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Vincent van Gogh e as cores do ventoChiara Lossani
Tradução Maurício Santana DiasIlustrações Octavia MonacoTemas Arte oitocentista • Pintores holandeses • Pós-impressionismo
Fraternidade • Loucura • SuicídioTemas transversais Pluralidade cultural • Ética • Saúde GUIA DE LEITURA
PARA O PROFESSOR
48 páginas
SoproS de vida e arte em van GoGh
Desde o título, Chiara Lossani atiça a curiosidade do leitor.
Fenômeno da natureza, intangível por princípio, que cores teria
o vento? Por que prisma poético o espírito tem de soprar para
adquirir matizes?
Lossani se inspira na correspondência do pintor com seu ir-
mão quatro anos mais novo, Theodorus van Gogh (1857-1891),
impelida por questões desse tipo. As Cartas a Theo revelam quan-
to, para Vincent, o trabalho artístico pressupunha amar a natu-
reza e captar-lhe as mensagens, subjetivando os dados sensíveis.
Aqui se percebem, pois, as forças conflitantes que sopraram
sobre o pintor, desafiando-o a conciliar construção e expressão,
sentimento e técnica. A esse desafio somava-se o impasse de vi-
ver material e espiritualmente da arte, satisfazendo-se ou frus-
trando-se, comunicando-se ou isolando-se, em maior ou menor
grau, dos outros e da sociedade.
Vincent van Gogh e as cores do vento Chiara Lossani
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OBRA EM CONTEXTO
• Explosivas naturezas-mortas
Publicado em Letras e Artes a 5 de dezembro de 1948, “Van
Gogh, holandês e visionário” é o título de um significativo ensaio
de Otto Maria Carpeaux (1900-1978), útil para entender o con-
texto histórico-social em que o artista se formou, bem como os
traços por meio dos quais sua obra acedeu à universalidade.
Segundo Carpeaux, da Holanda vieram as primeiras influên-
cias sofridas pelo pintor. Dali proveio, por exemplo, o gosto de Van
Gogh por naturezas-mortas, gênero praticado por artistas como
Jacob Henricus Maris (1837-1899), Anton Mauve (1838-1888), Jo-
zef Israëls (1827-1911), George Hendrik Breitner (1857-1923) e,
antes deles, Gerard Dou (1613-1675), Nicolas Maes (1634-1693),
Pieter de Hooch (1629-1684) e Johannes Vermeer (1632-1675).
De tons escuros, a pintura desses mestres, “modestamente rea-
lista” e estática, transformava tudo – paisagens marinhas, cenas
de interiores e até retratos – em naturezas-mortas. No entanto,
se Van Gogh pintou naturezas-mortas a vida inteira, elas nunca
foram estáticas, e sim “cheias de força explosiva”.
Dentre os holandeses, a obra de Jean-François Millet (1814-
-1875) – precursor do realismo, com suas representações de tra-
balhadores rurais – foi uma revelação para Van Gogh. Em carta
a Theo, Vincent declara:
Estou pensando no que diz Millet: “Não quero suprimir de maneira alguma o sofrimento, pois com frequência é ele que faz os artistas se expressarem mais energicamente”.
Quando digo que sou um pintor de camponeses, isto é bem real e você verá adiante que é aí que eu me sinto em meu ambiente. Não foi por nada que durante tantas noites meditei junto ao fogo, entre os mineiros, os turfeiros e os tecelões, salvo quando o trabalho não me deixava tempo para a reflexão. Eu me envolvi tão intima-mente com a vida dos camponeses de tanto vê-la continuamente e todos os dias que realmente não me sinto atraído por outras ideias.
(GoGh, Vincent van. Cartas a Théo. Tradução de Pierre Ruprecht. 2a ed. Porto Alegre: L&PM, 2010, p. 96.)
