porque os senhores da galáxia eram chefes muito impacientes.

Page 340: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

340

Rovza já se acostumara a aceitar a morte que ocorreria não sabia quando como uma coisa inevitável. Tratava-se de um acontecimento que ficava bem longe no futuro.

Os dez cadáveres foram colocados no transmissor e os pensamentos de Rovza voltaram à realidade.

— Executaremos o cerimonial de sempre — disse. — Bellogh, leia o ritual da morte. Um homem magro adiantou-se e pronunciou três frases. — Quem ligará o transmissor? — perguntou Rovza. Os outros quatro responderam em coro: — Rovza, o agente do tempo! Rovza aproximou-se dos comandos. Segurou a chave por meio da qual arremessaria

os dez cadáveres para o nada entre as dimensões. Ninguém sabia onde sairiam os mortos, seus átomos flutuariam para todo o sempre no hiperespaço.

Rovza moveu a chave. Uma luminosidade apareceu no arco negro do transmissor. A luminosidade diminuiu e um dos homens entrou no transmissor e informou Rovza de que os mortos tinham iniciado sua viagem eterna.

— E os robôs? — perguntou Bellogh. — Vamos chamá-los de volta? A pergunta deixou Rovza um tanto confuso. Sabia que a resposta não podia demorar.

Não se devia demonstrar qualquer tipo de insegurança diante dos subalternos. — Não — decidiu. — Os robôs continuarão a perseguir os forasteiros. O que deixava Rovza preocupado era a morte dos dez guardas da estação que tinham

ficado à espera dos forasteiros. A idéia de que os senhores da galáxia pudessem responsabilizá-lo por isso deixou Rovza indeciso. Estava tudo em suspenso, numa situação irreal, na qual a morte de Rovza já não era um acontecimento situado num futuro incerto, mas transformara-se num perigo real, que influenciava todos os seus pensamentos.

De repente o transmissor voltou a entrar em funcionamento. Rovza sacou imediatamente a arma, pois receava que outros inimigos aparecessem no aparelho. Mas no receptor do aparelho só apareceu uma cápsula metálica alongada.

Rovza sentiu-se aliviado e preocupado ao mesmo tempo. Os senhores da galáxia costumavam enviar suas ordens neste tipo de cápsula. Será que aquilo era a notícia de que Rovza fora destituído do posto de comandante da estação?

Rovza conseguiu controlar os nervos. Deu ordem para que um dos homens fosse buscar a cápsula.

Segurou-a nas mãos, abriu a tampa e tirou uma folha estreita, na qual estavam impressas as ordens. Sentiu um alívio extraordinário quando viu que seus chefes não pensavam em destituí-lo, muito menos em destruí-lo. Só estavam dando novas instruções.

— É um plano do tempo — disse Rovza aos seus ajudantes, enquanto levantava a folha. — Devemos introduzi-lo na programação do cérebro de comando positrônico da estação. A partir deste momento o transmissor desta estação só poderá ser ativado em momentos previamente fixados em cada espaço de vinte e quatro horas. Os tempos de ativação são muito reduzidos.

Rovza sabia que com isso os senhores da galáxia queriam evitar que outros inimigos entrassem na estação. E isso correspondia ao seu interesse.

Rovza atravessou a sala e enfiou a folha na entrada do programador do centro de comando. Em cada sala da estação existia uma entrada destas. Os circuitos do centro de computação positrônica eram muito amplos, e permitiam que a programação fosse feita em qualquer ponto da estação.

Uma vez cumprida a ordem dos senhores da galáxia, Rovza imaginou que a entrada de seis forasteiros na estação representava apenas o começo de uma longa série de acontecimentos. Havia coisas importantes pela frente, uma vez que os senhores da galáxia

Page 341: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

341

se interessavam pessoalmente pela estação. Rovza não teve a menor dúvida de que aquilo era uma oportunidade de recuperar a confiança dos senhores da galáxia.

— Vamos voltar aos alojamentos — decidiu. — Acho que deveríamos observar os robôs — objetou Bellogh. Quando viu os olhos grandes de Rovza dirigidos para ele, Bellogh encolheu a cabeça e

afastou-se em silêncio. Um sentimento de poder novamente conquistado tomou conta de Rovza.

Page 342: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

342

5 Certa vez, quando ainda era menino, o alçapão de uma adega que fora visitar

juntamente com meus pais se fechara em cima de minha cabeça. Meus pais e o dono da adega já tinham ido para cima. Certamente pensavam que eu saíra na sua frente.

Vi-me naquele porão, em meio a uma umidade perfumada, num chão coberto de musgo. Ouvi o ruído da água, vinda não sabia de onde. Em cima de minha cabeça soaram os passos estrondosos dos homens que se afastavam ruidosamente. Durante todo o tempo, até o momento em que o alçapão foi aberto e uma voz gritou que saísse do meu esconderijo, fiquei paralisado, incapaz de dar um passo que fosse. Mais tarde compreendi que meu subconsciente não estava em condições de enfrentar mudanças rápidas, que pudessem acarretar um perigo e meu corpo reagira de acordo com isso.

Quando o alçapão se fechou em cima de mim e de Papageorgiu, imaginei que estivesse novamente naquele porão, e o medo de que a paralisia pudesse voltar era maior que o temor inspirado pelo inimigo invisível.

A reação de Papageorgiu foi bem diferente. Arrancou a arma do cinto e com três saltos abrigou-se atrás de uma das gamelas.

— Proteja-se, Brazos! — gritou. Sua voz rompeu o encanto. Corri para perto dele e agachei a seu lado. O grego não

mencionou com uma única palavra que tivesse visto algo de estranho no meu comportamento. Olhava para o teto com os olhos semicerrados.

— Estamos presos! — resmungou. — Entramos numa armadilha. — Ainda resta a porta — respondi. — Podemos fugir por ela. Papageorgiu hesitou. Certamente estava pensando nos lemurenses que nos

esperavam lá fora, nos corredores. Nos lemurenses e em seus robôs parecidos com ratos. Neste momento o alçapão voltou a ser aberto, e um rosto barbudo sorridente nos

fitou. — Ficaram muito assustados? — perguntou Paroso, irônico. Lembrei-me das palavras de Saith. Ele não afirmara que Paroso era um covarde? Papageorgiu ligou o projetar antigravitacional e subiu. Segui-o a um metro de

distância. Paroso estava só na sala de cima. Antes de fechar o alçapão, apontou para o cadáver do lemurense.

— Foram os senhores que mataram o cientista? Papageorgiu respondeu que não. Contou em poucas palavras o que tinha acontecido.

Paroso ouviu-o em silêncio. — Vim buscar alimento para mim e meus homens. Depois do ataque dos outros

pensadores falhos isto se tornou muito perigoso. — Pensei que todos os pensadores falhos estivessem sob seu comando — observei. — Num grupo de homens famintos sempre há muita insatisfação — respondeu

Paroso. — Raramente ficam fiéis ao chefe. Quando Saragos estiver morto, voltarão para mim.

— O aleijado cego é Saragos? — É — respondeu Paroso. — Foi ele que matou o lemurense — informou Papageorgiu. Iluminou o rosto do

pensador falho. — O que pretende fazer? — Voltar para junto dos meus homens — respondeu o barbudo com toda franqueza.

— Ficarão decepcionados porque não trago nenhum alimento. Saragos conseguirá novos adeptos.

Page 343: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

343

— Por que não quis saber nada a respeito de Saith? — perguntei, desconfiado. Paroso deu uma risada. — Porque está morto — respondeu em tom grosseiro. — Como soube disso? O pensador falho deu uma cuspida e ficou calado. Certamente não achava necessário

dar outras explicações. — Mostre-nos um caminho que leve à superfície — pediu Papageorgiu. — Meu amigo

e eu saberemos recompensá-los se nos ajudar. — Para a superfície? — Paroso sacudiu-se de gargalhadas. — Este caminho não

existe. Quem chega a Godlar nunca encontrará o caminho de volta. — E o caminho que passa pela usina de força principal? Paroso devia ser um bom artista, ou então não sabia nada a respeito desta usina.

Sacudiu a cabeça sem dizer uma palavra. Quis ir embora, mas Papageorgiu segurou-o. — Talvez tenhamos de obrigá-lo a ajudar-nos — disse. — Um homem que resiste ao Plath não tem medo de alguns forasteiros ignorantes —

respondeu Paroso, orgulhoso. — Por que não celebra uma aliança conosco? — perguntei. — A gente não deve aliar-se a alguém que seja mais fraco — disse Paroso. — Não

seria nada inteligente. — Vá embora! — exclamou Papageorgiu, furioso. O pensador falho desapareceu na escuridão. — Não confio nele — disse o aspirante a oficial. — Sabe mais do que quer dizer.

* * *

Papageorgiu desceu e desligou o projetar antigravitacional. Cheguei a pensar que se

tivesse desorientado. A velocidade desenvolvida pelo rapaz durante o caminho de volta deixara-me espantado. Nunca demonstrava a menor hesitação e parecia saber sempre que corredores devíamos usar para chegar ao destino. Mas esta segurança parecia ter desaparecido.

Pousei ao lado dele. — Então? — perguntei com uma ligeira ironia. — Será que teremos de usar nosso

equipamento de pulso para encontrar o caminho de volta? — Não ouviu nada? — perguntou Papageorgiu, tenso. Fiquei na escuta. Ouvi um ruído estranho, muito leve. Parecia uma coisa sendo arrastada pelo chão. — Será que é uma máquina? — Não — respondeu Papageorgiu. — O ruído vem de cima. Não estou gostando. O arranhar tornou-se mais forte, para transformar-se de um instante para outro

numa série de estrondos ensurdecedores. — É o gelo! — gritou Papageorgiu. — A geleira está esmagando o teto em cima de

nossas cabeças. Dirigi instintivamente a luz de minha lanterna para cima. Uma fenda larga formou-se

no teto. Poeira e sujeira caíam sobre nós. A fenda alargava-se cada vez mais. Uma avalanche de destroços choveu sobre nós. Dei um salto para o lado e encostei-me à parede. O barulho era tão forte que cheguei a pensar que toda a cidade-abrigo estivesse desabando, embora a lógica me dissesse que a catástrofe só alcançara algumas salas. Uma metade do teto balançou de um lado para outro que nem um pêndulo. O material era tão elástico que resistiu à carga tremenda. Mais ou menos no centro do teto que balançava havia uma

Page 344: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

344

maquinazinha. Cada vez que o teto descia, esta maquinazinha escorregava um pedaço para baixo.

Tentei em vão encontrar Papageorgiu no meio da poeira. A luz de minha lanterna era muito fraca para atravessar as nuvens de pó. Peguei a arma energética que trazia no cinto e fiz com que a máquina se desmanchasse num tiro energético antes que caísse sobre minha cabeça. A máquina teria atravessado o campo defensivo individual, feito somente para proteger a pessoa contra um ataque com armas energéticas.

Imaginei que um dos últimos edifícios de Godlar acabara de desabar em cima de nós, deixando livre o caminho do gelo para o mundo subterrâneo. O teto formidável não resistira à carga e quebrara no ponto mais fraco.

Encostei-me o melhor que pude à parede, para não ser atingido pelos escombros. Era impossível chegar ao centro da sala. Só me restava fazer votos de que Papageorgiu tivesse encontrado um lugar seguro.

A parede cedeu atrás de minhas costas. Fiquei apavorado ao notar que recuava, dando a impressão de que perdera todo o peso. Meu corpo acompanhou o movimento. A pressão que exercia ao encostar-me à parede fez com que perdesse o equilíbrio. Caí juntamente com a parede desmoronada na sala vizinha.

Saí rastejando entre as pedras, ansioso para afastar-me da parede desmoronada. Perdi a lanterna, que saiu rolando no chão, mergulhando ora a parte da frente, ora os fundos da sala numa luz fantástica. O teto da sala em que me encontrava ainda estava resistindo. Levantei a lanterna. O contato do material frio deixou-me mais tranqüilo. O barulho diminuiu. Já havia esperança de que o perigo tivesse passado.

O lugar em que a parede se rompera ficou iluminado e vi um robô espião rastejando entre os escombros. A máquina parecida com um rato corria de um lado para outro entre duas placas grandes, dando a impressão de que não sabia que direção tomar. Sabia que seria conveniente desligar a lanterna para não atrair a atenção do espião, mas a idéia de não manter sob observação a coisa que se movia nas imediações me fez hesitar.

O rato dirigiu os olhos escuros para mim. Sabia que eram lentes, um material inerte que só dava a impressão de ter vida. Pus a mão no cinto de meu traje de combate, mas o lugar em que costumava ficar minha arma estava vazio. Certamente perdera o fuzil energético ao cair nesta sala.

O espião parecia indeciso sobre o comportamento que devia adotar. Ficou apoiado nas pernas traseiras e levantou a cabeça como se estivesse farejando.

“Talvez seja mesmo um rato”, pensei. Se fosse um robô cujo rastreador mental estivesse funcionando, a esta hora já saberia

que eu era um inimigo do Plath, um pensador falho. A informação seria transmitida ao centro de comando dos cientistas ou ao Plath.

Compreendi por que o rato estava indeciso. Encontrava-me na escuridão, atrás do feixe de luz da lanterna. O robô podia detectar-me e compreender meu consciente, mas não me via. Talvez meu inimigo nem estivesse em contato com o centro de controle. Era bem possível que o Plath e seus ocupantes estivessem completamente ocupados com o trabalho de reduzir as proporções da catástrofe e verificar a extensão dos danos.

O robô continuava apoiado nas pernas traseiras, mas não havia nada de engraçado nessa posição. O focinho rosado tremia e as patas traseiras passavam nervosamente sobre as orelhas curtas. O robô abriu o focinho. Vi uma coisa brilhante à luz da lanterna avançando centímetro após centímetro.

“É um estilete”, pensei instintivamente. “Até deve ser um estilete envenenado.” O rato deixou-se cair para a frente. Por um instante ficou como que à espreita, com a

cabeça abaixada, como se tivesse de farejar uma pista.

Page 345: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

345

Quando o robô saiu correndo, o estilete apontava em minha direção. Movimentava-se com tamanha rapidez que saiu por um ou dois segundos do feixe de luz da lanterna. Recuei para a parede oposta. Não me atrevi a tirar a luz da lanterna de cima do atacante para procurar uma porta pela qual pudesse escapar.

A máquina aproximou-se em silêncio. Esperei que ficasse bem à minha frente e saltei por cima dele. Parecia ter previsto o movimento, pois girou abruptamente.

Saltei para o lado, e o estilete que saía trinta centímetros da boca de meu inimigo passou perto de minha perna esquerda. O rato parecia furioso. Seguia-me com uma decisão tremenda. Imaginei que, caso estivesse observando a luta, o Plath deveria estar muito satisfeito com sua máquina.

A fera voltou a aproximar-se. Como estava desarmado, só me restava saltar para o lado e procurar uma saída.

O salto seguinte deu uma vantagem inesperada ao inimigo. Fiquei preso nos escombros e tombei para a frente. Apoiei-me com as mãos, tocando na chave da lanterna. A luz apagou-se. Tive a impressão de enxergar o brilho dos olhos de rato na escuridão, mas eram os reflexos de minha retina. Ouvi um ruído ligeiro bem à minha frente. Voltei a acender a lanterna. Pus a mão nos escombros atrás de mim e agarrei uma pedra. O rato veio resolutamente em minha direção. No último instante coloquei a pedra entre nós dois. O estilete tilintou ao quebrar-se de encontro ao material resistente. Um líquido amarelado caiu ao chão.

O robô ficou confuso por um instante. Dava a impressão de que não sabia o que fazer. Mas logo fiquei apavorado ao notar que as garras do inimigo cresciam. Lâminas de aço afiadas sobressaíam embaixo da pseudopele, encurvando-se numa força contida. Levantei a pedra e golpeei, mas o rato já se colocara em segurança com um salto. Houve um ruído metálico, quando suas garras tocaram o chão. Estava banhado em suor, mas não me dei conta disso. As coisas que me cercavam tinham perdido a importância, não parecia haver nada no mundo além de mim e do rato, nossa arena diminuta representava o universo.

A força dos saltos do inimigo parecia ter aumentado. Voou em minha direção a um metro de altura, com as garras estendidas. Desviei-me para o lado. O robô foi parar no chão e imediatamente girou o corpo, para escapar ao golpe do meu pé. Respirava com dificuldade e com uma clareza dolorosa dei-me conta de que o espião teria de sair vencedor da luta, já que suas forças certamente não diminuiriam.

Desesperado, liguei o gerador antigravitacional e flutuei embaixo do teto, que tinha três metros de altura. O rato ficou agachado embaixo de mim. Seus olhos artificiais cintilavam. Encurvou as costas. Compreendi que se preparava para dar o salto. Olhei para baixo, incrédulo, pois não acreditava que a máquina pudesse chegar ao lugar em que me encontrava.

Foi um salto formidável. O focinho aberto do rato com o estilete quebrado veio em minha direção.

Antes que pudesse esboçar qualquer reação, as garras do rato cravaram-se nas minhas botas. Penetraram no material e encontraram apoio. Golpeei o inimigo com a perna livre, mas ele recebia os golpes com a maior naturalidade. A fera começou a subir em meu corpo.

Peguei a lanterna e tentei golpear a cabeça do robô espião. Este previu o golpe e não teve a menor dificuldade em desviar-se. Voltei a golpear, desta vez com a quina da mão, ao acaso. Atingi o alvo, mas o rato recebeu o golpe com a maior calma. Já alcançara minha coxa. Sem dúvida queria chegar ao pescoço. Consegui controlar o sentimento de medo que queria apoderar-se de mim e agarrei o robô pela nuca. Senti um material firme sob os dedos, mas a pele que o cercava era elástica. Dei um puxão súbito e consegui tirar o robô de

Page 346: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

346

cima de mim. A máquina subiu enquanto estava sendo segura, dobrando o corpo como se fosse um chicote.

Atirei-o bem longe antes que voltasse a apoiar-se em mim. Ouvi o rato bater no chão. Iluminei apressadamente o chão com a lanterna. O rato voltou ao centro da sala, exatamente para o lugar no qual poderia saltar novamente para cima de mim.

Só então lembrei-me de que o Plath, ou fosse lá quem estivesse controlando o robô espião, poderia enviar reforços à sala em que me encontrava. Talvez fosse apenas um questão de minutos que a sala ficasse repleta de ratos robotizados.

Voei embaixo do teto, para o lugar em que houvera o desabamento. O robô ficou embaixo de mim, à espera de um momento favorável para dar o salto. Desci um metro e voei para a sala vizinha, que estava cheia de fumaça. O espião passou com a maior facilidade por cima dos escombros.

De repente a figura atlética de Lastafandemenreaos Papageorgiu apareceu envolta em poeira. Ofuscado, fechei os olhos diante de um lampejo. Quando voltei a olhar para baixo, o rato se transformara num pedacinho de metal incadescente.

Pousei ao lado do rapaz. — Esta fera estava me perseguindo — disse. — Não pensei que fosse sair vivo daqui. Papageorgiu parecia não ter compreendido minhas palavras. — Temos de voltar o mais depressa possível. Em cima de nós o barulho começou de

novo. Acho que a geleira voltou a movimentar-se. E possível que a cidade-abrigo acabe desabando.

— O senhor acha que ainda sairemos daqui? — perguntei. O grego suspirou. — Brank tem uma teoria — disse. — Se não sobrevivermos a isto, nem podemos estar

no futuro do ano 2.404 para entrar na armadilha do tempo do planeta Vario. — Já ouvi isso — da boca de Brank — resmunguei. — Qual é sua opinião? — Não sei. Nem sei o que pensar na situação em que nos encontramos. O melhor é

não pensar nisso. — Outra coisa — observou Papageorgiu, indiferente. — Quando o teto desabou, perdi

a comida. Voltaremos de mãos vazias.

Page 347: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

347

6 Quando voltamos ao nosso abrigo, Chard Bradon estava parado à frente do nicho,

montando guarda. Os outros dormiam. Bradon acordou-os e contamos ao Major Redhorse o que tinha acontecido.

— Ouvimos o ruído do desabamento — disse Redhorse. — Parece que este tipo de incidente acontece constantemente por aqui. No correr dos anos grande parte da cidade-abrigo desabará sob o peso do gelo.

— Não acredito que demore tanto, senhor — disse Papageorgiu. — Acho que a coisa logo começará de novo.

— Devo confessar que esperava encontrar um hiper-transmissor por aqui — disse Redhorse. — Vejo que esta esperança não se realizou. Acho que será preferível tentarmos voltar à superfície. Talvez a indicação que o lemurense agonizante forneceu a Papageorgiu e Surfat sirva para alguma coisa.

Redhorse respirou profundamente. Tentei em vão descobrir um sinal de cansaço ou indecisão nesse homem.

— Meu goniômetro indica que os robôs de guerra da estação tefrodense estão em cima de Godlar. Nossos campos defensivos individuais e projetores antigravitacionais lhes serviram de guia.

— Quer dizer que o número de inimigos que teremos de enfrentar logo aumentará — profetizou Bradon em tom pessimista.

— Não acredito — respondeu Redhorse. — Acho que os robôs entrarão na cidade-abrigo e se envolverão numa luta com os robôs espiões do Plath. Se isso acontecer, ficaremos de fora, rindo.

— Vamos ver se encontramos a usina de força principal, senhor? — perguntei. Redhorse acenou com a cabeça. — Acho que é a única coisa que nos resta. Brank fungou. Tive a impressão de que havia um tom de desprezo em sua voz. — Existe outra possibilidade. Podemos entregar-nos ao Plath. — É isso que o senhor quer, artilheiro Brank? — perguntou Redhorse. — Quero é viver — respondeu o homenzinho de rosto enrugado. — E tenho a

impressão de que aquilo que o senhor pretende fazer será nossa perdição. — Diante de suas condições psicológicas, prefiro esquecer o que o senhor acaba de

dizer — observou Redhorse. — Pois o senhor deveria lembrar-se — recomendou Brank, sarcástico. — É bem

possível que ainda tenha de lembrar ao senhor. — Cale a boca, Brank! — gritou Bradon. Os homens estavam muito tensos. Percebi, apavorado, que alguns dos homens,

principalmente Brank, pareciam ter-se conformado com a idéia de que não poderíamos escapar da cidade-abrigo. E esta opinião fatalmente geraria conflitos. Não se sabia se a insubordinação não alcançaria outros homens além de Brank. O artilheiro só era uma chama de um incêndio que lavrava embaixo da superfície, chama esta que se levantara antes da hora. Prestei atenção ao que se passava dentro de mim, para verificar se sentia alguma coisa do fogo da rebelião. Mas só encontrei um sentimento de insegurança e a vontade inabalável de cumprir as ordens de Redhorse. Não pensei que o cheiene pudesse desistir, já que ele possuía uma personalidade estável e seu caráter se moldara em inúmeras operações, que nem uma pedra exposta a uma forte correnteza, que aos poucos assume uma forma definida, que nunca mais perde.

Page 348: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

348

— Vamos embora! — decidiu Redhorse. Saímos do nicho que durante algumas horas nos dera certa proteção. — Vai chegar a hora em que o senhor e Papageorgiu terão de descansar — disse

Redhorse, quando voava a meu lado pela sala. — Não estou cansado — menti. Virei o rosto para ele. — Acha que Brank causará problemas? — É possível que haja alguns incidentes, mas espero que Brank acabe superando sua

crise interior. Eram palavras animadoras, mas não me animaram. Continuamos voando até alcançar

a parte iluminada da cidade-abrigo. Nesta parte reinava a ordem e a limpeza que fazia supor a presença de uma vida regrada.

Depois de três horas consumidas em buscas perigosas descobrimos uma sala em que havia várias máquinas e aparelhos.

— Talvez seja a usina de força principal — disse Redhorse. Examinamos o teto, centímetro após centímetro, mas não encontramos qualquer

fresta, qualquer descontinuidade, qualquer saliência que mostrasse o caminho para cima. Concentramos as buscas nas paredes. Não fomos bem-sucedidos e passamos a rastejar entre as máquinas. Doutreval, que estava de sentinela, destruiu com sua arma energética quatro robôs espiões que iam entrar na estação.

— Nada! — disse Bradon num gemido, quando finalmente erguemos o corpo, exaustos. — Parece que não há nenhuma passagem que leve à superfície. Isto aqui não é a usina de força principal, ou então o lemurense mentiu para Surfat e Papageorgiu.

Redhorse examinou seu goniômetro. — Os robôs de guerra já entraram na cidade-abrigo — disse. — Seu avanço foi detido

há alguns minutos. Dali se pode concluir que o primeiro combate já começou. O Plath terá de recolher grande parte de seus espiões, para enfrentar os robôs tefrodenses.

— Há uma coisa que ainda não examinamos: as máquinas — observei. — Estão todas funcionando — disse Redhorse. — Quer dizer que daqui sai a energia

que abastece as partes habitadas da cidade-abrigo. A qualquer hora poderão aparecer cientistas para fazer controles. Provavelmente foi só por causa da chegada dos robôs de guerra que não encontramos ninguém nesta sala.

— Talvez devêssemos examinar melhor as máquinas — sugeriu Bradon. Redhorse concordou. — Está bem — disse. — Papageorgiu, fique de sentinela, para que Doutreval possa ajudar no trabalho. Ficamos rastejando entre as máquinas. Batemos em todas as peças, e mexemos

cuidadosamente em cada chave que aparecia à nossa frente. Finalmente Sennan Brank descobriu uma caixa protetora removível. Levantou-a. Não havia nenhuma máquina. Em vez disso encontrou uma galeria que descia diretamente para as profundezas. Em um dos lados da galeria viam-se os degraus de uma escada. Fiquei parado atrás de Brank e vi seu rosto enrugado ficar vermelho de tão nervoso que estava.

— Senhor! — gritou. — Encontrei uma coisa. Os outros interromperam as buscas e vieram correndo. Papageorgiu foi o único que

continuou no seu lugar, junto à porta. Don Redhorse iluminou a galeria. — Desce cerca de cinqüenta metros. Dali em diante sai um corredor para o lado. Se

quisermos saber para onde vai teremos de entrar. — Atenção! — gritou Papageorgiu, que se encontrava junto à porta. Virei-me abruptamente, esbarrei em Brank e, cambaleante, bati de costas na máquina.

Papageorgiu fez um gesto tranqüilizador. Paroso acabara de aparecer na entrada.

Page 349: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

349

— Pensei que viesse com seu bando — disse Papageorgiu como quem pede desculpas. — Mas parece que veio só.

— Vejo que descobriu a usina principal — disse Paroso, aproximando-se de Redhorse.

O cheiene acenou com a cabeça. Parecia zangado. — Não foi só a usina, mas também o caminho pelo qual se sai da cidade-abrigo para

chegar à superfície deste mundo — disse. Paroso ficou puxando a barba imunda. Aproximou-se da galeria mostrada por

Redhorse e olhou para baixo. — Esta galeria desce — disse. — Os senhores querem subir. — Tenho certeza de que estamos no caminho certo — disse Redhorse em tom firme. — O que faria se eu lhe desse ordem para não sair desta estação? — perguntou o

pensador falho. Redhorse olhou-o surpreso. — Por que iria dar-nos ordens? — Porque sou o Plath — respondeu Paroso em tom amável.

Page 350: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

350

7 O Major Don Redhorse foi o primeiro a recuperar-se da surpresa. Soltou uma

estrondosa gargalhada. — O senhor está blefando — disse. — Se fosse mesmo o Plath, o senhor não nos

contaria num momento em que podemos dominá-lo — sacou a arma e apontou-a para o corpo magro de Paroso. — O senhor é um idiota, Paroso, mas não venha me dizer que é o Plath. Quer conseguir alguma coisa. Por isso fica nos observando constantemente. Diga o que quer. Talvez possamos chegar a acordo.

— Desculpe, senhor — interrompeu Bradon. — Talvez seja mesmo o Plath. Um pensador falho não se arriscaria a entrar nesta sala.

Paroso olhava fixamente para a arma de Redhorse. Seu corpo magro entesou-se. Cheguei a pensar que fosse cometer o erro de saltar sobre o major.

— Então? — perguntou Redhorse. — O que quer mesmo, Paroso? O pensador falho baixou a cabeça. — Quero suas armas — respondeu. — Esperei que pudesse convencê-los a entregá-

las. Também estou interessado no resto de seu equipamento. Pensei que bastasse eu dizer que era o Plath para intimidá-los.

Redhorse acenou lentamente com a cabeça. Parecia compreender os desejos do pensador falho antes que ele os manifestasse.

— Se quiser, pode acompanhá-los — disse. — É só o que podemos fazer pelo senhor... — Lá em cima só existe frio e gelo — gritou Paroso, desesperado. Seu corpo magro

entrou em convulsões. Parecia que depositara suas esperanças exclusivamente em nosso equipamento. E acabara de sofrer uma decepção. Cerrou os punhos. — Será que existe mesmo um caminho que leve para o sul?

— Não sabemos — confessou Redhorse. — Não sabemos, porque não viemos do sul, mas de outro mundo, de um planeta diferente.

— Quer dizer que têm uma espaçonave? — perguntou Paroso, estupefato. Redhorse sacudiu a cabeça. — Não. Viemos à Terra através de um transmissor. É bem verdade que nossa vinda

não foi muito espontânea. — O que é um transmissor? E o que vem a ser a Terra? — perguntou Paroso. — Não temos muito tempo para dar explicação. E o senhor não compreenderia. Quer

ir conosco? Por alguns segundos a mente de Paroso foi agitada por uma luta interior entre seus

desejos e esperanças. — Vou com os senhores — disse finalmente em voz baixa. — Não! — disse uma voz retumbante, que eu conhecia muito bem. — Nem Paroso

nem qualquer outro sairá desta sala sem meu consentimento. A voz parecia vir do nada. Era a mesma voz que tínhamos ouvido antes da morte de

Saith. A voz do Plath. — Rápido! Entrem no poço! — gritou Redhorse. Enfiei a cabeça no espaço vazio atrás da caixa, mas recuei imediatamente. Redhorse

olhou-me como quem quer fazer uma pergunta. — Lá embaixo está tudo cheio de ratos robotizados — informei, abatido. Paroso estava ao lado de Redhorse, trêmulo. Antes que pudéssemos fazer qualquer

coisa, centenas de ratos entraram correndo e postaram-se junto às paredes, perto da porta. Brank puxou a arma.

Page 351: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

351

— Não adianta, Brank — disse Redhorse. — São muitos. Atrás dos ratos entrou um homem que conhecíamos, mas do qual pensávamos que

tivesse morrido uma morte horrível. O homem já não estava envolto em trapos. Vestia uma manta limpa e andava com o corpo reto. Não se via sinal de uma corcunda.

