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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E LETRAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA
ANTENOR DA SILVA FERREIRA
Euclides da Cunha: Integrao, Paisagem e Topofilia
MANAUS
2016
ANTENOR DA SILVA FERREIRA
Euclides da Cunha: Integrao, Paisagem e Topofilia
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao
em Sociologia da Universidade Federal do Amazonas,
como requisito parcial para a obteno do ttulo de
Mestre em Sociologia.
rea de concentrao: Pensamento Social na Amaznia
Orientador: Prof. Dr. Odenei de Souza Ribeiro
MANAUS
2016
iii
Ficha Catalogrfica
(Catalogao realizada pela Biblioteca Central da UFAM)
Ferreira, Antenor da Silva
F383e Euclides da Cunha: Integrao, Paisagem e Topofilia / Antenor
da Silva Ferreira. 2016
123 f.: 31 cm.
Orientador: Prof. Dr. Odenei de Souza Ribeiro
Dissertao (Mestrado em Sociologia) Universidade Federal do
Amazonas.
1. Integrao Regional. 2. Paisagem. 3. Sentimento Topoflico. 4.
Experincia. I. Ribeiro, Prof. Dr. Odenei de Souza II. Universidade
Federal do Amazonas III. Ttulo
iv
ANTENOR DA SILVA FERREIRA
Euclides da Cunha: Integrao, Paisagem e Topofilia
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia do Departamento de
Cincias Sociais da Universidade Federal do Amazonas, como requisito parcial para a
obteno do ttulo de Mestre em Sociologia pela Comisso Julgadora composta pelos
membros:
______________________________________________
Prof. Dr. Odenei de Souza Ribeiro
Presidente
Universidade Federal do Amazonas - UFAM
______________________________________________
Prof Dr. Ernesto Renan Melo de Freita Pinto
Universidade Federal do Amazonas - UFAM
______________________________________________
Prof. Dr. Marco Aurlio Coelho Paiva Universidade Federal do Amazonas - UFAM
Aprovada em: 30 de Maio de 2016
Local de Defesa: Bloco Mrio Ypiranga Monteiro ICHL, Sala 11.
v
DEDICATRIA
Dedico este trabalho in memoriam de Antonio Lopes Ferreira dos
Santos, meu pai, caboclo do beirado que experimentou muito da
realidade aqui exposta.
vi
AGRADECIMENTOS
A realizao de um trabalho cientfico sempre um compartilhamento de um bem
pblico, o conhecimento, cuja apropriao privada se d em meio ao esforo coletivo. Sou
imensamente grato a todos que contriburam direta e indiretamente para a realizao deste
trabalho, dentre eles, cabe ressaltar os seguintes. Ao Departamento de Polcia Metropolitana
da Polcia Civil do Estado do Amazonas pela flexibilizao dos meus horrios de trabalho,
possibilitando a assistncia tranquila das aulas. Ao Programa de Ps-Graduao em
Sociologia pelo empenho em tornar possvel o sonho de consolidar no Amazonas a produo
cientfica no campo da Sociologia.
Especial agradecimento devido ao Professor Dr. Odenei de Souza Ribeiro, meu
orientador, que foi o responsvel pelo insight do trabalho, conduzindo-me s leituras devidas.
Ao Professor Dr. Marco Aurlio de Paiva pelo exame franco e sincero da primeira
sistematizao da proposta do trabalho, ao lado do Professor Dr. Marcelo Bastos Serfico,
cujas contribuies foram todas incorporadas. Ao Professor Dr. Renan Freitas Pinto pelo
despertar do interesse pela temtica da Amaznia de Euclides da Cunha. Ao Professor Dr.
Aldenor da Silva Ferreira que mesmo distncia funcionou como coorientador, interlocutor
de todas as horas, produzindo incontornvel contribuio, sem a qual este trabalho no se teria
realizado.
Especialssimo agradecimento a Rosemary da Silva Santos, meu arrimo de afeto,
companheira de todas as horas, que retirando de mim responsabilidades e preocupaes que
tornaram os dias dela muito mais agitados e carregados de tarefas do que de costume, me
possibilitaram a tranquilidade necessria para a escrita deste trabalho. Aos meus filhos, Yuri
Ren, Iorhan Vincius e Amanda Sofia, pela alegria de t-los como ddiva dos cus, de onde
recebo toda a graa na pessoa de Jesus, o majestoso Cristo.
vii
EPGRAFE
Devemos, por tantas e fortes razes, exumar de sua tumba recoberta
no de musgos e ciprestes, mas de traas e poeira, os nossos mortos de
melhor memria, para que venham ajudar os vivos a encontrar
caminhos claros e firmes. (HILDON ROCHA, 2000).
viii
Euclides da Cunha: Integrao, Paisagem e Topofilia
RESUMO
Este trabalho constitui-se num exerccio exegtico das obras Os Sertes e Margem
da Histria, de Euclides da Cunha. Busca-se realizar uma comparao direta entre as duas
obras no mbito dos temas Integrao Regional, Paisagem e Topofiliao. Os objetivos foram
identificar como o autor entende e prope a integrao das regies Nordeste e Norte nao
brasileira, e ainda, compreender como o autor classifica a paisagem, as gentes e os espaos do
Nordeste e da Amaznia. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliogrfica, realizando-se
um exame dos escritos de interesse da pesquisa, sem negligenciar os demais escritos do autor,
bem como de fontes secundrias, extraindo-se subsdios para a construo do trabalho.
Euclides da Cunha vivenciou grande parte dos eventos histricos mais marcantes da histria
do Brasil, no bojo da mudana de regime poltico do Imprio Repblica Presidencialista em
1889. Desde as primeiras letras o autor preocupou-se em escrever para interferir na realidade
social em que vivia, increvendo-se na galeria dos autores que procuraram definir o Brasil. A
temtica da integrao regional a sua grande contribuio, sendo pioneiro em relao
integrao da Amaznia. Euclides descreve minuciosamente a paisagem para valorizar a luta
do sertanejo contra a natureza, evidenciando-lhe a bravura, trao psicolgico que o faz
triunfar sobre um ambiente hostil e que proposto pelo autor como modelo para a nao. No
trato com a paisagem, ainda, o autor deixou-se perceber francamente desgostoso com a
paisagem amaznica. Neste trabalho se buscou explicar esse estranhamento expresso de um
sentimento topoflico, provocado pelo confronto do autor com uma paisagem diferente do
modelo topogrfico que evoca os seus sentimentos de belo e aprazvel, configurados pela sua
ambientao em regio montanhosa.
Palavras Chave: Integrao regional, Paisagem, Sentimento Topoflico, Experincia.
ix
Euclides da Cunha: Integration, Landscape and Topophilia
ABSTRACT
This work constitutes an Exegetical exercise about Os Sertes and Margem da
Histria, by Euclides da Cunha. The aim is to carry out a direct comparison between the two
works in the context of Regional Integration issues, Landscape and Topophilia. The
objectives were to identify how the author understands and proposes the integration of
Northeast and North to the Brazilian nation, and yet, understand how the author classifies the
landscape, people and spaces of the Northeast and Amazon. The methodology used was the
bibliographical research, performing an examination of research interest books, without
neglecting the other writings of the author, as well as secondary sources, extracting subsidies
for the construction of the work. Euclides da Cunha experienced many of the most remarkable
historical events in the history of Brazil, in the midst of the change of political regime of the
Empire to the presidential Republic in 1889. Since the first letters the author concerned in
writing to interfere with the social reality in which he lived, enrolling in the Gallery of the
authors who sought to define the Brazil. The subject of regional integration is their great
contribution, being pioneer in relation to the integration of the Amazon. Euclides describes
thoroughly the landscape to highlight the struggle of backcountry against nature, showing his
bravery, psychological trait that makes him triumphing over a hostile environment and that is
proposed by the author as a model for the nation. In dealing with the landscape, the author left
see frankly disgusted with the Amazonian landscape. In this work sought to explain that
strangeness expression of a topophilic feeling, caused by the author's confrontation with a
different landscape topographic model that evokes feelings of beautiful and pleasant,
configured for his ambiance in mountainous region.
Key Words: Regional Integration, Landscape, Topophilic feeling, Experience.
x
SUMRIO
INTRODUO.. 11
CAPTULO 1 Euclides da Cunha e a conscincia de seu tempo: sanitarismo,
positivismo, evolucionismo, republicanismo uma contextualizao....................... ....21
1.1 Sanitarismo. 27
1.2 Positivismo, Evolucionismo e Republicanismo. 34
1.3 O Euclides vingador.. 42
CAPTULO 2 Da terra seca terra molhada: o Nordeste e a Amaznia de Euclides da
cunha ............................................................................................................................54
2.1 O elo Nordeste-Amaznia.. 54
2.2 A integrao do Nordeste - uma necessidade cultural.. . 61
2.3 A integrao da Amaznia - uma questo de soberania nacional. 70
2.3.1 Leis sociais justas como sinal da presena do Estado. 72
2.3.2 O povoamento e a luta contra o deserto.. 77
2.3.3 Obras de Infraestrutura como elemento fomentador do progresso. 79
CAPTULO 3 Paisagem e filiao: a janela por onde Euclides olha o mundo.........84
3.1 Fundamentos conceituais ... 84
3.2 A paisagem como elemento norteador... 97
3.2.1 A paisagem em Os Sertes. 97
3.2.2 A paisagem em Margem da Histria ................................................................102
3.3. A Paisagem como literatura em misso...........................................................................104
3.3.1 No texto Os Sertes.......................................................................................................104
3.3.2 No texto Margem da Histria....................................................................................106
2.10 Consideraes finais.....................................................................................................110
REFERNCIAS ..................................................................................................................120
11
INTRODUO
Euclides da Cunha um autor clssico do pensamento social brasileiro. Um intelectual
comprometido com as transformaes sociais e empenhado de forma integral na construo
de um projeto de identidade nacional, fato que o tornou incontornvel. Como uma bigorna a
desgastar seguidos martelos, h sempre o que dizer sobre os seus escritos, ou sobre a sua vida.
Sobre os seus escritos amaznicos uma questo inicial nos chamou a ateno. Indagvamos,
inicialmente, at que ponto Euclides da Cunha poderia contribuir para a compreenso do atual
estado de coisas na relao regio-nao entre a Amaznia e o restante do pas. Guivamos
pelo ensino do historiador Hildon Rocha (2000) de que preciso estudar o passado para tornar
menos penoso o entendimento do presente, exumando os mortos de sua poeira para que
venham ajudar os vivos na sua luta pela compreenso da realidade. Ainda mais se a aparente
realidade a de que pouca coisa mudou desde que Euclides navegou pelas guas amaznicas
e lanou sobre ela seu olhar de poeta e de cientista. Mais de um sculo se passou e aquilo que
Euclides percebeu com seu olhar de estrangeiro ainda vivenciado pelo homem amaznico,
onde pouca coisa mudou em relao ao isolamento espacial das comunidades ribeirinhas, por
exemplo, permanecendo o homem amaznico escravisado ao rio, como nos falou Euclides.
