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VI Congresso Nacional Associao Portuguesa de Literatura Comparada /X Colquio de Outono Comemorativo das Vanguardas Universidade do Minho 2009/2010
Entre Culturas: A Vanguarda entre o Brasil e a Europa
K. David JacksonYale University
No perodo das vanguardas histricas, a posio entre culturas dos intelectuais
brasileiros emanava de uma espcie de conjugao do salo e a selva, para citar o "Manifesto
da Poesia Pau Brasil" de Oswald de Andrade (1890-1954), motivada pelo projeto da criao e
internacionalizao de uma realidade brasileira enraizada no interior, primitiva e folclrica. A
definio cultural brasileira no poderia mais se apoiar exclusivamente nas referentes
romnticas da Natureza ou o Indianismo. No modernismo de 1922 h uma intensa ao
recproca entre os diversos componentes internacionais e o vasto interior, este sendo a fonte
de um nacionalismo folclrico, de linguagem popular e primitivismo indgena, muito
valorizado:
Se por um lado os modernistas se aliaram com as vanguardas artsticas e
culturais europeias, por outro lado o desejo de formar uma cultura moderna e nacional
levou-os a buscar a nova "originalidade". Assim, com um olho na Europa e outro no
Brasil, os modernistas seguem passo a passo o que se fazia nos grandes centros
metropolitanos, mas procurando sempre privilegiar o "carter nacional" presente na
etnia mestia influenciada por culturas primitivas (africanas e amerndias). (Atik,
2000, p.176)
Entraram nesse mundo pela abertura para o primitivismo das vanguardas ocidentais e pela
chamada pesquisa esttica de Mrio de Andrade, no livro-ensaio A Escrava que no
Isaura (1925). No Manifesto da Poesia Pau Brasil (1924), Oswald de Andrade encontrou
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uma poesia na vivncia cotidiana Como falamos. Como somos. -- e nas fontes de cultura
popular e folclrica o vatap, o ouro e a dana -- com as quais identificou e defendeu a
originalidade brasileira diante da Europa. As primeiras expresses do encontro cultural
chegaram antes na msica:
O Brasil, pas contendo um vasto e inexplorado folclore, apresentava para os jovens
compositores a oportunidade de trabalhar materiais, nos quais se interpenetravam os
aportes europeus, africanos e indgenas, que por si s conferiam um forte selo de
originalidade para quem os utilizasse (Correa do Lago, 2005, p. 36).
Heitor Villa-Lobos (1887-1959) compe as peas para orquestra Amazonas e Uirapuru
em 1916, com ritmos e sons que imitam a flora e fauna selvticas. Em todas as artes, a
dinmica entre culturas, a brasileira e a europeia, que caracteriza a formao e o dinamismo
do modernismo brasileiro, a oscilao entre os sales parisienses e as selvas tropicais. Se a
poca marcada pelas constantes viagens transatlnticas entre o Brasil e a Europa,
principalmente a Frana, mesmo assim o estado entre-culturas no representa simplesmente a
alternncia entre uma e outra, mas uma mistura que pertena a ambas, uma interdependncia
e sntese dialgica em vez de um encontro. Entre-culturas significa a co-existncia de
qualidades dessas culturas numa nova identidade miscigenada, caracterizada por uma
diferena alienada de suas origens, comparvel no nvel da cultura crioulizao lingstica.
As lnguas crioulas asiticas, por exemplo, sendo sntese do portugus com as lnguas de
contato, so lnguas nativas dos descendentes mestios de portugueses e comuns atravs do
antigo imprio martimo.
Num ensaio publicado pela primeira vez em ingls em 1973, o escritor e ensasta
Silviano Santiago definiu a cultura brasileira moderna atravs do conceito de um "entre-
lugar", ou espao do meio entre o Brasil e a Europa, sendo a conseqncia de uma conjuntura
complexa e sutil do autctone com o europeu que estabelece "como nico valor crtico a
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diferena...reflexo de uma assimilao inquieta e insubordinada, antropfaga... (Santiago,
1978, pp. 21-22). Posicionados nesse "entre-lugar", os modernistas procuraram dirigir a
descolonizao definitiva do pas por um processo de inverso, caro s vanguardas, cujo
propsito era descaracterizar o caminho histrico dos colonizadores, atravs de operaes de
sabotagem aos cdigos ou sistemas europeus implantados depois da chegada e colonizao
do territrio:
"O texto segundo se organiza a partir de uma meditao silenciosa e traioeira sobre o
primeiro texto, e o leitor, transformado em autor, tenta surpreender o modelo original
nas suas limitaes, nas suas fraquezas, nas suas lacunas, desarticula-o e o rearticula
de acordo com as suas intenes..." (Santiago, 1978: 22).
