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Ano 3, - n 2 2 Semestre 2009 - ISSN 1980-5799
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Revisitando a periodizao do portugus: o portugus mdio
Esperana Cardeira*
Abstract
The aim of this paper is to clarify the definition portugus mdio (Middle Portuguese), describing thehistorical, social and cultural factors which lead to this phase of the history of our language andpresenting some variables that act as key phenomena to delimit the boundaries of Middle Portuguese.
Key-words: Periodization, Middle Portuguese, elaboration, standardization.
Variao, mudana e periodizao
, nos nossos dias, um facto conhecido que as lnguas esto em permanente mudana. Ainda
assim, ao lermos um texto antigo estranhamos a estrutura, o lxico, a grafia, mas conseguimos
compreend-lo. Porqu? A verdade que a mudana no atinge a lngua como uma ruptura: a
cada momento, novas estruturas emergentes combinam-se com elementos antigos de tal forma
que a lngua, sendo um sistema dinmico e em contnua mudana, nos ilude com uma
aparente estabilidade. A mudana, sempre presente na lngua, nunca demasiada ou seja,
nunca pe em perigo a continuidade nem a comunicao. Embora o portugus esteja a mudar
agora, neste preciso momento no nos apercebemos da mudana (mesmo que sejamos
sensveis variao). Precisamos de olhar distncia: ento, sim, percebemos claramente que
a nossa lngua mudou e que o portugus j no o que era.
Qualquer falante sensvel variao, reconhecendo-a presente na sua lngua quer a nvel
geogrfico quer na estratificao social. Parece claro que a variao existe na lngua emqualquer sincronia. Seria absurdo imaginar que em pocas passadas no houvesse, tal como
hoje, variao social e regional na lngua. Significa isto que a variao no pode ser
exclusivamente objecto de estudos sincrnicos. Uma vez que a dicotomia saussureana
sincronia-diacronia se tem revelado insuficiente para dar conta do processo histrico da
mudana lingustica, a investigao em lingustica histrica dever ter em conta a variao,
tornando-se mais abrangente e completando-se com uma perspectiva diatpica, diastrtica e
diafsica ou seja, encarando o sistema lingustico como um diassistema. Por isso, a escolha de
*Doutorada em Lingustica Portuguesa, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
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um corpus para a observao de processos de mudana lingustica no pode deixar de
materializar estas diversas perspectivas, seleccionando documentos de diferentes
provenincias geogrficas, textos literrios e no literrios, originais e cpias, certides ou
tradues: um corpus abrangente, necessrio para caracterizar de forma significativa uma
determinada sincronia, ter que considerar que cada tipo textual espelha realidades
lingusticas diversas. Mas imaginemos, por um momento, que o investigador dispe de um
conjunto ideal de documentos: ainda assim, a lngua que ir estudar ser apenas e sempre a
escrita, nunca a oral. Nunca poderemos saber, realmente, como se pronunciava o portugus
em pocas passadas. No estvamos l. No podemos ouvir. A histria de uma lngua nunca
, na verdade, toda a histria.
Se a variao est presente na sincronia, ento a mudana, que implica variao, tambm
estar sempre presente em qualquer lngua viva. certo que pode haver variao sem
mudana e que podemos isolar duas ou mais variantes em coexistncia pacfica sem que,
durante algum tempo, uma tendncia significativa para a escolha de uma delas seja
claramente identificvel. Mais cedo ou mais tarde, contudo, ser de esperar que uma dessas
variantes seja seleccionada enquanto superestrutura lingustica, configurando uma mudana.
Assim, a variao sincrnica surge justamente como o veculo da mudana lingustica ao
desfavorecer (e, logo, eliminar) determinadas variantes em favor de outras socialmente
valorizadas. Quero com isto dizer que a variao e a mudana esto, necessariamente,
presentes em qualquer sincronia, da decorrendo no me parecer legtima a dissociao
sincronia/diacronia.
Ora, se bvio que qualquer sincronia apresenta variao, tambm ser bvio que, uma vez
que a mudana decorre da variao e ambas operam continuamente na lngua, a delimitao
de fronteiras entre perodos na histria de uma lngua dever ser, inevitavelmente, artificial.