Na nossa trajetria de exame do autor, desprovido de temores e de preconceitos,
apoiado pela vigilncia do mtodo sociolgico, identificamos uma preocupao recorrente
tanto no livro Os Sertes, quanto no livro Margem da Histria, a saber, o tema da
construo da nacionalidade pelo vis da integrao regional. Independente da validade ou
no das propostas de Euclides da Cunha nessa questo, pareceu-nos importante entender que
tipo de integrao regional proposta nesses textos, uma vez que tanto o sertanejo nordestino,
quanto o caboclo amaznico, noutras palavras, tanto o Nordeste, quanto a Amaznia,
aparecem nesses escritos alijados das preocupaes governamentais da federao, como filhos
enjeitados da nao.
Encontrado no texto como pessoa dotada de uma viso de mundo peculiar, de uma
trajetria social singular, Euclides da Cunha aparece como autor engajado, digno de ser
revisitado, habilitado a continuar nos falando, como nos ensina Hildon Rocha (2000), pela
maneira incisiva com que props a interveno do Estado na construo de uma infraestrutura
necessria para o desenvolvimento da regio, que possibilitasse a ela o fim de seu isolamento.
Estamos certos de que Euclides da Cunha continua nos falando, mesmo aps um sculo de
seu falecimento. Afirmamos isso porque entendemos que no h distncia segura entre a vida
12
pretrita e a vida presente da Amaznia. Visto que, percorridas quase duas dcadas do sculo
XXI, a regio ainda no conseguiu superar problemas das mais diversas ordens, originados
em sculos anteriores, problemas que se multiplicam e se complexificam com o passar dos
anos, como por exemplo, o avano da pecuria, da produo de soja, a explorao
desequilibrada de madeira, a minerao clandestina, o crescimento desordenado de suas
cidades, os conflitos fundirios, a questo indgena no resolvida completamente, o atraso
educacional, a infraestrutura precria das telecomunicaes, das rodovias, das hidrovias, dos
portos e aeroportos, dentre outros. Essas questes, so dados de realidade que atestam que
vivemos numa continuidade espacial, temporal e cultural, de certa forma j descrita por
Euclides. Entendemos que a morte de Euclides da Cunha, tratando-se da sua influncia, s
ocorreria se de fato vivssemos em uma realidade to radicalmente nova na Amaznia que
no guardasse qualquer vnculo com as coisas primeiras. No parece ser o caso, visto que a
regio historicamente vive realidades sociais e econmicas marcadas por avanos e
retrocessos, como bem definiu Schneider et al. (2000) a Amaznia vive de boom colapso, ou
seja, um perodo de grande prosperidade econmica boom seguido de forte declnio e
estagnao colapso. As rupturas so tnues, a ponto de no haver sempre continuidades.
Nesse sentido, a questo da integrao regional brasileira um dos assuntos em aberto, tanto
que ainda movimenta milhes nos oramentos pblicos nacionais anualmente, com resultados
prticos incipientes, principalmente na regio Nordeste e a sua secular indstria da seca.
Nessa perspectiva, o exame de um autor como Euclides da Cunha sempre poder ser valioso,
ainda que seja como ponto de referncia para novas utopias.
Ao elegermos como tema deste trabalho a integrao regional proposta por Euclides
da Cunha, trabalhvamos com a perspectiva de traz-lo mais uma vez tona, pois embora nos
falando da distncia de um sculo, temos a confirmao do seu poder meio proftico, quando
soube indicar com veemncia o caminho de nossas regies abandonadas (ROCHA, 2000),
isso em razo de que o isolamento, elemento principal notado por Euclides, ainda perdura.
Com efeito, algum pode objetar-me e dizer que a palavra isolamento relacionado
Amaznia um anacronismo, visto que com o advento da telefonia celular e internet isso no
mais possvel. Falando especificamente do estado do Amazonas, de fato, algumas melhorias
ocorreram, fundamentalmente no que tange ao transporte fluvial. Algumas dcadas atrs, se
deslocar at a capital ou sede do municpio mais prximo era uma epopeia. Atualmente, h
uma rede de barcos e lanchas velozes que mantm linhas dirias e/ou semanais at as sedes
municipais ou mesmo para a capital. Uma viagem do municpio de Parintins at Manaus
13
(distncia de 450 km em linha reta) que antes durava 24 horas, pode ser feita hoje em 8 horas,
quando realizada em lanchas velozes. Ainda assim o isolamento permanece, vrios tipos de
isolamento. Apenas para antecipar um, o Amazonas isolado do ponto de vista da telefonia
celular. De acordo com a Agncia Nacional de Telecomunicaes (Anatel) nem todas as
operadoras de telefonia celular do pas atuam em todos os municpios amazonenses. Quatro
das cinco principais operadoras do Brasil no alcanam sequer 50% das cidades do estado. A
m prestao de servio de telefonia mvel no Amazonas j foi alvo de uma Comisso
Parlamentar de Inqurito (CPI) na Assembleia Legislativa do Amazonas (ALEAM), em
agosto de 2013. A comisso teve como objetivo apurar as razes da m qualidade do servio
de telefonia fixa, mvel e de Internet no Estado. O resultado da CPI obrigou as empresas de
telefonia a comprometerem-se, por meio de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), a
melhorar o servio e a realizar um grande mutiro no Amazonas1. Os problemas ligados ao
isolamento inviabilizam muitos negcios do prprio Polo Industrial de Manaus. Lopez (2013)
afirma que no percurso de instalao das plantas industriais para a fabricao de tablets em
Manaus a empresa taiwanesa Foxconn chegou a namorar a Zona Franca, mas rompeu o
namoro denunciando o atraso de sua logstica, a frequncia do apago energtico e a banda
larga precria e cara.
Portanto, estudar Euclides da Cunha, verificar suas propostas, seus diagnsticos e
prognsticos, traz-lo para o palco da compreenso de ns mesmos, amaznidas, gente de
carne e osso que vive e trabalha nesse mosaico de terras, florestas e guas. trabalhar com
um autor que nos conheceu no de ouvir falar, nem nos sondou distncia, em um gabinete,
mas experimentou nossos dramas, um autor que pode auxiliar na escolha de novos rumos
diante de uma temtica que, como mencionado, continua em aberto. Neste sentido, este
trabalho tem como objetivo compreender como Euclides da Cunha entende e prope a
integrao das regies Norte e Nordeste nao brasileira, numa anlise comparativa entre as
obras Os Sertes e Margem da Histria, considerando um exame direto dos textos. Parece-
nos evidente que o autor disps-se a escrever no sentido de propor a integrao de ambas as
regies nao, uma preocupao que permeava a intelectualidade dos seus dias e que obteve
a ateno de muitos outros autores. Por outro lado, o acurado exame dos escritos amaznicos
de Euclides nos levou a indagar o que teria levado o autor a se expressar com tamanho
1 SANTOS, Izabel. Amazonas tem somente uma operadora de celular presente em todos os municpios.
Disponvel em: http://www.portalamazonia.com/noticias. Acesso em: 01 abr. 2016.
14
estranhamento em relao regio, a ponto de manifestar descontentamento em relao
paisagem amaznica. Numa anlise mais atenta dos escritos arrolados no livro Margem da
Histria pareceu-nos claro que o autor se propunha a apresentar a Regio Amaznica como
parte da nao brasileira, e apresentar o caboclo, tipo humano apontado pelo autor como o
desbravador do deserto, como uma referncia para o restante do pas. Logo, pareceu-nos
incongruentes as afirmaes to francas de desagrado em relao paisagem amaznica.
Na busca de compreender essa possvel contradio, enveredamos numa perspectiva
de localizar o autor no seu tempo, combinando trajetria de vida e conscincia social, de
modo a alcan-lo no ambiente em que os escritos foram dados ao conhecimento do pblico.
Comparado com o Margem da Histria, o lugar e a paisagem do Nordeste descrita no livro
Os sertes aparecem impregnados de sentimento inverso ao expressado em relao plancie
amaznica. Evidenciou-se que em Os Sertes h uma nica expresso de descontentamento
com a paisagem, e isto se d somente quando a paisagem do serto se apresenta regular,
rasteira e monocromtica. Desse achado delineou-se a seguinte hiptese para o nosso
trabalho: h uma relao entre a regularidade monocromtica e topogrfica da paisagem
amaznica com o descontentamento de Euclides da Cunha em relao a ela. Tal como a
monocromia da caatinga e a estrutura rasteira daquele tipo de vegetao lhe causou
descontentamento, assim tambm, a paisagem amaznica com a sua caracterstica de
adensamento desde a barranca do rio, a regularidade de sua cor, a pouca visibilidade do
horizonte que propicia porque se constitui num achatamento de plancie e a pouca distino
de caracteres para um olhar inexperto, causou no visitante Euclides da Cunha o mesmo
descontentamento. Nestes termos, o tema Paisagem e Filiao se insinua no texto de Euclides
da Cunha e sempre esteve ali, como que aguardando uma leitura que o dignificasse. Esse
achado, no entanto, s foi possvel por uma questo pessoal da nossa parte, a partir da
identificao de um anseio que partilhado com o autor, qual seja, o anseio por contemplar
em profundidade horizontes infindos. Percebido esse anseio em Euclides da Cunha, coube-nos
investigar suas origens a partir de uma conceituao que fizesse jus s expresses espontneas
do autor em ambas as obras. Por outro lado, examinar um autor do passado a partir de
conceituao mais recente s se faz possvel e vlida se for para lhe dar oportunidade de se
defender frente ao vertiginoso desgaste do tempo, do contrrio cai-se em anacronismo. Ao
aplicarmos a Euclides da Cunha o conceito de Topofiliao s poderamos faz-lo se fosse
para dar-lhe uma oportunidade de se explicar diante da acusao de contraditrio e
preconceituoso por conta da maneira franca com que relatou o seu descontentamento com a
15
paisagem da regio amaznica. Estamos certos de que a acusao de preconceito para com a
regio amaznica no se sustenta quando comparada com o propsito expresso pelo prprio
autor de integrar esta regio nacionalidade, apresentando-a como um dado precioso a ser
tratado pelos governos.