Filho de pastor protestante, Vincent van Gogh começa a tra-
balhar no mercado de arte em 1869, aos dezesseis anos, por reco-
mendação de um tio. Assim, atua como marchand nas filiais da
Casa Goupil, em Haia, Londres e Bruxelas, e também na matriz
parisiense. Demitido em 1876, tenta ingressar, sem sucesso, na
Universidade de Teologia de Amsterdã. Muda-se então para a Bél-
gica, onde, apesar do mau desempenho na Escola Protestante, é
Vincent van Gogh e as cores do vento Chiara Lossani
designado missionário de uma comunidade de mineiros em Was-
mes. Impressionado com as péssimas condições de vida ali vigentes,
luta para transformá-las e acaba sendo dispensado. A partir daí, com
o apoio de seu irmão, Theo, opta pela carreira artística. Embora en-
tão vivesse em meio às paisagens luminosas de Brabante, no norte
da Bélgica, os quadros de Van Gogh dessa época são escuros, retra-
tando camponeses e tecelões da região, deformados pela miséria.
Um exemplo é Mulheres carregando sacos de carvão, de 1882.
Em 1885, Van Gogh segue para Antuérpia, também no norte
da Bélgica, onde visita museus, apreciando obras do pintor fla-
mengo Peter Paul Rubens.
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MESTRE BARROCOPeter Paul Rubens (1577-1640) foi
considerado o maior expoente do
barroco setentrional. Tendo estudado
em Milão, Gênova, Florença e Roma,
ele realizou diversas obras sob
encomenda, principalmente pinturas
de igrejas e retratos da aristocracia.
Foi pintor da corte em Antuérpia e
organizou um grande ateliê, com
promissores discípulos.
FLASHES DA REALIDADESurgido na França por volta de
1860, o movimento impressionista
buscava o aproveitamento máximo
da luminosidade e privilegiava
manchas cromáticas (em detrimento do
contorno rígido), defendendo a pintura
ao ar livre, com pinceladas rápidas, a
fim de captar a realidade de
forma instantânea.
• O contato com os impressionistas
Em 1886, Van Gogh desembarca em Paris, para onde viaja ao
encontro de Theo. Este, marchand como o irmão outrora, pro-
picia o contato de Vincent com pintores impressionistas como
Claude Monet (1840-1926), Edgar Degas (1834-1917) e Pierre-
-Auguste Renoir (1841-1919).
Van Gogh assim incorpora em sua pintura a luminosidade do
impressionismo, deixando de lado os tons sombrios. Para perceber
a mudança, basta comparar a paleta escura de telas como Os co-
medores de batatas, de 1885, e Três pares de sapatos, de 1886, com a
luz presente em obras posteriores, como Mulher sentada no Café du
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Vincent van Gogh e as cores do vento Chiara Lossani
Tambourin, A ponte Grande Jatte sobre o Sena, Natureza morta com
absinto (1887), os retratos de Père Tanguy (1887-1888), entre outras.
No entanto, Van Gogh, bem como Paul Gauguin (1848-1903)
e Paul Cézanne (1839-1906), é considerado por muitos críticos
de arte como representante do pós-impressionismo, pela con-
traposição à subjetividade enevoada e aos limites sensoriais do
realismo impressionista, conforme se vê na seguinte passagem
do livro de Lossani e Monaco (p. 22):
Em meio àquela natureza prodigiosa, ele joga fora o que apren-deu com os impressionistas, observa as cores e inventa outras: o roxo das azeitonas para as sombras nas oliveiras, o prateado das cavalas para o mar, tons quentes como o da crosta de pão para o trigo.
O vento encoraja-o:
“Pinte aquele campo: observe-o bem, Vincent, é um oceano de sol!”.
As pinceladas sucedem-se, as cores fluem como palavras em um texto; na tela inclinam-se as espigas de trigo.
“Os girassóis, Vincent! Os feixes! O sol!”
Vincent espreme os tubinhos de tinta sobre a tela. Seu sol é tão luminoso que nem o ocaso consegue apagá-lo. Seus feixes são montes de ouro.
• Dos girassóis aos corvos
Em 1888, Van Gogh muda-se para Arles, na Provença, sul da
França, onde sonha fundar uma comunidade de artistas. Denomina
Casa Amarela sua residência-ateliê e cria a série Girassóis para deco-
rá-la. É sua fase mais produtiva, em que pinta cerca de quatrocen-
tas telas com pinceladas vigorosas, de amarelo intenso e vermelho
vivo. Dentre as obras produzidas nesse período, destacam-se A Casa
Amarela; Terraço do café na Place du Forum, Arles, à noite; A cadeira
de Van Gogh; A cadeira de Gauguin; A vinha encarnada; Noite estre-
lada sobre o Ródano (1888); Quarto de dormir em Arles (1889).