— Eis aí o verdadeiro Plath — disse Redhorse com a voz apagada. O homem que acabara de entrar atrás dos espiões era Saith. — Sua morte foi muito impressionante — disse Redhorse. — Desconfiei desde o

início. Sem dúvida andava com um pequeno microfone, que transmitia seus cochichos para os sistemas de alto-falantes da cidade-abrigo. Mas cometeu um erro grave. Disse que Paroso era um covarde.

— E uma pena que tenha descoberto o truque da queima de meu corpo — disse Saith com um sorriso. — Um jogo de luzes feito com espelhos e um pouco de energia no lugar certo nunca deixaram de produzir seus efeitos.

Aos poucos Paroso foi-se recuperando. — Já compreendi tudo — observou. — Sei por que Saith era um dos homens mais

eficientes sob meu comando, e voltava são e salvo de qualquer missão. Também sei por que tinha tanta facilidade em liquidar os robôs espiões. Durante as missões que ele dizia serem de reconhecimento programava os robôs de tal forma que nada lhe podia acontecer.

Saith esticou os braços, abriu as mãos e encostou as pontas dos dedos. Parecia que se divertia a valer. Sorriu.

— Paroso e os pensadores falhos foram uma invenção minha, da mesma forma que aquele idiota cego chamado de Saragos. O primeiro pensador falho fui eu mesmo, porque julguei conveniente arranjar um inimigo para estes cientistas inteligentes. Desta forma evitei que se revoltassem contra mim. Os pensadores falhos fizeram com que os cientistas só cuidassem de seu trabalho, deixando por minha conta a luta contra os inimigos do governo.

— Compreendo — disse Redhorse. — Foi tudo muito bem pensado. Mas existe uma coisa que o senhor não previu. Cem robôs combatentes dos tefrodenses entraram na cidade-abrigo e a destruirão.

Saith voltou a sorrir e fez um gesto de reconhecimento para Redhorse. — Estes robôs realmente me levaram a modificar meus planos — confessou. — Vou

acompanhá-los para a superfície. Os senhores me levarão à sua espaçonave, que ficará sob meu comando.

— Esta espaçonave não existe — asseverou Redhorse. — Contem isso a um idiota como Paroso — disse Saith em tom de deboche. — Ouvi as

mentiras que contaram a ele. A espaçonave existe, e os senhores me levarão para lá. — Como queira — disse Redhorse entre os dentes. — Outra coisa — disse Saith. Sua voz assumiu um tom ameaçador. — Algumas

centenas de robôs espiões nos acompanharão no caminho para a superfície. Eles saberão imediatamente se o senhor ou um dos seus pensar em atirar em mim. Qualquer idéia deste tipo será a última que entrará na cabeça da respectiva pessoa, pois contra estes robôs não existe nenhum meio de defesa. Espero que não me levem a mal esta precaução. Como viram, além dos meus companheiros existem muitos outros espiões na galeria.

— Já os vimos — disse Redhorse. Saith fez um gesto em direção à galeria. — Vamos — disse. — Não sei o que estamos esperando. Houve um movimento atrás

dele. Kro'artruth entrou, acompanhado por seis homens, que provavelmente eram os outros membros do bando dos cientistas. Kro'artruth andava muito compenetrado. Parecia ter compreendido a situação ao primeiro relance de olhos.

— É um prazer vê-lo face a face depois de tanto tempo — disse, dirigindo-se a Saith.

Page 352: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

352

Inclinou o corpo, mas não consegui livrar-me da impressão de que era um gesto de deboche. Se o aparecimento do bando de cientistas deixou o Plath confuso, ele não o mostrou. Manteve uma postura admirável. Fez um gesto desdenhoso para Kro'artruth e voltou a dirigir-se a nós.

— A entrada destes homens não muda nossos planos — disse, calmo. Os robôs espiões faziam movimentos inquietos. Provavelmente não sabiam o que

deviam fazer. Tinham apoiado Plath e os cientistas. De repente se formara uma tensão sensível entre os aliados, que parecia não ter escapado aos ratos.

Redhorse aproveitou imediatamente a chance que isso representava. — Quem sabe se os cientistas não estão interessados em seu plano? — conjeturou,

esticando as palavras. — Pelo menos deveriam ser informados. Kro'artruth sorriu para Redhorse, dando a entender que havia um acordo tácito entre

os dois. O olhar não escapara a Saith. Vi os músculos de sua face se entesarem. — A cidade-abrigo está sendo atacada por um grupo de robôs — disse Kro'artruth,

que parecia ser o chefe do bando dos cientistas. — Seremos derrotados. Será que nestas condições o Plath, cuja coragem e circunspeção admiramos há tanto tempo, considerou a possibilidade da fuga?

Saith fez um movimento enérgico, dando a impressão de que queria apagar tudo que acontecera até então.

— Vamos mostrar as cartas — disse em tom enérgico. — Godlar está perdida. Só resta o caminho que leva à superfície. Este caminho será usado por mim. Irei sozinho com os forasteiros à espaçonave deles. Ninguém me impedirá.

A tensão que tomara conta de todos nós ficou ainda mais forte. De um momento para outro poderia degenerar numa explosão.

— Das suas palavras deduzo que o senhor conta com o apoio dos robôs espiões — disse Kro'artruth a Saith.

— Isso mesmo! — respondeu o Plath, convicto. — É um pequeno exército que me levará ao destino são e salvo.

— O senhor está enganado, Plath — disse Kro'artruth em tom amável. — Os robôs obedecerão a nós.

Saith parecia um animal acuado. Talvez neste momento se desse conta de que não conseguira enganar os cientistas durante todos estes anos. Compreendera que também tinham feito seu jogo às escondidas, e o vigiavam da mesma forma que ele os vigiava.

— Os espiões foram programados por mim mesmo — disse Saith. — Obedecerão exclusivamente às minhas ordens e só reagirão aos impulsos que correspondam à minha programação.

— Por aqui há dez mil espiões — lembrou Kro'artruth. — Quer nos convencer mesmo que programou pessoalmente todos eles? — Não — confessou o Plath. — O senhor e seus ajudantes programaram alguns dos

robôs por ordem minha. — É verdade — disse Kro'artruth. — Tomamos a liberdade de programá-los segundo

nossos planos. Quer dizer que grande parte dos robôs está de nosso lado. Saith recuou diante do cientista. Os ratos estavam cada vez mais nervosos. Olhei para

Redhorse, esperando que ele dissesse alguma coisa, mas o major estava concentrado exclusivamente na discussão. Pensei que fosse o momento certo de desferirmos nosso golpe. Mas Redhorse preferiu esperar.

— A maior parte dos espiões me apoiará! — gritou o Plath. A exclamação foi um sinal de fraqueza, mas também marcou o começo de uma

confusão caótica. Alguma coisa passou perto de mim. Compreendi que eram ratos que

Page 353: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

353

acabavam de sair do poço e investiam contra outros, que estavam sentados no chão ao lado de Saith.

O Plath berrou algumas ordens, mas nenhum dos robôs reagiu a elas. Estavam envolvidos numa luta de vida e morte. Neste momento as primeiras máquinas de guerra tefrodenses entraram na usina e atiraram ao acaso para a multidão dos robôs espiões.

Os dentistas e Kro'artruth ficaram duros como estátuas. — É agora! — gritou Redhorse. Saiu correndo em direção à galeria. Os robôs tefrodenses faziam um barulho

indescritível. Vi os cadáveres de três cientistas no chão. Kro'artruth e o Plath rolavam pelo chão, numa luta de vida ou morte. Os outros cientistas também saíram correndo em direção à galeria. Um deles puxou a arma e apontou-a para Redhorse, que foi obrigado a recuar diante dos robôs que saíam da galeria. Papageorgiu derrubou o cientista com um golpe. Os ratos deixaram que os robôs tefrodenses os fuzilassem às dezenas, sem oferecer resistência. A luta que travavam entre si parecia envolvê-los tão fortemente que não pensavam em mais nada.

Saith segurava Kro'artruth pelo pescoço e o sacudia. O cientista defendia-se desesperadamente, mas não havia dúvida de que Saith era fisicamente mais forte. Redhorse e Doutreval enfiaram a cabeça na galeria e fuzilaram os últimos espiões que ainda se encontravam lá. O caminho estava livre. Os dois cientistas que ainda estavam por perto agarraram Paroso e tentaram puxá-lo. O pensador falho resistia desesperadamente. Olivier Doutreval foi o primeiro a entrar na galeria. Redhorse atirou em alguns robôs que tinham aberto caminho para as máquinas e apontavam suas armas para nós.

Saith acabara de derrotar Kro'artruth e pôs-se de pé de um salto. As máquinas de guerra tefrodenses abriram fogo contra ele. Como não possuía campo defensivo individual, morreu antes de tocar o chão. Kro'artruth rastejou para perto dele, meio atordoado. Sorriu satisfeito ao ver que o Plath estava morto. Brank e Bradon desapareceram na galeria.

Uma máquina explodiu na extremidade oposta da sala. A pressão do ar comprimiu meu corpo contra a entrada da galeria. Meus ouvidos zumbiram. Redhorse movimentou os lábios. Estava berrando uma ordem, mas eu ficara surdo.

O cheiene agarrou Papageorgiu pelos braços e empurrou-o para dentro da galeria. Paroso, que fora derrubado pelos dois cientistas, jazia imóvel a alguns metros do lugar em que me encontrava. Vi seus dois inimigos correrem para onde estava Kro'artruth, para ajudar o chefe a pôr-se de pé. Chamas subiram no lugar em que acabara de ser destruída a máquina. A fumaça tirou a visibilidade dos atacantes. Havia centenas de espiões mortos pelo chão, mas a luta entre os robôs ainda não chegara ao fim. Compreendi que não terminaria enquanto o último robô espião não tivesse morrido. Os três cientistas vieram em nossa direção com as armas apontadas. Papageorgiu estava enfiando as pernas compridas no poço. Atiraram em mim e em Redhorse, mas nossos campos defensivos individuais nos protegeram. Redhorse fez sinal para que seguisse Papageorgiu, mas a idéia de deixá-lo ali só não me agradava.

Os primeiros robôs tefrodenses atravessaram correndo a cortina de fogo e fumaça e abriram fogo contra nós. Os cientistas tentaram abrigar-se atrás da máquina mais próxima, mas Kro'artruth foi o único que conseguiu chegar lá. Os robôs espiões continuavam a lutar entre si.

Não podia perder mais tempo. Entrei na galeria e desci o mais rápido que pude. Papageorgiu estava à minha espera embaixo. Apontou para o corredor lateral e gritou alguma coisa. Fiz sinal de que não podia ouvi-lo. Neste momento o major estava entrando na galeria. Quando chegou ao lugar em que nos encontrávamos, Kro'artruth inclinou-se sobre a entrada. O rosto do cientista estava marcado pelo pavor. Seu corpo amoleceu.

Page 354: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

354

Papageorgiu puxou-me para o lado. Quase no mesmo instante o corpo de Kro'artruth tocou o chão perto de mim.

Saímos correndo pela galeria lateral. Doutreval, Brank e Bradon, que tinham saído antes de nós, procuravam o caminho que levava à superfície. Mais uma máquina explodiu acima de nós. O corredor tremeu, o chão abaulou-se e do teto caíram pedras. Não havia nada que detivesse os robôs tefrodenses. Era bastante improvável que ainda houvesse alguém vivo na usina central. O reino do Plath estava condenado ao desaparecimento.

O corredor parecia não ter fim. Tivemos de ligar as lanternas. O ar era viciado. Finalmente o corredor foi ter numa sala circular de apenas dez metros de diâmetro. Bradon, Brank e Doutreval estavam à nossa espera. Doutreval apontou para o alto.

Iluminamos o teto, que era de pedra quebradiça. Havia uma galeria meio obstruída que levava para cima. Lancei um olhar desconfiado para Redhorse.

— Será que este é o caminho que leva à superfície? — gritou o Tenente Bradon. Fiquei aliviado ao notar que não perdera a audição. Redhorse experimentou as

travessas da escada, fixadas na parede. Tirou duas delas sem fazer muito esforço. Redhorse ligou seu projetar antigravitacional e foi subindo. — Fiquem junto à parede! — gritou. — Vou ver se consigo desobstruir o poço. Enquanto Redhorse tentava remover os destroços, Papageorgiu me puxou de volta

para dentro do corredor. As primeiras pedras caíram atrás de nós. Se a saída do poço estivesse obstruída, nossas chances de chegar à superfície seriam mínimas.

Papageorgiu apontou para o corredor. — Quanto tempo deverão demorar os robôs tefrodenses para aparecer aqui? Olhei para ele. Nem pensara nisso, embora fosse bem provável que as máquinas de

guerra também seguissem o caminho que, segundo esperávamos, levava à superfície. — Só levarão alguns minutos — disse Papageorgiu, respondendo à pergunta que ele

mesmo acabara de fazer. — Se não dermos o fora antes disso, será tarde. — Quer dizer que em sua opinião o senhor e eu deveríamos tentar detê-los até que os

outros estejam em segurança? — perguntei. — Não pense que sou um herói — respondeu o grego com um sorriso. Apontou para o

corredor. — Faremos descer o teto — sugeriu. — Provocar o desabamento do teto? — perguntei, perplexo. Papageorgiu confirmou com um aceno de cabeça. — Isso mesmo. Assim os robôs demorarão mais um pouco. — Não se esqueça de que é o único caminho que nos resta — lembrei. — Se Redhorse

não puder desimpedir o caminho que leva para cima, teremos de voltar por este corredor. E para isso ele terá de ficar desobstruído.

— O senhor sabe perfeitamente que em hipótese alguma poderemos voltar — respondeu Papageorgiu, contrariado.

Puxou a arma. Levantei os ombros. — Mandarei o Tenente Bradon para ajudá-lo — disse. — Perdi minha arma quando estava lutando com um robô espião, quando tínhamos

saído à procura de alimentos. Papageorgiu confirmou com um sinal e começou a atirar. Quando voltei à sala

circular, Redhorse já unha subido tanto que não o via mais. Os destroços continuavam a cair. Já havia uma pequena montanha no centro da sala. Informei Bradon sobre o plano de Papageorgiu. O tenente saiu sem dizer uma palavra. Sabia que ajudaria Papageorgiu. O único caminho de fuga que nos restava era a galeria obstruída que levava para cima.

Redhorse voltou dentro de alguns minutos. — É bem apertado — disse, lançando um olhar preocupado para minha figura

corpulenta. — Mas acho que dará para todo mundo passar. Mais em cima há uma galeria.

Page 355: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

355

Em cima dela começa o gelo. Tentaremos derretê-lo. Acho que neste lugar a camada não é muito grossa, pois nesta parte de Godlar sempre fazia calor.

Compreendi por que o poço tinha sido obstruído em parte. Bem em cima de nós o gelo se fundia constantemente sob a ação do calor. E com o tempo a água soltara as pedras e as placas. Mais alguns anos, e a galeria estaria totalmente obstruída.

Mas o que aconteceria se o major estivesse enganado e a camada de gelo que cobria a saída da galeria tivesse alguns metros de espessura?

“Com isto poderei preocupar-me depois, quando estivermos no alto da galeria e não pudermos continuar”, pensei. Sabia que nossas reservas de oxigênio no interior do poço seriam limitadas. Se acionássemos nossas armas, estas reservas logo seriam consumidas. Então seria importante que chegássemos à superfície quanto antes.

— Todos sabemos o que está em jogo — disse Redhorse em tom sério. — Não basta encontrarmos um caminho que nos permita sair de Godlar. Além disso teremos de sobreviver na superfície, custe o que custar. Perry Rhodan tem de ser informado sobre os incidentes que tivemos. Não consigo livrar-me da impressão de que os senhores da galáxia nos enviaram à Terra com um propósito bem definido. Não sei qual foi o motivo deles, mas qualquer coisa ligada aos senhores da galáxia faz supor que haja um perigo para nós e o Império Solar.

O cheiene subiu do chão e desapareceu no interior do poço. Seguimo-lo um após o outro, guardando uma distância apropriada. O último a subir foi Papageorgiu, que juntamente com Bradon tirara dos robôs a última possibilidade de nos alcançarem. O corredor que levava de volta à estação estava atulhado por toneladas de escombros.

Por enquanto os robôs não poderiam chegar a esta parte da cidade. E nós não poderíamos voltar.

* * *

Descobrimos que aquilo que Don Redhorse chamara de galeria não passava dos

restos de uma grade metálica firmada na parede de ambos os lados do poço. Mal encontramos lugar sobre ela. Dez metros em cima dela o gelo fechava o caminho para cima.

— Quando começarmos a atirar, teremos de concentrar nosso fogo ao máximo — disse Redhorse. — O gelo derreterá e descerá em cascatas. Devemos evitar na medida do possível que alguém se molhe, pois na superfície as vestes molhadas poderão trazer a morte rápida. Por isso devemos fazer o possível para derreter o gelo somente no centro do poço.

— Sem dúvida, senhor — disse Bradon. — Mas é possível que a água proveniente do gelo derretido não pingue imediatamente, mas passe a correr pelas paredes. Neste caso qualquer saliência se transformaria numa pequena queda de água. Se isso acontecer, não poderemos evitar que nossas roupas se molhem.

— Infelizmente o senhor tem razão — disse Redhorse. — Vamos fazer uma experiência.

O cheiene levantou a arma, fez pontaria e puxou o gatilho. Tivemos a impressão de que o gelo estava explodindo em cima de nossas cabeças. As

nuvens de vapores agitados quase chegaram ao lugar em que nos encontrávamos, encobrindo a cobertura de gelo.

Ouvi minha respiração aliviada quando vi um jato de água morna descer bem no centro da galeria. Nem sequer nossas botas ficaram molhadas. As coisas certamente mudariam quando todos começassem a atirar, mas pelo menos havia uma chance de não nos molharmos.

— Fiquem bem encostados à parede — disse Redhorse.

Page 356: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

356

— Quando começarmos a atirar todos ao mesmo tempo, teremos uma bela ducha. Cinco homens começaram a atirar. Não pude participar do bombardeio do teto,

porque perdera minha arma. Dentro de instantes o poço ficou cheio de vapores. A temperatura subiu de repente. Ouvi o ruído da água descendo pelo poço. Tive consciência de mais uma ameaça que pesava sobre nós. As águas escavariam ainda mais as paredes do poço, já bastante maltratadas. Era possível que a galeria desabasse. Neste caso seríamos soterrados sob os escombros. Nem os campos defensivos individuais nem os projetores antigravitacionais poderiam proteger-nos se o poço desabasse.

A respiração era cada vez mais difícil. Comecei a transpirar. Às vezes alguns blocos de gelo desciam com a água. Ouvíamos quando batiam no chão lá embaixo e se esfacelavam.

Os homens pararam de atirar. Mas se Redhorse pensava que veria alguma coisa do teto, ele teve uma decepção. Os vapores não podiam sair. Várias horas poderiam passar sem que víssemos a cobertura de gelo. Antes disso morreríamos sufocados.

— Um de nós tem de subir voando para examinar a cobertura de perto — disse Redhorse. Enfiou a arma no cinto e fez menção de ligar o projetor antigravitacional.

— Um instante, major! — gritei. — Por enquanto só fiquei como espectador. Antes que o cheiene pudesse formular uma objeção, liguei meu projetor

antigravitacional e comecei a subir. — Volte, Surfat! — gritou Redhorse. Mais tarde poderia alegar que não ouvira sua voz. Ninguém poderia provar o

contrário. Peguei a lanterna que trazia presa ao cinto e iluminei as nuvens de vapor. A luz não conseguiu atravessá-las. Não pude orientar-me. Subi cuidadosamente. A água continuava a pingar. Não pude evitar que alguns pingos me atingissem. Redhorse e os outros tinham feito uma abertura de quase três metros de diâmetro na cobertura de gelo. Entrei voando no poço artificial. Quando tinha subido quatro metros, voltei a esbarrar no gelo. Os vapores eram tão quentes e densos que mal consegui respirar. Iluminei todos os cantos, mas não encontrei nenhum indício sobre a espessura da camada de gelo que ainda restava. Desci rapidamente alguns metros e liguei meu transmissor de pulso.

— Major! — chamei. — Ainda não atravessamos o gelo. Mande um dos homens com duas armas. Tentaremos daqui de cima.

— Surfat! — gritou Redhorse. — O senhor desobedeceu... Desliguei o rádio. Dali a instantes o cheiene apareceu em meio aos vapores. Quando

me viu, voou na minha direção. Estava com o rosto coberto de suor. Seus olhos chispavam de raiva.

— Não gosto dessas excursões por conta própria, cabo — disse. Apontei para o alto. — Parece que as coisas não estão boas, senhor — disse, sem dar atenção às suas

palavras. — Nada indica que consigamos passar logo. E o ar está muito viciado. Redhorse entregou-me a arma energética. — Vamos tentar, Brazos — disse. Deixamos que nossos projetores antigravitacionais nos levassem para baixo do poço

artificial. Ficamos um de cada lado. — Vamos logo, Brazos! — gritou Redhorse. Atiramos para dentro da escavação. A água do gelo derretido voltou a descer

imediatamente. Desta vez não pudemos evitar que ficássemos molhados. Não me incomodei. Atirei sem parar. Sabia que, se não conseguíssemos abrir passagem logo, seria o fim.

Minha cabeça zumbia. Tive a impressão de que figuras grotescas dançavam na neblina. Redhorse só se encontrava a três metros, do outro lado do poço, mas eu não o via.

Page 357: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

357

Só enxergava através da neblina os lampejos de sua arma, que mostravam que ainda estava vivo.

A falta de oxigênio provocou enjôo. Meu coração batia com mais violência. Tive de fazer um grande esforço para não sair do lugar.

De repente ouvi um chiado vindo de cima. — Atravessamos o gelo! — disse Redhorse com a voz rouca. Vi os vapores se movimentarem. Foram arrastados para o alto. — Só mais alguns tiros para aumentar a abertura — disse Redhorse. Voltamos a bombardear a cobertura de gelo. Já me sentia melhor, embora por

enquanto nada tivesse mudado no interior do poço. A simples idéia de que por enquanto estávamos salvos fez com que não sentisse o cansaço.

— Não saia daqui! — ordenou Redhorse. — Voarei para cima. — Enquanto isso vou buscar os outros — respondi. Redhorse desapareceu. Deixei que o projetor antigravitacional me levasse para baixo.

Quatro homens vieram ao meu encontro. Apontei para o alto. Eles me seguiram sem dizer uma palavra. Em pensamento já tinham subido à superfície.

Encontramos Redhorse no começo do poço aberto no gelo. O major teve de fazer um grande esforço para controlar a tosse. — Podemos sair — disse, falando devagar. — Mas faz muito frio e é noite. — Arriscamos demais para voltar daqui, major — disse Bradon em tom sério. — Lá

embaixo os robôs tefrodenses estarão à nossa espera, assim que conseguirem desobstruir o corredor que Papageorgiu e eu fizemos desabar. Na superfície teremos uma chance de sobrevivência. Certamente encontraremos uma caverna na qual possamos ficar escondidos por algum tempo. Até poderemos aquecer-nos um pouco com as armas. E quando o dia clarear sairemos para caçar.

Redhorse iluminou os rostos dos homens. Todos acenaram com a cabeça. — Bradon excepcionalmente pinta a situação mais bonita do que realmente é — disse

Redhorse depois de algum tempo. O cheiene saiu voando à nossa frente. Chegamos à superfície por um buraco de dois

metros. O vento gelado atingiu-me com a força de uma chicotada. Prendi instintivamente a respiração e baixei a cabeça. Atrás de mim nuvens de vapores saíam das profundezas.

Ficamos parados, em silêncio, subjugados pelo frio e pela solidão da noite. Não se via uma estrela, pois nenhuma delas possuía bastante luminosidade para romper as névoas formadas com a destruição do planeta Zeut.

— Voaremos rente ao chão — decidiu Redhorse. Sua voz veio bem em tempo para evitar que entrássemos novamente no poço. — Cuidado com as tempestades de neve.

Subi do chão. Papageorgiu iluminou o chão à minha frente com sua lanterna. Brank estava sendo martirizado pela tosse. Redhorse foi na frente. Guiamo-nos pela luz de sua lanterna.

O vento não era tão forte como pensava, mas o frio parecia insuportável. Sabia que, se não encontrássemos logo uma caverna ou outro lugar para abrigar-nos, não sobreviveríamos a essa noite.

Doutreval voava a meu lado. Examinávamos constantemente o chão à luz de nossas lanternas. Voávamos em formação larga, para iluminar uma grande faixa da superfície.

— Estamos cansados e com fome — disse o pequeno rádio-operador. — E agora ainda temos de enfrentar o frio. Não quero ser uma ave de mau agouro, Brazos, mas não apostaria um tostão pela nossa sobrevivência.

— O senhor diz isso para alegrar-me? — perguntei em tom áspero. — Talvez minhas palavras possam aquecê-lo — disse. Depois de algum tempo Brank voltou a tossir.

Page 358: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

358

— Não agüento mais — disse a Redhorse. — Cada vez que respiro sinto dor. — Não demoraremos a encontrar uma caverna — respondeu Redhorse, paciente. — Não acredito mais na maldita caverna de que o senhor vive falando — gritou

Brank. De repente o raio de luz de sua lanterna descreveu uma curva. Brank atirou a lanterna para a escuridão. Bateu no gelo e apagou-se.

— O senhor está cometendo um ato de insubordinação, artilheiro Brank — disse Redhorse, calmo.

— Vou voltar — anunciou Brank. — Entrarei de novo no poço e me entregarei aos robôs tefrodenses. Antes isto que morrer de frio aqui fora.

— O senhor não encontraria o poço — disse Redhorse. — Além disso não permito que se separe do grupo. — Pôs-se a refletir um instante e acrescentou: — Entregue sua arma ao cabo Surfat.

A luz de duas lanternas atingiu o rosto tenso de Brank. O medo de morrer refletia-se em seus olhos. Brank mexeu em sua arma energética. Papageorgiu aproximou-se vindo de trás e arrancou-lhe a arma, entregando-a a mim.

— Tenente Bradon, cuide para que Brank fique conosco — ordenou o cheiene. Brank conformou-se. Prosseguimos em nosso vôo. Ficamos em silêncio. Perguntei a

mim mesmo o que estaria se passando na cabeça de Brank. Pelo menos uma hora tinha passado, durante a qual o frio penetrou cada vez mais

profundamente em nossos corpos, quando Redhorse deu ordem para que parássemos. — O terreno está ficando cada vez mais acidentado — constatou. — Estamos

entrando numa área montanhosa. Provavelmente são os contrafortes daquilo que mais tarde será a Serra Nevada. Aqui nas montanhas aumentam nossas chances de encontrar uma caverna.

“Nas montanhas de gelo”, acrescentei no meu íntimo. Mas mais uma vez Redhorse teria razão, como já acontecera tantas vezes. Quando

estávamos subindo junto a uma encosta gelada íngreme, Doutreval descobriu uma fenda. Pousamos e examinamos o lugar. A fenda era a entrada de uma espaçosa caverna de gelo. Usamos as armas para aumentar a entrada.

— Primeiro levem Brank para dentro! — ordenou Redhorse. Ficamos reunidos à frente da caverna e com nossas armas energéticas separamos

blocos de gelo das paredes, que usamos para fechar a entrada da caverna. Com o uso das armas, logo ficou mais quente na caverna.

— Tratem de secar as roupas — disse Redhorse. Estava tão cansado que, se deitasse no chão, adormeceria imediatamente. Desligamos os campos defensivos individuais e os projetores antigravitacionais, para evitar que fôssemos detectados pelos rastreadores.

Deitamos em cima dos trajes de combate. Não eram as condições ideais, mas já tínhamos uma esperança de sobreviver ao dia seguinte.

— Ficarei de sentinela no primeiro turno — disse Redhorse. — Podem dormir. Deitamos em nossos leitos rudimentares. Brank tossia e praguejava baixinho.

Papageorgiu estava deitado perto de mim. Virou a cabeça e sorriu. Seu rosto jovem estava marcado pelo cansaço e pela tensão. Mas o sorriso despreocupado não mudara.

— Então? — perguntou. — Gostaria de fazer uma previsão? Olhei para o teto da caverna, que emitia um brilho fraco à luz de uma das lanternas. — Sobre quê? — Talvez pudesse ser sobre a caça que abateremos amanhã para assar nesta caverna

— disse em tom pensativo. — O senhor acha que a gente pode assar um robô de guerra tefrodense? Papageorgiu caiu para trás, sorridente. Levantei a cabeça e vi o Major Don Redhorse

de pé na entrada da caverna. Olhava por uma fresta estreita.

Page 359: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

359

“De alguma forma”, pensei, “estamos todos ligados. Inclusive Brank.” “Uma ligação como esta não pode ser desfeita tão depressa”, pensei, sonolento.

Tínhamos percorrido distâncias imensas pelo espaço e pelo tempo. Talvez nunca um grupo de homens estivesse tão perdido enquanto lutava para sobreviver.

Fechei os olhos e tentei encontrar uma posição para dormir em meu leito desconfortável. O Tenente Bradon desligou sua lanterna. A caverna ficou às escuras. Ouvi a respiração dos homens e a tosse de Brank. De vez em quando Redhorse transferia o peso do corpo de uma perna para outra, fazendo ranger as botas no gelo.

— O senhor pode imaginar que nos encontramos na Terra? — perguntou a voz de Papageorgiu em meio à escuridão.

— Posso — respondi com a voz abafada. — Posso imaginar perfeitamente, embora há alguns minutos ainda pensasse que fosse impossível.

Não sabia se ele compreendia minhas palavras. Não era fácil adivinhar os pensamentos de um astronauta pertencente a uma geração mais jovem.

A respiração dos homens, a tosse de Brank e o ranger das botas de Redhorse fundiram-se com o ruído do vento que passava junto à caverna. Lembrei-me do planeta Terra do ano 2.404.

Adormeci com este pensamento.

Page 360: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

360

7. Entre o fogo e o gelo

Prólogo Quando o agente do tempo Rovza entrou na sala do transmissor, acompanhado por

seus quatro auxiliares, ele se lembrou que toda sala em que estava instalado um aparelho dessa espécie possuía uma atmosfera muito especial. Dali se poderia chegar de um instante para outro a um planeta diferente. O transmissor era uma porta que se abria para o Universo. Um pouco da atmosfera dos mundos estranhos parecia impregnar de forma quase imperceptível esta sala. Era difícil dizer em que consistia mesmo esta atmosfera, mas ela era tão real que não se podia negar sua presença. Nesta sala a capacidade de percepção do ser humano parecia aumentar. O cheiro do couro, suor, óleo, metal, plástico, material isolante e ar artificial parecia ser mais intenso que nas outras salas. Mas era apenas porque a pessoa que entrava nesta sala aumentava inconscientemente seu poder de concentração.

Rovza olhou para o relógio. Em virtude de uma ordem especial dos senhores da galáxia, o transmissor fora programado de tal forma que só entrava em funcionamento em determinado momento. Esta medida fora tomada para evitar que outros terranos que se encontravam no sistema de Vega penetrassem na estação do tempo.