No entanto, no resta dvida de que os textos de desagrado esto a como uma
realidade. Em Margem da Histria encontramos um Euclides descontente e contrariado
com a viso que se lhe apresenta da plancie amaznica. O autor reclama da regularidade
enfadonha da paisagem. Tal descontentamento, no nosso entendimento, s poder ser
explicado a partir de uma razo anterior aos fatos do seu contato com a regio, o que se
poder achar na sua ambientao de infncia, examinando os elementos de sua topofiliao.
Nesse sentido, nosso segundo objetivo compreender como Euclides da Cunha classifica a
paisagem, as gentes e os espaos do Nordeste e da Amaznia a partir de sua relao pessoal
com a natureza, naquilo que temos chamado de sua experincia topoflica. Nossa hiptese a
de que a ambientao de infncia do autor em regio montanhosa foi elemento importante na
verbalizao de estranhamento e descontentamento com o lugar e a paisagem amaznica.
Assim, o tema geral proposto Integrao, paisagem e filiao tornam este estudo
relevante no sentido de que, em primeiro lugar, permite que Euclides da Cunha continue entre
ns, a nos falar a partir de seu lugar privilegiado na galeria dos mortos de saudosa memria
(ROCHA, 2000). inegvel a presena do autor em inmeros trabalhos acadmicos recentes,
para os quais nos damos por escusado em comentar devido ao limitado espao deste trabalho,
mas que so a prova de que a realidade amaznica e acadmica continuam a ser alcanadas
por seus escritos. Em segundo lugar, com a temtica da topofiliao temos a pretenso de
tornar este trabalho relevante no sentido de permitir um outro olhar sobre o autor, talvez capaz
de retirar de sobre ele a pecha de preconceituoso e permitir que a sua real preocupao
sobressaia do seu prprio texto, a sua preocupao com o isolamento e o seu desejo de ver a
regio amaznica integrada ao restante do pas, mas no meramente num mapa de tratados
polticos, e sim como parte dele; e no como as gentes adoidadas a tm tratado, isto , como
mero depsito de riqueza, sem o interesse de pertencimento e fixao ao solo. Descolado da
imagem de preconceituoso, fato que advm desse descontentamento topoflico, Euclides pode
ainda nos falar da razo do despovoamento do interior, ou da nossa dependncia extremada de
16
suprimentos, dos quais 70%2 so importados de outros estados brasileiros e de outros pases,
da ausncia de polticas pblicas realmente inclusivas e abrangentes etc.
As estratgias de investigao do objeto proposto nesta pesquisa perpassaram,
primeiramente, por uma consistente reviso da literatura do autor, naquilo que podemos
chamar de uma exegese de seus escritos, principalmente os escritos principais, isto , aqueles
contidos no objeto da pesquisa, Os Sertes e Margem da Histria, sem contudo
negligenciar os demais escritos como as poesias e as cartas emitidas a partir de Manaus,
quando o autor aqui esteve na misso de fronteira de que participou como Comissrio da
Repblica Brasileira. Atento questo do uso de fontes secundrias, visto que elas podem
trazer concepes pessoais acerca de determinados objetos e que muitas vezes podem ser
influenciadas pela conjuntura poltica, econmica, cultural e social do momento vivido,
procurei localizar textos pertinentes e avaliar a sua credibilidade, bem como a sua
representatividade no que tange a obra de Euclides da Cunha, fiz um acurado exame dos
comentadores do autor, no intuito de compreender sua contribuio e auxiliar na consolidao
da nossa proposta de trabalho, especificamente a de demonstrar a relevncia de Euclides da
Cunha para os dias de hoje. Em seguida foram lidas as obras correlacionadas com o autor,
dentre as quais, vrios artigos acadmicos, livros de autores locais e nacionais, biografias do
autor, tudo sempre em paralelo aos estudos tericos para aprimoramento dos conceitos chave
a serem empregados no trabalho. Em seguida procedeu-se a releituras das obras em anlise,
dessa vez, para os recortes propostos pelo trabalho, nos dois temas abordados, integrao e
topofilia. A pretenso de utilizar essas duas categorias surgiu a partir de dilogos em sala de
aula, principalmente a partir do desafio lanado pelo Prof. Dr. Ernesto Renan Freitas Pinto,
acerca da necessidade de releitura dos clssicos da literatura amaznica, no intuito de resgatar
as origens do pensamento social na regio, bem como a partir de uma inquietao pessoal
causada por algumas passagens dos textos de Euclides, fundamentalmente, a que trata da
questo da solido do caboclo amaznico. Nesse ponto houve uma identificao imediata da
nossa parte, motivada certamente pelo fato de sermos enraizados na vida socioeconmica e
cultural ribeirinha. Essa identificao produziu uma simpatia intelectual que, por sua vez,
2 Em entrevista ao site new.d24am.com, publicada no dia 26 de fevereiro de 2015, o diretor do Sindicato dos
Feirantes do Estado do Amazonas, Deuticilan Barreto, fez a seguinte declarao: 70% dos alimentos vm de
fora. Todos ns sabemos que a nossa produo no atende a nossa demanda. Varejistas de Manaus temem
ficar sem alimentos por conta de protestos: paralisao de caminhoneiros nas estradas ameaa abastecimento de
produtos para o estado. Disponvel em: http://new.d24am.com/noticias/economia/varejistas-manaus-
tememficar-alimentos/129583. Acesso em: 22 dez. 2015.
17
produziu um insight agradvel, no que tange ao estranhamento do autor com a paisagem e,
mesmo reconhecendo os limites desse empreendimento, ficou claro que deveramos escrever
uma defesa de Euclides sobre esse ponto especfico.
A pesquisa empreendida para a confeco deste trabalho bibliogrfica, uma vez que
ainda no manuseamos documentos oficiais inditos sobre o tema. Oliveira (2007, p. 69) faz
uma importante distino entre a modalidade de pesquisa documental e bibliogrfica. Essa
distino importante, pois apesar de serem cotidianamente entendidas como sinnimas, pois
ambas tm no documento a principal fonte de investigao, elas so diferentes. Para a autora,
a pesquisa bibliogrfica uma modalidade de estudo e anlise de documentos de domnio
cientfico tais como livros, peridicos, enciclopdias, ensaios crticos, dicionrios e artigos
cientficos. Como caracterstica diferenciadora ela pontua que um tipo de estudo direto em
fontes cientficas, sem precisar recorrer diretamente aos fatos/fenmenos da realidade
emprica. Argumenta ainda que o principal objetivo da pesquisa bibliogrfica proporcionar
aos pesquisadores o contato direto com obras, artigos ou documentos que tratem do tema ao
qual esto dedicando a sua ateno. Segundo ela o mais importante para quem faz opo pela
pesquisa bibliogrfica ter a certeza de que as fontes a serem pesquisadas j so
reconhecidamente do domnio cientfico (p. 69).
Com relao pesquisa documental Oliveira (2007) afirma que: a pesquisa
documental caracteriza-se pela busca de informaes em documentos que no receberam
nenhum tratamento cientfico, como relatrios, reportagens de jornais, revistas, cartas, filmes,
gravaes, fotografias, entre outras matrias de divulgao (p. 69). fato que a pesquisa
documental anda ao lado da pesquisa bibliogrfica. De acordo com Gonsalves (2003), por
serem muito parecidas, o elemento diferenciador est na natureza das fontes: a pesquisa
bibliogrfica remete para as contribuies de diferentes autores sobre o assunto, atentando
para as fontes secundrias, enquanto a pesquisa documental recorre a materiais que ainda no
receberam tratamento analtico, ou seja, as fontes primrias. No entanto, preciso dizer que:
na pesquisa documental, o trabalho do pesquisador ou pesquisadora requer uma anlise mais
cuidadosa, visto que os documentos no passaram antes por nenhum tratamento cientfico.
Nesse ponto, tanto para o pesquisador iniciante quanto para os mais experimentados
fundamental a distino entre fontes primrias e fontes secundrias. As fontes primrias so
os dados originais, a partir dos quais o pesquisador tem uma relao direta com os fatos a
serem analisados, ou seja, ele quem analisa, observa, por exemplo, uma fotografia, uma
18
imagem, um som. ele quem ouve o relato de experincias vivenciadas por outrem. Por
fontes secundrias compreende-se a pesquisa de dados de segunda mo, ou seja, informaes
que foram trabalhadas por outros estudiosos e, por isso, j so de domnio cientfico, o
chamado estado da arte do conhecimento (OLIVEIRA, 2007).
No de somenos importncia observar que, quanto ao uso de fontes documentais, a
simples publicao de um texto no o torna automaticamente cientfico. H que se considerar
uma terceira situao, ou seja, o reexame de codumentos j manuseados, analisados e
interpretados por interessados ou estudiosos da obra, mas de quem discordamos, muitas vezes
por j conhecermos suas posies polticas, seus compromissos ideolgicos e mesmo suas
percepes preconceituosas sobre assuntos relacionados com o autor estudado. Muitos
estudos so correntemente questionados por outros pesquisadores equipados com instrumental
terico mais consistente.
Entendendo que a pesquisa bibliogrfica, propomo-nos uma leitura das obras Os
Sertes e Margem da Histria que se entenda como uma leitura externalista, isto , a partir
do resultado final do texto e aquilo que efetivamente chegou a ns por meio do impresso, mas
que, ao mesmo tempo, se constitua numa leitura internalista, visto que nos propomos
averiguar a Experincia por trs das letras, o contexto e limites daquele que escreveu.
Entendemos que somente uma combinao equilibrada entre estas duas maneiras de atuar
sobre a obra seria capaz de nos conduzir a resultados razoveis, pois como nos ensina Maia
(2008), ambos os enfoques trazem definies importantes. A leitura externalista vem
privilegiar as condies sociais de produo das obras e a rede de vinculaes que envolvem
os autores, sem as quais o texto no poderia ser decifrado no mbito da experincia concreta.
Neste sentido, a reconstruo do ambiente social da obra capaz de localiz-la no tempo,
impedindo o seu uso contaminado pelo anacronismo e generalizaes. Por seu turno, a leitura
internalista procura decifrar a lgica interna dos textos e seus significados inscritos na prpria
escrita. Nesta abordagem considera-se a realidade do texto como um dado, o qual pode ser
examinado a partir de sua prpria existncia, e avaliado naquilo que de fato diz por meio da
escrita. Entendemos que ambos os enfoques precisam complementar-se, alimentando-se do
outro, posto que a trajetria social do autor no pode, por si s, definir a cifragem da
fraseologia do texto, e tampouco uma fraseologia trar em si mesma a segurana de seu
significado, se estiver deslocada do seu contexto.