Contudo, apenas Gauguin aceita o convite para residir na Casa
Amarela, onde passa dois meses. A penúria material, divergências
entre os artistas e incompatibilidades de temperamento terminam
por provocar várias rusgas entre os dois. O auge da crise ocor-
re quando, em um momento de grande desequilíbrio, Van Gogh
ameaça o amigo com uma navalha. Gauguin então retorna a Paris,
e Vincent, fora de si, decepa a própria orelha. Envia-a de
presente a uma prostituta, sendo internado em um hospi-
tal em seguida.
Vincent van Gogh e as cores do vento Chiara Lossani
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Em 1889, de volta a sua casa, Van Gogh pinta Autorretrato com
cachimbo e orelha enfaixada. Pouco tempo depois, busca internação
em uma instituição psiquiátrica nas imediações de Saint-Rémy, na
Provença. Ali, inspirado pelos vinhedos, campos de trigo e olivais
da região, pinta vários quadros, como Árvores no jardim do hospital
Saint-Paul e Campo de trigo com ciprestes. No ano seguinte, dirige-se
a Auvers-sur-Oise, perto de Paris e de Theo, a fim de submeter-se a
consultas com o doutor Gachet. Sem conseguir se livrar das crises,
em Auvers ele pinta cerca de oitenta quadros, dentre eles Retrato do
doutor Gachet, A sesta e Campo de trigo com corvos (1890).
A fertilidade criativa, porém, não abranda a forte depressão
nem a morte precoce, em 1890, aos 37 anos.
o Suicidado pela Sociedade
A marca da loucura (incomunicabilidade, automutilação,
crises, internações e morte) na obra do pintor holandês pode
ensejar algumas reflexões sobre o lugar marginal da arte e seu
papel transgressivo em certos contextos histórico-sociais, princi-
palmente a partir do romantismo. O estereótipo do artista como
tipo excêntrico, devasso, vagabundo, bandido, “cabeça de vento”,
desequilibrado frequenta o imaginário das pessoas, recebendo
diversas representações literárias. Da cigarra preguiçosa, im-
previdente ante a escassez do inverno, em A cigarra e a formiga,
ao músico sequestrador de crianças, em O flautista de Hamelin,
muitas são as histórias que expressam formas de reagir àqueles
que põem em xeque as convenções, os valores e os limites expres-
sionais de seu grupo, sua cultura, sua época.
Vincent van Gogh e as cores do vento Chiara Lossani
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Quando não funciona como uma máscara ficcional positiva, em
sintonia com o projeto criativo do autor (como o desvario conver-
tido em plataforma poética em Pauliceia desvairada, de Mário de
Andrade, um dos mentores do movimento modernista), a figura
do louco pode expressar algo daquela hostilidade social antiartística.
No caso específico de Van Gogh, a hipótese da loucura como
sacrifício social do gênio criador, transformado em bode expia-
tório, é o que encontramos no célebre ensaio do escritor francês
Antonin Artaud (1896-1948) “Van Gogh: o suicidado pela socie-
dade”, publicado em 1947:
Van Gogh não estava louco, mas suas telas eram jorros de subs-tância incendiária, bombas atômicas cujo ângulo de visão, ao con-trário de toda a pintura com prestígio na sua época, teria sido ca-paz de perturbar seriamente o conformismo espectral da burguesia do Segundo Império [...] Assim a sociedade mandou estrangular em seus manicômios todos aqueles dos quais queria desembaraçar-se ou defender-se porque se recusavam a ser seus cúmplices em algumas imensas sujeiras.
(ArtAud, Antonin. Van Gogh: o suicidado pela sociedade. In: Escritos de Antonin Artaud. Seleção, tradução e notas de Cláudio Willer. Porto Alegre: L&PM, 1986, p. 133.)
Tendo ele mesmo padecido nas mãos dos psiquiatras, pas-
sando por experiências traumáticas como o eletrochoque e a
internação por longos períodos, Artaud escreve com conheci-
mento de causa, identificando-se com o sofrimento do com-
panheiro holandês. Assim, segundo ele, a medicina reguladora
e punitiva cria a patologia mental para se autojustificar, impe-
dindo os artistas de dispor da própria angústia, transforman-
do sua loucura (em verdade, uma espécie de superlucidez) em
doença mental.