Os poemas de Pau Brasil, publicado em Paris em 1925 por Oswald de Andrade, ilustram
exemplarmente a inverso de recortes de crnicas de descobrimento, lidos satiricamente sob
o ttulo retrospectivo de "Histria do Brasil." Se a operao do "redescobrimento do Brasil"
o tema principal de uma sociologia historicista, nas obras de Gilberto Freyre (1900-1987),
Caio Prado, Jr. (1907-1990) e Srgio Buarque de Holanda (1902-1982), preciso entender
por que Santiago descreve o espao intermedirio entre o Brasil e a Europa como
aparentemente vazio e clandestino: deve-se a uma estratgia de subverso por sobre um texto
prvio. O romancista Jos Saramago talvez proponha imaginativamente que esse espao
esteja localizado no meio do Atlntico, numa jangada de pedra brasileira, isto , numa massa
geogrfica que se separaria do continente sul-americano e andaria at o meio da carreira
martima. Existiria uma ilha mais utpica, depois de sculos de viagens, onde brasileiros e
europeus viveriam juntos numa cultura poliglota e miscigenada, assimilando caractersticas
de ambos os lados? como se os modernistas j habitassem essa ilha mtica de "canibalismo
amoroso", to ausente geograficamente dos roteiros quanto a camoniana, praticando o desvio
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da norma com que a libido artstica brasileira balanava entre a assimilao e negao de uma
fecundao europeia.
O Brasil tem um papel histrico de anfitrio de culturas e povos. Como capital de
imprio, o Rio de Janeiro depois de 1808 ocupava uma posio paralela da Europa, porm
anmala, nem centro nem periferia, ou centro e periferia ao mesmo tempo. Indianistas e
antroplogos europeus vieram documentar o espao polivalente. Entre o universal e o local,
h uma polarizao de viso contrastando o ocenico, nos caminhos martimos do imprio,
com o telrico, no serto e nas selvas. O etngrafo Theodor Koch-Grnberg (1872-1924),
numa expedio aos rios Roraima e Orenoco de 1911-13, no podia saber que a sua coleo
de crenas folclricas das tribos Taulipang e Arekun seria aproveitada para um dos maiores
romances brasileiros do sculo, Macunama, de Mrio de Andrade (1893-1945). Um caso
diferente de transculturao aquele dos europeus que vieram para ficar. Curt Nimuendaj
Unkel (1883-1942), um colecionador de narrativas indgenas nas lnguas Ge, cerca 1914,
mudou o sobrenome do alemo e decidiu ficar na regio amaznica. O seu mapa lingstico
das lnguas amaznicas ainda referncia imprescindvel. E na Bahia, a partir dos anos 40, o
fotgrafo e etngrafo Pierre "Fatumbi" Verger (1902-1996), cuja pesquisa sobre o candombl
foi comemorada num filme narrado por Gilberto Gil, deixou no Brasil uma fundao e
arquivo com mais de 65.000 fotografias originais.
Da mesma maneira, o estilo moderno brasileiro nas artes e arquitetura descende
diretamente da visita de Le Corbusier (1887-1965) ao Brasil e dos seus desenhos para a
modernizao da cidade do Rio e Janeiro, influentes nos arquitetos Oscar Niemeyer e Lcio
Costa (1902-1998). A primeira "casa modernista" exibida em So Paulo em 1930 desenho
de Gregor Warchavshik (1896-1972), que chegou no Brasil da Rssia e Itlia em 1923.
Durante esse perodo, o Brasil se torna quase m para artistas europeus e empresrios, caso
exemplificado pelo tourne de Antnio Ferro (1895-1956) em 1922 e outro de auto-
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provava que a Europa ainda importava como referncia, era um relacionamento reforado
pela resistncia. Nos dois lados, havia canibais amorosos. Em alguns casos os europeus
deixaram impresso maior no Brasil do que levaram ao partir, como a passagem do Conde
Hermann Keyserling (1880-1946) em 1929, visita retratada no romance Parque Industrial, de
Patrcia Galvo (1910-1962), ou Albert Camus (1913-1960) em 1949, recebido por Oswald
de Andrade, ou Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Simone de Beauvoir (1908-1986), em 1959,
aos cuidados de Jorge Amado (1912-2001). Outros, talvez menos conhecidos, vieram para
ficar e criaram notvel impacto. Na literatura, o austraco Otto Maria Carpeaux (1900-1978) e
o hngaro Paulo Rnai (1907-1992) se tornaram estudiosos respeitados da literatura
brasileira. Stefan Zweig, outro austraco, escreveu um livro influente sobre o Brasil como
"pas do futuro", lanando um ttulo que ecoou na historiografia contempornea. Dois
ucranianos mudaram o Brasil: Pedro Bloch (1914-2004), dramaturgo e empresrio da mdia e
televiso, e Clarice Lispector (1920-1977), hoje um dos grandes nomes da literatura mundial.
E muitos portugueses eminentes, como o poeta e crtico Adolfo Casais Monteiro (1908-
1972), imigraram ao Brasil em meados do sculo e deixaram impacto intelectual duradouro,
tema estudado por Rui Moreira Leite.