19
Atendendo ao disposto acima apresentamos no Captulo 1 Euclides da Cunha e a
conscincia de seu tempo uma contextualizao das linhas de pensamento mais em voga no
perodo vivido por Euclides da Cunha, final do sculo XIX e incio do XX. O ambiente
poltico no Brasil nesse perodo era de mudanas profundas, quando se processou a troca do
regime monrquico pelo regime republicano. Portanto, o republicanismo um dos elementos
que permearam a formao e a trajetria social de Euclides da Cunha. Como consequncia da
derrubada do regime monrquico, e com ele o arcabouo cultural do Imprio, surge a
necessidade de redefinio do Brasil, ou a definio do vir-a-ser da nova nao. A conscincia
social que animava, portanto, no apenas Euclides da Cunha, mas outros autores seus
contemporneos, era a de que o Brasil era um pas por definir-se enquanto povo, enquanto
nao, advindo dessa preocupao diferentes propostas e diagnsticos. Euclides da Cunha ir
propor a integrao regional como elemento condicionante da definio da nacionalidade,
fundamentado no positivismo comteano e posteriormente no evolucionismo spenceriano.
Positivismo e Evolucionismo Social eram as teorias sociais mais modernas de ento. Euclides
lanou mo delas, embora tenha procurado super-las, conforme procuramos demonstrar
neste trabalho. No mesmo contexto de mudanas sociais so encontrados os avanos
tecnolgicos que possibilitaram novos conhecimentos das etiologias das doenas, o que ir
impulsionar o movimento sanitarista, este mesmo em grande medida constitudo em agente de
tais mudanas sociais e de exerccio do poder. Terminamos o captulo abordando um aspecto
da trajetria pessoal de Euclides da Cunha que, no nosso entendimento, fator preponderante
no resultado final do seu engajamento social e poltico. Trata-se do fator orfandade ainda na
infncia. Propusemos a identificao da propenso de Euclides da Cunha em tomar partido do
oprimido, naquilo que alguns autores denominaram de quixotismo euclidiano com um trao
de personalidade desenvolvido a partir de suas perdas.
No Captulo 2 Da Terra Seca Terra Molhada: o Nordeste e a Amaznia de
Euclides da Cunha apresentamos uma resenha do tema integrao regional encontrado nas
duas obras em estudo, Os Sertes e Margem da Histria. Verifica-se que, no entendimento
de Euclides da Cunha, tanto o Nordeste, quanto a Amaznia so vitais para o projeto de nao
e integr-las ao restante do pas uma questo de soberania nacional. O elemento humano
encontrado nessas regies, o sertanejo, o elemento dotado da moris buscada por Euclides
para uma nao que est por realizar-se e que est plantada numa parte do globo onde a
natureza se mostra portentosa e hostil ao elemento humano. Nosso entendimento que a
20
bravura sertaneja, sua fibra moral que suplanta os reveses naturais o elemento psquico
buscado e proposto por Euclides como o elo capaz de fomentar a unidade nacional.
O Captulo 3 Paisagem e Filiao: a janela por onde Euclides olha o mundo
uma proposta de interpretao do tratamento dado por Euclides da Cunha ao elemento
paisagem tanto no livro Os Sertes, quanto no livro Margem da Histria. Nosso argumento
que Euclides da Cunha lana mo do elemento Paisagem para fazer uso dela como
contraponto da luta do sertanejo pela sobrevivncia, de modo a enaltecer a sua bravura. A
hostilidade natural descrita para realar o elemento humano sertanejo, este sim de maior
interesse para o autor. No bojo desse trato com a paisagem se encontra o estranhamento
pessoal de Euclides com a paisagem amaznica, a qual se lhe apresenta desprovida de
encantos e chatamente rebatida no plano. Nesse aspecto propusemos uma anlise baseada
nos impulsos pessoais do autor, dentro do conceito de experincia topoflica, quando
concluimos que o estranhamento expresso por Euclides da Cunha em relao paisagem
amaznica se deve sua ambientao de infncia numa regio montanhosa, de modo que as
definies de belo e aprazvel na mente do autor se consolidaram com as formas onduladas de
morros e de montanhas, e em contraste a estes os vales profundos de longa vista desimpedida,
situao que no ocorre na paisagem amaznica.
Por fim, cabe dizer que este trabalho se props revisitar um autor influente para o
pensamento social na Amaznia no intuito de encontrar nele um ponto de partida, uma
referncia de exame dos nossos dias. A concluso a que chegamos a de que Euclides da
Cunha continua atual, talvez no pela sua genialidade, mas porque os nossos problemas
sociais, polticos e econmicos so recorrentes, de modo a divergir a nossa vida hoje pouca
coisa daquilo que Euclides descreveu h cem anos. O que se verifica que Euclides da Cunha
foi proftico em relao aos nossos destinos, ao identificar na floresta aquilo que definimos
por analogia como o caminho de Ssifo a que parece que estamos condenados. Apesar de todo
o esforo dispendido por governos, pensadores, poetas etc., ainda aguardamos o dia de
superar as anlises euclidianas em relao Amaznia. Ainda aguardamos o dia em que
poderemos declar-lo inadequado, visto que, pelo menos do ponto de vista do diagnstico dos
nossos problemas, seus escritos ainda so aquilo que Arthur Csar Ferreira Reis (2000)
declarou: Euclides um dos raros exegetas da formao e da realidade brutal de nossa vida.
21
CAPTULO 1 EUCLIDES DA CUNHA E A CONSCINCIA DE SEU TEMPO:
Sanitarismo, Positivismo, Evolucionismo, Republicanismo Uma Contextualizao
No exagero dizer que o estreito ambiente rural de sua
infncia solitria passada perto do angico da Fazenda
So Joaquim, de onde fazia arengas ao gado, alargou-se
como ondas num lago para finalmente engolfar no
abrao de sua paixo todo o Brasil do Centro, do
Nordeste e do Norte. E como acabou enlanguescendo no
Rio modernizado, depois de ficar isolado dos desertos
da Natureza brasileira! (FREDERIC AMORY, 2009).
Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha, ou simplesmente Euclides da Cunha, se insere
entre os pensadores brasileiros mais influentes no mbito do grande debate acerca da
nacionalidade brasileira. Figura na galeria onde esto tambm Gilberto Freyre, Srgio
Buarque de Holanda, Oliveira Viana, Nina Rodrigues, apenas para citar alguns nomes de
relevo da histria do pensamento social brasileiro. Tem, no entanto, para si, o mrito de ter
contribudo para a insero da Amaznia na questo da formao nacional por meio no
apenas de leituras distncia, mas por ter experimentado de modo direto o ambiente
amaznico, por meio de viagem realizada ao Rio Purus.
Pinto (2012) define o trabalho de Euclides da Cunha sobre a Amaznia como o
primeiro a realizar uma reviso crtica da produo literria acerca da regio. O autor diz isso
valendo-se das prprias palavras de Euclides, para quem os escritos de autores anteriores a ele
acerca da Amaznia so monografias desconexas entre si, profundamente impregnadas pelo
fascnio e fantasia frente ao exotismo, grandeza e perigos da regio, de modo a no escapar
do xtase frente ao maravilhoso, ao surpreendente, e pouco producentes para a conceituao
cientfica da regio, cuja existncia est ainda no mbito do misterioso. Com a contribuio
22
de Euclides da Cunha, ele passa a se constituir em divisor de guas no pensamento social da
Amaznia, conforme nos diz Pinto (2012):
Isso se torna evidente quando atentamos para o fato de que, depois de
Euclides da Cunha, se inaugura um novo modo de perceber a histria social
do povo brasileiro e, em referncia Amaznia, dificilmente os que lhe
sucederam conseguiram pensar a regio sem tomar em considerao o corpo
principal das ideias com as quais construiu sua interpretao da sociedade
brasileira nesta sua parcela colocada "a margem da histria". Um outro
aspecto que sobressai de sua obra o fato de que ela resulta de uma leitura
cuidadosa e extensa dos autores que lhe antecederam e sobre os quais
empreende um rigoroso trabalho de recuperao crtica (PINTO, 2012, p.
200).
Comparamos os escritos de Euclides com as anlises feitas por Lepenies (1996),
acerca do processo de consolidao da Sociologia na Europa, e acreditamos ter havido no
Brasil uma situao social semelhante quele processo. Tambm aqui se desenvolveu uma
luta entre a Sociologia e a Literatura pela primazia no poder de definir a realidade social. Os
escritos de Euclides da Cunha, a nosso ver, so esboos de uma anlise sociolgica nascente,
ainda a meio caminho entre a expresso literria e o rigor cientfico, semelhante situao
alem, francesa e inglesa, citadas por Lepenies (1996). V-se isso claramente em Os Sertes,
onde a anlise da realidade social local de Canudos e mesmo a realidade nacional aparecem
como anlise sociolgica embutida numa racionalidade literria marcante. Essa indefinio
entre escritos sociolgicos ou literrios ainda mais ntida quando se verifica as questes
tratadas durante o perodo de publicao de Os Sertes e mesmo de outros perodos bem
prximos, em que a Antropogeografia e o Evolucionismo se fazem literariamente, cujas
figuras mais centrais passam por Friedrich Hatzel (1844-1904) e Herbert Spencer (1820-
1903).
Compreender a contribuio euclidiana no mbito do Pensamento Social e, mais
especificamente, a sua contribuio para a compreenso da Amaznia um exerccio
necessrio a todos que impem a si mesmos a tarefa de ombrear a luta pela legitimidade e
poder de definir, classificar e localizar a Amaznia no debate contemporneo. Isso em razo
de que, como acreditamos, no possvel contornar os escritos de Euclides da Cunha.
Podemos pensar com ele, atravs dele, ou contra ele, mas nunca sem ele, em decorrncia da
forma marcante como se posicionou frente aos problemas encontrados na regio e dos
caminhos apontados em seus estudos.
23
Euclides da Cunha se auto intitula o vingador. V-se que ao dar voz aos sertanejos de
Canudos, de onde resultou a sua obra Os Sertes, de fato ele surge como contraponto ao
consenso que a grande imprensa havia consolidado, o de que Canudos era uma ameaa
Repblica3. Esse consenso, alis, ainda existe em Corporaes como a Polcia Militar do
Amazonas que ainda faz meno de sua participao na luta em Canudos como um feito
heroico. Na viso de Euclides, no entanto, o que houve em Canudos foi um massacre. O autor
toma partido dos sertanejos exaltando suas qualidades heroicas e tecendo crticas mordazes
Repblica. Deixa claro que o anacronismo religioso de Antnio Conselheiro foi combatido
com excessivo furor. O que se v no ambiente circundante, a partir das linhas de Os Sertes
o orgulho ferido da Repblica, com a sua mquina militar sendo rechaada por jagunos
desarmados e malnutridos, fazendo parecer que havia uma guerra, quando na verdade, na
viso de Euclides, o que houve em Canudos foi um extermnio. O sertanejo forte resistiu at o
ltimo homem e a obra Os Sertes seria a proclamao da verdade contra a euforia
generalizada de uma imprensa e uma sociedade desinformada, que tratou sertanejos
empobrecidos como um risco para a soberania da nao.