Dessa perspectiva, ele destaca a força insurrecional da pintura
de Van Gogh, cujas telas conciliam tensão e inércia, paz e turbi-
lhão – seja nas paisagens alucinadas como rostos, seja nas pin-
celadas produzidas como golpes de açougueiro, tiros de canhão,
labaredas de fogo, jorros de lava.
A fim de neutralizar tal força, explica Artaud,
a sociedade inoculou-se em seu corpo [...]apagou nele a consciência sobrenatural que acabara de adquirir
e, como uma inundação de corvos nas fibras da sua árvore interna,submergiu-o num último vagalhãoe, tomando seu lugar,o matou.
(ArtAud, Antonin, op. cit, p. 135.)
Artaud então responsabiliza diretamente o doutor Gachet e o
próprio Theo pela morte do pintor.
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Vincent van Gogh e as cores do vento Chiara Lossani
Independentemente do acerto ou do exagero em tais conside-
rações, o fato é que o ensaio do poeta francês desloca de modo
significativo a visão socialmente hegemônica acerca das relações
entre arte e loucura, além de oferecer comentários muito origi-
nais sobre alguns quadros específicos, destacando detalhes ma-
teriais como estrutura compositiva, seleção cromática, tipo de
pincelada etc. Quanto a Campo de trigo com corvos, por exemplo,
ele chama a atenção para a linha do horizonte muito baixa, o
amarelo sujo dos girassóis combinado com a terra cor de vinho
(que mais parece um mar revolvido por golpes de enxada), o ne-
gro trufado dos corvos e o céu prenhe de ameaças, uma espécie
de “sufocação vinda do alto”.
Pertinentes são também as observações sobre a tensão contida
nos demais quadros do autor, tensão que jamais ultrapassa os li-
mites representacionais da pintura. Van Gogh enxerta um nervo
na natureza sem desfazê-la, subverte o tema sem o abolir – por isso
suas tempestades são detidas; sua convulsão, organizada.
Enfim, trata-se de uma leitura poética abastecida por afinida-
des espirituais entre os dois artistas, ambos esmagados pela mão
pesada da psiquiatria.
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Vincent van Gogh e as cores do vento Chiara Lossani
• Reflexões postais
A narrativa de Chiara Lossani apoia-se em grande parte na
correspondência trocada entre Vincent e Theo, testemunho
de uma história de amor fraternal em que ressaltam as difi-
culdades do processo criador e os embates de um sujeito em
busca de um caminho próprio dentro da pintura.
Desse modo, as cartas oferecem mais informações sobre a
vida, a obra e a época do autor, além de conter descrições,
esboços e croquis de quadros, pensamentos sobre arte, infor-
mações sobre quase duzentos pintores, arquitetos, escritores e
filósofos relevantes para a formação do artista.
A edição de Cartas a Théo que a L&PM, de Porto Alegre,
com tradução de Pierre Ruprecht, é uma seleção de duzen-
tas dessas cartas. Obedece à antologia organizada por Geor-
ges Philippart, editada em Paris na década de 1930. A corres-
pondência completa, porém, totaliza 652 missivas, que foram
guardadas por Jo van Gogh-Bonger, viúva de Theo, e publi-
cadas em 1914 em um volume de mais de mil páginas pela
editora holandesa Maatschappif Voor Goede.
Cumpre assinalar ainda que o estudo das cartas, também
conhecido como epistolografia, constitui um ramo dos mais
fecundos no campo dos estudos literários. Afora todas as in-
formações sobre o contexto histórico-relacional do artista, a
correspondência muitas vezes funciona também como diário
de campo, um espaço crítico propício a experimentações for-
mais no nível da linguagem. No caso de Van Gogh, Artaud, no
ensaio anteriormente citado, reproduz trechos da correspon-
dência enfatizando a simplicidade do estilo, a um só tempo
objetivo e miraculoso.
Assim, a leitura das cartas
que serviram de base à ficção
de Lossani pode ser útil ao lei-
tor interessado em saber mais
sobre o homem por trás de Os
girassóis, não apenas por seu
conteúdo explícito, mas tam-
bém pelo padrão estilístico
adotado ao longo da corres-
pondência.