A produo modernista refletia a dicotomia Brasil-Europa. Se o Brasil uma vez foi
chamado "La France Antarctique", ento a Frana poderia ter sido chamada "le Brsil
Arctique." O diplomata pernambucano Joaquim Nabuco (1849-1910) confessava uma
"atrao do mundo" que o levava Europa, onde queria que o Brasil fosse recebido em p de
igualdade, cultural e politicamente. Em conversao com o embaixador portugus, Nabuco
descrevia a preferncia brasileira pela Frana:
"Entre Portugal e Brasil a diferena maior. O Brasil nada sabe do seu pas; o que
elle l, o que a Frana produz. Elle pela intelligencia e pelo espirito cidado
francez; nasceu parisiense, em que lugar de Paris eu ignoro, v tudo como pode ver
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um parisiense desterrado de Paris. No ha um brasileiro talvez, que tenha pensado
meia hora sobre coisas portuguezas. Ns fallamos a mesma lngua, mas de que serve,
se no vemos o portuguez. Para dizer a verdade, estamo-nos tornando um povo
polyglotta" (Nabuco, 1939: 44).
Para os modernistas, Paris sempre fora uma paixo para onde viajaram constantemente
durante os anos 20. Srgio Milliet (1898-1966), caracterizado como "homem-ponte" por
Antonio Candido (citado em Atik, 2005, p. 51), e Oswald de Andrade divulgaram o novo
esforo artstico de 1922, na conferncia de Oswald na Sorbonne e Milliet num artigo que
descreve a Semana de 22 e comenta a participao de escritores e artistas. Entre 1923-24
Milliet escreve a coluna Cartas de Paris para a revistaAriel, com comentrios sobre as artes
parisienses (Atik, 2005, p. 52). No seu Manifesto da Poesia Pau Brasil Oswald quis
inverter o impacto do fluxo cultural entre o Brasil e a Europa: no a importao mas a
exportao de cultura. Armados com esse novo princpio cultural e comercial, os
modernistas comearam a pesquisar no prprio pas bens culturais para exportao. Havia
apenas dois lados no seu mapa mundi, o Amazonas de um e o Sena do outro, onde iam expor
as suas mercadorias. Foi em Paris que Pau Brasil (1925) saiu no Au Sans Pareil, dedicado a
Blaise Cendrars, e Tarsila do Amaral (1886-1973) primeiramente exibiu os seus quadros na
Galerie Percier em 1926. O artista Vicente do Rego Monteiro (1899-1970) ilustrou o belo
volume sobre a mitologia indgena de Pierre-Louis Duchartre, Legendes, Croyances et
Talismans des Indiens de lAmazonie (1923), enquanto de volta ao Brasil, Oswald iria
codificar a deglutio da cultura europeia no Manifesto Antropfago de 1928, justificada
por sua brilhante apropriao e apoteose do primitivismo filosfico, via a Europa.
O objetivo era substituir o velho mundo pelo novo, no que os manifestos reforam um
americanismo generalizado, apresentando um argumento parecido ao do escritor anglo-
americano Henry James (1843-1916):
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Nascemos americanos -- il faut prendre son parti. Parece-me uma grande bonana; e
penso que ser americano excelente preparao cultural. Possumos raras qualidades
como raa e me parece que estamos na frente das raas europeias pelo fato de que,
mais que qualquer delas, podemos tratar livremente com formas de civilizao
diferentes da nossa, escolher da melhor e assimilar e, resumindo (esteticamente, etc.)
encontrar propriedade nossa onde quer que a encontremos. No possuir marca
nacional at agora tem sido considerado defeito e prejuzo, mas acho no improvvel
que escritores americanos possam ainda provar que uma vasta fuso intelectual e
sntese das vrias tendncias nacionais do mundo a condio de conquistas mais
importantes do que aquelas que tenhamos visto antes. (1986:1)1
Diferente da viso do James, porm, os brasileiros colocaram uma marca nacional no ato de
assimilao e fuso de povos e de culturas mundiais. essa modalidade que mais separa o
esforo intelectual brasileiro das vanguardas europeias, para as quais o primitivismo fazia
parte de um cosmopolitismo maior, uma sntese intelectual de matrias de todas as culturas,
que passam a ser propriedade comum, como explica Fernando Pessoa (1888-1935):
Criar uma arte cosmopolita no tempo e no espao. A nossa poca aquela em
que todos os pases, mais materialmente do que nunca, e pela primeira vez
intelectualmente, existem todos dentro de cada um, que a sia, a Amrica, a
frica e a Oceania so a Europa, e existem todos na Europa. Basta qualquer
cais europeu--mesmo aquele cais de Alcntara--para ter ali toda a terra em
1[We are American born --Il faut en prendre son parti. I look upon it as a great blessing; and I thinkthat to be an American is an excellent preparation for culture. We have exquisite qualities as a race, andit seems to me that we are ahead of the European races in the fact that more than either of them we candeal freely with forms of civilization not our own, can pick and choose and assimilate and in short(aesthetically, etc.) claim our property wherever we find it. To have no national stamp has hithertobeen a defect and a drawback, but I think it now unlikely that American writers may yet indicate that a
vast intellectual fusion and synthesis of the various National tendencies of the world is the condition ofmore important achievements than we may have seen.]