Ao se deparar com a Amaznia, Euclides da Cunha revive momentos de intensa crise
interna, incluindo frustraes, contentamento, sentimentos ambivalentes que aos poucos vo
se conduzindo para um estado de percepo capaz de lhe indicar a necessidade de um novo
livro vingador (grifo meu). Este livro que no chegou a ser escrito, teria a pretenso de vingar
a regio das gentes adoidadas que a maculam desde o sculo XVII, conforme suas palavras.
Obviamente, esse novo livro se referiria em parte aos escritos anteriores aos seus, em parte
aos tipos humanos que adentraram a Amaznia pelos diferentes motivos e, em parte ao
distanciamento que a Regio evidenciava em relao Repblica, tanto poltica quando
economicamente. Todavia, Euclides da Cunha um ser humano. Como tal, ele dotado de
uma histria social incorporada, inserido que est num contexto histrico, poltico e social.
Nele se encontram representaes sociais e disposies duradouras que norteiam seus atos e
suas percepes. Como afirma Morin (1982), a complexidade humana s pode ser
compreendida se tivermos em conta as dimenses biolgica e sociocultural do indivduo, pois
para o autor, todo o ato humano , ao mesmo tempo, totalmente biolgico e totalmente
cultural, isso implica dizer que o comportamento do indivduo ou a constituio de seu ser
3 O prprio Euclides da Cunha, antes de ter contato direto com a regio de Canudos, escreveu artigos para a
imprensa paulista confirmando esse ponto de vista.
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social resultante das caractersticas biolgicas e da influncia dos contextos sociais e
culturais em que ele se insere. Nesse sentido, a anlise das condies sociohistricas
fundamental para a compreenso do modo de pensar e de agir de um indivduo. Nestes
termos, um breve exame dos principais movimentos do perodo em que viveu Euclides, como
o sanitarismo, o positivismo, o evolucionismo e o republicanismo podero nos conceder uma
melhor compreenso de seus escritos.
A histria social de Euclides da Cunha inclui a orfandade de me, a criao na
segunda infncia em companhia de tias, a formao numa escola militar, uma crise conjugal
que findou por lhe tirar a vida, bem como duas importantes viagens, uma como
correspondente jornalstico e outra como Comissrio da Repblica. Todos esses dados
conduzem ao homem total, Euclides da Cunha, poeta, gegrafo, historiador, jornalista,
socilogo, engenheiro de obras pblicas e servidor pblico.
Parece-nos evidente que Euclides da Cunha, como intelectual de seu tempo foi
defensor, direta ou indiretamente, dos ideais do Sanitarismo, do Positivismo e do
Republicanismo. lcito afirmar que fazia parte do Habitus cientfico (BOURDIEU, 1989)
daquele tempo no Brasil, a crena no Progresso, o melhoramento do ambiente fsico como
melhoramento das condies do homem e que tais crenas se fariam em melhores condies
numa sociedade republicana.
evidente nos escritos euclidianos que ele inicia sua idade adulta como entusiasta da
Repblica, mas logo se decepciona com ela, passando a se constituir em um dos seus crticos.
A obra Os Sertes pode ser definida em parte como uma crtica rspida Repblica, o mesmo
ocorrendo em relao Amaznia, cujas propostas de integrao da regio nao
denunciam, de algum modo, o alijamento da regio em relao ao restante do pas, mesmo
num contexto republicano. Tal como ocorrera em sua viagem ao serto baiano, cujo carter
era de correspondente de um jornal importante do Sul do pas, gozando da proteo da
Repblica, por meio da mquina militar que assediava o arraial dos jagunos, a viagem
Amaznia tem os mesmos aspectos de oficialidade, agora como Comissrio do Estado, em
misso de fronteira. Em ambas as viagens, Euclides da Cunha contraria o senso comum e se
revela um partidrio dos oprimidos de ambas as regies. Na Bahia o jaguno, designado
como o Sertanejo Forte, que castigado pelo sol, pela sede, pela fome, que surge no texto
como aquele que defende o seu lar e que suplanta seus agressores pela astcia e inteligncia.
Na Amaznia o sertanejo designado como Caboclo Titnico, que surge no texto como
25
aquele que supera a natureza que lhe hostil, que oprimido por um sistema de aviamento
que o escravizava, e que mesmo assim, avana sobre o deserto e o suplanta.
Tanto o jaguno sertanejo, quanto o caboclo amaznico aparecem alijados do Brasil de
fato, o Brasil litorneo, concentrado no Rio de Janeiro e So Paulo e que sequer tem notcia da
existncia de ambos. Para Euclides da Cunha impossvel se pensar em nacionalidade sem a
incluso desses dois tipos humanos, ou destas duas regies, no debate nacional e s prprias
regies Nao brasileira. Para alm do plano social mais aparente da anlise euclidiana em
Os Sertes e em Margem da Histria, a leitura dos dois livros, comparados um com o outro
deixa transparecer um estranhamento franco do autor em relao paisagem amaznica.
ntido que aquilo que o autor v na Amaznia no lhe agrada, muito embora procure
perscrut-la como cientista. Euclides deixa-se ver desnudo em seu desapontamento. Tal
postura diante da paisagem, do clima, e at mesmo diante do homem nativo, leva-o a
acrescentar crticas ao desenvolvimento da regio, embora tenha elogiado a cidade de Belm
no Par como uma cidade moderna e bela.
Examinado pela luneta do tempo, v-se que, sociologicamente, Euclides da Cunha
aparece como Autor fundamental do que chamamos hoje de Pensamento Social e
incontornvel quando se trata do Pensamento Social na Amaznia. Tal fato se d em funo
de que grande parte de suas teses ainda vigoram at hoje, como nos falou Artur Csar Ferreira
Reis, Euclides um dos raros exegetas da formao e da realidade brutal de nossa vida [...]
(REIS, 2000. p. 5). Da ento que este captulo tem o objetivo de situar brevemente o Autor
no ambiente histrico do seu tempo, de modo a nos permitir que Euclides nos fale novamente.
Desejamos, no entanto, que esta fala seja contextualizada nas limitaes dadas ao seu tempo,
de modo a no nos atermos nos seus erros, os quais se traduzem apenas como a cincia
possvel dos seus dias, para que a sua contribuio nos alcance. nossa convico que a
atualidade temtica de Euclides da Cunha importantssima. E por que uma contextualizao
breve? Isto se d porque o contexto histrico vivido por Euclides da Cunha e outras figuras
igualmente importantes j est razoavelmente esclarecido em obras de maior flego, no
permitindo-se o escopo deste trabalho nada alm de uma referncia que atenda a funo de
situar o leitor minimamente.
Os dias que antecederam a vida adulta de Euclides da Cunha podem ser denominados
como o fim do sculo revolucionrio, como se expressou Gomes (2013). A sensao que se
tem ao olhar-se a lista de acontecimentos a de que o mundo esteve adormecido por sculos e
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de repente acordou. O processo de mudana tecnolgica acelerou-se de tal forma que em meio
sculo a face do mundo estava mudada. Euclides chega idade adulta na virada do regime
monrquico para o republicano e, como no podia deixar de ser, foi um dos entusiastas do
regime republicano. Havia aprendido o fervor republicano a partir de seu professor Benjamin
Constant, mas logo aps instalado o novo regime, Euclides verificou que a realidade cruel da
nao no se modificaria pela simples mudana de regime, posto que a Repblica que se fez,
pouco se distinguira da monarquia que se desfez.
O Brasil do imprio era socialmente miservel, segundo dados levantados por Gomes
(2013). Apenas quinze de cada cem brasileiros sabiam ler. A cada seis crianas, apenas uma
frequentava a escola. Apenas oito mil pessoas possuam diploma de nvel superior. O
intercmbio entre as regies era quase inativo, de modo que as gentes do Norte no tinham
contato com as do Sul. O primeiro evento histrico que havia aproximado um pouco mais o
Brasil de si mesmo foi a Guerra do Paraguai. Nesse obscuro episdio de violncia externa,
pela primeira vez, brancos, negros e mestios lutaram juntos, surgindo da um leve sentimento
de unidade nacional. A sociedade era conservadora e patriarcal e a aristocracia rural exercia o
domnio poltico. A escravido tinha o seu elemento tpico e nico na histria: aqui se
escravizava pela cor.
Em contraste com esse Brasil miservel existia um Brasil opulento, concentrado no
Rio de Janeiro e em So Paulo, conforme registra Sevcenko (2003). Nesses estados haviam
ilhas de riquezas, com elites agrrias e urbanas possuindo vnculos sociais e culturais mais
com a Europa e os Estados Unidos do que com o Brasil, e que procuravam de forma
mimtica, reproduzir a poltica, a economia e a cultura dessas naes no trpico mido. Era
um transplante da sociedade europeia para os trpicos. Era a cultura da imitao. Esse Brasil
no se dava ao trabalho de examinar-se, de conhecer-se. Com a proclamao da Repblica e o
desfazimento das instituies monrquicas, a mscara social desse Brasil caiu, revelando um
pas por fazer-se. As definies da nacionalidade at ali tinham falhado duramente, como
sumariza Gomes (2013):
Os artistas enviados para a Europa de l voltavam repletos de modelos
artsticos e iconogrficos que pouco tinham a ver com a realidade brasileira.
Os quadros de Victor Meirelles e Pedro Amrico, as peras de Carlos Gomes
e os romances aucarados de Jos de Alencar refletiam o que se fazia na
Europa e no dura realidade tropical brasileira. O romantismo, fonte na qual
bebiam, buscava redescobrir as razes da nacionalidade brasileira, mas a
matria-prima eram modelos europeus (GOMES, 2013, p. 103).