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Vincent van Gogh e as cores do vento Chiara Lossani
ATIVIDADES PRÁTICAS
Julgando pela capa
Um aquecimento interessante antes da leitura consiste em
estimular os alunos a observar a capa, destacando alguns tra-
ços característicos da ilustração de Octavia Monaco, que se
repetem nas ilustrações internas. Assim, depois de instar os
alunos a manifestarem suas impressões iniciais, o professor
pode destacar:
• O uso sistemático da cor amarela: no girassol sobre o qual
se situam o cavalete com a tela e o homem que a pinta,
também de amarelo, sentado em uma cadeira de palha; na
planície sobre a qual se assenta a figura central; no casario
ao fundo; no céu, em laivos sobre a superfície azul-clara.
• A mistura de técnicas (pintura + recorte e colagem).
• O caráter metalinguístico da composição (uma pintura
sobre alguém que pinta), com toque meio surrealista (o
girassol gigante que serve de base para o pintor).
• A caracterização da figura humana por meio de alguns
objetos que se repetem ao longo do livro: o cachimbo, a
cadeira de palha, o chapéu, o casaco azul.
Os traços arrolados nessa observação da capa podem ser reto-
mados no contato posterior com as demais ilustrações e compa-
rados com as reproduções de telas do próprio Van Gogh.
pintura verbal (produção textual de carta, seguida de
criação de desenhos)a) Em um primeiro momento, o professor observa, com os
alunos, a reprodução de alguns quadros de Van Gogh, pro-
curando associá-los a determinados estados subjetivos. Po-
de-se partir das reproduções contidas no livro de Lossani
e Monaco, arroladas ao final do volume, na seção “Icono-
grafia”. Se preferir, caso disponha de recursos técnicos, ele
também pode apresentar aos alunos reproduções em ta-
manho ampliado, presentes em manuais ou enciclopédias
da biblioteca da escola, ou mesmo convidá-los a visitar o
acervo virtual de instituições como o Musée d’Orsay (http://
www.musee-orsay.fr) ou o Van Gogh Museum (http://www.
vangoghmuseum.nl).
A associação de estados subjetivos deve ser justificada com
base em elementos composicionais: a luz nas representações
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Vincent van Gogh e as cores do vento Chiara Lossani
de paisagens; o uso da cor e a disposição de objetos nas ce-
nas de interiores; a posição, os gestos e a expressão facial nos
retratos (por exemplo: é possível falar em uma atitude com-
passiva ante o esforço de trabalhadores pobres nos retratos
de camponeses?) etc.
b) Após a observação dos quadros, a produção textual se inicia
com descrições. Cada aluno “pinta com palavras” três qua-
dros: primeiro, descreve a paisagem de um lugar para onde
foi ou viajou (por exemplo: a rua e a fachada de uma loja;
uma praia); a seguir, um ambiente interno (por exemplo: a
sala de espera do consultório, um quarto de hotel); finalmen-
te, o retrato de um trabalhador (secretária, médico, funcio-
nário do hotel).
c) Em seguida, cada aluno escreve uma carta para um colega,
com uma narração sobre o deslocamento, passeio ou via-
gem, e as descrições já feitas.
d) Divididos em duplas, os alunos trocam as cartas e, com base
no texto recebido, constroem representações plásticas das três
descrições textuais criadas pelo colega.
e) Ao final, desenhos e textos são expostos em um mural para o
restante da escola.
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Vincent van Gogh e as cores do vento Chiara Lossani
as vozes do vento
Uma das invenções do texto de Chiara Lossani em relação à
correspondência que lhe serviu de inspiração é o personagem do
vento, espécie de alterego ou voz interior de Van Gogh. Essa voz
interior funciona como uma espécie de conselheiro, que explica
as decisões tomadas por Vincent, suas mudanças de percurso e
seus destemperos. Assim, a alteração na paleta de cores, da fase
holandesa, mais sombria, para a fase parisiense, mais iluminada,
parece sugerida pelo vento: “Sua paleta precisa de cores claras,
Vincent, mas a Holanda não é um bom lugar para encontrá-las”,
sopra o vento. “Por que não vai a Paris e fica com Theo, para ver
como os impressionistas pintam?” (p. 17). Da mesma forma, a
ideia da Casa Amarela (“Olhe aquela casinha amarela, Vincent!