Dito isto, a verdade que a investigao em lingustica histrica incide, precisamente, na
comparao entre vrias gramticas sincrnicas deduzidas da observao de documentos
escritos e na interpretao das diferenas entre essas gramticas como o desenvolvimento
histrico da lngua, no pressuposto de que a lngua escrita desses documentos reflectir em
maior ou menor grau a lngua falada na poca. Embora no tenhamos conscincia de que a
lngua que falamos est a mudar, quando comparamos documentos escritos em pocas
diferentes, reconhecemos diferenas entre essa lngua e a que falamos actualmente. Todavia,
por muitos cortes sincrnicos que faamos, nunca daremos conta da continuidade da lngua:
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se o processo de evoluo da lngua fosse um processo descontnuo, ento sim, existiriam
rupturas entre fases sucessivas e teramos claramente conscincia da mudana.
Em suma: se o investigador esquecer a variao lingustica e a continuidade da evoluoacabar por criar artificialmente um estado de lngua que, ao corresponder a uma mdia
deduzida dos dados concretos que recolheu, nunca poder dar conta da realidade que pretende
descrever. com este problema que se depara quem pretende estabelecer perodos na histria
de uma lngua. Como traar fronteiras num sistema que evolui na continuidade? E por qu ou
para qu? Simplesmente porque o nosso pensamento precisa de pontos de referncia.
Dividimos a nossa vida em etapas, passamos pela infncia, adolescncia, idade adulta, terceira
idade... Dividimos a histria da humanidade em eras. Fazem-nos falta, estas balizas, para nos
situarmos. O mesmo se passa com a histria de uma lngua. Pela sua prpria natureza, a
evoluo da lngua torna artificial qualquer diviso cronolgica precisa mas as vantagens que
uma tal periodizao apresenta, enquanto instrumento de trabalho, justificam as repetidas
tentativas dos historiadores da lngua.
O problema o seguinte: como delimitar perodos na histria de uma lngua? Quando comea
e quando acaba um perodo? A evoluo de uma lngua determinada no s por factores
estritamente lingusticos mas tambm por mudanas histricas, econmicas, sociais, culturais,que se materializam em profundas transformaes na mentalidade dos falantes. Que factores e
que momentos deveremos considerar fundamentais na histria da lngua que falamos? As
propostas de periodizao tm respondido a esta questo de modos diversos: umas partem das
divises tradicionais da histria, outras baseiam-se na produo literria, outras, ainda,
referem-se, exclusivamente, aos factos lingusticos. A periodizao de uma lngua, sendo
artificial, depende de consideraes subjectivas. No , por isso, nem poderia ser, consensual.
Atribuir uma designao a uma determinada fase da histria de uma lngua implica um
complexo de consideraes de ordem histrica e cultural, alm de lingusticas. No so
questes pacficas a delimitao temporal, a nomeao e definio de um perodo histrico.
Dar nome a uma fase histrica do portugus j defini-la, enform-la em determinada viso:
o perodo trovadoresco ser um perodo literrio, enquanto galego-portugus uma
designao que pode ser conotada com uma perspectiva histrica, literria ou lingustica.
Talvez por isso, em obra recente (2006), Introduo Histria do Portugus, Ivo Castro
considere ser mais interessante e prximo da verdade repartir a histria do portugus em dois
ciclos ou movimentos sucessivos de crescimento. O primeiro o ciclo daformao da lngua
(sculos IXa XV), em que a lngua acompanha o movimento da Reconquista, virando-se para
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sul. O segundo ciclo, da expanso da lngua, corresponde ao perodo dos Descobrimentos,
quando o portugus se consolida em Portugal e se instala fora da Europa. Esta proposta de
Castro espelha de forma mais realista a histria da nossa lngua mas no nos permite ignorar
as propostas tradicionais, que intentam estabelecer fronteiras mais precisas:
L. Vasconcellos
(1911)
S. Silva Neto
(1957)
P. V. Cuesta
(1971)
Lindley Cintra
(Castro 1999)
E.