Era bastante improvável que o inimigo descobrisse o momento exato em que pudesse usar o transmissor, mas

Rovza não queria assumir nenhum risco. Perdera dez homens num ataque de surpresa desfechado por criaturas monstruosas que tinham saído do transmissor juntamente com seis astronautas.

Quando o transmissor entrou em funcionamento, Rovza pôs a mão na arma. No mesmo instante ouviu um sinal bem conhecido, que só soava quando uma pessoa

devidamente informada usava o transmissor. Este sinal servia para evitar que os guardas da estação atirassem em algum aliado.

— Vamos ter visita, Rovza! — exclamou Bellogh. Rovza parecia tenso. A desconfiança não desaparecera de vez. Sempre era possível

que o inimigo descobrisse o sinal previamente combinado. Rovza permaneceu em silêncio enquanto via as duas colunas que apareciam embaixo do teto se unirem para formar o arco sem o qual o funcionamento do transmissor se tornava impossível.

No interior do arco reinava uma escuridão completa. Rovza não tirou a mão de cima da arma. A ondulação e a cintilância que se estava acostumado a ver no interior do receptor começou.

De repente apareceram os contornos de um homem alto, que trajava um conjunto prateado. Rovza ficou estarrecido. Tirou a mão de cima da arma num movimento tão brusco que até poderia parecer que ela se tornara incandescente.

— Baixem a cabeça! — gritou para os auxiliares. Ele mesmo abaixou a cabeça e ficou parado, à espera do que estava para vir. Ouviu o

desconhecido entrar na sala do transmissor com passos firmes e rápidos. — Levante os olhos, agente do tempo Rovza — disse uma voz firme. Rovza ergueu lentamente a cabeça. — Seja bem-vindo, Maghan — disse num cochicho. O homem que se encontrava à sua frente não era jovem, mas andava com o corpo

reto. Era musculoso. O cabelo negro era entremeado por fios prateados.

Page 361: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

361

— Meu nome é Toser Ban — disse. — Quero saber se nossas ordens foram cumpridas.

— Naturalmente, Maghan — apressou-se Rovza a garantir. — Fizemos tudo que mandaram.

Toser Ban passou os olhos pela sala. — Quer que desliguemos o transmissor, Maghan? — perguntou Rovza. — É claro que não — respondeu Toser Ban com um sorriso. Fez um sinal para os

ajudantes de Rovza. Os quatro homens levantaram a cabeça. Rovza viu que se sentiam aliviados. O homem alto que usava o nome Toser Ban era cercado por uma auréola de autoridade.

— Quer dizer que espera mais alguém? — arriscou-se Rovza a perguntar. — Oportunamente o senhor será informado, agente do tempo Rovza — disse o

homem. Retire-se! O rosto de Rovza mudou de expressão. Via-se nele um misto de medo e decepção. Mas

o agente do tempo cumpriu imediatamente a ordem que acabara de receber. — É claro que os senhores também sairão! — disse Toser Ban aos ajudantes de

Rovza. Os homens apressaram-se em obedecer. Assim que os duplos se tinham retirado, o grande homem sorriu com uma expressão

de desprezo. Aproximou-se do quadro de comando do transmissor e colocou a chave-mestra na posição de recepção.

— Ele usa o sinal Vocês viram? Ele usa o sinal! — disse Rovza aos seus ajudantes, quando já se encontravam no corredor.

Os ajudantes acenaram com a cabeça. Não disseram uma palavra. — Eu sabia que coisas importantes estavam para acontecer por aqui — disse Rovza.

— Se não cometermos nenhum erro, seremos promovidos. O mais importante é cumprirmos fielmente as ordens do Maghan.

Na sala do transmissor, Toser Ban estava de pé à frente do aparelho, esperando. O símbolo dos senhores da galáxia brilhava no peito de suas vestes cor de prata.

Toser Ban era um dos homens mais poderosos de duas galáxias. Era um senhor da galáxia.

Page 362: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

362

1 Quando o dia estava raiando, Brank morreu. Despediu-se deste mundo, que ficava a mais de cinqüenta mil anos do seu. Na caverna

ainda estava escuro, embora uma luz mortiça penetrasse pela fresta da entrada fechada por uma barricada.

O fim foi precedido de um terrível acesso de tosse. Apoiei-me nos cotovelos e liguei minha lanterna. Iluminei Brank e vi que ele se

erguera. O desespero estava gravado em seu rosto cheio de rugas. Os olhos brilhavam. Papageorgiu, que montava guarda na entrada da caverna, abandonou seu posto e

aproximou-se do lugar em que nos encontrávamos. Redhorse ergueu-se no leito e inclinou-se na direção em que estava Brank.

— Estou morrendo, major — disse o artilheiro. Sempre fora um homem rabugento e insatisfeito, que não conseguiu estabelecer

contatos. Quando se encontrava sob o gelo, na cidade-abrigo, enlouquecera. Mas naquele momento sua mente parecia funcionar muito bem.

Don Redhorse sorriu com uma expressão tranqüilizadora e empurrou-o suavemente de volta para o leito, preparado apenas com o traje de combate dobrado de Brank.

— Deixe de bobagens, Sennan — disse. — Assim que clarear de vez, Surfat e eu sairemos para caçar. Uma boa refeição o ajudará a ficar de pé.

Brank fez uma careta. — Acho que andei me fazendo de louco, senhor — disse, falando com dificuldade. — Todos têm seu momento de fraqueza — respondeu Redhorse. Brank virou o rosto para mim. — Quem sabe se consegue matar um urso bem gordo, cabo Surfat? — disse. Riu satisfeito. Era a primeira vez que o via rir. Depois fechou os olhos e morreu. Por algum tempo todos ficaram quietos. Finalmente Redhorse levantou

abruptamente. — Vamos sepultá-lo no gelo — disse. Olhou para Papageorgiu, que estava parado aos

pés de Brank e fitava o artilheiro com uma expressão de perplexidade. — Volte ao seu lugar, Lastafandemenreaos! — ordenou Redhorse. O rapaz virou-se em silêncio e voltou para a entrada da caverna. Ninguém pensou em

dormir. Com nossas armas abrimos um buraco no gelo, nos fundos da caverna, e colocamos Sennan Brank nesse buraco, em cima de seu traje de combate. Em seguida retiramos alguns blocos de gelo da parede e cobrimos o cadáver do artilheiro.

Sennan Brank ficaria nesse lugar por várias décadas, sem que seu corpo entrasse em putrefação. O gelo protegeria seu corpo pequeno e magro.

Uma vez cumprido este dever, Redhorse deu ordem para que fosse desimpedida a entrada da caverna. Chegáramos de noite. Olhamos para fora e pela primeira vez vimos alguma coisa da paisagem que nos cercava.

Estávamos numa depressão no meio das montanhas. Estava tudo coberto de gelo. Sabia que nos encontrávamos na periferia de uma cadeia de montanhas que mais tarde viria a ser a Serra Nevada.

Redhorse olhou para a penumbra reinante do lado de fora e deu-me uma ligeira cutucada.

— Que tal se saíssemos para caçar agora mesmo? — perguntou. Enfrentei seu olhar. — Quem manda é o senhor — respondi.

Page 363: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

363

— Está bem — disse Redhorse. — Vamos colocar os trajes de combate. Os outros ficaram olhando em silêncio, enquanto nos preparávamos para sair.

Provavelmente Doutreval, o Tenente Bradon e Papageorgiu me invejavam por poder acompanhar o major. Eu mesmo não gostaria de ficar na caverna.

— Tomara que consiga alguma coisa, senhor — disse Chard Bradon. Redhorse prendeu no cinto o pequeno goniômetro, que também podia ser usado

como rádio. Verificamos nossas armas e saímos. Bradon acompanhou-nos até a saída. — Não ficaremos fora mais de três horas — disse Redhorse ao tenente. — Se

demorarmos mais, o senhor tem minha permissão de sair da caverna com os outros dois e agir segundo seu critério. Afinal, não podemos excluir a possibilidade de que acabemos caindo nas mãos dos robôs tefrodenses. Não acredito que tenham desistido das buscas.

— Se os robôs ainda estiverem por aí, a caçada será uma aventura muito perigosa, senhor — disse Bradon, olhando para os projetores antigravitacionais que trazíamos nas costas em forma de mochila.

— Acha que poderemos ser detectados? — Redhorse mexeu no gelo com a ponta da bota. — Precisamos comer quanto antes, tenente.

Despedimo-nos do jovem oficial e saímos voando. Sentia-me forte e descansado, mas o vento gelado que soprava das montanhas fez com que eu tivesse minhas dúvidas de que agüentássemos três horas fora da caverna.

— Acho que nos encontramos na área periférica das geleiras — disse Redhorse. — Acha que estamos no limite sul das massas de gelo móveis? — perguntei. Redhorse sorriu. — Se tivesse prestado mais atenção na escola, Brazos, o senhor deveria saber que no

auge da última era glacial a bacia do Nevada foi completamente tomada pelas geleiras. Mais tarde esta bacia transformou-se num mar primitivo, mas este acabou secando.

— Por que não voamos para o sul? — Hum — fez Redhorse. — Seria uma viagem para o desconhecido, para a qual

teríamos de estar descansados. Se não encontrarmos alimento por aqui, não teremos alternativa. Seremos obrigados a fazer esta viagem. Bem que eu gostaria de saber quantos quilômetros nos separam da área livre de gelo.

Os professores de Redhorse também não sabiam tudo, pensei com uma ponta de sarcasmo. Mas seria exigir demais que conhecessem o limite das geleiras com a precisão de um quilômetro.

Saímos da depressão. O major desceu na primeira encosta. Pousei bem a seu lado. à nossa frente estendia-se um deserto de gelo cheio de colinas.

— Aqui não encontraremos nenhuma caça, senhor — observei. — Receio que o senhor tenha razão — disse Redhorse. — Talvez tenhamos mais sorte

quando clarear o dia. Olhei para o céu nublado. Se o Sol conseguisse romper a camada de nuvens, ele só

apareceria como uma pequena bola vermelha, incapaz de enviar seus raios quentes através das nuvens de pó e escombros que se estendiam entre Marte e Júpiter. Os restos do planeta Zeut impediam o aquecimento da atmosfera durante o dia.

Prosseguimos a pé. Foi uma marcha difícil, porque vivíamos escorregando. Avançávamos muito devagar. Não se via o menor sinal de vida.

Finalmente Redhorse parou. Já fazia uma hora que tínhamos saído da caverna. — É uma paisagem morta — disse o cheiene. — Quase não dá para acreditar que um

dia isto venha ser parte da América do Norte. — Cinqüenta mil anos são um tempo muito longo — retruquei. — Não podemos

esperar até que os búfalos apareçam por aqui. O índio parecia despertar em Redhorse.

Page 364: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

364

— Uma boa caçada de búfalos até que seria divertida, Brazos — disse, entusiasmado. Apontou para a arma energética e acrescentou em tom de desprezo: — Mas não com isto.

Tentei imaginar Redhorse pintado para a guerra, montado num pônei de índio, correndo em galope pela pradaria, sem sela, segurando-se com uma das mãos na crina do animal, enquanto na outra trazia o arco.

Parecia que Redhorse adivinhara meus pensamentos, pois mudou repentinamente de assunto.

— Se pelo menos tivéssemos bastante sorte para encontrar o corpo congelado de um animal — disse. — Mas as probabilidades são contra nós.

Bati as mãos, para aquecê-las. Sabia que na caverna não havia nenhuma refeição à espera, mas tive saudades deste lugar. Na caverna de gelo pelo menos reinava uma temperatura suportável.

— Acho que seus pés estão ficando frios, Brazos — disse Redhorse, que observara meu movimento. — Comigo está acontecendo a mesma coisa. Vamos voltar. É possível que no caminho para a caverna encontremos alguma coisa.

Voamos em direção à caverna, ficando rente ao chão. Seria difícil detectar a energia desprendida por nossos projetores antigravitacionais, desde que ficasse encoberta atrás das montanhas de gelo. Por alguns minutos a idéia absurda de que talvez não encontrássemos mais a caverna ficou me martirizando. Mas tínhamos o goniômetro portátil, além dos rádios de pulso. Mas podíamos confiar no instinto de Redhorse. O índio seria capaz de encontrar a caverna até no escuro.

— O pessoal ficará decepcionado se voltarmos de mãos vazias — observou Redhorse. — Mandarei sair Brandon e Papageorgiu. Eles que tentem matar algum animal.

— Sim, major — respondi. — Pelo amor de Deus, Brazos, não fique com essa cara — pediu o cheiene. — Já

estivemos muito mais próximos da morte que agora. — Sem dúvida — confessou. — Tentarei... Redhorse interrompeu-me, levantando o

braço. Apontou para baixo. Pousamos lado a lado e Redhorse mexeu apressadamente em

alguns comandos de seu goniômetro. — Alguém está nos perseguindo, senhor? — perguntei, nervoso. — Quieto! — chiou Redhorse. O aparelho deu um estalo. De repente tive a impressão de ouvir uma voz pouco

compreensível. Inclinei-me sobre o aparelho. Redhorse ligou o amplificador. A voz tornou-se mais forte.

— ...parece que as naves halutenses evitam a área das geleiras — disse a voz saída do alto-falante. — Por enquanto as ruínas de Makata foram... — a voz tornou-se incompreensível, e o alto-falante transmitiu um chiado.

Redhorse girou desesperadamente nos botões. A voz voltou a ser ouvida. —...parece que estão examinando as cidades em ruínas. Tudo indica que os halutenses

acreditam que não há mais ninguém por lá. Ultimamente quase não foram avistadas mais naves inimigas. Atualmente transferimos nossa área de caça para a planície de Saran...

A voz ficou mais fraca. Desta vez os esforços do major não deram resultado. O alto-falante do aparelho continuou mudo. O cheiene ficou de pé.

— O que significa isso, senhor? — perguntei, perplexo. — A mensagem deve ter sido transmitida por alguns lemurenses que se encontram

mais ao sul. São sobreviventes da grande catástrofe, que não conseguem livrar-se do medo que sentem dos halutenses. Parece que usam o rádio para prevenir uns aos outros contra os halutenses.

Page 365: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

365

— Na mensagem foram mencionadas as ruínas de Makata — observei. — Será que os lemurenses que transmitiram esta mensagem vivem lá?

— É possível — disse Redhorse. — Tentei determinar a posição do transmissor, mas houve muitas interferências. Se voarmos para o sul, será mais fácil fazer a determinação goniométrica do local.

— Ainda bem que não estamos sós neste mundo desolado — respondi. — Tomara que encontremos as ruínas de Makata.

Redhorse colocou a mão no meu braço e fitou meu rosto. — Não quero que os outros fiquem sabendo disso antes da hora, Brazos. Não estou

interessado em despertar esperanças vazias. Antes de partirmos para o sul, precisamos de mais informações. Quer dizer que teremos de captar outras mensagens. Caso haja combatentes halutenses no sul, não gostaria de cair nas mãos deles.

Compreendi o receio de Redhorse, embora soubesse que seria difícil guardar silêncio perante os companheiros.

Quando chegamos à caverna, eu me sentia exausto. Levamos meia hora para aquecer-nos. Bradon, Doutreval e Papageorgiu não esconderam sua decepção pelo fracasso da caçada. Mal tínhamos chegado, Papageorgiu e o Tenente Bradon saíram.

— Usem os projetores antigravitacionais o menos possível — advertiu Redhorse. — Não devemos chamar a atenção dos robôs de guerra tefrodenses.

Fazia mais ou menos uma hora que Bradon e Papageorgiu tinham saído, quando o pequeno radiogoniômetro voltou a entrar em funcionamento. Redhorse logo ficou de pé. Desta vez a mensagem captado foi curta, mas bem compreensível.

— No litoral existe um excelente campo de caça. Vocês poderão orientar-se pelo vulcão de Eusarot.

— Lá no sul pelo menos há alguma coisa para comer — observei. Olivier Doutreval olhou para Redhorse como quem quer perguntar uma coisa.

Redhorse deu uma explicação ligeira sobre a primeira mensagem que tínhamos captado. — Vamos ter trabalho para o senhor, Olivier — disse o major. Entregou o aparelho a

Doutreval. — Trate de determinar a posição do transmissor. Basta descobrir a posição aproximada.

Doutreval pegou o aparelho com tamanho cuidado que até parecia que estava lidando com um grande tesouro.

— Não será fácil localizar o transmissor — disse o pequeno astronauta. — É um aparelho comum, feito apenas para as comunicações pelo rádio.

— Isso eu sei. Acontece que este aparelho é a única possibilidade de entrarmos em contacto com homens civilizados e arrancar alimento.

Doutreval voltou ao lugar em que estivera deitado. Colocou o aparelho no chão e sentou à frente dele. Sabia que não tiraria os olhos do rádio por um segundo que fosse. Tirei o traje de combate e deitei em cima dele. Surpreendia-me constantemente olhando para Doutreval. Esperava que a qualquer momento recebêssemos outra mensagem. Mas o alto-falante ficou em silêncio. O Tenente Bradon e Papageorgiu voltaram da excursão para o mundo das geleiras, cansados e sem terem conseguido nada. Pelos meus cálculos, já devia ser o fim da tarde. Papageorgiu tirou o traje de combate, espalhou-o no chão e adormeceu imediatamente. Invejei-o por isso.

Bradon olhara ora para Doutreval, ora para Redhorse. — Detectou algum grupo de robôs?—perguntou a Doutreval. — É somente uma precaução — apressou-se Redhorse em dizer. — Não quero que

sejamos surpreendidos. Um de nós deve ficar sempre de olho no aparelho. Bradon franziu a testa. Sabia que não ouvira toda a verdade, mas era bastante

inteligente para não insistir junto ao major. Para minha decepção o pequeno rádio

Page 366: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

366

permaneceu em silêncio o resto do dia. Quando voltou a escurecer do lado de fora, lamentei que Redhorse não tivesse partido imediatamente para o sul. Era possível que não captássemos mais nenhuma mensagem. Neste caso seríamos obrigados a voar às cegas.

Derretemos um pouco de gelo para matar a sede. Ainda agüentaríamos alguns dias sem comida, mas ficaríamos cada vez mais fracos, o que aumentaria os perigos de um vôo prolongado. Senti que os homens esperavam que Redhorse desse alguma ordem, mas ele limitou-se a distribuir as sentinelas para a noite. Quando tínhamos preparado os lugares em que iríamos dormir, o Tenente Bradon observou em tom cauteloso:

— Não acredito que aqui tenhamos sorte nas caçadas, senhor. — Também penso assim — respondeu Redhorse. Bradon puxou o traje de combate. Parecia embaraçado. Sem dúvida gostaria de saber quais eram os planos de Redhorse para o dia seguinte. — Pretende sair para caçar novamente amanhã? — perguntou depois de algum

tempo. Redhorse bocejou. — Por enquanto pretendo dormir algumas horas — respondeu. — Amanhã direi o

que vamos fazer. Bradon teve de contentar-se com esta informação. Doutreval ficou de sentinela

durante o primeiro turno. Levou o rádio para a entrada da caverna, que fecháramos novamente com barricadas, só deixando aberta uma pequena fresta.

Durante a noite soprou uma tempestade de neve. Tivemos de fazer uso várias vezes de nossas armas energéticas, para manter a temperatura no interior da caverna acima do ponto de congelamento. O gelo derretido pingava no teto, enquanto lá fora uivava o vento, tocando as massas de neve.

— Uma tempestade como esta pode durar alguns dias — disse num cochicho, para não acordar os outros.

— Não pinte o diabo mais preto do que ele é — resmunguei. — Só podemos fazer votos para que amanhã de manhã tenha passado.

Doutreval olhou para mim como se quisesse dizer mais alguma coisa, mas acabou levantando os ombros e voltando ao seu lugar. Suspirou, deitou em cima de seu traje de combate e apagou a lanterna.

Fiquei parado na entrada da caverna e perguntei a mim mesmo se no rugido da tormenta seria possível distinguir qualquer outro ruído. No fundo nem era necessário que alguém ficasse de sentinela. Redhorse certamente exigia isso antes por razões psicológicas que por um motivo racional.

De vez em quando uma porção de neve era tocada pela fresta e subia para o alto. Senti a neve pousar em meu rosto, onde derretia imediatamente. Constantemente encostava o rádio ao ouvido, mas não percebi o menor ruído. Meu turno de sentinela passou mais depressa do que eu esperara.

— Ouviu alguma coisa? — Não — respondi. — Está tudo quieto, menos a tempestade. — Tomara que a entrada da caverna não seja obstruída pela neve — disse Redhorse. — Doutreval disse que uma tempestade como esta pode durar alguns dias —

observei. Redhorse dirigiu a luz da lanterna para fora, mas não viu nada além das massas de

neve tangidas na horizontal. — É verdade — disse depois de algum tempo. — Mas a tempestade que está

soprando agora passará até amanhã. — Provavelmente nem veremos o dia clarear, senhor. — Não se preocupe. Eu sentirei.

Page 367: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

367

— Só posso estar preocupado, já que a teoria de Brank não se confirmou, senhor — respondi com um sorriso apagado. — Segundo Brank, é impossível morrermos aqui, porque neste caso não seria possível que caíssemos na armadilha do tempo do planeta Vario no ano dois mil quatrocentos e quatro.

Redhorse passou a mão pelos cabelos negros. — Não adianta quebrar a cabeça sobre isso. Brank está morto, mas certamente

voltará a nascer em algum ponto do tempo relativo, para retornar a este mundo gelado e morrer.

— Se a gente continua nestas reflexões, até pode enlouquecer — observei. Percebi que Redhorse não estava com vontade de conversar sobre isso e voltei ao

meu lugar. Não consegui dormir logo. Fiquei deitado de costas, pensando em Brank, que estava sepultado no gelo, bem nos fundos da caverna. O paradoxo do tempo ligado à sua morte me veio à mente.

De repente ouvi uma voz rouca na entrada da caverna. Respirei aliviado quando compreendi que era o rádio.

O lemurense desconhecido voltara a falar.

Page 368: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

368

2 A tempestade parou na manhã do dia seguinte. Não se ouvia mais o uivar do vento. O

Major Redhorse deu ordem para que desobstruíssemos a entrada. Em toda parte havia neve acumulada, mas no fundo isto não fazia diferença, pois a paisagem era tão desolada quanto antes.

— Partiremos para o sul — disse Redhorse. — Surfat e Doutreval já estão informados sobre as mensagens que captamos no rádio. De noite, quando estava de sentinela, vieram duas mensagens através de nosso pequeno receptor. Parece que mais para o sul existem outras cidades em ruínas, nas quais existem sobreviventes lemurenses. Uma destas cidades tem o nome de Makata. As mensagens transmitidas pelo rádio falam principalmente em naves halutenses, campos de caça, atividade vulcânica e nas condições meteorológicas. Acho que as mensagens se destinam a um grupo de lemurenses que se encontra ainda mais ao sul que aquelas cujas mensagens temos captado. Podemos ter certeza de que, se ficarmos aqui, morreremos de fome. Não vamos esperar até que fiquemos fracos demais para voar para o sul. Coloquem os trajes de combate e verifiquem as armas. Sairemos assim que estivermos prontos.

Parecia que os homens estavam satisfeitos por poderem sair da caverna. Redhorse chegou perto de mim e fez um sinal para que o Tenente Bradon se aproximasse.

— Em uma das mensagens foi mencionado um navio a vela. Perguntou-se ao grupo que vive mais ao sul em que ponto está a construção da embarcação. Infelizmente não consegui captar a resposta.

— Um navio a vela — repetiu Bradon, pensativo. — O que significa isso? — Os lemurenses que vivem no sul parecem ser gente muito ativa — disse Redhorse.

— Se conseguirmos estabelecer ligação com um dos grupos, quase todos os nossos problemas estarão resolvidos.

Saímos da caverna dentro de alguns minutos. Lembrei-me de Brank, cujo cadáver ficara para trás. Seu corpo nunca seria encontrado. Mais tarde, quando o gelo derretesse, o cadáver seria tragado pelo mar primitivo que encheria a bacia do Nevada.

Sennan Brank certamente não imaginara que iria morrer no ano 49.488 antes do nascimento de Jesus Cristo, mais de cinqüenta mil anos antes do próprio nascimento.

— Parece que os robôs dos tefrodenses voltaram a encontrar nossa pista — disse Redhorse, que levava o radiogoniômetro. — Está na hora de irmos embora.

Ligamos os projetores antigravitacionais para a potência máxima e entramos no frio do raiar de mais um dia.

Na Terra, que parecia ser um planeta estranho situado num futuro distante os calendários registravam o dia 5 de julho de 2.404. Os homens estariam indo para o trabalho, tomando café, discutindo coisas sem importância, sentindo-se felizes ou infelizes, amando e odiando uns aos outros. Nenhum deles pensaria que nesse mesmo instante cinco terranos poderiam lutar pela vida num passado distante.

Se alguém contasse a estes homens o que acontecia conosco, eles pensariam que este alguém tinha enlouquecido.

Deixamos para trás a caverna e voamos para o sul. Não sabia quanto tempo levaríamos para sair da área das geleiras.

Nem sequer sabia se conseguiríamos sair.

* * *

Page 369: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

369

— Ali adiante, não se sabe bem, fica aquilo que mais tarde será a costa oeste — disse Redhorse com a voz abafada. O frio modificara a expressão de seu rosto. Os olhos tinham afundado nas órbitas e embaixo deles viam-se círculos escuros. Sabia que o aspecto dos outros não era melhor. Meu estômago parecia ter-se transformado numa bola murcha, que a cada movimento que fazia causava dores em todo corpo.

— Los Angeles — disse Doutreval. — Um dia a cidade de Los Angeles aparecerá por lá — fechou os olhos por um instante. — Imaginem — disse em tom enfático.

Imitei seu exemplo, fechando os olhos. O vôo extenuante parecia ter afetado minha fantasia tanto quanto meu corpo.

— Espero que já nos encontremos na altura em que mais tarde ficará a cidade de San Diego, na costa mexicana — disse Redhorse. — Temos de atingir a latitude trinta antes que escureça. Lá, sem dúvida, não há mais gelo.

A paisagem que estávamos sobrevoando parecia mudada. Era quase toda plana. Não havia mais gelo sólido, mas em compensação nevava ininterruptamente. O vento não era tão frio, mas havia muitas tempestades. Era o lugar em que as frentes frias vindas do norte se encontravam com as massas de ar quente do sul, provocando verdadeiros furacões.

Redhorse garantiu que, quando tivéssemos percorrido mais algumas centenas de milhas, isso mudaria. Pelos meus cálculos, já tínhamos voado umas oitocentas ou novecentas milhas depois de termos saído da caverna. Tínhamos a vantagem de poder voar em linha reta. Não precisávamos contornar os obstáculos existentes na superfície.

Há algumas horas o projetor antigravitacional de Doutreval falhara. Mas Redhorse tinha previsto um contratempo desse tipo. Mantinha preparado o projetor de Brank, e assim o incidente não causou nenhuma demora.

Estávamos cansados demais para dizer qualquer coisa, além de algumas palavras sem importância. Só tínhamos a atenção despertada quando captávamos uma mensagem dos lemurenses. O texto das mensagens sempre era parecido. Girava em torno dos halutenses, de campos de caça ou das condições meteorológicas. De vez em quando era mencionado o navio a vela em construção.

— Se os lemurenses não interromperem as comunicações pelo rádio, voaremos diretamente para as ruínas de Makata — disse Redhorse, numa obstinada resolução.

— Será que o golfo da Califórnia já existe? — perguntou Bradon. — Não sei — respondeu Redhorse. — Mas tenho certeza de que haverá algumas

surpresas para nós. Não fizemos nenhuma pausa para descansar. Tínhamos certeza de que, se fizéssemos,

seríamos dominados pelo cansaço. Mas quando começou a escurecer, não tivemos alternativa. Fomos obrigados a interromper o vôo. Procuramos uma depressão e amontoamos bolas de neve, formando um iglu rudimentar. Dentro do iglu era muito apertado, mas quente, e estávamos protegidos do vento. Se as indicações do goniômetro não nos enganavam, os robôs tefrodenses tinham perdido de vez nossa pista.

— Sem dúvida esta é a última noite que passamos no meio da neve, de estômago vazio — garantiu Don Redhorse. — Partiremos ao raiar do dia.

De noite aconteceu alguma coisa que nos levou a pensar que o cheiene tinha razão. Começou a chover.

* * *

As massas de gelo avançavam dos pólos em direção ao equador. Inúmeros animais

tinham fugido delas, passando a viver nas zonas temperadas. Sabia que no México Central poderíamos encontrar muitas espécies de animais perigosos, cujo habitat primitivo ficava em outras regiões da Terra.

Page 370: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

370

Apesar de sua tecnologia avançada, os lemurenses fizeram questão de conservar a fauna de seu planeta. A história ensinava até que ponto a quarta e última era glacial frustrou os esforços neste sentido. No fim do pleistoceno e no início do holocênio muitas espécies de sáurios gigantes foram extintas de repente, embora o número de espécimes que vivia na Terra fosse muito elevado.

Foram estes meus pensamentos quando saímos de nosso iglu ao amanhecer. Parará de chover e o chão ficara liso com a água de chuva congelada.

Redhorse fez questão de que destruíssemos o iglu, pois acreditava que pudesse colocar alguém que quisesse perseguir-nos em nossa pista. Nosso café da manhã foram algumas porções de neve derretida, com as quais matamos a sede. Não saciamos a fome, mas tínhamos todo motivo para esperar que no correr do dia descobríssemos alguns animais que pudéssemos caçar.

Esperava que não fôssemos abater justamente um mamute, pois nenhum de nós sabia como cortar este gigante para retirar a carne comestível. A história ensinava que a área das geleiras fora habitada por muito tempo pelo mamute lanudo, mas nossas experiências não confirmavam essa informação, pois ainda não nos tínhamos encontrado com nenhum animal dessa espécie.

Depois de duas horas de viagem atingimos o litoral. Era irregular e entrecortado. Havia inúmeras baías que avançavam vários quilômetros terra a dentro.

O continente enorme chamado Lemúria tinha desaparecido. Certamente mergulhara no Oceano Pacífico. Pelos cálculos de Don Redhorse, isso devia ter acontecido pelo menos há 450 anos.

As formações terrestres se tinham deslocado e os continentes que conhecíamos do nosso tempo já haviam surgido em sua forma básica.

— Que pena que não vamos voar até o lugar que virá a ser o mar das Caraíbas — disse o Tenente Bradon, que parecia sentir-se fascinado com essa impressionante aula de História. — O istmo do Panamá provavelmente é a única faixa de terras que ainda sofrerá uma mudança acentuada. Por enquanto o istmo ainda é largo e bastante extenso, mas a América do Norte e do Sul se deslocarão para formar o golfo do Panamá.