Vai ser a casa dos pintores”, p. 22) e os momentos de desequilí-
brio, como o pega-pega da página 35, em que Van Gogh tenta
agarrar o vento e fixá-lo em suas telas.
A personificação do vento funciona, portanto, como uma ale-
goria da loucura, da falta de juízo. Da pessoa que age de maneira
inconstante, insensata não se diz que tem “cabeça de vento”?
Com base nessas considerações, propõe-se a realização de um
jogo teatral com a turma, um jogo de pantomima baseado na
atribuição de diferentes “vozes internas” a determinada sequên-
cia de gestos. A atividade transcorre do seguinte modo:
a) Divide-se a classe em grupos de quatro ou cinco alunos. Cada
grupo concebe uma sequência de gestos, encadeados segundo
uma história implícita que lhes dê sentido.
b) Uma vez definida a sequência de gestos e a história subjacente,
um ou mais alunos de cada grupo são incumbidos de executar
a sequência para o restante da classe, sem pronunciar palavra
alguma.
c) Após as pantomimas, cada grupo elabora uma “voz interna” (a
voz do vento) que dê sentido às pantomimas dos demais gru-
pos, com uma ou duas frases para cada gesto da pantomima.
d) As pantomimas são repetidas, dessa vez com a participação
de um representante de outro grupo, que atuará como “voz
interna exteriorizada”.
e) Ao final, avaliam-se os resultados, pensando na possibilidade
de diferentes “vozes internas” ou motivações passíveis de asso-
ciação a um mesmo gesto.
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Vincent van Gogh e as cores do vento Chiara Lossani
LEITURA DE IMAGEM
campo de trigo com corvos, 1890Como preparação para a atividade, o professor apresenta à
classe uma reprodução da tela (http://www.vangoghmuseum.
nl/vgm/zoom.jsp?page=3343&lang=en), enquanto lhe dirige
perguntas como: “O que se vê nessa tela?”; “Como descrever a
relação entre o céu e a terra na paisagem”?; “Que tipos de mo-
vimento é possível identificar na composição?”; “A luz permite
definir algum momento específico do dia (manhã, tarde, noite)
para a cena?; “Que significados simbólicos podem ser atribuídos
ao trigo e aos corvos representados na tela”?; “Os corvos são re-
presentados de modo realista, fotográfico?”, “Como descrever as
pinceladas que compõem a imagem?”.
O professor aproveita as respostas dos alunos para destacar al-
guns elementos, começando pela intensidade dos movimentos que
compõem a cena: movimento das hastes de trigo e das nuvens no
céu, ambas impelidas pelo vento; movimento dos corvos em voo,
deslocando-se predominantemente de baixo para cima, em direção
ao canto superior direito, e em menor número para a esquerda,
em um plano mais aproximado. A trifurcação de caminhos de ter-
ra, na parte inferior, também contém um movimento implícito,
referente à decisão quanto a que caminho seguir.
A impressão de movimento é ainda reforçada pelo jogo entre
ortogonais (a linha do horizonte, no terço superior da tela, e o
eixo de simetria dado pelo atalho central) e diagonais (as hastes
de trigo, os caminhos à direita e à esquerda, o bando de corvos
ascendendo à direita e à esquerda), o que contribui para criar a
ilusão de profundidade, perspectiva.
As pinceladas grossas e imprecisas correspondem ao vigor do ges-
to que as engendra e também determinam um forte contraste entre
as cores, que praticamente não se misturam: quase não há transições
nem dégradé. Os matizes quentes da terra cor de vinho e dos campos
amarelos e cor de ocre opõem-se violentamente ao frio dos azuis-
-celestes e ao fino negror das asas dos corvos. Estes últimos são repre-
sentados de modo esquemático, pequenos “vês” no céu tumultuado.
Por fim, concorrem para a impressão de dramaticidade a au-
sência de elementos humanos na cena e o valor simbólico ligado
à presença dos corvos. Enquanto o trigo é comumente associa-
do ao alimento, simbolizando abundância, fertilidade, riqueza, o
corvo é tido como ave de mau agouro, arauto da morte.