Bechara
(1991)
At sc. IX
(882)
Pr-histrico Pr-histrico
Pr-literrio Pr-literrio
At c.1200
(1175)
Proto-
histrico
Proto-
histrico
At
1385/1420Arcaico
Trovadoresco Galego-
portugus
Antigo Arcaico
At
1536/1550
Comum Pr-clssico Mdio Arcaico
mdio
At
sc. XVIII Moderno Moderno
Clssico Clssico Moderno
Sc. XVIII
em diante
Moderno Moderno Hodierno
O portugus mdio
O perodo que vou tentar definir aqui o do portugus mdio. Enquanto Leite de
Vasconcellos considera o portugus arcaico uma fase alargada que se estende desde o
surgimento dos primeiros textos escritos em portugus at meados do sculo XVI, Serafim da
Silva Neto, na esteira de Carolina Michalis (1946), subdivide o portugus antigo em duas
fases: atrovadoresca, at 1350, e o perodo doportuguscomum(que corresponde quele que
Michalis designava como perodo da prosa histrica). As designaes que Michalis usa
(trovadoresco e prosa histrica) mostram-nos um olhar sobre a evoluo lingustica que
decorre claramente do destaque dado produo literria. Outros factores podem ser tomados
em considerao: Pilar Vzquez Cuesta, Lindley Cintra e Evanildo Bechara apresentam
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propostas que se fundamentam nos efeitos lingusticos de grandes transformaes histrico-
sociais. Estas transformaes decorrem da crise dinstica que, culminando na batalha de
Aljubarrota em 1385, instaura uma nova dinastia. Com D. Joo Ie a dinastia de Avis, a antiga
aristocracia declina e sobe ao poder a burguesia. Com a revoluo poltica e social d-se,
tambm, uma revoluo lingustica: Lisboa torna-se o centro do pas e local de elaborao da
norma.
Na classificao de Pilar Vzquez Cuesta, este perodo de profundas transformaes
designado como portugus pr-clssico e na de Lindley Cintra como portugus mdio.
Evanildo Bechara (1991) retoma este termo, propondo a seguinte periodizao: fase arcaica
at final do sculo XIV, fase arcaica mdiadurante todo o sculo XVe at primeira metade
do XVI, quando comea a fase moderna.
Aos factores polticos acrescenta Dieter Messner (1983 e 2002) um elemento que ter,
tambm, contribudo para a mudana lingustica: o crescimento dos centros urbanos, custa
de um movimento migratrio das populaes rurais 1 , que se traduziu em renovao da
estrutura scio-poltica e econmica tradicional e que favoreceu a simplificao e nivelamento
da lngua (ou seja, uma koinizao) para permitir a comunicao entre falantes de variedades
diversas. durante esta fase de koinizao que se situa o portugus mdio.Clarinda Maia (1986) e Ramn Mario Paz (1998) introduzem, ainda, outro aspecto a ter em
conta na caracterizao do portugus mdio: o processo de diferenciao entre o galego e o
portugus. At ao sculo XIVportugus e galego constituem uma unidade que se foi definindo
atravs de um processo de distanciamentoem relao s outras lnguas romnicas; do sculo
xv em diante, enquanto o portugus sofre mudanas que o encaminham no sentido da
elaborao2de um padro que ter como modelo a lngua literria, na Galiza castelhanizada o
galego sobrevive apenas no uso oral.
Consideremos, portanto, que o perodo trovadoresco constitui uma fase comum galego-
portuguesa que termina com a separao entre portugus e galego, no momento em que a
vitria da burguesia sobre a aristocracia rural nortenha, simbolizada pela batalha de
Aljubarrota, determina a deslocao do centro vital do reino para o sul e que Lisboa, se torna
1Segundo Messner, as pestes dos finais do sculo XIVtero dizimado grande parte da populao, particularmente
nas cidades. As populaes rurais convergiram, ento, para os centros urbanos.
2 Uso os termos distanciamento e elaborao no sentido klossiano (sobre esta questo, vd. Joseph 1987;desenvolvo estes conceitos em Cardeira 2005).