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comprimido () Por isso a verdadeira arte moderna tem que ser
maximamente desnacionalizada--acumular dentro de si todas as partes do
mundo. S assim ser tipicamente moderna () E feita esta fuso
espontaneamente, resultar uma arte-todas-as-artes, uma inspirao
espontaneamente complexa. (1966, pp. 113-14)
A arte brasileira traz esse intercmbio e encontro cultural no modernismo, mas com o
propsito de criar uma brasilidade feita m, sinal telegrfico ou canto de sereia. Tais
intercmbios e fecundao cruzada no significam, portanto, que os europeus sempre ficam
abrasileirados, ou os brasileiros europeizados. O conceito entre-culturas nos leva a
comunidades hbridas, povos miscigenados e culturas martimas criadas por viagens e
imigraes. Atravs dos sculos, o espao hbrido criado no Brasil pelos portugueses virou
uma realidade outra, ao alcance de quem l fosse. Haveria algum mais "100% brasileiro" do
que Blaise Cendrars, to gentilmente recebido ao desembarcar em Santos em 1924, ou mais
parisiense do que Santos Dummont (1873-1932), que voou o seu dirigvel aos restaurantes da
cidade. A tese em questo afirma que a cultura brasileira apia uma identidade sempre
consciente de sua histria atlntica, de sua posio extra-continental, o do seu espao nem
periferia nem centro. Os modernistas habitam uma jangada de pedra, o nem c nem l do
Gonalves Dias (1823-1864), o espao hbrido do entre-lugar.
Com a modernidade os sistemas europeu e brasileiro, entre outros, se imiscuram mais
intensamente. Sou um Tupi tangendo um alade! proclamava Mrio de Andrade no poema
O Trovador", de Paulicia Desvairada de 1922, referindo-se ao instrumento de cordas que
chegou Europa renascentista da Prsia e das Arbicas. Enquanto passeavam de Cadillac a
Ouro Preto, ou de Lloyd Brasileiro a Manaus, procura de um paraso topogrfico interior,
os vanguardistas estavam com os olhos num Brasil ainda atlntico e europeu. O personagem
Jorge, no romance A Escada Vermelha, publicado em 1934 por Oswald de Andrade,
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escondido no exlio de uma ilha selvagem perto de Santos, observava as chegadas e sadas
contnuas dos grandes navios transatlnticos, smbolos da viagem utpica. No desfecho de
Pau Brasil, o autor chega de navio a Santos trazendo de contrabanda uma saudade feliz de
Paris. Para os modernistas, os grandes transatlnticos ainda afirmaram a "paternidade
transocenica", cujo vestgio mais duradouro certamente o carto postal do Brasil ao
mundo, a esttua no Corcovado, no Rio de Janeiro, com os braos estendidos sobre a cidade e
o pas, o trabalho de um escultor francs, Paul Landowsky (1875-1961), inaugurado no morro
carioca em 1931.
"O Atlntico, nossa vida atlntica, to dependente do velho ocidente", lamentava e
exultava a clebre escritora e rebelde Patrcia Galvo em 1946, quando viu que "Os livros
europeus ainda no comearam a chegar. Uma ou outra dessas preciosas raridades... O cordo
de isolamento entre a Europa e a Amrica permanece, portanto intacto (Galvo, 1946). As
perspectivas ocenicas de Pagu servem igualmente para a histria intelectual do Brasil, que
assistia chegada de europeus no Brasil e de brasileiros na Europa, atenta sobretudo quando
as visitas recprocas tratavam de educao, livros, msica ou obras de arte. Seja de breves
visitas ou de conexes profundas, o intercmbio Brasil-Europa preparou a jangada de pedra
modernista, eqidistante de continentes e de culturas. Esse lugar no meio do Atlntico, o
"entre-lugar" na teorizao do Silviano Santiago, ou de "cultures croises" de Mrio Carelli
em francs, o espao entre culturas da vanguarda histrica brasileira. Examinaremos trs
casos de dilogos entre culturas, na msica, nas artes plsticas e na literatura, como exemplos
de cruzamento e intercmbio.
Villa-Lobos ha guardato il tempo negli occhi e lha scolpito in musica.