O TRIGO E OS CORVOS: SIMBOLOGIAO simbolismo do trigo evidencia-se com
força no ritual da epopsia, cerimônia
que integra os mistérios de Elêusis na
mitologia grega. Trata-se de um ritual
que ocorre no decurso das bodas entre
Zeus e Deméter: nele um grão de trigo
é apresentado em um ostensório, em
homenagem a Deméter, deusa das
colheitas e das estações. Esse ritual
marca a alternância morte-vida do
grão, que morre para se multiplicar.
A espiga de trigo é também um
símbolo de Osíris, deus egípcio morto
e ressuscitado, e aparece ainda no
Evangelho de São João (“É chegada a
hora em que será glorificado o filho
do Homem. Em verdade, em verdade
vos digo: se o grão de trigo que cai na
terra não morrer, permanecerá só; mas
se morrer produzirá muito fruto. Quem
ama sua vida a perderá e quem odeia
sua vida neste mundo guardá-la-á para
a vida eterna” – João, 12, 23-25).
O corvo, em contrapartida, assume
valores antagônicos ao longo do
tempo em diversas culturas. Animal
psicopompo, isto é, capaz de conduzir
as almas pelo reino das trevas sem se
perder, mensageiro dos deuses, segundo
Chevalier e Gheerbrant, o corvo tende
a assumir um valor mais positivo no
lendário de povos nômades que vivem
da caça e da pesca, tornando-se negativo
com o desenvolvimento da agricultura e
a sedentarização. Na Europa, converte-
se na terrível ave negra dos escritores
românticos, que sobrevoa os campos de
batalha para se alimentar de cadáveres.
(Ver Chevalier, Jean; Gheerbrant, Alain.
Dicionário de símbolos. 24. ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2009.)
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Vincent van Gogh e as cores do vento Chiara Lossani
A carga dramática da obra mais o simbolismo mortífero dos
corvos alimentaram por muito tempo o mito de que esse qua-
dro seria o último pintado por Van Gogh e de que ele conteria
algo de premonitório em relação a sua morte. O texto de Los-
sani, assim como outras obras ficcionais sobre o artista, ajuda a
perpetuar esse mito, na medida em que sobrepõe o momento de
criação do quadro ao clímax de angústia que conduziu o pintor
ao suposto suicídio.
Segundo biografia recente, Van Gogh, de Steven Naifeh
e Gregory White Smith (São Paulo: Companhia das Letras,
2012), o pintor teria morrido em decorrência de tiro acidental,
disparado por um estudante em uma estrada perto de Auvers-
-sur-Oise.
Mitos à parte, a verdade é que não se sabe ao certo se este
foi mesmo o último quadro produzido por Vincent, pois não há
cartas documentando o período imediatamente anterior a sua
morte. De qualquer modo, muitos críticos consideram Campo
de trigo com corvos uma das mais significativas obras do fim do
século XIX, prenúncio da vanguarda expressionista e fonte de
inspiração para grandes nomes da pintura moderna, como Hen-
ri Matisse (1869-1954) e Pablo Picasso (1881-1973).
um quadro e Sua reinterpretação
A título de encerramento da “leitura” de Campo de trigo com
corvos, os alunos são instados a comparar a reprodução da tela
de Van Gogh com a reconstrução realizada por Octavia Mona-
co nas páginas 36 e 37 do livro.
Tal reconstrução aproveita os principais elementos da obra
original: o amarelo do trigo, o céu carregado, o caminho de
terra e os corvos. No entanto, se os elementos são os mesmos,
absolutamente diverso é o tratamento plástico dado a eles. No
lugar das pinceladas espessas e agressivas, a superfície amarela
do trigal e o azul do céu formam campos mais homogêneos,
que se encontram sem atrito. O impasse do tríplice caminho
desaparece, pois os atalhos de terra viram inofensivas faixas on-
duladas, verdes e amarronzadas, na parte inferior da ilustração.
Os corvos esquemáticos são substituídos por recortes colados,
de contorno mais definido. A impressão geral é de abranda-
mento da “agressividade” gestual da tela-fonte. É como se a car-
ga dramática desse gesto fosse de alguma forma compensada
pela inclusão da figura humana ensanguentada, representando
o pintor ferido.