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o grande (e crescente) centro urbano do pas. Mais do que um perodo de convivncia entre
formas arcaicas e aquelas que viro a perdurar, o portugus mdio um perodo,
relativamente curto, em que se registam mudanas que anunciam, j, o portugus que hoje
falamos:
portugus antigo portugus mdio
hiatos Resoluo de hiatos: crase; ditongao; insero de
consoante ou semivogal
Trs terminaes nasais:
-ANU >--o
-AM,-ANT,-ANE>-
-UM,-UNT,-ONE,-UDINE> -
Unificao das terminaes nasais:
-w
Particpio passado (2 e 3conj) udo Particpio passado ido
-d- na 2pes.plural Sncope de -d- e ditongao
Terminao paroxtona em vil/-vel Terminao paroxtona emvel
Duas sries de possessivos:
tona: ma ta sa / Tnica: ma tua sua
Desaparecimento da srie tona dos possessivos
Palavras em -agemmasculinas/femininas Palavras em -agemfemininas
Nomes uniformes em -or, -ol, -s Biformizao dos nomes
Predomnio da coordenao Introduo da subordinao
O quadro acima mostra que durante o perodo a que chamamos portugus mdio a lnguaretomou um modelo latino que a renovou e enriqueceu, e que serviu de suporte sua
gramatizao a partir do sculo seguinte ( durante o portugus mdio que se verifica a
introduo da subordinao na construo frsica, em oposio a uma construo tpica do
portugus antigo, em que predominava a coordenao; do mesmo modo, desaparecem ou
substituem-se vocbulos arcaicos e alarga-se o lxico com recurso a emprstimos do latim).
Mostra, tambm, um conjunto de solues niveladoras e tendencialmente inovadoras que
poderemos relacionar com um processo de koinizao (a resoluo de hiatos, a substituio da
terminao udodo particpio passado da 2 e 3 conjugaes por ido, a sncope de -d- na 2
pessoa do plural da flexo verbal, a substituio da terminao paroxtona vil por -vel, o
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desaparecimento da srie tona dos possessivos ma, ta, sa, a regularizao e fixao do
gnero em formas nominais). Este to largo conjunto de mudanas em to curto espao de
tempo no pode ser casual e, julgo, deve ser encarado como indcio claro de um processo de
elaborao lingustica em curso.
Que factores determinaram estas mudanas? Para elas contribuiram uma fora poltica (a
emergncia do conceito de nao), uma fora cultural (o desenvolvimento da prosa e a sua
divulgao pela imprensa) e uma fora social (os Descobrimentos): estes trs vectores foram
determinantes para a normativizao e fixao (i.e., para a estandardizao) do portugus
europeu.
Desde finais do sculo XIV e ao longo dos sculos XVe XVI, a sociedade portuguesa sofreuprofundas alteraes. Iniciou-se uma nova dinastia e mudaram as classes detentoras do poder.
Portugal ganhou uma nova capital, o poder deslocou-se para Lisboa e o saber para a
Universidade. A revoluo de 1383-1385, ao determinar a queda da antiga nobreza
setentrional, determinou, tambm, uma rejeio das suas caractersticas lingusticas,
substitudas pelas da regio em que a nova corte se instala. Foi assim que a variedade dialectal
da rea centro-meridional, terra reconquistada e repovoada, lugar de encontro de gentes e
dialectos e, por isso, lugar de koinizao
3
, se constituiu como base de normalizaolingustica. Norte e sul opunham-se j, em consequncia das estratgias da Reconquista e do
repovoamento: um norte-noroeste de terras antigas, densamente povoado, estvel,
dialectalizado, centro da produo trovadoresca e ligado Galiza, demarcava-se de um
centro-sul morabe, reconquistado, de populao rarefeita e com uma lngua homogeneizada
pelo repovoamento. No sculo XV este eixo centro-meridional tornou-se o modelo sobre o
qual se construiu a elaborao lingustica do portugus, funcionando como fora centrpeta e
absorvendo as distintas reas dialectais, deixando margem as caractersticas do norte.