Dirio Brasiliano, Ruggero Jacobbi
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A Msica
Em 1917 o compositor francs Darius Milhaud est no Rio de Janeiro, na legao
francesa com Paul Claudel e em 1918 o pianista Arthur Rubenstein (1887-1982) e a cantora
Vera Janacopoulos (1892-1955) chegam para uma temporada de concertos,poca em que
Rubenstein conhece a msica de Villa-Lobos. A vida musical nessa poca muito intensa,
com a atuao dosBallets Russes de Sergei Diaghilev (1872-1929) e Vaslav Nijinsky (1889-
1950), a presena do Ernst Ansermet (1883-1969) e uma verdadeira invaso de msica
francesa dos debussstas, que abriram o estilo para vrias escolas nacionais. Em 28/VI/1918
ouve-se em casa do compositor Oswaldo Guerra (1892-1980) e da pianista Nininha Leo
Veloso Guerra (1895-1921) duas peas de Stravinsky,a Sagrao da Primavera e O Pssaro
de Fogo, a quatro mos,numa noite comentada por Rubenstein:
(...) Milhaud me apresentou a uma famlia extremamente musical, com quem
costumvamos tocar o Sacre du Printemps e outras obras a 4 mos. A filha da casa
era uma pianista excelente e ela e Darius nos deram belas apresentaes de Sonatas
para piano e violino, inclusive uma Sonata muito bonita de sua autoria (1980:42,
citado em Correa do Lago, 2005: 66).
De volta a Paris desde 1919, Darius Milhaud sente falta do clido ambiente carioca e
confessa o seu desencanto numa carta aos Guerra:
Eu me esforo a me re-habituar a Paris sem consegui-lo e me sinto como um estranho
em meu apartamento [...].A cada dia eu sinto mais falta do Rio e penso o tempo todo
no belo sol, com as grandes palmeiras e, sobretudo, as boas sesses de msica
[20/II/1919].
[...] Aqui a vida impossvel e estpida [...] Em Paris, vive-se numa agitao to
ilusria (factice). Parecemos um motor de avio ou uma mquina de costura. A vida
se parece com a tcnica pianstica de Rudge Miller, isto , to rpida, burra e sem
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interesse [...] Desde a minha chegada na Frana eu ainda no compus nada. Ser que a
minha msica teria ficado no Brasil? (Lago, 2005: 207-208).
Em 1920 consegue trazer o casal Guerra a Paris, com o propsito de integr-los vida musica
de vanguarda (Lago, 213). Em 29/XI/20 Nininha participa no Premier Concert donn par le
Groupe des Six na Galerie Montaigne, tocando a primeira audio mundial de quatro
peas das Saudades do Brazil (Lago, 104). A sua participao com o Grupo dos Seis acaba
abruptamente quando adoece e morre no ano seguinte. Heitor Villa-Lobos levou a sua msica
para a Frana graas ao pianista Arthur Rubenstein, que estreara A Prole do Beb no Rio
de Janeiro em julho de 1922. Em Paris comeou os 14 choros (1924-29) que misturariam
elementos temticos indgenas com tcnicas de composio da msica clssica europeia. A
estria do Choro 10 criou um tumulto, como se mudasse a prpria natureza da msica [Le
Monde musicale 12, a 31 Dec. 1927, citado por Wright, 1922].
Choros No. 10 (reduo para piano) mm. 23-30
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Os poemas para orquestra Amazonas e Uirapuru foram tocados por primeira vez em
Paris em 1929 e 1935, respectivamente. So as flautas que contam a histria do pssaro
Uirapuru, sobre o ritmo sincopado do obo, xilofone, piano e contrabaixos:
Uirapuru: Melodia ndia
Extremamente variado e improvisado, Villa-Lobos incorporava canes de rua, danas,
msica carnavalesca e melodias populares e infantis. Desenvolve, numa sntese vigorosa com
a msica europeia, o conselho que Milhaud oferece aos compositores brasileiros a respeito do
nacionalismo musical no artigo Brasil", naRevue Musicale de 1920:
Seria desejvel que os compositores brasileiros entendessem a importncia dos
compositores de tangos, maxixes, sambas e caterets, como Tupinamb ou o genial
Nazareth. A riqueza rtmica, a fantasia constantemente renovada, a verve, a animao
e uma imaginao prodigiosa na inveno meldica, que se encontram em cada obra
desses dois mestres, fazem deles a glria e a jia da arte brasileira. Nazar e
Tupinamb esto frente da msica de seu pas assim como aquelas duas grandes
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estrelas do cu austral (Centauro e Alfa do Centauro) precedem os cinco diamantes do
Cruzeiro do Sul. (In Lago, 239)
A srie de Bachianas Brasileiras continua hoje como um exemplo mximo da conjugao
de temas folclricos brasileiros com estilos de composio europeus, com referncia especial
ao contraponto de Bach.
Artes Plsticas
O pintor Vicente do Rego Monteiro alternou quase a vida inteira entre o Brasil e
Paris. Participou no Salon des Indpendants em 1913, voltando para se exibir no Recife, Rio
de Janeiro e So Paulo. Estuda a arte marajoara e realiza no Teatro Trianon do Rio em 1921 o
espetculo "Lendas, Crenas e Talisms dos ndios do Amazonas." Em 1923 em Paris
inventa mscaras e figurinos para o bal do mesmo ttulo, apoiado pelo grupo de "L'Effort
Moderne" e ilustra o livro, raridade bibliogrfica, cuja capa mostra a influncia marajoara e
layout com uma viso indgena. Na sua qualidade de binacional, funda uma editora, La
Presse a Bras, para poesias brasileira e francesa, e promove sales e congressos de poesia.