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Surge ento, na transio do Imprio Repblica, no campo intelectual, a necessidade
de se compreender o Brasil, mas no apenas isso. Surge tambm a necessidade de se fazer o
Brasil, um novo Brasil, visto que o Brasil real estava sendo desnudado pelo desmantelo de
suas instituies. Compreender para indicar rumos. desse contexto que surgem os autores
que se atribuem como misso o ato de escrever para mudar a realidade, da qual Sevcenko
(2003) indica com maestria as obras de Euclides da Cunha e Lima Barreto. As anlises que
so feitas, como no podiam deixar de ser, lanam mo da cincia do momento. Como
sumarizou Gomes (2013), o sculo XIX viu florescer uma lista de ideologias, que incluem o
liberalismo, o capitalismo, o socialismo e comunismo, o nacionalismo, o imperialismo, o
positivismo, todas prometendo uma nova sociedade e indicando a receita para atingi-la.
As grandes ideologias do sculo XIX tinham em comum a noo de que era
possvel reformar as sociedades e o Estado para acelerar o progresso humano
rumo a uma era de maior prosperidade e felicidade geral. Acreditava-se que a
cincia e a tecnologia seriam capazes de conduzir os seres humanos a um
novo patamar de desenvolvimento, conforto e autorrealizao (GOMES,
2013, p. 142).
Os autores desse perodo estavam amplamente influenciados pelo esprito progressista
da poca, um momento de franco desenvolvimento do capitalismo, a chamada belle poque
(1871-1914). Sabe-se que esse foi um perodo de profunda inovao tecnolgica, de
mudanas sociais e econmicas, de efervescncia cultural e intelectual, que trouxe ao mundo
novos modos de pensar e agir cotidianamente. Perodo de culto ao triunfo da Cincia e do
Progresso e, do qual, as elites do Sul e do Sudeste desfrutavam com toda a sofisticao e
glamour, mesmo com a crise cafeeira, sua principal fonte de poder econmico e poltico,
rondando seus espaos.
1.1 Sanitarismo
A Revoluo Industrial ocorrida na Europa provocou grandes deslocamentos de
populaes naquele continente, resultando disso o inchao das cidades, razo pela qual se
fizeram necessrias medidas de conteno da proliferao de doenas. Datam do perodo
preocupaes governamentais com a limpeza pblica, controle de gua e esgoto, fiscalizao
e controle da atividade comercial, principalmente a referente ao comrcio de alimentos e o
controle porturio. Para imprimir esses controles todos e mudar comportamentos coletivos,
ocorreram na Europa mudanas estruturais no exerccio do poder. Foucault (2002) esclarece
que nesse novo momento, o indivduo notado e de tal modo, que deve ser disciplinado para
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o bem dos demais. A sade passou a ser uma questo social. O poder soberano de vida ou
morte do Estado sobre os sditos agora exercido sutilmente sobre o indivduo para a vida,
pois o trabalho e a produo requerem que ele esteja so e a cidade esteja livre de epidemias.
Novas estruturas, novos saberes so organizados com o fim de tornar os corpos disponveis e
dceis. o advento da Disciplina.
A partir da chegada da Famlia Real em 1808, dentre outras mudanas, o Brasil foi
includo no Comrcio Exterior com outras naes e no mais apenas com a Metrpole, o que
impulsionou aes de melhoramentos da salubridade pblica. O Sanitarismo, conjunto de
medidas governamentais j em profundo avano na Europa, atravessa o oceano e aporta no
Brasil embalado pela abertura dos portos brasileiros s naes amigas. Era preciso garantir
que os navios que aportassem no Brasil no fossem veculos de disseminao das inmeras
doenas que varriam o pas, dentre as quais a mortal Febre-amarela, quando retornassem
Europa, bem como criar aceitao dos produtos brasileiros no exterior, (PONTE, 2007). Para
isso se fazia necessrio elevar o Brasil, pelo menos o Brasil porturio, a nveis modernos de
higiene. No entanto, com a inaugurao da Repblica que o Sanitarismo como movimento
ganha fora e assume papel de vanguarda no Brasil.
Neste sentido, o Sanitarismo como movimento surge ancorado em duas vertentes. A
primeira a necessidade de atender o interesse do Capital. A segunda derivada da primeira e
por via desta, e so os novos Saberes no campo da Cincia, mais notadamente no campo da
tecnologia. Xavier (2006) faz meno do aparecimento do Microscpico como o grande feito
que ir revolucionar de fato o mundo. At o aparecimento dessa tecnologia ptica, o
entendimento que se tinha a respeito das doenas que elas estavam ligadas s condies
ambientais. A Malria tem esse nome em funo da ideia de que era derivada das condies
do ambiente, do solo, da rea, do ar, Mal-aria, da as providncias de se procurar melhores
ares para o tratamento dos enfermos para todas as doenas. Expresses como mudana de
ares, advm da ideia de que havia climas mais ou menos propcios para a vida. Era o tempo
da hegemonia da teoria dos miasmas, que postulava que as doenas eram resultado de estados
atmosfricos (ROSEN, 1994). Com o aparecimento do Microscpio e o seu contnuo
aprimoramento, descobre-se o mundo dos microorganismos e, dentre eles, as Bactrias. Com
esse conhecimento em mos, surge a teoria do Contgio e as aes de governo, ou de sade
pblica se voltam agora para o indivduo. No campo do poder, o Bacteriologista se reveste de
autoridade, passando a reivindicar o poder de dirigir aes pblicas de saneamento e
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organizao da vida coletiva. O Sanitarismo salta das condies atmosfricas para os agentes
transmissores, mudando-se o controle sanitrio para a Entomologia e a Bacteriologia e,
finalmente, para a Imunologia, j bem mais tarde, na era das vacinas (XAVIER, 2006) e o
cientista mdico galga posio hegemnica, sendo cooptado pelo Estado burgus, ou
diretamente produzido por ele, para exercer o domnio nos rumos da nova sociedade. No
raro, no Brasil, mdicos ligados ao Movimento Sanitarista chegaram a cargos polticos,
resultantes do status obtido nas lutas pela sade pblica.
No Brasil o Sanitarismo no se deu de modo diferente do europeu quanto aos seus
motivos engendradores. No entanto revestiu-se de aspectos inerentes ao ambiente brasileiro,
mais notadamente o aspecto autoritrio, resultante da forma de governo que aqui se fez desde
a colnia. Tambm notria a sua insero no campo das tentativas de definies da
nacionalidade brasileira. No bojo do que temos chamado de construo da nacionalidade, o
Sanitarismo brasileiro chega mesmo a influenciar e modificar a estrutura de poder estatal. A
relao entre o poder central e o poder regional foi grandemente afetada, com prejuzo
poltico para este ltimo, marcadamente oligrquico, e que findou por perder influncia, haja
vista que o poder central, escudado no discurso sanitarista, inicia um processo de unificao,
ou centralizao das aes governamentais, pela instalao, apoio e consolidao de rgos
pblicos federais destinados a imprimir nas populaes os ditames do novo modelo de
homem brasileiro, o homem higinico, retirando das prefeituras locais o poder de dirigir as
aes de sade4.
Neste sentido os Sanitaristas acreditavam piamente que era possvel curar o Brasil de
suas enfermidades endmicas, retirando-o do atraso em que se encontrava em relao
Europa no que se refere sade pblica (ROSEN, 1994). E no esforo em mapear as
enfermidades, diagnosticaram tambm o isolamento em que viviam as populaes regionais e
rurais, sem qualquer noo de nacionalidade. A nica faceta que lhes transmitia alguma
unidade eram suas crendices comuns, conforme alertaram Belisrio Penna e Arthur Neiva em
seu famoso Relatrio de 19165. Sade e Educao passavam a fazer parte das preocupaes
4 CPDOC. FGV - Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil. Disponvel em:
www.cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/QuestaoSocial/MovimentoSanitarista. Consultado em
13.03.2016.
5 FIOCRUZ. BRASILIANA. A Divulgao Cientfica Do Brasil. Disponvel em:
www.museudavida.fiocruz.br/brasiliana/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid. Consultado em 13.03.2016.
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governamentais muito em funo do movimento Sanitarista que enxergava nessas atividades o
nico meio de sanear a populao das doenas mais corriqueiras.
Na sua luta pela hegemonia, o movimento Sanitarista brasileiro transcendeu suas
preocupaes com a sade pblica, passando a desejar interferir no processo de formao de
um novo Brasil, um novo povo brasileiro. Nesse sentido, Euclides da Cunha, com a obra Os
Sertes, publicada em 1902, tem influncia fundamental, porque contribuiu para o descrdito
da velha explicao para o atraso do Brasil como uma resultante da mestiagem. O Sertanejo
Forte tambm isolado, adoecido, mas no inferior em funo de sua raa. O discurso
Sanitarista se casa com esta nova viso do interior do Brasil e passa a postular a cura do Brasil
pelo estabelecimento de novas condies de sade pblica para os sertes, engendrando
mesmo um novo projeto de Nao (PONTE, 2007).
Neste sentido, o termo civilizado tem a conotao de higienizado, educado. Por estes
termos, era preciso ento, civilizar o Brasil, e os parmetros estabelecidos vinham da Europa.
Iniciou-se pelo Rio de Janeiro, a Capital Federal e principal porto do Pas, que deveria se
tornar a referncia nacional de moderna urbanizao. Em 1903, ano em que Euclides da
Cunha ingressa na Academia Brasileira de Letras, o Sanitarista Oswaldo Cruz foi designado
pelo presidente da Repblica Francisco de Paula Rodrigues Alves, ou simplesmente
Rodrigues Alves, para ser o chefe do recm-criado Departamento Nacional de Sade Pblica,
precursor do atual Ministrio da Sade. Suas aes combinaram autoritarismo militar e saber
cientfico. Guiado pela moderna Cincia da Bacteriologia, mas ainda crente no saneamento
como medida profiltica, suas aes incluem a derrubada de velhos casares e cortios no Rio
de Janeiro, aterramentos de pntanos com o intuito de melhorar as condies sanitrias pela
eliminao dos focos de doenas. O aspecto militar de suas aes surge nos termos usados
para design-las: luta, campanha, brigada etc., dando ao Sanitarismo brasileiro o sobrenome
de Campanhista. Por trs desse interesse pblico de sade, no entanto, estava a consolidao
das novas elites que galgavam a posio de dominantes, cuja fantasia era tornar o Rio de
Janeiro e outras cidades, uma extenso da Paris de todos os sonhos, ou como lecionou
Sevcenko (2003), torn-las belle ou chic e para que isso ocorresse era preciso abrir largas
avenidas e praas, passeios pblicos, preparando o lugar para o embelezamento da cidade no
padro burgus.