A mata virgem estendia-se à nossa frente. Descemos entre algumas árvores altas e montamos um acampamento rudimentar. Desta vez tivemos sorte na caça. Sem sair do lugar, abatemos um animal parecido com um ursinho.

Bradon e Papageorgiu foram buscar a caça abatida. Doutreval foi procurar lenha seca. O chão estava úmido e pantanoso. Devia haver um pântano ou um mar por perto.

— É um castoróide — observou Bradon, enquanto tirava com muito trabalho a pele do animal abatido. — Pertence à família dos castores gigantes.

— Se Gucky descobrir que matamos um animal da família dos castores, teremos problemas — profetizou Redhorse.

Começamos a ficar mais animados. As dificuldades do vôo há tinham sido esquecidas. Acendemos uma fogueira, depois que Redhorse se certificara que a lenha realmente estava bem seca.

— A lenha verde solta muita fumaça — disse. — Não queremos atrair a atenção de ninguém.

Cortamos pedaços de carne do corpo do castor gigante, espetamo-los em galhos compridos e assamo-los no fogo. Devo confessar que foi a primeira vez que comi uma carne tão dura e insossa com tamanho apetite.

Terminamos a refeição singela e apagamos o fogo. Papageorgiu ficou de sentinela no primeiro turno, enquanto os outros caíram num sono profundo. Ficamos no mesmo lugar até a manhã do dia seguinte, sem sermos atacados. De vez em quando ouvia-se um galho ser quebrado na selva próxima, o que era um sinal seguro da presença de animais de

Page 371: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

371

grande porte. Captávamos regularmente as mensagens de rádio transmitidas da cidade em ruínas chamada Makata, que devia ficar a poucos quilômetros do lugar em que nos encontrávamos.

Nosso café da manhã consistiu em carne de castor assada e água de chuva retirada das folhas afuniladas de diversas plantas. Durante a noite voltara a chover. Partimos, descansados e com a fome saciada. Redhorse removeu os restos da fogueira, enquanto Papageorgiu e eu enterrávamos os restos do castor.

Saímos voando rente às copas das árvores da mata extensa. Pela primeira vez avistamos animais maiores. Entre eles havia um tatu-gigante e uma preguiça-gigante, que estava apoiada, imóvel, numa árvore. A preguiça-gigante era o maior sáurio de sua época. Pesava mais que um elefante e tinha seis metros de altura quando ficava apoiada nas pernas traseiras.

Imaginei que a caça de monstros dessa espécie seria um tanto perigosa, mesmo que usassem armas energéticas.

Atravessamos a mata e ficamos junto à linha costeira. Parecia que a suposição de Redhorse, segundo a qual Lemúria desaparecera no Pacífico, estava sendo confirmada pelos acontecimentos. De fato, não encontramos o menor sinal do continente gigantesco.

Don Redhorse deu ordem para que reduzíssemos a velocidade. — Estão vendo aquele planalto? — perguntou. — Se não estou muito enganado, a

cidade em ruínas chamada Makata deve ficar lá. Alguns edifícios estão cobertos pela vegetação, mas continuam perfeitamente reconhecíveis.

Redhorse enxergava muito bem, mas até mesmo eu reconheci os restos daquilo que já fora uma grande cidade lemurense no planalto que surgira à nossa frente. Em três lugares diferentes subiam nuvens de fumaça para o céu encoberto.

— É para lá que vamos — disse Redhorse. — Não sei se seremos recebidos como inimigos. Por isso devemos ter muito cuidado. Vamos...

O resto de suas palavras foi abafado pelos estalos do pequeno rádio que trazia consigo. Redhorse ligou imediatamente o amplificador e mexeu nos botões.

Ouvimos a voz de uma mulher que parecia falar assustada para dentro do microfone. — ...isolados. Estou cercada pelos mutantes, que tentarão seqüestrar-me. Ajudem-me

o mais depressa que puderem, senão estou... A voz silenciou. — Deve ser lá adiante! — exclamou Redhorse. — Vamos! Acho que vale a pena

darmos uma olhada de perto. Pode ser que a vida de alguém esteja em perigo. Saímos voando pela borda da mata. Perguntei a mim mesmo como Redhorse esperava

encontrar a mulher no meio da selva fechada. De repente uma figura esbelta com cabelos longos apareceu obliquamente à nossa frente. Era uma moça. Saiu correndo no meio das árvores e vivia olhando para trás.

— Deve ser ela! — gritou Redhorse. Dali a instantes os perseguidores saíram da mata. Eram sete criaturas terrivelmente

deformadas. Algumas estavam nuas, enquanto outras vestiam peles. Traziam pesadas clavas de madeira e machados de pedra nas garras, nos tentáculos e nas mãos atrofiadas.

— Pelo amor de Deus! Quem são eles? — gritou Doutreval com um gemido. — A moça aludiu a mutantes — lembrou Redhorse. Fiquei apavorado ao ver um dos

selvagens brandir o machado de pedra, que logo foi arremessado. A desconhecida foi atingida na nuca e caiu no chão. Ficou imóvel. Os bárbaros soltaram gritos de triunfo e apressaram o passo.

— Atirem neles! — gritou Redhorse.

Page 372: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

372

Os mutantes, ou fossem lá quem fossem os inimigos da moça, ainda não nos tinham visto. Redhorse e Bradon deram dois tiros de alerta, que abriram uma vala à frente dos selvagens. Nuvens de fumaça subiram do chão.

Pousamos a alguns metros da desconhecida. Os mutantes pararam. Pareciam indecisos. Não tive a menor dúvida de que se tratava de descendentes dos lemurenses, que com o correr do tempo haviam sofrido uma mutação negativa, que os fez regredir ao nível dos homens da idade da pedra. Seus corpos tinham sofrido deformações terríveis.

O chefe era um homem alto com pernas de aranha e rosto alongado. Os braços pendiam numa posição estranha junto ao corpo. Possuía um único olho, alongado e com uma expressão rígida. A outra metade do rosto estava coberta de escamas.

Este homem feio resmungou alguma coisa para os companheiros. Sua voz era parecida com a de um animal. Os mutantes uivaram furiosamente e recuaram para a selva.

Finalmente tivemos tempo para cuidar da moça. Virei o rosto para ela e notei que se mexia. Quando se deu conta de que tinha caído, soltou um grito, mas ao ver-nos ficou mais calma.

Era esbelta e tinha cabelos escuros. Usava uma manta que ocultava as formas do corpo. A moça que acabávamos de salvar era muito bonita.

— Quem são os senhores? — perguntou. — Por que me ajudaram? Redhorse passou por cima da primeira pergunta. — A senhora estava só — respondeu. — Quer dizer que a relação de forças era

bastante injusta. Só quis que houvesse uma compensação. A moça parecia ter gostado da resposta. Levantou com um sorriso. Apressou-se em

remover a sujeira que cobria sua manta. — Meu nome é Monira — disse a título de apresentação. — Separei-me de meu grupo

durante uma caçada — seu rosto mudou de expressão, quando se lembrou do que acontecera. Depois fitou-nos um após o outro e disse com uma estranha ênfase: — Parece que os senhores salvaram minha vida.

— A senhora diz isso como se ajudar alguém fosse um crime — observou Redhorse, espantado.

Monira parecia embaraçada, mas logo voltou a controlar-se. — Quero saber de onde vieram — insistiu. Redhorse fez um gesto vago. — Viemos do norte — respondeu. — Lá existe... — logo se corrigiu — ...existiu uma

cidade chamada Godlar. Vivíamos lá, até que o gelo nos obrigou a ir para o sul. Recebemos algumas mensagens transmitidas pelo rádio. Queremos ligar-nos aos lemurenses que vivem aqui.

— O senhor fala nossa língua com um estranho sotaque — disse a moça. — É mesmo? — perguntou Redhorse com o maior sangue-frio. — Eu já ia dizer isso

da senhora. A moça deu uma risada, exibindo duas fileiras de dentes muito brancos. Agitou os

cabelos longos enquanto sacudia a cabeça. “Pare de admirá-la, Brazos, seu idiota velho”, pensei, contrariado. — Meu nome é Don — prosseguiu Redhorse. — Este jovem é Chard Bradon. Este aqui

é Olivier Doutreval e o grandalhão se chama Papageorgiu — finalmente apontou para mim. — O gorducho costumamos chamar de Brazos — informou.

Lancei-lhe um olhar furioso, mas ele o ignorou. — As mensagens de rádio a que o senhor se referiu foram transmitidas por nosso

grupo — disse Monira. — Foram dirigidas a um grupo de lemurenses que vivem mais ao sul.

Redhorse apontou para o planalto. — É lá que a senhora vive? — perguntou.

Page 373: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

373

A moça estremeceu. — Felizmente não. As ruínas de Makata só são habitadas pelos mutantes. Vivemos nos

abrigos que ficam perto do antigo porto espacial. — A senhora acredita que possamos negociar com o chefe de seu grupo? —

perguntou Redhorse. Monira apontou para a arma energética de Redhorse. — Qualquer reforço é bem-vindo — bateu no cinto, no qual havia um coldre.

Certamente perdera a arma que havia nele. — Estamos bem equipados, mas é possível que de repente os mutantes arrisquem um ataque.

— Quantas pessoas há em seu grupo? — perguntou Bradon. — Somos trezentos e vinte e dois — informou a moça prontamente. — Quando puser

os olhos em nosso equipamento, o senhor vai ficar admirado. Conseguimos salvar muita coisa.

— Quer dizer que possuem aparelhos bastante avançados, como por exemplo aparelhos de hiper-rádio? — perguntou Redhorse, admirado.

— Naturalmente — respondeu Monira, entusiasmada. — Além disso conseguimos manter em funcionamento os reatores atômicos de

nossos antepassados. Dessa forma dispomos de uma fonte de energia inesgotável — um sorriso resignado apareceu no rosto de Monira. — Mas quanto às reservas de gêneros alimentícios as coisas estão muito ruins. Somos obrigados a caçar. E durante as caçadas sempre entramos em choque com os mutantes de Makata.

Parada assim à nossa frente, a moça parecia uma pessoa muito resoluta. O fato de ter sido salva por pessoas desconhecidas não parecia preocupá-la nem um pouco. Afinal, estes desconhecidos poderiam ter intenções hostis.

Lastafandemenreaos Papageorgiu passou por mim e chegou perto da moça. Agitou as mãos enormes bem à frente de seu rosto.

— Não se feriu na queda? — perguntou. Sorriu para Redhorse como quem pede desculpas, já que o cheiene dava a impressão de que não sabia o que pensar a respeito do procedimento do grego.

— Desculpe o procedimento de John — prosseguiu o rapaz. — É tão interessado nas coisas técnicas que esquece o resto.

— Não faz mal — disse Monira. — Também tenho interesse nas coisas técnicas. A queda não me afetou.

— Não? — Papageorgiu balançava os braços que nem um louco, à procura de um motivo plausível para bater em retirada. — Bem, se não precisar... quero dizer...

Ficou vermelho e baixou a cabeça. — O que ele quer dizer é que estamos contentes porque a senhora se saiu bem disso

— disse Doutreval na sua maneira elegante. — Ouça só o que ele diz — cochichou Bradou ao meu ouvido. — Talvez seria conveniente que a senhora nos levasse para junto de seu grupo e nos

apresentasse ao chefe—sugeriu Redhorse. — Queiram acompanhar-me — sugeriu Monira. Saiu em direção à mata, sem olhar para ver se a acompanhávamos. Tive a impressão

de que preferiria que fizéssemos meia-volta. — Parece que não ficou nada contente ao saber que queremos ir com ela — disse

Redhorse. — Mas temos de entrar em contacto com seus amigos. Saímos andando. Doutreval colocou-se a meu lado e estalou a língua, num gesto de

admiração. — Veja só o modo dela andar — disse. Olhei-o com uma expressão zangada.

Page 374: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

374

— Acho que ela anda da forma pela qual se deve andar na selva. Não vejo nada de extraordinário nisso.

Doutreval brindou-me com um olhar de desprezo. Quando atingiu a borda da mata, Monira parou.

— Acho que devem ficar com as armas preparadas — recomendou. — Os mutantes podem voltar a qualquer momento com uma força mais numerosa.

Desapareceu entre as raízes altas das árvores gigantescas. Apressamo-nos para não ficar atrás. Monira mostrou muita habilidade em passar por cima dos obstáculos que havia no caminho.

Depois de algum tempo atingimos uma clareira e defrontamo-nos com um grupo de lemurenses armados, que pareciam estar à procura da moça.

— Não atirem! — gritou Monira. A advertência foi dirigida tanto a nós como aos seus amigos. Os homens aproximaram-se devagar. Eram todos altos e robustos. Suas roupas eram

simples, mas limpas. Traziam carabinas energéticas e bombas de arremesso no cinto. Monira contou em poucas palavras o que tinha acontecido.

A expressão de dureza abandonou os olhos dos homens. Felicitaram-nos. Um deles chegou a bater no meu ombro. Ao contrário de Monira, pareciam sentir-se felizes porque pretendíamos entrar em contacto com seu grupo.

— Vamos levá-lo onde está Baton, que é nosso chefe — disse um dos homens. — Ficará contente em vê-los.

— Quanto a isso não tenho a menor dúvida — disse Monira com uma ponta de ironia na voz.

Os lemurenses nem pareciam ter notado as preocupações da moça. Levaram-nos pela metade em meio a ruidosas demonstrações de alegria. Depois de algum tempo atingimos uma área aberta.

Vimos alguns edifícios cobertos pela vegetação. — Só conservamos os edifícios mais importantes—disse um dos homens que nos

acompanhavam. — Principalmente aqueles em cujo interior foram montadas as instalações técnicas. Habitamos os abrigos que ficam do outro lado do porto espacial Estes edifícios não estão sujeitos aos ataques dos mutantes de Makata.

Uma trilha atravessava ao antigo espaçoporto. Quando tínhamos percorrido mais ou menos metade da área livre, uma sentinela nos fez parar, mas permitiu que passássemos assim que ficou sabendo de nossa história.

Finalmente chegamos aos abrigos. À frente dos edifícios baixos a terra estava limpa e batida. Havia várias sentinelas. Um homem de meia-idade, de ombros largos, saiu do edifício maior e veio correndo em nossa direção.

— É Baton! — exclamou Monira. Apesar da pressa, o lemurense irradiava uma aura de dignidade e autoridade. Um

sorriso indiferente brincava em torno de seus lábios estreitos. Seus olhos eram vigilantes. Pousaram em cada um de nós, até que voltaram a concentrar-se em Redhorse, que Baton parecia ter identificado imediatamente como nosso chefe.

— Sejam bem-vindos em nossa base — disse Baton com a voz calma. Levantou a mão num gesto de cumprimento. — Ficamos gratos pela recepção amável — disse Redhorse. Baton aproximou-se de Monira e colocou o braço sobre os ombros da moça. Tive a

impressão de que Monira tolerava o contacto desse homem a contragosto, mas olhou para ele e sorriu.

— Os senhores salvaram a vida de Monira — disse Baton. — Sentimo-nos obrigados por isso. Fiquem conosco o tempo que quiserem.

Page 375: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

375

Redhorse agradece e fez a apresentação dos homens. Um dos lemurenses, um homem esbelto cujo nome era Roulos, levou-nos a um abrigo coberto pela vegetação.

— Fiquem morando aqui — disse. — O interior da residência pode parecer um tanto relaxado, porque o abrigo não estava habitado. Mas vamos ajudar para que fiquem confortavelmente instalados.

— Obrigado — disse Redhorse. Roulos retirou-se, deixando-nos sós e abandonados à frente do edifício que seria

nossa residência nos próximos dias. — Foi uma recepção ligeira — observei. — Parece que nenhum dos lemurenses se

interessa pelo nosso passado. Pensei que fôssemos interrogados. — Eles têm de travar uma luta dura pela vida — respondeu Redhorse. — Antes assim

que derramarem uma amabilidade exagerada sobre nós. Tenho certeza de que ficarão de olho em nós. Mas não demonstrarão sua natural desconfiança — pensativo, coçou o queixo. Via-se que estava com a barba por fazer. — Acabarei de dizer aos lemurenses de onde viemos.

— Acha que deve fazer isso, senhor? — perguntou o Tenente Bradon, estupefato. — Por aqui existem aparelhos de hiper-rádio — lembrou Redhorse. — Se quisermos

usá-los, teremos de apresentar um motivo plausível. Por que não vamos contar que saímos de uma colônia, numa nave lemurense, para examinar o setor de Vega? O resto poderemos contar como realmente aconteceu. Talvez os lemurenses estejam informados sobre a existência da estação tefrodense na área das geleiras.

— Sugiro que antes de mais nada demos uma olhada em nosso alojamento — disse Papageorgiu. — Certamente teremos muito trabalho.

Afastamos as trepadeiras e os arbustos que obstruíam a porta. Redhorse foi obrigado a abrir a fechadura a tiro. Finalmente pudemos entrar. Uma lufada de ar viciado bateu em nossos rostos. Ligamos as lanternas.

Um lemurense entrou depois de nós. — Foi Baton que me mandou — disse o jovem, ofegante. — Vim para ajudá-los a

arrumar sua residência — riu embaraçado. — Já temos alguma experiência nisto. Meu nome é Tebos.

— Fico-lhe muito grato — disse Redhorse. Tive certeza de que Tebos viera não somente para ajudar-nos, mas também para

espionar. Os lemurenses ainda não confiavam em nós. Achei isso bem natural. Tebos, que trouxera sua própria lanterna, ligou o suprimento de energia do abrigo. No

mesmo instante as lâmpadas presas no teto se acenderam. Estávamos numa sala de cerca de quarenta metros quadrados. As instalações consistiam apenas em algumas máquinas velhas, cobertas com plásticos transparentes. Havia poeira em toda parte.

— O ar-condicionado está funcionando — afirmou Tebos, orgulhoso, e ligou a ventilação. — Acho que estas máquinas não os incomodarão. A maior parte delas está inutilizada. Os senhores terão de fabricar seus próprios móveis de madeira. Isto também se aplica às camas.

Doutreval franziu o nariz. — Antes de mais nada temos de retirar a sujeira — disse. — Não quero dormir no

meio de nuvens de poeira. Quem sabe se por aqui não existem os antepassados dos animaizinhos que costumamos chamar de percevejos?

Tebos fitou-o com uma expressão de perplexidade. — Percevejos? — repetiu. — Que é isso? — Nada! — respondeu Redhorse, apressado, e lançou um olhar de alerta para o rádio-

operador. — Ele só estava brincando.

Page 376: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

376

Doutreval compreendeu a advertência. Não devíamos dizer nada que pudesse mostrar que vínhamos de outra época. Isto só traria complicações desnecessárias.

— A moça que salvamos é casada? — perguntou Papageorgiu. — Casada? — o lemurense fitou-o como quem não tinha compreendido. — O que

significa isso? — Quero saber se ela tem um homem — disse Papageorgiu, inseguro. Tebos entesou o corpo. Via-se que não gostava de falar nisso. Provavelmente não

sabia exatamente o que poderia contar e o que devia permanecer em segredo. Tiramos os trajes de combate e pusemo-nos a limpar a sala. Devo confessar que Tebos

era melhor que nós neste trabalho. Levava mais sujeira para fora que todos nós juntos. No fim até chegou a trazer dois baldes de água.

— Os senhores não possuem sua própria ligação de água — disse como quem pede desculpas. — Mas ali adiante, entre os dois abrigos maiores, existe uma fonte. A maior parte dos habitantes vai buscar água lá.

Quando começou a escurecer, tínhamos arrumado nosso alojamento o suficiente para que se pusesse dizer que estava limpo. Tebos explicou que naquela noite ainda teríamos de dormir em cima dos trajes de combate. No dia seguinte ajudaria na fabricação de camas e outros móveis. Em seguida o jovem lemurense desejou que tivéssemos uma boa noite e retirou-se.

— Cheguei a pensar que fiaria conosco de vez — observou Bradon. — Já está na hora de conversarmos sobre a situação em que nos encontramos — apontou para a porta. — Já notou que não faz muito tempo que os lemurenses chegaram aqui?

— Por que diz isso? — perguntou Redhorse, espantado. — Fiquei de olho nas coisas. O caminho que atravessa o porto espacial foi aberto há

pouco tempo. E as plantas que cobriam os edifícios habitados pelos lemurenses foram retiradas há pouco tempo.

— Os lemurenses são obrigados a fazer regularmente este trabalho — observou o major. — As plantas levam pouco tempo para cobrir os caminhos e as construções. Acho perfeitamente natural que se tenha a impressão de que os lemurenses limparam o terreno pouco antes de termos chegado aqui.

Achei que a objeção de Bradon tinha sua razão de ser, mas mesmo que fosse verdadeira, não tínhamos motivo para desconfiar dos lemurenses.

Já tinha escurecido de vez, quando alguém bateu à porta. Doutreval abriu e vi um sorriso amável em seu rosto quando Monira entrou. A moça

trazia um recipiente com comida embaixo do braço. — Trouxe alguma coisa para comer — disse. Em seguida atravessou rapidamente a sala e colocou a panela em cima de uma

máquina, que por enquanto estávamos usando como mesa. — Muito obrigado — disse Redhorse. Monira acenou com a cabeça e ia saindo, mas Redhorse deteve-a antes que chegasse à

porta. — Há quanto tempo a senhora e seus amigos já se encontram nesta área, Monira? —

perguntou. A moça parecia apavorada. Doutreval, que se encontrava perto da porta, fechou-a

cuidadosamente. A moça olhou rapidamente para trás. — Não compreendi — disse em tom inseguro. Redhorse apontou para Bradon e sorriu. — Meu amigo acha que só faz alguns dias que seu grupo chegou aqui — disse. Monira engoliu em seco.

Page 377: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

377

— Por que teve essa idéia? — perguntou. — Vivemos aqui há muito tempo. É ...é um bom lugar.

— A senhora tem medo de alguma coisa — afirmei. Monira olhou para mim. Em seguida virou-se para sair. O major fez um sinal e Doutreval abriu a porta. Quando a moça estava passando perto

dele, o rádio-operador fez uma mesura irônica. Bateu a porta atrás dela. — Há algo de errado por aqui, senhor — resmungou Bradon. — Também tenho essa impressão — confirmou Redhorse. — Mas não se esqueça de

que por aqui existe um hiper-transmissor. Se quisermos usá-lo, teremos de chegar a um acordo com os lemurenses.

Fui para perto da panela trazida por Monira. — Sopa de legumes com carne — informei aos meus amigos. — Não é bom discutir

com o estômago vazio. Depois de jantar voltaremos a conversar. Quando estávamos comendo, Papageorgiu disse em tom pensativo: — Se os mutantes de Makata não possuem outras armas além de clavas e machados

de pedra, então não compreendo por que os lemurenses, que afinal dispõem de armas modernas, ainda não atacaram a cidade em ruínas e expulsaram seus habitantes.

— Talvez ainda não tiveram tempo depois que chegaram aqui — disse Bradon.

* * *

Fui despertado por um ruído indefinível e ergui-me imediatamente na cama. A porta estava entreaberta. Vi à luz de uma grande fogueira que os lemurenses tinham acendido na praça livre situada entre os abrigos. A fogueira provavelmente servia para espantar os animais selvagens e os mutantes de Makata.

Peguei a lanterna e iluminei os lugares em que meus companheiros estavam deitados. Redhorse tinha desaparecido. Os outros estavam mergulhados num sono profundo. Levantei bem devagar e fui até a porta, cuidando para não fazer nenhum ruído. Havia duas figuras agachadas perto da fogueira. Eram lemurenses montando guarda. Não vi o menor sinal do major. Saí e fechei cuidadosamente a porta.

Redhorse estava sendo leviano, andando sozinho na escuridão. Tratei de ficar na sombra de nosso abrigo e afastei-me da porta. Do abrigo maior, que estava com a porta aberta, saía uma luminosidade. Nesse abrigo morava Baton. Será que Redhorse resolvera procurá-lo? Tive minhas dúvidas. Se o major tivesse a intenção de entrar em contacto com Baton, ele certamente nos teria informado. O vento frio da noite me fez estremecer. O grito triste de um animal veio da selva próxima. Os lemurenses que montavam guarda junto à fogueira não faziam nenhum movimento. Certamente já estavam habituados a este tipo de ruído.

De repente Baton apareceu na entrada de seu abrigo. Os contornos de sua figura alta e muito larga nos ombros eram inconfundíveis. O lemurense ficou algum tempo no mesmo lugar. Finalmente veio andando rapidamente em direção a outro abrigo. Perdi-o de vista, mas ouvi o rangido de suas botas na areia. Dali a pouco ouvi-o chamar um nome em voz baixa. Uma porta rangeu ao ser aberta. Esperava que aparecesse alguma luz, mas no interior do abrigo ao qual Baton se dirigia estava escuro. Ouvi Baton dizer algumas palavras que não compreendi. Em seguida desapareceu no interior do abrigo. A porta foi fechada ruidosamente. Levantei os ombros num gesto de resignação. Se o chefe dos lemurenses era dado a visitas noturnas, isto era uma coisa que dizia respeito exclusivamente a ele. Ou será, perguntei a mim mesmo, numa súbita desconfiança, que essa atividade tem algo a ver com nossa chegada?

Page 378: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

378

Atingi a extremidade do edifício no qual fôramos alojados. Hesitei. Não era nenhum índio como Redhorse. O major sabia encontrar seu caminho, por mais escuro que estivesse. Sabia interpretar qualquer ruído. Eu não possuía esta capacidade. Apesar de tudo prossegui. O primeiro abrigo que atingi estava habitado, mas em seu interior reinava o silêncio.

Passei por ele sem fazer ruído, o mais depressa que pude. Redhorse não ficaria muito satisfeito se descobrisse que eu também saíra. Mas, disse a mim mesmo em minha defesa, ele deveria ter-nos avisado.

Estava na altura em que ficava a fogueira. Um dos guardas lemurenses levantou, espreguiçou-se e bocejou. O outro olhava para ele com uma expressão de tédio.

— Será que ainda vai demorar muito? — perguntou o homem que acabara de levantar.

— Sei lá — resmungou o outro. — Quem dá as ordens não sou eu. Os dois pareciam ser um tanto calados, pois não conversaram mais nada. Refleti sobre

o sentido de suas palavras. Podiam significar muita coisa, e não se podia saber se tinham alguma coisa a ver conosco. Mas tive uma forte impressão de que os dois lemurenses estavam pensando em nós quando tiveram sua conversa.

Os homens atiraram lenha na fogueira. Aproveitei o barulho para andar um pedaço. Não sabia o que estava procurando, mas o sentimento de que uma desgraça estava para acontecer me fez avançar cada vez mais. Quando me encontrava a cerca de duzentos metros de nosso abrigo, alguém me agarrou de repente pelo braço e me puxou para o lado. Fiquei tão assustado que fui incapaz de esboçar qualquer gesto de defesa.

— Se acha que tem de ficar rastejando por aí, pelo menos não faça o barulho de um mamute — disse a voz bem conhecida de Redhorse. — Ouço-o há vários minutos.

Meu coração batia com violência. — Senhor! — exclamei, perplexo. — Pensei que estivesse andando sem barulho. — Sem barulho! — repetiu Redhorse, irônico. — O que faria se em vez de mim se

encontrasse com um estranho, que apontasse uma arma para o senhor? — Fiquei preocupado — respondi. — Notei que tinha saído e resolvi ir atrás do

senhor. — Quando precisar de auxílio, avisarei, cabo Surfat — cochichou Redhorse,

indignado. — Sim senhor — respondi, desolado. Tive a impressão de que era supérfluo e tive vontade de voltar. — Olhe para lá — pediu, ligando a lanterna por um instante, para mostrar a direção.

Do outro lado da selva, no lugar em que ficava o planalto, via-se o clarão de várias fogueiras no céu noturno.

— É Makata, a cidade em ruínas dos mutantes — cochichou Redhorse. — Gostaria de saber o que está acontecendo por lá.

— Quer dizer que vamos visitar a cidade em ruínas? — perguntei. — Depende, Brazos. Coisas esquisitas estão acontecendo aqui. Talvez tenhamos uma

possibilidade de negociar com os mutantes. Ouvi Redhorse virar a cabeça. — Por enquanto vamos voltar ao nosso abrigo. Redhorse foi na frente. Quando passamos por uma construção menor, ouvimos uma

mulher soluçando pela porta entreaberta. Redhorse parou tão de repente que esbarrei nele.

— Monira mora aqui — disse. — Parece que alguma coisa a entristece. — Não consigo compreender essa moça, major — respondi cochichando.

Page 379: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

379

Redhorse empurrou-me à sua frente. Dali a alguns minutos chegamos ao nosso abrigo. Papageorgiu estava à nossa espera junto à entrada, de arma na mão.

— Já ia saindo para verificar o que estava acontecendo — resmungou. Parecia aborrecido por ter perdido a oportunidade de participar da excursão noturna.

— Tudo bem — respondeu Redhorse. —Vamos dormir.

Page 380: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

380

3 Quando estava amanhecendo, Baton veio fazer-nos uma visita. Estávamos tomando a

refeição preparada por Tebos. Baton sentou no chão a nosso lado e esperou em silêncio até que terminássemos. Em seguida fez um gesto para que Tebos saísse. Aquele homem grande parecia desfrutar uma autoridade sem limites.

Baton fitou-me com uma expressão irônica. Não consegui livrar-me da impressão de que estava informado sobre minha excursão noturna.

— Os senhores tiveram toda a noite para pensar — principiou Baton. — Estou ansioso para saber se resolveram ficar conosco.

Redhorse limpou cuidadosamente a boca. Olhou demoradamente para Baton, como se quisesse descobrir seus pensamentos.

— Sabemos perfeitamente que, ao participarmos de seu grupo, teremos de desempenhar determinadas tarefas. Que tarefas seriam estas?

Baton deu uma risada. Seu cabelo, que já estava ficando grisalho em alguns lugares, tinha sido cuidadosamente penteado. A figura de Baton combinaria melhor com uma grande sala de reuniões que com o mundo perigoso em que nos encontrávamos.

— Nosso trabalho consiste principalmente na manutenção das diversas máquinas e instalações energéticas — respondeu. — Além disso há os trabalhos de limpeza, construção e, naturalmente, precisamos de homens que saiam para caçar.

— Suponhamos que aceitamos sua generosa oferta — respondeu Redhorse. — Nesse caso teríamos de cumprir invariavelmente suas ordens e as normas que promulgar?

— Sei perfeitamente que viveram em condições bem diferentes das que estamos acostumados a encontrar aqui — respondeu Baton, calmo. — Por isso julgo conveniente conceder-lhes um prazo de adaptação. Mas depois disso teriam de submeter-se às minhas ordens, tal qual os outros — Baton voltou a sorrir. — Não sou nenhum tirano, mas para sobreviver neste ambiente é importante que minhas ordens sejam fielmente cumpridas.