Legendes, Croyances et Talismans des indiens de LAmazone. Paris, 1923.
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Mas o livro Quelques visages de Paris, de 1925, que imprime o novo mundo das florestas
virgens por sobre os monumentos de Paris. Na dedicatria, um mapa do continente
americano, dentro de um crculo, deita-se em cima do Arc de Triomphe.
Como se invertendo o ensaio de Montaigne, que descreve um ndio brasileiro que conheceu
em termos positivos, comentados num estudo de Luciana Stegagno Piccho (1920-2008) sobre
o suposto canibalismo, Rego Monteiro apresenta dez desenhos de monumentos da cidade,
sendo as impresses de um cacique durante uma curta visita a Paris, confiados ao pintor por
sorte durante um encontro no interior do Amazonas. Acrescenta que o amazonense j reunra
os croquis sob o ttulo "Quelques Visages de Paris." Com esse livro, Rego Monteiro prepara
um verdadeiro "Manifesto Antropfago" s avessas. No o canibal que deglute a arte
europeia quando chega ao Brasil, mas o selvagem ele mesmo, de visita de turista a Paris,
quem devora os principais monumentos das cidade, sujeitando-os re-interpretao segundo
uma leitura grfica e simblica indgena. Os monumentos de Paris adquirem significados
amazonenses e esto acrescidos ao arquivo de arte indgena, guardadas as imagens no livro
do chefe marajoara.
Smbolos da linguagem icnica indgena usados em Paris
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Para contrapor imagem de assimilao culinria no manifesto de 1928, h aqui um artista
primitivista que impe a sua viso por sobre os cones mais clssicos da identidade
parisiense. A Torre Eiffel se torna pssaro ou borboleta voando sobre a gua:
A Torre Eiffel, aos olhos do chefe marajoara
Mais do que uma radicalizao dos quadros primitivos do douanier Henri Rousseau (1844-
1910), as imagens do Rego Monteiro viraram a mesa do primitivismo francs, mudando o
significado e a estrutura dos monumentos da capital francesa de acordo com uma leitura
primitiva amazonense:
Quelques visages... tem um formato diferenciado: uma espcie de dirio de viagem
imaginrio de um chefe indgena a Paris que, na melhor tradio dos viajantes e talvez
com a finalidade de parodi-los, ilustra com dez belssimos desenhos locais tursticos
clssicos, numa mistura de um art dco geomtrico, aliado a um trao estilizado de
inspirao marajoara. O olhar espontneo do cacique amazonense que visita pela
primeira vez o Velho Mundo contrape-se tipografia gtica na descrio da
paisagem e da arquitetura. (Schwartz, 2005)
Essas impresses incluem Notre Dame, Tour Eiffel, Trocadro, Viaduc D'Austerlitz, Pont de
Passy, Sacr-Coeur, Concorde, Louvre, Jardin des Plantes, e Arc de Triomphe. Em todos, o
artista-selvagem forma as impresses por juntar smbolos grficos, que representam
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moradias, rvores, gua e construes beira d'gua. Esses servem de cdigo e chave de
leitura para as dez estampas em branco e preto que seguem. A interpretao do visitante a
cada monumento est registrada, sempre em letra gtica, no verso dos subttulos, em forma
de poema.
O formato complementar escolhido para a reedio fac-similar deLgendes...
e de Quelques visages... sugere um movimento unidirecional: do Brasil para a Frana,
do primitivo para o civilizado, da Floresta Amaznica para a Cidade luz, do
imaginrio mitolgico para a ratio cartesiana, ou, nas palavras de Lvi-Strauss, do cru
para o cozido. Quais as motivaes dessa luxuosa "produo brasileira" em Paris e em
francs? ... Rego Monteiro foi um autntico cidado bi cultural e bilnge, com
slidas razes em Recife e em Paris, para onde se mudou aos 11 anos de idade,
acompanhando a famlia. Artista precoce, expe em Paris, dois anos mis tarde, no
Salon des Indpendants de 1913.... (Schwartz, 2005)
Esse livro de arte foi reeditado em So Paulo em 1005, na caixa Do Amazonas a Paris. O
editor, Jorge Schwartz, comenta o movimento inverso Brasil-Frana, codificado no Brasil no
"Manifesto da Poesia Pau Brasil."
A Literatura
"Fugitivos de uma civilizao que estamos comendo... Peste dos chamados povos cultos e
cristianizados, contra ela que estamos agindo. Antropfagos", reza o "Manifesto
Antropfago" de 1928, de Oswald de Andrade. Armado com a metfora da deglutio, o
intelectual de vanguarda despe a roupa e inverte os valores da sua formao, declarando-se a
favor de uma assimilao culinria e primitiva de matria prima estrangeira. Adotando um
nacionalismo indgena, o manifesto apia a metamorfose dos intelectuais modernistas em
canibais tupinambs, para subverter o legado europeu no pas tropical. A sua leitura, depois
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de 80 anos, ainda impressiona pela exuberncia e pela originalidade da sntese. A metfora de
digesto no deixa de ser uma estratgia, um modo de incorporar o aliengena ao indgena, o
cozido ao cru, enquanto a resistncia aos modos europeus convertida em jogo e humor.