Quando observamos a actual estruturao dialectal da faixa ocidental da Pennsula Ibrica
apercebemo-nos de que uma antiga unidade histrica e lingustica, o galego-portugus dos
Cancioneiros medievais, se ramificou em duas lnguas. A norte do Minho o galego, reprimido
durante sculos. A sul, e virado para o mar, o portugus, que sofreu, a partir do sculo XV, um
processo de elaborao que o instituiu como idioma nacional. A diviso geogrfica que o
portugus conhece actualmente, em variedades setentrionais e centro-meridionais,
3Uso o termo koinizao no sentido em que Siegel (1985) o aplica, como um resultado estabilizado da misturade subsistemas lingusticos.
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corresponde a dialectos primrios e secundrios. Os dialectos primrios constituem os
formados na rea original do galego-portugus, que abrangia a regio de Entre-Douro-e-
Minho, a Galiza e a zona ocidental das Astrias. No norte, da Galiza ao Douro, o
repovoamento, iniciado ainda no perodo em que a reconquista partia das Astrias e Leo,
acrescentou a uma antiga populao rural novos senhores que se apossaram de terras e
pessoas. A fronteira poltica entre o Reino de Portugal e a Galiza, imposta a uma populao
estvel e densa, no conseguiu quebrar a unidade lingustica nem nivelar a riqueza dialectal
que a sua estabilidade, densidade e antiguidade justificam. Os dialectos secundrios, por outro
lado, so o resultado da colonizao lingustica interna portuguesa no centro e sul. Nestes
territrios de colonizao, a mistura de populaes vindas quer de norte quer de oeste,
transportando consigo uma diversidade de variedades lingusticas, materializou-se no
nivelamento dialectal e na apetncia para a inovao. Assim, os dialectos setentrionais
portugueses so, de algum modo, a continuao dos dialectos galegos, distinguindo-se
claramente de uma rea de dialectos centro-meridionais, mais homognea e inovadora, em
que se elaborou a norma do portugus. Ao Entre-Minho-e-Douro, terra de senhores e
mosteiros, ope-se o Entre-Douro-e-Tejo, terra de concelhos e do rei (a sul do Douro,
principalmente entre o Mondego e o Tejo, o repovoamento teve um carcter municipal,
concentrando-se em torno das cidades e ao longo das principais vias). Do vale do Tejo para
sul, do repovoamento praticado pelas ordens militares resultaram vastas propriedades e fraca
densidade populacional. Foi nestas terras novas que foram criados os concelhos de tipo
perfeito, institudos pelo rei com a outorga de um foral que modelava uma completa
organizao municipal. Os dialectos portugueses centro-meridionais, foram, portanto,
forjados em terras reconquistadas e repovoadas, onde a necessidade de comunicao entre
falantes de variedades diversas propiciou o desenvolvimento de uma espcie de lngua franca,
simplificada e regularizada4(i.e., koinizada). Foi esta lngua franca, tornada lngua materna danova comunidade, que serviu de base posterior elaborao quando, aps a crise de 1383-
1385, Lisboa se tornou um atractor de gentes e interesses e a Corte de Avis uma fora
centrpeta que lanou os fundamentos de um idioma nacional.
4Referindo-se ao processo de koinizao no espanhol da Amrica, Beatriz Weinberg (1994: 47) afirma que era
ms fcil para los hablantes que posean determinadas oposiciones perderlas que para quienes no las tenanadquirirlas e que en la alternativa de aprender una variedad con mayor nmero de oposiciones o una variedadsimplificada, les resultaba mucho ms sencilla la segunda possibilidad. Penso que as mesmas afirmaes sepodem aplicar a Portugal.