— Parece razoável — respondeu Redhorse. — Temos... Ouviu-se o ruído de uma sereia do lado de fora. Baton levantou e foi para a porta. — É o alarme — disse. — Esta sereia anuncia um ataque dos mutantes. Papageorgiu e eu entreolhamo-nos por um instante. Os abrigos dos lemurenses não

eram considerados inexpugnáveis? Baton parou na entrada. — Aí está sua primeira tarefa — disse. — Ajudem-nos a repelir os atacantes. Seguimos Baton, sem colocar os trajes de combate. Havia mais de cem lemurenses

armados na praça aberta. Baton gritou algumas ordens. Os homens espalharam-se. Baton apontou para o

campo de pouso do antigo porto espacial, que estava tomado pela vegetação. — Virão de lá — disse. — Sem dúvida terão uma superioridade de dez para um. Tomamos posição atrás de um talude, juntamente com Baton e outros vinte

lemurenses. A sereia parou de tocar. Um silêncio que parecia anunciar uma desgraça espalhou-se pela área. A fogueira acesa no centro da praça estava reduzida a um pequeno monte de cinzas fumegantes. Nuvens baixas passavam por cima da selva.

Fiquei sentado ao lado de Redhorse e Papageorgiu. Do outro lado havia alguns lemurenses deitados. Olhei por cima do talude. Um estranho exército se aproximava, vindo da selva. Os antepassados dos seres que o compunham tinham sido lemurenses, mas entre nossos inimigos eram raros aqueles que ainda tinham uma aparência humana.

— Não atirem! — gritou Baton. Sua voz atravessou o campo de pouso. — Deixem-nos chegar mais perto.

Page 381: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

381

Os mutantes que o ouviram irromperam numa gritaria ensurdecedora. — Quantas vezes eles já atacaram? — perguntei ao lemurense que se encontrava à

minha direita. O homem limitou-se a dar de ombros. Certamente não queria dar nenhuma informação, ou então não sabia que resposta devia dar.

De repente veio alguém correndo de trás, virei a cabeça e vi Monira, que veio ao lugar em que estávamos abrigados, carregando uma carabina energética. Sentou ao lado de Redhorse. Vi Baton franzir a testa. Mas não deu ordem para que a moça voltasse. Levantei um pouco para ver onde havia outros lemurenses deitados. Baton espalhara seus homens por seis lugares. As mulheres ficaram paradas na entrada dos abrigos. Também estavam armadas.

Os atacantes já tinham atravessado metade do campo de pouso. Sacudiam ameaçadoramente suas armas primitivas.

— Fogo! — gritou Baton. A luta não durou mais de seis minutos. Os mutantes que ainda estavam em condições

de fugir correram para a selva. Baton levantou e enfiou a arma no cinto. — Que isso lhes sirva de aviso — disse em tom de desprezo e fez um sinal para

Redhorse. — Faça o favor de comparecer ao meu abrigo daqui a uma hora, trazendo seus companheiros, para que possamos conversar.

Redhorse confirmou com um gesto. Os lemurenses recolheram-se aos seus alojamentos. Monira foi a única que ficou perto de nós. Fitava o campo de pouso com os olhos arregalados.

— Que coisa horrível! — disse. — Há centenas de mortos por lá. — Fique conosco, Monira — disse Redhorse em tom resoluto. — Surfat e eu vamos

verificar se há feridos. — Querem sair para o campo de pouso? — perguntou a lemurense, apavorada. — Queremos — confirmou Redhorse. — Vamos, Brazos. — Um instante! — disse a moça e colocou a carabina energética sobre os ombros. —

Irei com o senhor, Don. — Isto não é para mulher — respondeu o major, aborrecido. — Fique com meus

amigos até eu voltar. — Não aceito ordens do senhor — insistiu Monira. — Também irei. Pensei que Redhorse fosse perder a paciência, mas ele só se virou abruptamente e

passou por cima do talude. Monira e eu fomos atrás dele. Os lemurenses não se preocuparam com os mutantes atingidos pelos tiros. Certamente esperavam que na noite seguinte os animais selvagens devorassem os horríveis restos da batalha.

Esforcei-me para ficar com os olhos presos nas costas largas de Redhorse, uma vez que não queria ver os cadáveres dos mutantes. Monira caminhava a nosso lado, com o rosto pálido e os lábios cerrados.

De repente ouvimos um gemido. — Ali! — gritou Redhorse. Uma das pobres criaturas se erguera. Estava mortalmente ferida. Redhorse inclinou-se sobre ela. — O senhor me compreende? — perguntou em tefrodense. O ferido tentou golpear o major, mas este recuou imediatamente. — Cuidado! — gritou Monira. — Viemos para ajudar — disse Redhorse ao mutante. — Fique quieto. Os olhos de gato do mutante desapareceram atrás das pálpebras, que antes pareciam

córneas. A criatura gemia de dor. Mexeu os lábios carnudos. — Nossas... cavernas... — disse o mutante de forma quase imperceptível. Redhorse apoiou o moribundo.

Page 382: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

382

— Sim — disse. — O que há com as cavernas de vocês? — Eles... nos expulsaram... — conseguiu dizer o mutante, fazendo um grande esforço.

— Mas nós... as reconquistaremos. O sangue correu pelos lábios carnudos. A cabeça do mutante caiu para trás. Monira

virou o rosto para outro lado e soluçou. Redhorse levantou. — O que significa isso? — perguntou a Monira. — Os mutantes habitavam os abrigos

que ficam em torno do porto espacial antes que o grupo de Baton aparecesse aqui? Monira sacudiu lentamente a cabeça. — Deixe-me em paz! — gritou subitamente. Cerrou os punhos pequenos e bateu

várias vezes no peito de Redhorse. — Por que fica me maltratando? — gritou. Virou-se abruptamente e saiu correndo na direção dos abrigos. Seguimo-la com os

olhos, estupefatos. — Vamos falar com Baton — disse Redhorse. — Já está na hora de ele me dizer o que

está acontecendo aqui.

Page 383: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

383

Interlúdio Perry Rhodan estava parado na entrada da cabine, olhando para a ruína mental que

antigamente tinha sido o agente do tempo Frasbur, tão seguro de si. Frasbur jazia na cama, imóvel. Estava com os olhos arregalados, mas não parecia ver as coisas que o cercavam.

Rhodan viu o telepata John Marshall, que estava sentado na cama, levantar e acenar lentamente com a cabeça. Compreendeu o sentido do gesto e saiu para o corredor. Marshall foi atrás dele e fechou a porta.

A nave-capitânia da Frota Solar, a Crest III, abandonara o planeta Pigell, situado no setor de Vega, depois que os moduladores de gens suspenderam as hostilidades. A estação do tempo do sexto planeta de Vega fora avariada pelos termolança-chamas e pelos polarizadores, a ponto de se ter tornado inútil não somente para os terranos, mas também para os senhores da galáxia.

Os exames haviam revelado que o Major Don Redhorse passara pelo transmissor de matéria dessa estação, juntamente com cinco tripulantes, e fora sair num lugar desconhecido. Rhodan dera ordem para decolar. O ultracouraçado afastara-se do setor de Vega com algumas manobras lineares realizadas com o maior cuidado.

— Nossas suspeitas se confirmaram, senhor — disse Marshall, dirigindo-se a Rhodan. — Dos dados armazenados na mente de Frasbur conclui-se que é muito provável que o grupo de Redhorse tenha sido irradiado para a Terra, onde existe uma estação do tempo parecida com a de Pigell.

— Obrigado, John — disse Rhodan laconicamente. Sabia que o mutante tinha de fazer um grande esforço para penetrar na mente arruinada de Frasbur.

Rhodan e Marshall foram à sala de comando da Crest III, Rhodan contou em poucas palavras aos oficiais e cientistas presentes o que Marshall tinha descoberto.

— Será que Frasbur não tenta enganar-nos? — perguntou um dos cientistas. — Isso é impossível! — observou Gucky. — O agente do tempo foi completamente

privado de sua vontade. Posso confirmar o que John acaba de dizer. Frasbur tem certeza de que o transmissor de Pigell estava conjugado com um aparelho da mesma espécie situado na Terra. Quer dizer que não existe a menor dúvida de que Redhorse e seus companheiros saíram na Terra. Infelizmente nem mesmo Frasbur sabe o que os espera por lá. A estação da Terra fica na área das geleiras e é controlado pelo agente do tempo Rovza.

— Acho que no setor de Vega não conseguiremos mais nada — disse Rhodan. — Seguiremos com destino ao Sistema Solar.

Uma vez terminada a discussão, Atlan aproximou-se de seu amigo terrano. Como ficara quieto o tempo todo, Rhodan sabia que ele tinha suas dúvidas.

— Parece que você resolveu salvar de qualquer maneira os seis homens desaparecidos — disse Atlan.

Foi uma observação corriqueira, que Atlan lançara para levar Rhodan a revelar seus planos. O Administrador-Geral teve de sorrir. Os dois já se conheciam há tanto tempo que os truques de um já não enganavam o outro. Mas viviam tentando enganar-se: Atlan compreendeu o sorriso do terrano.

— A excursão para a Terra é possível, desde que seja cumprido um sem número de condições — prosseguiu Atlan.

— Permita que eu lhe pergunte o que pretende fazer. Afinal, não podemos excluir a possibilidade de encontrar naves halutenses ou tefrodenses pela frente. Até é possível que ainda haja algumas naves lemurenses no Sistema Solar.

Page 384: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

384

— Não tenho a menor idéia do que iremos encontrar na Terra. Muita coisa pode ter acontecido nos quinhentos anos que penetramos no futuro relativo.

— Vamos tentar algumas hipóteses — sugeriu Atlan. — Os lemurenses foram quase totalmente exterminados. As geleiras avançavam até a latitude quarenta. E a atividade dos halutenses restringe-se a alguns vôos de patrulhamento.

— E qual é o lugar dos senhores da galáxia neste quadro? — perguntou Rhodan. — Nenhum — confessou o arcônida. — Não há como enquadrá-los no conjunto.

Representam o fator de insegurança. Por isso teremos de agir com a maior cautela. Precisamos acostumar-nos à idéia de que o grupo de Redhorse caiu nas mãos dos senhores da galáxia. E com os recursos que nossos inimigos possuem, eles de certo não tiveram nenhuma dificuldade em fazer com que os prisioneiros lhes revelassem tudo que queriam saber.

— Na pior das hipóteses, isso pode ter acontecido — confirmou Rhodan. — Mas espero que Redhorse tenha conseguido levar seu grupo a um lugar seguro. Qualquer oficial, inclusive Redhorse, sabe o que está em jogo.

Atlan deixou-se cair na poltrona. Os dois ficaram absortos em pensamentos por algum tempo. Rhodan tinha consciência do risco que estaria assumindo se levasse a Crest III para perto da Terra. Mas por outro lado não podiam permanecer inativos, se ainda quisessem ter uma esperança de voltar à sua época.

Se os dados que Gucky e John Marshall tinham recebido de Frasbur eram corretos, na Terra também havia uma estação do tempo. Pelo que se dizia, esta era parecida com a de Pigell. Portanto, a estação acompanhava o movimento quando era dado um salto pelo tempo, ao contrário da armadilha do tempo do planeta Vario, que permanecia em sua própria época.

Esta circunstância poderia causar dificuldades imprevisíveis, pois era perfeitamente possível que o grupo de Redhorse tivesse sido aprisionado pelos senhores da galáxia ou seus ajudantes e levado a uma época diferente.

Perry Rhodan combateu a sensação de desamparo que ameaçava tomar conta dele. Os senhores da galáxia pareciam ser superiores em tudo, mas a experiência do passado mostrara que também eram vulneráveis.

— Você deveria avisar todos os tripulantes de que a Terra da qual nos aproximamos é um planeta desconhecido e perigoso — disse Atlan em meio aos pensamentos de Rhodan. — Muitos deles se sentirão inclinados a ver no planeta o mesmo do qual decolou a Crest.

— Psicologicamente isso é perfeitamente compreensível — disse Rhodan. — E a observação também se aplica a nós dois, especialmente a você — disse Atlan.

— Temos de partir do pressuposto de que travaremos uma guerra. Uma guerra contra o mundo que dentro de cinqüenta mil anos será o nosso.

Page 385: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

385

4 Entramos no abrigo. Baton estava parado perto duma mesa metálica, conversando

com Roulos e mais três lemurenses. Notei que os homens demonstravam um respeito que quase chegava a ser humilhante para com o chefe.

Baton virou a cabeça ou ouvir-nos entrar. — Ah, sim! — disse. — Vieram cedo. Fez um sinal para que os quatro lemurenses que estavam em sua companhia

recuassem para a parede oposta. Em minha opinião, ficariam lá para vigiar-nos e impedir qualquer ato de hostilidade.

— Podemos continuar a conversa interrompida — sugeriu Baton e apontou para algumas cadeiras feitas de galhos de árvores.

Redhorse empurrou violentamente duas cadeiras e aproximou-se da mesa. — Antes de discutirmos a possibilidade de nos juntarmos ao grupo, quero saber

quem são os mutantes de Makata — exigiu. — Tive oportunidade de falar com um dos feridos, que morreu em seguida.

Pela primeira vez Baton deu a impressão de não se sentir tão seguro. O lemurense alto contornou a mesa e apoiou-se com os braços na tampa.

— Os mutantes são descendentes do grande povo dos lemurenses, da mesma forma que nós — respondeu. — Conseguiram salvar-se antes que o continente Lemúria fosse tragado pelo mar.

— Por que em seu grupo não existem mutantes? — perguntou Redhorse em tom enérgico. — Não venha me dizer que seus membros não estavam sujeitos a mutações.

Baton baixou a cabeça. Quando voltou a levantar os olhos, havia uma expressão resoluta em seu rosto.

— Não toleramos mutantes entre nós — disse. — Toda vez que nasce uma criança, ela é cuidadosamente examinada. Se houver a menor suspeita de que...

— Compreendo — interrompeu Redhorse. — Acho que é um procedimento desumano, mas não temos o direito de ditar regras aos senhores. De qualquer maneira, queremos fazer um jogo franco. Vou contar a verdade sobre nossa origem, Baton. Viemos de Godlar, mas não pertencemos aos sobreviventes desta cidade. Mais ao norte existe um estabelecimento pertencente a um povo que o senhor provavelmente não conhece. E dentro deste estabelecimento está instalado um transmissor.

Don Redhorse contou em detalhes a história de nossa fuga. Mas não disse que éramos terranos vindos do futuro. Fez Baton acreditar que pertencíamos a um grupo de colonos que saíra para procurar uma nova pátria no setor de Vega.

— Então — mentiu o major — afastamo-nos demais de nossa nave e fomos parar na estação de Pigell.

Baton não interrompeu a exposição de Redhorse. Seu rosto não mostrava se acreditava no que o major estava dizendo.

— Já contei tudo a nosso respeito. Espero que a oferta de entrarmos em seu grupo seja mantida.

— Sei que no norte existe um estabelecimento construído por seres desconhecidos — disse Baton para nossa surpresa. — Acontece que até hoje nunca tivemos problemas com estes desconhecidos. Parece que só estão aqui para fazer observações.

— Nunca tentaram entrar em contacto com o senhor? — perguntou Bradon, perplexo. Baton sacudiu a cabeça. O comportamento dos tefrodenses não me deixou nem um

pouco espantado. Para eles podia ser indiferentes que mais de mil quilômetros ao sul

Page 386: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

386

algumas centenas de lemurenses lutassem pela vida. Baton e seus homens não representavam qualquer poder militar, da mesma forma que os mutantes.

— Gostaríamos de usar o rádio para tentar entrar em contacto com nossa nave — disse Redhorse em meio às minhas reflexões. — Será que a aparelhagem do antigo porto espacial de Makata ainda está em condições de funcionar?

Notei que Baton hesitou antes de dar a resposta. Não parecia gostar da idéia de chamar uma nave. Sua desconfiança era justificada. De repente o rosto de Baton mudou de expressão.

— Nenhum dos aparelhos de hiper-rádio ficou intacto — disse. — Mas acredito que poderão consertar pelo menos um deles. Os especialistas pertencentes ao meu grupo poderão ajudar.

Redhorse respirou aliviado e agradeceu. — Sei que, permitindo que chamem sua nave, estarei assumindo um risco — disse. —

Espero que nunca tenha de arrepender-me da decisão que acabo de tomar. — Garanto que não se arrependerá — asseverou Redhorse. Baton fez um gesto vago. — O senhor certamente compreenderá que depois do ataque dos mutantes ainda

tenho algumas coisas a resolver. Amanhã cuidaremos dos aparelhos de rádio. Enquanto isto poderão sair para caçar. Tebos os acompanhará. Tenham cuidado.

Saímos do abrigo de Baton. Não consegui livrar-me da impressão de que ele nos enganara.

— Não compreendo sua generosidade, senhor — disse Bradon, desconfiado. — Com seu povo ele não se mostra tão amável. Expulsa os mutantes e domina o grupo como um ditador.

— O Tenente Bradon tem razão, major — confirmei. — Quem sabe se não tem esperança de conquistar a nave e usá-la em seu benefício? Pela primeira vez desde o momento em que tínhamos chegado ao antigo porto

espacial de Makata vi Redhorse dar uma gostosa gargalhada. — Pois então Baton terá uma boa surpresa quando a Crest aparecer aqui. Certamente

pensa que viajávamos numa pequena nave exploradora. Por enquanto deve continuar a pensar assim. Quando o ultracouraçado aparecer perto dele, ele se esquecerá de seus planos de conquista e nos quererá ver longe daqui.

Voltamos ao nosso abrigo. Depois de algum tempo apareceu Tebos. Carregava uma arma energética e ficou parado na entrada.

— Baton mandou que viesse para cá — disse. — Quer que os acompanhe quando saírem para caçar.

Redhorse foi para a porta. Deu um ligeiro empurrão em Tebos. O jovem lemurense recuou. Redhorse nem tentou esconder sua contrariedade.

— Não precisamos de uma babá — disse, furioso. — Volte para onde está Baton e diga-lhe que iremos caçar sozinhos.

Tebos engoliu em seco. — Não façam isso — protestou num murmúrio. — Terei problemas. — Isso não nos interessa — retrucou Redhorse e empurrou-o. Em seguida fez um

sinal com a cabeça. — Vamos! — pediu. — Está na hora de arranjarmos alguma coisa para o jantar. Tebos saiu correndo. Sem dúvida dirigia-se ao abrigo de Baton. Informaria o

comandante sobre a recusa que acabara de ouvir. Não acreditei que Baton nos impedisse de entrar na selva sozinhos.

— Por que o mandou embora, senhor? — perguntou Bradon. — Acha recomendável provocar Baton?

Page 387: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

387

— Não quero provocá-lo, mas não faço nenhuma questão de ser acompanhado constantemente por um espião. Tebos foi enviado para vigiar-nos. Se ficarmos sós, poderemos explorar a área.

— As ruínas de Makata — cochichei para Papageorgiu. — Receio que o major queira ir para lá. — O senhor disse alguma coisa, cabo? — perguntou Redhorse. — Não senhor! — apressei-me em responder. Saímos do edifício baixo e atravessamos sem incidentes a área livre. Atingimos as

primeiras árvores. Redhorse mandou que parássemos. Passamos alguns minutos observando os abrigos. Parecia que ninguém nos seguia. Prosseguimos, ficando sempre na borda da mata, para podermos ficar de olho nos abrigos. Fiquei aliviado ao notar que Redhorse seguia em direção oposta à que ficava a cidade em ruínas.

Quando atingimos o porto espacial, paramos de novo. A vegetação era tão densa que não se via mais nada do chão aplainado do porto espacial. Com o tempo o piso duro tinha sido rompido pelas raízes.

— Se não estou enganado, ali ficam os restos de uma torre de tele controle — disse Redhorse, apontando para uma elevação em forma de pirâmide situada a uns duzentos metros do lugar em que nos encontrávamos.

— A torre desabou, mas talvez possamos entrar nos pavimentos inferiores. — Espere, senhor! — exclamou Doutreval. — Veja este sujeito lá atrás. Viramos a cabeça. Tebos aproximava-se da mata virgem, com a arma sobre o ombro

direito. Provavelmente não acreditava que ainda pudéssemos vê-lo. Certamente pensava que tínhamos penetrado mata a dentro.

— Foi enviado por Baton — constatou Papageorgiu, contrariado. — Levará algum tempo para encontrar-nos.

Redhorse apontou para o outro lado do campo de pouso. — Ali há mais um homem nos vigiando. Vimos um lemurense correr abaixado pela área livre. Se continuasse na mesma

direção, chegaria perto do monte de escombros que, na opinião de Redhorse, era o que restava da antiga torre de telecomando.

— Vamos ficar de olho nos dois — decidiu Redhorse. — Se chegarem muito perto, nós lhes daremos uma surra. Afinal, Baton prometeu que nos concederia um prazo para nos adaptarmos ao ambiente.

Voltei a olhar para Tebos. Dei um passo para o lado, para que Doutreval tivesse oportunidade de observar o outro vigia enviado por Baton. Foi o que salvou minha vida.

Uma sombra saiu entre dois troncos e veio em minha direção. A força do impacto foi tamanha que me atirou a alguns metros de distância. Ouvi uma coisa fungando. Redhorse deu um grito. Rolei no chão e vi a boca enorme da fera em cima de mim. Dois dentes de punhal saíam dessa boca. Era um tigre-sabre, que rasgava o chão com as garras. Estava perturbado por não me ter alcançado no primeiro salto. Tirei apressadamente a arma. Papageorgiu deu um tiro, mas não acertou no monstro. O calor do disparo fez com que o tigre se virasse abruptamente. De seus dentes pingava espuma. Os olhos pareciam chispar fogo, e as orelhas tremiam de tão nervoso que estava.

Voltei a rolar para afastar-me do animal. Redhorse atirou. Atingiu o tigre nas costas. O animal gritou enfurecido. Doutreval não podia atirar. Estava muito longe e podia atingir um de nós.

O tigre levantou de um salto. Revelou uma força tremenda ao saltar. Vi-o precipitar-se sobre Papageorgiu. Não perdi tempo: atirei. O animal foi atingido durante o salto e tombou no chão. Roncou mais uma vez e o corpo ficou em repouso, depois de alguns movimentos convulsivos. Só então voltei a pôr-me de pé.

Page 388: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

388

Redhorse afastou os cabelos da testa. Doutreval aproximou-se e deu um pontapé no cadáver do animal selvagem.

— Cuidado! — advertiu Redhorse. — Se este felino desferir um golpe enquanto estiver em agonia, ainda poderá tornar-se perigoso.

Papageorgiu fitou-me com uma expressão de evidente desagrado. — Eu sabia que seria arriscado entrar na mata virgem com o senhor — disse. — Sua

figura atrai qualquer animal carnívoro. — Se não quiser, não entre! — resmunguei. — Se tivesse prestado mais atenção, nem

teria havido o ataque. — Que isto nos sirva de aviso! — disse Redhorse em tom sério. — Cada passo nesta

terra desconhecida pode trazer novos perigos. Olhei para o felino gigante. Era um belo animal, com músculos vigorosos e um lindo

couro. Quanto não pagaria um colecionador do ano 2.404 por um exemplar destes? Sacudi a cabeça. O couro de um animal destes não pertencia ao futuro.

— Vamos andando — ordenou Redhorse. — Fiquem um atrás do outro e prestem muita atenção.

A luta com o tigre despertara a atenção de Tebos e do outro lemurense. Desapareceram imediatamente entre as árvores. Já sabiam onde procurar-nos. Mas nem por isso Redhorse parecia disposto a abandonar seu plano.

Atingimos os escombros da torre de tele controle, cobertos pela vegetação. Atrás deles encontramos o que restava de outro edifício. Mas este fora totalmente destruído.

Doutreval e Bradon entraram nos escombros, à procura de uma entrada. — Não compreendo por que os lemurenses ainda não desobstruíram esta torre —

observei, dirigindo-me a Redhorse. — Por aqui há muita coisa difícil de explicar — retrucou o major. — Baton não confia

em nós. Logo, não deve ter contado tudo. — Aqui, senhor! — exclamou Bradon. — Podemos passar entre as pedras. Antes que pudéssemos seguir Bradon e o pequeno rádio-operador, um lemurense

saiu da mata. Aproximou-se com a arma apontada. Era o mesmo que já tínhamos visto antes.

— Baton não quer que fiquem bisbilhotando aqui — disse em tom áspero. — Mate quantos animais quiser, mas fique longe das construções.

— Dê o fora! — gritou Redhorse e saiu andando. O lemurense levantou a arma. Redhorse não lhe deu atenção. Fez sinal para que

Papageorgiu e eu o seguíssemos. Fui atrás dele, embora não me sentisse muito à vontade. Não sabia até onde chegavam os poderes do lemurense. Quem sabe se Baton não lhe dera ordem para, se necessário, deter-nos à força?

— Fiquem onde estão! — gritou o lemurense. Estava nervoso, e parecia ter medo de não poder cumprir as ordens de Baton. Bradon e Doutreval tinham afastado algumas pedras, criando uma passagem bastante

ampla para deixar passar um homem. O lemurense disparou um tiro de alerta para cima de nossas cabeças, quando estávamos dispostos em torno da entrada.

Mas logo pareceu dar-se conta de nossa superioridade. Virou-se e saiu correndo na direção em que ficavam os abrigos. — Foi buscar reforços — opinou Bradon. — Acho que não devemos forçar demais as

coisas, senhor. — Não acredito que Baton faça mais alguma coisa. — O quê? — exclamei, surpreso. — Pensa que ele nos deixará vasculhar calmamente

este lugar?

Page 389: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

389

— Naturalmente — retrucou Redhorse. — Ele quer nossa nave. E para isso deverá deixar-nos mais ou menos bem-humorados. Se houver uma luta declarada, Baton correrá o risco de nos recusarmos a transmitir uma mensagem pelo hiper-rádio.

Bradon inclinou-se sobre a abertura e iluminou os escombros. — Há alguém lá dentro, major! Fiquei de joelhos e olhei pela abertura. Vi dois homens cobertos de peles, iluminados

pela lanterna de Bradon. Estavam agachados num canto. A sala que ficava logo embaixo de nós estava quase toda cheia de escombros, entre os quais cresciam musgos e cogumelos.

— São mutantes — disse Redhorse. Vi que um dos homens tinha cabelos no rosto e mão atrofiadas. O outro, que segurava

firmemente uma lança de madeira, era calvo. Seu crânio estava coberto de grandes verrugas.

— Apague a lanterna, tenente — ordenou Redhorse. — Não vamos assustá-los. Talvez possamos entrar em acordo com eles.

Bradon retirou a lanterna da abertura. Imaginei o medo que os dois mutantes deviam sentir. Certamente acreditavam que pertencíamos ao grupo de Baton.

— Somos amigos! — gritou Redhorse em tefrodense para dentro da sala desabada. — Saiam, que nada lhes acontecerá.

No meio dos escombros continuou tudo em silêncio. Não sei por que, mas fiz votos para que os dois mutantes não saíssem do esconderijo. Não tinha muita vontade de vê-los à luz do dia.

O cheiene esperou alguns minutos e tentou de novo. — Saiam! — gritou. — Queremos ajudá-los. Um dos mutantes resmungou alguma coisa, mostrando que estava de acordo.

Afastamo-nos da entrada. O homem que segurava a lança foi o primeiro a sair. Sua posição mostrava que estava com medo. Parou junto à entrada, com o corpo encurvado. Redhorse esperou que o outro mutante saísse.

— Não pertencemos ao grupo dos seus inimigos — disse o major. O mutante que segurava a lança grunhiu alguma coisa que ninguém compreendeu.

Levantou o braço e apontou na direção em que ficava a cidade em ruínas chamada Makata. Depois levou a mão à boca e fez um ruído de quem está comendo.

— Parece que está com fome, senhor — conjeturou Doutreval. — Caçar com lança de madeira não deve ser nenhum perigo.

— Vamos levá-los para onde está o tigre-sabre — decidiu Redhorse. — Assim demonstraremos nossa boa-vontade e provaremos a força de nossas armas. Quem sabe se depois disso não estarão dispostos a ajudar-nos?

Compreendi que Redhorse queria que os mutantes lhe contassem alguma coisa a respeito do grupo de Baton, mas julgava muito arriscado tomar abertamente o partido dos habitantes da cidade em ruínas.

O major apontou para a selva. — Ali há carne que chega para vocês — disse. Os dois selvagens pareciam ver em sua bondade um sinal de indecisão. O calvo

levantou a lança, num gesto de ameaça. Papageorgiu deu dois passos em sua direção. O mutante tomou impulso com a lança, mas o robusto astronauta abaixou-se e arrancou-lhe a arma das mãos. O segundo mutante soltava sons inarticulados.

— Tenho minhas dúvidas de que entendam o tefrodense — disse Bradon. — Estão nervosos — reconheceu Redhorse. — Talvez tenham esquecido sua própria

língua — pediu que Papageorgiu lhe entregasse a lança e devolveu-a ao antigo dono. Em seguida pegou a arma energética e abriu uma vala no meio dos destroços.

Page 390: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

390

Os dois mutantes cobriram os olhos com as mãos. Certamente pensavam que sua hora tinha chegado.

— Somos seus amigos — disse Redhorse, paciente. — Amigos — repetiu o calvo, falando com dificuldade. — Sim — concordou Redhorse em tom de triunfo. — Vamos... Os dois mutantes morreram. Foram mortos pelos tiros disparados por duas carabinas energéticas lemurenses,

antes que Redhorse pudesse prosseguir na conversa que mantinha com eles. Tebos estava parado junto à torre desabada, com a arma apontada. A seu lado estava o lemurense que dissera que não deveríamos entrar nessa torre. Também atirara em um dos mutantes.

— Chegamos bem na hora! — gritou Tebos e subiu ao lugar em que estávamos. — Não se pode confiar nestes mutantes.

Atordoado, contemplei os dois mutantes que acabavam de ser mortos. Não compreendia que alguém os pudesse fuzilar a sangue frio.

Redhorse ficou em silêncio, à espera de que Tebos se aproximasse. Bateu com o punho fechado no rosto do lemurense. Tebos perdeu o equilíbrio e escorregou para onde estava seu companheiro, arrastando pedras e escombros.

— Foi um assassinato — disse Redhorse. — Os lemurenses queriam impedir que os mutantes nos revelassem certas coisas —

disse o Tenente Bradon. Tebos conseguiu pôr-se de pé e apalpou o rosto dolorido. Levantou a arma que

perdera na queda e virou-se para ir embora. O outro lemurense olhou-nos com uma expressão odienta. Finalmente virou-se abruptamente e foi atrás de Tebos.