Aproveita-se, ao mesmo tempo, de uma antropologia incipiente, presente no livro de Sir
James George Frazer (1854-1941), The Golden Bough [1890], que confunde o observador
com o seu outro, o antropfago, sujeito e alvo de suas teorias, e procura na sua imagem um
princpio de identidade e unificao nacional. Ser possvel para o escritor transformar-se no
tupinamb que conhecia apenas em livros e quadros, ou forjar uma nova identidade nacional
base de uma abstrao primitivista? E, mais importante ainda, qual o futuro do artista que
se divide entre Paris e Pindorama?
A aparente rejeio da cultura europeia o espao negativo no corao da
antropofagia, pois define o canibal por tudo que a Europa no seja. A cultura utpica
indgena invocada apenas como resposta s crenas e tradies europeias, enquanto o pouco
que se conhece do antropfago vem da narrativa de Hans Staden (1525-1579) sobre o seu
cativeiro pelos tupinambs, de 1557, texto republicado em alemo em 1925 e em ingls em
1928. Repete os principais temas com que a Europa definia as sociedades do Novo Mundo a
partir do sculo 16, o canibalismo, a Utopia e o amor livre (Orgel, 41). O manifesto, ao se
opor ao racionalismo com a declarao Mas nunca admitimos o nascimento da lgica entre
ns", repete a mesma hiptese encontrada na introduo obra de Julien Lvy-Bruhl (1857-
1939), parodiada no manifesto: ...on constat chez les primitifs une aversion dcide pour le
raisonnement. Embora concorde que os primitivos no tm nem lgica nem lei, Oswald de
Andrade tenta transformar a crtica em qualidade e o defeito em virtude, ao proclamar a
Utopia selvagem, que teria precedido os futuros cdigos legais e religiosos. Por acaso,
tambm precedia a existncia do Brasil, criando uma pr-histria nacional, antes da vinda de
uma conscincia europeia e da civilizao ocidental, toda uma formao que o seu manifesto
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ousa negar e rejeitar, enquanto se aproveita do contraste, numa das invenes mais festivas
da vanguardas Repara Jorge Schwartz que o manifesto redime o conceito de 'brbaro' e lhe
tira a carga preconceituosa pejorativa cristalizada no pensamento ocidental. A floresta ope-
se escola e o carnaval serve de contraponto para a msica clssica..." (citado in Castro-
Klarn, 2000).
Num ensaio sobre a antropofagia, de 1981, Haroldo de Campos (1929-2003) define os
brasileiros como os novos "brbaros alexandrinos" que mudaram a relao Europa/Amrica
Latina pela transculturao e diferena: "...um sentido agudo dessa necessidade de pensar o
nacional em relacionamento dialgico e dialtico com o universal...segundo o ponto de vista
desabusado do 'mau selvagem', devorador de brancos, antropfago" (Campos, 1992, p. 234).
Esses novos "canibais", os "novos brbaros" que assustaram a Europa com o signo da
devorao, ocupavam um espao cultural entre o Brasil e a Europa. A sua etnografia, apenas
lida, exprime o desafio que o pensamento europeu dirigiu aos alicerces de sua cultura, com
razes em Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Sigmund Freud (1856-1939), da Genealogia da
Moral, de 1887, ao Totem e Tabu, de 1913. Ao se aliar aos tupinambs, o intelectual-
antropfago se deu o propsito de assimilar as boas qualidades dos europeus, no banquete
canibal, e livrar-se dos conflitos e das represses associados civilizao colonial importada.
guisa de canibal, o intelectual procurava voltar a um estado primordial de moralidade e de
felicidade, para se opor ao legado colonial. Quanto ao primitivismo, observa Antonio
Candido que No Brasil as culturas primitivas se misturava vida cotidiana...As terrveis
ousadias de um Picasso, um Brancusi...um Tristan Tzara, eram, no fundo, mais coerentes
nossa herana cultural do que com a deles (Cndido, 1973:121). Embora tenham apropriado
a cultura indgena como expresso nacional, os modernistas tiveram pouco conhecimento
etnogrfico e menos contato com o leque de culturas no vasto interior, situao que torna
discutvel a observao do Cndido sobre a coerncia do seu programa. Adotando uma
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perspectiva entre-culturas, "em que j no possvel distinguir o organismo assimilador das
matrias assimiladas" (frase do critico Augusto Meyer sobre Machado de Assis), o
canibalismo do manifesto substitui toda a aculturao indgena histrica, enquanto cruza os
primeiros contatos, ao reimprimir as conhecidas xilogravuras da "histria verdadeira" de
Hans Staden com o quadro contemporneo primitivista de Tarsila do Amaral, "O abaporu",
de 11 de janeiro de 1928.