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Vincent van Gogh e as cores do vento Chiara Lossani
A comparação pode ensejar um debate sobre diferentes
modos de representar o drama da experiência: uma via mais
indireta, ligada à gestualidade, às transições violentas de cor e
ao poder de sugestão da humanidade ausente, e outra mais di-
reta, associadas à imagem, imediatamente decodificável, de um
homem se esvaindo em sangue.
para Saber maiS
SITESMuseus em cujo acervo há obras de Vincent van Gogh:
• Van Gogh Museum, Amsterdã (Holanda)
http://www.vangoghmuseum.nl
• Musée d’Orsay, Paris (França)
http://www.musee-orsay.fr
• Rijksmuseum Kröller-Müller, Otterlo (Holanda)
http://www.kmm.nl/collection
• Museu de Arte de São Paulo (Masp), São Paulo (Brasil)
http://masp.art.br/Masp dispõe de cinco quadros de Van Gogh em sua coleção
permanente: Natureza-morta com prato, vaso e flores, O filho
do carteiro, Passeio ao crepúsculo, Banco de pedra e A arlesiana.
Tais telas podem ser visitadas virtualmente digitando a pala-
vra “Gogh” no campo de busca reservado ao autor.
LIVROS PARA O PROFESSOR• AndrAde, Carlos Drummond de. “A cadeira (Van Gogh)” e
“Café noturno (Van Gogh)”. De “Arte em exposição”. In: Fa-
rewell. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 31, 33.
Poemas de um dos maiores poetas brasileiros do século
XX dedicados à obra do pintor holandês.
• ArtAud, Antonin. Van Gogh: o suicidado pela sociedade.
In: Escritos de Antonin Artaud. Seleção, tradução e notas de
Cláudio Willer. Porto Alegre: L&PM, 1986.
Publicado em 1947, recebeu o prêmio Sainte-Beuve de
ensaios. O autor destaca o valor da loucura lúcida de Van
Gogh, apreendendo que ele criou para os “simples de espí-
rito” telas com “extraordinária força insurrecional”.
• CArPeAux, Otto Maria. Van Gogh, holandês e visionário. In:
Ensaios reunidos – 1946-71 v. II. Prefácio de Ivan Junqueira.
Rio de Janeiro: UniverCidade & Topbooks, 2005, p. 391-3.
Ensaio que nos ajuda a compreender a formação de
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Vincent van Gogh e as cores do vento Chiara Lossani
Van Gogh, sua inserção cultural e o alcance universal de
sua singularidade artística.
• GoGh, Vincent van. Cartas a Théo. Tradução de Pierre Ru-
precht. Porto Alegre: L&PM, 2010.
Seleção das cartas do pintor a seu irmão e protetor, que
oferecem informações sobre o contexto histórico-cultural
em que viveu e deixam ver suas concepções e projetos ar-
tísticos, dramas, amizades.
• nAifeh, Steven; White SMith, Gregory. Van Gogh: a vida.
Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das
Letras, 2012.
Biografia do pintor de Os girassóis, fruto de dez anos de
pesquisa sobre mais de dez mil cartas, que questiona mitos
amplamente difundidos, como o do suicídio do artista.
• thoMSon, Belinda. Pós-impressionismo: movimentos da
arte moderna. Tradução de Cristina Fino. 2. ed. São Paulo:
Cosac Naify, 2001.
Livro que procura apreender as singularidades de artistas
como Seurat, Cézanne, Gauguin e Van Gogh em seu mo-
vimento de aprofundar conquistas do impressionismo e
explorar novas possibilidades.
DVD• Van Gogh: vida e obra de um gênio. (Vincent
& Theo). Direção: Robert Altman. Holanda/
Reino Unido/França/Itália/Alemanha, 1990.
Colorido. 138 min. Elenco: Tim Roth, Paul
Rhys and Adrian Brine.
O filme retrata a intensa relação de amor
e ódio entre o pintor holandês Vincent van
Gogh e seu irmão mais novo, Theo. Voo
poético em cores fortes pela vida de um ar-
tista de temperamento tempestuoso.
Elaboração do guia ieda lebensztayn, doutora em literatura brasileira pela FaCuldade de FilosoFia, letras e CiênCias humanas da universidade de são paulo; PrEParação Fabio Weintraub; rEvisão marCia menim.
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