— E agora? — perguntou Papageorgiu, deprimido. — Aconteça o que acontecer, não devemos perder os nervos — disse Redhorse. —

Baton não recua diante da idéia de ordenar aos seus homens que cometam um assassínio. Já sabemos o que nos espera aqui. Se não fossem os transmissores, abandonaríamos imediatamente o porto espacial.

Levamos os cadáveres dos mutantes para a caverna em cujo interior estiveram escondidos. Minha mente levou algum tempo para absorver o terrível acontecimento. O assassínio dos mutantes me deixara chocado.

Fechamos com pedras o acesso à sala destruída. Desta forma os animais não poderiam devorar os cadáveres.

— Está interessado em continuar a caçada, senhor? — perguntou Bradon com a voz áspera, dirigindo-se a Redhorse.

— Não — respondeu o major. — Vamos voltar. Quando chegamos perto dos abrigos, ninguém tomou conhecimento de nossa

presença. Entramos novamente na construção que fora reservada para nós. De noite Monira nos trouxe o jantar, mas colocou-o junto à entrada e foi embora imediatamente. Provavelmente soubera dos incidentes a preferia não falar conosco.

Na noite que se seguiu dormi muito mal. Meus pensamentos giravam em torno do assassínio de que tinham sido vítimas os dois mutantes. O crime fora executado por Tebos e seu companheiro, mas a responsabilidade era de Baton. Este homem grande, que irradiava tamanha autoridade, parecia não ter escrúpulos. Ninguém podia negar que Baton era uma personalidade fora do comum, mas nem por isso tinha o direito de colocar-se acima das regras que diziam o que era justo e o que era injusto.

— Tenho certeza de que amanhã Baton terá uma explicação bem preparada — disse Papageorgiu, que estava deitado no chão a meu lado. Parecia que o rapaz também não conseguia dormir.

— Precisamos dos lemurenses — respondi para esquivar-me a uma resposta direta.

Page 391: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

391

Ouvi-o fazer alguns movimentos violentos. — São assassinos! — chiou. — Acha que devemos apoiar esses criminosos, somente

porque isso poderá trazer-nos uma vantagem? Fiz votos de que Redhorse estivesse dormindo e não pudesse ouvi-lo. — Escute, rapaz — respondi, calmo. — Os descendentes dos lemurenses têm suas

próprias leis. Querem sobreviver de qualquer maneira. Não podemos aplicar a eles os mesmos padrões que valem para nós.

— Um assassinato sempre é um assassinato! — resmungou Papageorgiu. — Acho que deveríamos mudar-nos para Makata e lutar ao lado dos mutantes.

— Sem dúvida não seríamos recebidos de braços abertos — disse Redhorse no meio da escuridão. — Eles nos matariam ou expulsariam. Compreendo suas preocupações, mas não temos alternativa. Precisamos ajudar os lemurenses a consertar um transmissor.

Quando levantamos, dia claro, Baton veio ao nosso abrigo, acompanhado de seis homens. Cumprimentou-nos com uma estranha amabilidade.

— Estes são os homens que os ajudarão a consertar um dos transmissores — disse. — Este aqui é Sanosta. É o melhor técnico que temos.

Sanosta era um homem alto e magro, com dentes à vista e cabelos curtos. Manteve os braços afastados do corpo, com os polegares apoiados no cinto. Parecia mal-humorado. Limitou-se a cumprimentar-nos com certo desprezo.

Redhorse agradeceu a ajuda. — Outra coisa — disse Baton em tom indiferente. — Ouvi dizer que ontem houve um

incidente do outro lado do porto espacial — um sorriso frio apareceu em seu rosto. — Os senhores devem compreender que meus homens ficam nervosos quando se trata dos mutantes. Somos atacados constantemente pelos habitantes da cidade em ruínas. Tebos e Grolam temiam que eles pudessem matá-los. Mas compreendo sua reação violenta. Os dois foram punidos por sua ação irrefletida.

Baton saiu. Sanosta atravessou nossa sala a passos largos. — Não podemos montar o aparelho aqui — disse, contrariado. — Acho que será

preferível fazer o conserto no lugar em que se encontra. Acompanhem-me. Quando saímos, vimos o castigo que estava sendo aplicado a Tebos e Grolam. Uma

estaca fora colocada no centro da área livre que ficava entre os abrigos. Os dois homens estavam amarrados na ponta da estaca, com as pernas penduradas para baixo. Quando nos viu, Tebos começou a insultar-nos.

— Quanto tempo ficarão amarrados? — perguntou Redhorse a Sanosta. O técnico olhou para o chão e deu de ombros. Preferi não olhar para a estaca na qual

estavam amarrados os dois homens. Quando passamos pelo abrigo habitado pelas mulheres, Redhorse parou. Bateu à porta e chamou Monira.

A moça não demorou a aparecer. Notei que quase não tinha dormido. Havia manchas escuras sob os olhos.

— Leve alguma coisa para beber a esses homens — pediu Redhorse, apontando para a estaca.

— Não devem receber nada — respondeu a moça. — Baton não permite. Redhorse fitou a moça por alguns instantes. Finalmente seguimos nosso caminho.

Monira acompanhou-nos até o último abrigo. Fui o último do grupo. — Peça a Don que tenha cuidado — sussurrou a moça de repente ao meu ouvido e foi-

se afastando. Sanosta abriu a porta do abrigo que era o último da fileira. Entrou e acendeu a luz.

Fomos atrás dele. A sala na qual entramos parecia limpa. Numa parede oposta via-se um equipamento completo de rádio. Sanosta virou o rosto para nós. Pôs à mostra seus dentes feios num sorriso.

Page 392: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

392

— Que tal? Gostaram? — perguntou a Redhorse. — Gostamos muito — respondeu o major. — Desde que funcione. — Vai funcionar — prometeu o técnico, apontando para a entrada. — E aquilo ali? Gostaram? — perguntou em tom malicioso. — Não sei do que está falando — respondeu Redhorse. — Não sabe? — Sanosta soltou uma risada aguda. — Refiro-me à moça, a Monira.

Deixem-na em paz — bateu na testa, para mostrar que ela não estava muito bem na cabeça. — Ela tem um tique. Compreendeu? Um dia Baton a obrigará a ir para Makata.

— Pensei que tivéssemos vindo para consertar o rádio — observou Bradon. — Não estamos interessados na moça.

Lancei um olhar para as mãos de Redhorse, que estava com os punhos fortemente cerrados, a ponto de fazer aparecer os ossos das juntas. Compreendi que Sanosta poderia dar-se por feliz se Redhorse não o derrubasse com um soco. O cheiene não costumava descontrolar-se tão depressa. Do fato de que estava perdendo o autocontrole só se podia concluir que o técnico tinha razão. Para o major Monira não era uma moça igual a qualquer outra. Parecia que gostava dela.

Respirei profundamente. Se a suposição de Sanosta era correta, nossa situação tornava-se mais complicada.

— Por que o hiper-rádio foi instalado neste abrigo? — perguntou Redhorse. A tensão diminuiu. O técnico, que nem parecia ter-se dado conta do perigo a que se

expusera, bateu no revestimento do aparelho. — Quando as naves halutenses passaram a atacar-nos sem parar, a maior parte dos

aparelhos mais importantes foi guardada nos abrigos — explicou. — Ainda bem. Só assim conseguimos salvar os reatores, que nos abastecem de energia.

— Assim que este aparelho voltar a funcionar, transmitiremos uma mensagem — disse Redhorse. — O senhor há de compreender que faremos a transmissão em código.

— Naturalmente — respondeu Sanosta. — Os senhores não devem estar interessados em despertar a atenção dos halutenses.

Sanosta podia não ser muito simpático, mas sabia fazer seu trabalho. Dirigiu os trabalhos juntamente com Doutreval. De vez em quando um dos lemurenses saía para trazer peças sobressalentes. Admirei-me de que estas chegassem tão depressa. Quando tínhamos trabalhado durante quatro horas fizemos uma pausa. Um dos auxiliares de Sanosta trouxe alguma coisa para comer.

Quando reiniciamos o trabalho apareceu Baton para dar uma olhada. — Devemos terminar dentro de duas horas — disse Doutreval. — Fico admirado de

que o aparelho ainda se encontre em bom estado. — O senhor pensava que deixaríamos que nossas preciosas instalações se

estragassem? — perguntou Baton em tom grosseiro. — Avise quando tiverem terminado, Sanosta.

Já não tive a menor dúvida de que os descendentes dos lemurenses nos ajudavam por motivos puramente egoísticos. Pensavam mesmo que poderiam apoderar-se de nossa espaçonave. Baton certamente já tinha um plano detalhado. Tive de fazer um esforço para não rir. Quando visse a Crest III, Baton já não se sentiria tão seguro.

Redhorse e Doutreval eram os únicos que entendiam alguma coisa de transmissores, e por isso Bradon, Papageorgiu e eu só podemos realizar serviços manuais. Fiquei satisfeito quando Sanosta finalmente anunciou que o transmissor estava em condições de funcionamento. Mandou que um dos seus homens fosse informar Baton.

— Transmitirei um impulso condensado — disse Redhorse, dirigindo-se a nós. — Comunicaremos nossa posição à Crest. A resposta certamente demorará um pouco.

Page 393: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

393

Baton entrou. Soube reprimir muito bem seus sentimentos de satisfação. Fez de conta que aquilo o deixara indiferente.

— Chame seus amigos — pediu a Redhorse. — Boa sorte. Lembrei-me de Tebos e Grolan, que estavam pendurados no poste. Se não

conseguíssemos fazer com que o ultracouraçado viesse ao lugar em que nos encontrávamos, Baton acabaria fazendo a mesma coisa conosco. Talvez chegasse mesmo a fuzilar-nos ou exigir que nos juntássemos aos mutantes.

Redhorse e Doutreval aproximaram-se do transmissor. De repente tive a impressão de que estávamos cometendo um erro grave. Não havia nenhuma explicação razoável para isso. Quando Doutreval pôs a mão nas teclas, tive vontade de puxá-lo para trás. Bradon, que estava a meu lado, sorria. Ele, que era conhecido como o eterno pessimista, parecia muito esperançoso.

Baton também sorriu. Mas suas esperanças pareciam ser diferentes das nossas.

Page 394: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

394

Interlúdio Então era esta a Terra do ano 49.488 antes do nascimento de Jesus Cristo. O planeta

que aparecia na grande tela panorâmica da sala de comando da Crest III realmente era parecido com a Terra, mas, visto pelos telescópios, era um planeta gelado. As massas de gelo de ambos os pólos tinham avançado na direção do equador. Era o único lugar em que ainda existiam as afamadas colinas verdes da Terra.

Perry Rhodan tirou os olhos da tela do rastreamento espacial, que mostrava a imagem ampliada de todos os objetos abrangidos pelos microscópios. O continente Lemúria, que há quinhentos anos ainda cobrira parte da superfície da Terra, tinha mergulhado no Pacífico. Os outros continentes já apresentavam em sua maioria sua forma característica. A Europa e a América do Norte estavam cobertas de gelo.

— Não é um quadro muito acolhedor, senhor — constatou o Coronel Cart Rudo. — Se Redhorse e seus homens realmente se encontram na Terra, eles já devem ter pegado um resfriado.

Rhodan achou a expressão usada pelo coronel um tanto petulante, mas assim mesmo ela lhe pareceu apropriada.

A Crest III interrompera o vôo linear e circulava em torno da Terra à distância média de 400.000 quilômetros. Rhodan atendera ao pedido de Atlan e por isso ainda não chegara mais perto do planeta. O arcônida insistira para que se abstivesse desse tipo de manobra.

Atlan estava de pé ao lado do amigo, observando as telas. Os mutantes também estavam presentes. Rhodan ficou refletindo sobre o que deveria fazer em seguida.

Neste momento o hiper-rádio da Crest III recebeu um chamado. O rádio-operador de serviço pediu em tom exaltado que Rhodan se aproximasse. Atlan acompanhou o Administrador-Geral.

— Recebemos um impulso condensado. Não há dúvida de que vem da Terra, senhor — informou o rádio-operador, nervoso.

— Quero o texto exato — disse Rhodan. — Pois não, senhor. O rádio-operador ficou mexendo por algum tempo na aparelhagem. Finalmente

entregou uma fita de plástico estreita a Rhodan. “Estamos naquilo que será o centro do México” — leu Rhodan. — “Procurem localizar

um planalto próximo à costa, Tirem-nos daqui. Redhorse.” Rhodan segurou a mensagem de tal maneira que Atlan pôde lê-la. — Estão vivos — disse Atlan, aliviado. — As informações que os mutantes receberam

de Frasbur são corretas. Os homens saíram mesmo na Terra. Ainda bem que não se encontram na área das geleiras.

— Parece que no momento não correm nenhum perigo — constatou Rhodan. — Gostaria de saber como conseguiram pôr as mãos num hipertransmissor.

Rhodan voltou a ficar preocupado. Será que seus homens estavam sendo usados como chamarizes?

— Não pousaremos com a Crest — decidiu Rhodan. — O ultracouraçado permanecerá no espaço, na altura da órbita lunar. Faremos sair uma corveta com vinte especialistas. Marshall e Gucky viajarão na nave auxiliar. Antes que a corveta desça à superfície, Marshall e o rato-castor tentarão captar e examinar eventuais modelos de ondas cerebrais.

— Também acho que a Crest não deve chegar mais perto da Terra — concordou Atlan. — A nave deve permanecer no espaço, com os canhões prontos para disparar. Não podemos excluir a possibilidade de algumas naves halutenses aparecerem por aqui.

Page 395: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

395

Colocou a mão no ombro de Rhodan. — Assumirei o comando da corveta — disse em tom resoluto. Rhodan hesitou, mas acabou concordando. Gostaria de viajar ele mesmo a bordo da

corveta, deixando Atlan na nave, mas era obrigado a ficar para se necessário, fazer a Crest III entrar em ação. Tudo parecia calmo no Sistema Solar, mas isto poderia mudar de uma hora para outra.

Atlan saiu e dirigiu-se ao hangar. Um grupo de especialistas estava sendo escolhido e equipado para o vôo. Gucky e Marshall também foram para bordo da corveta. Rhodan estava impaciente, esperando que os preparativos fossem concluídos.

De vez em quando o Administrador-Geral lançava um olhar para as telas de imagem. A cortina de matéria cósmica que se formara entre Júpiter e Marte produzia seus efeitos mesmo no espaço. Os raios solares pareciam muito mais fracos que de costume.

Finalmente os homens que estavam de serviço no hangar avisaram que a corveta estava pronta para decolar.

Rhodan fez um sinal para Rudo. O coronel abriu a eclusa do hangar, usando o centro de computação positrônica da nave.

Dali a instantes a nave auxiliar, que tinha sessenta metros de diâmetro, apareceu nas telas de imagem. Seguiu diretamente para a Terra. Rhodan preferiu não entrar em contacto de rádio com Atlan. Se fosse necessário, poderiam fazer isso mais tarde. Qualquer transmissão de rádio que não fosse absolutamente necessária poderia atrair ao local espaçonaves desconhecidas.

— Parece que está correndo tudo de acordo com o plano, senhor — disse Rudo, satisfeito.

Os canhoneiros de serviço nos centros de artilharia do ultracouraçado estavam preparados para rechaçar imediatamente um eventual ataque. A Crest III estava em regime de rigorosa prontidão. Rhodan não estava disposto a cair novamente numa armadilha.

— Nos dois continentes americanos é dia — informou o Major Hefrich. — Assim a tarefa do Lorde-Almirante se tornará mais fácil.

Rhodan tentou imaginar as condições reinantes na Terra. Onde estaria Redhorse e seus companheiros? Será que ainda se encontravam no interior da estação tefrodense? Teriam sido obrigados a transmitir a mensagem pelo rádio? Ou será que conseguiram fugir?

O grande terrano sacudiu a cabeça de forma quase imperceptível. Seria inútil quebrar a cabeça com isso.

Podia confiar em Atlan e seus companheiros.

* * *

Quando a corveta estava penetrando na atmosfera da Terra, John Marshall lembrou-se do agente do tempo Frasbur. Mesmo que continuasse vivo, este homem nunca mais recuperaria totalmente as faculdades mentais. Frasbur transformara-se numa ruína. Marshall sabia que Gucky e os outros mutantes não eram constantemente martirizados pela própria consciência como ele. Os mutantes tinham destruído os diversos bloqueios mentais de Frasbur. E a mente do agente dos senhores da galáxia não resistira a isso.

As reflexões de Marshall foram interrompidas por uma hipermensagem vinda da superfície da Terra. Tratava-se de outra mensagem expedida por Redhorse. Atlan recebeu das mãos do rádio-operador a fita de plástico com a mensagem decifrada e entregou-a a Marshall.

Page 396: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

396

“Nos limites da área gelada existe uma estação do tempo dos senhores da galáxia” — leu Marshall. — “Há um transmissor instalado nela. Algumas centenas de robôs tefrodenses são mantidas de prontidão.”

— Eis aí a prova definitiva de que as informações de Frasbur são corretas — disse Atlan. — Redhorse resolveu prevenir-nos.

— Quer que me teleporte para a superfície da Terra? — perguntou Gucky. — Este índio certamente ficará aliviado se eu aparecer à sua frente.

— Por enquanto você não sairá desta nave — decidiu Atlan. — John, o senhor e Gucky se concentrarão em eventuais modelos de ondas cerebrais e vibrações mentais. Talvez assim consigamos descobrir o que está acontecendo lá embaixo.

O limite da área das geleiras era bem visível. Só havia umas poucas manchas escuras no branco sem fim das geleiras. Mais ao sul Atlan viu o cume fumegante de um vulcão. O fogo e o gelo ficavam bem perto do planeta dos terranos.

Atlan deu ordem para que os tripulantes tentassem localizar um planalto junto à costa. O arcônida vasculhou o pacífico. A única coisa que restava de Lemúria eram alguns arquipélagos pequenos. O continente enorme fora tragado pelas águas do oceano.

— Há seres inteligentes nas selvas — informou John Marshall. — Os modelos de suas projeções mentais são confusos. Não conseguimos localizá-los.

— Também estou captando os impulsos expedidos pelo consciente de algumas centenas de seres — confirmou Gucky. — Acho que se trata de descendentes dos antigos lemurenses que passaram por um processo de mutação. Vivem numa cidade em ruínas que em pensamento chamam de Makata.

— São bárbaros — disse Marshall. — Seus pensamentos são quase todos rudimentares e guiados exclusivamente pelos instintos. Pensam principalmente na caça e em certos inimigos.

— Será que Redhorse e seus companheiros se encontram entre estes seres? — perguntou Atlan.

— Os pensamentos dos mutantes não revelam nada a este respeito — respondeu Marshall, perplexo.

— Lá embaixo há um planalto gigantesco, senhor! — exclamou neste instante um dos astronautas.

Atlan passou a dedicar sua atenção às telas de imagem. O planalto ficava a apenas algumas milhas da costa. O arcônida mandou que a corveta seguisse mais para o oeste, deixando-a suspensa sobre o oceano a cem milhas da costa. Finalmente deu ordem para que o piloto fizesse descer a nave auxiliar da Crest III para bem perto da superfície do mar.

— Vamos aproximar-nos novamente da costa — decidiu. Lançou um olhar para Marshall, mas o telepata sacudiu a cabeça. Gucky também ficou

em silêncio. Atlan não tinha a menor dúvida de que encontrariam Redhorse, mas as estranhas emanações mentais captadas por Marshall e pelo rato-castor deixavam-no preocupado.

— Só pousaremos quando tivermos certeza de que não estamos entrando numa armadilha — disse Atlan. — Ativar campos defensivos e preparar todo o armamento disponível.

A corveta aproximou-se em velocidade reduzida daquilo que mais tarde viria a ser a costa do México. A bordo reinava o silêncio. Atlan era o único que falava de vez em quando, para dar suas ordens em tom resoluto. Gucky estava encolhido numa poltrona que era muito grande para ele.

Marshall ficou de pé atrás da poltrona de Atlan. Era a imagem da concentração máxima. O arcônida sabia que Marshall recebia constantemente fluxos psiônicos, mas deles não conseguia tirar nenhuma informação importante. Os rastreadores mentais da corveta

Page 397: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

397

entraram em funcionamento, mas só confirmaram aquilo que já fora descoberto por Gucky e pelo mutante.

O mar estava relativamente calmo. A costa formava uma linha escura no horizonte. Ainda não se distinguiam os detalhes. Atlan perguntou-se o que estaria acontecendo

na selva que dali a pouco estariam sobrevoando. Foi só mesmo o fato de a poderosa Crest III se encontrar na altura da órbita lunar, pronta para vir em seu auxílio, que o impediu de suspender a operação.

Um sentimento seguro lhe dizia que na costa havia uma armadilha à sua espera. Mas os dois tripulantes que possuíam dons telepáticos continuaram em silêncio. Dali

só se podia concluir que não tinham detectado qualquer perigo.

Page 398: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

398

5 Quando vi a corveta passar bem alto sobre a costa, meu coração bateu mais forte.

Estávamos parado na área livre entre os abrigos. Fazia poucos minutos que Redhorse tinha enviado outro impulso condensado para prevenir os tripulantes da Crest III contra a estação dos senhores da galáxia instalada na área das geleiras.

— Uma corveta! — exclamou Redhorse. — A Crest certamente já se aproxima da Terra, senão a nave auxiliar ainda não teria chegado.

Enquanto dizia isso, a corveta mudou de rumo e saiu em alta velocidade mar a fora. Logo desapareceu.

— Não nos descobriram, senhor — disse Bradon, decepcionado. — Temos de enviar outra mensagem.

— Esta manobra só representa uma medida de precaução — respondeu Redhorse para tranqüilizar o tenente. — A nave não demorará a voltar.

Só agora me dei conta da presença dos lemurenses, que também tinham observado a aproximação da nave de sessenta metros de diâmetro.

Baton olhou para o lugar da costa em que a nave acabara de desaparecer. Parecia distraído.

— Tivemos sorte — disse Redhorse, entusiasmado, ao lemurense. — Logo virão buscar-nos.

— As inteligências inferiores invariavelmente cometem o erro de deixar que seus atos sejam inspirados em grande parte pelos próprios desejos e sentimentos — disse Baton sem tirar os olhos da zona costeira.

Redhorse lançou-nos um olhar de advertência. Pus a mão na arma energética que trazia no cinto.

— O que quer dizer com isso, lemurense? — perguntou Redhorse. — Lemurense? — repetiu Bradon e virou-se abruptamente para encarar-nos de

frente. De repente os homens que nos cercavam tiraram as armas. Olhei em volta e vi que

havia pelo menos sessenta carabinas energéticas apontadas para nós. Seria inútil tentarmos defender-nos. Baton parecia deleitar-se com a situação. Foi para perto de Redhorse e tirou a arma que ele trazia no cinto. Atirou-a ao chão. Depois fez a mesma coisa com Bradon, Doutreval, Papageorgiu e comigo.

— Estes homens — disse, apontando para seus companheiros — não são lemurenses, da mesma forma que os senhores não são.

Papageorgiu e eu entreolhamo-nos sobressaltados. Doutreval fez alguns movimentos nervosos, mas bastou um sinal de um dos lemurenses para que ficasse imóvel.

— São tefrodenses, duplos conforme se costuma dizer — prosseguiu Baton com um sorriso arrogante. A revelação da verdade parecia dar-lhe um prazer todo especial. Conseguira bancar um jogo traiçoeiro.

— E quem é o senhor? — perguntou Redhorse, calmo. Baton desabotoou a manta que o envolvia e deixou-a cair ao chão. Vimos que trajava um conjunto-uniforme prateado.

— Meu nome é Toser Ban — disse, orgulhoso. — Sou um senhor da galáxia. O símbolo luminoso que trazia sobre o peito dava um sentido todo especial à

revelação grave que acabara de fazer. Sabíamos desde o início que este homem preparava uma armadilha para nós, mas

diante do fato de tratar-se de um senhor da galáxia não adiantava nada conhecermos suas intenções. A operação certamente fora planejada por Toser Ban em todas as minúcias. O

Page 399: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

399

objetivo final certamente era a destruição da Crest III. Apavorado, compreendi que sem saber tínhamos servido de chamarizes para atrair a nave-capitânia.

— Quer dizer que minha suspeita de que estes abrigos começaram a ser habitados há pouco tempo foi correta — disse Bradon, que teve de fazer um grande esforço para recuperar-se da surpresa.

— Chegamos pouco antes dos senhores — informou Toser Ban, que parecia divertir-se com nosso espanto. — Vim a este planeta pelo mesmo transmissor usado pelos senhores. Pouco depois de mim chegaram trezentos e vinte e um duplos. Fizemos tudo para dar um caráter real ao espetáculo — Toser Ban bateu na arma. — Até mesmo nossas armas são legítimas. E o radiotransmissor é de construção lemurense.

Toser Ban, ou Baton, conseguira deixar-nos chocados. O Major Redhorse parecia calmo, mas sabia que no íntimo se recriminava por não ter descoberto o plano do senhor da galáxia. Agora, que sabíamos quais tinham sido os golpes astuciosos usados contra nós, parecia que tudo teria sido fácil de prever. Ficamos concentrados demais em nossa salvação.

— Levem estes idiotas daqui — disse Toser Ban em tom de desprezo, fazendo um gesto relaxado. — Tranquem-nos no abrigo habitado por mim. Podem ficar lá até que tenhamos destruído a nave-capitânia do barco espacial enviado para resgatá-los.

Estas palavras atingiram-me com a força de um soco. Toser Ban sabia da existência da Crest III. Mal senti quando alguém me agarrou violentamente e saiu me arrastando. E se o senhor da galáxia conseguisse destruir a Crest III? Rhodan e Atlan encontravam-se a bordo do ultracouraçado.

Alguém me deu um empurrão. Caí ao chão. Uma porta foi fechada ruidosamente. Fiquei deitado na escuridão do abrigo, respirando com dificuldade.

— Podemos afirmar sem a menor sombra de dúvida que conseguimos colocar a Crest nas mãos dos senhores da galáxia — disse Redhorse.

Levantei devagar e saí cambaleante em direção à porta. Apoiei-me nela e tentei localizar uma abertura. Foi em vão.

De repente a porta foi aberta violentamente do lado de fora. Toser Ban apareceu na entrada, de arma em punho. Formava uma silhueta grande e impressionante contra o fundo claro e parecia dar-se conta disso, pois sua voz retumbante destruiu nossas últimas esperanças.

— Não pensem que os homens com dons parapsíquicos que se encontram a bordo da espaçonave saberão da minha presença neste lugar — disse em tom de deboche. — Eu e todos os duplos usamos um bloqueio especial contra a ação dos telepatas. E este aparelho é tão forte que serve para bloquear até mesmo os pensamentos dos senhores.

A porta voltou a ser fechada. Não ouvimos o que se passava do lado de fora, pois as paredes do abrigo eram muito espessas. Avancei tateando para o centro da sala e acabei esbarrando em alguém.

— Preste mais atenção! — exclamou Papageorgiu, irritado. Por algum tempo foram estas as únicas palavras pronunciadas por alguém

pertencente ao grupo. Todos experimentavam o mesmo sentimento doloroso da derrota final. Além de triunfar, Toser Ban desfrutara seu triunfo até a última gota.

— Precisamos fazer alguma coisa — disse Bradon depois de algum tempo. — Não podemos ficar aqui esperando, enquanto a tripulação da Crest voa para a morte.

Redhorse ligou sua lanterna. Haviam deixado as mesmas conosco, mas elas não nos serviam de nada. O cheiene iluminou a sala. Com as peças de mobiliário existentes também não podíamos fazer nada.

Page 400: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

400

— Quando ouvirmos uma explosão, saberemos que a corveta não existe mais — disse Redhorse, amargurado. — Felizmente a Crest parece encontrar-se longe demais para que tenhamos de ouvir sua destruição.

Senti o desespero que tomara conta de Redhorse. Sua voz parecia calma, mas senti que ele se recriminava fortemente. Não havia como escaparmos do abrigo, mas eu me recusava a aceitar o fato. Da mesma forma que muitas pessoas que se vêem numa situação desesperadora, tive o pensamento absurdo de que poderíamos ter deixado de notar alguma coisa que nos pudesse ajudar.

Mas o tempo foi passando sem que acontecesse nada. Fiquei refletindo sobre o que poderia ter acontecido com a corveta. Talvez ainda não tivesse pousado. Nas condições em que nos encontrávamos, só podíamos fazer votos de que fosse assim. A nave auxiliar excedia em forças as dos tefrodenses, mas não tive a menor dúvida de que Toser Ban tinha um meio de destruir uma grande nave. Contara com a chegada da Crest III e certamente estava preparado para isso.

Aquilo que os senhores da galáxia não tinham conseguido no tempo real, no interior da nebulosa de Andrômeda, parecia transformar-se em realidade cinqüenta mil anos no passado: a destruição da nave-capitania da Frota Solar e a eliminação dos homens mais importantes do Império.

Mesmo a contragosto, admirei a habilidade com que os senhores da galáxia nos tinham enganado mais uma vez. Cada lance de seu jogo fora muito bem preparado. Parecia que desta vez não havia como escapar.

— Antes Toser Ban nos tivesse matado — disse Doutreval. — Assim pelo menos não seríamos obrigados a assistir ao fim da Crest III.

Estas palavras pareciam ter despertado o velho arrojo de Redhorse. — Não! — exclamou, enquanto iluminava o rosto do pequeno rádio-operador. — Tão

depressa não desistimos, Olivier. Doutreval piscou os olhos, uma vez que estava sendo ofuscado. — O que podemos fazer, major? Nenhum de nós é um mutante capaz de atravessar as

paredes de concreto como se não existissem. — Toser Ban sem dúvida terá problemas — respondeu Redhorse. — A destruição do

ultracouraçado será mais difícil do que os senhores da galáxia imaginam. Não podemos resignar-nos. Talvez exista uma chance de escaparmos deste abrigo — iluminou o teto. — Vamos examinar cuidadosamente as paredes, o chão e o teto — decidiu. — Tenho minhas dúvidas de que encontremos uma saída, mas antes isto do que ficarmos inativos, à espera do momento em que Toser Ban mandará fuzilar-nos.

As palavras de Redhorse despertaram uma nova atividade em nós. Examinamos as paredes do abrigo, centímetro por centímetro. O exame foi mais cuidadoso junto à entrada. Isto ajudou-nos a esquecer nossas tristezas.

Fiquei iluminando constantemente a porta. Papageorgiu carregou Doutreval nos ombros, para que o pequeno rádio-operador pudesse verificar o teto.

Um ruído vindo da porta levou-me a interromper meu trabalho. — Senhor! — gritei para Redhorse. — Acho que está chegando alguém. Os outros também interromperam as buscas. A luz de cinco lanternas foi dirigida para

a entrada, mergulhando-a numa claridade ofuscante. A porta foi aberta e Monira esgueirou-se por ela. Apressou-se em fechá-la de novo.