Examinando o material euclidiano, encontramo-lo em Margem da Histria se
utilizando desta linguagem sanitarista. Embora Engenheiro de formao, suas anlises da
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regio se fazem mediante a cincia do seu tempo, pelo que notrio que o seu olhar sobre as
condies do homem amaznico, notadamente sobre a precariedade de sua alimentao, o
coloca dentro do Discurso Sanitarista, ainda que no propositadamente. Euclides se constitui
em grande municiador de argumentos a favor do Sanitarismo Campanhista. Ao defender que
o clima amaznico aviltado quando acusado de ser inapropriado para a vida, Euclides
assim se expressa:
Em todas as latitudes foi sempre gravssima nos seus primrdios a afinidade
eletiva entre a terra e o homem. Salvam-se os que melhor balanceiam os
fatores do clima e os atributos pessoais. O aclimado surge de um binrio de
foras fsicas e morais que vo, de um lado, dos elementos mais sensveis,
trmicos ou higromtricos, ou baromtricos, s mais subjetivas impresses
oriundas dos aspectos da paisagem; e de outro, da resistncia vital da clula
ou dos tnus muscular, s energias mais complexas e refinadas do carter
(CUNHA, 1999, p. 35, grifo meu).
V-se que Euclides se mantm fiel sua tese de que o Sertanejo Forte, transmudado
em Caboclo Titnico, vence no serto nordestino e vence na Amaznia por uma questo de
fibra moral, ou de um binrio de foras fsicas e morais, conforme se v acima. Se
primeira vista as populaes amaznicas aparecem desprovidas de nimo, como a viram os
cronistas Frei Joo de So Jos, Bispo do Gro-Par em 1762 e Russel Wallace cem anos
depois, no o caso agora. Com Euclides da Cunha o novo homem que se refaz na luta, se
aclima e alarga a ptria como um domador do deserto. Mesmo em pssimas condies de
salubridade o Caboclo Titnico triunfa. Sobre a sua alimentao Euclides diz:
A alimentao, que a base mais firme da higiene tropical, no lhe fornece,
durante largos anos, a mais rudimentar cultura. Constitui-se, ao revs de
todos os preceitos, adstrita aos fornecimentos escassos de todas as conservas
suspeitas e nocivas, com o derivativo aleatrio das caadas (CUNHA, 1999,
p. 36, grifo meu).
Em mos de Sanitaristas como Belisrio Penna e Arthur Neiva que percorreram em
1912 os sertes do Nordeste, tal como fez Euclides, ou em mos de Carlos Chagas que
percorreu o Rio Negro no Amazonas em 1913, esse discurso euclidiano traduz-se em discurso
sanitarista, para quem a reconstruo do Brasil a partir de seu prprio povo uma
possibilidade real, bastando que as condies sanitrias melhorassem. Desse ponto de vista o
discurso sanitarista se apresenta como uma progresso da tese levantada por Euclides de que o
homem sertanejo um forte, e o que lhe falta integrao aos nveis mais elevados de
civilizao. Essa ideia prospera e vem a se consolidar mais tarde em medidas governamentais
de melhoramento da sade rural. J em 1918 o Sanitarismo havia alcanado nveis elevados
de influncia de modo a mover o Governo para aes mais centralizadas e organizadas de
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combate s doenas. O Servio de Profilaxia Rural, subordinado Inspetoria de Profilaxia,
rgo do Governo Federal passa a atuar a partir desse ano6. Tratando das aes dos
Sanitaristas como aes de um projeto de Nao, Ponte (2007) assim resume:
Os sanitaristas trouxeram de suas expedies uma viso de nossos sertes
diversa da que prevalecera at ento, romntica e ufanista. O retrato do Brasil
era pintado com pinceladas fortes e mostrava um povo doente e analfabeto,
abandonado pelo Estado e entregue prpria sorte. Para eles, era urgente
integrar essas populaes nos marcos da nacionalidade e da cidadania,
conferindo-lhes condies de lutar pela melhoria da prpria vida (PONTE,
2007, p. 76).
Coube ao movimento Sanitarista a constatao de que, afastado das metrpoles, o
povo brasileiro era completamente abandonado prpria sorte. A medicina do povo era
aquela aprendida no ambiente familiar e repassada de gerao a outra, que consistia em
garrafadas, leos, chs, etc. Ou quando no, era mstica, por meio de curandeiros, dada a
ausncia de mdicos fora dos grandes centros urbanos.
Na Amaznia, o Sanitarismo a orientao que ir conduzir ao embelezamento das
principais cidades da regio, Belm e Manaus nos mesmos moldes do que se passava na
Capital Federal, Rio de Janeiro (RIBEIRO, 2012). O Autor menciona os Cdigos de Postura
dessas cidades, editados naquele perodo, como os registros fidedignos dessa orientao,
destacando que o Sanitarismo se apresenta como movimento de modernidade, como fora
indutora de mudanas:
Nesse espectro de mudanas, os sucessivos Cdigos de Postura do municpio
aprovados e a criao da Intendncia de Sade e Higiene constituem meios
que regulamentam o modo como os indivduos podem dispor do espao
urbano. A partir do modelo de embelezamento da cidade, define-se o que
proibido no permetro urbano: casas cobertas de palha, criar porcos e outras
formas tradicionais, tpicas do estilo de vida dos trabalhadores nativos; toda e
qualquer enfermidade devem ser comunicadas pelos enfermos ou seus
familiares Intendncia, aqueles que no fizerem ficam sujeitos pena de
multa, o que obriga os familiares de qualquer pessoa doente a registrar a
enfermidade na Intendncia de Sade (RIBEIRO, 2012, p. 35).
Tal como ocorrera na Capital Federal, Manaus e Belm ganharam atmosfera de mini
Paris dos trpicos. V-se, portanto, que na Amaznia ocorre da mesma forma a cultura de
emprstimo denunciada por Euclides da Cunha em referncia ao Brasil litorneo, manifestada
tambm pela imitao do modelo europeu. Nota-se que estamos tratando de um Cdigo de
6 FUNASA. Cronologia Histrica da Sade Pblica. Disponvel em: http://www.funasa.gov.br/site/museu-da-
funasa/cronologia-historica-da-saude-publica/. Acesso em: maro de 2016.
http://www.funasa.gov.br/site/museu-da-funasa/cronologia-historica-da-saude-publica/http://www.funasa.gov.br/site/museu-da-funasa/cronologia-historica-da-saude-publica/
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Postura de 1892, portando, j na era Republicana, mas que ainda reproduz uma atmosfera
cultural mais aproximada cultura do Imprio.
A orientao Sanitarista na Amaznia encontra um marco em Jos Francisco de
Arajo Lima (1884-1945), ou simplesmente Arajo Lima. Em sua obra Amaznia, a terra e o
homem de 1931, Arajo Lima procura desmistificar a propaganda imperialista que indicava a
impossibilidade de uma civilizao moderna na Amaznia em decorrncia de um clima
inapropriado, fato que Euclides da Cunha j havia refutado, mas em Arajo Lima que essa
refutao alcana status de cientfica. Vejamos o resumo dessa refutao nas palavras de
Ribeiro (2012, p. 55):
Amaznia: a terra e o homem, livro de Arajo Lima, lanado em 1931,
sintetiza as posies de grande parte dos intelectuais locais na luta contra os
estigmas imputados regio. Arajo Lima munido de um acervo de
informaes e com base no que havia de mais avanado na medicina, na
fsica, na geografia, na histria, na economia e na antropologia refutou e deu
um duro golpe nas teses que apontavam o clima e o meio fsico como fator
que impediria o desenvolvimento da civilizao moderna na Amaznia.
Imediatamente o livro Amaznia, a terra e o homem tornou-se referncia para
os que buscavam uma explicao cientfica para o atraso da regio, longe dos
estigmas e preconceitos difundidos por uma literatura incapaz de
compreender a problemtica amaznica em sua integridade.
devido ao uso intensivo do que havia de mais moderno no pensamento cientfico
poca, principalmente no campo da medicina que Arajo Lima ganhou da parte de Leandro
Tocantins o ttulo de Primeiro Cientista Social da Amaznia. Tal como Euclides da Cunha j
havia denunciado, Arajo Lima ir denunciar as pssimas condies de nutrio em que se
encontrava a populao amaznica, firmando em definies mdicas modernas para refutar
autores famosos como Frederico Ratzel e La Blache e seus determinismos. Diz-nos Arajo
Lima:
O meio fsico ou csmico no age diretamente, no age exteriormente, mas
sim por intermdio do meio interno, fisiolgico ou psicolgico. A ao faz-se
exercer, atravs do aparelho vegetativo e do sensorial, sobre as funes do
organismo. So os alimentos, os txicos, introduzidos no seio da economia
viva; so as impresses sensitivas, recebidas pelas terminaes nervosas
perifricas e recolhidas aos rgos centrais do sistema nervoso, onde se
projetam sob a forma de sensaes para a elaborao do pensamento. o
po; o veneno; a ideia. A vida funo do meio interno lquido, que
embebe todas as clulas, todos os tecidos; o plasma intersticial, o plasma
nutritivo, de cuja composio depende o equilbrio metablico. As
deficincias nutritivas (as avitaminoses) e as perverses alimentares (as
intoxicaes) so outros tantos elementos comprometedores, ou corruptores
do organismo humano, independendo do clima, do meio csmico, dos fatores
ambientais (LIMA, 1975, p. 16).
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Arajo Lima ir afirmar um deslocamento conceitual no entendimento do que vem a
ser o meio influente. No mais o meio fsico domina o homem, mas sim o meio humano. O
meio fsico dominvel pelos recursos mentais que capacitam o homem a se desviar das
aes do meio. , portanto, o meio humano que deve ser considerado, pois o elemento
humano constitudo em sociedade, Lima (1975). Portanto, o problema a ser resolvido na
Amaznia ainda o mesmo denunciado por Euclides da Cunha, o isolamento (trataremos
deste assunto no captulo 2 com mais vagar). Eis o que nos diz Arajo Lima:
O que constitui realmente o elemento humano a sociedade. Os homens s
valem pela associao. O isolamento, a segregao, o afastamento, a que so
eles condenados pela disperso ou pela disseminao, tiram-lhe os predicados
e as caractersticas. A sociedade o meio humano, o ambiente em que age o
homem em face da natureza (LIMA, 1975, p. 17).
Para no nos alongarmos muito mais, importante dizer que Arajo Lima ir propor o
saneamento da terra por meio da cincia moderna como forma de torn-la propcia
civilizao, convicto de que, obstadas as condies de vida dos insetos vetores, a vida humana
se prolifera em qualquer quadrante do planeta. Qual o elemento principal? A Educao.
Mirando-se no exemplo japons, Arajo Lima ir dizer que a elevao dos nveis culturais de
um povo o elemento fundamental para tornar o ambiente habitvel. Neste sentido, ento,
Arajo Lima se revela o Sanitarista tpico, firmando-se no combate s doenas e na preveno
delas por meio da educao higinica, conforme visto acima.