Xilogravura da Warhaftige Historia de Hans Staden (Marpurg, 1557)
e oAbaporu (1928) da artista brasileira Tarsila do Amaral
Os "novos brbaros" queriam criar uma diferena que provocasse e desafiasse a Europa,
alegando uma superioridade brasileira em todas as reas da cultura: "Uma nova idia de
tradio (antitradio), a operar como contravoluo, como contracorrente, oposta ao canon
prestigiado e glorioso" (Campos, 1992, p. 237). Funda-se com os antropgafos modernistas a
literatura e o pensamento do ex-cntrico, da desconstruo e da re-escritura.
Concluso: O entre-lugar
A orquestrao e politonalidade da selva amazonense nas composies de Villa-
Lobos, a traduo plstica de monumentos parisienses em smbolos de leitura indgena por
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Rego Monteiro e a transculturao do pensamento europeu no "Manifesto Antropfago" de
Oswald de Andrade representam trs expresses do entre-lugar, resultados da fuso criativa
de realidades e linguagens culturais diferentes. No nos parece o material folclrico,
resultado de pesquisa etnogrfica, nem o carter nacional como fontes da originalidade dessas
obras, mas o cruzamento de conceitos e suas representaes, fuso que subverte o mito da
unidade e pureza monoltica das culturas e dos povos atravs de uma expresso miscigenada,
uma crioulstica de leituras e de linguagens culturais.
Qual foi a fortuna da nova identidade entre-culturas para os intelectuais de vanguarda
e para a projeo internacional de sua cultura? O momento da "alma brasileira", no ttulo
genial de Villa-Lobos, como entre-lugar brilhou com o breve mas intenso contato e
intercmbio entre intelectuais e artistas modernistas brasileiros e europeus, mas no
conseguiu substituir uma leitura dialtica ou apenas diferenciada, em que as duas culturas
apenas se tocaram, como o encontro das guas, sem se misturarem, ou em obras que
mantiveram uma distino palpvel entre suas vrias camadas e contedos. Uma identidade
entre-culturas, seja cultural, lingstica ou racial, ainda hoje no encontra aceitao num
mundo ainda estruturado por nacionalismos, mesmo que "unidos." So os "Quelques
visages", sejam do chefe amazonense em Paris ou do antroplogo francs em Mato Grosso,
que retratam o momento da leitura da civilizao pelo selvagem, ou da selvagem pelo
civilizado, e que pelas suas vises cruzadas renovam e transformam as possibilidades de
significao e leitura. a miscigenao em todos os nveis que prepara um caminho do
colonialismo ao cosmopolitismo, e que transforma a vigem etnogrfica em experincia
democrtica de autocrtica.
Mas o momento do entre-lugar durou pouco. A que se atribui a instabilidade da
chamada antropfaga no seu momento histrico? At os antropfagos eram nacionalistas e
eram poucos os artistas que transitaram entre culturas. Representaram uma vanguarda de
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idias e de tcnicas que no eram culturalmente nem europeias nem brasileiras, trabalharam
exclusivamente na esfera das artes, expressaram-se pela sntese ldica e humorstica e, com o
pano de fundo da festa de Rouen, montaram a sua performance nos centros urbanos diante de
um pblico intelectual. Por ser um movimento de vanguarda, talvez fosse necessariamente de
durao limitada, e por ser expresso na esfera das letras e artes, o seu impacto fosse apenas
esttico. Mas mesmo durando pouco, a deglutio das heranas culturais j estava lanada, do
escritor devorador de livros, do artista impuro e disperso que l e mastiga a tradio para dar
incio "polifnica civilizao planetria", no conceito de Haroldo de Campos.
Sempre chegava a hora inexplicvel de voltar. Por que o Caramuru deixou Moema e
suas ninfas no recncavo baiano para se casar em Paris? Por que Nabuco abandonou a sua
noiva Eufrsia em Paris para se casar no Brasil? Por que os marinheiros camonianos
deixaram a Ilha dos Amores? Foi por falta de convite, de desejo, de convico ou de fortuna?
Ao deixar a Europa ou o Brasil na viagem de regresso, a das saudades felizes, os modernistas,
artistas e intelectuais, se encontrariam no paraso perdido da sua jangada de pedra, onde, na
frase de Haroldo de Campos, "tudo pode coexistir com tudo" (Campos, 1992: 251).
Abstrato: A vanguarda brasileira, cujo mximo empenho era aproveitar-se do nacionalismo
folclrico, da linguagem coloquial e da vida cotidiana como novos temas literrios e
artsticos, mantinha sempre um dilogo com artistas estrangeiros no Brasil e ganhava
projeo atravs da presena de artistas brasileiros na Europa. De acordo com a teoria de
Silviano Santiago, o intelectual de vanguarda ocupava um espao "no meio", ou seja "entre
culturas." Para completar uma interpretao da vanguarda, seria essencial enfocar a
necessidade e a constante presena do dilogo com a Europa, como ncleo de projetos para a
internacionalizao da cultura brasileira.
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