Trazia duas carabinas energéticas lemurenses sobre os ombros. Seu rosto estava pegajoso de tão sujo. Vi que tinha chorado. Estava com os cabelos desgrenhados. Ficou parada, olhando para nós. Sua respiração era ofegante.

Em minha opinião devemos ter levado pelo menos um minuto para recuperar-nos da surpresa.

Page 401: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

401

— Monira! — exclamou Redhorse, perplexo. — Que é isso? — Ninguém me viu! — respondeu Monira em tom apressado. Pegou as carabinas e

entregou-as a Redhorse. — Os homens estão de olho na nave que se aproxima, vinda da costa. Fujam antes que eles os matem.

— Monira! — voltou a exclamar Redhorse. A moça irrompeu em soluços. Redhorse fitou-a como quem não sabe o que fazer.

Entregou-me uma das carabinas. — Não podemos deixar a moça aqui — disse Doutreval. — Toser Ban mandaria fuzilá-

la. Monira sacudiu fortemente a cabeça. — Sou um duplo—disse. — Ficarei com os tefrodenses. — Venha conosco! — insistiu Redhorse. — A bordo de nossa nave você poderá ser

ajudada. Monira sacudiu a cabeça e recuou para a porta. Tive pena dela, mas ao mesmo tempo

a admirava pelo risco que tinha assumido. Compreendi que não o fizera por nós, mas por Redhorse.

O major foi para a porta, abriu um pedaço e olhou por ela. — Não vejo ninguém — informou, aliviado. — Quando estivermos lá fora, fugiremos

para a cidade em ruínas. — Fez um sinal. — Vocês irão na frente — decidiu. Saímos um por um. Redhorse e Monira foram os únicos que continuaram no interior

do abrigo. Corremos para os fundos da construção o mais depressa que pudemos. Ali pelo menos não podíamos ser vistos pelos tefrodenses. Vi alguns duplos do outro lado do antigo campo de pouso de Makata. Pareciam nervosos. Certamente a corveta se aproximava.

— Vou ver o que está acontecendo ao major — avisei. Fui para a frente da construção, bem encostado à parede, e vi Monira sair do abrigo.

Neste momento apareceram três homens do outro lado da área livre. Acabavam de sair de um dos abrigos. Avistaram Monira e em seguida Redhorse, que saía atrás dela.

Deitei no chão para não ser visto. Redhorse advertiu a moça, mas ela continuou a andar com o corpo levantado, como se

não visse o que acontecia em torno dela. Os três tefrodenses puxaram as armas. Redhorse deixou-se cair no chão e fez pontaria

com a carabina energética. Monira parou e virou a cabeça para o major. — O comandante de sua nave deve prestar muita atenção! — gritou para Redhorse.

— Na Lua existe uma... Os três tefrodenses atiraram. Monira foi atingida e cambaleou. Caiu ao chão bem à

frente de Redhorse. Abri fogo contra os duplos. Os tefrodenses que se encontravam do outro lado do porto espacial tiveram a atenção despertada.

— Major! — gritei. — Temos de dar o fora. Redhorse rastejou em direção à moça, que estava deitada no chão, com o corpo

encurvado. Um dos três homens que tinham atirado nela estava morto, enquanto os outros se haviam abrigado atrás de algumas elevações.

— Está morta! — gritou Redhorse, desesperado. Sua voz era parecida com a de um louco. Fiquei apavorado ao vê-lo levantar e sair correndo em direção aos dois tefrodenses

que continuavam em seus abrigos. Atirava ininterruptamente com sua carabina energética. Parecia que enlouquecera.

Neste momento minha inteligência deixou de funcionar. Com um salto pus-me de pé e saí correndo atrás de Redhorse. Os dois tefrodenses atiravam de dentro do esconderijo, no qual se sentiam seguros. Mas a audácia de Redhorse os pegara de surpresa. Não conseguiram fazer boa pontaria. Neste momento algumas dezenas de tefrodenses se

Page 402: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

402

aproximaram, vindos do outro lado do campo de pouso tomado pela vegetação, para ajudar os dois companheiros que se viam em dificuldades.

Um de nossos adversários perdeu os nervos e saltou para fora do abrigo. — Major! — gritei com a voz se atropelando. — Temos de recuar. O outro tefrodense também saiu do abrigo. Esticou o braço e fez pontaria com toda

calma. Neste momento Papageorgiu saiu de trás do abrigo, gritando desesperadamente para nós. Fuzilei o duplo que estava com a arma apontada para Redhorse.

— Para trás! — gritou Papageorgiu. — Volte, major. Redhorse passou a andar mais devagar. O terceiro tefrodense atirara fora sua arma e

ficou parado a alguns metros de Redhorse, com os braços levantados. Seus olhos brilhavam de medo. Alcancei o cheiene e fiquei parado a seu lado, respirando com dificuldade. Don Redhorse apontou a arma para o homem indefeso. Empurrei o cano da arma para baixo.

— Senhor! — exclamei em tom insistente. — Pelo amor de Deus! Ele está desarmado. Só neste instante Redhorse parecia tomar conhecimento de minha presença. Virou-se,

sem dar atenção ao tefrodense. — Vamos voltar para perto do abrigo! — exclamou, fungando. — Temos de fugir para

a selva antes que os homens de Toser Ban nos alcancem. Passamos correndo pelo cadáver de Monira. — Ela disse alguma coisa sobre a Lua antes de morrer — lembrei a Redhorse. —

Temos de avisar a Crest. — Não conseguiremos chegar perto do rádio — respondeu o cheiene. — Olhem a corveta! — gritou Papageorgiu e atirou os braços para o alto. Virei a

cabeça. A nave de sessenta metros de diâmetro apareceu sobre o campo de pouso. Os tefrodenses se haviam recolhido aos abrigos e a outros esconderijos.

— Vamos! — insistiu Redhorse. — Não podemos ficar aqui. Os tefrodenses nos agarrarão antes que os tripulantes tenham saído.

Voltamos a correr. Fosse quem fosse o comandante da corveta, ele parecia não saber o que pensar dos acontecimentos que se verificaram no antigo campo de pouso. Não se podia acusar o comandante por ele ser tão cuidadoso.

Atingimos as primeiras árvores. Fiquei sem fôlego e deixei-me cair ao chão. Redhorse apoiou-se numa árvore. Algumas figuras que corriam abaixadas apareceram entre os abrigos. Os tefrodenses certamente estavam dispostos a fazer tudo para prender-nos de novo. A corveta ainda se encontrava acerca de mil metros acima do campo de pouso.

— Aqui não poderemos defender-nos — disse Redhorse depois de olhar ligeiramente em volta. — Logo seremos cercados pelos duplos. Vamos para a frente.

O Tenente Bradon apontou para a selva. — Estamos correndo diretamente para as ruínas de Makata — objetou. Receio que os

mutantes já estejam à nossa espera com suas lanças. — Tem uma sugestão melhor? — perguntou Redhorse, apontando para os

tefrodenses que se aproximavam rapidamente. — A corveta não demorará a pousar. Aí os duplos ficarão em situação de inferioridade

— respondeu Bradon. — Não podemos esperar tanto tempo — disse o major. O cheiene já recuperara completamente o autocontrole. Decidia com a rapidez de sempre. E tive a impressão de que suas decisões eram

certas. Levantei do chão. Entramos na selva. Redhorse e eu corríamos à frente do grupo, porque éramos os únicos que tinham carabinas energéticas. Quando tínhamos percorrido apenas alguns metros notamos que só conseguíamos avançar devagar, porque a vegetação era tão densa que às vezes chegava a transformar-se numa muralha. Tivemos de passar por

Page 403: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

403

cima de raízes de dois metros de altura, passamos com dificuldade pelos cipós e tivemos de sacudir os galhos que pendiam sobre nós.

Ouvimos barulho vindo de trás. Eram os perseguidores. Toser Ban mandara pelo menos cinqüenta homens atrás de nós. As árvores ficavam tão juntas que não víamos o céu nem a corveta. Tivemos de esforçar-nos para reconhecer os objetos mais próximos na penumbra. Só podíamos fazer votos de que de repente não nos defrontássemos com um animal selvagem.

Finalmente alcançamos uma pequena clareira. Redhorse mandou que fizéssemos uma pausa ligeira. Estava exausto e respirei com dificuldade. Como sou um homem obeso, tive de fazer um esforço muito maior que os outros para acompanhar Redhorse.

A pausa durou pouco. Os gritos dos tefrodenses que nos perseguiam fizeram com que saíssemos bem depressa. Voltamos a entrar na vegetação densa. Ouvi o grito de um animal espantado, vindo não sei de onde. O sangue martelava nos meus ouvidos. As pernas e os quadris estavam feridos, e as mãos tinham sido arranhadas pelos espinhos. O sangue e o suor atraíram bandos de insetos que nos perseguiam obstinadamente.

De repente o chão em que pisei cedeu. Fiz um esforço desesperado para segurar-me num cipó, mas minhas mãos erraram o alvo. Papageorgiu praguejou. Formamos um bolo confuso no fundo duma armadilha. Quando finalmente consegui ficar de pé, havia pelo menos trinta mutantes parados na borda da armadilha, olhando para nós. Carregavam lanças, machados e clavas.

O chefe, que era um homem enorme vestido com uma pele de tigre-sabre, abriu a boca desdentada e gritou palavras triunfantes para nós.

Procurei minha carabina energética. Quando a encontrei e quis levantá-la, Redhorse deu-me um empurrão.

— Quer morrer, Brazos? — Apontou para cima. — Assim que levantarmos uma arma que seja, seremos perfurados pelas lanças.

Caí cambaleante contra a parede da armadilha. Areia e sujeira caíram na minha nuca. Os insetos executavam uma dança à frente de meu rosto. As vozes animalescas dos mutantes faziam-se ouvir lá em cima. Tentei em vão distinguir alguns ruídos causados pelos nossos perseguidores. Certamente tinham perdido nossa pista.

Cinco mutantes, que eram verdadeiras figuras de pesadelo em carne e osso, saltaram para dentro da armadilha, munidos de cordas, e começaram a amarrar-nos.

Por enquanto nossa fuga chegara ao fim. Éramos prisioneiros dos mutantes de Makata, para os quais éramos inimigos mortais.

Page 404: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

404

Interlúdio A faixa de terras planas que se estendia entre a costa e a selva certamente já fora o

campo de pouso de um porto espacial dos lemurenses. A vegetação fora removida de algumas das construções que serviam de abrigo, o que era um sinal seguro de que ainda eram habitadas.

— Já sabemos como Redhorse conseguiu pôr as mãos num hiper-rádio — disse Atlan e John Marshall, que estava de pé a seu lado. — Lá embaixo ainda deve haver algumas instalações intactas.

Marshall observou com os olhos semicerrados a paisagem que se estendia embaixo da corveta. Há poucos instantes os rastreadores supersensíveis da nave tinham registrados as descargas energéticas de várias armas, mas o campo de pouso parecia abandonado.

— Tenho certeza de que alguém nos observa — disse Gucky. — Mas não consigo captar nada além dos impulsos mentais confusos dos mutantes.

— Acho que deveríamos assumir o risco de descer mais um pouco — disse o arcônida.

Atlan sabia que a ordem que acabara de dar poderia significar o fim da nave sob seu comando e a morte de sua tripulação. Poderia mandar sair os homens, mas com isso os astronautas enfrentariam um perigo ainda maior.

— Há uma coisa que não compreendo. Se Redhorse está lá embaixo, ele já deveria ter entrado em contacto conosco pelo rádio — disse Marshall, estupefato. — Pelo menos teria dado algum sinal.

Atlan girou cuidadosamente os botões da ampliação ótica. Um setor da paisagem apareceu na tela. Bem no centro do quadro viu-se um mastro com dois homens pendurados na ponta. Estavam mortos ou pelo menos inconscientes. Atlan ficou tão assustado que afastou rapidamente as mãos dos botões. Mas só levou alguns segundos para perceber que os homens pendurados no mastro não pertenciam à tripulação da Crest III.

— Que métodos bárbaros! — observou o piloto que estava sentado ao lado de Atlan. — Estes prisioneiros estão sendo torturados.

Atlan estava cada vez mais nervoso. Alguém que usava estes métodos também não hesitaria diante de um assassínio. Era possível que a vida de Redhorse e seus companheiros já corresse um perigo extremamente grave. Nestas condições não se devia retardar mais o pouso da nave.

Atlan inclinou o corpo em direção ao piloto. — Vamos pousar! — disse, enquanto ligava o intercomunicador. — Vamos pousar! — gritou para dentro do microfone. — Todos os postos de combate

serão guarnecidos. Se houver um ataque, responderemos imediatamente ao fogo. Ninguém sairá da nave sem minhas ordens expressas.

A corveta desceu devagar. O sistema de propulsão antigravitacional manteve a nave de muitas toneladas calmamente em sua trajetória.

— Será que o solo é estável? — perguntou o piloto. Atlan fez um gesto afirmativo. — Quando muito, esmagaremos alguns arbustos — respondeu com um sorriso

forçado. — Não será nenhuma tragédia. — Há alguém deitado lá embaixo! — gritou Marshall. Atlan olhou para a tela. Havia

uma moça jogada no chão, à frente de um dos abrigos. Atlan viu logo que estava morta. Havia sinais de um tiro energético em suas costas. O arcônida sentiu-se dominado pela raiva. Alguém que era capaz de amarrar homens numa estaca e matar mulheres não

Page 405: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

405

merecia nenhuma compaixão. O Lorde-Almirante teve suas dúvidas de que o Major Don Redhorse ou seus homens ainda estivessem vivos.

A corveta pousou sobre as doze colunas de sustentação. Os canhões energéticos pesados foram apontados ameaçadoramente para os abrigos que faziam parte do antigo porto espacial lemurense. Atlan passou os olhos pela fileira de telas de imagem. Não se via o menor movimento no campo de pouso.

— Está tudo quieto — disse Gucky, que parecia estar pensando a mesma coisa que seu amigo arcônida. — Acho que já posso arriscar um salto.

— Não — respondeu Atlan. — Tenho certeza de que estamos sendo observados. Assim que um de nós puser a cabeça fora da eclusa, seremos atacados.

— Tem certeza? — perguntou o rato-castor. — Não se esqueça de que John e eu não estamos captando nenhum impulso.

— Isso não quer dizer nada. Existem muitas possibilidades de bloquear os fluxos mentais. Para nós isto não é nenhuma novidade.

— Enquanto eu for obrigado a ficar sentado aqui, parado que nem um aposentado, nunca saberemos o que está acontecendo lá fora — resmungou Gucky, aborrecido. Notava-se que sua sede de aventura fora despertada.

— Abrir eclusa do hangar! — ordenou Atlan pelo microfone do intercomunicador. — Descer passadiço. Preparem um carro voador.

Gucky bateu palmas com as mãozinhas em cima da cabeça. — Um carro voador? — gemeu, fora de si. — Não venha me dizer que quer sair num

blindado aéreo. — Vamos fazer com que os habitantes invisíveis dos abrigos saíam dos esconderijos.

Pouco importa quem sejam — asseverou Atlan em tom resoluto. Depois passou a dirigir-se a Marshall. — John, assuma o comando da corveta. Warner e Gucky irão comigo ao hangar.

Warner, que era o piloto, levantou da poltrona. Gucky seguiu os dois, arrastando os pés como era seu costume. Normalmente se teria teleportado para o hangar, mas deixara de fazê-lo para manifestar seu protesto contra as ordens que Atlan acabara de dar. Sabia perfeitamente que o arcônida só resolvera levá-lo para evitar que agisse por conta própria assim que ele saísse da sala de comando.

Atlan, Warner e Gucky entraram no elevador antigravitacional e desceram para o hangar. O carro voador estava pronto para decolar. Atlan deu mais algumas ordens aos tripulantes da corveta.

— Se o carro voador for atacado, respondam ao fogo — disse. Entraram no blindado voador. Atlan ocupou a poltrona do piloto. O potente sistema

de propulsão do veículo versátil entrou em funcionamento. O carro voador subiu do chão do hangar e flutuou na direção à eclusa, que estava aberta. Em pouco tempo deixou para trás a corveta e sobrevoou o campo de pouso.

Atlan seguiu diretamente para a área livre entre os abrigos. O arcônida acompanhara a vida do planeta em muitas épocas de sua história, mas ignorava tudo a respeito do tempo em que se encontravam. Era como se um velho amigo tivesse mudado completamente.

— Prepare o canhão, Warner — disse Atlan ao terrano que o acompanhava. — Sinto uma coisa! — exclamou Gucky, nervoso. — Vem da selva, que fica bem perto. — E lá embaixo? — Nada! — respondeu o rato-castor. — Parece que os edifícios estão abandonados. — Lá vêm eles, senhor! — berrou Warner de repente. Homens e mulheres armados estavam saindo dos abrigos. Atlan viu imediatamente

que usavam trajes protetores. Os desconhecidos abriram fogo contra o carro voador com suas carabinas energéticas pesadas.

Page 406: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

406

— Vamos pousar! — resmungou Atlan, zangado. — Que diabo está esperando, Warner?

Atlan olhou para trás. Viu que o lado esquerdo do rosto de Warner tremia. O homem estava inclinado sobre a mira ótica, mas demonstrava uma hesitação inexplicável. Atlan compreendeu que não conseguia atirar contra os desconhecidos. O campo defensivo do carro voador foi rompido pelo fogo concentrado do inimigo. O veículo balançou.

Quando ainda se encontrava a cinco metros do chão, caiu. O impacto foi tão forte que Atlan saltou da poltrona e foi arremessado contra a parede interna da carlinga de comando.

O arcônida pôs-se de pé e com dois saltos foi para perto de Warner, que se segurava no canhão. Atlan arrancou-o do lugar.

O arcônida olhou para a tela e viu uma horda de inimigos gritando entusiasmada e correndo para o carro voador.

— O que estava esperando, seu idiota? — gritou Atlan. — Havia mulheres entre eles — respondeu o piloto. — Estão armadas — disse Atlan. — E atiram para matar. Quanto tempo os terranos

ainda levarão para compreender que... Interrompeu-se, sacudiu a cabeça e ocupou a

poltrona do artilheiro. Neste instante o raio de fogo de um canhão

energético passou chiando por cima do carro voador. A tripulação da corveta acabara de entrar na luta. A área que se estendia à frente do blindado ficou em chamas. Não se via mais o menor sinal dos atacantes.

Warner olhou para fora da carlinga. Tremia fortemente.

— Vamos embora! — gritou Atlan. — Temos de sair deste mar de chamas para ver o que está acontecendo nos abrigos — deu um empurrão em Gucky. — Transmita uma mensagem telepática a Marshall, baixinho. Peça-lhe que suspenda o fogo por enquanto, para que o carro voador não seja atingido.

— Entendido! — respondeu o rato-castor com a voz estridente.

Warner acabara de ocupar a poltrona do piloto. O carro voador deu partida lentamente. Suas esteiras cravaram-se no chão macio. As chamas que saíam dos arbustos incendiados subiam até a carlinga de comando. Atlan esforçou-se para distinguir alguma coisa no meio do fogo e da fumaça.

O veículo saiu rolando da área incendiada do campo de pouso, à sua frente havia cem inimigos armados à sua espera. Atiraram assim que viram o carro voador. A carlinga do veículo arrebentou numa explosão. O calor parecia fazer ferver o ar. Atlan abaixou-se e puxou o acionador do canhão energético. O carro voador prosseguia em sua viagem.

— Warner! — piou Gucky. — Parece que está ferido. Atlan olhou para a poltrona do piloto. Warner pendia de lado. As mãos seguravam os comandos, mas permaneciam imóveis. O arcônida levantou de um salto. Havia um único homem parado à frente do carro voador, atirando. Gucky o fez subir telecineticamente alguns metros e deixou-o cair. O homem bateu violentamente no chão e saiu rastejando às pressas. A área entre os abrigos ficou livre.

Page 407: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

407

Atlan puxou Warner. O piloto revirou os olhos. Parte da carlinga não se pulverizara logo sob o efeito do tiro. O calor a transformara numa massa incandescente, que pingava em cima de Warner. O material atravessara o traje protetor de Warner — e avançara mais um pedaço.

Warner estava com os lábios muito pálidos. — Não ficou satisfeito comigo, Lorde-Almirante? — perguntou. Foram suas ultimas palavras. O corpo amoleceu nos braços de Atlan. — Está...? — principiou Gucky, apavorado. Atlan fez um gesto afirmativo. Já se defrontara com a morte nas mais diversas formas,

mas a morte deste astronauta deixara-o bastante abalado. Fora ele que o fizera vir a esse lugar.

— Cuidado! — gritou Gucky de repente. Atlan deixou cair o corpo de Warner e abrigou-se atrás dos controles. O fogo de pelo menos cem carabinas energéticas passou por cima do carro voador, tornando incandescente sua face externa.

— Diga a Marshall que entre em ação, Gucky! — exclamou Atlan. — Rápido! Gucky não respondeu, mas dali a instantes as armas da corveta foram acionadas.

Atlan ouviu os gritos de um ferido. Os últimos tiros chiaram. O arcônida levantou. Estava banhado em suor.

— Não vejo mais ninguém! — gritou para Gucky. — Teleporte-se para a corveta. Darei mais uma olhada por aqui.

— Não posso deixá-lo só — protestou Gucky. Atlan pegou a arma e apontou-a para o rato-castor.

— Quer que deixe seus pêlos chamuscados? — Vou requerer aposentadoria — gritou Gucky em tom choroso e dissolveu-se à

frente do arcônida. Atlan sorriu e tentou mover a chave para abrir a eclusa, mas esta fora deformada pelo calor e não obedeceu ao impulso eletrônico. Atlan lamentou que não estivesse usando seu traje protetor, cujo protetor antigravitacional poderia levá-lo para fora.

A única coisa que poderia fazer era sair pela carlinga. O material que tocava com as mãos estava superaquecido. Teve de sair na parte de trás, porque a parte dianteira do carro voador ainda estava incandescente. O material forçado ao máximo estalava constantemente.

Atlan deixou-se cair no chão e abrigou-se atrás do carro voador. Olhou em volta. Não viu nenhum inimigo. Os que não tinham sido mortos haviam fugido. Atlan perguntou a si mesmo se os seres que os tinham atacado eram descendentes dos lemurenses ou membros da guarnição da estação do tempo que ficava mais ao norte.

Atlan saiu do lugar em que se abrigara e correu para o abrigo mais próximo. Ninguém atirou nele. Ficou deitado alguns minutos atrás da parede lateral do abrigo. Finalmente saiu do esconderijo. A porta do abrigo só estava encostada. Dentro dele estava escuro. Atlan abriu a porta com um pontapé.

— Saiam! — gritou. — Senão jogarei uma bomba. Se havia algum inimigo dentro do abrigo, o truque não deixaria de produzir efeito.

Mas ficou tudo em silêncio. Atlan entrou. Viu três cadáveres no chão, iluminados pela luz que penetrava pela porta. Tinham fugido para dentro do abrigo, gravemente feridos, e acabaram morrendo.

Havia algumas máquinas lemurenses do outro lado da sala. O arcônida bem que gostaria de examiná-las, mas não tinha tempo. Retirou-se do abrigo. A estaca cravada no centro da área livre se quebrara. Atlan correu para lá, na esperança de que um dos dois homens amarrados nela tivesse sobrevivido à luta, mas viu que os dois estavam mortos.

Page 408: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

408

Atlan viu uma construção do outro lado. A porta estava aberta. Seguiu nessa direção. Quando já se encontrava bem perto do abrigo, uma figura alta que trajava um conjunto-uniforme prateado apareceu na entrada. Atlan deixou-se cair no chão e atirou. Uma bolha luminosa formou-se em torno do desconhecido. Atlan compreendeu que ele usava um campo defensivo muito forte.

O desconhecido deu uma risada debochada e continuou a caminhar na direção em que estava Atlan. Furioso, o arcônida enfiou a arma no cinto.

O homem com que se defrontava, e que continuava a rir debochado, era mais velho do que parecera à primeira vista.

— Antes assim — disse, dirigindo-se a Atlan. — Não venha me dizer que o senhor pensa que com esta arma ineficiente pode atravessar o campo defensivo de um senhor da galáxia.

Atlan olhou meio atordoado para o símbolo que o desconhecido trazia sobre o peito. Defrontava-se com um senhor da galáxia. De repente compreendeu tudo. Tinham sido atraídos a este lugar pelo inimigo que agira com uma astúcia diabólica. Um véu parecia cobrir os olhos de Atlan. Uma coisa atingiu sua nuca. Era um pingo de chuva. O arcônida olhou para o céu nublado.

— Dentro de algumas horas escurecerá — disse o senhor da galáxia. — O que está esperando? — perguntou Atlan. — Meu nome é Toser Ban — disse o homem a título de apresentação. — Faço questão

de que saiba este nome. Sou eu que destruirei a nave que nos causou tantas dificuldades. — Destruir a nave? — repetiu Atlan com a voz cansada. Apontou para a arma do

senhor da galáxia. — Acha que vai derrubar a Crest como se fosse um passarinho? O senhor só pode estar louco. Seus homens fugiram ou estão mortos. Não conseguiram enfrentar sequer o blindado voador. E o senhor vive sonhando em destruir a Crest?

Toser Ban voltou a rir. Até parece um diplomata, pensou Atlan, indiferente. Era alto, de ombros largos e com fios prateados nos cabelos. Um homem vistoso, ao qual se poderia confiar uma missão diplomática.

— O senhor acha que nossa organização é ingênua a ponto de atacar uma nave como esta com trezentos e vinte duplos? — perguntou. — Não esquecemos nenhum detalhe. A morte dos meus homens não significa nada. Nossos multiduplicadores podem fabricar reforços à vontade.

A chuva era mais forte. Atlan sentiu que tremia de frio e cansaço. As palavras de Toser Ban pareciam seguras e arrogantes. Será que a Crest III estava mesmo condenada à destruição?

— A propósito. Quem é o senhor? — perguntou Toser Ban. — Não parece um soldado raso.

— Sou um oficial — respondeu Atlan. — Recebi ordens para fazer uma verificação neste porto espacial.

— Nada disso. O senhor está procurando os seis homens que vieram a este mundo pelo transmissor. O cadáver de um deles se encontra numa caverna das geleiras. Os outros cinco fugiram para a selva. Duvido que ainda estejam vivos. Devem ter sido liquidados pelos mutantes de Makata.

Atlan sentiu o olhar penetrante do homem pousado nele. — O senhor não é um oficial qualquer — disse Toser Ban em tom pensativo. — É um

dirigente. Tenho um sentimento para estas coisas. Talvez devesse torturá-lo para descobrir a verdade.

Atlan não respondeu. Os dois encararam-se em silêncio por alguns minutos, na chuva. Até parecia que cada um queria avaliar as forças ocultas do outro.

Page 409: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

409

Finalmente Toser Ban pegou a arma. — Não acredito que haja um meio de juntarmos nossos interesses. Mas acho que

talvez possa chegar à conclusão de que deve colaborar com nossa organização. — Só trabalho para uma organização — disse Atlan. — Esta organização já sofreu

muitas derrotas, mas um dia sairá vitoriosa, porque sempre aparece alguém que se empenha por ela.

— Que dramático — escarneceu Toser Ban. — O senhor se refere à liberdade, não é mesmo? — Atlan confirmou com um gesto e o senhor da galáxia prosseguiu em sua fala. — Como vê, conheço suas idéias. Mas posso garantir que o poder total, exercida com brutalidade e precisão, é capaz de esmagar sua organização.

Toser Ban levantou a arma e fez pontaria. — Quero que veja em sua morte uma peça de um ritual, amigo — disse. — Fuzilando

o senhor, enfraqueço a organização da liberdade. Toser Ban puxou o gatilho e Atlan sentiu-se levantado. O tiro passou embaixo de suas

pernas. O arcônida compreendeu imediatamente que fora salvo pela força telecinética de Gucky. Embaixo dele Toser Ban olhava com uma expressão de perplexidade para o lugar em que pouco antes estivera seu inimigo.

Neste instante um dos canhões energéticos da corveta disparou. Apesar de seu potente campo defensivo, Toser Ban foi atirado para longe. O campo defensivo desmoronou e o senhor da galáxia saiu cambaleante de uma cortina de fogo. Atlan desceu suavemente. Tentou em vão descobrir Gucky.

Toser Ban perdera seu campo defensivo, mas ainda estava vivo. Atlan pôs os pés no chão.

— Agora nos enfrentaremos em igualdade de condições! — gritou para o senhor da galáxia.

Toser Ban deu uma gargalhada de louco. Fez pontaria e atirou. O tiro passou chiando ao lado de Atlan. O arcônida pegou o desintegrador e fez fogo. Toser Ban, que vinha correndo em sua direção, parou como se tivesse esbarrado num obstáculo invisível. O grande homem cambaleou. Seu uniforme prateado dissolveu-se numa fração de segundo. Finalmente o senhor da galáxia caiu ao chão.

Atlan foi devagar para onde estava ele. A chuva forte caía nele. O cabelo estava grudado na testa.

Toser Ban estava deitado de rosto para baixo no chão encharcado. Uma poça de água começava a formar-se junto aos seus pés. Atlan inclinou-se sobre ele. Toser Ban estava morto.

O arcônida viu Gucky materializar a seu lado. — Obrigado, baixinho — limitou-se a dizer. — Não acha que foi muita coisa para um aposentado? — perguntou Gucky. Atlan conseguiu esboçar um sorriso apagado. — Dê uma olhada neste homem — pediu ao pequeno amigo. — E bom que saibamos

que Toser Ban e outros que são iguais e ele nunca deverão governar o Universo. — Estou completamente molhado — queixou-se Gucky. — Acho que em vez de fazer

discursos deveríamos voltar para a corveta. Atlan deu-lhe uma palmadinha no ombro. — Vamos embora, aposentado — pediu ao rato-castor. — Procure controlar-se.

Temos de entrar na selva.

Page 410: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

410

6 Os mutantes tiraram-nos da cova-armadilha. Ficamos com as mãos amarradas nas

costas. Fiquei triste ao lembrar-me das duas carabinas energéticas que tinham ficado no fundo da cova. Os mutantes golpearam-nos com as mãos e os pés para obrigar-nos a andar mais depressa. Havia uma trilha no meio da selva. Sem dúvida fora aberta pelos mamutes.

O fato de não termos sido mortos imediatamente fez renascer minhas esperanças. Talvez os mutantes já tivessem descoberto que não tínhamos nada com os tefrodenses que tinham invadido sua área.

Não pudemos conversar. Bastava que disséssemos uma palavra para que fôssemos golpeados com varas. Pelo menos vinte mutantes caminhavam na frente. Depois vieram Redhorse e Papageorgiu, seguidos por uma dezena dos seres que nos tinham subjugado. O Tenente Bradon, Doutreval e eu fomos no fim, com sete mutantes.