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O incio do sculo XV marca, tambm, uma nova fase na histria de Portugal, a fase da
expanso. Ivo Castro (2006) chama-lhe ciclo da expanso da lngua, afirmando que se
sucede ao ciclo de formao da lngua. Silva Neto (1961: 3-4), que tambm identifica dois
grandes ciclos na evoluo do portugus, distingue a formao do domnio lingustico
portugus (determinada pela Romanizao, de sul para norte, e pela Reconquista, de norte
para sul) daformao da lngua nacional (que decorre da constituio do Estado). Podemos
encontrar um paralelismo entre esta perspectiva e a de Kloss (divulgada por Muljai), que
considera duas fases no nascimento dos idiomas: na primeira, a fase do distanciamento, a
lngua diferencia-se das outras lnguas da mesma famlia; a segunda fase determinada pela
criao de foras centrpetas (centralizao do poder, constituio de modelos sociais e
desenvolvimento da conscincia de pertena a uma comunidade) que iniciam um processo de
unificao lingustica, eliminao da diversidade dialectal e elaborao de um idioma
nacional. esta segunda fase que nos interessa, j que nela que se insere o portugus mdio.
O momento em que o eixo vital do reino se desloca para sul , tambm, o momento em que se
instaura uma monarquia centralizadora, que pretende afirmar e consolidar Portugal dentro e
fora da Pennsula. A corte de Avis promove a constituio de uma identidade nacional, com
base na distanciao portuguesa em relao a Castela, aos castelhanos e aos portugueses que
por eles tomaram partido. O portugus diferencia-se, assim, no s do castelhano mas tambm
dos dialectos setentrionais falados pela antiga nobreza portuguesa. E os portugueses comeam
a adquirir conscincia de que integram uma comunidade (uma nao) que partilha valores (a
defesa do territrio, a histria, as crenas, a lngua). Lembremos que so os prncipes de Avis
que inauguram, em Portugal, o perodo a que Michalis chama da prosa histrica,
escrevendo, traduzindo e mandando escrever e traduzir.
Para que uma lngua se torne um idioma nacional precisa de passar por um complexo
processo de elaborao e estandardizao que combina a influncia de variados factores de
ordem histrica, social, cultural, econmica e, at, lingustica. Se podemos considerar o
galego-portugus como uma lngua essencialmente potica, j o portugus mdio alargou o
seu campo a todos os ramos de pensamento e a todos os tipos de produo textual. Ora, uma
vez que a lngua medieval no poderia responder s necessidades que o desenvolvimento
literrio implicava - nomeadamente no campo dos conceitos abstractos -, a elaborao
lingustica materializou-se, ainda, num significativo enriquecimento do lxico atravs de
neologismos que so, em grande parte, latinismos. Embora D. Dinis tivesse j convertido oportugus em lngua oficial, a lngua de ensino era, ainda, o latim: na Universidade, o estudo
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da Gramtica ainda consistia em aprender a ler e escrever latim. O modelo lingustico
presente no esprito dos alfabetizados era, portanto, o latim. Assim, se o latim era encarado
como modelo, que melhor fonte para colmatar as lacunas da chamada linguagem vulgar?
Por isso, um processo de grande expresso a partir do sculo XV o da relatinizao do
portugus. Os novos prosadores, falta de vocbulos portugueses recorreram, de novo, ao
Latim. D. Duarte, por exemplo (e note-se que D. Duarte no gostava de usar palavras
latinadas e tentava dar-lhes feio portuguesa ou explicava-as dizendo, p. ex. no Leal
Conselheiro: da yra seu proprio nome em nossa lingoagem he sanha), sentiu necessidade de
recorrer ao latim: satisfao, malcia, circunstncia, abstinncia, infinito, fugitivo, evidente,
intelectual, abranger, apropriar ou reduzir, so exemplos de latinismos incorporados no
portugus, no sculo XV, pela mo do rei. Esta relatinizao do portugus que se verificou a
partir do sculo XV explica as chamadas formas divergentes que resultam, em geral, da
reintroduo de termos j existentes, num momento em que os processos evolutivos activos
na lngua so j outros. claro que se muitas palavras novas entraram na lngua durante este
perodo, muitas outras desapareceram (trigana pressa, femena ateno, avisamento
prudncia), mudaram de sentido (mantimentomanuteno,falecimentofalta, instrumento
acta) ou foram substitudas (ensinanapor ensinamento,perdoanaporperdo).