1.2 Positivismo, Evolucionismo e Republicanismo
O Positivismo avanou sobre o Brasil a partir do prprio Isidore Auguste Marie
Franois Xavier Comte, ou simplesmente Augusto Comte, posto que est estabelecido que
muitos brasileiros foram seus alunos em Paris (SGA, 2004). Mais do que mesmo a Frana,
bero do Positivismo, o Brasil se tornou a ptria do Positivismo na Amrica, posto que aqui
suas marcas foram mais profundas, encontrando-se estampado at mesmo no pavilho
nacional. Se hoje, a palavra Positivismo tem outra conotao e remete geralmente a uma
situao negativa, principalmente no campo das Cincias Sociais, no sculo XIX, era o
principal instrumento terico e analtico da realidade social. Significava o coroamento da
cincia e remetia naturalmente a ideia de progresso e de ordem como forma de garantir o
desenvolvimento/evoluo da sociedade. Essa corrente filosfica representava o que havia de
melhor no pensamento cientfico, embalado pelo progresso tecnolgico que encurtava as
distncias com a inveno de velocssimos novos meios de transporte, que vencia as doenas
35
com a descoberta de suas etiologias, que aproximava pessoas pelo uso de novos meios de
comunicao etc. Como dito anteriormente, a face do mundo havia mudado tanto em
cinquenta anos que parecia mesmo impossvel qualquer regresso. O Progresso, seja ele
tecnolgico ou humano, parecia inevitvel e a cincia se credenciava pelos seus avanos a
tomar o lugar de Deus. Foi nessa f que o Positivismo se desenvolveu, constituindo-se
mesmo numa forma de religio no seu ramo ortodoxo.
Sga (2004), e outros, lecionam que o Positivismo cientfico se tornou visvel no
Brasil a partir de 1850, iniciando na Escola Militar, depois no Colgio Pedro II, prosseguindo
s demais escolas, a da Marinha, a de Medicina e a Politcnica. J a vertente religiosa s
chegou em 1881, por meio de Miguel Lemos e Raimundo Teixeira, tratando-se do Apostolado
Positivista, uma espcie de igreja da humanidade (GOMES, 2013). Como corrente de
pensamento, o Positivismo brasileiro uma reao ao catolicismo romanista, ento ainda
imperante no pas. Tal influncia romanista se d mais por ausncia de outras correntes do
que mesmo por seus mritos, posto que nesse perodo a Igreja Romana estava subordinada ao
Imperador e tinha pouca expresso, pois o seu clero estava preso ao Monarca, naquilo que
ficou conhecido como regalismo, e era ignorado pelos intelectuais de vis racionalista
(SILVA, 2013).
A especificidade do Positivismo brasileiro fica por conta do casamento entre suas teses
e os anseios locais pela implantao da Repblica. Desde a sua chegada ao Brasil, Repblica e
Positivismo iniciam uma caminhada que finda por se misturarem, a ponto de serem quase
sinnimos por volta de 1889. Contribuiu para esse quadro o enfraquecimento da ala
positivista monarquista, decorrente do prprio enfraquecimento da Monarquia. A
intelectualidade gestada nos anos finais do Imprio possua, em sua maioria, tendncia
Positivista, porque essa corrente filosfica havia alcanado o status de teoria geral, ensinado
regularmente nas escolas como verdade absoluta. Desse modo, at mesmo a carolice da
Princesa Isabel era motivo de preocupao, posto que a atitude carola da Princesa dava sinais
de que a Monarquia no estava altura dos novos tempos (GOMES, 2013). Mas o
Positivismo Republicanista que ir alcanar a hegemonia j nos anos 1880, a partir da atuao
de Positivistas nas escolas militares, com destaque para o republicano Benjamin Constant
Botelho de Magalhes (1833-1891), ou simplesmente Benjamin Constant, entusiasta da
Revoluo Francesa e fiel seguidor dos preceitos Comteanos (GOMES, 2013). Benjamin
Constant se encarregou de incutir na mente daqueles jovens oficiais das escolas militares a
36
sensao de viverem sob a gide de uma misso histrica de grandes propores. De acordo
com Sga (2004):
A atividade doutrinria bem no interior da massa pensante das foras
armadas brasileiras foi fundamental para criar um esprito de corpo na
caserna, pois boa parte da oficialidade se achou imbuda do destino histrico
de implantar um regime republicano que fosse fundamentado na razo e na
cincia positivista (SGA, 2004, p. 1).
O Positivismo teria avanado muito mais no Brasil se as condies aqui no fossem as
piores para a propagao de uma ideia. Como dito, apenas quinze entre cem brasileiros
estavam aptos a ler um jornal. Pouqussimas crianas estavam na escola. Em condies como
as tais, o Positivismo ficou restrito s camadas letradas, principalmente nos meios militares,
razo pela qual se impregnou na sua doutrina o vis autoritrio, prprio da caserna. Tal fato se
verifica no quadro de perfeita harmonia entre a ideia de Repblica e Ditadura Militar, que
perdurou nos primeiros anos da Repblica. Por seu turno o Evolucionismo Social, embora
parta de uma base comum ao Positivismo comteano, qual seja, a rejeio do sobrenatural
como explicao da realidade, desenvolve-se a partir do Sculo XIX com a aplicao, no
campo das cincias sociais, dos enunciados de Charles Darwin para o campo da biologia. O
nome de referncia o de Herbert Spencer (1820-1903), inclusive no Brasil. O evolucionismo
de Spencer apresentou-se no Brasil como uma espcie de maturidade intelectual,
principalmente em razo do "fracasso" da repblica positivista, a qual no conseguiu cumprir
as promessas feitas. Alm das questes prticas o Evolucionismo Social tambm apresentava
consistncia terica maior do que o positivismo comteano com a sua Lei dos Trs Estados e a
sua proposta de religio da humanidade. Ambos tinham em comum a rejeio da Metafsica e
toda e qualquer divagao que no pudesse ser verificado por anlise de causas naturais. A
resultante mais breve da aplicao s sociedades da conceituao darwiniana foi a ideia de
que as sociedades so regidas pelas mesmas foras propostas por Darwin para o campo da
Biologia, resultando disso que estas, as sociedades, assim como as raas que a compem, se
encontram tambm em processo evolutivo, logo algumas so superiores a outras e na luta
entre as sociedades as mais fortes prevalecem sobre as menos aptas. Da para o surgimento do
preconceito de raa foi questo de tempo, onde o mestio passou a ser olhado como um ser
inferior em razo dos cruzamentos inter-raciais.
Apesar das divergncias conceituais e proposicionais entre Positivismo e
Evolucionismo, ambos, separadamente, ou em forma de sntese constituram-se em Senso
Comum Douto (BOURDIEU, 1989) no Brasil em fins do sculo XIX e incio do XX. No
37
difcil encontrar nos autores brasileiros do perodo a crena no Progresso, a ideia de leis da
histria, a f na cincia, etc. AMORY (2009) indica que Euclides da Cunha fez a transio
do Positivismo para o Evolucionismo pela rejeio do primeiro em favor do segundo em
razo de que o Positivismo no encontrava adequao diante das novas ideias evolucionistas
introduzidas por Darwin, Alfred Wallace e Spencer (AMORY, 2009, p. 19). Segundo este
autor, Euclides da Cunha prosseguiu a vida intelectual carregando em si as duas escolas
filosficas em formato de sntese, mantendo o rigor cientfico do Positivismo e as dedues
conceituais do Evolucionismo Social.
Na ltima dcada do sculo XIX, a intelectualidade brasileira sofreu uma
mudana, passou do paradigma cientfico de Comte para Darwin e os
evolucionistas ingleses, ou de uma reforma positivista da sociedade brasileira
para a ideologia capitalista do darwinismo social. Euclides teve de fazer
esquecer em certos locais a reputao de ser um positivista permanente, mas,
como outros intelectuais brasileiros, procurava em Spencer outro credo social
e cientfico que fosse mais consoante com as incipientes industrializao e
urbanizao do Brasil do que com o velho positivismo de Comte (AMORY,
2009, p. 78).
No entanto, como se ver mais frente, Euclides da Cunha parece ter transcendido
tambm o Evolucionismo, chegando a limites muito prximos do interacionismo
(TOCANTINS, 1978), que ir ser defendido por Arajo Lima (1975). Apesar desse esforo
pessoal de chegar sua prpria sntese, h evidncias documentais de que Euclides da Cunha
no superou inteiramente o senso intelectual do seu tempo, mantendo ideias tanto positivistas,
quanto evolucionistas em suas propostas de interveno da realidade, com certa prevalncia
do evolucionismo.
Antes de adentrar em maiores detalhes a respeito do Republicanismo brasileiro, cabe
ressaltar que o termo Republicanismo aqui usado deve-se unicamente ao desejo de alguns
brasileiros de derrubarem o imprio e seu regime centralizador. O regime monrquico
brasileiro, dito Monarquia Constitucional era, de fato, um arremedo de Monarquia
Constitucional, pois o Imperador controlava tudo, do comrcio Igreja, da vida civil
poltica, apoiado por uma nica camada da populao, a aristocracia agrria que mandava em
tudo (GOMES, 2013 p. 78). Esse centralismo gerava descontentamentos, mas somente isso.
Nunca houve no Brasil uma Repblica, ousa dizer Florenzano (2004). Ou pelo menos uma
Repblica nos moldes das atuais conceituaes, onde Republicanismo surge em separado das
formas de governo. Os republicanos brasileiros no chegaram sofisticao de discutirem as
questes profundas da liberdade, da representatividade, da participao individual e coletiva
de modo a agregar o contingente populacional que vivia margem da prpria aristocracia de
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onde provinham a maioria deles. Portanto, o termo Republicanismo aqui refere-se unicamente
ao movimento positivista brasileiro que atentou contra a Monarquia e a derrubou mediante um
golpe militar.
Sga (2004) e Gomes (2013), lecionam que o Republicanismo brasileiro comea
oficialmente em 1870 com o Manifesto Republicano e em 1873 naquilo que ficou conhecida
como a Conveno de Itu, que foi a reunio de partidrios da repblica que fundaram o PRP
Partido Republicado Paulista. Para ambos autores, desde o seu incio o movimento
republicano prossegue com duas alas, uma inspirada no Republicanismo americano, que
naqueles dias estava j comemorando os seus cem anos de fundao, e outra Positivista, como
dissemos, de vis autoritrio, que pretendia uma Repblica Ditatoria
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