Não pude evitar que os galhos e os cipós batessem no meu rosto, já que estava com as mãos amarradas nas costas. Por mais que me esforçasse para soltar as amarras, a corda não cedia. Os mutantes conversavam através de grunhidos incompreensíveis, e que dificilmente poderiam ser considerados uma linguagem. Alguns destes seres lastimáveis não podiam andar com o corpo ereto. Saltitavam ou rastejavam no chão. Como conviviam com indivíduos de sua espécie, o aleijão não tinha a menor importância. Ainda bem que não havia lemurenses civilizados na região. Certamente seriam capazes de olhar para seus descendentes degenerados.

Finalmente saímos numa clareira na qual havia três cabanas. Vi imediatamente que não era a cidade em ruínas. Tratava-se de um acampamento construído pelos mutantes, que o usavam em suas caçadas.

Fomos tangidos para uma das cabanas. Sacos pendurados encobriam a entrada. Os sacos foram afastados. Uma lufada de ar com cheiro de mofo nos atingiu quando a porta foi aberta. Redhorse e os outros já tinham desaparecido no interior da cabana. Um pontapé violento obrigou-me a atravessar a soleira da porta.

Não levei muito tempo para acostumar-me à penumbra reinante no interior da cabana. Um mutante que entrara atrás de mim cortou minhas amarras. Esfreguei o pulso para ajudar a circulação.

Havia um homem de pé junto à janela encoberta por sacos pendurados. Parecia completamente normal, mas na luz mortiça que enchia a cabana isso não significava muito. Vi o desconhecido levantar o braço e levantar o pano que encobria a janela.

Pude ver o rosto do homem. Estava cego, mas a testa alta mostrava que se tratava de um homem inteligente. Estava vestido com uma pele de animal. Tive a impressão de que não se tratava de um mutante igual aos outros.

A porta foi fechada ruidosamente. Ficamos a sós com o cego. O mutante apontou para um tronco que devia servir de banco. — Podem sentar ali — disse num tefrodense bem compreensível. Redhorse fez um sinal para nós. Sentamos no tronco, do qual fora retirada a casca. — Não os vejo — disse o mutante. — Mas podem ter certeza de que sou capaz de

fazer uma imagem dos senhores. — O senhor é um dos mutantes da região? — perguntou ao Major Redhorse. O cego parecia prestar atenção ao tom da voz. Tive a impressão de que era capaz de

tirar do timbre de uma voz suas conclusões sobre o caráter da pessoa. — Sou um mutante — confirmou o homem. — Mas não pertenço ao grupo que

habitava as ruínas de Makata.

Page 411: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

411

— Habitava? — repetiu Redhorse. — Quer dizer que os mutantes abandonaram suas residências?

— Foram expulsos por seus amigos, que incendiaram suas casas — informou o cego. — O lugar em que nos encontramos é a última base de que os mutantes de Makata ainda dispõem nesta região.

Lembrei-me do clarão no céu que Redhorse e eu tínhamos visto de noite. Não tinham sido as fogueiras dos mutantes, mas suas cavernas que os tefrodenses tinham incendiado.

— Os tefrodenses não são nossos amigos — disse Redhorse. — Fomos obrigados a entrar na selva para fugir deles.

— Sobre isso conversaremos mais tarde — disse o mutante. — Pertenço a um grupo que se fixou a apenas sessenta quilômetros daqui. Numericamente somos mais fracos que os mutantes de Makata, mas em compensação há entre nós vários produtos de mutações positivas. Eu sou um deles. Meu nome é Sagrana. Vim para cá com a intenção de estabelecer contato com outros mutantes. Queríamos unir-nos aos poucos e tentar tornar habitável uma das grandes cidades. Não devemos abandonar a luta.

— Quer dizer que presenciou os incidentes por acaso? — perguntou Redhorse. — Já estou aqui há muito tempo — respondeu Sagrana. — Os habitantes de Makata reconheceram imediatamente minha superioridade. Não

demorei a descobrir que estas criaturas são tão primitivas que não poderão ajudar nos trabalhos que planejamos. Descerão cada vez mais e depois de algum tempo levarão uma espécie de vida animal. Resolvi ficar com eles para ajudá-los no que for possível.

— O senhor é cego — disse Redhorse em tom áspero. — Não venha me dizer que caminhou sessenta quilômetros pela selva sem que

ninguém o ajudasse. — Caminhei, sim — respondeu Sagrana. Pôs a mão atrás das costas e tirou um

besouro de cerca de dez centímetros de comprimento que estava guardado na manta de pele.

— Ele me guiou. — Esse inseto?—Redhorse abanou a cabeça, incrédulo. — Preste atenção! — pediu Sagrana. Colocou o besouro na mão. O animal levantou a cabeça, hesitante. Suas antenas

vibravam. — Os senhores estão sentados no tronco — disse Sagrana. — Quero que dois se

levantem. Redhorse fez um sinal para Doutreval e para mim. Levantamos sem fazer o menor

ruído. — O homem que se encontra junto à porta levantou — disse Sagrana. — O gordo, que

está bem à direita, também se pôs de pé. Sagrana voltou a enfiar o besouro embaixo da pele com um gesto relaxado. — Não é fácil aprender a língua dos insetos — disse. — Talvez só foi possível porque

sou um mutante positivo. Trabalhei pacientemente com este besouro por dois meses a fio para comunicar-me com ele. Não se trata de uma linguagem no sentido usual da palavra. Durante a comunicação, o besouro desencadeia certos estímulos em meu cérebro.

— O senhor e o besouro formam uma dupla terrível — disse Redhorse em tom de espanto.

— Em nosso meio existem pares ainda mais incríveis — respondeu Sagrana. — Talvez o inseto possa explicar-lhe que não somos inimigos dos mutantes — disse

Redhorse, esperançoso. — Nossa espaçonave não demorará a aparecer em cima desta clareira. Quando isso acontecer, será melhor para seus amigos que estejamos em liberdade.

Page 412: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

412

— Diante das desgraças que atingiram meu povo, sua ameaça não faz sentido — disse Sagrana todo compenetrado.

Deu um assobio estridente. A porta abriu-se e uma dezena de mutantes armados passou por ela. Seus grunhidos eram horríveis.

— O que será feito destes desconhecidos, homem do besouro? — perguntou o chefe. Sagrana fez um gesto de desprezo. — Não quero vê-los mais — disse. — Fiquem com eles. O mutante traduziu as

palavras que Sagrana acabara de pronunciar em alguns sons incompreensíveis. A horda irrompeu em uivos triunfais. Fomos agarrados e arrastados para fora. Dentro de instantes ficamos jogados no chão, com as mãos e os pés amarrados. Um número cada vez maior de mutantes ia chegando perto de nós.

— Maldito idiota do besouro — disse Bradon, furioso. — Entregou-nos a estes bárbaros.

Os mutantes apressaram-se em juntar lenha e fizeram uma grande pilha. — Vão fazer uma fogueira para festejar o acontecimento — disse Papageorgiu em tom

sombrio. — Nem me atrevo a pensar no que farão conosco. Cinco estacas foram cravadas no chão mole, em torno da fogueira. — Sagrana! — gritou Bradon. — Saia e impeça este espetáculo selvagem. O chefe dos mutantes, que era um homem com uma enorme corcova nas costas e nas

mãos, que antes pareciam pés de pássaros, deu um pontapé em Bradon. — Homem do besouro não vir — disse em tom insistente. — Ficar quieto. Bradou empinou o corpo, mas suas amarras não cederam. — Pare com isso, tenente — advertiu Redhorse. — O senhor está se cansando à toa.

Espero que a fogueira atraia os tripulantes da corveta. Antes que terminasse de falar, começou a chover. Os mutantes uivaram

decepcionados. — Tomara que chova mais forte — disse. — Assim nossos anfitriões terão dificuldade

em fazer seu foguinho. Fomos colocados de pé e arrastados para junto das estacas. Os mutantes apertaram

tanto as cordas com que me prenderam que mal consegui respirar. A chuva era cada vez mais forte e refrescou meu rosto ardente.

Um dos mutantes tentou acender o fogo. Sagrana saiu da cabana, encostou-se ao batente da porta e fitou-nos com uma

expressão apagada. Estava com uma mão estendida. O besouro preto estava sentado nesta mão.

— Sagrana! — gritou Redhorse. — Se não fizer parar imediatamente estes mutantes, o senhor será responsável por sua morte.

A lenha empilhada pegou fogo, apesar da chuva. Ouvi o chiado dos pingos de água que se evaporavam. Reunindo as forças que ainda me restavam, empurrei com o corpo a estaca à qual estava amarrado.

O tronco cedeu. Senti quando tombou para trás. Esforcei-me em vão para não perder o equilíbrio. Girei durante a queda e bati pesadamente no chão desmanchado. Papageorgiu, que estava amarrado bem a meu lado, soltou um grito.

Saí rolando em direção à fogueira, mas os mutantes se aproximaram e bateram em mim. Não pude desviar-me de seus socos e pontapés. A água corria por meu rosto e esguichos de sujeira se levantavam no chão. Observei Sagrana pelos cantos dos olhos. Era uma figura magra e ereta caminhando lentamente em direção à lenha empilhada. Uma nuvem de fumaça negra subiu ao céu.

Deitaram-me de costas. Alguém rasgou o casaco de meu uniforme.

Page 413: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

413

De repente vi Sagrana perto de mim. Deu uma ordem aos mutantes, que se retiraram. Sua gritaria era parecida com os uivos de uma alcatéia de lobos.

A pilha de lenha caiu, lançando fagulhas que chegaram ao lugar em que nos encontrávamos. Sagrana deu alguns passos para trás. Tropeçou e perdeu o besouro. Vi o inseto caído na lama. Suas antenas tremiam nervosamente. Sagrana tateava com as mãos, desorientado. Os mutantes ficaram calados.

De repente uma esfera gigantesca apareceu em cima da clareira. Estava com a garganta ressequida, mas consegui soltar um grito rouco de alívio. Vi homens em trajes de combate, com carabinas energéticas nas mãos.

Sagrana agarrou um galho em chamas e veio cambaleante em minha direção. Alguns mutantes atiraram lanças e clavas contra os astronautas que estavam descendo da nave. O mutante cego encontrou-me. Suas mãos começaram a puxar os nós das cordas que me prendiam. Nos lugares em que não conseguia soltar as amarras, usava o galho em chamas.

— Rápido! — exclamou. — Preciso de meu besouro. De repente agitou furiosamente o galho à frente de meu rosto, enquanto me segurava

com uma das mãos. “Pelos planetas do Universo”, pensei, “ele só pode estar louco”. Revistei o chão com os olhos. Vi alguma coisa rastejando na lama, perto da fogueira. — Ali! — gritei. — O inseto. — Preciso tocar nele! — berrou Sagrana fora de si. — Sem isso não consigo

estabelecer contato. Quis dar-lhe um soco no queixo, mas neste momento ele me arrastou. Perdi o

equilíbrio. Sagrana desenvolvia a força de um louco. Na clareira os tripulantes que tinham saído da nave lutavam com os mutantes que vinham correndo de todos os lados. Os habitantes da cidade em ruínas possuíam uma superioridade numérica de dez para um. Se não fosse o armamento muito mais avançado, os astronautas teriam sido mortos imediatamente.

Sagrana e eu estávamos de pé junto à fogueira. O cego abaixou-se e puxou-me para o chão. Os dedos magros da mão livre reviravam a lama.

Atirei-me sobre ele e o peso de meu corpo comprimiu-o contra o chão. Neste instante levei uma forte pancada vinda de trás. Tive a impressão de que o

mundo girava em torno de mim. Ouvi Sagrana dar um gemido. Saiu rastejando debaixo de mim e gritou, chamando seu besouro. O chiado dos tiros energéticos superava a gritaria dos mutantes que participavam do ataque. A confusão era tamanha que se tornava quase impossível saber quem era amigo e quem era inimigo. A corveta não podia intervir mais na luta, porque qualquer tiro que desse poderia pôr em perigo seus próprios tripulantes.

Fiquei deitado de costas, lutando contra o enjôo e esforçando-me para não perder os sentidos. Sagrana estava ajoelhado a meu lado. Segurava o besouro na palma da mão. Parecia satisfeito.

— Chegaram estranhos, não é mesmo? — perguntou. — A nave deles encontra-se suspensa sobre a clareira.

— São meus amigos, Sagrana — respondi. — O senhor foi avisado. A luta poderia ter sido evitada.

— Não acha que para os mutantes é melhor que morram? — perguntou. — Essa idéia faz parte de sua filosofia de vida? Neste caso só se poderia ter desejado

que o senhor nunca tivesse aparecido aqui para não prejudicar os mutantes de Makata. Sagrana gritou uma ordem incompreensível para um mutante que passava

cambaleando. O homem entregou o machado de pedra ao cego. Tentei levantar, mas senti-me dominado pela dor e pelo enjôo. Soltei um gemido e caí para trás.

Sagrana levantou o machado.

Page 414: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

414

— O senhor é inteligente demais para fazer uma coisa dessas! — gritei. — O besouro me mantém informado sobre o que está acontecendo na clareira. Os

mutantes estão fugindo. Seus amigos ocuparam as três cabanas e libertaram dois dos nossos prisioneiros. Se não estivéssemos escondidos atrás da pilha de lenha, eu também não estaria mais vivo.

Fiquei paralisado. O machado ficou suspenso em atitude ameaçadora em cima de minha cabeça.

— Acertarei o alvo — disse o cego. — O besouro me ajudará a encontrar o lugar certo. O machado desceu abruptamente. Desviei a cabeça para o lado. A pesada pedra

polida, presa ao cabo com cordas, atingiu a lama bem a meu lado. O movimento foi tão repentino que Sagrana deixou cair o besouro.

— Onde está o senhor? — gritou o mutante. Consegui ficar de joelhos. Sagrana saiu rastejando. O instinto parecia dizer-lhe onde

eu estava. Passou escorregando com os joelhos sobre o besouro e matou-o. — O senhor matou seu besouro, Sagrana! — gritei. Sagrana estremeceu como se tivesse sido atingido pelo tiro de uma arma paralisante.

O machado de pedra caiu-lhe das mãos. Finalmente fiquei de pé à sua frente. Na clareira já estava tudo em silêncio. Redhorse e dois tripulantes da corveta vieram correndo em minha direção.

— Está tudo bem com o senhor, Brazos? — gritou o major de longe. Fiz um sinal para que se aproximasse. — Levante — disse a Sagrana. — Pode vir conosco. A bordo de nossa nave poderá ser

examinado e ajudado. Redhorse e os dois astronautas chegaram perto de mim. O major compreendeu

imediatamente o que tinha acontecido. Deu ordem para que os dois astronautas se mantivessem afastados.

— Venha, Sagrana — disse o cheiene, calmo. — Não — respondeu o mutante com uma voz surpreendentemente clara. — Ficarei

aqui. Os sobreviventes da luta horrível que acaba de ser travada precisarão de mim. — Não houve muitos mortos — disse Redhorse. — Nossos amigos só usaram armas

paralisantes. Estamos com pressa de sair daqui. Venha conosco. O senhor é um homem inteligente. Acreditamos que poderá dar-nos informações preciosas.

— Os senhores vieram de um outro mundo? — perguntou Sagrana. — Somos filhos do mesmo planeta, Sagrana, mas infelizmente não viemos do mesmo

tempo. O cego pôs-se a refletir sobre estas palavras. — Não irei com os senhores — disse finalmente. — Pertenço ao tempo em que me

encontro. — Vamos levá-lo à força? — perguntei a Redhorse. — Não — respondeu o major. — Deixe-o em paz. — Um momento — exclamou Sagrana. — Quero que o gordo me dê meu besouro. — Está morto — respondi. — Foi esmagado pelo senhor. Peguei o inseto no chão e coloquei-o nas mãos de Sagrana. Para minha surpresa ele

sorriu. — Sou o homem do besouro. O senhor compreende? O inseto transformou-se num

símbolo para os mutantes. E justamente agora eles precisam de alguém em que possam confiar.

Sacudi a cabeça e olhei para a lama que cobria as pontas de minhas botas. — Cheguei a pensar que o senhor estivesse louco, Sagrana — disse.

Page 415: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

415

O mutante deu de ombros, virou-se e saiu andando na direção das cabanas, com o besouro morto nas mãos.

— Quase todos os mutantes fugiram para a selva — disse Redhorse. — Não demorarão a voltar. Vamos embora, Brazos. Está na hora de voltarmos à corveta.

Subimos para a nave que estava à nossa espera, cada um ladeado de dois homens que usavam trajes de combate.

— Bradon, Papageorgiu e Doutreval já estão a bordo! — gritou Redhorse quando passávamos pela eclusa de ar.

Lancei mais um olhar para a clareira abandonada, cujo chão tinha sido amolecido pela chuva. Já estava escurecendo. Nuvens de fumaça subiam do que restava da fogueira. Havia o cadáver de um mutante à frente de uma das cabanas.

Senti o calor e o cheiro da nave, a qual já estava habituado, e esqueci imediatamente as canseiras das últimas horas. Fui à sala de comando juntamente com Redhorse. Atlan, John Marshall e Gucky já estavam à nossa espera. O Tenente Bradon, Papageorgiu e Doutreval também estavam lá. Já tinham mudado de uniforme.

— Ali vem ele! — exclamou Papageorgiu ao ver-me entrar e apontou para mim. Gucky movimentou-se. Saiu em minha direção, arrastando os pés, e parou a três

metros de distância. — Fiquei sabendo que o senhor matou um castor neste planeta, cabo — principiou

em tom ameaçador. — E não foi só. Também disse que a carne de castor é muito saborosa. Com isto abriu as comportas para o extermínio dos castores.

Lancei um olhar furioso para Papageorgiu. O fato de o rato-castor me chamar de senhor mostrava que estava mal-humorado.

— Escute aí — respondi, cauteloso. — Você não deve acreditar em tudo que esse bebê gigante resolve contar.

— Comeu carne de castor ou não comeu? — gritou Gucky com a voz estridente. — Comi — confessei, hesitante. — Um pouco. Mas os outros... Gucky fez um gesto enérgico para que me calasse. — Basta — disse. — Pelo menos já sei por que recebi o tempo todo os fluxos mentais

de um ser primitivo. Bem que poderia ter imaginado que estes pensamentos vieram de você, Brazos.

Ameacei Papageorgiu com o punho fechado. — Será que não captou também os pensamentos de uma vara maluca com pés de

chumbo? — perguntei, dirigindo-me a Gucky. — Neste caso você já saberia quem matou o castor.

— De uma vara? — uivou Papageorgiu. — Eu lhe mostrarei quem sou, seu conven... — Silêncio! — interrompeu Redhorse em tom enérgico. — Vamos voltar para a Crest

o mais depressa possível. A advertência que Monira gritou antes de morrer me deixa preocupado.

Compreendi que ainda não tínhamos motivo para rejubilar-nos com a liberdade que acabáramos de reconquistar. Havia um perigo que ameaçava o ultracouraçado no interior do Sistema Solar.

Não sabíamos que perigo era este. Mas sabíamos que estava ligado à Lua.

Page 416: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

416

Interlúdio “Então é este o poder”, pensou o agente do tempo Rovza, espantado. O poder de

apertar um botão e matar centenas de seres desconhecidos que se encontram a bordo uma gigantesca nave esférica.

Rovza não sabia exatamente quando iria apertar este botão, mas acreditava que não iria demorar muito.

O agente do tempo estava sozinho, sentado na sala de controle da estação do tempo da Terra, observando as telas de imagem. O ponto cintilante que se via não muito longe da Lua era a gigantesca espaçonave inimiga. O ponto menor era uma nave auxiliar que os desconhecidos fizeram sair. A bordo desta nave auxiliar devia estar o homem que matara Toser Ban.

Horas atrás, quando o senhor da galáxia morrera, Rovza ainda tivera suas dúvidas de que um homem poderoso como Toser Ban pudesse ser morto. Mas os instrumentos não enganavam. Toser Ban andava constantemente com um goniômetro cujos impulsos eram registrados no interior da estação. Há algumas horas estes impulsos tinham silenciado de repente. Dali só se podia concluir que Toser Ban estava morto.

Rovza espantou-se ao compreender que o senhor da galáxia incluíra a própria morte em seus cálculos.

Rovza franziu a testa. Era uma atitude incompreensível, fora do comum. Representava mais uma prova de que os senhores da galáxia eram personalidades extraordinárias.

— Caso eu seja morto em ação, isso não será nenhuma tragédia — dissera Toser Ban pouco antes de ir para o sul. — O senhor ainda estará aqui, para fazer o que tem de ser feito.

Rovza passou os dedos sobre o botão que tinha de apertar para provocar o caos na nave inimiga. Sobressaltou-se com um ruído. Retirou apressadamente a mão dos controles e afundou na poltrona.

Bellogh acabara de entrar. Parou na entrada e fez uma mesura. — Que houve?—perguntou Rovza em tom impaciente. — O controle de rotina, agente do tempo. O Maghan deu ordem para que este controle

seja efetuado a intervalos regulares. A probabilidade de o senhor morrer justamente agora é bastante reduzida, mas o Maghan não quer assumir nenhum risco. Se o senhor morresse, os controles ficariam a meu cargo.

Rovza sentiu a sede do poder na voz do duplo. Da mesma forma que Rovza queria encontrar um meio de dar uma prova de seu valor, para não ser para todo o sempre um nada insignificante numa fileira de duplos.

— Estou vivo! — resmungou Rovza. — E destruirei a nave. Bellogh retirou-se. Não escondia sua decepção. Rovza sacudiu a cabeça. Como alguém

podia ser louco a ponto de esperar que num momento destes houvesse um incidente? O agente do tempo voltou a olhar para a tela de imagem. A nave grande continuava na

mesma posição, mas a nave auxiliar se deslocara um pouco para o leste. Pelos cálculos de Rovza, devia encontrar-se nas imediações de Makata.

“Por que”, perguntou a si mesmo, “o barco espacial não volta logo à nave-mãe?” Normalmente Rovza já deveria ter dado início ao ataque contra a nave maior. Ainda estava hesitando por causa do barco espacial. Queria que a tripulação da nave menor também fosse morta, porque o assassino de Toser Ban estava incluído nela.

Page 417: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

417

Rovza ouviu os estalos dos impulsos de comando dos diversos dispositivos positrônicos montados do outro lado da sala. Esta aparelhagem levaria apenas alguns segundos para interpretar e calcular qualquer mudança de rota da nave inimiga. Os inimigos tinham entrado na armadilha.

Rovza umedeceu os lábios ressequidos com a língua. Preferiu não levantar para arranjar alguma coisa para beber, pois neste maior tempo poderia acontecer alguma coisa que exigisse toda sua atenção.

Ainda bem que o inimigo não estava informado sobre a fortaleza lunar e seus canhões de grande alcance. Quando abrisse fogo contra a grande nave, esta seria destruída imediatamente. Infelizmente os inimigos dos senhores da galáxia nem sequer sentiriam a morte. Seria tudo muito rápido.

Rovza viu que a nave menor mudara novamente de posição. Muito tenso, inclinou-se na poltrona. A mancha luminosa corria pela tela de imagem. A nave maior mantinha-se em posição de espera.

Rovza ficou com os olhos semicerrados. Será que a nave auxiliar estava regressando para a nave-mãe? Rovza esperou impaciente os resultados que seriam fornecidos pelos computadores positrônicos. Estes resultados foram fornecidos numa questão de segundos. A rota provável da nave auxiliar apareceu em forma de uma linha luminosa na tela do rastreamento espacial. Rovza acompanhou esta linha. Viu que levava diretamente ao grande ponto luminoso que representava a nave-capitânia.

O agente do tempo ficou trêmulo. Isso só podia significar que a nave auxiliar estava regressando. Dentro de alguns

minutos — dependia da velocidade que desenvolvia — devia entrar no hangar da nave maior.

E quando isso acontecesse... Rovza tentou controlar a tensão que ameaçava apoderar-se dele, cravando as mãos

nas braçadeiras da poltrona. Estava com as palmas das mãos suadas. Neste instante Bellogh voltou a entrar. — Fora! — gritou Rovza fora de si. — É o controle — respondeu Bellogh, que se espantara com o nervosismo do agente

do tempo. — Há algo de errado? Rovza ouviu o outro aproximar-se em passos firmes. Sabia que Bellogh tinha a

obrigação de fazer isso. Cumpria ordens de Toser Ban. Bellogh parou atrás da poltrona de Rovza e disse em tom embaraçado: — A nave auxiliar está regressando. — Sim, o senhor está vendo — respondeu Rovza, fazendo um esforço enorme para

não perder o autocontrole. — Pode retirar-se. Bellogh hesitou. Não sabia se devia ceder ao respeito que lhe inspirava o senhor da

galáxia que fora morto ou ao medo que sentia por seu superior imediato. — Prefiro ficar, agente do tempo. O senhor parece muito nervoso. Isso pode trazer

complicações no momento decisivo. Rovza viu o pontinho luminoso que representava a nave auxiliar deslizar pela linha

projetada, aproximando-se lenta mas constantemente do ponto luminoso maior. Rovza sacou a arma e apontou-a para Bellogh. — Fora! — voltou a gritar. Bellogh olhou apavorado para a arma apontada para ele. Parecia desconfiar de que

desencadeara alguma coisa na mente do chefe, da qual ele nem sabia que existia. Virou-se e saiu. Rovza respirou aliviado.

A nave maior continuava na mesma posição. Não seria necessário fazer novos cálculos. A nave auxiliar parecia ter aumentado a velocidade. A linha que representava a

Page 418: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

418

trajetória ia se encolhendo. Os computadores positrônicos zumbiam, mas Rovza nem notou este ruído.

Na tela a manobra de aproximação da nave auxiliar à nave-capitânia parecia um fio sem fim sendo enrolado numa espula. Mas o fio que representava a rota da nave auxiliar não era infinito. Na tela só restavam uns três centímetros dele. Isto significava que poucas milhas separavam as duas naves.

De repente Rovza teve a impressão de que apertar um botão seria um gesto muito pobre. Bastava um movimento do dedo indicador para destruir uma nave gigantesca. Parecia uma tarefa de matemática. Rovza sentiu-se como uma cifra insignificante numa enorme combinação de números.

Um centímetro na tela de imagem ainda separava as duas naves da destruição. Finalmente os dois pontos luminosos fundiram-se, o menor foi absorvido pelo maior. A linha que assinalara a trajetória desapareceu.

Só restava a nave maior. Rovza apertou o botão. Parecia que a tela do rastreamento espacial estava explodindo. Rovza tentou imaginar

centenas de canhões atirando ao mesmo tempo e arremessando sua energia para o espaço. Ouviu o matraquear dos computadores positrônicos, enquanto na tela tudo se passava com um silêncio medonho.

A incandescência ficou mais fraca. Algumas manchas negras apareceram na margem da tela. Os canhões da fortaleza lunar ainda estava atirando. Rovza deu-se conta de que ainda estava apertando o botão. Apertava-o com tanta força que seu dedo doía.

Uma nuvem incandescente surgiu no centro da tela. As manchas negras que se formavam nas margens eram cada vez maiores. Rovza soltou o botão. Ficou mais descontraído. Recostou-se na poltrona.

Neste instante um grande ponto luminoso saiu da nuvem feita de energia, que estava encolhendo.

Rovza soltou um grito. Atirou-se para a frente e voltou a apertar o botão. A tela mostrou a rota da grande nave, que certamente resistira ao bombardeio. A rota terminou depois de ter traçado três centímetros na tela. Rovza sabia o que isso significava. A nave desaparecera no espaço linear.

Nenhum poder do mundo seria capaz de detê-la. Rovza encolheu-se na poltrona. O comandante inimigo acelerara ao máximo assim

que a nave auxiliar fora recolhida a bordo. Desta forma a nave maior só fora atingida pela periferia dos tremendos fluxos energéticos. O veículo devia possuir um campo defensivo muito forte para resistir ao bombardeio cerrado.

Rovza desligou as telas. Sentiu-se como se tivesse envelhecido alguns anos. Quando levantou, Bellogh estava entrando. Bellogh viu imediatamente que todos os controles tinham sido desligados..

— Terminou tudo? — perguntou. Rovza não respondeu. Saiu caminhando com as pernas duras. Só começou a falar

quando se encontrava no corredor. — Sim, terminou tudo — disse. Ouviu o eco de seus passos refletidos pelas paredes. Parecia uma música irônica

acompanhando a terrível derrota que acabara de sofrer.

Page 419: 02- Lemuria-O Agente Do Tempo

419

7 Quando recuperei os sentidos, tive a impressão de que meu crânio iria estourar. Soltei

um gemido e abandonei as tentativas de levantar-me. A voz bem conhecida do Major Don Redhorse se fez ouvir em cima de mim. — Foi atingido exatamente no lugar em que Sagrana o tinha machucado — disse o

major. Abri os olhos e vi os contornos confusos de duas figuras inclinadas sobre mim. Eram

Redhorse e aquele menino de nome grego. — Que... que houve? — perguntei com a voz rouca. Estava com a garganta ressequida. — Quando estávamos entrando no hangar, a fortaleza lunar dos senhores da galáxia

abriu fogo contra a Crest III — informou o major. — Houve um tremendo solavanco. O senhor perdeu o equilíbrio e bateu com a cabeça numa mesa da sala de comando da corveta.

— Fortaleza lunar? — perguntei. Não tinha compreendido nada. — A fortaleza possui instalações inteiramente automáticas — confirmou Redhorse. —

Parece que os canhões foram acionados a partir da Terra. Se não fosse o campo hiperenergético e um pouco de sorte que tivemos, não teríamos escapado.

— E agora? — perguntei. — Agora estamos em segurança no espaço linear, sargento. Arregalei os olhos. — Sargento? — exclamei, surpreso. — Antes de desmaiar eu era cabo. Redhorse sorriu. — Isso pode mudar depressa — disse em tom bonachão. — É bem verdade que sua

promoção depende de uma condição estabelecida por certo oficial. — De uma condição? — perguntei, desconfiado. — Quem foi o oficial que a

estabeleceu? — Gucky — respondeu Redhorse. — O senhor terá de prometer por escrito que

nunca mais comerá carne de castor, Sargento Surfat. Engoli em seco. — Carne de castor? Ninguém come isto se não for absolutamente necessário. Papageorgiu aproximou-se. — Não deixe que Gucky ouça isso — advertiu. — A esta hora ele imagina que não

existe coisa mais deliciosa que a carne de castor. E ficou convencido disso. — Mas... — principiei e fiz mais uma tentativa de erguer-me na cama. Redhorse empurrou-me para baixo. — Trate de descansar — pediu. — O senhor ainda acabará compreendendo. Ouvi-os caminharem para a porta. — Não quero ser sargento! — gritei atrás deles. — Não nestas condições. Ouviram?

Levem estas divisas. Não quero ser sargento. Os dois ignoraram minhas palavras. A porta foi fechada ruidosamente e voltei a ficar

só.