Se a partir do sculo XV, a histria de Portugal e do portugus deixou de confinar-se a uma
estreita faixa ocidental na Pennsula Ibrica, j que os descobrimentos e conquistas levaram a
lngua aos mais distantes pontos do mundo, tambm trouxeram para Portugal novas gentes e
novas culturas. O contributo da expanso portuguesa no pode ser medido apenas pelas
conquistas territoriais, pelo contacto dos portugueses com outros povos ou pela implantao
da lngua em paragens remotas. Acompanhando o movimento exgeno existiu, desde meados
do sculo XV, um processo de recrutamento de uma nova camada populacional, composta
essencialmente por escravos africanos, que ia preenchendo a lacuna deixada pelos
portugueses que partiam. Estes africanos vieram a constituir uma fatia significativa da
populao portuguesa quer nas zonas rurais quer nas zonas urbanas, principalmente em
Lisboa5. A sua presena na sociedade teria, forosamente, algum impacto no favorecimento
da simplificao e nivelamento lingusticos, fortalecendo a deriva do portugus meridional.
Ferno Lopes descreve Lisboa como uma cidade de muitas e desvairadas gentes; ser de
5Estima-se que chegassem a atingir cerca de 10% da populao rural a sul do Douro logo no princpio do sculoXV.Em meados do sculo XVILisboa teria uma populao de 100 mil habitantes, dos quais cerca de 15 milseriam africanos.
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admitir que estes contactos inter-culturais tenham criado nos portugueses no s uma nova
viso do mundo mas tambm uma maior conscincia da sua prpria identidade e de pertena a
uma comunidade, no confronto com o outro.
Desde meados do sculo XVI, data em que surgem as primeiras gramticas do portugus (de
Ferno de Oliveira, em 1563, e de Joo de Barros, em 1540) a fixao e normalizao da
lngua tornam-se o ponto fulcral do pensamento metalingustico: no quadro do movimento
dos Descobrimentos portugueses, a questo da lngua, presente em toda a Europa, ganha, em
Portugal, uma importncia acrescida pela necessidade de ensinar a lngua aos povos
colonizados. Ao louvor da lngua portuguesa e sua valorizao enquanto factor de
consolidao de um imprio, aliou-se o interesse pela codificao. A fixao de uma norma
lingustica tornou-se um objectivo dos gramticos (ainda na primeira metade do sculo XVI,
Joo de Barros ilustra estes interesses, ao escrever um Dilogo em louvor da nssa
Lingugem, uma Gramtica e uma Cartinha). A imprensa, entretanto, permite uma maior
difuso do pensamento e a produo literria em portugus aumenta e torna-se mais acessvel.
Concluso
As histricas circunstncias reuniram, no Portugal do sculo XV,um conjunto de factores que
promoveram a mudana lingustica. O poder poltico abandonou os dialectos setentrionais e
deslocou-se para sul, regio j anteriormente sujeita a grandes movimentos populacionais,
resultantes dos processos de reconquista e repovoamento. antiga populao veio juntar-se
uma nova camada, na sequncia da expanso portuguesa, criando um melting-pot favorvel
mudana. Simultaneamente, o desejo de afirmao da lngua nas terras onde os portugueses
se iam fixando, promovia o pensamento metalingustico. Oliveira e Barros e os que se lhes
seguiram codificam uma lngua que no j a medieval mas a emergncia de um novo
patamar lingustico, mais prximo da modernidade. Desenvolve-se a conscincia de uma
identidade nacional que permite a estandardizao da lngua, materializada nas gramticas,
nos dicionrios, nas cartinhas para aprender a ler e escrever. E, paralelamente codificao da
lngua, procede-se sua elaborao. As viagens, as descobertas, o encontro com o outro, so
objecto de descries em que a lngua surge crescentemente depurada, lanando as bases de
um idioma nacional.
A lngua um conceito poltico e social, que ultrapassa o mbito lingustico, e o portugus
tornou-se um idioma nacional precisamente quando Portugal cresceu para alm de uma
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estreita faixa ocidental na Pennsula Ibrica. A empresa nutica alargou os horizontes
portugueses e criou um quadro favorvel elaborao e consolidao da lngua portuguesa
como idioma nacional e smbolo de um imprio.
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